Cidade Inacabada

Page 1

portfólio_Tuca vieira

CIDADE INACABADA Um mapa fotográfico de São Paulo guilherme wisnik

É

de Tuca Vieira a fotografia mais representativa de São Paulo nos últimos tempos: um casario da favela de Paraisópolis ao lado de um edifício de alto padrão, com caprichosas piscinas nas varandas dos apartamentos, dando volteios em espiral. Dois mundos tão próximos e contrastantes, separados por um muro enorme. Símbolo cristalino da exclusão social e da urbanização aberrante do capitalismo periférico, essa foto ganhou o mundo, ainda que seu criador tenha permanecido razoavelmente incógnito. É significativo que o autor dessa imagem-síntese se lance à investida de mapear essa mesma cidade, agora atrás de uma espécie de síntese às avessas, que se configura pelo acúmulo e pela comparação exaustiva, no limite impossível. Afinal, qual é a verdadeira cara de São Paulo? Quais os seus limites? Será possível conceber uma imagem dessa massa informe e tentacular que desafia, por sua escala e complexidade, qualquer esforço de cognição humana? Essas são perguntas sem resposta, e que só podem ser levadas a sério por meio de duas posturas aparentemente opostas: a ficção, por um lado, ou o experimento científico, por outro. Partindo de regras e métodos muito claros, Tuca Vieira trilha o segundo caminho, mas o tempera com um importante halo de ficcionalidade, próprio de quem sabe não haver respostas exatas nem muito menos únicas. Resulta um esforço algo inglório para realizar um trabalho cujo sentido parece escapar ao bom senso. Explico a sinuca de Sísifo: o fotógrafo quer conhecer melhor a cidade na qual nasceu e vive, e ao mesmo tempo ser capaz de registrá-la fotograficamente. Como fazê-lo? Por onde começar? Diante da dificuldade da

empreitada, escolheu um critério objetivo e impessoal: tomar como base um guia de ruas – no caso, o Quatro Rodas. Isto é, seu trabalho consiste em produzir uma foto para cada página dupla da publicação, que, por sua vez, corresponde a um número. Assim, cada número, ou página dupla, representa uma seção quadrada que divide a mancha urbana da região metropolitana de São Paulo em 203 partes iguais. Trata-se de um grid rígido com módulos equivalentes a aproximadamente 3 por 3 quilômetros, que varre a capital de norte a sul, da esquerda para a direita. O guia de ruas não só dá conta de toda a extensão da mancha urbana – salvo o extremo sul, eliminado, já que é quase nada urbanizado –, como também permite uma apreensão palpável da metrópole, uma vez que sua escala nos faculta identificar todas as ruas e praças. Tem-se, portanto, um trânsito possível entre as partes e o todo da cidade, a chave para a elaboração desse mapeamento. Entra em cena aqui um elemento crucial do projeto: a experiência real do espaço. Para que visitar lugares que estão plenamente mapeados pelo Google e pelos sistemas de georreferenciamento da cidade? Note-se, a propósito, que uma série de fotógrafos contemporâneos tem feito trabalhos urbanos apenas coletando imagens do Google Street View como uma forma de ready-made fotográfico, sem nunca terem posto os pés naqueles locais e, portanto, sem jamais terem disparado pessoalmente nenhum daqueles cliques. Daí o aspecto algo quixotesco desse projeto de Tuca Vieira. Podemos imaginar o grau de infortúnios cotidianos enfrentados para a consecução da tarefa, que envolve deslocamentos, congestionamentos, gastos com combustível e equipamentos, cansaço e eventuais problemas com seguran-

Tuca Vieira produz uma foto para cada seção do guia de ruas de São Paulo, identificada por um número no mapa ao lado

4

piauí_janeiro

41


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.