Se essa rua fosse minha

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T.

TUNGA



PEQUENO MILAGRE Coube-me o fim de um corredor. Decidi ali construir um muro, dividir o fluxo em relação àquele fim, em dois. Para que se fizesse presente, deixei edificá-lo em posição oblíqua. Embora separasse o fluxo, microfones colocados nos dois lados do muro misturavam as vozes que se amplificavam no recinto. Aquele fim de linha (beco) possuía outras características além de separar em “ou”, o público. O muro era feito de gesso. Ao invés de tijolos, peixes frescos e pães. Ao invés de água, o gesso fora virado com vinho. Foram incrustados os microfones e sendo o muro constantemente regado a vinho de garrafão, que depois vazios, eram espatifados no chão naqueles arredores. Todos os que ali entravam ou passavam, podiam apreciar na putrefação de alguns peixes, a proliferação de vermes, andar sobre os vidros e ter suas opiniões amplificadas na sala ao lado. A intensidade forte dos odores ali misturados, o fundo de corredor,

Este livro é dedicado a Gerardo Mello Mourão

a presença da vida proliferando nos vermes, o dito aos microfones que a todo comentário mixava os dois lados do muro, transformava aquela experiência num legítimo Pequeno Milagre.

***

SE ESSA RUA FOSSE MINHA... Já na segunda versão do Se Essa Rua Fosse Minha, um ano depois, uma calçada me foi destinada. Apenas um fragmento dela poderia ser utilizado e assim o fiz, nesta peça metonímica. Similar procedimento com o gesso decidi adotar. Desta vez porém, não como paredes que dividem. As calçadas deveriam falar e por isso instalei alto-falantes por toda superfície. Suculentos ossos ainda frescos, e ainda carregando generosas carnes, também foram incrustados junto aos tweeter, na massa ainda pastosa do gesso. O som que dali era emitido formava um verdadeiro coro de latidos caninos. Uma vez o público humano evadido do evento, coube aos abandonados cães de rua desfrutar daquela obra que parecia um verdadeiro inferninho... Ah! se essa rua fosse minha.



















L A D A I N H A D O M O RTO Com dezessete facadas na feira de Ca nabrava A maro Sa mpa io Mello morreu por mim. Com uma ba la na testa no Engenho de Ca na mansa Fra ncisco Bezerra Lima morreu por mim Bordel de Va lpara íso : com um punha l na garganta R aquel Medina- a morena – morreu por mim. Com seu f uzil já sem ba las soldado de Ho Chi Minh Cao Cih aos doze a nos morreu por mim. Ha ns A lfred von A hlenfeld com a cabeça arra ncada por uma gra nada russa morreu por mim. Um conde de Budapeste no Ponto Eu xino um Ovídio em Bucareste outro Ovídio morreu por mim. O poeta Ma ndelsta mm não terminou seu soneto em sua prisão na Rússia morreu por mim. La ndsberg era a lemão era grego e era judeu no ca mpo dos concentrados morreu por mim. Sa nsão sem olhos em Ga za entre a s ruína s do templo destroça ndo os f ilisteus morreu por mim.


Na rua Bento Lisboa com carta de despedida Marina bebeu veneno morreu por mim.

O poeta Kusa k abe ouviu o estouro da bomba deu um grito em Hiroshima morreu por mim.

Iracema abriu o gá s A na Lúcia abriu a s veia s um tiro na boca – Mar y morreu por mim.

Na praça de Little Rock com uma guitarra na mão o negro Bem ba leado morreu por mim.

Em Belém Ma fa lda f lor da beleza pa lestina pisou na bomba entre relva s morreu por mim.

Heitor nos muros de Tróia Aquiles com o pé f lechado Pátroclo com sua la nça morreu por mim.

Na Polônia na Rumâ nia cada R aquel cada Sara mira ndo o f uzil da Prússia morreu por mim.

Em seu pa lácio Cleópatra a cobra mordendo o seio ninho de a mores e aroma s morreu por mim.

Em paredones de Hava na o frade de São Fra ncisco benzendo Paco Figueres morreu por mim.

Punha l de Brutus no peito no sa ngue de sua toga César meu rei meu pontíf ice morreu por mim.

E na s rua s de Ma nágua padre Ernesto Cardena l um guerrilheiro sa ndino morreu por mim.

O grego e o troia no o líbio o soldado o genera l como Helena e Clitemnestra morreu por mim.

No mesmo dia de sol na rua de Pablo Cuadra um “contra”de quinze a nos morreu por mim.

E Teresa de Cepeda cha mada Teresa de Ávila morrendo por não morrer morreu por mim.

O ja ngadeiro Jerônimo nos verdes mares bravios a lagado pela s água s morreu por mim.

Em Paris Jorge – e no Chile Baeza Pepe e Girola Efra ín, Napoleão, morreu por mim.

Em Lavra s da Ma ngabeira poeta Dima s Macedo um irmão da Coronela morreu por mim.

Nos ca mpos em f lor da Fra nça Jacques A la in e Charles a f lor-de-lis da espera nça morreu por mim.


L A D A I N H A D O M O RTO Cada cabra do sertão cada matador de engenho cada jagunço da várzea morreu por mim. Uma noite Margarida Olhou meu retrato triste Sa ltou a janela verde Morreu por mim. A a fogada do L eblon o enforcado de Bangu a def unta do Encantado morreu por mim. Um negro em Ca maragibe um João em Tanque d ’A rca uma cigana em Belgrado morreu por mim. Fui pregado em duas cruzes e na cruz do meio um Deus depois de sete pa lavras morreu por mim. Um por um eu os matei um por um me assassinara m f ui sa lvo por cada um cada um morreu por mim. Esta lo a língua na boca a morte no céu da boca tem gosto de vinho e mel vou gozando seu sabor: por cada um vou morrendo vou morrendo devagar. A mén.

Gerardo Mello Mourão Rio de Janeiro, 1998




Obras apresentadas no evento “Orlândia” no Rio de Janeiro em 2001 e 2003 organizado por Marcia X e Ricardo Ventura na ocupação de casas prestes a serem demolidas. PEQUENO MILAGRE

nova orlândia 2001, Rio de Janeiro. Participaram desta performance: Cabelo, Simon Lane, Marieta Dantas, Tunga e Gerardo Mello Mourão, onde foi lido o poema ladainha do morto, de Gerardo Mello Mourão. SE ESSA RUA FOSSE MINHA...

grande orlândia 2003, Rio de Janeiro. Participaram da performance: Tunga e Marieta Dantas.

© Cosac Naify, 2007 concepcão Tunga direção de arte Lilian Zaremba projeto gráfico nucleo i design Irene Peixoto Bernardo Aragão Gabriela Horta

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Camila Saraiva fotos Wilton Montenegro produção gráfica Signorini

fonte Adobe Garamond papel Alta alvura 120 g/m2 impressão Atrativa tiragem 500 Este livro faz parte das comemorações de 10 anos da editora Cosac Naify. Ele compõe a Caixa Tunga, junto com outros cinco livros e um cartaz.


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