€1,30 | Quinta-feira, 23 março 2017 | Ano XLII #2051 | Diretor: Bruno Filipe Pires | barlavento.pt Autorizado pelos CTT a circular em invólucro fechado de plástico ou papel. Aut. Nº DE00892017RL/CCMS. Pode abrir-se para verificação postal.
AMAL organiza grande mostra da mobilidade P4
Algarve antecipou cartaz de verão na BTL P2
Semanário Regional do Algarve
Viagem artística às casas do medronho
P12
Marcelo em Faro desilude contestatários do petróleo «Há mais hipóteses de chegarmos à lua do que de haver petróleo cá», disse Marcelo Rebelo de Sousa, no sábado, em Faro. O Presidente da República falou, mas desta vez não convenceu os manifestantes que contestam a exploração de hidrocarbonetos no Algarve. Os ativistas vão retaliar com uma greve de fome. P16
Bruno Filipe Pires
Rui Rio sugere que se debata a regionalização Apesar de se ter manifestado contra em 1998, Rui Rio gostava de ver lançado um novo debate sério sobre a regionalização. Foi uma das ideias defendidas pelo ex-autarca do Porto na conferência «Economia e Desenvolvimento Regional» organizada pela ACRAL, em Faro. P5
barlavento.pt | 23mar2017 | Nº2051
12
destaque
Viagem à alquimia de Monchique com encontros artísticos nas destilarias
Bruno Filipe Pires | bruno.pires@barlavento.pt
Chuvisca, mas o último sol do dia teima em romper o céu da serra, na quinta-feira, 16 de março. Um pequeno lume arde desde manhã encostado à parede centenária, no monte das Lameiras. «Quanto o meu padrinho casou com a minha madrinha, que era daqui, mandou logo construir esta adega. Se fosse vivo teria hoje 95 anos. Ele já negociava em aguardente, em Marmelete. Achei um registo num baú, de compras de aguardente em
1920. Tenho alguns registos dos preços, dos sítios, das pessoas que compravam. É engraçado, porque a aguardente era quase toda vendida na zona de Ferragudo, para o pessoal do mar», conta José Paulo Nunes, o proprietário, enquanto enrola um chouriça no papel pardo de uma saca. O lume está à espera para a assar lentamente, debaixo das cinzas. «Levavase daqui para lá em garrafões. Havia uma prima que se zangava com o marido por causa
dele beber muito. E, então, em vez de levar um garrafão, passou a levar um regador. Dizia que lhe tinha caído um gato na cisterna e que precisava de ir buscar água» à do vizinho. As destilarias estão cheias de histórias, de gentes, de aromas. Não admira, por isso, que Giacomo Scalisi, programador e diretor artístico do projeto «Lavrar o Mar – as artes no alto da serra e na costa Vicentina» se tivesse interessado por elas, enquanto palco. «Tivemos uma relação privilegiada com a Associação de Produtores de Aguardente de Medronho (APAGARBE). Em conjunto, começámos a imaginar como é que um espetáculo itinerante poderia funcionar», explica ao «barlavento». A logística não é complicada. «As pessoas chegam às 18h30 ao Heliporto, onde decorre o Festival do Medronho. São divididas em quatro grupos e recebem uma pequena lembrança (um copo de vidro, vulgo mosquito). E seguem em carrinhas para as quatro destilarias que escolhemos na rota de Alferce. Tudo vai funcionar ao ritmo de um jantar. Vamos servir-lhes uma entrada, um prato principal e uma sobremesa». Um tríptico que faz uma analogia ao processo da destila do medronho: cabeça, coração e frouxa (ou cauda). Cada prato é servido numa destilaria diferente, sendo que o público vai rodando «durante três horas e meia. Assim, pode ver as destilarias de uma forma diferente, experimentar um medronho de grande qualidade» e assistir ao espetáculo.
Bruno FIlipe Pires
Talvez ainda haja algarvios, de nascimento ou de coração, que nunca tenham entrado numa destilaria de medronho da serra de Monchique. E se para tornar essa oportunidade mais interessante, houver comida feita por um restaurante local e uma boa história para ouvir?
Como se fazia antigamente Giacomo Scalisi convidou dois escritores para uma residência artística em Monchique. Desta experiência resultam os textos que os interpretes e co-criadores Estêvão Antunes, Leonor Cabral, Rita Rodrigues e João de Brito vão dar vida. Sandro William Junqueira inspirou-se no amor e rivalidade entre famílias, inspirado em de Romeu e Julieta, uma tragicomédia original dividida por dois espaços. Afonso Cruz «imaginou duas histórias que têm a ver com estas gentes. As pessoas que habitam esta serra têm uma força particular. Têm uma forma de estar, um olhar, um quotidiano que é próprio», revela Giacomo Scalisi. José Duarte Nunes vê com bons olhos a ideia de acolher um espetáculo na adega onde faz o medronho. «É interessante tudo o que possa publicitar e fomentar Monchique, e o medronho em particular». Este ano «só fazemos duas caldeiradas por dia. Cada uma leva 8 a 9 horas», por isso, a destila começa de manhã cedo. «Temos um sistema de grupos. Hoje acaba um, amanhã começa outro. Cada grupo apanha uma determinada área da propriedade, como quando viviam aqui famílias, e toma conta do seu medronho até à parte final. Só nessa altura é que nós acertamos contas, como se fazia an-
tigamente. O método é o mesmo», revela. Questionado sobre o que mudou, aponta a incerteza do clima. «Isto é uma produção agrícola, não é industrial. Tem a ver com os anos. O medronho tem o ciclo de um ano, desde a flor até ser colhido. Apanha o calor, o frio, as geadas, os nevoeiros, as intempéries. Apanha tudo. É difícil fazer estimativas de produção. Este é um ano fraco. Nos últimos anos, a nossa média, anda à volta dos 1000 e tal litros, o que é pouco. A área (povoamentos mistos, onde 30 por cento são medronheiros, em 300 hectares na zona de Monchique) que temos é a mesma. Mas as árvores não produzem o que produziam há 40 ou 50 anos». Ainda assim, este produtor e dirigente associativo acha que «o medronho tem futuro desde que haja vontade para isso, por parte dos produtores, das entidades fiscalizadoras, da certificação, e dinamizar a aguardente como um produto artesanal e de qualidade. Tem todo um potencial» que se estende à «venda do fruto em fresco e ao emprego na doçaria. Muita gente com raízes familiares em Monchique voltou a pegar no medronho. Penso que tem futuro. Temos de apostar na qualidade para termos sempre mercado», conclui. «Vocês querem provar a chouricinha?», pergunta.
Sal do Lagarto Márcio Oliveira, 37 anos, também está acordado desde cedo. Já destilou o medronho de outras pessoas, e aguarda agora para fazer o seu, o «Lagarto», apelido da família que dá nome à aguardente. As dornas de madeira já eram antigas no tempo do avô, onde o fruto fermenta. «Apanhamos pequenas quantidades, entre 100 a 150 quilos por dia. Temos de ir a cada árvore muitas vezes, porque o medronho nem sempre está capaz de apanhar», ao longo dos meses de outubro, novembro e dezembro. «O ponto perfeito é quando está vermelho e a semente está preta», explica. Depois, leva dois meses a fermentar. Há quem comece a destilar em fevereiro e março. «Cada caldeirada pode dar entre sete a 13 litros. É uma incógnita», até porque a alquimia nunca foi exata, nem tão pouco ciência. Márcio diz que o importante é que o fruto não oxide. «Leva água, porque senão azeda (nós chamamos arder), a temperatura sobe e estraga tudo». E tem um truque. O fruto é alisado com uma colher de pedreiro e, por cima, leva uma camada de sal, que conserva e não deixa entrar ar. Também nesta destilaria o fogo está vivo. Um cântaro recolhe a aguardente que corre lenta do alambique. Ficará durante os próximos meses em vasilhas de inox, em depósito, antes de seguir para análise químicas.
Nº2051 | 23mar2017 | barlavento.pt
destaque 13
Bruno FIlipe Pires
Fogo no castelo de Aljezur e na Praia de Monte Clérico Em jeito de antevisão, o programador Giacomo Scalisi revela um pouco do que vai ser o festival internacional de artes performativas «Lavrar o Mar», de 19 a 28 de maio, em Monchique e Aljezur. Às quatro destilarias da rota de Alferce, juntar-se-ão outras quatro, em Marmelete, para novos encontros artísticos com o medronho. Mas o ponto mais forte vai ser a presença da companhia francesa Carabosse, que já esteve no Algarve, na inauguração do Teatro Municipal de Portimão (TEMPO), em dezembro de 2008. Vão apresentar pela primeira vez em Portugal «As Instalações de Fogo». «O fogo é o tema do festival. A ideia de trabalhar o fogo num
«Em Monchique, quase todo o medronho é bom para consumo. Temos uma grande diferença por causa do alambique. É um tubo direto» e não uma serpentina. «Conseguimos limpar tudo muito bem, sem deixar resíduos. Não se consegue em alambiques em espiral». É limpo apenas com água e com os restos do medronho já destilado que ficou na caldeira. Márcio garante que tem propriedades detergentes naturais, limpando tudo e servindo de isolante térmico.
Transformação mágica O elenco está agora a trabalhar os textos, a encenação e a cenografia nas destilarias. «Relaciono-me de uma forma muito intrínseca com os espaços e com a memória que guardam em si. Eu já tinha trabalhado com o Giacomo no Teatro das Compras, um projeto nas lojas centenárias de Lisboa. Fiquei super feliz quando ele me chamou para este espetáculo. Estes espaços não são teatros e acho que, de facto, trazer o público aqui, permite, não apenas uma viagem com os textos que vamos dizer, mas também degostar os sabores e um contacto único com cada lugar. É uma mais-valia que os espaços falem por si», considera Leonor Cabral. «Vou fazer um
texto do Afonso Cruz que fala muito sobre as mulheres monchiquenses ou mulheres serranas do Algarve, que por aqui têm vivido num dilema entre o partir e o ficar». Estêvão Antunes «nunca tinha entrado numa destilaria de medronho. Tinha uma ideia sobre o que poderia ser e como poderiam ser as pessoas que lá trabalham. Este espetáculo não é nenhuma transformação mágica, mas há uma (re)perspetiva sobre o que é trabalhar ali, como é que as pessoas são, o que é que sentem, que tipo de dedicação têm. Acho isto muito bonito», considera.
Hotelaria alia-se ao projeto O espetáculo itinerante nas destilarias de medronho acontece nos dias 31 de março, 1 e 2 de abril, às 18h30, sendo o ponto de encontro o Heliporto de Monchique. Os bilhetes já estão à venda na Biblioteca Municipal de Monchique e na Casa «Lavrar o Mar» (na Rua João Dias Mendes) em Aljezur. Custam 10 euros e incluem também uma entrada no Festival do Medronho. Quem quiser poderá pernoitar na vila, já que a hotelaria local asso-
Bruno FIlipe Pires
Giacomo Scalisi , Estêvão Antunes, Rita Rodrigues, João de Brito e Leonor Cabral
ciou-se à iniciativa, pelo que o bilhete dá acesso a descontos especiais nas unidades Miradouro da Serra (alojamento local), Termas de Monchique (spa resort), «Descansa Pernas» (hospedaria) e McDonald Monchique (hotel de cinco estrelas). Giacomo Scalisi aconselha a que os bilhetes sejam adquiridos ainda durante esta semana, pois a lotação é de apenas 240 pessoas. A comida que será servida é típica de Monchique, feita pela cozinha do «Retiro da Bola», mas haverá uma atenção para os vegetarianos. Os interessados podem obter mais informações podem ser solicitadas pelos contactos 282 099 452 e 913 943 034 ou através do e-mail info@lavraromar.pt
Festival do Medronho 2017 com programa ambicioso O espetáculo itinerante nas destilarias do Alferce começa na quinta-feira, 30 de março, um dia antes do início da segunda edição do Festival do Medronho de Monchique, que decorre a 1 e 2 de abril, no Heliporto da vila. Este ano, o festival tem um programa ambicioso. Além do tema principal, haverá conversas sobre várias experiências e projetos de modernização e internacionalização de produtos tradicionais e regionais com vários convidados. Na parte da animação, haverá números de magia com alambiques por Carlos Rivotti; fado com Adriana Marques, Custódio Castelo e o
João Chora; stand up comedy com Sandro Colaço; cantares pelo grupo da Confraria do Medronho; um passeio de TT; demonstrações do processo de destilação ao vivo e a exibição de um documentário. Será também apresentado o projeto «Terra», um trabalho discográfico, de carácter solidário, que surge na sequência dos incêndios de setembro de 2016. Segundo o autarca Rui André, «é uma ideia que junta vários músicos do Algarve. Nós financiamos a gravação do disco» que agora será vendido, com os lucros a reverter para uma ação de reflorestação. Esta apresentação será precedida de um concer-
to com duas bandas participantes: Helena Madeira (voz e harpa) e OrBlua (voz e percussão). O autarca também vai partilhar com os visitantes a coleção pessoal de marcas de aguardente de medronho engarrafadas em Monchique desde os anos 1940 até hoje. São cerca de 120 garrafas que contam histórias de famílias, de processos e de comercialização. O evento é promovido pela Câmara Municipal de Monchique, em parceria com a Associação de Produtores de Aguardente de Medronho (APAGARBE), a Confraria do Medronho e em colaboração com várias entidades. A entrada é livre.
território onde ele é um perigo, é arriscada. As pessoas têm uma relação de amor e ódio. No entanto, o fogo é importante, sem ele não há medronho», explica. Não há, porém, motivo para receios. «O fogo do Carabosse é feito em vasos de terracota, cheios de cera que iluminam a noite». Na praia de Monte Clérico, «vamos ter milhares pendurados em estruturas de ferro. E vamos ter um braseiro que parece quase um rio de fogo
na praia. Tudo se transforma numa instalação artística de uma beleza impressionante», durante três horas. «Vai ser muito forte e estamos à espera de imenso público». O mesmo será feito, embora em menor escala no Castelo de Aljezur. E que mais para Monchique? Claudio Stellato, um italiano radicado na Bélgica, vai trazer «La cosa». «É um espetáculo de novo circo com lenha e acrobacias com madeira», revela.
Cultura, turismo e território Giacomo Scalisi, programador e diretor artístico do projeto «Lavrar o Mar» acredita que estes encontros artísticos nas catedrais do medronho podem ter continuidade no futuro, já que são matéria-prima fértil para a criação cultural. «Em Monchique há 80 desti-
larias. Agora vamos apenas tocar em quatro, nesta primeira fase. Estamos a lançar a ideia de como a arte pode dialogar com o que existe no território e, também, dialogar com um turismo diferente», considera. Giacomo reforça que esta é uma forma de cumprir os obje-
tivos traçados pelo programa «365 Algarve», de «imaginar, em períodos de inverno, convites aos turistas e às pessoas que vivem cá, experienciarem de outras formas o seu próprio território. Esta é uma oportunidade para ver as destilarias de uma forma particular».