“(...) UMA PARTIDA DE XADREZ Vejamos a cena. Os deuses e os homens estão reunidos, como de costume. Zeus está ali, na primeira fila, e encarrega Prometeu de proceder à repartição. Como este vai agir? Traz um grande bovídeo, um touro fantástico, que ele mata e depois retalha. Corta o animal em duas partes, não em três. Cada porção, devidamente preparada por Prometeu, vai determinar a diferença de estatuto entre deuses e homens. Isto é, na fronteira desse corte vai se delinear a fronteira que separa os homens dos deuses. Prometeu age como num sacrifício grego corrente: mata o animal, retira a pele, e depois começa o corte. A primeira operação consiste em descarnar inteiramente os ossos compridos, os dos membros anteriores e posteriores, os ostéa leuká, que são limpos para retirar toda a carne que os envolve. Terminado esse trabalho, Prometeu junta todos os ossos do bicho. Com eles forma um monte, que envolve em uma fina camada de gordura branca e apetitosa. Está pronto o primeiro pacote. Em seguida, prepara o segundo. Neste, Prometeu coloca todas as kréa, as carnes, tudo o que se come. Essa carne comestível é coberta com a pele do touro, e o pacote é posto na gastér; ou seja, no estômago, na barriga do animal, viscosa, feia e desagrádavel de se ver. Assim se apresenta a divisão: de um lado, o sebo apetitoso envolvendo só os ossos nus; de outro, um bucho pouco apetitoso dentro do qual está tudo o que é
bom para comer. Prometeu põe as duas partes na mesa, diante de Zeus. Dependendo da escolha deste, vai-se traçar, de uma ou outra forma a fronteira entre os homens e os deuses. Zeus olha os montinhos e diz: "Ah! Prometeu, tu que és tão esperto, tão ardiloso, fizeste uma divisão muito desigual". Prometeu olha-o com um sorrisinho. Zeus, é claro, percebeu de antemão a astúcia, mas aceita as regras do jogo. Alguém propõe que ele escolha o primeiro, e assim ele faz. Com ar de absoluta satisfação, Zeus pega então a parte mais bonita, o pacote com o apetitoso sebo branco. Todos o olham, ele abre o embrulho e descobre os ossos brancos totalmente descarnados. Tem então um tremendo ataque de raiva contra aquele que quis ludibriá-lo. Termina assim o primeiro ato da história, mas ainda há pelo menos outros dois. Ao fim deste primeiro episódio do relato define-se a forma como os homens entram em relação com os deuses, isto é, pelo sacrifício, tal como o que Prometeu fez ao retalhar o touro. No altar, fora do templo, queimam-se ervas aromáticas, que exalam uma fumaça perfumada. Em seguida, ali são depositados os ossos brancos. A parte dos deuses são os ossos brancos, besuntados de gordura brilhante, que sobe aos céus em forma de fumaça. Os homens, de seu lado, recebem o resto do touro, que vão consumir grelhado ou fervido. Outros pedaços de carne são postos em grandes panelas para cozinhar. Grelhar, ferver, cozinhar: doravante, os homens devem comer a carne dos animais sacrificados e mandar para os deuses a parte
deles, isto é, a fumaça cheirosa. Essa história é surpreendente porque parece indicar que Prometeu conseguiu tapear Zeus, dando aos homens a parte boa do sacrifício. Prometeu oferece aos homens a parte comestível, disfarçada e escondida sob uma aparência incomível, repugnante, e aos deuses, a parte não comestível, escondida e disfarçada sob a aparência de um apetitoso sebo brilhante. Ao fazer essa repartição, ele age como um mentiroso, pois as aparências são falsas. O que é bom está dissimulado sob o feio, e o que é ruim toma o aspecto do que é bela. Mas será que ele deu mesmo aos homens a melhor parte? Ainda aqui, tudo é ambíguo. É verdade que os homens recebem a parte comestível do animal sacrificado, mas é porque os mortais precisam comer. Sua condição é oposta à dos deuses, pois não podem viver sem se alimentar continuamente. Os homens não são auto-suficientes, precisam extrair energia do mundo que os cerca, sem o que acabam morrendo. O que define os humanos é que eles comem o pão e a carne dos sacrificios, e que bebem o vinho dos vinhedos. Os deuses não precisam comer. Não conhecem o pão, nem o vinho, nem a carne dos animais sacrificados. Vivem sem se alimentar, só absorvem pseudo-alimentos, o néctar e a ambrosia, alimentos de imortalidade. Assim, a vitalidade dos deuses é de natureza distinta da humana. Esta é uma subvitalidade, uma subexistencia, uma subforça: uma energia sujeita a eclipses, que precisa ser mantida eternamente. Mal faz um esforço, o ser humano se
sente cansado, esgotado, faminto. Em outras palavras, na partilha feita por Prometeu, a melhor parte é realmente aquela que, sob a aparência mais apetitosa, esconde os ossos descarnados. Na verdade, os ossos, brancos representam o que o animal ou o ser humano possui de verdadeiramente precioso, de não-mortal; os ossos são imputrescíveis, formam a arquitetura do corpo. A carne se desfaz, se decompõe, mas o esqueleto representa o elemento de permanência. O que não é comestível no animal é o que não é mortal, é o imutável, é o que, por conseguinte, mais se aproxima do divino. Aos olhos dos que imaginaram essas histórias, os ossos são tão mais importantes na medida em que contém o tutano, essa substância que para os gregos tinha a ver com o cérebro e também com o sêmen do homem. A medula óssea representa a vitalidade de um animal em sua continuidade, através das gerações, pois garante a fecundidade e a descendência. É sinal de que não somos indivíduos isolados, mas portadores de filhos. Finalmente, o que é oferecido aos deuses por meio dessa mascarada inventada por Prometeu é a vitalidade do animal, ao passo que a carne que os homens recebem não passa de bicho morto. Os homens vão se deliciar com um naco de touro morto; é decisivo o carater de mortalidade com que ficam marcados depois dessa divisão. De agora em diante, os humanos são os mortais, os efêmeros, contrariamente aos deuses, que são os não-mortais. Por essa partilha de alimentos, os homens são marcados com o selo da mortalidade, enquanto os deuses o são com o da
perenidade. E isso, Zeus enxergou muito bem. Se Prometeu tivesse feito simplesmente dois montes, um com os ossos e outro com a carne, então Zeus poderia ter escolhido os ossos e a vida do animal. Mas, como tudo estava falseado pelas apa- rências enganadoras, como a carne estava escondida na gastér, na barriga, e os ossos estavam disfarçados com o sebo brilhante, Zeus viu que Prometeu queria enganá-lo. Portanto, decide castigá-lo. Naturalmente, nesse conflito de artimanhas que se forma entre Zeus e o Titã, cada um tenta tapear o outro, cada um joga contra o outro como numa partida de xadrez, com golpes baixos para desarmar o adversário, dar-lhe um xeque-mate. Afinal, Zeus termina vencendo, embora tenha sido desequilibrado pelo Titã. (…)” O universo, os deuses, o homens Jean-Pierre Vernant Rosa Freire D'Aguiar (tradução) Companhia das Letras, 2005 ISBN: 8571649863, 9788571649866 209 páginas
“(...) UNE PARTIE D’ÉCHECS Voyons la scène. Les dieux et les hommes sont rassemblés comme à l'ordinaire. Zeus est là auxpremières loges et il charge Prométhée de faire la répartition. Comment celui-ci va-t-il procéder? Il amène un grand bovidé, un taureau superbe, qu'il abat puis découpe. De cet animal, il fait deux parts et pas trois. Chacune de ces portions, telle qu'elle a été préparée par Prométhée, va exprimer la différence de statut entre dieux et hommes. C'est-à-dire que, sur la frontière de la découpe, va se dessiner celle qui sépare les hommes des dieux. Comment Prométhée agit-il? Comme on le fait dans le sacrifice ordinaire grec: la bête est abattue, la peau enlevée, puis commence la découpe. En particulier, une première opération consiste à dénuder entièrement les os longs, les os des membres antérieurs et postérieurs, les osteá tá leuka, que l'ondécoupe pour qu'il n'y ait plus de viande dessus. Une fois ce travail accompli, Prométhée rassemble tous les os blancs de la bête. Il en fait une part et enveloppe cette portion d'une mince couche de blanche graisse appétissante. Voilà le premier paquet constitué. Ensuite, il prépare un second paquet. Dans celui-ci, Prométhée place tous les kréa, les chairs, tout ce qui se mange. Cette chair comestible de l'animal est enveloppée dans la peau de la bête. Ce paquet, avec la peau qui englobe toute la nourriture mangeable de la bête, est placé à son tour dans la gastér de l'animal, dans l'estomac, la panse visqueuse, laide, déplaisante à voir du bœuf. Ainsi se présente cette répartition: d'une part, de la blanche graisse appétissante entourant seulement des os blancs, nus, et, d'autre part, une panse peu ragoûtante avec à l'intérieur tout ce qui est bon à manger. Prométhée présent eces deux parts sur la table devant Zeus. Suivant le choix de ce dernier se dessinera la frontière entre les hommes et les dieux. Zeus regarde ces parts et dit: “Ah! Prométhée, toi qui es si malin, si fourbe, tu as fait un partage bien inégal.” Prométhée le regarde avec sur un petit sourire. Zeus, bien sûr, a vu d'avance la ruse, mais il accepte les règles du jeu. On lui propose de choisir le premier, ce qu'il accepte. Avec un air tout à fait satisfait, il prend donc la part la plus belle, le paquet de blanche graisse appétissante. Tout le monde le regarde, il défait le paquet et découvre les os blancs complètement dénudés. Zeus pique alors une rage épouvantable contre celui qui a voulu le duper. Voilà achevé le premier acte de cette histoire qui en comporte au moins trois. Au terme de ce premier épisode du récit se trouve fixée la façon dont les hommes entrent en rapport avec les dieux, par le sacrifice, comme celui que Prométhée a accompli en débitant la bête. Sur l'autel, en dehors du temple, brûlent des aromates, qui dégagent une fumée odorante, puis on y dépose les os blancs. La part des dieux, ce sont les os blancs, enduits de graisse brillante, qui montent vers les cieux sous forme de fumée. Les hommes, eux, reçoivent le reste de la bête, qu'ils vont consommer soit grillé, soit bouilli. Sur de longues aiguilles de fer ou d'airain, ils enfilent des morceaux de
viande, le foie notamment, et d'autres parties intéressantes qu'ils font griller directement sur le feu. D'autres morceaux encore sont mis dans de grandes marmites à bouillir. Rôtir certaines pièces, en bouillir d'autres: les hommes dorénavant doivent manger la viande des animaux sacrifiés et envoient vers les dieux leur part, c'est-àdire la fumée odorante. Cette histoire est étonnante puisqu'elle semble indiquer que Prométhée a pu duper Zeus, en donnant aux hommes la bonne part du sacrifice. Prométhée offre aux hommes la part mangeable, camouflée,cachée sous une apparence immangeable, répugnante, et, aux dieux, la part non comestible, enveloppée, cachée, dissimulée sous l'apparence d'une graisse appétissante et lumineuse. Dans sa répartition, il opère de façon mensongère puisque l'apparence est un faux-semblant. Le bon se dissimule sous le laid et le mauvais emprunte l'aspect du beau. Mais a-t-il réellement donné aux hommes la meilleure part? Là encore, tout est ambigu. Certes, les hommes reçoivent la partie comestible de la bête sacrifiée, mais c'est que les mortels ont besoin de manger. Leur condition s'oppose à celle des dieux, ils ne peuvent vivre sans se nourrir continuellement. Les hommes ne sont pas autosuffisants, il leur faut puiser des ressources d'énergie dans le monde environnant, sans quoi ils dépérissent. Ce qui définit les humains, c'est qu'ils mangent le pain et la viande des sacrifices, et qu'ils boivent le vin de la vigne. Les dieux n'ont pas besoin de manger. Ils ne connaissent ni le pain, ni le vin, ni la chair des bêtes sacrifiées. Ils vivent sans se nourrir, n'absorbent que de pseudo-nourritures, le nectar et l'ambroisie, des nourritures d'immortalité. La vitalité des dieux est donc d'une autre nature que celle des hommes. Celle-ci est une sous-vitalité, une sous-existence, une sous-force: une énergie à éclipse. Il faut perpétuellement l'entretenir. A peine un être humain a-t-il fourni un effort qu'il se sent fatigué, épuisé, affamé. Autrement dit, dans la répartition opérée par Prométhée, la part la meilleure est bien celle qui, sous l'apparence la plus appétissante, cache les os dénudés. En effet, les os blancs représentent ce que l'animal ou l'être humain possède de véritablement précieux, de non mortel; les os sont imputrescibles, ils forment l'architecture du corps. La chair se défait, se décompose, mais le squelette représente l'élément de constance. Ce qui n'est pas mangeable dans la bête, c'est ce qui n'est pas mortel, l'immuable, ce qui, par conséquent, s'approche le plus du divin. Aux yeux de ceux qui ont pensé ces histoires, les os sont d'autant plus importants qu'ils contiennent la moelle, ce liquide qui, pour les Grecs, est en relation avec le cerveau et aussi avec la semence masculine. La moelle figure la vitalité d'un animal dans sa continuité, à travers les générations, elle assure la fécondité et la descendance. Elle est le signe qu'on n'est pas un individu isolé mais porteur d'enfants. Ce qui est finalement offert aux dieux à travers la mascarade qu'invente Prométhée, c'est la vitalité de la bête, alors que ce que reçoivent les hommes, la viande, ce n'est que de la bête morte. Les hommes doivent se repaître d'un morceau
de bête morte; le caractère de mortalité qui les marque parce partage est décisif. Les humains sont dorénavant les mortels, les éphémères, contrairement aux dieux, qui sont les non-mortels. Par cette répartition de la nourriture, les humains sont donc marquésdu sceau de la mortalité, alors que les dieux le sont du sceau de la pérennité. Ce qu'a très bien vu Zeus. Si Prométhée avait fait simplement deux parts, avec d'un côté les os et de l'autre la viande, alors Zeus aurait pu choisir les os et la vie de la bête. Mais, comme tout était faussé par les apparences trompeuses, comme la viande était cachée dans la gaster, dans la panse, et que les os étaient dissimulés sous la graisse lumineuse, Zeus a vu que Prométhée voulait le tromper. Il décide donc de le châtier. Naturellement, dans ce conflit de ruses qui s'institue entre Zeus et le Titan, chacun essaie de berner l'autre, chacun joue contre l'autre comme une partie d'échecs, des coups fourrés pour désarçonner l'adversaire, le mettre échec et mat. Dans ce conflit, Zeus l'emporte finalement, néanmoins il est déséquilibré par les astuces du Titan. (...)” In: L'univers, les dieux, les hommes: récits grecs des origines Jean-Pierre Vernant Paris, Le Seuil, 1999 244 pages ISBN-10: 2702836518, ISBN-13: 978-2702836514