TUNGA pĂĄlpebras
Paulo Sergio Duarte texto crĂtico
agnut galeria millan
luhring augustine galleria franco noero
AGORA SÃO AS NOVAS CARTAS DE CARLOS MATTOS ALLEN Paulo Sergio Duarte
Kigali, 8 de junho de 2016. Querido Paulo Sergio, Estou realmente chocado com a morte de Tunga. Não sabia que ele estava doente. Estou aqui, nesse lugar remoto, sozinho, e, subitamente, recebo sua mensagem eletrônica. Estou em Ruanda, o que para mim, acredite, é melhor do que estar no Brasil. Essa notícia é um horror. O horror da perda da pessoa – Tunga – e a perda da arte, para mim, são de uma tristeza imensa. Ninguém tem aí, no Brasil e mesmo no mundo, a mínima ideia o que isso significa. É isto que eu sinto, mais que a tristeza, o horror. Recebi aquele texto que você havia escrito há algum tempo para uma publicação de Inhotim que pelo visto nunca foi realizada. Gosto muito das passagens iniciais: “É preciso formular a questão primitiva: por que nos pomos de pé? Não é o que nos distingue dos outros mamíferos? Uma energia transformada em desejo e vontade nos pôs de pé; não nos submetemos à lei da gravidade. Muitas das esculturas de Tunga se assemelham a nós mesmos, se põem de pé por uma energia interior. Os imãs fragmentados constituem um campo de energia e juntos instauram um corpo. Lâminas de aço ou bengalas são vértebras em torno dos quais se constituem o corpo da obra. Às vezes atravessadas pelas tranças, a tentação de ir mais longe, bem longe, no entrelaçamento das formas contínuas, que não fazem mais que evidenciar a possibilidade infinita do corpo magnético contido nos fragmentos agregados pela sua energia interior. Como infinitos seriam o crescimento dos cabelos. Uma poesia que repousa num campo muito tenso de atração e repulsão. Nem as tranças, nem os pentes, são coadjuvantes dessa estória, são protagonistas. E quem se ergue, muito além da metáfora do corpo, é a massa poética. ” Acho que a imagem do tecelão de ideias é muito feliz: “Tunga é como um tecelão, construindo um belíssimo e infindável tapete: sua obra, que nunca estará concluída, é constituída de diversas linhas que se entrelaçam e se emaranham, tal como no conceito de entrelaçamento quântico,
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no qual o estado quântico de dois objetos, só podem ser descritos globalmente, sem
íntegra que havia escrito para Inhotim. Acho que, como sempre, só havia lhe
separar um objeto do outro, mesmo que estejam separados espacialmente. Este
enviado pedaços.
tecelão, a quem os conceitos de linha e de contínuo são tão caros, não trabalha com linhas materiais. Engana-se quem vê a linha contínua dos desenhos como um
Muito obrigado,
atrativo plástico. Aquilo é a isca que, ao nos fisgar, nos prende no anzol da sedução,
Paulo Sergio
na sua inexorável beleza, tão inteligente e atual. Corpos que se separam, se unem, e se reencontram nas genitálias. Bem antes do desenho; antes de tudo, o artista
P.S.: O texto que escrevi para Inhotim.
tece com linhas de ideias da psicanálise, da física, da matemática e da filosofia; seu tapete se deixa banhar e tingir pela filosofia, pela literatura e pela poesia. ” Mas isso não basta, não que seja pouco, é bastante, mas quero mais, você não
TUNGA - UM POUCO ALÉM DO ESPANTO
toca na dimensão erótica da obra de Tunga. É preciso formular a questão primitiva: por que nos pomos de pé? Não é o que nos Muitas saudades,
distingue dos outros mamíferos? Uma energia transformada em desejo e vontade
Carlos
nos pôs de pé; não nos submetemos à lei da gravidade. Muitas das esculturas de Tunga se assemelham a nós mesmos, se põem de pé por uma energia interior. ***
Os imãs fragmentados constituem um campo de energia e juntos instauram um corpo. Lâminas de aço ou bengalas são vértebras em torno dos quais se constituem o corpo da obra. Às vezes atravessadas pelas tranças, a tentação de ir mais
Kigali, 23 de dezembro de 2016.
longe, bem longe, no entrelaçamento das formas contínuas, que não fazem mais que evidenciar a possibilidade infinita do corpo magnético contido nos fragmen-
Meu caro,
tos agregados pela sua energia interior. Como infinitos seriam o crescimento dos Se precisa de algo formal, aqui está: autorizado a publicar toda nossa correspondência.
cabelos. Uma poesia que repousa num campo muito tenso de atração e repulsão.
Um ótimo Natal e, esperemos, um melhor 2017.
Nem as tranças, nem os pentes, são coadjuvantes dessa estória, são protagonistas. E quem se ergue, muito além da metáfora do corpo, é a massa poética. Tunga é como um tecelão, construindo um belíssimo e infindável tapete: sua
Saudades imensas,
obra, que nunca estará concluída, é constituída de diversas linhas que se entrela-
Carlos Mattos Allen
çam e se emaranham, tal como no conceito de entrelaçamento quântico, no qual o ***
estado quântico de dois objetos, só podem ser descritos globalmente, sem separar um objeto do outro, mesmo que estejam separados espacialmente. Este tecelão, a
Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 2016.
quem os conceitos de linha e de contínuo são tão caros, não trabalha com linhas materiais. Engana-se quem vê a linha contínua dos desenhos como um atrativo plástico. Aquilo é a isca que, ao nos fisgar, nos prende no anzol da sedução, na sua
Meu querido Carlos,
inexorável beleza, tão inteligente e atual. Corpos que se separam, se unem, e se Espero que você me autorize a publicação dessas nossas mensagens sobre o Tunga.
reencontram nas genitálias. Bem antes do desenho; antes de tudo, o artista tece
Quero publicar igualmente as nossas cartas de 1996, publicadas em 1999,
com linhas de ideias da psicanálise, da física, da matemática e da filosofia; seu
no catálogo da exposição de Buenos Aires. Estou lhe enviando aqui o texto, na
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tapete se deixa banhar e tingir pela filosofia, pela literatura e pela poesia.
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Uma linha, por exemplo, aquela da teoria do sujeito, a ilusão que somos inteiros, que nos separamos de nosso corpo frágil e feito aos pedaços, que enche de
em nosso corpo que tendem para o infinito, até à morte, e mesmo depois não cessam de crescer, por algum tempo.
júbilo e vai habitar nosso imaginário, quando, com alguns meses de idade, somos
Mas a esse imenso contínuo no tempo, construído por fragmentos, pedaços,
colocados diante de um espelho, é desmantelada nesse tapete de verdades artís-
figuras, antecedeu uma interessante investigação que culmina na exploração do
ticas, e é costurada nos diversos fragmentos e segmentos de que somos feitos,
contínuo na figura da superfície topológica do toro.
antes e depois da ilusão imaginária da unidade. Como esta linha vem sendo ex-
Antes, em 1979, na exposição Pálpebras (peço desculpas pela longa descri-
plorada desde a década de 1970 por Tunga? Lembram-se de Vê-nus, 1976? Sobre
ção, mas poucos viram a exposição), no Centro Cultural Candido Mendes, ainda
uma superfície de borracha foi dada uma perversa dentada. Aquele que mordeu
no antigo prédio do cinema Pax (hoje, não mais existente, é o prédio da galeria
não tinha ou havia perdido todos os dentes da arcada superior; seus dentes arre-
de lojas Fórum), em Ipanema, Tunga explorou o espaço de uma ampla sala para
dondados da arcada inferior deixaram sua marca. A escultura não deixa restos
colocá-la na extrema penumbra. Mas para acessá-la, passava-se por um corre-
como os mármores de Leonardo ou Michelangelo; os restos são partes da obra e,
dor que estava coberto por uma espécie de papel de parede que só reproduzia
nesse sentido, tem muito mais da totalidade que as representações totalizadoras
moscas, milhares de moscas impressas pretas sobre branco até a porta de vidro,
da figura humana. A coisa mordida é a escultura bem como o que restou da carne
antes de entrar no espaço da exposição; na verdade, já estávamos na exposição.
de borracha. O resto, não é o resto, é parte integrada pelas articulações de fios,
Ali estavam expostos extremos que se encontram, o negro e o albino, placas ne-
grampos e pela luz incandescente que os unificam numa sombra. Está lá, na parede.
gras de borracha, afastadas uma da outra, submetidas ao extremo da percepção:
O inteiro, a totalidade, a borracha presa e amarrada na parede às suas partes, e
o ultravioleta e o infravermelho, as luzes escondidas atrás das placas de borracha,
iluminada pelos fios que descem dela mesmo, suas luzes e – não esqueçamos – as
que se acomodavam, como podiam, sobre a parede, deixando esparramar as luzes
sombras. É ou não é uma Vênus de nosso tempo?
para os lados e suas bordas sobre o chão. A obra tinha um tempo lento, muito
Se nos detivermos em Lézard, 1989, apresentado pela primeira vez no mes-
lento. Contrariava toda a fruição apressada da obra de arte. O seu tempo já era
mo ano, no Museum of Contemporary Art / Chicago e, no ano seguinte, na White
um índice de revolta contra a mercantilização generalizada de todas as relações
chapel, em Londres, hoje, presente em Inhotim, Brumadinho, Minas Gerais,
sociais naquele momento, e especialmente o que logo veria a ser na arte, quando,
Brasil, veremos todas essas questões postas em ação, e mais uma, o narcisismo.
mais tarde iria ocorrer sua inserção definitiva na indústria do entretenimento.
Não aquele secundário, psicótico, que investe toda sua libido no ego, e nada res-
Na parede oposta às placas de borracha havia uma placa de chumbo sobre a qual
ta para o objeto. Aqui estamos diante de um corpo que exercita o narcisismo
estava uma caixa de música que repetia indefinidamente “Smoke gets in your eyes”.
primário, aquele que todo dia nos ergue, nos, levanta, e nos prepara para um
Essa caixa de música desenrolava e enrolava um fio que atravessava a sala sobre o
novo dia, esse monstro vivo, como foi chamado pelo crítico Joseph Williams ,
teto, por alguns quatro ou cinco metros, até alcançar, no espaço entre as placas de
em 1990, é nosso retrato atual, com suas placas de aço, seus imãs, suas tranças,
borracha, uma asa de mosca pousada sobre uma comutador de luz. No extremo do
cabelos e pentes. É nosso esqueleto nas placas metálicas, nosso sangue sólido no
fio que atravessava a sala havia uma aranha fundida em prata que ao pousar sobre
magnetismo agregador, nossa imagem e, sobretudo, não pensem que os pentes
a asa da mosca modificava toda a iluminação da sala ao comutar para a lâmpada
não fazem parte de nosso corpo. O que seria de nós, todo dia, sem os pentes, que
incandescente que, então, iluminava a sala. Pense no tempo das nossas pálpebras,
separa e dá individualidade aos fios de nossos cabelos? E o que é o pente, senão
comutando a todo instante à luz do reflexo, e pense no tempo da fruição, do de-
a coisa que separa o coletivo, para restituir o indivíduo? E são tantos os pentes,
senrolar de todo o fio durante horas enquanto você não para de escutar essa frase
mas milhares de mais os cabelos que juntos, são cabeleira, belos cabelos, mas
“Smoke gets in your eyes”. Havia a formidável comutação do negro, do inseto – as
constituídos fios a fios, indivíduos juntos são um corpo lindo; separados, têm
moscas – até o aracnídeo: a aranha. Atores orgânicos de uma cena digna de Beckett.
outra beleza, eles se juntam e o pente os separa. São sempre o uno e a totalidade
A figura do toro fornece uma outra continuidade, esta não é uma repeti-
em belíssimas esculturas. E o cabelo, como as unhas, são as únicas coisas visíveis
ção, o contínuo da figura do toro remove, a interrupção e a retomada, a figura é
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absolutamente contínua. A figura de um toro é aquela de uma câmera de ar cheia
obras de Lygia Clark e Hélio Oiticica. Mas essa evidência não deve nos abstrair
(sem o pino, é claro). Para a geometria euclidiana o toro é o sólido absoluto. O toro
de uma coisa que se apresenta pela primeira vez na arte. Tunga é um escultor que
é a figura gerada pela revolução de um círculo num eixo coplanar com o mesmo
esculpe de dentro para fora, quando todos esculpem de fora para dentro. É como
círculo, mas, para a topologia a questão é mais complexa. E Tunga estava a par
se a escultura existisse antes de aparecer. O pensamento é tão forte que quando
de tudo isso, quando começou a explorar na escultura essas questões. Realizou o
nos encontramos com o resultado ele transborda: ficam evidentes as ideias que o
toro em diversas dimensões e, também o seccionou, interrompendo seu reinado.
mantém. A obra de Tunga exclui toda alteridade etnográfica, nenhuma cultura o
O toro, para a topologia, é a figura homeomorfa ao produto cartesiano de dois
contém por inteiro apesar de eventuais referências locais: os tacapes, a rede-de-
círculos idênticos, e o último é tomado como a definição neste contexto. A expo-
-dormir, o tipiti. Tunga só é um artista brasileiro, porque realiza sua obra aqui, no
sição dessas questões matemáticas seria cansativa aqui. Vamos ao que interessa,
Brasil. Sua poética, sempre, depois de tantos anos, ousou ser universal: pertence
Tunga não apenas materializou o toro escultoricamente, o seccionou, como viaja
a um chinês, americano, brasileiro, congolês, inglês ou, até, argentino. Porque
no seu interior.
foi feita aos pedaços do qual são feitos todos nós. Este o tapete que temos diante
Ão, 1981, apresentado pela primeira vez no Centro Cultural Candido Mendes,
de nós, não pertence a ninguém porque pertence a todos que se encontram com
já em sua nova galeria da rua Joana Angélica, em Ipanema, em 1981, é uma in-
a arte. E temos a sorte de encontra-lo, aos pedaços, aqui e ali, como em Inhotim.
terminável viagem no interior de um toro. São muitas as inteligências tecidas
Este o nosso grande tecelão de ideias. E, sorte maior, sermos seu contemporâneo.
nessa obra, é muito difícil escolher uma para começar, vamos pelas mais óbvias. O artista escolheu uma seção em curva de um conhecido túnel do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, junho de 2014.
Filma esta seção em curva do túnel, com a performance de Murilo Salles na câ***
mera e na fotografia, e a reproduz de forma a constituir o interior de um toro, um túnel sem entrada nem saída; uma câmera subjetiva está em vigor. Uma seção única da música, na voz de Frank Sinatra se repete: “Night and day, day and night”.
Nova York, 6 de novembro de 2016.
Nunca antes, acredito, ninguém teve a sensação de estar no interior de um toro, mesmo que não soubesse o que é um toro. Não há como entrar ou sair dali do que
Meu caríssimo Paulo Sergio,
vemos; mas no espaço da exposição Tunga não cessa de provocar a inteligência do espectador: o loop é materializado, não se restringe ao projetor e algumas pe-
Estive em São Paulo, por três dias, no final de outubro. Tive a chance única de ver
quenas voltas do filme. O toro nos envolve, somos levados à viagem infinita e nos
o que André Millan fez para o Tunga. Era uma coisa digna de museu e, no entanto,
vemos envolvidos materialmente por ele, pelo filme que percorre o perímetro da
no Brasil, acontece numa galeria privada. Há quase cinquenta anos fora do Brasil,
sala na sua eterna e infindável performance: o contínuo infindável. O espectador
viajando pelo mundo, para mim é difícil de compreender. Como aquela exposi-
fica no interior do duplo túnel: o que vê e o que o percorre. É evidente uma dimen-
ção não estava numa instituição, mas ocupando os dois espaços de uma galeria
são maior, digamos, hermenêutica, uma dimensão interpretativa e existencial.
privada com todos os problemas de produção: segurança – havia uma formidável
Existe saída, uma vez que existimos?
instalação no lago externo do anexo da galeria (acho que você deveria falar sobre
Não podemos deixar de ceder à exigência da reflexão: a obra é conhecimento,
aqueles monumentais dedos contínuos), as peças primorosas e históricas, como a
denso, exigente. Não transige com o dever do pensar sobre o pensar em nenhum
Vê-nus de 1976, e um Eixo Exógeno, perfil da Beth Jobim? Além da monumental
momento ao longo de seu desenvolvimento ao longo de décadas. Vejamos os cris-
instalação exterior no anexo, haviam peças que eu nunca tinha visto, e pior, nunca
tais mais recentes, que às vezes convivem com os imãs.
imaginado. Havia, na galeria peças mínimas preciosas em caixas que se abriam
É óbvio que as tradições estão presentes, tanto as remotas, como o barroco,
ou se fechavam, nas quais pequenos tipitis se envolviam eroticamente com corpos
como a recente, a construtiva, sobretudo em seus desdobramentos posteriores nas
fluidos. As caixas, imaginadas, projetadas e construídas por Fernando Santana e
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aprovadas pelo Tunga, eram perfeitas para apresentar as pequenas peças, mais
pela vila. Estou num hotel lá no porto. Todo dia subo até a vila para tomar um io-
que isso, se incorporam como partes da obra.
gurte, um ouzo de vez em quando, e ver as jovens passearem. É um pouco diferente. Tudo é mais arrumado, no entanto, o andar das coisas é mesmo num ferragosto
Um beijo, Carlos
em Ios. Sinto saudades de nosso Jean-Marie Drot que lá se foi no ano passado e ***
sua coleção de pintores haitianos. Ele tinha um ótimo Antonio Dias comprado da Ceres Franco, na Olho de Boi, na rua Quincampoix. Eu vi na casa dele em Paris.
Rio de Janeiro, 14 de novembro de 2016. Grande abraço, Carlos
Prezadíssimo,
***
Estou com você e não abro. É uma vergonha para todas as nossas instituições públicas e museus sob regime privado que aquela exposição tenha que ter sido feita pelo André. Na exposição experimentei uma sensação ambivalente: estava
Rio de Janeiro, 31 de julho de 2016.
muito triste, pelas razões óbvias, e muito feliz, por estar vendo aquilo tudo junto. Me lembrei muito do Tunga me mostrando os trabalhos novos e me perguntando:
Querido Carlos,
o que você acha? O que você acha? Tunga, sempre afirmativo na obra, pessoalmente, nunca foi isso. Ele tinha dúvidas e essas dúvidas ele conseguia materia-
Desculpe-me a demora em lhe responder. O enterro do Tunga foi à altura de
lizar nas obras. Isso é que era fantástico na sua poesia: a materialização de um
sua memória: ele está num túmulo no Cemitério São João Batista, em Botafogo,
conjunto de incertezas. Tunga nunca perseguiu a exatidão, sempre um problema
junto com Gerardo e Léa. Gonçalo recitou um poema lindo e Cabelo, maravilhoso,
para o qual ele não sabia a resposta, mas sabia que só ele havia formulado.
recitou, de cor, um maravilhoso poema do Gerardo. Foi tudo muito digno e à altura
Num dos nossos encontros na sua casa, ele estava com um físico francês que
de nosso amigo. Fique tranquilo aí na África. Antonio está cuidando de tudo muito
trabalhava no maior acelerador de partículas do mundo, situado na região fronteira
aprumado. Mantenho contato com Lilian e Cordelia está bem com os índios. Fique
entre a França e a Suíça. Foi lá que, em 2012, foi comprovada a existência do bóson
tranquilo, cuide de suas pesquisas de economia e educação. Quanto aos sonhos e pe-
de Higgs. Tunga havia acabado de visitar o acelerador a convite desse físico e, me
sadelos, são inevitáveis, para mim já virou até um hábito. Acordo e durmo com eles.
lembro, bem, Tunga disse: “Esse acelerador é a catedral gótica de nossa época.” Grande abraço, ***
Paulo Sergio
Ios, 15 de agosto de 2016.
***
Meu caro Paulo Sergio,
Kigali, 12 de junho de 2016.
Vim descansar uns dias aqui na Grécia, na nossa ilha onde tanto nos divertimos
Meu querido amigo,
nos anos 1970. Fazer as escaladas da praia até a vila é mais cansativo. Mas a vida aqui parece a mesma. Mia birra, tomatos ramstés, ena kafelaki vari glikó. Não
Tive um pesadelo horrível. Estava numa grande cidade brasileira aonde você e
vejo mais os velhos com as roupas tradicionais, nem os padres ortodoxos passeando
Tunga viviam. Não era Rio e nem São Paulo, era uma cidade inventada. Aqueles
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prédios de arquitetura medíocre, aquelas ruas sem charme, cheias de bares que
A perda de Tunga ainda estou sofrendo e sei que a sofrerei por muito tempo.
vocês frequentavam. O clima, ao menos, era ameno, não havia o calor daqui, de
Não foi fácil encontrá-lo ainda vivo e esperançoso na casa de Charles Cosac, cer-
Kigali, nem daí. Mas acompanhar vocês era insuportável, porque estavam sempre
cado de amigas e amigos. O Charles, naquela generosidade única que já conhece-
se divertindo e eu me sentia arrastado numa farra interminável onde não faltavam
mos há muito tempo, foi muito importante, tão importante quanto o André. Num
belas mulheres lhes acompanhando e eu sempre sozinho, atrás. De repente, aparece
dos encontros, fomos jantar, eu, Sandra e Tunga, na casa de Cris e Zé Resende;
um espaço esquisito, improvisado, que você havia inventado para que se realizassem
foi ótimo. Aqui do Rio, falava pelo telefone, mas não bastava. Ainda na casa do
instalações. Era um espaço grande, mas mesquinho, burro, espremido, entre duas lojas
Charles fui encontra-lo outra vez. Havia uma grande amiga do Tunga que se des-
de rua. Ali haviam uma instalação idiota de tubos hidráulicos plásticos que formavam
locou para apoiá-lo e conseguiu um apartamento no mesmo edifício do Charles.
uma enorme arquitetura dessas coisas entrelaçadas por meio de diversas conexões
Essa pessoa transpirava toda a amizade que tinha pelo Tunga. Lembro-me sempre
e uma réplica, em tamanho real, de um Rolls-Royce Phantom em cerâmica, em barro
da eterna presença da Lilian e do Antonio, esses dois para mim, são muito especiais.
vermelho, que funcionava. Você teimava em me mostrar que aquela coisa funcionava.
Eu vi nascer a relação do Tunga com a Lilian, vi nascer o Antonio. Isto aconteceu
Tunga estava sempre acompanhado de um anão – com o qual fazia performances –
logo depois de sua relação com Cristina Ohana. Chega de memórias, vamos ao
e se divertia em ver minha decepção diante do que eu assistia. Fui dormir, me perdi
que você falou do que eu escrevi.
de vocês. No dia seguinte volto ao mesmo lugar. Estava tudo destruído: não havia
Acho que fui um pouco mais longe que isso nesse texto. A primeira parte,
nada, nem instalação de tubos, nem réplica de Rolls-Royce em barro. Não consigo
Tunga, aliás, a aproveitou numa performance, em vídeo. Fiquei muito contente
lhe encontrar, mas entro em contato com jovens artistas lindas que vocês me haviam
ao ver o vídeo. Na época, Tunga tinha pedido para publicá-lo no seu site. Pedi que
apresentado, durante dias ninguém me fala do destino de vocês. Algum tempo depois,
não publicasse, porque como sempre, pensava em continuar o que já estava pronto.
uma dessas artistas, loura, muito bonita, me diz: “Tunga foi assassinado por uma
Mas você tem, em parte, razão. Nunca tratei diretamente da dimensão erótica da
gangue”. Você simplesmente havia desaparecido e Tunga havia sido assassinado.
obra de Tunga em toda sua contundência, como naquele vídeo que, de fato, foi ele
Estou lhe escrevendo isso, porque, daqui, tudo se torna mais insuportável.
que dirigiu. Aquele dos cristais e da coprofilia. A obra do Tunga é, do início ao fim, na sua maior parte, erótica. Bataille já
Desculpe-me, forte abraço,
estava lá dentro desde o início, o erotismo, primeiro por Freud e logo Bataille.
Carlos
Tunga sabia tudo desde cedo. No nosso primeiro encontro, em Paris, em 1976 (ou 1975?), tinha um absoluto controle da materialização de seu trabalho. Ele me ***
deu de presente aquela caixinha de papelão onde havia os desdobramentos fotográficos daquelas peças eróticas acompanhadas de um pequeno texto impecável
Rio de Janeiro, 9 de junho de 2016.
de Ronaldo Brito. Nessa época João Moura estava muito presente, com sua poesia e sua discrição.
Não vou trocar mensagens com o João agora, no luto, porque não adianta nada.
Meu caríssimo Carlos,
Voltando à questão erótica. O que não é erótico no Tunga? Você está em Ruanda? Que bom. Você sabia que a 27ª Assembleia Geral da Academia
Toda sua obra é atravessada pelo erotismo, do início ao fim. Talvez, em
Mundial de Ciências para o Avanço da Ciência nos países em desenvolvimento
À la lumière des deux mondes tenha predominado a política. Mas, uma vez, na
acontecerá aí. E você sabe por quê? Porque Ruanda está muito à frente do Brasil
Bahia, eu ouvi ele falar sobre esse trabalho sem tocar em política. Era extraordi-
em investimentos na educação, ciência e tecnologia. E é um dos menores países
nário como trançava as ideias e escapava das leituras mais evidentes. É impossível
da África. É claro que você sabe, e só está aí porque está envolvido nessa estória.
reproduzir o discurso do Tunga a respeito do seu trabalho. Era mais rico do que
Voltemos ao Tunga. Esqueça, pelo momento, sua economia para a educação.
qualquer crítica.
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Para mim, À la lumière des deux mondes continua sendo a obra mais política
farinha e extração do caldo tucupi, inicialmente venenoso. O que me interessa é a
(e talvez a única stricto sensu) de Tunga. E apresentada pela primeira vez, em
expansão da trança para o tipiti. A trança é justa, apertada, se expande enquanto
2005, sob a pirâmide do Louvre. Ocorre uma bobagem na crítica brasileira. Dizer
os cabelos crescerem. O tipiti é uma trança oca: vazia por dentro, é ali que vão
que o Tunga foi o primeiro artista contemporâneo a expor no Louvre, não é verdade.
entrar as coisas. Cabeças, falus, genitálias de todo tipo, e em diversos tamanhos.
O Louvre mantinha um programa de exposições de artistas contemporâneos há
E serem espremidas, sobretudo cérebros de antigas civilizações.
alguns anos antes da exposição do Tunga. Tunga foi escolhido muito antes do Brasil
Desculpe-me por escrever tanto.
ser o país do ano na França, em 2005. O Ministério da Cultura do Brasil, aproveitou e inseriu a exposição do Tunga na programação que já estava programada
Grande e forte abraço,
há muito tempo. Ele foi o primeiro a reivindicar o mall sob a pirâmide para exibir
Paulo Sergio
seu trabalho. E isso foi contundente. Quase ninguém que entra no Louvre deixa de passar pelo átrio da pirâmide. Eu e Sandra estivemos lá, era impressionante o
***
assédio de pessoas à obra. Nessa obra, meu caro Carlos, há uma questão evidentemente política, a
Kigali, 15 de junho de 2016
começar pelo título. Um esqueleto gigante decapitado jaz sobre uma rede dormir imensa. Rede
Querido Paulo Sergio,
de dormir que, diga-se de passagem, Câmara Cascudo nos lembra que é hamaka em tupi-guarani, hamac em francês, hamaca em espanhol, hammock em inglês,
Ainda bem que você me responde. Você é um dos poucos que responde às minhas
mas em português é rede de dormir. A rede de dormir é uma invenção dos índios
mensagens. Aqui sozinho é uma merda só. Tenho muitos amigos, mas eles não sa-
sul-americanos, também. De um lado estão cabeças degoladas penduradas em redes.
bem nada de arte nem do Brasil. Como você disse, estou aqui somente para cola-
De outro, um grande tipiti espreme cabeças de antigas civilizações. São réplicas
borar com política de educação. Estou a par da Conferência e você só sabe dis-
de cabeças do acervo do Louvre. A chave do Tunga vai além da antropofagia, é
so por causa do nosso Luiz Davidovich, atualmente na presidência da Academia
preciso espremer os cérebros e não devorar os corpos. Esta é a nossa vingança.
Brasileira de Ciências. Pensa que não conheço suas “fontes”? Desculpe-me levar
É ou não é um grande lance político. Tunga dissertaria horas sobre o trabalho sem
tanto tempo a lhe responder. Quando soube da morte do Tunga fiquei perdido mesmo.
tocar um momento em nada político como quando jantamos em Salvador.
Depois de ler com paciência tudo que você me escreveu, vejo que você não
Queria lhe falar, ainda, sobre o desenvolvimento das tranças ao tipiti. Você,
consegue falar sobre o erótico em Tunga. Mas escreveu muito bem sobre o aspecto
sempre longe, só vê isso quando já está pronto. No site, em poucas exposições.
político de À la lumière des deux mondes. Gostei muito dessa história da expan-
Mas eu estive o tempo todo junto de Tunga, até o final, no hospital em São Paulo,
são da trança para o tipiti. É uma bela sacada: a trança que expande para o vazio.
quando eu ainda lhe fazia rir das minhas besteiras, e aqui no Rio, para onde veio
O tipiti é mesmo uma trança expandida, você tem razão.
para morrer. Foi terrível, um horror, como você disse na sua carta.
Veja bem o que você mesmo enviou no texto:
Mas a passagem da trança ao tipiti vale a pena pensar. A trança foi pensada
“Uma linha, por exemplo, aquela da teoria do sujeito, a ilusão que somos
como entrelaçamento do contínuo, usando a metáfora do cabelo humano. Algo
inteiros, que nos separamos de nosso corpo frágil e feito aos pedaços, que enche
que não tem fim, desde que se continue para sempre a entrelaçar e, até mesmo
de júbilo e vai habitar nosso imaginário, quando, com alguns meses de idade, so-
jogar pela janela para se salvar. A trança, além de seus elementos filosóficos do
mos colocados diante de um espelho, é desmantelada nesse tapete de verdades ar-
contínuo, acompanha fábulas e é atribuído ao feminino. Tunga fez de tudo com
tísticas, e é costurada nos diversos fragmentos e segmentos de que somos feitos,
elas, basta observar suas obras. Mas o tipiti, usado por índios brasileiros, origi-
antes e depois da ilusão imaginária da unidade. Como esta linha vem sendo ex-
nalmente tem outra função: é usada para espremer mandioca para a produção da
plorada desde a década de 1970 por Tunga? Lembram-se de Vê-nus, 1976? Sobre
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uma superfície de borracha foi dada uma perversa dentada. Aquele que mordeu não tinha ou havia perdido todos os dentes da arcada superior; seus dentes arredondados da arcada inferior deixaram sua marca. A escultura não deixa restos como os mármores de Leonardo ou Michelangelo; os restos são partes da obra e, nesse sentido, tem muito mais da totalidade que as representações totalizadoras da figura humana. A coisa mordida é a escultura bem como o que restou da carne de borracha. O resto, não é o resto, é parte integrada pelas articulações de fios, grampos e pela luz incandescente que os unificam numa sombra. Está lá, na parede. O inteiro, a totalidade, a borracha presa e amarrada na parede às suas partes, e iluminada pelos fios que descem dela mesmo, suas luzes e – não esqueçamos – as sombras. É ou não é uma Vênus de nosso tempo? ” Beijo, Carlos
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OS PAPÉIS DE CARLOS MATTOS ALLEN Paulo Sergio Duarte
meus colegas de colégio, grandes gozadores da vida, bons vivants, acabam me dando muito mais trabalho que Tunga, mais moço, trabalhador e artista. Comigo, além do colégio, eles têm algo mais em comum: essa desgraça, o Fluminense. P.S. Todo mundo já notou: contrariando as instruções de redação do meu pai, adoro
o “que”. Ao que parece, Carlos e João também. Decidi publicar agora, na exposição de Tunga em Buenos Aires, os fragmentos de 1996 do texto de Carlos Mattos Allen e a correspondência de João, que dizem res-
UMA NOTA PRÉVIA
peito ao artista. Sei bem que esses pedaços de texto e carta podem, isolados, dar péssima impressão. Mas, na verdade, não encontro tempo para ordenar tudo que Carlos me deixou antes de largar a universidade no Rio e ir morar com a criadora
Há duas razões básicas para eu não ter apresentado este estudo sobre a obra de
de cavalos Andaluz no interior de São Paulo. Não espero poder desincumbir-me
Tunga com o mesmo feitio de outros que fixaram um estilo na crítica de arte no
desse trabalho como ele merece. Mas, aos poucos, vou ordenando esse monte de
Brasil. Em primeiro lugar, confesso que, depois de tantos anos, o exercício de
papel e alguns disquetes. Sobre Tunga há muito mais a ser publicado, sem falar
uma certa escrita me entedia e é cada vez mais compensado pelo tempo dedicado
na farta correspondência com João.
à leitura (junto com o tabaco, meu vício maior). Possuído particularmente pelo
Os fragmentos a seguir apresentam a forma que Carlos gostaria que tomas-
hábito de buscar na ataraxia que produz toda boa leitura, senão o prazer, pelo
se o estudo que estava fazendo sobre a obra de Tunga. Na época, imaginem, o
menos a suspensão temporária da longa espera pelo dia seguinte, descobri que
Fluminense tinha acabado de passar pela primeira vez para a segunda divisão;
se não incluísse os capítulos com as cartas de João nunca concluiria a tempo este
concebam quantos fatos estão defasados, agora que se convencionou que todos
estudo (minha mulher não precisa ter ciúmes, sempre esteve presente).
temos de aceitar que tudo anda mais rápido. Os textos não trazem nada de muito
Além disso, acredito que seu olhar atravessado, de um outsider do meio de
original, mas também nada de trivial, sobretudo se pensarmos no que temos de
arte, mas anormalmente informado para os de seu ofício e de nossa geração, sem-
digerir nos catálogos escritos por curadores et caterva. Sinceramente, acho que
pre me foi útil. O fato de ele ter se tornado um amigo de Tunga, mas, acima de
esse texto atravessado vale a leitura. João o autorizou a incorporar as cartas, e
tudo, ter compreendido à sua maneira o trabalho dele, me estimulou.
estou enviando os documentos legais aos responsáveis pela edição. Carlos me deixou uma procuração registrada em cartório na presença de testemunhas con-
Espero que o eventual leitor sofra o mínimo de tédio possível, o que já é uma grande esperança quando se trata de um texto sobre arte.
vidadas por ele para a ocasião – José Almino Alencar e Paulo Venancio Filho –, pela qual me garante completo poder de edição, inclusive de realizar cortes e alte-
Carlos Mattos Allen
rações nos textos. Conhecendo-o, e bem, pela abrangência da procuração imagino a importância que adquiriu a criação de cavalos. Desse jeito ele acaba no interior
UM
do Paraná. João me enviou uma simples declaração delegando-me poder para publicar as cartas a Carlos com os cortes que eu julgar procedentes. Os editores não precisam se preocupar com futuras pendengas jurídicas.
15 de outubro de 1996.
Fiz o que pude diante da urgência e pressões do prazo. Não aprendi, como os ricos, a viver sem pressa. Por isso, nem posso garantir que as próximas notas
Marlene, que vai sair de marquesa no desfile da escola de samba, me avisa que vai
e fragmentos estarão mais bem editados. Só sei que Carlos e João são muito mais
experimentar a fantasia e retorna às cinco horas, e ainda não terminou o trabalho.
interessantes que a maioria dos críticos de arte que anda por aí. No final, esses
Os torcedores do Flamengo enchem o saco por meu time ter passado para a segun-
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da divisão. Apesar de tudo isso que atravessa meu dia, a carta de João salvou esta
nha altura. Esguia. Felizmente eu tinha isqueiro. Ela queria mesmo acender o ci-
manhã passada na tentativa de usar o telefone no Rio de Janeiro. João me escreve
garro e foi embora. (...) Mas esses caras são suspeitos. Todos esses caras com va-
sobre suas andanças pela Itália e Alemanha, depois de participar de um congres-
lises, pastas e outras coisas que carregam são suspeitos. Eu sei. Parecem ricos,
so de ginecologia na Suíça. O que um economista estava fazendo num congresso de
mas não são, muito menos executivos. Ricos não carregam nada e nunca estão
ginecologia? Seu gosto pela genitália feminina o levou a tanto? Com toda certeza
com pressa. Pressa e bagagem são coisas de pobre. Mas esses caras, bem vestidos
anda atrás de alguma médica. Mas precisava ir à Suíça? Conta, também, que acabou
e displicentes, carregam grandes valises e aqui não há gare, nem aeroporto. Poderia
conhecendo um amigo meu, Tunga. E esta é a razão de abrir o que deveria ser um en-
ser uma filmagem, mas não vejo a equipe. Esquisito, o crioulo amigo me chama
saio com esta página. Junto à carta, em papel timbrado de um hotel de Veneza, muito
pro canto e avisa logo que hoje não dá. Ele também acha estranho. E mesmo sem
bem impressa a jato de tinta, vem um texto manuscrito em várias folhas pautadas de
ver polícia sente um clima no ar. Está frio e vou andando. (...) Ilka aparece, quinze
um tipo que há muito tempo eu não via. Na verdade, é uma espécie de continuação
anos depois, é bom. Suas coxas largas (Ilka é sensual e delicada, mas se apaixona).
da carta, que no seu curso é retomada. Aqui transcrevo o que foi possível entender
Não há tempo para Ilka, com ela fico uma semana, tenho que terminar o trabalho.
porque sua caligrafia miúda, já difícil para meus óculos atuais, estava péssima, dando
(...) Eu sabia. O cara deixou a valise cair e, aberta, vi o esquartejado, cabeça, e
sinal de seu estado etílico (o papel tinha um leve perfume de gim e outro indício era
membros, sem tronco. Que desajeitado. Todos eles mostram suas valises abertas
o uso de caneta esferográfica, que ele sempre odiou desde os tempos de colégio).
fingindo que foi um acidente. Um desastre; ali está um mundo: terra e geleia.
O estilo não tem a economia elegante e desapareceram os lampejos meticulosamente
Grãos e massa. Contínuo e descontínuo. Lembra-se da areia e Wittgenstein? E eu
calculados que o pontuam. Mas guarda a agilidade mental que nos falta quando que-
aqui, no frio. O cadáver é uma escultura, esquartejada. Vejo ao longe, com ar di-
remos narrar um simples evento. Além disso, apesar de seu caráter um tanto ou quanto
vertido e um pouco cínico, um sósia do cadáver. Será que essa viagem está me fa-
verborrágico, traz comentários que julgo interessantes sobre arte. É claro, uma série
zendo mal? Não pode ser, a única cidade onde me sinto mal quando estou só é
de referências – muitas de caráter pessoal – podem não interessar ao leitor. Outras tal-
Londres. Por causa do banco já estive sozinho no norte da Tailândia, em Chiang
vez precisem de notas explicativas. Nestas, vou procurar ser o mais conciso possível.
Mai, e no extremo sul, em Hay Yai. Até no Djibouti, onde dormi no camarote do cargueiro, antes de pegar o trem para Adis Abeba. Também não gostava de Moscou por causa da máfia da prostituição, o assédio excessivo, maior que em Brasília,
***
me incomodava. Imagino como deve estar hoje, a velha Rússia. Esse mal-estar, Carlos, não pode ser a viagem porque gosto de viajar só. O sujeito que era a cara do esquartejado desapareceu. É o autorretrato possível, pintura que não cabe
Chicago, 8 de outubro de 1996.
mais na superfície da tela. Será que não é mais possível pintar? Retornamos a esse estágio pré-clássico? Os rapazes se sentam nas calçadas ao lado das valises
Meu querido amigo,
não se incomodando em sujar os ternos muito elegantes. Lá do outro lado vejo um grande chapéu se movimentando pela rua. É como um disco topológico de cor
(...) Só tenho uma coisa a lhe dizer: há um indivíduo e uma valise. Aliás, são vários
clara perambulando pela rua. Enorme, deve ter mais de três metros, parte de uma
indivíduos e valises. Não gosto da indiferença desses elementos suspeitos. Eles se
seção planar até o centro não-planar. Essas coisas que vocês, críticos, me ensinaram.
parecem, mas não são iguais, diria que são gêmeos quíntuplos, ou mais. Nas ruas
Já encontrei acidentalmente a mesma imagem para representar a distribuição es-
das cidades não há mais personagens. Todos se parecem, pobres, ricos, salvo os
pacial da renda econômica de Milão nas décadas de 50-60, um dos gráficos que
miseráveis e milionários cada vez mais escondidos. Afinal, tudo agora é um seria-
ilustraram minha tese de doutorado – um estudo comparado sobre a distribuição
do. Bons tempos em que as séries eram numéricas. (...) Outro dia esbarrei com
de renda e formação do mercado na Itália e no Brasil, defendida em Chicago,
uma moça, bonita, ela queria acender o cigarro. Muito alta, praticamente da mi-
no longínquo ano de 1971. Não posso mais ser chamado de ‘jovem economista’.
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E quem, hoje, está lá interessado em distribuição de renda? E as pernas das me-
sobre arte brasileira até hoje, volto a lhe escrever sobre o assunto. Mas gostei
ninas me fazem lembrar do Cristo do Mantegna na Brera, das lágrimas de Maria,
também porque o livro junto com a performance da escultura ambulante com nin-
de um primitivo no Museu de Verona que pintou a Virgem com um dos seios no
fetas, trouxe lembranças. Quem, hoje, ousa falar de lembranças? Seu amigo
ombro e de Tomé tocando a chaga de Cristo como se enfiasse o dedo em uma vagi-
Rodrigo Naves trouxe no livro inteiro a lembrança das ideias que minha mãe tinha
na. E dos dias que passei na casa de Antonio em Milão, afinal, nosso único amigo
de arte. Vejo os profetas e seus recortes góticos sob o sol ameno de uma tarde em
comum naquela época. Que viagem até os Apóstolos de Dürer, os monstros de
Congonhas. E me lembro de minha mãe me explicando a diferença entre Guignard
Grünewald, a sábia confusão de Cranach e o equilíbrio de Riemenschneider, anos
e Aleijadinho. Um tinha feito a cidade para os portugueses. Pensado suas partes
mais tarde, na companhia de outro grande amigo que você me apresentou. Tudo
essenciais, seus órgãos, o São Francisco, em matéria maleável, saudável para as
isso naqueles anos tão bons para tantos, inclusive para mim (ao menos do ponto
curvas, a pedra-sabão, a escala, as dimensões mentais de um crioulo magistral
de vista material – afinal, graças a eles até hoje posso fazer coisas que você nunca
que sabia importar a forma através de uma alfândega de ideias onde misticismo
poderá com essa sua profissão de professor), péssimos para poucos, como para
católico, arrivismo mulato e gênio leibniziano conseguiam, pagando a mínima alí-
você e seus amigos, e os mesmos de sempre para a maioria. O tal disco topológico
quota, traduzir lições jesuítas de Praga e Lisboa, no alvoroço dos garimpos das
é um imenso chapéu ambulante e, me parece, no mais puro Panamá (O João bêbado
montanhas mineiras. Para Alda, a moeda de Aleijadinho, que pagava as importações,
confunde tudo, onde já se viu, Panamá!!!). Seria um De Chirico contemporâneo.
era a fé que havia se materializado como nunca no barroco. Uma fé católica e por
Não é apenas o inusitado da cena que me atrai. Afinal já estamos acostumados
isso mesmo concreta e histórica, uma fé que se configurava. Não a fé abstrata,
com isso. Sua passagem esvazia praças e ruas e transforma todos que estão próxi-
sem imagens, capaz de se tornar moeda no escambio religioso do mundo do mer-
mos em personagens passivos da cena. Aquela passividade absoluta à qual só po-
cado. Guignard era o gênio posterior. Como toda boa reacionária verdadeira, des-
demos associar a morte. Aqueles ridículos zumbis mal pintados de De Chirico.
cendente de latifundiários nordestinos, instruída pela decadência para aceitar o
Até um vento contrário ele consegue. Explico-me, e é óbvio: (...) há caveiras sobre
trabalho livre e remunerado como universal, a começar o do próprio pai, não ti-
o chapéu e lindos pares de pernas jovens que o animam. Não é uma anamorfose
nha simpatias por ditadores de espécie alguma. E interpretava Guignard à luz do
como a do Holbein, é uma anamorfose de ideias. É preciso olhar do ponto certo
Estado Novo. Minha mãe iria até entender ditadores, menos aqueles que suas em-
para perceber que o espaço concebido topologicamente e reduzido ao que pensa-
pregadas gostassem. Isso tudo, você bem sabe, para contrariar meu pai que havia
mos como um plano suporta a presença dos extremos, a vida da juventude feminina,
colaborado (que termo, hem?, colaborar, aplicado ao Estado Novo) com a ditadura
fértil, e o ícone da morte, sobre o acessório de indumentária que caiu em desuso.
de Vargas. Guignard havia conseguido entender tudo: o Brasil não tinha chão e
É um cinema moderno, também, um longo traveling, por essa cidade onde, no
uma Ouro Preto platônica tinha que ser recriada nas nuvens. A origem do nativismo
Ocidente, ainda é possível ouvir os passos das pessoas, tendo ao fundo, nos dias
do Brasil tinha que flutuar e ser suscetível, agora, da maleabilidade maior da atmos-
de neblina, os apitos dos “vaporetti”. Recuso-me à metafísica, nem tanto por temor
fera, muito maior que aquela da solidez colonial – já muito flexível – da pedra-
de pensar a transcendência – afinal, sou cristão –, antes pela minha notória falta
-sabão. A neblina sobre a qual repousa a Ouro Preto de Guignard era o modo de
de vocação especulativa. Medo, confesso, como um amigo que foi para o México e
responder ao que ela considerava “besteiras modernistas” de Tarsila e Portinari.
nunca mais voltou, tenho apenas da imanência xintoísta. (...) Prefiro Veneza no
Alda, você se lembra, só perdoava Ismael Nery e um crítico, um tal de Navarra,
inverno. Do Carpaccio e das pobres vítimas do dragão, como bonecos despedaçados,
porque era amigo de Murilo Mendes. Nosso Mário Pedrosa, de quem ela era amiga
povoando o cenário do São Jorge triunfante. Eventualmente, a praça inundada.
de infância, ela só considerava politicamente, para discordar, e seu outro amigo
Sei que se trata de uma performance, esse gênero que invadiu a arte neste século
moderno, Santa Rosa, ela achava que bebia demais, o que prejudicava sua arte.
e que eu detesto tanto quanto as chamadas instalações. Mas esta me agrada, es-
Como se Guignard fosse sóbrio. O que lhe interessava era o inefável em que Guignard
pectadores passivos aplaudem quando ela passa, Veneza festeja. (...) Recebi o
fazia flutuar o mito do Brasil e da Inconfidência, a alegria das festas tristes, os
livro do Rodrigo Naves que você me enviou. Foi uma das melhores coisas que li
balões, as igrejas, tudo turvo porque a nitidez não era própria ao pensamento da
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terra. Tudo adquiria o mesmo estatuto da nossa arte, tentar pintar um país sem
do Breton, colaborou para o Minotaure, mas até o estádio do espelho sua psicaná-
chão: entre o cenário natural e as coisas humanas, a névoa. Essa era a grande in-
lise não fica nada a dever a de Karen Horney. Se não tivesse conhecido e incorpo-
venção de Guignard: uma pintura que partia do nada, do ar, e assim era o Brasil
rado Kojève (Hegel) e Lévi-Strauss (de Saussure) teria sido menos importante que
que tinha de fingir que não tinha passado para não olhar o resultado de trezentos
Erich Fromm. Que destino o daquela turma que acreditou no desaparecimento
anos de escravidão. Sempre e sobretudo naquele agora. Para ela, um país que
do sujeito. O primeiro genro de seu psicanalista preferido se defenestrou, havia
aplaudia um ditador só podia ter um grande pintor que fizesse da origem barroca
escrito um livro: Marxismo e Estruturalismo. Poulantzas, que adorava paque-
e mítica do país o ar, porque aquele chão não merecia que um artista repousasse
rar as menininhas nas festas, também se matou. Althusser estrangulou a mulher,
suas imagens. Imagens, essa era a palavra-chave para ela compreender a forma.
confessou que nunca tinha lido O Capital, e morreu como inválido mental para
Mas, para ela, Guignard conseguia manter a dignidade do barroco, era o barroco
a justiça francesa. O último foi Deleuze. Por essas e outras prefiro Chicago,
possível que para sobreviver precisava ser elevado e suspenso delicadamente em
Pascal e a teoria da probabilidade. (...) Tem uns gringos, metidos na crítica de arte
imagens miniaturizadas. Só reduzidos, pequenos, os monumentos fariam sentido
e da cultura, ávidos de França: descobriram Tel Quel na era Reagan. É melan
para se opor ao elogio do gigante; só as curvas das nuvens, que se transferiam
cólico jogar fora anos da sabedoria de um Schapiro, de um Rosenberg, de um
delicadamente para as igrejas, para o casario, podiam sustentar o mundo. Um dia,
Greenberg, ou de um Steinberg, judeus geniais que fizeram a arte americana in-
escutava um lieder de Wolf, me chamou e me mostrou o contrário de tudo que me
teligível, por aquele palavrório de sintaxe pedante e semântica vazia. A conversa
havia dito antes: como o pincel de Guignard não vacila, é justo, quase duro, só
com Tunga foi ótima, entre uma taça de champanhe e outra, rimos muito de você,
vacila quando ele quer. Era um retrato. “Un peintre génial d’un pinceau trébu-
do seu francesismo, e de como você desperdiça seu tempo. Falamos ainda do
chant, quand il veut.” E ao me mostrar um outro Guignard, que não temia os ele-
retrato do bobo Calabazas de Velásquez que se encontra no Museu de Cleveland
mentos decorativos e os traços claros e nítidos, longe da cidade que se esvanece
que você também não conhece.
no ar, me disse que assim seria a boa arte neste país, enquanto não se reconciliasse com sua tradição barroca, dividida entre dois caminhos, dois artistas, dois olhares num só, um que se lembra, outro se esquece. (...) Vou visitar, lá em João Pessoa,
DOIS
o Hotel Globo restaurado, onde tomamos cerveja no entardecer olhando uma paisagem dos tempos de Franz Post no encontro das águas do Sanhauá com o Parahyba
Esse estudo trata do poder da obra de arte, de sua potência, através das esculturas,
(será correta essa minha memória geográfica?) junto à planície verde. Vou à Igreja
instalações e desenhos de Tunga, em condições históricas adversas à manifesta-
de São Bento e ao convento de Santo Antônio, o seminário em que meu pai estudou
ção dessa força. Investiga um movimento afirmativo: aquele que se realiza através
(junto com o seu) com sua magnífica capela, e vou visitar a Ajuda. Dizem que Santo
da evidência plástica num diálogo, vertentes da tradição, trazendo, com vigor, a
Antônio agora exibe uma coleção de arte popular, mas muito inferior à do Jacques
presença desses valores na forma complexa que mistura ideias sequestradas da
Van de Beuque. Vou aprender coisas com Iracema e Iveraldo Lucena, os únicos
ciência com ficção literária, psicanálise com história, racionalismo construtivista
professores que ainda ensinam pelo exemplo de suas vidas e ficam escondidos na
com exuberância expressiva. Uma arte que encontra sua poética individual nos
Paraíba. Desculpe, meu caro, mas ‘o espírito que anda’ não é um personagem da
jogos entre espaço e corpo, tempo e matéria, entre tantos outros que ela torna
história em quadrinhos, ele vem de Roma e passou pelo Nordeste, por Ouro Preto,
disponível. Enfim, estaríamos no cerne do que se convencionou chamar de cultura
por Congonhas, pelo Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro, foi à Áustria e
“pós-moderna”, não fosse o investimento na forma que preserva postulados que
Portugal, chegou a Praga e há quem o tenha visto em Macau. Frequentou os filmes
demonstram a permanência de valores inaugurados por Cézanne e o cubismo.
de Glauber e a poesia de Gregório de Matos, encarnou em pretos e brancos, índios
Interrogar as diversas camadas que constituem a forma no trabalho de Tunga
e mulatos. Depois disso, (aqui há um longo trecho ilegível) (…) Jacques Lacan, que
pode ser buscar na imagem geológica o que sustenta a superfície da aparência.
você sempre respeitou demais, não adianta dizer que não, foi surrealista, moleque
Lembrando, de início, que desde o magma constituído pela vontade de arte, até
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as camadas que esfriamentos sucessivos ocasionados pela ordenação de concei-
O mundo se movimenta na obra através de ideias, umas representativas de
to e invenção vão superpondo e que correspondem a diferentes formas do saber,
épocas, aquelas datadas, outra presente em todo o curso civilizatório. E é assim
encontra-se – em cada um desses estados – uma reserva de potência cognitiva com
que o mundo se torna visível, sem nenhum apelo prosaico ou utilização de clichês
seu próprio tempo e, portanto, com sua própria história.
contaminados seja pela vida cotidiana, seja pela própria história da arte como
Mas a obra desmente logo essa metáfora estrutural que pelo seu próprio
instituição. Esse é seu processo íntimo de existência, que lhe permite escapar das
movimento implica estabilidade e acomodação e aponta o caráter provisório do
malhas de uma positividade ingênua. Pode-se dizer que a dialética entre a forma
modelo. Esse movimento é o de um ser em permanente formação e agencia todas
e a história na poética de Tunga se dá, essencialmente, incorporando a história
as instâncias para trazê-las à superfície e torná-las visíveis, porque este é o seu
como mundo de ideias em movimento, elemento que não se fixa estático como
poder: dar visibilidade ao que está presente.
temporalidade acumulada – depósito de referências –, nem como uma espécie de
Quem está presente? Antes de tudo a complexa interação entre forma e história.
interlocutor da forma, semelhante a ecos da natureza e da vida social. São confi-
Ponto crucial na arte de Tunga é a dialética entre a configuração da obra e o mundo
gurações de momentos preciosos que o artista escolhe na história do pensamento
como história atual e presente. O mundo, aqui, não é o exterior do sujeito, a “realidade
e do conhecimento que vão ser entranhados na forma. Nessa construção estão
objetiva”; tampouco é a totalidade onde o sujeito se insere como uma de suas partes.
presentes, também, operações que indicam como a forma irá adicionar outros
Menos ainda a idealização dos conteúdos do sujeito como pensamento. Já foi indi-
elementos, entre eles conectivos de ideias que assumem imagens figuradas com
cado que sua presença não poderá ser reconstituída por uma genealogia ou estudo
elevado poder na instauração da presença do movimento do mundo: cabeleiras,
das camadas constitutivas da obra. Esses “mundos”, que participam da obra, são
tranças, dentes, toros, cálices, sinos, todo um bestiário – gêmeas xifópagas pelos
microcosmos que se articulam segundo as necessidades de uma poética que orienta
cabelos, lagartixas de duas cabeças opostas, lagartixas sem cabeças de duas cau-
o conjunto. O mundo não será detectado pela reconstrução de uma gênese que
das opostas, insetos e por aí vai. Podemos chamá-los de “figuras da representação
supõe a eleição de momentos decisivos de determinação da obra. O mundo não é
conceitual”, com a ironia e o humor que eles mesmos possuem. Estranhos e fami-
palco, não é cenário, nem pano de fundo. O mundo como história atual está presente
liares ao mesmo tempo, são testemunhos da mutilação do sujeito moderno, cuja
na obra de Tunga na própria força que impulsiona o tecido poético.
integridade só pode sobreviver como mito que alimenta normas éticas e morais.
Através de todo o percurso da obra podemos assistir à articulação desses
Esta presença do mundo, impulso da forma e de seu movimento, é também a
microcosmos que compõem o quadro do mundo em torno de temas da filosofia e
exigência reflexiva, sempre presente na obra de Tunga, e seu caráter experimental
da ciência que se revezam sempre recobertos por uma construção imaginária em
que podemos observar desde as arriscadas articulações físicas, onde assumem o
que a invenção inibe o caráter esquemático que poderia ocorrer na presença des-
risco de manterem o equilíbrio da construção no limite, até as audaciosas asso-
ses elementos simbólicos da tradição ocidental. A história se manifesta através
ciações de ideias.
de estórias em que filosofia e ciência se tornam personagens da ficção embutida na obra. A vitalidade desta presença é garantida também por outro aspecto: os elementos datados, como psicanálise ou topologia, por exemplo, são atravessa-
TRÊS
dos por um tema que poderíamos chamar de atemporal na medida que atravessa todo o pensamento ocidental da Grécia até o mundo contemporâneo: a questão do
Do exercício permanente do desenho, de sua acumulação, acompanhado de uma
contínuo. O bem-sucedido deslocamento dos campos filosófico e científico para
leitura crítica de grandes temas da cultura contemporânea, surgem os primeiros
uma ordem poética individualizada do tema do contínuo é, ainda, responsável por
núcleos escultóricos, objetos em que se organizam matéria e forma para a rea-
outra presença: a integridade orgânica da obra de Tunga que observamos mes-
lização da obra marcada pelos problemas fundadores da psicanálise: recalque e
mo quando enfrenta o desafio de trabalhar desde materiais diferentes em formas
circulação da energia libidinal. Já estamos no interior de uma operação poética
complexas até os desenhos.
complexa. Trata-se, desde o início, de deslocar a representação de processos
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miméticos para procedimentos evocativos de construções teóricas, mas que,
Seria o contrário de todos os procedimentos embutidos na obra que me provoca. 4
simultaneamente, sugerem metáforas de um corpo estranho e fragmentado.
Na morada da obra de Tunga – sua linguagem – vão habitar diversas empatias
Conjunção e disjunção, operações lógicas, transformam-se em manobras sutis
construtivas, além do gosto pela razão. A distância do imediato é uma crítica do
para potencializar a matéria tratada como substâncias condutoras de sentido.
gratuito e do instintivo, a pulsão não se transmite sem ordem exigente, portan-
É preciso lembrar que estamos no início dos anos 70 e que esta equação será dis-
to, o elemento expressivo do gesto é precário. A possibilidade da permanência
seminada em toda uma produção posterior de arte no Brasil.
do afeto como elemento condutor de significados deve ser submetida ao filtro do
Cada objeto é uma proposição poética cujo potencial cognitivo não reside mais – como no surrealismo – no ideal da ilustração libertária do inconsciente,
conceito. Além disso, Tunga conhece, mas não deve nada ao construtivismo brasileiro, se é que aprendeu com eles essas lições que já estavam lá.
mas em criar possibilidades de configurações que possam encontrar paralelo em
O deslocamento de materiais do trabalho de Tunga, nessa primeira metade
evocações das teses freudianas sobre o mecanismo psíquico. Trata-se de dar uma
dos anos 70, adquire ainda maior importância porque já aponta para elementos
conotação íntima à estranheza. Os encontros não são aqueles dos objetos inusi-
de compreensão de sua obra que continuam presentes até hoje. Um constructo
tados da fórmula de Lautréamont, mas dos próprios materiais e seus atributos
mitológico se liga à obra, mas como um discurso latente, embutido na evidência
como os da madeira, dos metais, do feltro, da cera, do mel. O que está se encon-
plástica, episodicamente explicitado. Dois caminhos são desenvolvidos, com um
trando são pontos diferentes de combustão, condutores e isolantes – térmicos e
humor que efetua um permanente distanciamento. Estamos longe de qualquer
elétricos –, reservas físicas e biológicas de energia, trabalho como vontade e ação.
encurtamento da distância entre sujeito e objeto, tão comum à poética lírica.
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Há um proposital deslocamento dos materiais com os quais Beuys trabalhava.
Essa espécie de fala do trabalho é extraída, de um lado, da mitologia dominante
Ao manipular materiais como o feltro, a cera e a madeira sob tensão física vin-
de nosso tempo – o discurso científico –, de outro, uma trilha é inventada através de
culando-os a ideias extraídas do universo psicossomático, Tunga transfere es-
narrativas fantásticas, às vezes assumindo uma espécie de experiência autobio-
ses materiais de uma mitologia fundada na dupla articulação de biografia/etnia
gráfica absurda, em que o narrador evoca a história invisível da obra que temos
germânica para outro campo poético: corpo/mente. Calor, fonte de energia, na-
diante de nossos olhos. Vemos logo que são outras as consequências: o sujeito-
tureza, com ironia, podem estar associados a construções poéticas universais e
-artista não é subsumido por nenhuma estrutura determinante, o elemento român-
não a uma história particular do sujeito ou da etnia
tico é relativizado com ironia. Essa operação crítica desde os primeiros trabalhos
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Sabemos que estamos diante de uma obra que herda a inteligência cons-
tem consequências. Tunga se abastece de elementos que gozam de universalidade
trutiva da arte brasileira que lhe antecede, mas a apropriação deste patrimônio
diferente de uma tradição étnica ou local. A gravitação universal não é inglesa, a
não se realiza por qualquer contágio mimético ou reprodução literal de métodos.
topologia não é norte-americana, tampouco a psicanálise e a histeria são vienenses.
Seu ponto de partida é a aguda consciência do esgotamento dessa fonte a título de
O campo discursivo encontra-se polarizado entre ficção incrível em torno de ex-
arte que se realiza no projeto. É o próprio caráter virtual da obra construtivista,
periências absurdas e, no outro extremo, as referências ao universo da ciência
o espaço que não é espaço, é plano; a linha que não é linha, é superfície; seu cará-
contemporânea. Sabemos, como lembrava Venturi, que “Arte e natureza correm
ter programático, em todos os sentidos, e sua ilusão de impregnar esteticamente
como linhas paralelas e nunca podem se encontrar”. O jogo de Tunga se constitui
instâncias sociais que estão sendo produtivamente negadas. Tantos resquícios
em sugerir a possibilidade de contrariar essa metáfora do postulado euclidiano
formalistas não podem mais sobreviver quando a cera é cera, o feltro é feltro, e a
produzindo regiões de contato entre narrativa e construção artística na impos-
ideia que os fazem andar juntos está deslocada para uma riqueza semântica que
sibilidade do contato entre arte e natureza. Esses pontos tangenciais da palavra
foge a qualquer dado imediato e sugere uma conversa de outra inteligência.
com a obra de arte são nevrálgicos e ligam-se uns aos outros como excitações,
Mas resta esclarecer como essa incorporação se realiza, mesmo na nega-
como sinapses conduzindo energia num campo que circula em torno do trabalho.
ção, posto que não se trata de superar (existe, sempre, na obra de Tunga, uma
Mas retornemos aos passos iniciais dessa construção. Podemos ter mais clareza
preocupação com a diferença ontológica). Não estou reconstituindo uma gênese.
sobre sua natureza poética.
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No início, estamos possuídos, diante dos trabalhos de Tunga, não por ima-
Um desses trabalhos vai ser objeto de uma ação literal de desconstrução.
gens sequestradas do real, mas por um jogo fundado na materialidade do visível,
A obra é uma nova lição de anatomia. Ato desmistificador na exposição da sua com-
este sendo, por sua vez, condutor dos atributos das substâncias. Estaríamos diante
posição material e das regras físicas de construção. Dado esse substrato material,
de um dispositivo irônico que opera sobre a linguagem original de Freud. Para
a perspectiva se desequilibra, o fetiche do objeto acabado e capaz de circular como
a descrição de processos complexos do inconsciente, o fundador da psicanálise
mercadoria é destruído pelo desejo do artista de o deixar reduzido à documenta-
foi obrigado a recorrer à terminologia substancialista que tinha à mão, herdada
ção do processo inverso ao de sua realização, ou melhor, o processo só se realiza
de teorias organicistas do século XIX. Nas pequenas esculturas, encontramos
se não preservar a mitificação materialista da produção e sua apologia da obra de
materiais orgânicos, gestos que acompanham “deslocamentos” e “condensações”,
arte enquanto trabalho, que veio substituir a ideologia da criação. Integrada ao
presenças “latentes” e “manifestas”. Mas a essa dimensão ou camada presente
seu campo poético, a ação evoca o mecanismo do desrecalque, quando o elemento
vem se opor imediatamente outra: a justaposição metonímica de materiais e seus
interior desconhecido aflora ao consciente: a desconstrução é realização. Uma lição
atributos – chumbo e feltro, cera e mel, corda e madeira – que se apresentam
de anatomia moderna exigiria a incorporação do psiquismo aos elementos somá-
como deslocamentos de “significantes”, encontrando na sintaxe que constitui a
ticos para que o corpo se completasse. O inglês tem um termo feliz para definir
própria construção do objeto, nos seus encadeamentos internos, um equivalente
essa totalidade que corresponde à integração de corpo e mente: self. Evidência
que evoca a reflexão lacaniana sobre o inconsciente. Convivem dois momentos da
plástica e discursos latentes ou manifestos, nestes trabalhos, se encontram sob
doutrina do inconsciente.
a regência do mesmo tipo de relação que fundamenta a noção de self. A repre-
As pequenas totalidades resistem, pela sua própria forma, a qualquer re-
sentação é redimensionada de sua função convencional e estagnada, prisioneira
dução semiótica. Sua estrutura e dinâmica extravasam a ideia de signo, como se
da mimese, para retomar a dimensão cognitiva do mestre da Renascença – arte é
recusassem habitar a economia do conceito; na sua estranha presença plástica,
cosa mentale – dentro das exigências do novo quadro histórico.
evidenciam que este espírito complexo só pode viver naquele corpo. Estamos
A Vênus (1976) acrescenta à escultura de Tunga atributos sobre os quais temos
mais próximos da potência de Spinoza do que da razão de Descartes. Vemos que
que refletir porque serão responsáveis por desdobramentos posteriores. É claro
os encontros e associações se multiplicaram para se constituírem em diferentes
que a escultura não poderia ser mais matéria sublimada numa imagem, nem mesmo
estágios de um mesmo edifício. Os objetos escultóricos, estranhos e, ao mesmo
a reinvenção do espaço por ela mesma. Espaço engendrado através dos jogos de
tempo, íntimos e portáteis pela sua escala, adquirem uma dimensão monumental.
planos, como havia sido nas melhores experiências construtivistas no Brasil. Foi
São monumentos impregnados das ideias que os articulam. O movimento
esse plano que, trabalhado pelo neoconcretismo, havia rendido a possibilidade
é inverso ao do construtivismo. Não se pretendem modelos estéticos ou formas
de uma reflexão autóctone da periferia sobre uma corrente importada do centro
artísticas que devem contaminar o mundo social e seus objetos, nem mesmo
europeu, que será metamorfoseado numa feição nova.
questionar esses limites. São, antes, dispositivos que capturaram traços caracte-
O plano é rebaixado à superfície empírica sobre a qual vão ocorrer as operações
rísticos da cultura moderna, neste caso, a descoberta do inconsciente e seu fun-
do artista. O material básico é o lençol de borracha negra, pele monumental de um
cionamento pelo mecanismo do recalque, e na incorporação da teoria pela arte,
corpo mutilado por uma espécie de dentada que o divide em duas partes. O material
consegue metamorfoseá-la num corpo poético. Sua estratégia – se é que podemos
flexível se distancia ainda mais da idealidade do plano. A escultura se dilata, se expan-
chamá-la assim – quer agir sem abrir mão da integridade plástica.
de e se divide: uma parte é presa à parede por ventosas; a outra, espécie de “sobra”,
Desde o início, já estamos além do que se convencionou chamar de arte con-
no chão, mantém a possibilidade de reconstituirmos uma suposta integridade
ceitual. Os pequenos objetos escultóricos incorporavam e desdobravam questões
original. O corpo dividido, em material isolante, tem suas partes conectadas por
dispersas no vasto e diversificado território da arte contemporânea pós-construtiva
correntes metálicas, material condutor elétrico e térmico. No título e no léxico dos
e que se desenvolvera em paralelo ao fenômeno da minimal e da pop-art.
materiais em jogo estamos próximos das evocações da sexualidade e do caminho
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atribulado da libido nos atalhos das perversões, mas a forma se impõe e uma nova
Quanto à saúde não se preocupe, curei-me da pancreatite ainda no Egito.
escala física é introduzida na Vênus negra de Tunga. É a escala humana do corpo,
Custou-me. Reduzi, na medida do possível, o álcool e só bebo destilados even-
ainda que através da metáfora, que está introduzida como unidade padrão, um novo
tualmente (aquele dia da carta foi uma exceção). E ainda tenho uma certeza: não
metro nas esculturas de Tunga, a partir do qual as futuras instalações vão se medir.
morrerei de câncer no pulmão como você.
Um corpo inteiro e ao mesmo tempo dividido ou mutilado, cujas partes complementares precisam de materiais opostos para se conectarem: isolantes e condutores.
Sobre o que você chama de evolução do “pensamento econômico nos últimos trinta anos”, acho que você está brincando. Que existe um pensamento – não no
Essa impressão se deve, de imediato, à escala, mas, mesmo aqui, devemos
sentido que nós entendíamos a palavra – sobre dinheiro, eu não tenho dúvidas.
nos deter para compreendermos como esse elemento poderoso das suas escul-
Mas “pensamento econômico” é de dar risadas. Vou, depois, se possível, pessoal-
turas é elaborado. Sabe-se que, na arte, a questão da escala não pode ser reduzi-
mente, lhe contar o que está acontecendo. No momento, posso lhe adiantar que
da à dimensão física. Um bicho de Lygia Clark, de dimensões reduzidas, portátil
existem técnicas muito sofisticadas de detectar nuvens (de dinheiro, é óbvio) se
mesmo, tem um aspecto monumental pelo modo como apreendemos os espaços
movimentando. Existe uma nova teoria dos jogos, que o Von Neumann me perdoe,
que engendra, enquanto outras experiências malsucedidas de grandes dimensões
que aposta na formação da nuvem no seu início e no final, antes da chuva. Toda a
físicas, pela debilidade estrutural, seriam mais bem resolvidas se fossem minia-
teoria econômica contemporânea, com bons economistas matemáticos e o pessoal
turas para ficar em cima de mesas. Escultores como Amilcar de Castro e Franz
de estatística de verdade, está nesse jogo financeiro. Não interessa de onde veio,
Weissmann já tinham resolvido o problema da escala na escultura moderna no
nem no que vai dar. Não espere por “papers” que vão lhe esclarecer; o que se es-
Brasil numa aproximação fenomenológica onde experiência subjetiva e materializa-
creve é muito distanciado do que você aprendeu e não seria inteligível. A grana
ção física interagem e embaralham os aspectos íntimos e a vocação pública de certas
que rola é alta, alta mesmo e diária (era assim que devia ser abordado o combate
obras. Mas por mais que busquemos – nesses artistas neoconcretos – localizá-los,
às drogas em vez de ficarem com as palhaçadas de ações policiais). Planejamento,
com piruetas hermenêuticas, num contexto cultural específico, prevalece sempre
como nós aprendemos, é uma ciência tão morta quanto a profissão de engenheiro de
a vocação abstrata e universal de um projeto construtivista.
voo. Quando estávamos na escola, Detroit levava três anos para lançar um “novo”
Há uma evidente resistência à boçalidade positivista. Mas resistência não é
modelo de carro. Mudavam um painel, uns rabos-de-peixe, e olhe lá. No Vale do
estupidez. Reconhece-se o poder operacional, este é utilizado, manipulado todo
Silício, lança-se um novo produto com apenas trinta dias. E pior, anuncia-se o que
o tempo, veremos, ao longo da obra. A agilidade do raciocínio e da proposição
não existe seis meses antes. Quanto à macro, hoje, parece assunto de mecânico de
verdadeira são exploradas. A ciência do inconsciente, ainda que duvidosa para
Volkswagen: conserta aqui, conserta ali. Aliás, há muito tempo, o professor Celso
um Popper, é visão de mundo produtiva, e é reduzida a objetos de arte. Pensemos
Furtado já tinha dito isso. Nós viemos de um tempo em que se acreditava que a
no século, quantas vidas quantos sonhos, mas, sobretudo, quantas horas de divã,
economia devia servir. Não tinha vida própria. Diante da autonomia da economia,
poderiam ser reduzidas a estes objetos.
a autonomia da sua arte é até engraçada. Mas é ela que me agrada, e não as páginas do Financial Times ou do Wall Street Journal. Espero que você já tenha encontrado o Tunga depois que estive com ele em
CINCO
Veneza. Há muito tempo eu não encontrava um papo com artista inteligente. Tunga é agradável e culto. Você bem que falava. Ninguém aí no Brasil sabe quem é Maria
Prezado Carlos,
Zambrano. Contamos nos dedos os poucos que sabem da Velha. Tunga sabe, e por isso pudemos conversar sobre Santo Agostinho, um pouco fora do folclore que se
Eu devia ter lhe escrito há mais tempo. Aquela última carta foi lamentável. Eu sei. Mas deixa para lá, vamos ao que interessa. Vou lhe responder o que ainda estou devendo. Paciência.
faz em torno de nosso filósofo, que não sei por que ficou na moda. Falamos muito da invenção da Europa e da divisão entre Ocidente e Oriente. Nisso, eu me lembrei do Código de Constantino. Tenho quase certeza que o Código
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proibia a representação em perspectiva, não se tratava da perspectiva como a con-
NOTAS
cebemos, mas impedia a representação de uma ilusão de profundidade. O plano tinha que ser assumido porque era a verdade. Toda a tradição de representação da
1. Ver: Williams, Joseph. The humour of reptilian art. In: http://www.tungaoficial.com.br/
Igreja Ortodoxa obedece a esse preceito bizantino. A qualidade planar dos ícones
pt/exposicao/exposicao-individual-new-gallery-audiovisual-rooms-whitechapel-gallery-
obedece a um princípio teológico. E com isso passamos à vanguarda russa. Toda a
-londres-reino-unido/. Acessado em 14/06/2014.
vontade de Catarina não foi forte o bastante para varrer nove séculos de tradição. Podemos compreender, muito melhor, o empreendimento do construtivismo e de
2. Penso que, se notado à época, essa operação qualificaria uma das mais interessantes
Malevitch. O quadrado branco sobre branco e o quadrado negro sobre negro se
elaborações de arte do início dos anos 70, época, diga-se logo, em que o trabalho de Beuys
explicam muito melhor se a representação planar era uma condição da pintura.
não ultrapassava o círculo restrito de especialistas e, assim mesmo, graças ao universo de
Não há ruptura radical com uma tradição. Ao contrário do Ocidente, onde nossos
contestação política por ele introduzido na Academia de Düsseldorf.
Cézanne, Braque e Picasso tiveram de esfacelar uma ilusão. Malevitch e todos os outros russos tinham essa grande vantagem: sua tradição não tinha sido inter-
3. O ressurgimento do romantismo na obra de Beuys será posteriormente explorado in
rompida pela Renascença.
extremis suis rebus, por Kiefer, mas eliminando o elemento biográfico que configurava
Esse Ocidente e Oriente, Roma e Grécia – a invenção da Europa –, pelo filho africano de Santa Mônica ainda vai explicar muita coisa. O que eu senti no Tunga, e não encontro nos artistas com quem converso, é
a individuação da obra de Beuys e investindo apenas no pólo coletivo do mito germânico restrito à exploração formal da prática pictórica com eventuais intervenções em esculturas e instalações.
a capacidade (...) 4. Devo confessar que Luiz e suas cartas e textos malucos me influenciam.
AQUI TERMINAM OS FRAGMENTOS DE 1996
SEIS Há o mergulho, a queda intencional. O corpo que cai e fracassa é um; aquele que mergulha é outro. É dessa queda dirigida de uma grande cabeleira metálica que mergulha de uma altura de quinze metros (?) e se acumula em círculos sobre o solo que a escultura multiplica a escala do corpo para reencontrá-la na cabeça do artista fundida em aço. A cabeleira não desaba, com a gravidade, ela dilata o olhar no campo vertical. Quando nos encontramos diante de uma das grandes esculturas recentes de Tunga, raras no Brasil, mas que têm sido apresentadas mais frequentemente na Europa e na América do Norte, temos a impressão de nos encontrarmos diante de ingredientes novos na arte brasileira. Em que medida essa impressão pode ser substituída pela certeza é o que veremos. FIM DOS PAPÉIS DE MATTOS ALLEN
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T. Pra q Para fazer aparecer o que não há Praq Praq aparecendo ele exista no mundo Praq Para que ele revele coisas que antes não víamos e agora vemos Que são coisas que vejo sozinho E praq Pra que vejas em ti o que vejo por mim Mas pra q Pra que vendo q vês vejas o mesmo que eu e que eu veja o que ves Pra q Praque sintamos a sintonia Que sintonia De estarmos juntos vendo e vivendo A mesma coisa Praq Praque nos sintamos unos no tempo do ver e no espaço dessas coisas feitas que falam Praq Pra que sejamos um só ouvindo o que falam e o que vemos Praq Praque sendo um em dois, o dois se completa e pode fazer 3 Praq Praque o terceiro seja um e veja o que nós vemos Praq Praque assim faça outro ver e assim sucessivamente
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pequeno aviso sobre os escritos do Tunga: Tunga não fazia arte, vivia arte. O tempo todo pensava, anotava, rascunhando idéias que mais eram prazeres de sua forma de vida. Estes escritos que aqui colocamos não são idéias fechadas, pensamentos definidos formalmente, mas caminhos para se perceber seu constante raciocínio poético.
fullblack
LEGENDAS DAS OBRAS
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
(detalhe) resina coleção do artista
resina 130 x 55 x 60 cm coleção do artista
(detalhe) resina coleção do artista
PHANÓGRAFO POLICRO MÁTICO DE DEPOSIÇÃO, 2008
vista da exposição
vista da exposição
PÁLPEBRAS, 2016
PÁLPEBRAS, 2016
Galeria Millan, São Paulo
Galeria Millan, São Paulo
madeira, tecido, resina, vidro, espelho, cristal, rocha, cordoalha de aço e líquido com corante 83 x 34 x 31 cm coleção do artista
PHANÓGRAFO POLICRO MÁTICO DE DEPOSIÇÃO, 2008
PHANÓGRAFO POLICRO MÁTICO DE DEPOSIÇÃO, 2008
PHANÓGRAFO POLICRO MÁTICO DE DEPOSIÇÃO, 2008
madeira, tecido, vidro, espelho, resina, âmbar, cordoalha de aço e água cromatizada, cristal 83 x 34 x 31 cm coleção do artista
madeira, tecido, ferro, vidro, espelho, cordoalha de aço, cristal de quartzo e água cromatizada 83 x 34 x 31 cm coleção do artista
madeira, tecido, vidro, espelho, resina, cordoalha de aço, prata e água cromatizada 83 x 34 x 31 cm coleção do artista
SEM TÍTULO, 2008
SEM TÍTULO, 2008
SEM TÍTULO, 2008
vidro, martelo, cordoalha de aço, cristais, prata e água com corante 87 x 106 x 106 cm coleção do artista
bronze, cristal, pérola e cerâmica 22 x 80 x 80 cm coleção do artista
madeira, bronze, resina e rocha 131 x 60 x 60 cm coleção do artista
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SEM TÍTULO, 2008
SEM TÍTULO, 2008
SEM TÍTULO, 2008
SEM TÍTULO, 2008
resina, cristal, cerâmica, aço, vidro e bronze com pátina prata 32 x 45 x 30 cm coleção do artista
cerâmica, cristal, bronze com pátina prata, pérolas, madeira e tecido 50 x 50 x 170 cm coleção do artista
vidro, cristal, esponja, cerâmica, arame e colher 34 x 31 x 29 cm coleção do artista
(detalhe) vidro, cristal, madeira, ferro, cordoalha de aço e água com corante coleção do artista
SEM TÍTULO, 2008
SEM TÍTULO, 2008
(detalhe) vidro, cristal, prata e água com corante coleção do artista
PHANÓGRAFO POLICRO MÁTICO DE DEPOSIÇÃO, 2008
SEM TÍTULO, 2008
(detalhe) vidro, pérolas e água com corante coleção do artista
SEM TÍTULO, 2008
(detalhe) resina, prata e aço coleção do artista
SEM TÍTULO, 2008
(detalhe) do galpão do artista vidro, água com corante, ferro, cordoalha de aço e concha coleção do artista
vidro, cordoalha de aço, resina e líquido com corante 34 x 35 x 16 cm coleção do artista
SEM TÍTULO, 2008
SEM TÍTULO, 2008
(detalhe) cordoalha de aço e âmbar coleção do artista
vidro, cristal, prata, resina e líquido com corante 29 x 34 x 31 cm coleção do artista
vidro, cordoalha de aço, resina, esponja, pérolas e líquido com corante 33 x 34 x 31 cm coleção do artista
vidro, cristal, prata, resina cordoalha de aço e líquido com corante 32 x 45 x 30 cm coleção do artista
SEM TÍTULO, 2008
SEM TÍTULO, 2008
SEM TÍTULO, 2008
AOS SEUS PÉS, 2015
AOS SEUS PÉS, 2015
(detalhe) cordoalha de aço, pérolas, esponja e vidro coleção do artista
(detalhe) vidro, cristal e cordoalha de aço coleção do artista
bronze com maquiagem 15 x 110 x 8 cm coleção do artista
ferro, couro, turmalina negra e resina 720 x 350 x 500 cm coleção do artista
(detalhe) ferro, couro, turmalina negra e resina 720 x 350 x 500 cm coleção do artista
PHANÓGRAFO POLICRO MÁTICO DE DEPOSIÇÃO, 2008
PHANÓGRAFO POLICRO MÁTICO DE DEPOSIÇÃO, 2008
SEM TÍTULO, 2008
AOS SEUS PÉS, 2015
AOS SEUS PÉS, 2015
vista da exposição
(detalhe) rocha, aço, vidro, cristal, resina coleção do artista
(detalhe) cristal, aço, resina, vidro coleção do artista
(detalhe) vidro, cristal, madeira, ferro, cordoalha de aço e água com corante coleção do artista
(detalhe) ferro, couro, turmalina negra e resina 720 x 350 x 500 cm coleção do artista
(detalhe) ferro, couro, turmalina negra e resina 720 x 350 x 500 cm coleção do artista
PÁLPEBRAS, 2016
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Galeria Millan, São Paulo
QUATRO LUAS, 2015
QUATRO LUAS, 2015
QUATRO LUAS, 2015
ferro, gesso, espelho e bronze dimensões variáveis coleção do artista
(detalhe) ferro, gesso, espelho e bronze dimensões variáveis coleção do artista
(detalhe) ferro, gesso, espelho e bronze dimensões variáveis coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
resina 60 x 72 x 42 cm coleção do artista
resina 71 x 53 x 26 cm coleção do artista
resina 80 x 63 x 40 cm coleção do artista
QUATRO LUAS, 2015
vista da série
(detalhe) ferro, gesso, espelho e bronze dimensões variáveis coleção do artista
MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
resina dimensões variáveis coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
resina 55 x 100 x 33 cm coleção do artista
resina 86 x 70 x 50 cm coleção do artista
resina 52 x 50 x 17 cm coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
resina 55 x 30 x 24 cm coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
resina 81 x 63 x 40 cm coleção do artista
resina 81 x 63 x 40 cm coleção do artista
resina 97 x 48 x 23 cm coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
resina 29 x 50 x 58 cm coleção do artista
resina 54 x 50 x 20 cm coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
resina 66 x 48 x 35 cm coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
resina 26 x 92 x 33 cm coleção do artista
resina 55 x 73 x 39 cm coleção do artista
resina 71 x 53 x 26 cm coleção do artista
resina 55 x 47 x 41 cm coleção do artista
resina 41 x 30 x 23 cm coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
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resina 75 x 63 x 25 cm coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
resina 91 x 24 x 57 cm coleção do artista
resina 105 x 36 x 27 cm coleção do artista
resina 105 x 36 x 27 cm coleção do artista
resina 52 x 30 x 16 cm coleção do artista
resina 52 x 30 x 16 cm coleção do artista
resina 60 x 72 x 42 cm coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
PHANÓGRAFO POLICRO MÁTICO DE DEPOSIÇÃO, 2008
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
resina 100 x 40 x 32 cm coleção do artista
resina 100 x 40 x 32 cm coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
resina 68 x 37 x 70 cm coleção do artista
(detalhe) resina coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
Tunga em seu atelier,
Tunga em seu atelier,
QUATRO LUAS, 2015
2014
resina 68 x 37 x 70 cm coleção do artista
resina 66 x 56 x 25 cm coleção do artista
resina 66 x 56 x 25 cm coleção do artista
2013
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
(detalhe) ferro, gesso, espelho e bronze dimensões variáveis coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
resina 52 x 85 x 30 cm coleção do artista
resina 52 x 85 x 30 cm coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
resina 75 x 63 x 25 cm coleção do artista
SEM TÍTULO, da série MORFOLÓGICAS, 2014
(detalhe) resina coleção do artista
(detalhe) resina coleção do artista
(detalhe) resina coleção do artista
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(detalhe) vidro e pérolas coleção do artista
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(detalhe) resina coleção do artista
Realização MILLAN / AGNUT
Texto PAULO SERGIO DUARTE
Direção de arte LILIAN ZAREMBA IRENE PEIXOTO
Design gráfico ANA CARNEIRO PAULA DELECAVE RARA DIAS
Fotografia GABI CARRERA
Acompanhamento de impressão LILIA GÓES
Agradecimentos Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
BETH JOBIM CHARLES COSAC FERNANDO SANT’ANNA
Tunga : pálpebras / [realização Galeria Millan ; ensaio crítico Paulo Sergio Duarte]. -São Paulo : Galeria Millan, 2017. ISBN: 978-85-68152-05-8 1. Arte - Exposições - Catálogos 2. Arte contemporânea I. Galeria Millan. II. Duarte, Paulo Sergio. 17-02014
Índices para catálogo sistemático: 1. Arte : Exposições : Catálogos 700.74 2. Catálogos : Arte : Exposições 700.74
CDD-700.74
JOSÉ RESENDE PAULO SERGIO DUARTE TATIANA GRINBERG THIAGO ROCHA PITTA
Este livro foi composto em Fayon e New Paris e impresso sobre papel eurobulk 150g e papel vegetal 112g pela Ipsis Grรกfica e Editora em fevereiro de 2017.