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Elas t\u00EAm voz
ÀS VÉSPERAS DE MAIS UM DIA INTERNACIONAL DA MULHER, A LUTA DAS NOSSAS COMPOSITORAS É AUMENTAR SUA PARTICIPAÇÃO NUM MERCADO QUE, QUASE DOIS SÉCULOS DEPOIS DA PIONEIRA CHIQUINHA GONZAGA, CONTINUA DOMINADO PELOS HOMENS
Por Christina Fuscaldo, do Rio
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Há quase um século (99 anos, mais precisamente), elas sacudiram as fábricas russas durante vários dias e, literalmente, deram a vida por melhores condições de trabalho, visibilidade e direitos similares aos dos homens. Neste próximo 8 de março, a luta não é cruenta, mas nem por isso deixa de ser importante. Donas de algumas das vozes mais destacadas da música, as mulheres ainda não têm o mesmo espaço como compositoras e se esforçam para ocupar seu merecido lugar na nossa arte.
Para se ter uma ideia do tamanho desse desafio, apenas 8% dos compositores filiados à UBC são mulheres. Nada que desanime a cantora e compositora Fernanda Takai, líder da banda mineira Pato Fu. Para ela, dona de 44 composições, o desejo de se expressar através de letras musicais cresce à medida que as mulheres conquistam mais posições na sociedade:
“A história do nosso país é muito recente. A das mulheres (no poder) é mais ainda. Lembro que meu pai gostava muito de Dolores Duran e, quando ela morreu, ficou um vazio. Mas acho ótimo que esse espaço esteja se alargando, sendo conquistado... E que haja mais mulheres escrevendo música. É genuíno que, em um país com tão grandes intérpretes, vozes femininas também escrevam para falar diretamente através de uma canção.”
E CHIQUINHA ABRIU ALAS
Foi somente em meados do século XIX que essa história começou. Na época, o piano era um objeto que traduzia claramente um status social numa sociedade escravista e colonizada. Mulheres já tocavam e até criavam canções, mas não se profissionalizavam como musicistas. Nascida em 1847, Chiquinha Gonzaga foi a primeira mulher a se firmar como compositora, tendo começado em 1877 com a polca “Atraente”. Entre mais de duas mil (!) composições, divididas em valsas, polcas, tangos, lundus, maxixes, fados, choros e serenatas, seu maior sucesso ficou marcado também como a primeira marchinha do Brasil. “Ô Abre Alas” foi escrita em 1899, quando Chiquinha já era uma artista consagrada. Enfrentando todo tipo de preconceito, ela conseguiu realizar o sonho de viver de música até sua morte, em 1935, aos 87 anos, e, sem dúvida, abriu alas para cantoras e compositoras, ainda que em velocidade aquém da desejada.
“É muito bonito esse momento em que as mulheres começam a ter o próprio texto, a compor e dizer suas coisas... É muito significativo! Fazer parte disso é uma honra, nem sei se mereço. É uma coisa incrível essa de a mulher definir o que vai dizer. O Brasil é o país de grandes cantoras. Eu comecei a compor porque pensei: 'Tenho que ter meu texto, porque, como intérprete, eu estou concorrendo com muita gente boa'”, lembra a cantora e compositora Ana Carolina, autora de 150 canções.
DOLORES, MAYSA, SUELI: NOVOS ACORDES
Com o fim da produção musical de Chiquinha, afirma-se por aí que foi instaurado um vazio no universo das compositoras, que durou até os anos 1950, quando despontaram Dolores Duran e Maysa. Na década seguinte veio uma das nossas grandes compositoras, ainda em atividade: Sueli Costa. Mas um trabalho de pesquisa quase arqueológico mostra que, nas décadas de 1930 e 1940, três nomes também fizeram parte da história das mulheres na música e acabaram negligenciados pela falta de registros: Bidu Reis, cantora de rádio que produziu baiões, sambas e boleros; Dora Lopes, compositora com mais de 300 canções registradas em disco; e Carmen Miranda, maior símbolo brasileiro no exterior, cuja faceta compositora acabou abafada pela cantora e pela atriz. “Os Hôme Implica Comigo” é uma parceria dela com Pixinguinha que destaca a mulher brasileira como vítima do preconceito, tentando a todo custo viver em uma sociedade dirigida e organizada por eles.
Nessa mesma época, despontou no mundo do samba uma grande mulher, a carioca Ivone Lara, que enfrentou a resistência machista e compôs, em 1947, o enredo da escola Prazer da Serrinha “Nasci Para Sofrer”. Mas sua fama veio somente na década de 60, momento em que outra mulher apareceu compondo, só que defendendo os ritmos nordestinos: ela se chama Anastácia, é pernambucana e foi esposa do acordeonista Dominguinhos.
Também representando o Nordeste, Glória Gadelha venceu em 1970 o terceiro festival de Música Popular da Paraíba com uma composição própria intitulada “O Mundo da Gente”, além de se destacar no programa de Flávio Cavalcanti, na TV Tupi. A cantora, compositora e acordeonista se formou em Medicina e renunciou à carreira para abraçar a música de vez. Casou-se com o maestro Sivuca nos Estados Unidos e criou diversas canções com ele. “Eu sempre estudei música, toquei violão e acordeão... Quando me casei com Sivuca, as circunstâncias me levaram à posição de liderança nos nossos trabalhos. Mas sempre houve dificuldade de aceitação (de uma) mulher no mundo da criação musical, (principalmente pelo) fato de ser companheira de um imenso músico internacional. Até hoje, tendo provado minha competência como compositora, escritora, instrumentista e cantora, as vendas do preconceito continuam obscurecendo as visões das pessoas.”
O assunto, que já começara a ser tratado há 80 anos, continua atual, segundo Jessica Sobhraj, presidente do Women in Music, uma organização sem fins lucrativos fundada nos Estados Unidos em 1985, que vem trabalhando pela regulamentação da mulher nos diversos setores da música no mundo todo. “Enquanto as mulheres de qualquer categoria enfrentam problemas de discriminação, sofrem assédio sexual e são prejudicadas pela desigualdade salarial, as que estão na indústria da música também enfrentam o obstáculo de ter que navegar em nuances desta indústria com acesso limitado a recursos e conhecimentos. As mulheres sempre tiveram que trabalhar duro para estar nos holofotes. Nos últimos anos, temos notado uma quantidade crescente de mulheres tornando-se profissionais bem-sucedidas, e isso é o resultado de décadas de esforços de líderes feministas que vieram antes de nós. Continuar a promover o crescimento de profissionais do sexo feminino em nossa indústria é uma prioridade para nós. Queremos que as mulheres tenham igualdade de acesso às oportunidades”, afirma Jessica.
Depois de Carmen, muita coisa mudou. A mulher ganhou cada vez mais espaço na vida política do país, e as cantoras de rádio tinham aberto os caminhos para as novas gerações ganharem dinheiro na vida artística. Dolores Duran começou como atriz de rádio e, logo, estava cantando em boates, impulsionada por amigos que acreditavam na sua música. Outro expoente feminino da década de 1950, Maysa também foi uma cantora que, para se firmar como autora de suas canções, rompeu barreiras: separou-se, parou de usar o sobrenome de casada e deixou o filho, Jayme Monjardim Matarazzo, para o ex-marido criar.
Sorte dos fãs da artista, que gravou músicas próprias durante duas décadas, até pouco antes de sua morte prematura, aos 40 anos. Com letras românticas, beirando a depressão, Maysa também foi a rainha da dor de cotovelo. E, enquanto ela criava suas canções sobre amor e fossa no Rio, em Juiz de Fora (MG) a carioca Sueli Costa começava a dar os primeiros passos de uma carreira marcada por inúmeros sucessos - tantos que ela sequer sabe o número de músicas que criou ao certo (o Dicionário da MPB, de Ricardo Cravo Albin, elenca 95, grande parte em parceria com Abel Silva, Cacaso e Tite de Lemos).
MODELOS QUASE SEMPRE MASCULINOS
A ausência de referentes femininos era tamanha que Sueli atribui aos amigos músicos mineiros, todos homens, o gosto pelo ofício: “Até meados da adolescência eu tinha muitas amigas. De repente, do nada, fiquei só com amigos homens lá em Juiz de Fora. E coincidiu de todos eles serem ligados à música. Acho que foram esses amigos que me despertaram o desejo de viver da música. Naquele tempo eu só respirava música, falava de música, pensava em música. As únicas mulheres do nosso grupo eram as namoradas e esposas deles. Eu não conhecia nenhuma outra que se envolvesse com isso. Todos se perguntavam: que mulher é essa? (risos).”
Para a grande compositora, até hoje faltam mulheres nesse meio. “Mas as vitórias que já tivemos são muitas. Nossa, como mudou o mundo nesses 50 anos! Hoje, nós, mulheres, estamos entre os melhores profissionais, conquistamos espaço. Outro dia li uma entrevista de uma estrela de Hollywood que reclamava da ausência de bons papéis para as mulheres nos filmes. Se ela soubesse como era no meu tempo… (risos).”
Contemporânea de Sueli, Joyce surgiu tocando violão e escrevendo músicas na primeira pessoa do singular, causando um escândalo logo em sua primeira apresentação, no Festival Internacional da Canção de 1967, com a música “Me Disseram”.
“Joyce é uma compositora incrível e uma violonista maravilhosa. Ela gosta de contar uma história. Um dia um cara disse para ela assim: 'Nossa, você toca tão bem que parece um homem tocando'. Só que ela é uma mulher incrível com M maiúsculo e toca tão bem quanto uma mulher pode tocar. Essas mulheres que persistiram e tiveram atitude perante a sua obra me chamavam muito a atenção. Acho que é um legado que deixaram para a gente”, diz Zélia Duncan, que assina 152 músicas. “Rita Lee e Marina são muito importantes para todos nós da minha geração, que é a mesma de Adriana Calcanhotto e Marisa Monte. Mas, sem dúvida, a Rita é uma desbravadora de uma fase contemporânea muito séria, muito intensa. Ela chegou, e dizendo ainda que é mais macho que muito homem! A Rita inspira a gente a ser autoral na vida.”
ROCK ‘N’ ROLL. GÊNERO: FEMININO
Na década de 1960, grande parte das sugestões, das ideias e das inovações na música dos Mutantes eram propostas por Rita Lee, que levou o bom humor de suas sacadas às canções que compôs em carreira solo, após sair da banda, em 1972. Em parceria com seu segundo marido, Roberto de Carvalho, escreveu seus maiores sucessos. Rita Lee é considerada a primeira compositora de rock do Brasil e virou referência para diversas mulheres que seguiram a carreira artística.
“Eu gostava muito de pegar o violão e dublar, fingir que estava tocando. Um dia minha mãe me flagrou, decidiu me mostrar os três acordes que ela sabia e me ensinou a tocar 'Ovelha Negra'. Com esses três acordes, eu consegui fazer um monte de músicas”, conta Tulipa Ruiz, que demorou a se assumir como profissional da música, mas já acumula 59 composições: “Acho que só consegui me relacionar com a palavra cantora quando comecei a fazer minhas músicas. E não foi fácil, porque sempre fui apaixonada por cantoras e compositoras. Vejo que, mais recentemente, principalmente, é que as mulheres começaram a compor sem medo. Elas têm arriscado mais.”
A segurança e a autoestima são mesmo conquistas recentes para essas mulheres que exalam música. Expoente da década de 1980, década em que integrou, como backing vocal, a banda Blitz, Fernanda Abreu é outra que, apesar de tantos anos de sucesso como cantora e compositora em carreira solo, não assume até hoje o que ela realmente é. “Não me sinto nem cantora nem compositora… Eu me sinto mais uma comunicadora! Não tenho essa voz toda, como Elis Regina e Alcione, e tampouco me sinto compositora como Chico Buarque e Djavan. Acho que o que tenho de mais interessante é que, no meu processo de construção, a estética é parte fundamental da minha linguagem musical. Isso traz uma singularidade ao meu trabalho dentro da MPB e acredito ser esse o diferencial da minha música e das minhas composições”, afirma Fernanda Abreu, 68 composições.
ELAS AGORA PASSAM A INSPIRAR
Isabella Taviani deixa que digam, que pensem, que falem. Ela assume o que faz de melhor: cantar suas composições. Talvez pelo fato de ter pego o embalo dessas mulheres maravilhosas, vendo-as alcançarem seus objetivos sem saber o esforço feito por elas, começou a carreira se sentindo menos cobrada. Hoje tem 125 músicas de sua autoria. “Preconceito por eu ser mulher na música nunca existiu. Acho que foi até uma vantagem… Quando eu era adolescente, meus ídolos, Elis Regina, Simone e Maria Bethânia, não compunham. Mas eu me encantei também por Adriana Calcanhotto, Fátima Guedes, Sueli Costa, e aquilo foi fazendo parte da rotina da MPB. As mulheres não mais só tocavam o coração dos outros, elas também começaram a pegar seus violões para compor. Aí virou quase que uma consequência: se você é cantora, então precisa compor material inédito. Acho que me senti obrigada a compor”, diz Taviani.
Seguras ou não, respeitadas ou impostas, todas elas realizaram o sonho de viver do que amam e dão orgulho ao Brasil por representar o país por um de seus melhores bens: a música. Ainda sem regulamentação, a profissão dessas mulheres promete ser pauta de muitas discussões para que, cada vez mais, as compositoras tenham seu lugar garantido na sociedade e que, no futuro, não haja necessidade de dúvida quanto à flexão do gênero na hora de escrever na ficha do hotel: “Profissão: Compositora”.
“Não faço a menor ideia de onde eu estou, em que lugar eu estou... O meu trabalho é fazer, e eu estou tentando fazer desesperadamente há 32 anos. O dia em que tiver a ilusão de que achei alguma coisa, tudo vai ficar sem graça, e eu não vou ter mais nada para falar. Tenho plena consciência de que, agora que eu espero fazer 50 anos, estou pronta para aprender”, conclui Zélia Duncan.