Catalogo tuca

Page 1






















tuca vieira v. se encontra na posição da seta

Romano Guerra Editora São Paulo, 2013


A fotografia infinita de Tuca Vieira Tuca Vieira’s endless photo GUILHERME WISNIK, São Paulo, 2013

E

ssa enorme fotografia é feita de muitas outras. Cento e cinco, mais precisamente. Assim, cada fotograma é, ao mesmo tempo, célula de um conjunto grande e coeso, e unidade autossuficiente de um olhar que mergulha nas cenas que se apresentam à sua frente buscando detalhes da vida íntima alheia. E assim, como que em um jogo de detetive, cenas inesperadas – já que invisíveis a olho nu – vão saltando à vista através da câmera: pessoas na janela, silhuetas veladas através de vidros translúcidos, fotos, desenhos e objetos situados no fundo dos apartamentos etc. Não se trata apenas de voyeurismo. Aqui, a poética do fotógrafo se irmana à ficção cinematográfica e literária. Penso imediatamente em Janela indiscreta (1954) de Alfred Hitchcock, assim como em Blow-up (1966) de Michelangelo Antonioni, inspirado no conto Las babas del diablo (1959) de Julio Cortázar. O jogo de suspense instaura enigmas que transcendem a compreensão causal das coisas. Vivemos em um grande labirinto. As teias da vida cotidiana são infinitas, e às vezes se cruzam em lugares impróprios. O grande jogo lúdico do acaso dispara relações associativas incontroláveis, que podem nos levar até a desvendar um crime através de ampliações sucessivas de uma foto, tal como acontece em Blow-up. Toda essa rede de possibilidades está implícita nesse trabalho de Tuca Vieira: V. se encontra na posição da seta. Escrita em um luminoso localizado em uma das entradas do edifício, essa frase de identificação informativa pode ser vista também como índice de rastreamento e vigilância: você está mapeado, registrado, grampeado. Aqui, Tuca Vieira elabora artisticamente a noção de mapeamento. Pois não se trata apenas de uma vigilância panóptica. Aliás, não estamos mais no plano paranóico do “olho do poder” descrito por Michel Foucault. Trata-se, agora, de uma vigilância que envolve sedução,

T

his huge photograph is made up of many others. One hundred and twenty-five, to be precise. Thus, each photogram is, at the same time, a cell of a big, cohesive ensemble and a self-sufficient unit of a gaze that dives into the scenes appearing before it, seeking for details of the intimate life of others. And, then, just as in a detective game, unexpected – because invisible to the naked eye – scenes pop up before our views through the camera: people at the window, veiled outlines through translucent glasses, photos, drawings and objects placed at the end of apartments etc. This is not only about voyeurism. Here, the photographer’s poetics joins hands with cinematographic and literary fiction. I am immediately reminded of Alfred Hitchcock’s Rear Window (1954) as well as Michelangelo Antonioni’s Blow-up (1966), inspired by Julio Cortázar’s short story Las babas del diablo (1959). The game of suspense sets riddles that go beyond the chance understanding of things. We live inside a great maze. The webs of daily life are endless and at times meet at unsuitable places. Chance’s great ludic game triggers uncontrollable associative relations, which may even lead us to solve a crime by successively magnifying a photo, as in Blow-up. This whole network of possibilities lies implicit in this work by Tuca Vieira: V. se encontra na posição da seta (You are located in the arrow’s position). Written on a lit signal located at one of the building’s entrances, this sentence of informational identification may be viewed as a tracking and surveillance index as well: you are mapped out, registered, tapped. Here, Tuca Vieira artistically devises the notion of mapping. For this is not just about a panoptical surveillance. By the way,

buscada e consentida em certa medida, como nos programas televisivos de reality show, ou nos sobrevôos e mergulhos repentinos proporcionados pelo Google Earth, amplificados mais recentemente nas cenas ao mesmo tempo anônimas e indiscretas do Street View. Se o mapeamento é um dos temas centrais da arte contemporânea pelo menos desde Robert Smithson, no final dos anos 1960, Tuca Vieira desdobra a questão a partir do universo simbólico engendrado pelas tecnologias de busca e mapeamento digital nos anos 2000, tais como google e GPS, focalizando um ícone arquitetônico de São Paulo. Nossa experiência diária está saturada de imagens. Vivemos envoltos por imagens, tanto palpáveis quanto virtuais. Fotografamos e filmamos tudo a todo momento, armazendo o mundo em memórias digitais que ficarão disponíveis para que qualquer pesquisador futuro saiba tudo sobre a vida que levamos hoje. O consumo obsessivo extravasou o mundo das coisas para atingir também as suas representações. Diferentemente do que queria Hélio Oiticica nos anos 1960, não é o museu que virou mundo, e sim o mundo que se museificou. Consumimos também a representação do mundo, suas infinitas imagens. Nesse sentido, o trabalho de Tuca Vieira dialoga com essa banalização. Mas reverte essa espiral da variedade infinita e irrelevante a seu favor. Alguma forma de controle e organização se mantém. Os cento e cinco fotogramas reunidos compõem uma imagem única. Única porém falsa como totalidade, já que as fotos não foram tiradas no mesmo instante, e portanto as cenas que vemos nunca estiveram juntas ali. Mas o que é a realidade? Não será a realidade sempre uma construção? À medida que se aproximam de objetos menores, recortando pedaços da imagem, as fotos de Tuca Vieira se pixelizam, assumindo o artifício, isto é, a realidade digital do trabalho. Ou será a realidade digital do mundo? Já não distinguimos bem o rosto de uma pessoa real em relação a uma foto que estava sobre a parede do apartamento em forma de poster. Não poderíamos supor haver uma identidade entre os pixels de um rosto muito ampliado e os padrões geométricos das superfícies de cobogó que vedam as varandas de serviço no Copan? De que padrão visual e construtivo é feita a nossa vida? Será que aquele rosto não é o seu? Perguntas como essas se amplificam à medida que percorremos essas imagens. E quanto mais buscamos os segredos dos outros, mais nos lembramos de que nós é que estamos sempre na posição da seta.

we no longer are on the paranoid plan of the “eye of power” described by Michel Foucault. Now, this is surveillance that encompasses seduction, to a certain extent sought after and granted, as in TV reality shows or the flyovers and sudden dives provided by Google Earth, recently magnified by Street View’s both anonymous and indiscreet scenes. If mapping has been one of contemporary art’s core issues at least since Robert Smithson in the late 1960s, Tuca Vieira unfolds it out of a symbolic universe conceived by the technologies of digital search and mapping in the years 2000s, such as google and GPS, by focusing on an architectural icon of São Paulo. Our daily experience is overwhelmed by images. We live surrounded by images, both tangible and virtual. We photograph and film everything everytime, storing the world in digital memories which will be available for any future researcher to know everything about the live we lead today. Obsessive consumerism has burst out of the world of things to reach its representations as well. Unlike what Hélio Oiticica wanted in the 1960s, the museum has not become the world, but the world has turned itself into a museum. We also consume the representation of the world, its endless images. In this sense, Tuca Vieira’s work opens a dialogue with this banalization; but turns this spiral of endless and irrelevant variety into his favor. Some sort of control and organization is kept. The hundred and five photograms gathered make up a single image. Single but false as a totality, since the photos were not taken at the same time; hence, the scenes we see were never there together. But what is reality? Isn’t reality always a construction? As they approach smaller objects, cutting pieces out of the image, Tuca Vieira’s photos pixelate, take on the artifice, that is, the work’s digital reality. Or is it the world’s digital reality? We no longer can distinguish a real person’s face from a photo which was on the apartment’s wall, in a poster. We could not suppose that there was an identity between the pixels of a greatly magnified face and the geometric patterns of the hollow elements (cobogó) surfaces which seal Copan’s service verandas? What visual and building pattern is our life made of? Isn’t that face yours? Questions such as these ones amplify as we follow these images. And the more we seek for the secret of others, the more we are reminded that we are the ones always in the position of the arrow.

Guilherme Wisnik (1972) é professor na FAUUSP. É autor dos livros Lucio Costa (Cosac Naify, 2001), Caetano Veloso (Publifolha, 2005) e Estado crítico: à deriva nas cidades (Publifolha, 2009), entre outros. É membro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte, e da LASA – Latin American Studies Association. Crítico de arte e arquitetura, foi curador do projeto de Arte Pública Margem (Itaú Cultural, 2008-10), das exposições Cildo Meireles: rio oir (Itaú Cultural, 2011) e Paulo Mendes da Rocha: a natureza como projeto (Museu Vale, 2012). É o curador da 10a Bienal de Arquitetura de São Paulo (2013).


Presidenta da República Dilma Rousseff

© Tuca Vieira, 2013

Este projeto foi contemplado pelo Prêmio Funarte de Arte Contemporânea 2013 – Galerias Funarte de Artes Visuais São Paulo

ISBN: Ministra de Estado da Cultura Marta Suplicy Fundação Nacional de Artes Presidente Guti Fraga Diretora Executiva Myriam Lewin Diretor do Centro de Artes Visuais Francisco de Assis Chaves Bastos (Xico Chaves) Coordenadora do Centro de Artes Visuais Andréa Luiza Paes Coordenador do Prêmio Funarte de Arte Contemporânea 2013 Galerias Funarte de Artes Visuais São Paulo Luiz Carlos de Castro del Castillo (Neno del Castillo) Coordenadora de Comunicação Camilla Pereira Representação Regional da Funarte São Paulo Coordenador Tadeu de Souza Coordenador Substituto Ricardo Gracindo Dias Administração Cultural Alexandre Koji Shiguehara Sharine Machado Cabral Melo Equipe Técnica Antonio José dos Santos Francisco Lopes da Costa Gyorgy Forrai – Montagem Jerivan da Rocha Silva Mauro Ruy Martorelli Ronei Leandro Novais Agradecimentos Ester Moreira

Distribuição Gratuita, proibida a venda texto GuIlHErmE WISNIK Projeto Gráfico estação design gráfico Assessoria de Imprensa Analu Andrigueti Juliana Gola Educativo Ana Cláudia Leite Versão para o inglês Luiz Gustavo Leitão Vieira Agradecimentos Ilana Bessler Iatã Cannabrava Thyago Nogueira Breno Rotatori Andrés Sandoval Henrique Siqueira www.tucavieira.com.br


Este catálogo foi editado pela Romano Guerra Editora, por ocasião da exposição Tuca Vieira – V. se encontra na posição da seta, realizada na Galeria Mário Schenberg, de 19 de novembro a 20 de dezembro de 2013. Foram utilizadas as tipografias Hoefler Text e DIN e os papéis XX para o miolo e o XX para a capa. Foram impressos 1000 exemplares pela gráfica Ipsis, na primavera de 2013.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.