Diario Psicoativo Vol. I
Enquanto este texto está sendo escrito e o ano 2015 quase terminando, podemos afirmar que no Laboratório Agnut este ano começou em 2013, com os preparativos do tour de exposições “From La Voie Humide”.
Sendo assim, 2014 começou com tudo, com a produção de mais de 60 esculturas e incontáveis desenhos e gravuras de Tunga voltados para a turnê que rodou por cinco países diferentes. Em abril estávamos na Galeria Luhring Augustine, Nova York, montando a primeira individual do ano, intitulada “From La Voie Humide” . O espaço expositivo foi tomado por muitas estruturas de ferro e suas particularidades, conjugando técnicas e materiais aliados a essa estruturas, e cada uma destas, apelidadas de personagens por Tunga.
Ainda em 2014, no final de agosto nos encontrávamos em São Paulo para a montagem da perna brasileira deste trabalho. Simultaneamente, no hospital Matarazzo, na coletiva “Made by... feito por brasileiros” curada por Marc Pottier, acontecia uma nova instauração de Tunga, dando vida a uma performance que perdurou por quase trinta dias ininterruptos, com um corpo de atrizes que se revezaram por dois turnos diários em seus afazeres oníricos.
Outubro de 2014 chegou com a viagem ao Piemonte, Itália, para realizar a terceira exposição individual deste ano. Além da exposição em turnê “From La Voie Humide” na Galleria Franco Nero em Turím, montamos a obra Bell’s Fall no Castello di Gabiano, propriedade de Giácomo e Emanuelle, Marquês e Marquesa de Gabiano. Neste castelo, aconteceu um jantar para mais de cem pessoas em homenagem a Tunga. Regressando ao Brasil, após esta temporada de trabalhos na Itália, tivemos pouco tempo para finalizar a nova montagem “From La Voie Humide” a ser apresentada em Londres, na Galeria Pilar Corrias em dezembro de 2014.
Entramos em 2015 ouvindo os ecos frenéticos de 2014. Ainda hoje, no final de 2015, estamos sob impacto das exposições realizadas. Novas obras também foram concluídas neste período, abrindo o ano com muita potência criativa, como na performance “Amber Guests” exibida no antigo Hotel Paris, na praça Tiradentes, Rio de Janeiro.
A obra e performance“Amber guests” trouxe ao local inesperado, em escombros, o encontro do céu e da terra. Em uma pequena sala, um grande meteorito é suspenso por fios de aço, junto a uma garrafa de cristal e colher de bronze preenchidas com essência de âmbar. No chão, ali espalhadas pérolas e a tal essência, a qual é gotejada sobre o meteorito, escorrendo ao assoalho de madeira, misturando-se às pérolas e poça que emana o cheiro da seiva das árvores. As gotas de âmbar são despejadas sobre o meteorito por duas atrizes, que ao “banhar” o meteorito, simbolizam ali o encontro do que é terreno com o que é etéreo.
Esta obra apresentada em Chaumont chamada “Eu, Você e a Lua”, nos remete aos personagens supra citados neste texto, no entanto, com uma característica marcante na dimensão e presença, potencializados para nos aguçar os sentidos ao contemplar seus aspectos formais. Após sua temporada na França, a obra irá participar da Basel Unlimited 2016. Presenciamos também a seminal série de esculturas Morfológicas, criadas e exibidas no Laboratório Agnut durante o segundo semestre 2015. Esta exposição marca o momento de nascimento do espaço expositivo, apelidado de Sala Branca, um “nascedouro” de obras recém-produzidas.
Neste mesmo segundo semestre de 2015 uma homenagem prestada em Londres, destinou a Tunga belo espaço no pavilhão Frieze Masters, onde foi possível reunir numa mesma exposição obras históricas relativas a diversos períodos de sua carreira. Uma de suas mais famosas performances, Xifópagas Capilares, causou frissom nos corredores desta importante feira. Enquanto estes acontecimentos desenrolavam em Londres, no Vale do Loire na França, uma obra monumental era exposta em um antigo picadeiro do Domaine de Chaumont-sur-Loire, palácio do século XV, às margens do histórico rio.
Sequencialmente, ainda no Laboratório Agnut, Tunga partiu para mais uma nova instauração, intitulada “Delivered in Voices”. Quatro esculturas onde personagens seguem presentes e se juntam para formar esta obra sonora, que inclui vozes, ecos, sonoridades e reflexos para serem deglutidas por aqueles que penetram neste universo.
Na primeira semana de Dezembro de 2015, esta instauração foi apresentada para o público abrindo as portas do Laboratório Agnut para o pessoal do Festival Novas Freqüências, que ocupou durante dez dias a Sala Branca, investigando as possibilidades performáticas que ali pudessem existir. Artistas de diversas gerações foram convidados a realizar performances em torno desta obra, resultando em experimentalismos sonoros, dança contemporânea, sonoridades populares e interações eletromecânicas.
Todo material produzido no Laboratório Agnut durante esses dias de Festival Novas Freqüências, mais o dia extra de homenagens, foi registrado junto ao desejo de publicar o acontecimento em forma de vinil, livro, vídeo e imagens. Começamos 2016 querendo mais e mais materiais psicoativos, além das possíveis publicações que certamente irão surgir deste triênio produtivo.
Esta experiência foi tão rica que após a noite de encerramento, quando a artista Felicia Atkinson nos preparou um set especial, a equipe do Laboratório Agnut decidiu criar uma jam session em volta da instauração “Delivered in Voices”, para quem quisesse registrar sua mensagem a Tunga, utilizando uma mesa de som de 32 canais e caixas de som auxiliares de potência colossal. Os artistas Cabelo e Barrão abriram estes trabalhos num belo dia de homenagens, informalmente elaboradas por diversos artistas que por lá passaram durante todo o dia até de madrugada.
Também neste primeiro volume do Diário Psicoativo, selecionamos trechos de textos consagrados na experiência de vivenciar as obras de Tunga, sendo o primeiro texto selecionado para esta edição, “Todas as coisas simultaneamente presentes”, escrito por Guy Brett. Acreditamos que reunindo tudo isso nesta publicação, o deleite irá permear a todos, e dessa forma, a aura da produção do artista poderá se esparramar na mente daqueles que se permitem viver em poesia.
Nesta primeira edição do Diário Psicoativo, preparamos um texto belíssimo resultante da organização dos relatos das atrizes que participaram da performance no Hospital Matarazzo (2014). Elas produziram ali um material literário afetivo e precioso ao contar um pouco da experiência ao fazer parte de uma das famosas instaurações de Tunga. Realizamos uma colagem com trechos desses textos das atrizes, formando com este material uma pequena narrativa em prosa poética, capaz de nos jogar para um mergulho imaginário no mundo onírico em que se formulou esta obra.
Anotações das atrizes sobre a performance Sem título, 2014
Espaço criado ... espaço cedido.... vida em acontecimento... Foi assim que aconteceu a parceria, Tunga criou seu universo em meio ao barro, ferro, milho, terra, pérolas, e nos cedeu - de forma carinhosa - para que experimentássemos estar ali.
A obra estava viva, todos os dias ela era transformada pelas performers que passavam por lá, pelos bichos que se alimentavam, pelo clima e pelos pássaros - que lá do alto da árvore cortavam flores, fazendo-as caírem na terra vermelha, dando a cor lilás a obra. 3 horas de silêncio, respeitando cada segundo, dilatando o tempo da movimentação. Cada ação era valiosa, cada respiro era essencial, cada pérola costurada era um parto. O entra e sai das agulhas penetraram na terra e fizeram brotar o milho... alí estava e crescia todo o ecossistema... o ciclo da vida Mesmo depois de ter saído da obra, ela permanece em mim, a mínima partícula de cada célula sofreu uma transmutação, tem uma cor diferente. Isso modifica a forma de pisar, de olhar e de se relacionar. Hoje encontrei uma menina na minha aula de dança e ela viu a performance e me disse: “Fiquei meia hora lá, impressionada. Vi os pombos, uns quinze pombos sobrevoarem os milhos e ninguém se mexia. Depois eles todos em uma revoada subiam para as árvores. Foi mágico Sabugo falo, costuro sémen ainda vivo. Agulha perfura pele densa, gozo esparso. Antes de começar, peço licença, peço passagem dentro e fora do corpo para a entrada da alma onírica, para habitar a concavidade dos pés, o fundo dos olhos, o ar dentro dos pulmões no encontro do sol e da lua. Faço minha prece para todos os homens; que saiam de suas cavernas, rompam os bosques. E com o som de suas bocas, tragam o vento novo, que toque as árvores. Mulheres de cabelos flutuantes, girem e dancem até o sol brilhar mais forte. Sob o luar, com os fios dos meus cabelos, costuro cada pérola para te ofertar. Espero a tua chegada, Dioniso, para celebrar e dançar com as ninfas do campo. Sentir o fio cruzando a agulha devagar, delicado, um gozo, um prazer estonteante. Ó Deus Dioniso, que trouxe fertilidade e os cantos à Terra, preparo a tua festa para celebrar a colheita. Em noite de lua cheia recolhi o sémen de todos os animais potentes e os transformei em pequenas pérolas. Ó Dioniso, posso te ver em meus sonhos, o sémen pérola serve para adornar os restos da colheita. Silêncio. Costuro essas pérolas para você. Nas águas claras desse rio infinito. Deitada na rede tive um sonho, mulheres debulhavam milhos. Um índio veio me trazer mais sementes para plantar ao luar.
Restam-me na memória ainda, as terrenas lambidas de saibro a ressecar-me a pele e a mapear sensíveis cartografias, por trás das minhas retinas. As vezes eu sentia, sem olhar para o público: “Algum homem se apaixonou por mim hoje”. Sombra. Brisa. Não faltava pérolas nem linha. Quem está em transformação sou eu! A mulher é delicada mas o parto é violento. Enquanto costuro, verto sangue. (Mas o sangue está bem escondido, e a roupa segue branca e as pérolas seguem brancas). Costurar/Debulhar o milho e descansar (na rede). O descanso possui um espaço determinado. Quando descanso na obra eu até sonho. Caminho sem mancar. Cultivo o silêncio. Flores lilases por todo o chão. Caem da árvore quando venta. Ajeito na rede e cochilo. Dentro da cerâmica é bonito... Seco. A terra, o ar, a espiga, a cerâmica. Tunga, abraça um conhecido e lhe diz: “Esse é um sonho que não sonhei. Então tive que fazê-lo. Vamos sonhar juntos, eu e as meninas. E elas vão escrever sobre esse sonho”. Na rede sonho o sonho de alguém. O pé toca a terra, partos de estrelas no espaço. Pérolas, todas as galáxias. Debulho o pó das estrelas. Tempo, outro tempo, outro sonho lento, sono, tempo, explosão do instante se leva no corpo. Transmutação das células, partículas no encontro onírico viajando pelo espaço tempo do corpo da terra do cosmos do pó. Sou da natureza dos sonhos, minha pele é aerada, dilatada, órgãos mito. O tempo é o tempo do infinito. Cada gota de seu sémen juntava pérolas-sémen, saliva costurada com os fios de cabelo guardados da infância. Quero plantar todas as sementes na luz desse amarelo opaco! Em noite de lua cheia o útero pede passagem e as vísceras tomam lugar, o desejo e todas as paixões saem do corpo como suor perfumado de sal de ervas plantadas em noite de luar. Não era só na transformação do milho em pérola que tinha alquimia, era em tudo aquilo junto. O sol, a sombra, o desenho do saibro no chão, o rastro que deixávamos no chão. E o tempo parava.
A alquimia resistia e se aprofundava. Tempo e silencio. Pés saibro Pés tingidos Pés úmidos Pés secos. Tirar os milhos das espigas. Costurar pérolas nas espigas. Dormir na rede ou reclinar na árvore.
Trechos do texto “Todas as coisas simultaneamente presentes‘‘, Guy Brett
Este intervalo de ar se materializava como um cálice de aço (a cabeça) montado como se fosse um receptáculo precioso sobre um pedestal de madeira na forma de um sino (o corpo). O sólido da escultura é tudo o que não é a imagem da pessoa, e é sua presença, paradoxalmente.
Uma instalação do Tunga é uma maneira de combinar a individualidade dos objetos com um processo de “contágio mútuo” (para usar sua própria expressão) entre eles. Uma maneira de combinar a identidades fixas e fluidas, em forma de circuito, o contínuo fluxo de energias. Na obra Lezart (1989), por exemplo, o ferro, o cobre e o aço se ligam de maneira elementar, como se gerassem eletricidade entre eles, e também figurativamente, na imagem do cabelo e do pente. Os pentes, de certo modo, controlam a rebeldia do cabelo de arame como um dique canaliza água, ou como os cabos, os interruptores e as caixas de junção controlam as correntes elétricas. Também o trançado introduz um elemento de desenho, ordem ou ‘’cultura’’ no selvagem do cabelo/eletricidade. Porém o desenho do trançado é igualmente análogo a pele da serpente, um desenho da natureza. De forma semelhante , o magnetismo se apresenta aqui de uma forma casual, desordenada, muito diferente de sua concentração em uma bobina cuidadosamente fabricada para um motor elétrico. Em suma, as instalações de Tunga, incrementam as tensões entre a ordem e o caos, de modo tal, que impacta nossos modos habituais de delinear e nomear porções de realidades.
Em nosso primeiro encontro, Tunga me deu um pequeno panfleto. Propondo ser (e talvez sendo) uma reimpressão da, Revirão 2, Revista de Prática Freudiana (Rio de Janeiro, 1985), contendo um relato fantástico para dar conta da maneira como os objetos do Tunga, ainda que diversos aparentemente, estavam vinculados e ressoavam uns com outros. Começa com sua própria narração de seu projeto de 1980 de fazer um filme viajando através do grande túnel curvo “Dois Irmãos” . Um filme cujos extremos se juntavam para formar uma fita sem fim, um túnel sem saída, um “toro (anél topológico) imaginário no interior de uma montanha’’. Tunga é induzido pelo descobrimento de recortes de jornais e informes de antropólogos a fazer estranhas conexões. O tema do cabelo, por exemplo, se origina em um informe de um cientista sobre gêmeas siamesas unidas por sua cabeleira. Depois da morte das gêmeas, o estranho troféu de seu couro cabeludo (escalpo) passa para uma mulher, que o extrai dos cabelos ruivos para bordar uma imagem para seus sonhos. Enquanto ela faz a extração do escalpo os fios se transformam em metálicos, aparentemente de ouro. O couro cabeludo passa ao Templo de Yun Ka, aonde seus homens pintam imagens sobre seda Pinturas Sedativas. E assim sucessivamente. Há outros vínculos mais distantes. (Ao ler tal texto sobre as Xifópagas Capilares, senti algo incomodo com os tradicionais papéis masculinos e femininos atribuídos na história, porém em seguida pensei que, talvez, derivaram do arcaísmo do estilo literário, e que Tunga poderia dizer, de todos os modos, que esses recursos masculinos e femininos são aspectos do mesmo indivíduo. A ele, agrada mencionar a sonolência e a indolência, por exemplo, como características de sua própria forma de trabalhar.)
Tunga 1977 – 1997 bard college/moca north miami páginas 106 – 113
Uma proposta audaciosa das primeiras esculturas modernas foi a criação, de Gabo, de um “volume virtual’’ por meio de um cabo vibratório. Sua insubstancialidade derruba conceitos tradicionais da escultura, mas necessitaria ainda a idéia de um volume “real’’ em relação ao qual o outro se vê como ‘’virtual’’. A obra de Tunga supera essa dicotomia: “Quando você afunda na água, a forma produzida é real, não virtual. Quando entro em um quarto, uma quantidade igual de ar abandona o espaço’’. Como indicar esta realidade? Um das primeiras séries de esculturas de Tunga (Eixos Exógenos, 1986) havia sido produzida, por assim dizer, solidificando o ar entre dois perfis do corpo de uma pessoa em particular, postos cara a cara (os sete objetos desta série foram derivados de sete mulheres que, para Tunga, representam algo destacado na sociedade brasileira).
Qual o objetivo em construir toda esta documentação alternativa, que mescla o plausível com o implausível, o fantasmagórico e o mundano? Talvez para zombar da raison d’être aceitada pela produçãoo artística, dada pelos museus e mercado da arte, inventando assim, outro “circuito’’ que cruza o mundo, o tempo, e as esferas da antropologia, paleontologia, zoologia, os fenômenos paranormais e a medicina (revelando ao mesmo tempo, que cada um destes recursos é tão derivado como qualquer outro).
Poderia ser uma maneira de ir contra a fixação do objeto artístico autônomo, através de uma fábula aonde um objeto se submerge em outro ad infinitum (em sua história o objeto se move do lugar comum para o lugar super precioso, do molar para a montanha). No filme do Tunga, Nervo de Prata, realizado com o cineasta Arthur Omar, esta noção se estende através da metáfora do ato de tragar, que atravessa todo o filme. O livro de Tunga, Barroco de Lírios, (editado, escrito e composto pelo artista) é claramente um ensaio de apresentação de sua obra através de luxuosos detalhes fotográficos enquanto se move do espaço baço e plano da galeria e do museu, para uma dimensão misteriosa e potente. Cada sequencia de imagens que compreende a uma obra em particular é acompanhada por um texto tipograficamente entrelaçado na brilhante montagem que Tunga, de uma página a outra, foi capaz de produzir. Uma sequencia memorável (“ÃO’’) começa com um pequeno anel circular de película cinematográfica montada como uma joia em uma página prateada. Segue uma folha solta de acetato transparente com a impressão de uma caveira humana com um buraco circular que sugere a trepanação do crânio. Porém, o nebuloso cérebro que se vê através desta cavidade resulta ser, na página seguinte, um anel de fumaça flutuando no espaço. Sequencialmente aparecem fotos do interior do túnel Dois Irmãos, através das quais, nos movemos durante várias páginas com o anel do fumo em sua abóboda. De repente a fumaça se solidifica , por assim dizer, em um grupo de anéis de ferro maciço, que nos conduzem abruptamente a outro extremo do aspecto sensorial, no qual nossos corpos terrestres vivem suas vidas. Os anéis de ferro, dos quais apenas o menor poderíamos levantar com nossas próprias mãos, cabem perfeitamente uns dentro dos outros. Paralelamente a nossos corpos, nossas mentes contemplam a exegese de Tunga de uma construção abstrata: o anel topológico (no contexto das exposições, o túnel circular era exibido através da proteção da fita sem fim da película, e os anéis de ferro eram exibidos como esculturas).
Junto a isso é possível sentir, através de toda obra de Tunga, a matriz formidável da natureza tropical. Esta é tanto mais poderosa quanto se a invoca tangencialmente, em textos fragmentários e fora de moda, que recorrem aos maneirismos da ciência, a liturgia, o esoterismo, os contos de viajantes, as aventuras de exploradores, as narrativas de naturalistas, os informes de experimentadores. Neste livro de “arte” a atmosfera científica é a ilusão predominante; se quase não me engano, a palavra ‘’ arte’’ ou ‘’ artista’’ é usada somente uma vez, e apenas para descrever um certo fabricante de charutos cubanos que, seguindo numerosas imagens de reciprocidade e contágio mútuo, traçadas no livro, “fumava enquanto fazia charutos, e ... fazia charutos enquanto fumava’’. Talvez um dos propósitos, ou efeitos colaterais, destas histórias, seja reexaminar, ou jogar com a noção de narrativa em relação com outras estruturas. Pareceria que o elemento narrativo deveria entrar em conflito com a ideia de circuito: a narrativa parece nos levar a algum lugar, ter um começo e um fim, enquanto o circuito é contínuo. A narrativa é um fio, como um fio que nos conduz para fora de um labirinto, ou como o fio de ouro no bordado, que enriquece os vestidos. Também se conecta com o fio de cabelo presente na escultura de Tunga, que corre em contínuo, desde o caótico excesso hiperbólico ao ordenado trançado (um ordenamento que introduz outra classe de energia visual). A investigação cientifica parece confinar a narrativa, a começar, prosseguir e analisar chaves que levam a algum tipo de prova final (nas histórias de Tunga há narrativas que nos chegam de segunda ou décima mão, e muitas coisas que não se sabe se são evidências ou não). De fato as histórias de Tunga, para complicar mais os trabalhos da linguagem, jogam contra a investigação cientifica como tal, a insistir em descrever cada objeto ou acontecimento em termos de outros. É possível uma língua metafórica, ou a metáfora é o sine qua non da linguagem, até o ponto em que o intento da ciência de descobrir ou conhecer um objeto em si mesmo, e não em termos de outro, ou a intenção da instituição da arte de isolar o objeto da experiência vital, são espécies de caprichos ou manias? Os elementos literários na apresentação de Tunga não negam, por sua parte, uma certa preocupação por certas questões “escultóricas’’. Claramente, desde certo ponto de vista, o legado da arte moderna até agora pode se ver como uma série de intentos de elaborar em termos visuais uma nova concepção das relações, da troca e das metamorfoses, que vão mais adiante do espaço/tempo clássico. No começo os artistas lutavam diretamente com esse espaço/tempo herdado.
A linguagem dos surrealistas estava edificada a partir das relações incongruentes. Como todo mundo sabe, uma das suas fontes de inspiração era a frase de Lautreamont sobre o encontro casual de um guarda chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de operação – essencialmente uma natureza morta. E o choque surrealista tendeu a produzir através da combinação incongruente de objetos convencionais representados (De Chirico, Oppenheim, Magritte, Dalí) bestiários híbridos (Lam, Ernst), realismo perspectivista virou espectral pelo sonho, (Delvaux, Balthus), etc. Os componentes do objeto surrealista, incluindo o ready made, duchampiano precisavam conservar sua identidade unitária e cotidiana para que o cambio de contexto, ou como Duchamp dizia, o “novo pensamento do objeto’’, tiveram lugar. O conceito de relação e o de morfologia subjacentes ao que geralmente se conhece como arte abstrata parece estar baseado em outro modelo: estruturas naturais ou orgânicas reveladas pelas ciências físicas – o crescimento das plantas, por exemplo, ou as estruturas cristalinas ou celulares. O biomorfismo (Miró, Calder, Arp, Schwitters) ocupa uma posição intermediária entre a abstração – concretismo e surrealismo. Outros artistas chegaram a um ou mais elementos estruturantes, que eram pessoais e os permitiam realizar desenvolvimentos seriais: os signos mais e menos, e o equilíbrio assimétrico horizontal/vertical (Mondrian), o arabesco (Matisse) as pictografias e os sistemas de anotação (Klee, cujo trabalho estes elementos se combinam com o crescimento vegetal, as formações cristalinas, etc.), a geometria não gravitacional (Malevich, Lissitsky), os campos de força (Moholy-Nagy, Vantongerloo), e outros. Estes elementos estruturais, estas reminiscências do espaço clássico, foram crescentemente sintetizadas. O assombroso destas formas de produção é que cada uma é característica de uma espécie ou um gênero. Matisse disse: ‘’ Nunca duas folhas de uma figueira são exatamente idênticas, porém todas elas proclamam, Figueira!’’ A obra de arte proclama esta lógica ou autenticidade internas, que é também proclamar a identidade do artista. No entanto, paradoxalmente, a causa de outra lógica, a do mercado de arte e suas instituições, esta metáfora orgânica da produção de um tipo de mercadoria que é altamente individual e instantaneamente reconhecível. A obra de alguns artistas reconhece esse cambio implicitamente e joga com ele (como Warhol). Porém também se propõe novas estratégias, tanto na história brasileira como na internacional.
A busca de Tunga encontra uma nova ordem de relações, um contínuo aonde um corpo ou discurso se submerge em outro e onde os experimentos relativos a relação entre objetos físicos e textos verbais é uma parte essencial, é uma de suas estratégias. “O pensamento e a linguagem são inerentemente sistemáticos e orientados a imutabilidade, enquanto que a natureza é inerentemente fugidia e proteica” (D.C. Muecke). Tunga parece botar em questão a verdade ou falsidade dessa dicotomia. E fazendo assim ilumina uma fascinante problemática da arte brasileira. O duelo entre ordenamento conceitual e abundancia natural, entre esquema cerebral e pulso biológico, atravessa de maneiras diferentes a obra dos artistas e pensadores brasileiros do século XX. Pode-se encontrar nos escritos de Oswald de Andrade durante a primeira explosão do experimentalismo brasileiro nos anos 20, quando dizia que “temos uma herança dupla: a selva e a escola’” e nos relevos brancos de Sergio Camargo nos anos 60, uma precisa, condensada, refinada imbricação de ordem e caos. A paródia e a ironia incrementam esta riqueza de postos: um pode, por exemplo, comparar a maneira como o corpo está presente no aparentemente descarnado e cerebral trabalho do contemporâneo de Waltercio Caldas, com o modo como a mente se ilumina na linguagem do corpo de Lygia Clark. (...) As histórias de Tunga ‘’fabulam” suas esculturas. E como estes textos possuem um elemento tão forte de ilusão literária, de artifício ou jogo, não precisamos aceita-los solenemente como informação ou pedagogia. São pedaços de material, e devemos reinseri-los nas suas transformações materiais-linguísticas, e em sua proximidade a um núcleo orgânico, que é aonde creio que Tunga quer realmente que nossa atenção se concentre.
Organização, tradução e seleção de textos Pedro Bastos Copydesk Lilian Zaremba Fotografias Gabi Carrera CLAP Pedro Bastos Luhring Augustine Edição e produção Mario Vitor Atrizes performance (Made By...) Nina Hotimsky Luciana Shirakawa Vanessa Del Negri Mariane Custodio Claudia Sin Karen Maria Tati Ramos Gabi Farota Juliana Arapiraca Natalia Coehl Camila Duarte Livia Rios Monica Cristina Equipe Agnut Alaide Moledo Cosmo Tomé Daniel Duarte Fernando Cesar Sant’Anna Leonardo Guimarães Mario Vitor Pedro Bastos Renata Moledo
Agradecimentos Tunga André Millan Marc Pottier Charles Cosac Lilian Zaremba Cordélia Fourneau Fernando Cesar Sant’Anna Paulo Darzé Galeria Millan Luhring Augustine Gallery Galleria Franco Noero Festival Novas Frequencias Domaine de Chaumont-sur-Loire Nicolas Mirzayantz & IFF Zoe Dubus & Romain Dumesnil Daniela Antonelli Isabel Jobim Gabriela Rondinelle