Título Egitânia Sciencia Director Fernando Sá Neves dos Santos Conselho Editorial Jorge Manuel Mendes, Fernando Sá Neves dos Santos, Helder Sequeira, Manuel Carvalho Prata, Constantino Mendes Rei Comissão Científica Alberto Trindade Martinho, Amândio Pereira Baía, Ana Maria de Morais Caldas Antão, Ana Maria Jorge, Ascensão Maria Martins Braga, Carlos Alberto Correia Carreto, Constantino Mendes Rei, Ezequiel Martins Carrondo, Fernanda Maria Trindade Lopes, Fernando Carmino da Silva Marques, Fernando Augusto de Sá Neves dos Santos, Helena Maria da Silva Santana, Joaquim João Quadrado Gil, José Gonçalves Peres Monteiro, Luísa Maria Lucas Queiroz de Campos, Manuel Alberto Carvalho Prata, Manuel António Brites Salgado, Maria Clara dos Santos Pinto Silveira, Maria de Fátima dos Santos David, Maria Manuela Santos Natário, Maria Regina Gomes Gouveia, Maria Rosário da Silva Santana, Pedro Miguel dos Santos Melo Rodrigues, Teresa Dias de Paiva, Samuel Walter Best. Revisão Técnica Ascensão Maria Martins Braga, Carlos Carreto, Elisabete Mendes Duarte, Fernando Augusto D. Oudinot Larcher Nunes, José Brites Ferreira, José Filomeno Martins Raimundo, José Gonçalves Peres Monteiro, José Reinas dos Santos André, Luís Miguel Oliveira de Barros Cardoso, Luísa Maria Lucas Queiroz Campos, Maria Madalena G.B. Pessoa Oudinot Larcher, Maria Luísa Vila-Cova Tender Barahona Corrêa, Manuel Alberto Carvalho Prata, Manuel António Brites Salgado, Maria do Rosário Silva Santana. Revisão de provas Maria del Carmen Ribeiro, Carlos Reinas Caldeira Propriedade Instituto Politécnico da Guarda (IPG) Av. Dr. Francisco Sá Carneiro nº 50 * 6300-559 Guarda Contactos Telf. 271 220 111 * Fax 271 222 690 Email: cap@ipg.pt http://www.ipg.pt/revistaipg/ Composição gráfica M Comunicação Impressão e Acabamentos Serviço de Reprografia e Artes Gráficas do IPG Depósito Legal nº 260795/07 ISBN 1646-8848 Vol. III Novembro de 2008 Tiragem 1 000 exemplares Proibida a reprodução total ou parcial desta Revista sem autorização expressa da Direcção de “Egitania Sciencia”. Todos os direitos reservados. Apoio a este número: Unidade de Investigação para o Desenvolvimento do Interior (UDI/IPG)
Nota: Os artigos são da responsabilidade dos autores, não reflectindo necessariamente os pontos de vista da direcção ou dos revisores.
5
ÍNDICE [9]
AS “SÚMULAS LOGICAIS” DE PEDRO HISPANO PORTUCALENSE J. Pinharanda Gomes
[33]
A CIDADANIA COMO A NOVA PRIORIDADE DA EDUCAÇÃO Ilda Freire Ribeiro
[47]
AVALIAÇÃO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA COM VISTA À PROMOÇÃO DA CONVIVÊNCIA SOCIAL ENTRE AS CRIANÇAS Maria José D. Branquinho e Maria José Branquinho
[61]
A PEDAGOGIA IDEAL DA ARETÊ NA MORTE DE SÓCRATES Paulo Moutinho Barroso
[75]
SOBRE O CANTO CISTERCIENSE DAS MONJAS DO ANTIGO MOSTEIRO DE S. BERNARDO EM PORTALEGRE: UMA ANÁLISE MUSICAL Susana Maria Maia Porto
[91]
CORES E SONS Helena Maria da Silva Santana e Maria do Rosário da Silva Santana
[109]
BRASIL: A CONSTRUÇÃO DE UM CAPITALISMO SEM RISCO, 1930-1985 José Carlos Alexandre
[135]
PROBLEMÁTICA E DIMENSÕES DO PLANEAMENTO ESTRATÉGICO António José Gonçalves Fernandes e Maria Isabel Barreiro Ribeiro
[151]
O SECTOR COOPERATIVO DA VINHA E DO VINHO NA UNIÃO EUROPEIA: REFERÊNCIA ESPECIAL A ESPANHA Amparo Mélian Navarro, Genoveva Millán Vasquez de la Torre e Armando Mateus Ferreira
[171]
UM ESTUDO DA AFLUÊNCIA TURÍSTICA EM PORTUGAL E ESPANHA Ana Rita Garcia e Sara Morgado Nunes
[191]
ADDITIVE FABRICATION OF MEDICAL MODELS USING THREE-DIMENSIONAL PRINTING Fernando Cruz
7
Novos horizontes
O presente número da Revista Egitania Sciencia surge num novo quadro estatutário do Instituto Politécnico da Guarda. Os novos estatutos assumem, como já tive a oportunidade de expressar, uma importância relevante para o IPG. O novo sistema de órgãos, a clarificação de funções das diversas unidades orgânicas, a nova organização dos serviços do Instituto permitem que este se modernize e seja mais ágil na sua capacidade de resposta, interna e externamente. Esta revista, pelas suas características e pelos seus objectivos – já sublinhados nas anteriores edições – continuará a ter um eminente papel a nível pedagógico, científico e cultural; apraz-nos registar o crescente interesse que Egitania Sciencia tem vindo a despertar, quer no seio das Escolas que integram o Politécnico da Guarda, quer junto de outros estabelecimentos de ensino superior. Daí que continuemos empenhados em consolidar, cada vez mais, esta nossa publicação e incentivar novas colaborações. Jorge Manuel Mendes Presidente do IPG
9
AS “SÚMULAS LOGICAIS” DE PEDRO HISPANO PORTUGALENSE LOGICAL TREATISE OF PEDRO HISPANO PORTUCALENSE J. Pinharanda Gomes* (pinharandagomes@gmail.com)
RESUMO
Neste artigo assinala-se a importância das “Súmulas Logicais” de Pedro Hispano, o Papa João XXI. Palavras-chave: Pedro Hispano, lógica, escrita.
ABSTRACT
This article emphasizes the importance of the Summmulae Logicales by Pedro Hispano, otherwise known as Pope John XXI. Keywords: Pedro Hispano, logical, writing.
* Pensador e Investigador. Membro da Academia Portuguesa de História, Sociedade da Língua Portuguesa, Academia Luso-Brasileira de Filosofia e Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro.
Nota: Desenvolvimento da conferência proferida na Secção de História da Medicina da Sociedade de Geografia, Lxª., 18.4.2002.
10
1. INTRODUÇÃO “Vir Philosophicus in omni scientiae eruditus” (fig.1), segundo Fr. Juan Gil de Zamora1 no De Preconiis Hispaniae (1278), Pedro Hispano aparece erguido ao Paraíso, na Divina Comédia (Canto XII, 134-135), segundo a inteligência e a visão do incomparável Dante: “Ugo da San Vittore è qui cou elli, e Pietro Mangiadore e Pietro Ispano, lo qual giú luce in dodici libelli” [...] “Hugo de S. Vítor está aqui com eles, E Pedro Comestor e Pedro Hispano, Que agora é famoso por doze tratados seus”. Essa dúzia de tratados que deu a Pedro Hispano um lugar na corte celestial, onde a verdade se vê rosto a rosto, sem interposição especulativa, correu sob os mais diversos títulos ou designações, cada professor que deles se serviu lhes dando um nome conforme o gosto:
Summulae Logicales, Logicalia, Parvorum Logicalium Liber, Libellus ou Compendium Logicae, Logicalia duodecim Tractatuum, Summulae Logicae, Scriptum Summularum, Tractatus duodecím de Dialectica, Textus Summularum, Textus Septem Tractatuum, Copulata omnium Tractatuum, Thesaurus Sophismatum, etc., tudo isso para identificar o
que foi o compêndio de referência no estudo da arte de procurar a verdade, durante toda a Idade Média, e ainda depois dela, as Sumulas Logicais de Pedro Hispano2, também nominadas Compilationes 1 Cit. por Mário Martins, “Pedro Hispano, um Mestre da arte de pensar”, in Memórias da Academia das Ciências de Lisboa. Classe de Letras, Tomo XVIII, Lxª., 1977, p. 182. 2 Consideramos fora de causa as três questões durante séculos debatidas: a nacionalidade portuguesa de Pedro Hispano; a sua identificação com Pedro Julião, o Papa João XXI; e a sua autoria das Sumas Logicais. Cf. T. Carreras y Artau/ J. Carreras y Artau, Historia de la Filosofia Española, Filosofia Cristiana de los Siglos XIII a XV. Tomo I, Madrid, 1939, pp. 101-144. A bibliografia acerca de Pedro Hispano é vastíssima. Cf. “Bibliografia sobre Pedro Hispano”, in Rev. Port. de Fil.., Tomo VIII, 1952, pp. 340/343; J.M. da Cruz Pontes, in Logos, Enc. LusoBrasileira de Filosofia, vol. 4, cols. 26-29. Estudos de fundo são, de Cruz Pontes, Pedro Hispano Portugalense e as Controvérsias Doutrinais do Século XII, Coimbra, 1964; e “Pedro Hispano. No 675º Aniversário da sua morte”, in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo VIII, fasc. 3, Braga, 1952, com textos de vários autores. Ainda, de Cruz Pontes, Questões pendentes acera de P.H. Portugalense, Braga, 1990.
11
Magistri Petri Hispani ou Tractatus Magistri Petri Hispani, conforme à nomenclatura de muitos dos seus comentadores, que, por vezes, chamam a Pedro Hispano, por antonomásia, o Summulator, o Sumulador.
Figura 1: Livro Vir Philosophicus in omni scientiae eruditus
O Tratado de Lógica substituiu, durante séculos, a lição directa de Aristóteles, lição essa muito complexa para a iniciação na arte dialéctica, pelo que, desde Porfírio, houve a tendência para facilitar o acesso ao sistema aristotélico de Lógica, da qual ele, Aristóteles, foi deveras o inventor, ao elaborar os seis livros do Organon, uma
12
sistematização da gramática grega em ordem ao rigor do pensamento e do conhecimento das categorias, dos conceitos e dos juízos. Os mestres escolásticos tinham experiência da dificuldade de acesso à leitura do texto aristotélico que pouco a pouco ia sendo vertido para latim, de modo que, no século XIII, a logica vetus, compreendendo apenas alguns dos livros do Organon (Categorias, Interpretação ou Perihermeneias, Elencos Sofísticos) já herdada das lições de Porfírio e de Boécio, dava lugar à logica nova, abrangendo os demais livros (Analíticos Anteriores, Posteriores e Tópicos)3. Em todo o caso, nas escolas prevalecia, como prevalece, o sentido prático, pelo que se tendia à elaboração de compêndios, ou de manuais, quantas vezes resultantes dos apontamentos que os alunos tomavam, criando a tradição das sabendas, ou sebentas. As Summulae Logicales preencheram essa necessidade, a partir delas se geraram uma longa cadeia de cópias manuscritas, das quais temos notícias de mais de trezentas, enquanto não houve arte de impressão. Desde a primeira edição impressa (Colónia, 1480), em 1639, já se contavam noventa edições, elaboradas nas mais importantes cidades europeias, para além das traduções para as língua grega e hebraica. Houve mesmo professores que se notabilizaram pela sua qualidade de comentadores do tratado, João Ferreira tendo identificado 65, desde Roberto Ânglico, no século XIII, aos comentadores do século XVI, havendo ideia de que existem outros, dos quais falecem adequadas notícias4. Se é verdade que, mesmo depois do século XVII, o manual continuou a ser lido, deverá tê-lo sido menos, porquanto as novas edições se não sucederam. Elas reapareceram, com novos comentadores, que, na obra, descobriram motivos e razões para a fundamentação de novas ideias e de teses na área da linguistica, da filologia e da lógica. Citemos as edições de J.P. Mullally (The Summulae Logicales of Peter of Spain, Indiana, 1945); a de Iuri M. Bochenski (Petri Hispani Summulae Logicales, quas a manu scriptu Reg. Lat. 1205 (Turim, 1947, com introdução de M. H. Laurent); a do Traktaty
3
P.Gomes, Aristotelismo, in Dicionário da História da Igreja em Portugal, Vol. I, Lxª., 1980, pp.501-513. 4 João Ferreira, “As Súmulas Logicais de Pedro Hispano e os seus Comentadores”, in Colectânea de Estudos, Vol. III, 2ª série, 1952; Cassiano Abranches, “Pedro Hispano e as Sumulae Logicales”, in Rev. Port. de Filosofia, Vol. VIII, 1952, pp. 248-251. Um inventário consta também de J. M. Queiroz Veloso, Bibliografia Geral Portuguesa. Vol. II, século XV. Lxª., Imp. Nacional, 1947, pp. 167-294.
13
Logiczne, de Varsóvia (1969); e, finalmente a de L. M. Rijk, (Tractatus, called afterwards Summule Logicales, Assen, 1972)5.
Os elementos disponíveis apontam para que Pedro Julião tenha confeccionado a obra na época em que viveu em Paris, portanto ainda novo, mas está fora de causa a sua iniciação portuguesa. Foi Prior da freguesia de Santo André de Mafra, participou nas Cortes de Leiria (1254) e teve protagonismo em diversas questões de jurisdição eclesiástica entre 1260 e 1263. Num bem documentado estudo, Francisco da Gama Caeiro apresentou oito documentos inéditos relativos à actuação de Pedro Hispano em Lisboa, documentos esses que consolidaram anteriores pareceres sobre as origens culturais portuguesas do papa João XXI6. Cabe-lhe a glória de ter sido o primeiro que, nas Espanhas, se dedicou à composição de Lógica, ao modo de Aristóteles, que foi também o primeiro, na Grécia7.
5 Barbosa Machado, na Biblioteca Lusitana, Tomo II, 1748, nova ed. de Coimbra, 1966, pp. 559-562, ainda mencionou dez edições, a saber: 1487 (de Versório Parisiense), 1508, 1509, 1516, 1520, 1572, 1573, 1586, 1592 e 1593 (com a Parva Logicalia, edição de Veneza). Na Biblioteca Nacional de Lisboa identificámos as seguintes edições: Paris, 1508, Lugduni, 1512, Paris, 1515 (In Primum Tractatuum Summularum Magistri Petri Hispani, com o comentário de Juan de Celaya Valentini); Augsburgo, 1517 (In Summulas P.H. Explanatio, com o comentário do teólogo Johann Eck); Alcalá de Henares, 1523 (Primus Tractatus Summularum [...] cum Tractatus Relationum, com comentário de Fernando de Enginas; Veneza, 1593; e a edição de Rijk, Assen, 1972. Não há manuscritos originais, mas existem as Summulae cum Commento, reprodução fotográfica do exemplar manuscrito da Biblioteca Colombina da Catedral de Sevilha, (quota 7.3.28), que é uma cópia feita pelo Padre Rafael de Salas. Esse manuscrito foi doado por Fernando Colombo (filho de Cristóvão) à Catedral sevilhana. A reprodução fotográfica da B. N. Lxª. foi mandada fazer, e oferecida, em 1951, pela Junta Provincial a Estremadura. 6 F. da Gama Caeiro, Novos Elementos sobre Pedro Hispano. Contribuição para o estudo da sua Biografia. Ed. da Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, 1966. Cf. recensão no nosso Pensamento Português, Vol. I, Braga, 1969, pp. 94-96. Cf. outrossim: João Ferreira, O Papa João XXI e o Priorado de Santo André de Mafra, Porto, 1954, e os estudos de Marcelo Caetano, Artur Moreira de Sá e J. M. da Cruz Pontes, entre outros. Uma sugestiva síntese do pensamento médico de Pedro Hispano é a de Cruz Pontes, in Dicionário de Bioética, S. Paulo, 2001. 7 Nicolau António, Bibliotheca Vetera Hispanica, Lib. 8, cap. 5. Torna-se incompreensível a omissão da obra na História da Lógica de D. Fr. Manuel do Cenáculo, do séc. XVIII.
14
2. ESTRUTURA E RESUMO Há muito diferentes textos das Summulae, nem todos com idêntica sequência estrutural, pelo que consideramos a mais abrangente (fig.2). Tractatus Primus: De Introductionibus ou De Nuntiatione (equivalente ao Perihermeneias, ou Da Interpretação, de Aristóteles). Tractatus Secundus: De Predicabilibus, ou De Quinque Universalibus (equivalente à Isagoge, de Porfírio). Tractatus Tertius: De Predicamentis (equivalente ao livro Categorias, ou Dos Predicamentos, de Aristóteles). Tractatus Quartus: De Syllogismo simpliciter (equivalente ao livro Analíticos Anteriores, do Organon, de Aristóteles). Tractatus Quintus: De Locis Dialecticis (equivalente ao livro dos Tópicos do Organon, de Aristóteles). Tractatus Sextus: De Suppositionibus (sem equivalente no corpus aristotelicum). É geralmente considerado posterior no tempo e na ordem ao Tratado sétimo. Tractatus Septimus: De Fallaciis (equivalente ao livro Elencos Sofísticos do Organon de Aristóteles).
Tractatus octavus: De Relativis Tractatus Nonus: De Ampliationibus Tractatus decimus: De Appellationibus Tractatus decimus primus: De Restrictionibus Tractatus decimus secundus: De Distributionibus8. Nas edições que ordenam o compêndio em sete tratados, por motivos de disciplina, seja temática, seja didáctica, os cinco últimos tratados costumam ser agrupados como se fossem apenas um, incorporando o tema “de parvis logicalibus” (os pequenos lógicos), por sua vez ordenados em sete capítulos acerca das propriedades dos termos, de onde a este conjunto de capítulos se dar o nome de “septem partiales tractatulus”, sobre a suposição, os relativos, as apelações, as ampliações, as restrições e, por fim, o excelente tratado
8
Lopes Praça, na História da Filosofia em Portugal, 3ª ed., 1988, pp. 8586, noticia ter visto (cerca de 1868) duas edições, ambas com as interpretações de Versório. Uma contendo doze tratados, mas incompleta, e sem data; outra de 1513, contendo sete com um apêndice – o Parvorum Logicalium. Versório (fal. 1485) foi o principal comentador, do ponto de vista da lógica nova, sendo autor de: Super Omnes Libros Novae Logicae, e Quaestiones super veteram artem.
15
Dictionibus Syncategorematicis, que alguns especialistas consideram uma obra independente9.
Figura 2: Rosto das Súmulas, edição Paris, 1508 9
Sequências e sinopses podem ser vistas e conferidas, só com referência a autores portugueses, in: J.J. Lopes Praça, História da Filosofia em Portugal (1868), 3ª ed., Lxª., 1988; pp. 85-90; J.J. Lousada de Magalhães, Silvestre Pinheiro Ferreira. Sein Leben und seine Philosophie, Bona, 1881, p. 7, inspirado na obra cit. de Lopes Praça; L. Thomas, Contribuição para a História da Filosofia Portuguesa, trad. de António José Brandão, Lxª., 1944, pp. 79-102; Cassiano Abranches, “Pedro Hispano e as ‘Summulae Logicales’, in Rev. Port. de Filosofia, Tomo VIII, 1952, pp. 242-259; João Ferreira, As Súmulas Logicais de Pedro Hispano e os seus Comentadores, in Colectânea de Estudos, 2ª série, Ano III, nº 3; J.M. da Cruz Pontes, in Logos, Enciclopédia LusoBrasileira de Filosofia, vol. 4, Lxª., 1992, cols. 18-29; e José Francisco Meirinhos, “Pedro Hispano e as Summulae Logicales”, in História do Pensamento Filosófico Português, Vol. I. Idade Média, Lxª., 1999, pp. 331-376, largamente apoiado na edição de L.M. de Rijk, sendo esta sinopse a mais cuidada que já lemos em língua portuguesa.
16
O tema do primeiro tratado, “De Introductionibus”, também dito “De Nuntiatoni”, constitui uma iniciação à Dialéctica, definida como a arte que tem a via para os princípios de qualquer método, tendo prioridade na aquisição das ciências. Fundamenta a definição por via filosófica – dialéctica procede de dia (que supõe duo, duas vias) e logos (ou o discurso, o sermo ou lexis, razão), pelo que a arte dialéctica requer o diálogo, opponentis et respondentis disputando, quer dizer, a disputa, a discussão, a qual nunca será compreensível, nem possível, caso os actores da discussão não disponham de um perfeito conhecimento das componentes do discurso que ele enumera e define uma a uma: o som, a voz, o nome, o verbo, a oração, e a proposição. O aprendiz é conduzido do mais simples para o mais complexo, quer dizer, do som ou significante de uma palavra, oral ou escrita, para o seu enquadramento numa proposição. A proposição é um grau mais complexo do discurso, por equivaler à formulação da hipótese, ou mesmo da tese, por isso que a proposição absorve a maior parte deste tratado. Considera dois modos: a proposição categórica e a proposição hipotética. À proposição categórica também chama universal (todos os homens correm), mas considera-a tripartida: particular, indefinida e singular. Fundamenta esta divisão nas perguntas a que o discurso terá de responder: que? (ou essência da proposição), qualis? (afirmativa ou negativa), quanta? (quer dizer: se a proposição abrange o todo ou universal, o particular indefinido, ou o singular). A proposição categórica ou universal como que se acha implicitamente demonstrada. Quanto à proposição hipotética, ela nasce da presença de duas proposições categóricas principais, coordenadas uma à outra – si homo currit, homo movetur, por exemplo, pelo que importa saber se uma é necessária à outra, ou se são diferentes e desconexas. Correr é mover, mas mover não é necessariamente correr. A teoria do modo serve à determinação do nome, sendo o lugar específico do adjectivo, pois o adjectivo qualifica ou determina o nome essencial, tal como o advérbio determina a acção do verbo. O segundo tratado apresenta o tema dos Predicáveis, glosando a lição de Porfírio na Isagoge. Define o que deve entender-se por predicável – Dicitur predicabile quod de pluribus predicatur, ou seja, os nomes ou universais que por sua natureza são dizíveis ou predicáveis de vários sujeitos. Procede depois à sua enumeração e definição: o género, a espécie, a diferença, o próprio, o acidente, (quinque voce, as cinco vozes que Porfírio interpretou no livro dos Tópicos de Aristóteles) e procede à respectiva concatenação, quer dizer, atribuir um predicado a um sujeito, por exemplo, Sortes é homem, Platão é homem; ora
17
sabemos que Sortes é animal, racional e mortal; de onde, se dizemos que Platão é homem, implicamos que Platão é animal, racional e mortal. Na categoria dos predicáveis denominativos inclui as derivações ou composições, que, tendo uma origem, geram diferenças, por exemplo, gramático de gramática e fortaleza, de forte (tabela 1, figura 3).
Figura 3: Árvore de Porfírio
“A substância é em si mesma um género; abaixo dela acha-se o corpo; abaixo do corpo o corpo animado; abaixo do corpo animado, o animal; abaixo do animal, o animal racional; abaixo do animal racional, o homem; abaixo do homem, Sócrates e Platão, e os homens particulares. De todos estes termos, substância é o mais geral e é somente género; homem é a ínfima espécie, sendo somente espécie; o corpo é espécie de substância e género de corpo animado; quanto a corpo animado, é espécie de corpo e género de animal; por sua vez, animal é espécie de corpo animado e género de animal racional; animal racional é espécie de animal e género de homem; homem é espécie de animal racional, mas já não é género10.
10
Porfírio, Isagoge, trad. port. de P. Gomes, Lxª., 1994, pp. 61-62.
18
Tabela 1: Árvore de Porfírio Género Supremo SUBSTANTIA Corporea
Incorporea CORPUS
Animatum
Inanimatum ANIMATUM CORPUS
Sensibile
Insensibile ANIMAL
Rationale
Irrationale RATIONALE ANIMALE
Mortale
Immortale HOMO
Sortes
Plato ESSÊNCA INFIMA
Se for lícito simplificar, diremos que os dois primeiros tratados constituem uma iniciação à Gramática, quer dizer, ao perfeito domínio das palavras, para que, conhecidas as pedras da construção, se possa iniciar o levantamento da casa, o discurso lógico ou dialéctico propriamente dito, sendo o aprendiz já preparado para atravessar sem receio os perigos das homonímias ou equívocos, das sinonímias e das paronímias, ao modo de como Aristóteles ensina no inicio das Categorias. As categorias ou predicamentos são o tema do terceiro tratado, e, como na parte final do segundo tratado, com relevo para os três últimos parágrafos, Pedro Hispano versa já as categorias, autores há que admitem este terceiro tratado como sendo parte integrante do segundo. Em todo o caso, há distinção entre a ideia de predicáveis e a ideia de predicamentos, pois predicável é o modo como o predicado se diz do sujeito, enquanto predicamento é a própria categoria, melhor, o modo como o predicável se diz do próprio ser do sujeito. A escolástica medieval distinguiu entre os dois termos, pelo que, na tradição das Escolas, ao livro das Categorias se chamou também Predicamenta, ou Predicamentos. O terceiro tratado constitui, de resto, uma exposição das Categorias ou Predicamentos de Aristóteles, que Pedro Hispano segue a par e passo. Na definição predicamental, Aristóteles distingue os nomes segundo são equívocos, unívocos ou denominativos. São equívocos, ou homónimos, os nomes que só têm de comum o nome, mas essência diferente; por ex., animal tanto se diz de um animal propriamente dito (um cão) como desse cão representado numa
19
pintura, mas a definição de cada um dos termos é também diferente. Unívocos ou sinónimos diz-se dos nomes que têm o mesmo nome e identidade de ser, ou de essência; por ex., animal tanto se diz de cão como de homem, quer dizer, um único nome serve a seres diferentes. Denominativos ou parónimos são os nomes derivados por flexão verbal. Os nomes derivam uns dos outros, mas não se confundem, por serem diferentes realidades. Pedro Hispano exemplifica com os nomes gramática/gramaticus e albus/albedo. A seguir, expõe os oito predicamentos possíveis, ou categorias: a essência, a quantidade, a qualidade, a relação, o lugar, o tempo, o estado, e o hábito. São estes os oito modos ou categorias que atribui ao magistério de Aristóteles (octo modos essendi in distinguiti Aristotelis), embora mencione o facto de Boécio ter distinguido nove, e embora a tabela aristotélica contenha dez – relativamente aos oito de Hispano, mais as categorias de acção e de paixão, que são de considerar. Uma definição é tanto mais perfeita quanto mais determinada, ou seja, quantas mais categorias incluir, se possível as dez. Por exemplo, o dito “Este é um homem” será obviamente pobre se comparado com o dito “Este é um homem, alto, branco, gordo, magro, operário das obras, que veio do Leste”. etc. A definição deve ser afirmativa e completa até ao grau possível, ou disponível. Procede depois à lição sobre a essência ou substância, que considera em duas acepções, a prima e a secunda: a prima nunca se predica de um sujeito, ela é em si mesma, quer dizer, de um determinado cavalo não se pode predicar toda a essência prima; a secunda diz-se tanto do género como da espécie. A lição desenvolvese no tratamento da comunidade e propriedade da substância, da quantidade, da qualidade, da acção, do prius, ou anterior no tempo, do simul ou análogo, do motu ou movimento (geração, corrupção, aumento, diminuição, alteração e deslocação) e termina com a exegese do verbo ter (habere), dizível segundo multis modis, segundo vários modos: ter alguma qualidade, disciplina ou virtude; ter alguma quantidade, magnitude ou grandeza; ter algum hábito; ter membros; ter alegria (em vez de estar alegre) ter alguma coisa (posse ou possessão, casa ou terra, domum aut agrum) e ter mulher. Respeitando Aristóteles, tem o cuidado de sublinhar que o emprego do verbo ter, na expressão ter mulher, “est alienissimus”, é estranho, pois mulher não se tem, vivese com ela (Arist., Cat., 15 b). Simplificando: o terceiro tratado é uma lição sobre as Categorias de Aristóteles, se bem que reduzidas a oito. O quarto tratado versa o Silogismo. Não está ainda claro se, neste tratado, Pedro Hispano segue os Analíticos Anteriores de
20
Aristóteles directamente, se, como o texto sugere, a lição de Boécio, da qual se encontra mais perto, ainda que as definições de proposição e de termo sejam extraídas palavra a palavra do texto aristotélico (Analíticos Anteriores, 24 a). Este tratado é porventura o mais complexo, dada a natureza e a extensão do tema. Inicia-se com duas definições de fundo: o que seja a proposição – a oração que afirma ou nega um predicado acerca de um determinado sujeito; e silogismo definido como a locução em que, dadas certas premissas, delas resulta necessariamente algo distinto delas, ou mediante a presença das quais se obtém um efeito:
Omne animal est substantia; Omnis homo est animal; ergo: Omnis homo est substantia. Distingue o modo e a figura do silogismo, e considera apenas três figuras (tabela 4), tal como no esquema aristotélico, uma vez que a quarta figura (chamada figura de Galeno, que a teria criado e junto à triologia de Aristóteles), é uma variante da primeira, ou regular, ou paradigmática Tabela 4: Figura do silogismo 1ª figura:
4ª figura BaC A a B ergo: AaC
CaB B a A, ergo; A i C 11
Pedro Hispano estudou em desenvolvimento, até à exaustividade, as três figuras à luz das regras universais, dando exemplos apropriados a cada instância, e expondo as quase infinitas variáveis dos modos do silogismo, com a teoria das proposições (figura 5). Ainda dentro do quarto tratado, é neste que se encontra a página que mais terá contribuído para a popularidade do compêndio entre os estudantes, os quais muito se divertiriam com as artes magnas (artimanhas!) de aprender os jogos dialécticos sem grande esforço. Pedro Hispano, um bom colega, um excelente companheiro, facultando uma cábula, para que os escolares fixassem todas as variantes das figuras do silogismo. Trata-se dos hexâmetros da mnemónica, ou mnemotécnica, - 19 palavras, destinadas a estabelecer a sequência ou inter-relatividade das proposições: 11
1ª figura: A Todo o homem é mortal: B António é homem; C António é mortal; 4ª figura: CB Os portugueses são homens; BA Os homens são mortais, AiC, alguns mortais são portugueses.
21
C O N N O
IE R
C
TO IC D
TR A
A TR
SUBALTERNE I quidam homo est animal
nullus homo est animal
D IC TO R IE
CONTRARIE
SUBCONTRARIE
E
SUBALTERNE
A omnis homo est animal
quidam homo non est animal O
Figura 5: Proposições Categóricas [A = Universal afirmativa; E = Particular afirmativa; I = Universal negativa; O = Particular negativa. Estrutura das relações: AO e EI, contraditórias; AE, contrárias; IO, subcontrárias; AI, e EO, subalternas]
Barbara, Celarent, Darii, Ferio, Baralipton Celantes, Dabitis, Fapesmo, Frisesomorum Cesare, Cambestres, Festino, Barocho, Darapti Felapto, Disamis, Datisi, Bocardo, Ferison. Inerem à primeira figura: Barbara (AAA), Celarent (EAE), Darii (AII), Ferio (EIO), Baralipton (AAIO), Celantes (EAE), Dabitis (AII), Fapesmo (AEO), Frisesomotum (IEOOU). Inerem à segunda figura: Cesare (EAE), Cambestres (AEE), Festino (EIO), Barocho (AOO). Inerem à terceira figura: Darapti (AAI), Felapto (EAO), Disamis (IAI), Datisi, (AII), Bocardo (OAO) e Ferison (EIO).
É possível que esta mnemotécnica dos dezanove modos ou figuras não tenha sido inventada de uma só vez, mas talvez tivesse sido elaborada nas escolas, embora já fosse conhecida em algumas escolas dos começos do século XIII, enquanto as Summulae datam de 1277. Sendo a Lógica uma arte difícil, que requer pleno domínio das palavras e das construções, os mestres esforçaram-se por facilitar a vida aos escolares, havendo variados exemplos de mnemotécnicas12. 12 Registamos a notícia legada pelo Padre Cassiano Abranches, S. J., que nos informa de uns versos feitos pelo Padre Estevão Gonçalves, professor do Colégio de Nª Sª da Conceição de Campolide (onde estudaram muitos homens ilustres, como Almada Negreiros, por exemplo). Os versos ensinam como elaborar silogismos perfeitos: «I. Três termos e só três termos/ O silogismo terá/ II. Mais amplo que nas premissas/ Nenhum dos termos será. III. O médio no consequente/ Não tem entrada legal/ IV. Mas uma vez pelo menos/ Há-de ser universal. V. Se cada premissa afirma/ A conclusiva também. VII. A ilação segue a
22
Este jogo ainda foi ensinado por alguns compendiaristas portugueses modernos13, mas houve outros que parece terem desprezado tão interessante ludismo. As vogais indicam a qualidade e a quantidade das proposições ou premissas, enquanto as consoantes B.C.D.F. indicam o método de redução das proposições à primeira figura. As consoantes situadas no meio de cada palavra ensinam que a proposição indicada pela vogal anterior deve ser convertida, ou por acidente (P), ou por transposição (M), ou pelo absurdo (C), ou simplesmente (S). Tudo exemplificado pelo recurso aos modelos ensinados por Aristóteles14. Tópicos (de locis) é o tema do quinto tratado, tendo em vista a técnica da argumentação, de modo análogo ao ensinado por Aristóteles no quinto livro do Organon, também relativo aos Tópicos, (Topicorum), se bem que, no entender da exegese, Pedro Hispano elabore a sua lição a partir de uma segunda fonte, a de Boécio, nos dois livros do De Topicis Differentiis, com alguns aditamentos extraídos da própria lição aristotélica. Inicia o discurso pela interpretação do termo ratio, o qual se diz em múltiplas acepções, sendo deveras um nome equívoco. Com efeito, ratio, ou razão, tem vários significados: em filosofia, espírito; em comércio, livro de registo das contas (deve/haver); em direito, juízo, etc. Todavia, em lógica, ratio é como quem diz o próprio argumento – e o argumento define-se como a ratio rei dubie faciens fidem, uma vez efectuada a demonstração lógica da proposição ou da tese mediante o termo médio. A argumentação consiste na explicação do argumento, oratio explicans argumentum. Uma vez definido o argumento e delimitada a argumentação, procede ao ensino das espécies de argumentação (silogismo, indução, entimema e exemplo). A definição de silogismo já fora dada, limita-se a definir a indução (progresso do particular para a universal, ou do singular para o geral); e o entimema (silogismo imperfeito, a que falta um dos termos, ou o maior, ou a premissa média)15. Expõe os tópicos na generalidade, e por especialidade, segundo as várias categorias lógicas, que já nos tratados anteriores expusera, não omitindo o argumento da autoridade, “de loco ab auctoritate”, quando, na falta de outra prova, o argumento de mestre autorizado numa ciência é invocável como argumento, como se mais fraca/ VI e VII. Duas fracas não convém». (Apud Rev. Port. de Filosofia, Tomo VIII, 1952, p. 257. 13 Cf. J. Bonifácio Ribeiro e José da Silva, Compêndio de Filosofia. Lxª., 10ª ed., s.d., p. 306. Augusto Saraiva, Filosofia. Porto, 4ª ed., s.d., pp. 70-71. 14 Analíticos Anteriores, Livro I, cap. 4, 25b- 26 b.Cf. Aristóteles, Organon. III. Analíticos Anteriores. Trad. port., Lxª., Guimarães Ed., 2ª ed., 2001. 15 Exemplo de entimema, em Descartes: cogito, ergo sum.
23
tivermos de afirmar que o céu é volúvel, sem outra prova. Então diremos o magister dixit “astronomus dicit coelum esse volubile; ergo coelum est volubile”. Por força da máxima: “unicuique experto in sua scientia credandum est”. Não deixa, ainda assim, de introduzir a teoria dos argumentos dos casos, esses que, ficando de fora das regras gerais, podem ser objecto de reflexão singular... O sexto tratado versa as Suposições, ou doutrina das propriedades dos termos, sem conexão aparente com algum livro de Aristóteles, mas, ao que se infere, conexo com a necessidade de apuramento de nomes e de termos que foram ganhando relevo no magistério escolástico, e que se tornou necessário especificar com maior clareza, mediante mais nítidas definições. Deste modo, o tratado visa definir e exemplificar o que sejam a significação, a suposição ou conjectura, a copulação (procede à divisão da conjectura em suposição comum ou opinião, suposição natural, acidental simples, pessoal e confusa, com suas variantes - tabela 6). Tabela 6: Significação DISCRETA SUPOSIÇÃO COMUM
NATURAL ACIDENTAL
SIMPLES PESSOAL
DETERMINADA CONFUSA
Necessidade do sinal (Necessitate Signum) Necessidade da coisa (Necessitate Rei)
Define ainda a dúbia, e por fim a solutio, a solução. O sétimo tratado tem por tema os elencos sofísticos ou falácias, colhendo-se a impressão de que o autor tomou por fonte, não o texto aristotélico, mas comentários de autores posteriores, sendo problemático identificar quais foram esses autores. Este tratado é considerado uma originalíssima fonte no desenvolvimento da lógica moderna, sobretudo na doutrina sobre as propriedades dos termos. Em algumas edições este tratado sétimo envolve os cinco restantes tratados, sendo então descritos como “Tractatus septimus est
de parvis logicalibus nulli speciali libro correspondens, considerans de septem proprietatibus terminorum: ideoque dividitur in septem partiales
24
tractatulus: de suppositionibus, relativis, apellationibus, ampliationibus, restrictionibus, dictionibus syncategorematicis.”.
É este tratado o que habitualmente se designa por “Parva Logicalia”, elaborado ao jeito da “Parva Naturalia” ou Parvos Naturais de Aristóteles. O sujeito principal é o das falácias, ou sofismas. Define o que seja a disputa, ou controvérsia (actus sillogisticus unius ad alterum ad propositum ostendendum). Procede à divisão da disputa, da qual há quatro espécies: doutrinal, dialéctica, tentativa (na qual se incluem os silogismos contenciosos) e sofística, assente em orações que parecem silogismos, mas de facto não são silogismos. Todo o texto revela grande subtileza, sendo claro que não se baseia apenas nos livros, mas toma lição de experiência feita – sendo neste contexto que nos apresenta alguns dos principais conceitos do debate, - a redarguição, o argumento falso, o inopinável, o solecismo, a negação, a disputa. Singular de experiência é o capítulo acerca das falácias que podem cometer-se da dicção: - o equívoco, a anfibolia, a composição, a divisão, o acento e a figura de dicção, seis ao todo. Define e exemplifica cada um destes sofismas da dicção: o paralogismo, a consignificação, as espécies de equívoco, e as dúvidas. Versa em capítulos independentes as teorias da composição e da divisão, com especial relevo para a definição e tratamento da objecção, que é uma das chaves do sucesso na disputa: o arguente só convence se for capaz de anular as objecções do opositor. As figuras da dicção merecem alongado excurso, sendo tratadas todas as espécies de falácias, incluindo as derivadas do método interrogativo. É o mais extenso e o mais pormenorizado de todos os tratados. A criativa imaginação do autor dá-lhe para inventar exemplos, quase sempre cómicos, de falácias e bicudos sofismas, de todas as espécies, à custa de anfibolias e de premissas dúbias, ou colocadas fora do lugar. Os estudantes certamente se divertiriam nas aulas e nos recreios com esta panóplia de quase anedotas, algumas das quais utilizariam com intento malicioso: Omis ara est in templo; stabulum porcorum est ara, ergo: stabulum porcorum est in templo. Ou: asinus est animal; homo est animal, ergo: homo est asinus. Abre as portas a outros exemplos porventura ainda mais complexos: perdeste os cornos, ora não tinhas cornos, logo: não perdeste os cornos... (silogismo falso ou defeituoso por não haver coerência entre as premissas e a conclusão). Separando os tratados restantes que alguns editores incluem no sétimo tratado, temos os restantes cinco para a dúzia da tradição escolástica:
25
O oitavo tratado versa os Relativos: o que sejam, seu dúplice valor (se o relativo é substância ou acidente; diversidades dos relativos e suas regras, relativos absolutos e relativos acidentais). O tema do nono tratado é das ampliações, contraditório das restrições. A ampliação torna um termo restrito a um termo menor, abrangente de um termo maior, sendo uma possibilidade, com risco de sofisma. O décimo tratado versa a apelação, a qual consiste em aceitar os termos comuns “pro re existente”, para as coisas que são. É o espaço das figuras de estilo como as quimeras, as metáforas, e as sinédoques. Em oposição à ampliação, o tratado undécimo versa as restrições, ou seja, a coartação de nomes comuns de termos maiores a termos menores, como se o predicado só respeitasse ao menor, por exemplo: homo qui est albus currit, como se o homem que não é albus não corresse! Por fim, o tratado duodécimo aborda a teoria da distribuição, que consiste na multiplicação de termos comuns por signos universais. Na verdade, este tratado é o dos signos, parte importante da lógica formal, os sincategoremas16 e os categoremas. O categorema significa por si só (terra, homem, casa...) enquanto o sincategorema não significa por si só. Pertencem ao plano sincategoremático preposições, advérbios, conjunções e pronomes, nem sempre facultantes de rigor. Este, esse, aquele, como pronomes, indicam distância, tal como isto, isso, aquilo. Este/isto referem perto; esse/isso menos perto, e aquele/aquilo, mais longe. Idêntico juízo acerca de aqui, ou cá, de acolá e de além. Quanto ao valor por si só dos categoremas, podemos questionar se têm sempre o mesmo valor. Terra tem um valor, mas no termo a minha terra tem outro. A rede ou complexo sinalístico solicita um cada vez mais extenso e compreensivo domínio da Linguística e da Sinalética. O sinal é consignificante e consignificativo. Dados o sujeito e o predicado, um pequeno sinal altera, ou pode alterar, a relação predicativa e também a realidade conceptiva. Os sincategoremas funcionam como sinais de trânsito, indicando a verdade ou a falsidade. Eles não constituem o sujeito en se, a coisa, mas consignificam ou dão rigor aos sujeitos. Na novena de artigos ou tratadinhos acerca dos categoremas, Pedro Hispano analisa os casos do ser (est), da negação 16 Peter of Spain,“Tractatus Syncategorematum” and Selected Anonymous Treatises. Trad. de J.P. Mullally, Int. de J.P. Mullally and
Roland Houde. Marquette Univ. Press, Milwaukee, Wisc., USA, 1946.
26
(non), da exclusão/inclusão (tantum, solus), da excepção (preter, preterquam, nisi), da condição (si), da mutação (incipit, desinit), da contingência e da necessidade (necessario, contingenter), de algumas conjunções (ne, an, utrum) e da quantidade (quanto, quam, quicquid). É
todo um exercício que ousamos apelidar de rigor aritmético, em vista de o discurso evitar as afirmações ou negações insubsistentes, a restrição indevida, a generalização abusiva, etc. As preposições, os advérbios, ou as conjunções, sinais invariáveis, funcionam como fixadores da ideia. Na língua portuguesa (que agora utilizamos para melhor percepção) temos variadíssimos casos de consignificação: estar a pé/ estar ao pé; estar de pé/ estar em pé; e mesmo os verbos auxiliares ser e estar funcionam como sincategoremas: estar doente/ ser doente estar magro/ ser magro estar gordo/ ser gordo, etc.
Havendo que mencionar o pormenor de esta subtileza entre ser e estar constituir um peculiar no castelhano e no português, mas não no francês e no inglês, onde os verbos être e to be servem, tanto para designar um estado absoluto (ou do ser) como um estado acidental ou relativo (do estar). As culturas filosóficas, de mais atenta formulação nominalista, raras perderam de vista a lição de Pedro Hispano, não sendo ocasionais os estudos que lhe foram dedicados por Stapper, M. Grabmann e pelos realistas ingleses, incluindo os modernos. Philotheus Boehner considerou que, relativamente aos fins práticos, a teoria de Pedro Hispano marca o início de um enorme progresso da Lógica, pois foi ele, no âmbito escolástico, o primeiro sistematizador17. De um ponto de vista absoluto é difícil sustentar a tese de que a lógica de Pedro Hispano é nominalista, ou que proponha a invalidade objectiva ou ontológica das ideias, como se não existisse relação entre os termos (voce) e as coisas que os termos exprimem, ou como se o mundo das ideias e o mundo das palavras fossem distintos e a ideia existisse para além do sinal que é a palavra. Todavia, o primado da hermenêutica dos nomes e dos termos na lógica petrina deu ao nominalismo um suporte de fundo para o desenvolvimento da estrutura nominalista, talvez sem que o autor presumisse que o viria a ser. De Summulae preparam ou armam o debate facto, as realismo/nominalismo, mas, como afirmou um autor francês, dominicano, “o autor de um livro elementar para crianças não podia 17
P. Boehner, Medieval Logic, Manchester, 1952, pp. 36 e 77.
27
racionalmente prever a extraordinária fortuna do seu livro, nem o sentido particular que o vincula à História”18. O domínio do categorema supõe o domínio de uma língua. O conhecimento de pequenos sinais (preposições, advérbios, conjunções, a simples pontuação) confere ao discurso a qualidade de recto ou de falacioso. Todo o sistema de sinais é iniciático. Alguém que ignore os sinais de trânsito, não saberá como proceder. Aliás, alguns sistemas de sinais terão sido inventados para acorrer à incapacidade de muita gente ler letreiros com palavras, mas logo se verificou que muitos sinais nada dizem a muita gente. Em locais públicos (escritórios, hospitais), muito sinalizados, quem não dominar a sinalística não se entende. Conta-se que um casal foi a um restaurante, e que o senhor teve necessidade de ir à casa de banho. Estava à porta da casa de banho, e foi perguntar onde era a casa de banho dos homens, e logo foi conduzido à porta onde estava. O senhor só mostrou ser pessoa decente: na porta estava um sinal – não homem, mas um bébé sentado num pupu. Eis outra forma de saber ler, ou de não saber ler. A pontuação resolve absurdos. “Um caçador tinha um cão e a mãe do caçador era também o pai do cão”. A vírgula, ou o ponto e vírgula, ínfimos sinais, põem a direitura: “Um caçador tinha um cão e a mãe; do caçador, era também o pai do cão”. Quer dizer, o caçador possuía um cão, a mãe do cão, e o pai do primeiro cão (três cães). Simples advérbios modificam o significado de um significante: mais, menos, muito, tão. Na classe dos adjectivos, estes categoremas desempenham radical função. De uma mulher diremos que é bonita, ou mais bonita, ou menos bonita, ou muito bonita, ou tão bonita como..., ou a mais bonita ou a menos bonita, etc. No entanto, embora presumamos, em tais advérbios, o sinal de quantidade, eles são qualitativos. Se dissermos a uma senhora: é muito bonita, ela fica satisfeita; mas logo fica menos feliz se ajuntarmos: mas aquela é mais bonita... Mais, menos e muito são quantitativos indefinidos. A expressão muito dinheiro é dúbia. Muito quer dizer algo de indefinido: para o pobre, algum é muito; mas o rico ambicioso sempre achará que o muito ainda é pouco. Etc. Por isso, enquanto na Retórica podemos usar estes sinais, carregados de subjectividade, na Aritmética podemos usá-los, mas têm de ser quantificados. Quanto não pode traduzir-se em mais, menos ou muito. Tem de ser expresso em número. 18
P.H.D. Simonin, “Les Summulae Logicales” de Petrus Hispanus, in
Archives d'Histoire Doctrinale et Littéraire du Moyen Âge, Paris, 1981, pp. 267-278, p. 278.
28
3. ELOGIO O septívio escolar, ou enciclopédia medieval de todas as ciências, acha-se resumido num dueto versicular, tipo mnemónica:
Trivium: Grammatica loquitur; Dialectica vera docet; Rhetorica verba colorat. Quadrivium: Musica canit; Arithmetica numerat; Geometria ponderat; Astronomia colit astra. É o sistema das sete artes liberais. Pedro Hispano especializou-se na arte da Lógica (embora também tivesse reflectido em Psicologia, sobre a Alma, em Medicina e Farmacopeia, e em Mística) mas foi por causa da Lógica que o seu nome se vinculou à cadeia de ouro do saber humano. A Suma situa-se no âmbito do primeiro terceto. É um compêndio, portanto abrangente de uma disciplina na sua integridade, embora de modo resumido, ou de explanação compendiosa, sinóptica, pelo que lhe cabe o título de Epítome, ainda que Suma exprima o real conteúdo da obra: o sumário, o sumo da ciência. De todo o modo, de certa maneira inaugurando a tradição compendiosa, poder-se-ia intitular Epítome de Lógica, um vademecum para escolares e para mestres. Podemos afirmar, sem problema, que as Summae abrangem a Gramática e a Dialéctica, uma vez que a arte lógica requer o domínio da palavra, ou que a filosofia requer a iniciação na filologia. A Retórica não lhe concerne, pois se trata de uma outra arte, mas de algum modo a construção do estilo passa pela dialéctica, sendo possível admitir que, no tratado, se apresentam argumentos retóricos em vista dos argumentos lógicos, uma vez ser necessário exprimir as ideias com rectidão e com clareza, o que respeita à construção do estilo. Quanto à relação da Dialéctica com a Gramática, ela é tão óbvia que não suscita outro esclarecimento. Que são as Categorias e o Perihermeneias de Aristóteles, senão a isagoge gramatical aos sequentes livros lógicos? Livro de grandes clássicos, eruditos, filósofos e humanistas, no que à modernidade do compêndio se refere, digamos que, de um ponto de vista geral, ele não perdeu nenhum dos benefícios didácticos, salvo o do fenómeno de a modernidade ter preterido a língua latina em favor das línguas vernáculas e a obra ser, hoje em dia, pouco lida, ou pouco referenciada, não por sua culpa, mas por deficiência do estado cultural.
29
Do ponto de vista especial, o tratado tem mantido o interesse da lógica moderna, importando citar o exemplo de Charles Sanders Peirce (fal. 1914), considerado um dos mais importantes filósofos americanos, que teve uma formação de natureza científica, mas chegou a um momento em que achou prioritária a definição dos fundamentos de toda a Ciência, pelo que se retirou da vida pública e se entregou ao estudo da Filosofia, sobretudo da Lógica, tendo feito progressos na Semiótica. Nesse contexto, tomou as regras de Pedro Hispano como fonte de relevante importância, sobretudo no que concerne à relação da teoria do conhecimento com a análise da linguagem – visto o sentido das expressões linguisticas19 e semióticas. As qualidades do sucesso foram várias, das quais mencionamos as seguintes: • Exposição integral, embora digesta, de toda a lógica antiga com enriquecimento da lógica moderna; • A harmónica transição da logica vetera para a logica nova; • Didáctica síntese da disciplina e da doutrina; • Clareza e precisão dos esquemas de cada lição, aptos a serem compreendidos por jovens escolares; • Recurso a exemplos silogísticos, não raro humorísticos, que divertiam os estudantes nas aulas e nos recreios, sobretudo os sofismas; • A dinâmica conceptual do verbalismo, ou da teoria dos nomes, suscitando novos conceitos especulativos. • Formato maneirinho, prático, que evitava o recurso ao maior peso e volume dos tratados aristotélicos e peripatéticos, por vezes difíceis de encontrar. • As múltiplas cópias oriundas das escolas em que a lição petrina foi seguida.
4. CONCLUSÃO Só com a Reforma, e com o aparecimento da chamada Segunda Escolástica, o manual de Pedro Hispano perdeu terreno, 19
C. S. Peirce, Collected Papers, 9 vols., Harvard Univ. Press, 19311958. Cf. J. Resina Rodrigues, in Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol.4, cols. 38-40, que não obstante, omite a influência de Pedro Hispano.
30
ainda que pudesse continuar a ser lido hoje, em vez de alguns anódinos compêndios, caso fosse vertido para a nossa língua. Devido à assunção da Companhia de Jesus, e à necessidade de renovar as artes, a aula de Lógica viria a ser suprida pelo conimbricence In Universam Dialecticam (1606)20, sobretudo nas aulas de Coimbra e das casas jesuítas na Europa, embora já então gozassem de fama as Institutiones Dialecticarum (1564), de Pedro da Fonseca, destinadas a um sucesso idêntico ao do livro de Pedro Hispano, pelo menos até aos finais do século XVIII, como atestam as dezenas de edições deste livro, em todo o caso mais longo e mais complexo do que o maneirinho devido a Pedro Hispano, Mestre da Arte de Pensar. Relembremos ainda que, no século XVII, e sobretudo nas Escolas Dominicanas, o compêndio filosófico preferido foi o do Cursus Philosophici Tomistici, em cinco partes (ou tomos) da autoria de Fr. João de Santo Tomás, O.P., lisbonense, mais amplo do que o curso lógico de Pedro Hispano21. Do tratado de Lógica do Cursus faz parte o notável Tratado dos Signos, que se considera um dos mais importantes contributos do dominicano para a Lógica, a Linguística e a Semiótica22. 20
P. Gomes, Os Conimbricences, Lxª., 1992. P. Gomes, João de Santo Tomás na Filosofia do Século XVII. Lxª., ICALP, 1998. O Tratado dos Signos foi vertido para a nossa língua: João de São Tomás, Tratado dos Signos. Trad., Int. e Notas de Anabela Gradim Alves. Lxª., 2001. 22 Recuperamos um artigo (popular!) comemorativo:”Pensar não significa opinar; significa pesar, propor o que o proponente pode defender e demonstrar. Para haver rigor no diálogo entre os humanos seria necessário que todos nos exprimíssemos por silogismos da primeira figura, que são como são, e não podem deixar de ser, pois se Pedro é homem, e homem é animal, não se duvida que Pedro seja animal. Ora, em toda a parte do mundo e na boca de quase toda a gente, o que ouvimos é opinião, um termo que tanto pode estar certo como errado. À liberdade de expressão deveria ter equivalido uma promoção geral da arte lógica de pensar; ora, como se sabe da história, abandonou-se a arte e deu-se salvo conduto à opinião, que vence, não por dizer a verdade en-se, sem pôr nem tirar, mas porque são gente simpática, ou conseguiu insinuar-se na geral impreparação. De facto, enquanto a tese serve para progredir, a opinião serve apenas para matar o tempo, sendo ela que garante, por exemplo, o convívio de uns com os outros: não dizemos, mas falamos... Foi em vista do dizer e do progredir, que Pedro Hispano Portugalense redigiu o compêndio intitulado Summulae Logicales, em latim, também dito Tratado de Lógica ou Súmulas Logicais, lá nos meados do século XIII, antes de eleito Papa, com o nome de João XXI – o mesmo que tem uma avenida nas terras da antiga freguesia de Arroios, sítio do Areeiro. As Sumas Logicais foram o livro mais estudado nas escolas europeias até aos fins do século XVI, contando-se delas umas dezenas de edições, em diversos países. Podemos afirmar que o compêndio teve, na Europa, uma influência só comparável à que, na idade clássica, teve a Isagoge de Porfírio, como iniciação ao Organon de Aristóteles. 21
31
Foi ele que inventou as mnemónicas relativas às figuras do silogismo, pelas quais teve em mente ajudar a memória de estudantes menos vocacionados para o pensamento lógico, ou menos atentos ao geometrismo da figura silogística, pela qual, mediante um termo universal, e um termo médio, se concluiu um termo (conclusão), irrefutável, e que não deixa lugar aos apelos da opinião. Tomáramos nós que, no parlamentarismo moderno, os parlamentares discursassem em silogismo, em vez de se porem a declamar e a reclamar opiniões, espécie de birras... Pedro Hispano é lisboeta. É o único português a quem o divino Dante deu honras de inclusão, na Divina Comédia, no quadro do Paraíso (para que conste), a par de Hugo de S. Víctor e de Pedro Comestor: «Hugo de Sanvittore è qui com elli, E Pietro Mangiadore, e Pietro ispano Lo qual già luce in dodici libelli», quer dizer: «Hugo de S. Víctor está aqui com eles E Pedro Comestor e Pedro Hispano que agora é famoso por doze tratados». Os doze tratados eram os capítulos das Sumulas, no manuscrito que Dante leu, embora haja edições que juntam alguns dos capítulos, ficando sete: da interpretação textual, dos universais, dos procedimentos, dos silogismos simples, dos silogismos dialécticos, das falácias ou sofismas, e dos pequenos lógicos – talvez o maior contributo de Pedro Hispano para a lógica moderna. É por isso que, em Universidades americanas, mais interessadas na lógica matemática, do que na lógica retórica, as Sumas continuam a ser editadas, em latim! Além de ensinar a pensar, tratou dos pobres, da saúde dos pobres, de cujo tesouro cuidou. O tesouro dos pobres é a saúde, pois, com saúde, podem trabalhar e ganhar honesto pão quotidiano. Para eles, e seus médicos, compôs o Thesaurus Pauperum, o Tesouro dos Pobres, que podemos ler, agora em português, graças ao esforço e ao saber da senhora Dona Maria Helena da Rocha Pereira. O Tesouro inaugura a cadeia áurea da medicina portuguesa, em que, depois, a par de muitos outros brilhou o saber, também orientado para o povo, de Amato Lusitano, o albicastrense João Roíz de Castelo Branco, nas Centúrias. Em Setembro de 2001 venceram-se 725 anos de eleição de Pedro Hispano lisbonense para a cadeira de Pedro, onde pouco tempo esteve, pois faleceu de repente, e sem se esperar. A sua glória vem, não do pontificado, mas do magistério escolar, por ter sido companheiro de estudantes. Sabemos que, por iniciativa do Dr. Meyrelles do Souto, a Sociedade de Geografia cumprirá, neste ano lectivo de 2001-2002, um ciclo de conferências acerca da obra de Pedro Hispano. Essas conferências foram reunidas no volume Pedro Hispano Portugalense coordenado pelo Dr. J. Boléo-Tomé e editado pela “Acção Médica”, Porto, 2007. E sabemos que a Câmara Municipal de Lisboa lhe mandou levantar um túmulo decente da sua dignidade, em Itália. É de registar. Sá Carneiro, inesteticamente figurado na Praça do Areeiro, nem merece o monumento do decapitado, nem merece o sítio. Haveria, em Lisboa, outro largo, sem história ou com idêntica dignidade, onde homenagear Sá Carneiro. Aquele centro de Praça deveria ser o termo da Avenida João XXI, onde se erguesse o monumento ao mestre da arte de pensar, ficando então, na zona de Alvalade/Areeiro, a linhagem de sábios lisbonenses devidamente celebrada: Santo António e Pedro Hispano.
32
BIBLIOGRAFIA Referências citadas ao longo do texto em notas de rodapé.
Conjecturamos que, apesar de tudo, até Afonso Costa ficaria feliz! Se não ficasse, poderia a Câmara erguer-lhe outra estátua, a ele, mas lá para Chelas, no fim da sua avenida, para se entreter com os manipuladores do tabaco, a quem ele, com a sua democratice, tanto incomodou, vai para uns noventa e tantos anos. [P. Gomes, “Imagens de Literatura e de Filosofia. Pedro Hispano, Mestre da Arte de Pensar”, in O Diabo, nº 1293, Lxª., 9.10.2001, p. 25. Memorando o centenário, J.M. da Cruz Pontes já publicara pelo menos um artigo (que víssemos): “Uma efeméride do Papa João XXI”, in Correio da Manhã, Lxª., 29.9.2001, p. 30, com gravura. Nesse artigo também refere as celebrações a levar a efeito pela Sociedade de Geografia]”.
33
A CIDADANIA COMO A NOVA PRIORIDADE DA EDUCAÇÃO CITIZENSHIP AS A NEW PRIORITY OF EDUCATION Ilda Freire-Ribeiro * (ilda@ipb.pt)
RESUMO
Neste artigo aborda-se a educação para a cidadania. Primeiro na perspectiva dos normativos legais, percorrendo as complexas denominações que assumiu no sistema educativo desde 1986 a 2001, proclamando a educação para a cidadania como a prioridade da educação básica. Seguidamente, reconceptualiza-se o seu lugar na formação de professores, ambicionando-se que a instituição educativa modifique as suas tradicionais metas em função das alterações sociais e indicações políticas, e que, por consequência, os seus agentes se comprometam em educar e preparar os jovens para o exercício da cidadania democrática e para a participação na vida em sociedades plurais. Palavras-chave: cidadania, política educativa, formação de professores, educação holística.
ABSTRACT
This article deals with teaching citizenship, first from the perspective of legal norms, covering the complex denominations taken on by the education system from 1986 to 2001 that proclaimed teaching citizenship as the priority of primary education. Then, its place in teacher training is reconceptualised, aspiring to modify the traditional goals of the educational institution in accordance with social alterations and political direction so that, consequently, its agents undertake to educate and prepare young people for the exercise of democratic citizenship and to participate in the life of a plural society. Keywords: citizenship, education policy, teachers training, holistic education.
* Doutoranda em Estudos da Criança na Universidade do Minho, Mestre em Educação pela Universidade do Minho, Licenciada em Professores do Ensino Básico - 1.º Ciclo. Docente da Escola Superior de Educação de Bragança.
34
1. INTRODUÇÃO Os tempos mudaram e mudam a cada instante. Observando a sociedade actual, manifestamente complexa e diversificada, constatamos que esta se apresenta fragmentada, perspectivando-se alguma tensão, desentendimento e até mesmo choques culturais. A realidade social começa a assimilar-se a uma manta de retalhos global face à diversidade de etnias e culturas que coabitam socialmente. Este contexto abala profundamente as estruturas sociais. A começar pela família, agência de socialização primária, que a um ritmo alucinante começa a ser incerta nas suas modalidades de constituição e claudica na sua missão de educar, remetendo para a escola grande parte das suas responsabilidades, inclusive a de custódia. O sistema educativo, pelo menos na parte que corresponde à escola, não deve fazer “política de avestruz" relativamente a essa situação, pois é sua função responder prontamente aos desafios colocados pelo contexto social, não obstante as dificuldades que isso acarreta. A política educativa, no que lhe concerne, procura introduzir nos curricula nacionais aquilo que parece fazer falta para reverter a situação. Começa por reformar algumas ideias e conceitos e admite novas áreas de saber. Surgem no panorama educativo temas transversais como a educação para a cidadania, no sentido de formar cidadãos responsáveis, críticos e participantes em questões comuns. Supondo que existe um modelo de cidadão desejável, o aluno de hoje e o adulto de amanhã, este precisa de uma preparação à altura do tempo em que vive; precisa ser educado e preparado para os problemas do complexo mundo, desenvolvendo uma atitude crítica e reflexiva que estimule o seu crescimento como pessoa, numa perspectiva necessariamente holística. Uma mudança de atitudes e mentalidades dos agentes educativos é cada vez mais proclamada. Cientes que a mudança é necessária e que "não se muda a ‘cara’ da escola por decreto” (Freire, 1991, 25), há um longo caminho a percorrer com o intuito de fazer chegar às escolas a ideia que algo está em constante alteração, a começar pela introdução de temas transversais, como a educação para a cidadania, no curriculum escolar.
35
2. A EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA NOS NORMATIVOS LEGAIS NACIONAIS A educação para a cidadania tem vindo a ser uma verdadeira preocupação de estados e um forte apelo das sociedades. Ela está na ordem do dia e principalmente “ao nível da escolaridade obrigatória, tende a tornar-se o novo atractor axiológico da escola” (Barbosa, 2000ª, 75), sendo de importância significativa para solidificar a personalidade dos jovens e lançá-los na linha orientadora da democracia e empenhamento cívico. Na conjuntura internacional, o tema tem vindo a assumir um crescente relevo; vejamos que o ano de 2005 foi eleito o Ano Internacional da Cidadania pela Educação. A prática de uma cidadania activa e participativa foi inicialmente reforçada com o Tratado de Amesterdão, em 1997, em que a aprendizagem ao longo da vida e a junção complementar de uma cidadania nacional e europeia eram os pressupostos de uma política que tinha a pretensão de (re)aproximar a Europa dos cidadãos. Ainda em 1997, surgiu o projecto do Conselho da Europa “Educação para a Cidadania Democrática”, que indicava as vertentes de cidadania a ter em conta, a nível europeu e nacional, nos âmbitos escolar e extraescolar, bem como na formação ao longo da vida. As vertentes apresentadas são essencialmente duas: uma objectiva, relativa a aspectos institucionais e jurídicos, através dos quais o estatuto de cidadão é concedido pela colectividade àqueles que ele reconhece como membros; e outra subjectiva, que engloba a forma como o indivíduo se relaciona e exerce o seu compromisso de solidariedade para com os outros (Synopsis, 1998). Em Portugal foram também vários os esforços que se fizeram no sentido de promover e concretizar uma educação para a cidadania democrática, nomeadamente no sistema educativo. Não se pode dizer que, nessa matéria, houve uma demissão da comunidade educativa e dos responsáveis pela tutela da escolaridade, não obstante a falta de expressão prática de toda a retórica enunciada. Desde a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) de 1986 até à Reorganização Curricular de 2001, passando pela Reforma Curricular de 1989, que é notória a centralidade da educação para a cidadania na essência dos documentos legislativos que orientam a acção educativa. Podemos afirmar que existe uma preocupação acrescida pelo desenvolvimento integral dos alunos com vista à sua formação em cidadãos capazes de participar e intervir activa e
36
democraticamente na sociedade. Mas será que em termos práticos essa preocupação foi evidente? Procuraremos encontrar uma resposta percorrendo alguns dos normativos legais mais significativos.
2.1. NA LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO DE 1986 Analisando brevemente a LBSE, aferimos que algumas das suas principais finalidades dizem respeito à problemática da socialização, que nos remete de imediato para questões de cidadania. Segundo esta lei, e de acordo com o artigo nº2, uma das funções da escola é a de promover o desenvolvimento de cidadãos livres, responsáveis, autónomos, solidários, com espírito democrático e pluralista, respeitador dos outros e das suas ideias, aberto ao diálogo e à livre troca de opiniões, capazes de julgarem com espírito crítico e criativo em que se integram e de se empenharem no progresso e transformação da sociedade. Para além deste artigo, são vários os que revelam a existência de uma preocupação com a perspectivação de um sistema educativo em que a educação para a cidadania fosse prioritária: o artigo 3º, sobre os princípios organizativos, em que pelo menos cinco fazem alusão à identidade nacional, exercício da cidadania, formação moral e cívica, prática da democracia e valorização dos diferentes saberes e culturas; o artigo 7º, que trata dos objectivos do ensino básico, onde cinco alíneas evocam o conceito de formação pessoal e social; o artigo 47º, indicador de uma nova área de formação pessoal e social, que poderá marcar a diferença na educação humana e social, contribuindo para um novo desenho curricular; e, por último, o artigo 48º, onde são enunciadas as actividades de complemento curricular, que poderiam ser um lugar onde se tratasse a cidadania de forma excepcional. Apresentada a LBSE, tudo estava preparado para que se processassem mudanças, se alterassem costumes, se concretizassem novas ideias e se iniciasse a tão rogada reforma curricular.
2.2. NA REFORMA CURRICULAR DE 1989 A reforma era amplamente esperada e, três anos depois, os novos planos curriculares dos ensinos básico e secundário foram aprovados, ficando exarados no Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de Agosto. O disposto no Decreto suscitou algum descontentamento e, como opina Tavares (1999, 88), a tão afamada reestruturação não passou de uma “reforma de cosmética em grande medida porque os
reformadores não foram capazes de quebrar a estrutura disciplinar e as
37
lógicas de poder que lhe estão subjacentes e vinham do sistema anterior, acabando por deixar, no essencial, tudo na mesma”. Porém, houve efectivas modificações nos curricula, que, para
além de procurarem encontrar uma solução para problemas do sistema educativo e tentarem modernizá-lo, possuem um outro aspecto relevante que é característica, segundo Benavente (1993, 327), dos “países preocupados com a sua identidade”: a criação de disciplinas de contornos ideológicos, como a Formação Pessoal e Social e a Educação Cívica. No plano curricular há a destacar a integrante Área de Formação Pessoal e Social (prevista no artigo 47.º da LBSE) e a criação da peculiar Área-Escola. São áreas que pela sua descrição a educação para a cidadania, poderiam ocupar um lugar de destaque e de reconhecimento. Ambas se proporcionam para desenvolver e fazer adquirir hábitos, atitudes, competências, pensamentos e reflexões propícios ao cidadão democrático que vive em sociedades plurais. A Formação Pessoal e Social aparece agora como uma superárea, assumindo uma posição transdisciplinar. Ora vejamos, ao prever a criação de uma disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social (como indicada no n.º 2, do artigo 7º do Decreto) para todos os alunos dos ensinos básico e secundário, com a atribuição de uma hora semanal, em alternativa à Educação Moral e Religiosa Católica ou de outras confissões, faz com que tal área de formação adopte uma posição disciplinar. Consegue também a proeza de ser interdisciplinar, ao conter um programa específico de Educação Cívica, a ser tratado na ÁreaEscola no 3.º ciclo do ensino básico. É ainda uma estratégia de complemento curricular, uma vez que este também persegue metas de Formação Pessoal e Social, como se pode ler no Despacho 141/ME/90, em que se apresenta o modelo de apoio à organização das actividades de Complemento Curricular. Apresenta-se com objectivos globais que favorecem o desenvolvimento de competências afectivas, interventivas, cognitivas, sociais e relacionais e de saberes (ser, fazer e estar), que permitem que os alunos adoptem certas posições, atitudes e opiniões que lhes facilitem a autonomia, a confiança, o envolvimento e a intervenção em domínios que os questionem e que lhes suscitem dúvidas. Apesar de algo inovador e motivante, foi célebre o seu fracasso aquando da sua implementação, pois apenas um número reduzido de escolas seguiram a linha orientadora da área da Formação Pessoal e Social, nomeadamente na disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social. A questão da formação específica que os professores deveriam
38
possuir para leccionar esta área contribuiu também para a fraca concretização da disciplina e do programa de Educação Cívica nas escolas portuguesas. Outra novidade era a Área-Escola (artigo 6.º), considerada como um verdadeiro desafio à escola, uma vez que lhe está subjacente uma série de pressupostos, como a interdisciplinaridade, o trabalho cooperativo e o espírito de iniciativa, que não são habituais no contexto educativo. Configura-se como uma área curricular não disciplinar, em que a concretização dos saberes se deve efectuar através de actividades e projectos multidisciplinares. Aquela deverá privilegiar a articulação entre a escola, o meio e a formação pessoal e social dos alunos. Mais tarde, e no sentido de ajudar a materializar esta área, surge, com o Despacho 142/ME/90, um plano de acção. No 3.º Ciclo do Ensino Básico, a Área-Escola incluía um programa obrigatório de Educação Cívica. Ora a existência deste programa alberga contradições que deixam algumas dúvidas em relação ao seu carácter obrigatório. Benavente (1993, 327) afirma que o programa “apresenta imprecisões e ambiguidades”, pois se a escola pode seleccionar os conteúdos, as linhas organizativas e as actividades de carácter cívico, e se os alunos e os professores, em consenso, podem definir os temas a tratar, não faz muito sentido ter um programa para cumprir. Tudo se perspectivava para o seu insucesso, e o futuro da Área-Escola não se augurava risonho. Patrício (1992, 17) sublinhou sem rodeios que esta área se revelava “como uma ideia inteiramente
abstracta, desligada das condições reais da vida da Escola e conducente a esquemas de operacionalização puramente formais e vazios”, e que a sua implementação na prática escolar seria difícil.
Começaram cedo a revelar-se indícios de que a generalidade das escolas, dos professores e dos alunos não conseguiam viabilizar o projecto da Área-Escola, uma vez que os obstáculos eram visíveis: a dificuldade de elaborar uma política de escola integrando componentes locais e regionais; a habitual dependência das linhas centrais de orientação; a rigidez na organização e funcionamento das escolas; a falta de hábito em cooperar e fazer interdisciplinaridade; a falta de equipamentos materiais nas escolas; a excessiva carga horária e os extensos programas das disciplinas, que não conseguiam conciliar o seu cumprimento obrigatório com a Área-Escola. Depois da inolvidável valorização da Área-Escola, a partir de 1994 assistimos ao seu progressivo, ou pelo menos ao seu paulatino definhar.
39
2.3. NA REORGANIZAÇÃO CURRICULAR DE 2001 Com a tríade sugestiva “Educação, Integração, Cidadania”, surge em 1998 um documento produzido pelo Ministério da Educação, no qual a cidadania aparece intimamente associada à educação no âmbito da escolaridade obrigatória, podendo dizer-se que se torna o horizonte incontrolável do Ensino Básico. A integração de componentes curriculares, extracurriculares e transdisciplinares aos curricula como: a valorização do trabalho de projecto, a redução do horário lectivo, o reforço de actividades de desporto, cultura e estudo, a flexibilização do curriculum nacional, o reforço da autonomia das escolas, o assumir da educação para a cidadania como um espaço privilegiado, são alguns aspectos que esta Proposta sugere e que deverão ser considerados e apreciados. No seguimento deste documento, e posteriormente à sua discussão pública, surge em 18 de Janeiro, com o Decreto-Lei n.º 6/2001, a Reorganização Curricular do Ensino Básico, revogando o anterior Decreto-Lei n.º 286/89, em todos os assuntos que dizem respeito ao Ensino Básico. Manteve os conteúdos anteriormente leccionados mas adoptou o conceito da Gestão Flexível do Currículo e a ideia de competência. Os docentes passam a ter mais liberdade, mas também mais responsabilidade, pois cabe-lhes decidir como implementar o curriculum, de modo a maximizar as aprendizagens dos alunos, tendo em vista as competências a desenvolver até ao final de cada ciclo do Ensino Básico. Entre outros pontos relevantes, o novo normativo consagra a implementação de várias medidas que promovem o desenvolvimento e a aquisição de atitudes e valores, aprendizagens e competências básicas, para que se desenvolva a educação para a cidadania. Define os princípios que devem estar na organização e na gestão dos curricula, criando áreas curriculares não disciplinares, determinando a transversalidade de áreas como a Educação para a Cidadania, a Língua Portuguesa, a Dimensão Humana do Trabalho e as Tecnologias da Informação e Comunicação e estabelecendo novas disposições de avaliação. Uma vez mais a educação para a cidadania aparece no centro da textura discursiva. O Decreto delineia interessantes avanços nesta matéria, como é o caso da natureza transversal dessa educação, o que quer dizer que de ora em diante ela deve ser integrada em todas as disciplinas que compõem os curricula, e só assim fará sentido. Ela deverá ser uma preocupação de todos os professores e atravessar todas as disciplinas e momentos escolares, de maneira a que, no
40
interior da sala de aula, sejam possíveis, o diálogo e o debate de temas actuais e pertinentes. É aconselhado que as escolas, gozando da autonomia concedida, elaborem projectos e concretizem actividades onde a formação pessoal e social dos alunos esteja presente e se desenvolva. Aparecem também áreas curriculares não disciplinares e obrigatórias como: Área de Projecto, Estudo Acompanhado e Formação Cívica, que assumem, em conformidade com Abrantes (2002, 11), “espaços de integração de saberes diversos”. Estas áreas devem articular-se entre si e com as restantes disciplinas e devem fazer parte dos projectos da instituição, revelando-se globalizantes. Tudo parece bastante claro e objectivo, no que concerne a estas novas introduções curriculares, no entanto o autor alerta-nos para um possível risco ao qual estas áreas poderão ser expostas: o risco da “disciplinarização”. Ou seja, como há poucos registos de na escola existirem áreas transversais onde a liberdade de programas e de objectivos seja uma realidade, a tendência poderá ser para “encarar
cada uma destas áreas como uma disciplina com um programa previamente estabelecido, independente dos alunos, do contexto e das ‘restantes disciplinas’” (Abrantes, 2002, 13).
Abrimos aqui um parêntesis para realçarmos a emergência e a importância da transversalidade nos planos curriculares. A sua introdução nos curricula nacionais veio levantar uma série de questões e inquietações no palco educativo, pois não é de uso corrente e tradicional a escola básica ter áreas curriculares não disciplinares que podem “intrometer-se” em todas as disciplinas ditas académicas. O facto de a escola continuar a pensar de forma tradicional, se encontrar fechada ao meio, se apresentar com uma estrutura fragmentada constitui um entrave à introdução de novas perspectivas que preocupam a sociedade e que não são contempladas nos tradicionais curricula das disciplinas. A implementação de temas transversais apresenta algumas dificuldades, que necessitam de ser superadas: a falta de capacidade da escola para dar respostas, a existência de programas para cumprir noutras disciplinas, a falta de tempo para fazer “transversalidade”, a dificuldade em avaliar os alunos nesses temas e a necessária formação dos docentes. Muito havia para percorrer. Mas o caminho faz-se andando, e a implementação, integração e posterior condução do disposto no Decreto-Lei n.º 6/2001 estão ao alcance de todos os docentes. Estes devem estar atentos aos novos desafios e responder prontamente como agentes de mudança e inovação.
41
Contudo, colocamos a tónica, também, nas instituições formação de professores, as quais devem alterar os seus planos formação conforme as novas orientações educativas, preparando futuros professores para os novos desafios que se colocam educação basilar.
de de os na
3. NOVA META PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES? O panorama educativo encontra-se em mudança. Existem novas prioridades na educação que não são as mesmas de outrora. A educação para a cidadania tornou-se numa dessas prioridades. Ela emergiu no sistema educativo face a inúmeros desafios que a sociedade colocou nas mãos da escola, como, por exemplo: a escola de massas e o seu público heterogéneo, com perspectivas futuras e sociais diferentes; a sociedade multicultural; o poder político, incapaz de proteger os cidadãos e de dar respostas capazes; o enfraquecimento da capacidade socializadora da família; a pluralidade de raças, línguas, etnias e culturas existentes na escola, entre outros. Sabe-se que o professor é um elemento chave em todo este processo. E se este não possuir formação adequada, sólida e que vá ao encontro do que é solicitado pelas reformas curriculares, é certo que estas falharão ou serão implementadas mitigadamente. Deste modo, pensamos que a formação de professores terá de ser (re)ajustada, pois ela é decisiva para a edificação da escola de cidadania que se ambiciona. A ideia de (re)contextualizar e (re)definir a formação do futuro professor tem como consequência a formação das futuras gerações, pelo que nos parece premente e inegável a sua pertinência. As metas dessa formação terão também que ser repensadas acompanhando as novas prioridades. As metas deverão agora centrarse não numa transmissão gratuita de conhecimentos e conteúdos programáticos, mas, na sua essência, deverão educar, preparar para a autonomia e para a construção do próprio saber. Barbosa (2000b, 353) salienta que, com o mudar dos tempos, os actores educativos vêem chegar à escola alunos que não têm referências, nem tão-pouco regras de convívio em sociedade, e que “não conhecem nem observam o imperativo da não-violência, para já
não falar da civilidade, da cordialidade, do civismo, da responsabilidade, da tolerância, do respeito pelas diferenças (sociais, culturais, sexuais), ou mesmo pelas divergências”. Apoiando-nos
42
nestes aspectos deficitários, parece-nos pertinente analisar as metas da escola e as da formação de professores, com o intuito de procurar preparar o professor para ultrapassar as múltiplas dificuldades que a vida real lhe coloca e que são sentidas no exercício da sua profissão.
3.1. EDUCAR, FORMAR E CIDADANIZAR O pensamento vigorante nas instituições responsáveis pela formação de professores, durante muito tempo, era o da transmissão sistemática, sequencial e gradual dos conhecimentos necessários ao exercício da profissão, de um modo meramente expositivo, baseado em compêndios. Eleito essencial, instruía o futuro professor, somente em aspectos teóricos. Actualmente, na sua prática pedagógica o professor continua ainda, amarrado ao material didáctico e está ainda muito preocupado em cumprir o programa, “o que o impede, muitas vezes, de ultrapassar a dimensão académica e instrutiva do ensino” (Peres, 1999, 170). O ensino transmissivo e rotineiro permanece persistente e privilegiado em detrimento de aprendizagens activas e significativas. A escolarização tradicional é, para Freire (1975, 81-85), como um banco, onde o ensino se assemelha a um acto de depósito. Na “educação bancária”, o responsável pela educação, cuja preocupação é “’encher’ os educandos de conteúdos”, é o que instrui, o que sabe, o que pensa, o que diz a palavra, o que disciplina, o que opta e prescreve a sua opção, o que actua, o que escolhe o conteúdo programático, o que identifica a autoridade do saber com a sua autoridade funcional, é o sujeito de todo o processo, comunica e “faz depósitos” que o aluno escuta, recebe, memoriza e repete, sem perguntar para quê ou porquê. Neste caso, o saber aparece como “uma doação dos que se julgam sábios aos que se julgam nada saber”. É de salientar que nesta perspectiva nada há de criativo, de transformador ou de saber, pois “só existe saber na invenção, na
reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo”.
Com a educação para a cidadania como prioridade e tema transversal nos curricula nacionais, referimos, apoiando-nos em Delors et al. (1996) e Peres (1999), que uma formação baseada apenas na transmissão de conhecimentos, “com um ensino abstracto, mnemónico, verbalista e descontextualizado” (Peres, 1999, 124), não é suficiente para assumir as exigências das novas finalidades educativas. Seria importante que a escola actual caminhasse no sentido da antecipação e apostasse numa função “preventiva” (Peres, 1999, 72), de modo a preparar activamente para a vida social e multicultural, onde
43
a cidadania democrática fosse uma realidade, começando por se introduzir a dimensão da formação pessoal e social na formação de professores. É realmente importante considerar a cidadania como um sedutor conceito e integrá-lo na formação de professores, que poderá ter bem presente, nos seus planos, “conteúdos de carácter sociológico, éticofilosófico e relativos à psicologia do desenvolvimento social e moral” (Fonseca, 2000, 48). cidadanizar, aprofundar os Torna-se fundamental conhecimentos da democracia, da participação, da cooperação e para tal deverá exercer-se uma aprendizagem conjunta, rica em valores, em ética, com vista à preparação de cidadãos preocupados, participantes e empenhados. Fazemos aqui uma ressalva salientando que cidadanizar não pode ser “a ‘fabricação’ de indivíduos socialmente preparados para
assumirem mecanicamente as normas, regras e valores da sua comunidade política”; bem pelo contrário, deve ser a “criação de condições favoráveis à construção de uma identidade politicamente comprometida com a gestão de assuntos políticos e privados” (Barbosa, 2001, 89). Deste modo, o professor poderá transformar-se em alguém “que ajuda os seus alunos a encontrar, organizar e gerir o
saber, guiando mas não modelando os espíritos e demonstrando grande firmeza quanto aos valores fundamentais que devem orientar toda uma vida” (Delors et al., 1996, 133); poderá acompanhar o evoluir
dos seus jovens alunos, passando-lhes para as mãos a “condução” da sua própria aprendizagem, sempre com a ideia de prepará-los para serem os construtores críticos do seu próprio conhecimento, adquirindo uma certa autonomia. Porém, ajudar os alunos a “organizar e reconstruir criticamente o conhecimento”, dando-lhes para tal as ferramentas precisas, é um trabalho que “exige superar rotinas e velhos procedimentos escolares,
criando um clima de abertura, diálogo e respeito pelas diferenças que possibilite ao aluno questionar e constatar os saberes e as práticas sociais, reinterpretando-os, e consciencializar-se da multiplicidade de interesses, ideologias e práticas que nem sempre respeitam os princípios democráticos” (Peres, 1999, 125), tarefa que nem sempre se torna facilitada. Seria relevante accionar a escola do sujeito, onde o aluno fosse o centro de interesse, o ponto fulcral de todo o processo de aprendizagem, onde a principal prioridade fosse o aluno com todas as suas referências familiares e sociais, que precisa de ajuda para
44
percorrer o caminho da educação, para o qual, por vezes, não está devidamente preparado. Valorizamos uma educação integral, em que todos trabalhem em função do mesmo objectivo: o desenvolvimento global como ser humano, aprendente e único.
3.2. EDUCAÇÃO HOLÍSTICA E CIDADANIA A ideia de uma educação centrada no aluno exige mudar as estruturas escolares para uma educação que leve em conta a singularidade de cada um, proporcionando um ensino mais amplo, sempre com o objectivo de se atender às especificidades e necessidades individuais. De acordo com Yus Ramos (2002), a educação do futuro deverá ser integral e englobar várias dimensões: física, mental, emocional e espiritual. Surge, então, a educação holística como um novo paradigma que procura romper com a tradição educativa. A educação holística, termo proposto por Miller (1996), apresenta a convicção de que a personalidade global de toda a criança deve ser considerada na educação. Para Miller (1998, cit. Yus Ramos, 2002:18), a educação, para ser holística, deveria essencialmente: (i) nutrir o desenvolvimento pela pessoa global; (ii) estar interessada no intelectual, assim como no emocional, no social, no físico, no criativo/intuitivo, no estético e nos potenciais espirituais; (iii) girar em torno das relações entre os aprendizes, onde a relação professor-aluno tende a ser igualitária, aberta, dinâmica em formulações holísticas; (iv) estar interessada na experiência vital, uma vez que a educação é crescimento, é um envolvimento com o mundo, é uma questão para compreender e dar sentido; (v) capacitar os alunos para que se aproximem criticamente de contextos culturais, morais e políticos das suas vidas; e (vi) reconhecer que as culturas são criadas pelo povo e que podem ser mudadas por ele se deixarem de servir às suas necessidades. As bases pedagógicas da educação holística com características inovadoras e globais deveriam substituir a “orientação
academicista, centrada nas disciplinas escolares, por outra mais centrada no aprendiz, na intensificação de todas as suas capacidades”
(Yus Ramos, 2002, ix). No que concerne aos professores, precisariam de ser formados através dos princípios do holismo, onde o ensino seria encarado como uma “arte” e não só como uma ciência técnica; onde a compreensão do desenvolvimento humano, as relações humanas, a dinâmica de grupos, a resolução de conflitos e as qualidades artísticas profissionais como a sensibilidade e compaixão deveriam estar na
45
essência do programa, enfatizando as implicações sociais, culturais e filosóficas; onde a formação intelectual teria de ser sólida, onde o “pensamento crítico, flexível e criativo, e a habilidade para pesquisar, localizar e tirar partido de todas as fontes potenciais” seriam de pertinência extrema. Pensamos que, se juntarmos este enfoque holístico à formação, valorizando uma educação activa, participada e significativa, a educação para a cidadania deixaria de ser uma utopia para se tornar uma realidade.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo de quinze anos de política educativa, foram diversos os esforços que se fizeram no sentido de educar para a cidadania. A sua concretização nem sempre foi fácil, e assistimos ao derrocar de uma série de propostas viáveis como a Área de Formação Pessoal e Social, a Área-Escola e a disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social. Mas aquela educação continua a ser necessária. Cada vez mais, os pais delegam na escola e no professor a responsabilidade de educar os seus filhos. Cada vez mais “se pede à escola que torne
possível a vida social e que prepare os jovens para o exercício de uma democracia deliberativa” (Meirieu & Guiraud, 1997, 20). Cada vez mais,
é tarefa prioritária despertar as crianças para uma cidadania participada e democrática. A tudo isto a escola tem tentado dar resposta. Partindo da constatação de que hoje se exige muito ao professor, reconhecemos que a sua missão é duplamente complexa. Para além de ser da sua responsabilidade mediar o acesso ao saber, tem agora que educar para a vida, ensinar a ser, a estar, a sentir, a reflectir; desenvolver competências e preocupar-se com uma preparação cívica, cultural, ética e moral dos seus educandos. Tem em mãos uma árdua tarefa, o que torna imprescindível uma preparação prévia e uma formação específica adequadas às circunstâncias, de maneira a sentir-se devidamente adaptado ao que lhe é exigido. As instituições de formação deverão estar sensibilizadas para a emergência de temáticas que vão para além dos tradicionais programas, das tradicionais metas da educação. Face à centralidade e à importância que se atribui ao tema da cidadania na formação de crianças e jovens, pensamos que existem lacunas na formação de professores, por não lhe concederem a mesma centralidade. As instituições de formação poderão, no entanto,
46
redimir-se, assumindo as prioridades da educação básica como suas, contribuindo para a redefinição de certos vectores de cidadania, adoptando uma formação mais global e integradora. Na essência, seria redefinir a formação docente no sentido de formar para e na cidadania.
BIBLIOGRAFIA ABRANTES, Paulo (2002), ”Introdução. Finalidades e natureza das novas áreas curriculares.”, in Novas Áreas Curriculares – Reorganização Curricular, Ministério da Educação, Departamento da Educação Básica, Lisboa, 9-18. BARBOSA, Manuel (2000a), ”Educar para os valores da cidadania democrática. Estratégias de operacionalização curricular”, in SANTOS REGO, Miguel A. (Ed.), Pedagoxia dos Valores en Galicia. Universidade de Santiago de Compostela, Santiago de Compostela, 73-87. BARBOSA, Manuel (2000b), ”A formação de professores face às novas prioridades da escola. Inventário de competências para promover a aprendizagem da cidadania”, Revista Galego-Portuguesa de Psicoloxía e Educación, Livro de Actas, nº4, vol.6, ano 4º, 352358. BARBOSA, Manuel (2001), ”Educar para a cidadania em ambiente escolar: Recontextualização e redefinição da missão do professor” in BARBOSA, Manuel (Ed.) Educação do cidadão. Recontextualização e redefinição, Edições APPACDM, Braga 75-98. BENAVENTE, Ana (1993), ”Educação, participação e democracia: Valores e práticas na instituição escolar”, Análise Psicológica, série XI, nº3, 325-333. Conseil de la Cooperation Culturell (1988), Synopsis du Project: Éducation à la Citoyenneté Démocratique, (Documento policopiado). DELORS, Jacques et al. (1996), Educação – Um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, Edições ASA, Porto. FONSECA, António Manuel (2000), Educar para a Cidadania – Motivações, princípios e metodologia, Porto Editora, Porto. FREIRE, Paulo (1975), Pedagogia do oprimido, Edições Afrontamento, Porto. FREIRE, Paulo (1991), A educação na cidade, Cortez Editora, São Paulo. MEIRIEU, Philippe e GUIRAUD, Marc (1997), L`école ou la guerre civile, Plon, Paris. PATRÍCIO, Manuel Ferreira (1992), A Área - Escola no quadro da Escola Cultural, Associação da Escola Pluridimensional e da Escola Cultural, Évora. PERES, Américo Nunes (1999), Educação Intercultural: Utopia ou realidade?, Profedições Lda, Porto. TAVARES, José (1999), ”Conhecimento científico, pedagógico e gestão curricular: Pressupostos para uma verdadeira ciência educacional”, in MARQUES, Ramiro e ROLDÃO, M.ª Céu (orgs.), Reorganização e gestão curricular no ensino básico, Porto Editora, Porto, 83-97. YUS RAMOS, Rafael (2002), Educação integral: Uma educação holística para o século XXI, Artmed Editora, Porto Alegre.
Legislação Lei n.º 46/86, de 16 de Outubro, Lei de Bases do Sistema Educativo. Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de Agosto, Planos curriculares dos ensinos básico e secundário. Despacho n.º 142/ME/90, Plano de concretização da Área-Escola. Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro, Reorganização Curricular.
47
AVALIAÇÃO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA COM VISTA À PROMOÇÃO DA CONVIVÊNCIA SOCIAL POSITIVA ENTRE CRIANÇAS
EVALUATION AND EDUCATIVE INTERVENTION TO PROMOTE POSITIVE SOCIAL RELATIONS AMONG CHILDREN Maria José D. Martins * (mariajmartins@mail.esep.ipportalegre.pt) e Maria José Branquinho ** (mize@100@hotmail.com)
RESUMO
O objectivo deste estudo era diagnosticar o clima relacional das crianças de uma turma do 1º Ciclo do Ensino Básico, com vista a melhorar as relações sociais entre as crianças, bem como os problemas de comportamento que algumas delas manifestavam. Assim, apresentamos o estudo de caso de uma turma do 1º Ciclo do Ensino Básico em que, segundo a professora, a convivência social entre as crianças parecia problemática e vários alunos apresentavam problemas de comportamento. Foi então aplicado um questionário de nomeação de pares que permitia obter índices sociométricos e atributos psicossociais relativos ao comportamento agressivo, conduta pró-social, isolamento social, liderança e condição de vítima. Este procedimento permitiu, assim, avaliar o clima relacional da turma e o padrão de comportamento social de cada criança. Com base nesta análise, a professora da turma, segunda autora deste trabalho, delineou estratégias de trabalho de pares e de grupo que, combinadas com estratégias cognitivocomportamentais, permitiram melhorar o comportamento das crianças e o clima relacional do grupo-turma. Palavras-chave : Convivência social; Agressividade; Relações entre pares.
ABSTRACT
The aim of this study was to diagnose the social climate of a primary class to improve social relations amongst the children and to deal with the behavioral problems exhibited by some of the children. A nomination questionnaire was used to diagnose the behavior patterns of each child and of the class as a whole, collecting information on sociometric indices, aggressive behavior, prosocial behavior, social isolation, leadership, and victimization. Based on the results obtained from the questionnaire, the teacher designed
48
educational strategies for pair and work groups, using cognitive and behavioral strategies, to improve the children’s behavior as well as the social climate. Key words: Social relations; Aggressively; Relations among pears.
* Professora-adjunta de nomeação definitiva na Escola Superior de Educação de Portalegre, Doutorada em Psicopedagogia pela Universidade da Extremadura (Espanha) com equivalência a doutoramento em Psicologia da Educação da Universidade de Lisboa. ** Professora do 1º ciclo de quadro, a leccionar na Escola Básica nº 1 de Alter do Chão, com o curso de Magistério Primário e o curso de qualificação para o exercício de outras funções educativas- Educação Especial - problemáticas de risco/domínio cognitivo-motor.
49
1. INTRODUÇÃO A adaptação escolar depende em boa parte das relações que as crianças mantêm com os companheiros. As relações com os companheiros representam o contexto principal no qual se desenvolvem as competências sociais de reciprocidade e autonomia, complementando as relações que as crianças estabelecem com os adultos, que promovem a segurança e interdependência (Diaz-Aguado, 1996; Pellegrini e Blachard, 2000; Kupersmidt e Dodge, 2004). Vários autores consideram que a integração social no grupo de pares é um importante factor de ajustamento psicossocial e emocional nas crianças (Crick e Dodge, 1994; Dodge, 1983; Coie, 2004; Ramirez, 2001). Os questionários sociométricos e os questionários de atributos percebidos pelos pares são um dos procedimentos mais utilizados para avaliar a integração social ou ajustamento psicossocial das crianças e dos adolescentes. Com base nesse tipo de instrumentos, vários autores (e.g., Dodge, 1983; Dodge, Coie, Pettit e Price, 1990; Martins, 2003, 2004; 2006) têm constatado uma associação entre determinados padrões de comportamento social de crianças e adolescentes e o estatuto sociométrico que ocupam no grupo de pares. Assim, a maioria da investigação sugere que parece existir uma relação bastante consistente entre determinados padrões de comportamento social e o estatuto sociométrico de crianças e adolescentes no seu grupo-turma (ver Coie, 2004; Crick e Dodge, 1994; Martins, 2003, 2004; 2006; Salmivalli et al., 1996, 1998; Warden e Mackinnon, 2003), no sentido indicado na tabela 1. Tabela 1: Comportamentos versus Padrões de comportamento social Padrão de comportamento social:
Estatuto sociométrico:
Auxiliador da vítima
Popular (muitas preferências e nenhumas rejeições).
Não envolvido e/ou observador imparcial
Médio (mais preferências que rejeições).
Vítima/agressora
Rejeitado (muitas rejeições e nenhuma preferência).
Agressor
Controverso (2 ou 3 preferências e muitas rejeições).
Vítima passiva
Rejeitado ou Isolado (nem preferido, nem rejeitado).
A maioria da investigação sobre a conduta agressiva e sobre os maus tratos entre pares sugere ainda que estes parecem ser um fenómeno grupal e complexo, no qual é possível identificar, para além
50
das vítimas e dos agressores, crianças que são simultaneamente vítimas e agressoras (também designadas por vítimas provocadoras) e observadores, cujo papel pode variar do apoio aos agressores, até à ajuda à vítima, passando pela indiferença e menos frequentemente pela ignorância das ocorrências (e.g., Martins, 2003; 2006; Salmivalli et al., 1996; 1998; Warden e Mackinnon 2003). Deste modo, vários autores (e.g., Salmivalii e colaboradores, 1996; 1998) identificaram os seguintes estatutos no grupo-turma: - Vítima passiva; neste papel encontram-se geralmente crianças ou adolescentes que se encontram socialmente isolados, sem amigos, e que exibem baixa auto-estima, problemas de saúde física (sintomas psicossomáticos) e de saúde mental (sintomas depressivos, ansiedade, insegurança), medo dos agressores, vulnerabilidade, parecendo incapazes de se defender perante a intimidação; - Agressor ou bully; neste papel é mais frequente encontrar alunos do sexo masculino; o agressor típico é aquele que inicia a intimidação e o comportamento agressivo e geralmente tem um papel de liderança num pequeno grupo de amigos, embora seja rejeitado pela maioria dos companheiros de classe, gosta de dominar os outros, tem dificuldade em cumprir normas e em relacionar-se com os adultos; - Vítima/agressora ou vítima provocadora; este papel remete para alunos que são simultaneamente vítimas e agressores, mas a sua agressividade é de tipo reactivo; são irritantes e muito impulsivos, reagindo com agressão a qualquer tipo de provocação ou situação ambígua, são os mais impopulares e os mais rejeitados (mais que as vítimas passivas e do que os diferentes tipos de agressores); alguns têm diagnóstico de hiperactividade, distúrbio de conduta ou outros distúrbios do foro psiquiátrico (segundo a classificação DSM-IV): - Auxiliares das vítimas; são os alunos que habitualmente defendem as vítimas e vão em seu auxílio, neste papel é mais frequente encontrar alunos do sexo feminino; em geral, são alunos bastante populares e com muitos amigos, que exibem manifestamente uma conduta pró-social; - Assistentes e reforçadores dos agressores; são os que apoiam e seguem passivamente os agressores líderes e os que riem e proporcionam audiência ao agressor; têm características similares às dos agressores, mas menos atenuadas, e alguns deles, quando afastados do grupo de agressores, diminuem o envolvimento nesse tipo de condutas; - Não envolvidos; são todos aqueles que não se dão conta do que se passa, ou que sabem mas não se querem envolver.
51
Os questionários de nomeação de pares têm sido habitualmente utilizados como instrumentos de investigação para esclarecer as relações entre os índices sociométricos e os padrões de comportamento social das crianças. Tendo em conta que essas relações surgem de forma consistente, no sentido atrás descrito, através de várias investigações (e.g, Crick e Dodge, 1994; Martins, 2003, 2006; Salmivalli et al., 1996, 1998; Warden e Mackinnon, 2003), o objectivo deste estudo foi utilizar um questionário de nomeação de pares, em dois momentos diferentes, com vista a diagnosticar o clima relacional das crianças de uma turma do 1.º Ciclo do Ensino Básico, de forma a contribuir para uma intervenção educativa mais esclarecida, por parte da professora da turma, que se confrontava com problemas de comportamento, agressividade e dificuldades no relacionamento social entre as crianças. A aplicação do questionário de nomeação de pares permite obter indicadores relativos a índices sociométricos e a atributos psicossociais relativos a comportamento agressivo, conduta pró-social, isolamento social, liderança e condição de vítima. A análise destes indicadores, no início do terceiro período do 1º ano de escolaridade, permitiria à professora da turma delinear estratégias de trabalho cooperativo (de pares e/ou de grupo), que, combinadas com estratégias cognitivo-comportamentais, poderiam conduzir à melhoria o comportamento de algumas crianças e o clima relacional do grupoturma. Uma segunda aplicação do questionário no final do primeiro período do 2º ano de escolaridade, com os mesmos alunos, permitiu avaliar a eficácia das estratégias utilizadas e delinear novas estratégias com base no novo diagnóstico do clima relacional da mesma turma no 2º ano de escolaridade.
2. METODOLOGIA Participaram 23 alunos a frequentar o 1º ano, e num segundo momento o 2º ano, de uma turma de 1.º ciclo do Ensino Básico de uma vila da região Norte Alentejo; 12 do género masculino e 11 do género feminino. Na primeira avaliação, os alunos tinham idades compreendidas entre os 6 (14 crianças) e os 7 anos (9 crianças). Como instrumento foi utilizado um questionário sociométrico associado a um questionário de atributos psicossociais com 9 questões, elaborado com base nos instrumentos de nomeação de
52
pares sugeridos por Dodge (1983). As primeiras 4 questões permitiam obter indicadores sobre preferências (no trabalho e no recreio) e rejeições (no trabalho e no recreio), e as 5 seguintes permitiam obter indicadores sobre os atributos psicossociais, nomeadamente: agressão (Qual é o menino ou menina que inicia as brigas e bate mais nos outros?); liderança (Qual é o menino que orienta mais os jogos e brincadeiras?); conduta pró-social (qual é o menino que partilha e ajuda mais os outros?); isolamento social (qual é o menino que brinca mais sozinho?); e vitimação (qual é o menino que é mais gozado pelos outros?). O mesmo questionário foi aplicado em dois momentos distintos, no início do terceiro período do 1º ano de escolaridade e no final do primeiro período do 2º ano de escolaridade. Uma vez que na primeira aplicação as crianças frequentavam o 1º ano de escolaridade, foi conduzida uma entrevista pela professora da turma (segunda autora deste trabalho) com cada aluno, com vista à obtenção dos dados pretendidos. Foi garantida aos alunos a confidencialidade dos resultados obtidos. Foi-lhes ainda explicado que poderiam, em cada questão, escolher um ou mais colegas, e que até se poderiam escolher a eles próprios, ou não escolher nenhum, se assim o entendessem. Na segunda aplicação, a maioria dos alunos respondeu autonomamente e por escrito.
3. RESULTADOS Na tabela 2 apresentam-se as percentagens obtidas por cada um dos alunos em cada um dos cinco atributos considerados, bem como os índices compósitos de preferências e rejeições. Os alunos estão representados por um código, em que a letra M se refere aos do sexo masculino e a letra F se refere aos do sexo feminino. A leitura da tabela 2 permite-nos, ainda, efectuar uma análise dos padrões de comportamento social de cada um dos alunos. Assim, destacamos os casos de alguns alunos: Aluno M1 — Este aluno foi o mais nomeado no atributo relativo ao isolamento, no qual teve 10 nomeações (43,4%), tendo sido também o mais nomeado no atributo relativo à vitimação, no qual teve 11 nomeações (47,8%). Este, para além de ser um dos que não é escolhido (0% de preferências), é rejeitado por 5 colegas (21,7%), pelo que podemos dizer que parece apresentar o perfil da vítima passiva. Esta criança é de etnia cigana, falta muito à escola, não realiza qualquer
53
tipo de trabalho de casa, não participa nas actividades desenvolvidas no exterior da escola e, talvez por isso, os colegas ainda não sentem que ele faz parte do grupo-turma. Tabela 2 – Percentagem dos índices sociométricos e atributos psicossociais percebidos pelos pares no 1º ano de escolaridade Atributos
Agressividade
Isolamento
Liderança
Alunos
%
%
M1
0
M2
Dados da Matriz Sociométrica % Nº de Nº de Preferência Rejeições
Vitimação
%
Conduta Pró-Social %
43,4
0
0
47,8
0
22
0
0
0
17,4
4,3
22
0
M3
4,3
0
4,3
13
4,3
4,3
4,3
M4
8,6
4,3
0
34,8
4,3
0
4,3
M5
0
4,3
0
13
4,3
4,3
0
M6
21,7
0
30,4
17,4
8,7
8,6
8,6
M7
47,8
21,7
0
0
0
8,6
39
M8
21,7
0
43,4
0
0
4,3
13
M9
4,3
8,7
0
4,3
8,7
0
8,6
M10
0
4,3
0
0
0
8,6
8,6
M11
4,3
4,3
4,3
0
0
0
4,3
M12
65,2
30,4
0
0
13
0
43
F13
0
4,3
0
17,4
4,3
17
0
F14
0
0
43,4
0
4,3
13
4,3
F15
0
8,7
4,3
0
4,3
0
4,3
F16
4,3
0
26
0
0
0
22
F17
4,3
4,3
0
0
4,3
8,6
13
F18
13
0
13
0
30,4
17
4,3
F19
0
0
30,4
47,8
0
52
0
F20
0
26
0
13
13
0
0
F21
0
0
0
0
4,3
22
0
F22
8,6
8,7
0
0
8,7
8,6
17
F23
0
0
0
21,7
4,3
30
%
0 n = 23
54
Aluno M7 — Este aluno foi um dos que recebeu mais rejeições (39%), tendo ainda sido nomeado no atributo relativo à agressividade por 11 colegas (47,8%). Também foi nomeado por 5 colegas (21,7%) no atributo relativo ao isolamento. Estes dados sugerem que este, para além de ser um agressor, é uma criança que interage pouco com os colegas, até mesmo no recreio. Não participa nas brincadeiras de grupo, pois anda sempre a correr de um lado para o outro, sem qualquer objectivo. Revela pouca concentração e uma grande agitação e é muito impulsivo, reagindo sem pensar às atitudes dos colegas. Parece apresentar o perfil de agressor, mas sem características de liderança, pelo que poderá vir a ser um seguidor daqueles que exibam esse perfil. Aluno M8 — Este aluno foi um dos mais nomeados pelos colegas no atributo da liderança, (10 nomeações - 43,4%) e foi o terceiro mais nomeado no atributo da agressividade (5 nomeações 21,7%). Perante estes resultados, podemos considerar que é uma criança com perfil de líder, mas um líder agressivo. Mostra ser muito reactivo, revelando condutas agressivas como resposta perante situações adversas. Exemplo: Quando ele considera que algum colega não respeita as instruções que ele dá, num jogo ou brincadeira, imediatamente reage com violência. Parece exibir o perfil do agressor típico, capaz de mobilizar outros para esse tipo de condutas. Aluno M12 — Este aluno teve 15 nomeações (65,2%) no atributo relativo à agressividade e foi o segundo aluno mais nomeado, (7 nomeações - 30,4%), no atributo relativo ao isolamento. Devemos salientar que este foi o aluno mais rejeitado (recebeu 43% de rejeições) e recebeu também 3 nomeações na vitimação (13%). É uma criança muito instável, que reage negativamente a qualquer contacto físico com os colegas, pelo que aparece constantemente metido em conflitos. Quando fica agressivo, fala muito alto, não cumpre as regras da sala de aula e bate nos colegas ou chama-lhes nomes. Apresenta comportamento idêntico ao de alguns adultos. O seu perfil aproxima-se do padrão de vítima/agressora. Aluno F19 — Foi a aluna mais escolhida pelos colegas (recebeu 11 nomeações - 47,8% nas preferências) e foi também a mais nomeada no atributo relativo à conduta pró-social (11 nomeações 47,8%); obteve também 7 nomeações no atributo liderança (30,4%). É uma criança meiga e educada, que revela muita vontade de aprender. A sua popularidade e predisposição para ajudar podem ser utilizadas no sentido de ajudar alguns dos alunos vítimas, agressores ou vítimas/agressoras.
55
Assim, surgem como alunos em risco M1 (devido ao isolamento e vitimação) M7, M8 e M12, devido ao seu comportamento agressivo e, ainda, no caso de M8, devido à associação da agressão à capacidade de liderança, e, no caso de M12, devido à associação da agressão à vitimação. Outros alunos deverão igualmente merecer especial atenção, nomeadamente M6, que apresenta também um padrão de conduta agressiva associado à liderança, embora não tão acentuado como em M8; e o mesmo sucede com o F18, que surge como vítima/agressora, embora de forma não tão acentuada como M12. Após esta avaliação, a professora da turma, segunda autora deste trabalho, constituiu grupos de trabalho cooperativo e /ou de pares, tal como sugerido por vários autores (e.g., Diaz-Aguado, 2003; Smith, Cowie & Berdondini, 1994); evitou colocar no mesmo grupo ou em locais próximos, em termos de disposição na sala, M7, M8; M12 e M1. Evitou agrupar ou aproximar os alunos agressores, a fim de que o grupo não contribuísse para potenciar o seu comportamento agressivo, e afastou-os também dos alunos mais vitimados, de forma a protegêlos dos agressores e a deles afastar os mais vulneráveis. Situou M12 como companheiro de carteira de F19, visto que pareciam conseguir manter uma boa relação. F19 pareceu revelar-se capaz de ajudar M12 a melhor gerir o seu comportamento e impulsividade e parecem estar a desenvolver uma boa relação na sala de aula. A professora da turma efectuou também uma lista de verificação dos comportamentos de M7 e M12, de acordo com as sugestões de Rutherfod e Lopes (1994), porque, segundo a sua própria observação, estes pareciam ser os mais problemáticos, no âmbito da gestão da sala de aula. Ao constatar que os comportamentos «fora do lugar» e «bate e empurra os outros» eram muito frequentes nestes alunos, estabeleceu contratos escritos com os mesmos no sentido de alterar esses comportamentos e substituí-los por outros mais adequados, estipulando que o reforço seria mais tempo em actividades livres ao gosto de cada um. M12 pareceu também beneficiar de estratégias de regulação das emoções e dos impulsos. Na tabela 3 apresentam-se as percentagens obtidas por cada um dos alunos em cada um dos cinco atributos considerados, bem como os índices compósitos de preferências e rejeições no 2º ano de escolaridade, após uma intervenção da professora (segunda autora deste trabalho). Os mesmos códigos são utilizados para referenciar os mesmos alunos.
56
Tabela 3 – Percentagem dos índices sociométricos e atributos psicossociais percebidos pelos pares no 2º ano de escolaridade Atributos Agressividade
Isolamento
Liderança
%
%
M1
0
M2
Dados da Matriz Sociométrica %
Vitimação
%
Conduta Pró-Social %
%
Nº de Preferências
Nº de Rejeições
8,6
0
0
13
4
13
8,6%
0
13
8,6
0
17
13
M3
8,6
0
8,6
8,6
0
13
4,3
M4
0
0
0
13
0
13
0
M5
0
0
0
4,3
0
4,3
4,3
M6
60
0
30,4
8,6
8,6
0
17
M7
13
0
0
4,3
8,6
8,6
47
M8
21,7
0
8,6
8,6
0
30
13
M9
13
0
0
0
0
8,6
0
M10
13
0
0
0
0
8,6
0
M11
0
13
0
0
0
0
8,6
M12
21,5
8,6
13
0
8,6
2
34
F13
0
0
8,6
13
0
4,3
0
F14
0
0
17,4
0
00
8,6
0
F15
0
4,3
0
8,6
0
13
0
F16
0
4,3
8,6
0
4,3
4,3
0
F17
0
8,6
0
4,3
0
26
0
F18
0
0
0
0
17
0
13
F19
0
0
17,4
21,7
0
21,5
4,3
F20
0
0
0
8,6
8,6
8,6
4,3
F21
0
0
0
0
4,3%
4,3
13
F22
4,3
8,7
0
0
13
17
13
F23
0
0
0
4,3
0
13
Alunos
4,3 n = 23
Um dos aspectos salientes da segunda avaliação é a diminuição da condição de vítima dos alunos inicialmente mais vitimizados: M1 e F18. Aliás, mais nenhum outro aluno exibe percentagens elevadas nesse indicador, comparativamente ao que acontecia na primeira avaliação (ver tabela 2).
57
Constata-se igualmente uma diminuição dos comportamentos agressivos de M7 e M12, que embora continuem a ser dos mais rejeitados da turma, são-no um pouco menos que da primeira avaliação, recebendo mesmo algumas preferências. M8 mantém a mesma percentagem na conduta agressiva, mas parece ter perdido alguma da sua capacidade de liderança. Nesta segunda avaliação, M6 parece ser a criança que exibe um padrão de comportamento social de maior risco, na medida em que é considerado o mais agressivo e o segundo mais rejeitado, mas detém atributos de liderança. É, pois, necessário afastá-lo de M7, M8 e M12, a fim de não potenciar o seu comportamento agressivo, entretanto atenuado, bem como de M1, F22 e F18, que parecem mais susceptíveis à vitimação, e iniciar um contrato de mudança de comportamento e um plano de contingências de reforço com vista à melhoria dos comportamentos agressivos de M6, que, segundo a professora, surgem sobretudo no contexto do recreio, pois trata-se de um aluno que tem feito bons progressos nas aprendizagens escolares.
4. CONCLUSÕES E DISCUSSÃO A utilização do questionário de nomeação de pares parece terse revelado útil na avaliação do clima relacional de um grupo-turma do 1º ciclo do ensino básico, bem como dos padrões de comportamento social de cada uma das crianças que o compunham. Com base nessa análise, a professora da turma pôde, de um modo mais esclarecido, situar as crianças em diferentes lugares na sala; propor grupos ou pares de crianças para trabalho na aula mais coesos e produtivos e, ainda, delinear as estratégias cognitivo-comportamentais adequadas com vista a melhorar os problemas de comportamento de algumas crianças e o clima relacional do grupo-turma (Martins, 2006). As características das crianças, em termos de padrões de comportamento social combinados com os índices sociométricos, foram determinantes para a reestruturação dos lugares e grupos de trabalho na sala. A aplicação do mesmo questionário em um momento posterior (final do primeiro período do 2º ano de escolaridade) revelou que as estratégias implementadas pela professora permitiram melhorar alguns aspectos do clima relacional da turma e diminuir a condição de vítima de alguns alunos que inicialmente se situavam claramente nessa condição; contribuiu também para diminuir a agressividade de outros.
58
Um dos alunos agressivos ainda parece revelar-se em risco, contudo tal poderá dever-se ao facto da atenção de a professora se ter centrado nos mais problemáticos, tal como a sua observação e primeira avaliação tinham revelado. Afigura-se necessário continuar este tipo de estratégias e efectuar contratos comportamentais e planos de contingência de reforços com esse aluno em particular. Na maioria das situações, os alunos que são percebidos como mais agressivos pelo professor são-no também pelos pares, contudo o questionário revela ainda aqueles que são mais agressivos no recreio e que na sala não apresentam problemas na relação com o professor; alerta para a situação dos agressores que são simultaneamente vítimas; e, sobretudo, para a condição dos mais vitimizados ou rejeitados, que nem sempre são tão evidentes quanto os agressores, sobretudo na perspectiva dos adultos. Apesar de alguns problemas não terem sido totalmente ultrapassados, este estudo revelou claramente que é possível alterar o padrão de comportamento social das crianças de uma turma e em particular diminuir a vitimação. O estudo salienta ainda o facto de que um índice de rejeições elevado pode indicar risco de vitimação, de agressão, ou de ambos; que é mais difícil alterar as condutas agressivas do que a condição de vítima; e que a intervenção junto dos agressores líderes deverá provavelmente ser diferente da intervenção junto das vítimas/agressoras. Enquanto os primeiros beneficiarão mais de planos de contingência de reforço e de estratégias cognitivocomportamentais, os segundos provavelmente beneficiarão mais de estratégias que os ajudem a identificar e regular emoções e impulsos (Dodge et al., 2003). Este estudo parece também revelar que os questionários de nomeação de pares, para além de constituírem um instrumento de investigação e recolha de dados relativamente fidedigno (Pellegrini e Bartini, 2000), podem constituir um instrumento pedagógico eficaz, na medida em que podem contribuir para se efectuar um diagnóstico do clima relacional das turmas (Martins, 2006). Este, por sua vez, pode permitir uma intervenção mais esclarecida e informada da parte do professor, perante situações de agressividade, bullying e na promoção de uma convivência social positiva entre as crianças. Um clima relacional caloroso e positivo, não só entre o professor e as crianças, mas também entre as próprias crianças, poderá melhorar o ambiente de aprendizagem e contribuir para o sucesso académico.
59
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Coie, John (2004); “The impact of negative social experiences on the development of antisocial behaviour”, in Kupersmidt, Jonh e Dodge, Kenneth Chidreen’s peer relations. From development to intervention. American Psychological Association: Washington, D.C. Crick, Nicki; Dodge, Kenneth (1994); A review and reformulation of social informationprocessing mechanisms in children’s social adjustment, Psychological Bulletin, 115, 1, 74101. Diaz-Aguado; Maria José (1996); Escuela y Tolerância, Ed. Pirámide: Madrid. Diaz-Aguado; Maria José (2003); Educação Intercultural e Aprendizagem Cooperativa, Porto editora, Porto. Dodge, Kenneth (1983); “Behavioural antecedents of peer social status”; Child Development, 54, 1386-1399. Dodge, Kennth; Coie, Jonh; Pettit, G.; Price (1990); “Peer status and aggression in boy’s groups: developmental and contextual analyses”, Child Development, 61, 1289-1309. Dodge, Kenneth; Lansford, J.; Burks, V.; Bates, J.; Pettit, G.; Fontaine, R.; Price (2003); “Peer rejection and social information-processing factors in the development of aggressive behaviour problems in children”; Child Development, 74, 2, 374-393. Kupersmidt, John; Dodge, Kenneth (2004) (Eds.) “Children’s peer relations”; Development to Intervention; American Psychological Association: Washington DC,. Martins, Maria José D. (2003); “Agressão e vitimação entre adolescentes em contexto escolar. Variáveis sociodemográficas, psicossociais e sociocognitivas”; Dissertação de doutoramento apresentada à Universidade da Extremadura (Espanha). Martins, Maria José D. (2004); “Factores psicossociais associados ao problema da violência escolar”; in B. Carnielli; M. Grams; M. Pereira; P. Filho (Orgs.). Anais do Congresso Iberoamericano sobre Violências nas Escolas; (CD-ROM) Brasília: Observatório de violência nas escolas. Martins, Maria José D. (2006); “Condutas agressivas, integração social e atributos psicossociais”; in Santos, Nuno; Lima, Maria L.; Melo, Madalena M.; Candeias, Adelinda; Grácio, Maria L. & Calado, A. (Orgs). Actas do VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia; (CD-ROM). Évora: Universidade de Évora. Pellegrini, Antony, D.; Bartini, M. (2000); “An empirical comparison of methods of sampling aggression and victimization in school settings”; Journal of Educational Psychology, 92, 2, 360-366. Pellegrini, Antony; Blatchford, Peter (2000); The Child at School. Interactions with Peers and Teachers; Arnold Pub: London. Ramírez, F. Cerezo (2001); Condutas Agressivas na Idade Escolar. Mcgraw-hill: Lisboa. Rutherford, Robert; Lopes, João (1994); Problemas de Comportamento na Sala de Aula. Identificação, Avaliação e Modificação; Porto Editora: Porto. Salmivalli, Cristinna; Lagerspetz, K.; Bjorkqvist, K; Osterman, K.; Kraukianen, A. (1996); “Bullying as a group process: participant roles and their relations to social status within the group”; Aggressive Behavior; 22; 1-15. Salmivalli, Cristinna; Lappalainen, M.; Lagerspetz, K. (1998); “Stability and change of behavior in connection with bullying in schools: a two year follow-up”; Aggressive Behavior; 24, 205-218. Smith, Peter, Cowie, Helen; Berdondini, L. (1994); “Cooperation and bullying”; in Kutnick, P. & Rogers, C. (Eds.), Groups in Schools Cassell; New York. Warden, David; Mackinnon, S. (2003); “Prosocial children, bullies and victims: An investigation of their sociometric status, empathy and social problem-solving strategies”; British Journal of Developmental Psychology, 21; 367-385.
61
A PEDAGOGIA IDEAL DA ARETÊ NA MORTE DE SÓCRATES THE IDEAL PEDAGOGY OF THE ARETÊ IN SOCRATES DEATH Paulo Moutinho Barroso * (pbarroso1062@gmail.com)
RESUMO
Este artigo sublinha a importância da aretê como ideal pedagógico e prática cultural na formação do indivíduo. Para isso, reporto-me à cultura clássica e ao legado histórico e referencial que as sociedades contemporâneas e ocidentais podem usufruir. Designadamente a um dos episódios mais marcantes do apogeu da racionalidade na Antiga Grécia: a morte de Sócrates, segundo o Críton de Platão, como pedagogia ideal da aretê. Nesta perspectiva eminentemente teórica, a metodologia que melhor conduz à prossecução do objectivo proposto baseou-se na releitura, análise, compreensão e interpretação de várias obras de referência consideradas indispensáveis para a mencionada temática. Os resultados deste meu artigo reflexivo passam essencialmente pela conclusão de que a aretê serve como ideal pedagógico e prática cultural de um “eu” conforme determinados padrões conceptuais de excelência. Assim, considero que um dos maiores méritos da cultura clássica foi ter percebido que o homem é educável porque, precisamente, é modificável. A possibilidade de modificar o homem faz parte do projecto Paideia, um programa para a perfectibilidade ou excelência. Tratase de um mérito muito trabalhado, porque o conceito de aretê resume a vida de qualquer homem que procura, durante a sua curta existência, ser melhor não só face ao que foi no dia anterior, como também face aos outros. Palavras-chave: Aretê, cultura clássica, pedagogia, Platão, Sócrates.
ABSTRACT
This article underlines the importance of aretê as an educational ideal and cultural practice in the education of the individual. This article reaches back to classical culture and its historical and referential legacy, which is enjoyed in contemporary Western societies. One of the most striking episodes at the height of rationality in ancient Greece, the death of Socrates, was described by Plato in his dialogue, Crito, as the ideal pedagogy of the aretê. In this highly theoretical perspective, the best methodology to achieve the proposed goal is based on an exercise of reassessment, analysis, interpretation and understanding of various works of reference. The results of this reflective article are resumed essentially in the conclusion that aretê serves as an educational ideal and cultural practice, according to certain conceptual standards of
62
excellence. Thus, one of the greatest virtues of classical culture was to have noticed that Man can indeed be educated precisely because he can be changed. The possibility of changing is part of the Paideia project, a program for perfectibility and excellence. This is a much worked on virtue because the concept of aretê summarizes the life of any man who seeks, during his short existence, to be better not only with respect to what he was the day before, but also with respect to others. Key words: Aretê, classical culture, pedagogy, Plato, Socrates.
* Licenciado e doutor em Filosofia; licenciado e mestre em Ciências da Comunicação; investigador de Pós-doutoramento; equiparado a assistente do 2ºTriénio na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico da Guarda.
63
1. INTRODUÇÃO Ao falar da aretê, enquanto pedagogia ideal, não podia omitir um dos episódios mais exemplares de humanidade, sabedoria e respeito pelo Estado e pela sociedade como aquele que foi protagonizado por Sócrates ao aceitar passivamente a sua condenação à morte. Todavia, também não podia, ao falar da aretê, deixar de reportar a fidelidade grega ao sentido que este conceito envolve. Por isso, começo por fazer um apuramento conceptual da aretê para, depois, salientar o papel do próprio sujeito na obtenção e manutenção desse ideal de virtude ou excelência. Considero que o papel do próprio sujeito na procura das várias excelências da vida tem por referência a tradição poética e mítica de Homero. É por considerar a aretê um desígnio pedagógico que a cultura clássica definiu um programa de educação primorosa. Um programa que permitisse formar os indivíduos segundo princípios normativos de excelência. Na cultura clássica, Platão e Aristóteles apreciaram e divulgaram esses princípios normativos de excelência. Cada um dos quais através da sua respectiva perspectiva peculiar sobre a aretê e sobre a figura que melhor encarnou, praticou e fomentou nos outros esses princípios: Sócrates. Efectivamente, Sócrates pode ser considerado um dos melhores representantes, praticantes e defensores da aretê. Tanto que até na sua morte, tão mitificada como a sua própria vida, elevou sobre tudo a adesão à aretê. Por conseguinte, considero que se pode retirar uma pedagogia da morte de Sócrates, tal como a mesma é descrita no Críton de Platão, e estabelecer um enfoque sobre a aretê enquanto ideal pedagógico e prática cultural na formação dos indivíduos. Nesta perspectiva, este artigo pretende sublinhar a importância e o papel que a aretê pode desempenhar como ideal pedagógico e prática cultural na formação dos indivíduos. Para o demonstrar, reportome necessariamente à cultura clássica e ao legado histórico e referencial que as sociedades contemporâneas e ocidentais podem usufruir desse passado ancestral mitificado. Um passado mitificado que, tal como pode acontecer com Homero ou até com Sócrates, não exige que tenha ocorrido ou existido, mas apenas que cumpra um papel normalizador e orientador da acção humana. É esta uma das funções de um mito: orientar, descrevendo uma certa realidade (imaginada ou ficcionada) de uma determinada maneira profícua para as acções futuras.
64
A morte de Sócrates é, designadamente, um dos episódios mais marcantes do apogeu da racionalidade na Antiga Grécia, porque evidencia uma pedagogia ideal da aretê. Nesta perspectiva eminentemente teórica, sigo uma metodologia simples, mas eficaz, porque facilmente conduz à prossecução do objectivo proposto. E essa metodologia baseia-se num trabalho de releitura, análise, compreensão e interpretação de várias obras de referência consideradas indispensáveis para a mencionada temática. Uma metodologia teórica e reflexiva para um exercício interpretativo das aporias próprias decorrentes de qualquer indagação do sentido das nossas acções e comportamentos sociais. Os resultados deste meu artigo reflexivo resumem-se à conclusão subjectiva de que a aretê serve como ideal pedagógico e prática cultural de um “Eu” que se limita conforme determinados padrões conceptuais de excelência. É por isto que considero que um dos maiores méritos da cultura clássica foi ter percebido que o Homem é educável porque o Homem é, precisamente, modificável. A possibilidade de modificar o Homem faz parte do projecto da Paideia, um programa para a perfectibilidade ou excelência. Trata-se de um mérito muito trabalhado, um trabalho de Askésis, porque o conceito de aretê resume a vida de qualquer Homem que procura, durante a sua curta existência, ser melhor a cada momento que passa. Qualquer Homem que procura ser melhor tendo como motor dessa busca interior a excelência que não está no Homem, mas está fora do Homem, no exterior, e que, por isso, é acessível a todos os Homens.
2. COMO REPORTAR A FIDELIDADE À ARETÊ NA CULTURA CLÁSSICA? “Ante o mérito [aretê], puseram os deuses o suor; longo e escarpado é o caminho que conduz até lá, e áspero a princípio; mas, depois de chegar ao cimo, em fácil se volve, por difícil que seja.” (Hesíodo, Trabalhos e Dias, 287-92).
A pertinência da supramencionada epígrafe de Hesíodo reside na condensação de parte essencial do que pretendo dizer acerca do conceito de aretê: primeiro, que para alcançar a aretê é preciso “suor”, esforço, trabalho, sacrifício, isto é, é exigido que seja percorrido um caminho difícil; segundo, que depois de percorrido esse caminho, há um merecido reconforto e uma diferente perspectiva sobre as dificuldades enfrentadas. Mas o conceito de aretê remete para muitos
65
mais sentidos. Por isso, de um modesto trabalho de reflexão intitulado «A pedagogia ideal da aretê na morte de Sócrates» é esperado que defina, primeiramente, o que se entende por tal termo. Este é, aliás, um dos objectivos para os quais me proponho. Mas não é o único nem, assim creio, o mais importante. Melhor do que definir aretê é reportar a fidelidade àquilo que este conceito significa na antiga cultura clássica e como a própria morte de Sócrates representa exponencialmente essa excelência. Porquê? Primeiro, porque aretê representa a idealização de um projecto grego de educação humana, cuja herança foi recebida por muitas e variadas culturas, cada uma, por seu turno, adaptando-a à sua maneira e preservando-a ainda hodiernamente como valor absoluto. Segundo, porque aretê constitui o que de mais honroso pode existir, em termos físicos ou psicológicos, num indivíduo: a sua excelência. Terceiro, porque o que seguramente está em causa ao falar de aretê é algo de mais essencial no Homem, algo que não pode ser fixado em proposições (apesar de um conceito condenar para um discurso explicativo do significado) ou interiorizado pela fé, algo que, pelo contrário, deve ser experimentado, exercido ou, pelo menos, representado de forma ideal. Por conseguinte, “Como reportar a fidelidade à aretê na cultura clássica?” parece-me constituir a pergunta-chave desta reflexão. Ou então as suas derivações: “De que forma a cultura clássica grega valorizava o conceito aretê?”; “Qual o papel da aretê nos ideais de formação humana da Antiguidade Grega?”. Ou então ainda, se não for ousada nem pedante, de facto, a pretensão pela originalidade: “A que é fiel o herói da Antiga Grécia?”
2.1 APURAMENTO CONCEPTUAL DE ARETÊ Antes de mais, passemos à identificação e compreensão do conceito. Aretê designa a qualidade pela qual algo ou alguém se mostra excelente. Todavia, a definição/tradução de aretê (άρετή) como “excelência”, “perfeição”, “superioridade”, “mérito”, “honra” ou “virtude” de qualquer tipo contribui para a reportagem da fidelidade deste conceito para os antigos gregos, na medida em que estabelece os pontos de partida e de chegada para a formação e orientação de um carácter ideal ou de uma estética existencial, isto é, remete para a concretização de um propósito de vida. Na Antiguidade Clássica, esse propósito de vida era formado e orientado pela busca da aretê, pela procura em ser a melhor pessoa possível e em fazer um bem absoluto.
66
Este era, de resto, o objectivo principal que engrandecia o ideal de herói homérico e o requisito para a sua mitificação. Por isso é que a raiz da palavra aretê é a mesma que a das palavras compostas por “áristos” (άριστο, “o melhor” ou “o mais valente”, superlativo de “agathós”, άγαθός, o nobre, o aristocrata, o homem de valor, o que tem coragem – o melhor por cumprir o seu propósito ou função), que significa superioridade ou habilidade superlativa digna de nobreza. Nos poemas heróicos, como os de Homero, é adequado dizer que um homem é agathós se tiver valor, habilidade, isto é, coragem guerreira. Todavia, o contexto de aretê é exclusivo aos nobres, aos aristocratas. Como conceito que sublinha o carácter excepcional dos homens, a aretê é, também, um conceito de excepção pelas qualidades que valoriza em apenas alguns homens. É uma forma de excepcionar a sociedade, porque a divide entre os que têm e os que não têm estirpe. No seu conjunto, este ideal de excelência excepcional não privilegiou sempre e apenas os nobres. Algumas práticas educativas da “Paideia” (παιδεία) democratizaram-se posteriormente. Por exemplo, os jogos olímpicos representam hoje um espectáculo popular muito mediatizado, que envolve todos os países e todos os estratos sociais. Todavia, o mesmo não aconteceu com a cinegética e o hipismo, que permaneceram práticas típicas da elite nobiliárquica.
2.2 O FACTOR DIVINO NA OBTENÇÃO E CONSERVAÇÃO DA ARETÊ A aretê é alcançada pelos humanos enquanto dádiva divina, mercê atribuída por direito, e a sua manutenção está sujeita às acções realizadas posteriormente (Homero, 2003: XVII, 322-3; 2005: XX, 2423). O Homem grego buscou com avidez a excelência. Para isso, recebeu uma prestimosa formação de um preceptor. Todavia, tem consciência que a obtenção da aretê também depende da protecção e benesse dos deuses: “Mas Zeus acrescenta ou diminui o valor dos homens, conforme lhe apraz, pois ele é o mais poderoso de todos” (Homero, 2005: XX, 242-43). E segundo a Primeira Ode Pítica de Píndaro, dos deuses vem todo o engenho que dá as qualidades (a aretê) aos mortais. São os deuses que criam os homens como artistas, fortes de braços, ou eloquentes. E, assim como o divino atribui a aretê aos humanos pelo mérito que estes demonstram, também a retira pelo factor inverso: “Zeus de voz potente retira metade do valor ao Homem, no dia em que a escravatura dele se apossa” (Homero, 2003: XVII, 3223). O divino é, desta forma, também um factor que condiciona a obtenção da aretê por parte do herói.
67
Há ocasiões propícias à revelação da aretê. Por exemplo, pelo uso da força, quer das armas (qualidade física), quer das palavras (qualidade psicológica). Os campos de batalha e as assembleias são os cenários preferenciais em que são requisitadas determinadas qualidades de excepção aos humanos. Coragem, força, agilidade e destreza no primeiro caso; eloquência, temperança, justiça e persuasão no segundo caso (Homero, 2005: IX, 442-3; I, 488-92). A educação clássica favorece a exposição da excelência através de actos e de palavras.
2.3 AS ARETAI (EXCELÊNCIAS) HERÓICAS NA ILÍADA E NA ODISSEIA DE HOMERO Se, nos poemas homéricos, a aretê é principalmente atribuída aos heróis e nobres com particulares destrezas (coragem, força), a aretê da Ilíada é distinta da aretê da Odisseia. Nesta última, a concepção é mais ampla. E, de facto, o âmbito temático destes dois poemas é distinto: a Ilíada é uma epopeia de guerra (a de Tróia), onde se apresenta um cenário favorável à excelência guerreira desencadeada por uma ira funesta de Aquiles, o típico herói grego; a Odisseia é uma epopeia de nostos (de regresso, reencontro), propiciadora de excelências mais pacíficas. Na Ilíada são narrados os atributos de Aquiles, o arquétipo da heroicidade grega que congrega todas as qualidades físicas e psicológicas indispensáveis. O conceito de aretê liga-se à honra, ao valor humano. Neste poema, Fénix tenta convencer Aquiles a voltar para a guerra e a aceitar as desculpas de Agamémnon, lembrando que o seu papel de preceptor era fazer com que ele tivesse a excelência de um guerreiro e de um orador (Homero, 2005: IX, 439-43). Esta mencionada passagem da Ilíada reporta a ambivalência do conceito de aretê. Na Odisseia, a amplitude do conceito de aretê abrange também qualidades estéticas, como acontece com a beleza (kállos) de Helena e Penélope, enquanto representação da excelência feminina (Homero, 2005: III, 146-60; 2003: XIX, 124-6). Na cultura grega do século V a.C., a aretê estendia-se a vários domínios, desde a excelência de um cavalo até à excelência do quotidiano trabalho realizado em casa. Mas o significado de aretê varia consoante o que é descrito, porque tudo possui ou deve possuir as suas próprias excelências.
68
2.4 A ARETÊ NA PAIDEIA Para a cultura clássica, a aretê constitui uma parte importante da Paideia. Por exemplo, a ascensão à idade adulta é conseguida à custa de um rigoroso treino de aretê, que inclui exercícios físicos (em ginásios criados pelos próprios gregos) e exercícios mentais (oratória, retórica). A
aretê é fundamental para o projecto de educação da Antiga Grécia,
estando a palavra ligada a um modo peculiar de pensar a educação. Trata-se literalmente de um projecto, porque se constrói uma estrutura de formação que aspira à realização do “verdadeiro Homem” (o autêntico, o humanista). No campo de batalha, entre os inimigos, ou na assembleia, entre os seus, o Homem procura sempre realizar-se como herói, alcançar a honra e a glória, superando os seus congéneres e a si mesmo. Mas, se o que é bom e excelente nasce com as pessoas, o que as torna nobres, então, para que serve a Paideia como método educativo para ascensão a uma vida melhor? Pode, realmente, a aretê ser ensinada? A aretê é una ou múltipla? Pode uma pessoa manifestar aretê num domínio e não em outro? Estas perguntas não se colocam no tempo de Homero, mas posteriormente, no auge do uso da racionalidade do século V a.C. Todavia, têm total ensejo. Este projecto da Paideia define a maneira e o momento em que o Homem atinge a sua aretê e qual é, entre as várias formas em que esta se pode revestir, a ideal ou mais adequada. No período helénico (das origens heróicas até à conquista da Grécia por Filipe da Macedónia, no fim do século III a.C.) a ideia de aretê era valorizada como formação ideal do Homem na polis, depois, como excelência. Neste longo período, a aretê era valorizada em função de algumas referências ou realizações: a excelência do sangue, da classe social, das posses materiais; a excelência do ideal educativo; a excelência do culto da soma pela força e pela beleza (o vigor e a saúde são exemplos da aretê do corpo); a excelência dos cuidados com o ethos e a psyche através da coragem (a sagacidade e temperança são exemplos da aretê do espírito). É conhecida a passagem da Ilíada em que Diomedes diz: “Mandou-me para Tróia, recomendando-me com insistência que fosse sempre valente [aretê] e superior aos outros, a fim de não envergonhar a linhagem paterna, a mais conceituada em Éfira e na vasta Lícia” (Homero, 2005: VI, 207-10). É necessário ser sempre o melhor e, por conseguinte, superar os outros.
69
3. A PEDAGOGIA DA MORTE DE SÓCRATES NO CRÍTON DE PLATÃO O conceito de aretê esteve sujeito a um natural processo de evolução. Num patamar político-ético, no século IV a.C., o conceito foi tratado de forma fundamental por Platão e Aristóteles. Apesar das perspectivas, Platão e Aristóteles exploraram e discutiram a aretê como tema filosófico e condição essencial para o Homem. Na perspectiva de Platão, designadamente em A República, a aretê é discutida com a ideia de justiça (isto é, a aretê de justiça). Coloca-se a questão de saber se é mais vantajosa a injustiça ou a justiça. Para Platão, cada coisa tem uma aretê própria a cumprir (Platão, 2001:353b)). Porque existem muitas coisas é que existem muitas aretai. Por exemplo, o cavalo tem uma função (érgon) que lhe é própria, precisamente aquela que apenas ele pode fazer (de forma perfeita) com força, velocidade, firmeza, etc. A diversidade de aretai coloca vários problemas: Um homem pode ser excelente numa aretê e não noutra? É possível possuir todas as aretai atinentes ao Homem? Uma pessoa pode ser sábia (aretê do conhecimento) e cruel ou injusta (as antíteses das aretai da bondade e da justiça)? Conforme se depreende, com Platão, a ideia de aretê ainda é aplicada em sentido amplo e não estritamente moral. Mas Platão vai mais longe na discussão sobre a aretê e questiona vários aspectos: É possível prejudicar alguém na sua aretê particular? O que permite ao Homem cumprir o seu érgon da forma mais perfeita possível? Como conhecer as aretai do Homem? Qual é a maior ou a melhor aretê? Como se verifica o processo de interiorização da consciência moral? As aretai são ensinadas, são dons naturais ou são graças divinas? Esta última questão já tinha sido colocada por Homero, mas Platão tem o mérito de facultar um campo de profunda reflexão filosófica sobre a dita questão. De acordo com Platão, o problema dilui-se se as aretai constituírem conhecimentos e, por conseguinte, se surgirem como susceptíveis de serem aprendidas. Assim, da concepção política da aretê como “justiça” em Platão se configura a concepção ética da aretê como “virtude” em Aristóteles. Com este estagirita, torna-se mais frequente usar “virtude” em vez de aretê. Mas não é de natureza ética nem política o sentido original de aretê. Na perspectiva de Aristóteles, o bem é o alvo da felicidade e é alcançado com a prática das excelências. Ninguém nasce com aretai, nem aprende de forma teórica o que elas são. Todavia, o Homem incorpora, ao longo da vida, uma disposição para a aretê. Com o treino,
70
o tempo, a regularidade e a disciplina, o Homem pode ser uma pessoa de bem. A conotação ética da aretê adquire relevância a partir de Sócrates, cuja aceitação da condenação à morte é testemunhada como excelência [aretê] de carácter por Platão no Críton. A conotação ética da aretê adquire relevância a partir de Sócrates, cuja aceitação da condenação à morte é testemunhada como excelência [aretê] de carácter por Platão no Críton. Este diálogo platónico, um dos que se reporta à condenação e morte de Sócrates, tem um carácter biográfico e insere-se num primeiro período da obra de Platão dedicado à defesa da Filosofia como modo de vida e como indagação e procura da excelência, isto é, da aretê. No diálogo platónico, Críton reconhece a sua inércia no julgamento de Sócrates, que foi condenado e encarcerado. Críton, interlocutor e amigo de Sócrates, propõe a fuga deste. Todavia, Sócrates considera racionalmente a proposta à luz das leis de Atenas. Consciente das consequências decorrentes do incumprimento das leis, torna-se claro que Sócrates não aceite a proposta da fuga e, pelo contrário, que espere a morte como um bem. Segundo o Críton, Sócrates aceitou a morte depois de ponderar as razões para uma possível fuga da prisão. Os princípios sobre os quais assenta a sua ponderação são: i) devemos aceitar sempre as leis do Estado; ii) devemos respeitar os nossos compromissos; iii) não devemos prejudicar a polis. Destes três princípios, Sócrates conclui que deve aceitar a morte em vez de fugir. Mas, qual o sentido e a finalidade do comportamento do Sócrates platónico? São o sentido e a finalidade dos princípios éticos, que devem prevalecer sobre eventuais benefícios pessoais decorrentes da sua fuga. Já na Apologia de Sócrates, Platão apresenta o seu ideal pedagógico dos seus primeiros diálogos. E esse ideal pedagógico está subjacente à disputa pela excelência. Uma disputa entre Sócrates, o protagonista das obras de Platão, e outros interlocutores que servem para a demonstração do ideal pedagógico, ou seja, uma disputa entre a sabedoria socrática virtuosa para a humanidade e a sabedoria viciosa. Mas esta disputa assenta num tópico claro e presente em todos os diálogos de Platão: a aretê. É a aretê o padrão ideal do comportamento de Sócrates que, por conseguinte, serve de modelo para todos os gregos e para todas as pessoas. A aretê funciona como norma reguladora dos comportamentos sociais. Um ideal de vida pautado pela aretê desde a tradição poética homérica. Neste enquadramento, a aretê é a capacidade de realizar ou concretizar o bem sobre as mais
71
variadas situações.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A ARETÊ COMO IDEAL E PRÁTICA DE UMA “CULTURA DO ‘EU’” De Homero a Aristóteles, o conceito de aretê é de extrema e intemporal importância quer para a história cumulativa das ideias quer para a cultura clássica que ainda hoje manifestamos como herança. É o expoente da cultura do “Eu”, uma cultura que forma os sujeitos consoante determinados padrões conceptuais. O Homem é como a Natureza, como uma árvore que pode ser adaptada a certos contextos, que pode ser transplantada. O Homem é como o barro, porque pode ser manuseado e moldado. O Homem é educável, corrigível na sua psicologia e no seu físico. A uma árvore que nasce torta, colocamos uma regula recti, uma estaca, uma prótese ortopédica que previne e corrige deformidades físicas. Um dos méritos da cultura clássica foi ter percebido, desde sempre, que o Homem é educável, porque, precisamente, é modificável. A possibilidade de modificar o Homem faz parte do projecto da Paideia, um programa para a perfectibilidade ou excelência. Trata-se de um mérito muito trabalhado, porque o conceito de aretê resume a vida de qualquer homem que procura, durante a sua curta existência, ser melhor não só face ao que foi no dia anterior, como também face aos outros. Efectivamente, esta caminhada para a aretê, para a excelência ou perfeição, não tem um fim em si mesma. Nunca se atinge o grau máximo de excelência ou de perfeição, mas apenas o grau máximo de excelência de uma dada existência. A caminhada apenas leva para uma direcção, como se essa direcção tivesse um fim. Mas não tem. A caminhada é irreversivelmente interrompida com a morte. Esta morte é o que ajuda a responder à pergunta “A que é fiel o herói da Antiga Grécia?” Para se mitificar, o conceito de aretê associase também a um momento culminante da gloriosa existência: a morte do herói. A morte depois dos grandes feitos. A morte redentora e conciliadora com o destino. A morte como expressão da identidade reduzida numa só acção, precisamente a última, a do fim. Enquanto não morremos, a nossa identidade não está completa. A morte é imprescindível. É o que falta para perpetuar a aretê como arquétipo. É o factor que permite a mitificação do herói e da sua aretê. Com o herói homérico, tenta-se exprimir de uma só vez toda a sua acção. A morte
72
tem duas funções: serve para exprimir a singularidade do indivíduo e serve para ser lembrada na memória colectiva. Todavia, existe um lado menos positivo da solução existencial do herói homérico: ter uma vida curta e violenta, porque a vida não tem valor absoluto e supremo. A ideia de que a vida deve ser vivida com perigo é, segundo os pressupostos para o herói homérico, uma necessidade, porque o perigo é essencial ao grande feito. Sem riscos e perigos não se percorre o caminho da excelência. Aquilo a que é fiel o antigo herói grego para se mitificar é a aretê, a glória dos feitos (duráveis e grandiosos para serem lembrados) e, por fim, a morte. Paradoxalmente a morte, porque esta representa a necessária cristalização da aretê e da heroicidade dos feitos; porque ninguém se pode considerar eudaimon (“bem-aventurado”, “bem-estar duradouro do daimon do homem” e não “feliz” ou “beatificado”, como é costume) antes de morrer. Na tradição latina, as palavras proverbiais de Ovídio (1989: III, 136) talvez nos ajudem a identificar e a compreender o problema que relaciona a aretê e a morte: nemo ante mortem beatus (“ninguém é feliz antes de morrer”)1. Assim é a história, só pode ser conhecida e percebida depois de chegar ao fim. Este preceito terá inspirado a prática católica de só beatificar os santos depois de mortos. A essência humana, que constitui cada um como é, apenas passa a existir depois que a vida acaba, mas legando atrás de si uma história. Quem pretende, de forma consciente, ser “essencial”, deixar atrás de si uma história e uma identidade que merece ser mitificada pela fama imortal, deve ter aretê, arriscar a vida realizando feitos heróicos e morrer. Deve fazer como Aquiles: optar expressamente por uma vida curta e uma morte prematura. Porque só o Homem que não sobrevive ao seu acto supremo é senhor incontestável da sua identidade e da sua eventual grandeza, na medida em que se retira, através da morte, do seguimento e das consequências das suas acções.
1 Estas famigeradas palavras de Ovídio aparecem em diferentes versões. Por exemplo, Ante obitum nemo beatus ou Ante obitum nemo beatus dici potest. Apesar de eu usar no texto uma versão sintética (nemo ante mortem beatus), parece-me mais credível a versão: […] sed scilicet ultima
semper exspectanda dies homini est, dicique beatus ante obitum nemo supremaque funera debet (“mas sempre temos que esperar até ao último
dia da vida de um homem e ninguém deve considerar-se feliz antes da morte e do funeral”). Esta é a fonte literária, se considerarmos a Metamorphoses de Ovídio (editada por W. S. Anderson, Stutgardiae: Tenbner, 1996, p. 58), que relata a história de Cadmus, tão interessante como impertinente para este trabalho sobre o conceito de aretê.
73
“Morre jovem o que os deuses amam”, assim interiorizou Fernando Pessoa a morte (na forma audaciosa e serôdia de suicídio) de Mário de Sá Carneiro. Mas este arquétipo de acção heróica é eminentemente individualista; sublinha o anseio de auto-revelação à custa de tudo e de todos. O que transforma a história de Aquiles como fiel paradigma da aretê é a revelação do preço da eudaimonia da aretê, que é a própria vida. A aretê é conquistada e revelada em vida, mas, para ter consequências benéficas no Homem, a eudaimonia tem que ser garantida com a renúncia à continuidade da existência. É preciso condensar toda a existência com aretai num único feito, de forma que a história do acto heróico termine ao mesmo tempo que a vida. O verso de Hölderlin “O que perdura, porém, fundam-no os poetas” (de um poema auspiciosamente intitulado «Recordação») é considerado como uma das palavras condutoras da própria poesia. A essência da poesia é a fundação do que é permanente através da (e na) palavra. O que é permanente é salvo da voracidade do tempo. Confiado o destino aos poetas, estes nomeiam os deuses para assegurar o permanente. Porque o que perdura não pode ser criado a partir do efémero e o anseio pela imortalidade é próprio do que é divino. Reportada por Homero, sobretudo na Ilíada, a história de Aquiles, de há cerca de quatro séculos antes, concorre para a eudaimonia, para a mitificação, mas está sujeita ao poeta, historiador e contador de histórias. Sem Homero a desempenhar este papel, tudo o que Aquiles fez, enquanto único herói ou o herói por excelência, teria sido em vão. Homero tem nas mãos o significado da história de Aquiles. História feita quer pelo próprio herói, quer também por Homero, enquanto educador de toda a Hélade, conforme testemunha, entre outros, Xenofonte no Banquete. Também Aristófanes exalta em Ésquilo o papel dos poetas, cuja utilidade é exemplificada com a honra e a glória que Homero foi buscar no “facto de ter ensinado coisas úteis”, como as aretai. Um empreendimento grandioso como a Guerra de Tróia podia ser esquecido, sem que um poeta o imortalizasse. O estímulo de Homero era emergente. O que permanece na memória colectiva da humanidade como aretai de Aquiles deve-se ao poeta. Todavia, da ambígua definição do conceito de aretê permanece a dúvida sobre como conservar uma fidelidade, sem nunca a formular explícita e publicamente. Isto é, como ser fiel a um ideal sem o declarar às outras pessoas como se tratando de algo que se segue com íntima e vital fidelidade? Como impedir que uma aretê, que nos transforma
74
totalmente naquilo que devemos ser, seja percebida pelos outros? Se nós somos a própria excelência da aretê, somos conhecidos pelo que “em nós e por nós” fala a aretê. É neste sentido místico e paradoxal que a morte de Sócrates pode ser entendida como o triunfo da aretê.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES (1992), Éthique de Nicomaque; Flammarion, Paris. HÖLDERLIN, Friedrich (1991), Poemas; Relógio d’Água, Lisboa. HOMERO (2003), Odisseia; Cotovia, Lisboa. HOMERO (2005), Ilíada; Cotovia, Lisboa. JAEGER, Werner (1979), Paideia – A Formação do Homem Grego; Herder, São Paulo. OVÍDIO (1989), Les Métamorphoses; Flammarion, Paris. PEREIRA, Maria H. da Rocha (2005), Hélade – Antologia da Cultura Grega; Edições Asa, Porto. PLATÃO (1988), Apologia de Sócrates; Guimarães Editores, Lisboa. PLATÃO (2001), República; Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. PLATÃO (2002), Críton; Edições 70, Lisboa. SÁ-CARNEIRO, Mário de (1993), Loucura; Estante Editora, Lisboa.
75
SOBRE O CANTO CISTERCIENSE DAS MONJAS DO ANTIGO MOSTEIRO DE S. BERNARDO EM PORTALEGRE: UMA ANÁLISE MUSICAL
THE CISTERCIAN CHANT OF THE NUNS OF THE ANCIENT MOSTEIRO DE S. BERNARDO IN PORTALEGRE: A MUSICAL ANALYSIS Susana Maria Maia Porto* (susana.porto@sapo.pt)
RESUMO
O presente artigo resulta da análise e caracterização da vida musical das monjas da Ordem de Cister do antigo Mosteiro de S. Bernardo em Portalegre, através de um documento impresso nos séculos XVII e XVIII, sensivelmente, conclusão que se deve aos caracteres apresentados. A investigação fundamenta-se na analogia entre os cânticos da única fonte musical pertença ao mosteiro e os princípios do cantochão, de forma comparativa e contextualizada. A autora apresenta um primeiro estudo efectuado sobre o documento em análise e propõe novos caminhos a futuros investigadores. Palavras-chave: Canto Gregoriano, Canto Cisterciense, Ordem de Cister, Mosteiro de S. Bernardo, Portalegre.
ABSTRACT:
This article is based on the analysis and description of the musical life of the Cistercian nuns of the ancient Monastery of St. Bernardo in Portalegre, derived from a document printed most likely in the 17th and 18th centuries, based on its characters. The research is based on the analogy between the Gregorian chants of the only musical source belonging to the monastery and the principles of plainchant, or plainsong, in a comparative and contextualized sense. The author presents an initial analysis of the document and recommends new directions for further investigations. Keywords: Gregorian chant, Cistercian chant, Cistercian Order, Mosteiro of S. Bernardo, Portalegre.
76 * Doutoranda na Universidad de Extremadura - Cáceres. Mestre em Educação Musical (University of Surrey Roehampton - Londres, em colaboração com a Escola Superior de Educação de Viana do Castelo). Licenciada em Ciências Musicais/Ramo de Musicologia (FCSH da Universidade Nova de Lisboa). Equiparada a Professora-Adjunta na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Portalegre, onde exerce funções docentes desde Outubro de 1999.
77
1. NOTA INTRODUTÓRIA O Mosteiro de S. Bernardo, a instituição cisterciense mais importante a sul do Tejo, fundado por D. Jorge de Melo (último abade perpétuo de Alcobaça) e erigido na primeira metade do século XVI (Bucho, 1994), mantém ainda espaços preservados datados da sua edificação e exibe peças de valor artístico nacional. A julgar pela única fonte musical do referido Mosteiro, documento em análise, a música quotidiana das monjas da Ordem de Cister baseava-se em melodias do rito cristão, isto é, no canto gregoriano1. S. Bernardo nasceu em 1090, em Fontaines, perto de Dijon (França), e foi um dos fundadores da Ordem de Cister e um dos principais a promover a sua expansão por toda a Europa, “es una
exageración perdonable el concepto vertido con frecuencia, de que fue el verdadero fundador de la Orden, pero no es injustificado que durante siglos se conociera a los cistercienses como bernardos”, (Lekai, 1987:
48). A sua doutrina, em consonância com a de todos os fundadores cistercienses, tinha como principal objectivo adequar a liturgia às prescrições da Regra de S. Bento, prescrições essas de pobreza, simplicidade e imperturbável solidão. A Carta da Caridade (constituição da ordem) serviu como um guia prático para a reconstrução da vida monástica dentro de um específico contexto ideológico, assim como o Exordium Cistercii e Exordium Parvum, documentos cistercienses que nos descrevem origens, princípios e fundamentos da ordem, os quais foram de alguma forma controversos e alvo de estudo.
2. MONJAS CISTERCIENSES Os fundadores de Cister não tinham nenhuma intenção de estabelecer uma nova ordem masculina, muito menos uma ordem feminina. No entanto, em 1125, em Tart (a dez quilómetros de Cister), teve início uma fundação para mulheres piedosas decididas a imitar o austero exemplo dos monges cistercienses (Lekai, 1987). Apesar da 1
O processo de implementação do canto gregoriano no território português inicia-se nos finais do século XI, quando bispos cluniacenses estiveram à frente das Sés de Braga, Porto e Coimbra. Contudo, a Ordem de Cluny perde influência a favor da Ordem de Cister no novo reino de Portugal, criado em 1130-1143.
78
atitude negativa dos representantes da Ordem, em menos de um século os mosteiros de monjas começaram a expandir-se: “A comienzos del siglo XIII, el cardenal Jacques de Vitry informaba de que los «monasterios femininos cistercienses se multiplicaban como las estrellas del cielo»” (Lekai, 1987: 452). No século XV, o número de mosteiros de monjas em toda a Europa ascendia a 211. As monjas cistercienses sempre admitiram meninas para a sua educação, o currículo era basicamente igual ao das escolas monásticas ou capitulares para rapazes e com frequência incluía um curso completo de trivium e quadrivium, uma vez que o latim era indispensável para o ofício diário. Além das monjas, os mosteiros cistercienses contavam ainda com outros membros da comunidade, as noviças e as conversas2. Segundo os hábitos cistercienses, sem contar com o tempo da missa, o Ofício Divino exigia entre três a quatro horas diárias. Contudo, o horário das conversas diferia completamente. Levantavam-se depois das matinas3, mas passavam muito mais tempo a trabalhar, excepto aos Domingos e Feriados, quando participavam em alguns dos ofícios das monjas. Em relação à alimentação, segundo a Regra de S. Bento, as monjas eram privadas de carne durante todo o ano e entre o 14 de Setembro (festa de Exaltação da Santa Cruz) e Páscoa era permitido comer carne uma única vez ao dia. Os costumes cistercienses permitiam que o prato principal fosse de uma generosa porção de pão; como segundo prato, dois tipos de legumes cozidos; e como terceiro, fruta da época. Em ocasiões festivas era permitido o pão branco, peixe e queijos. “Otra costumbre primitiva y ampliamente aceptada era servir una bebida (biberes) después de Nona, especialmente en verano. Podía ser vino, o sí este no abundaba, cerveza o sidra” (Lekai, 1987: 477). Podem assinalar-se outros costumes de pobreza e abstinência: por exemplo, as camas eram o mais simples possível e sem alguma fonte de calor nos dormitórios; os banhos de água quente não eram autorizados, e no início da ordem apenas era admitido que as monjas se banhassem uma vez por mês.
2
Membros da comunidade que não faziam votos de silêncio.
3
Primeira hora canónica do Ofício Divino.
79
3. NOTAÇÃO E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DO CANTO GREGORIANO Os manuscritos mais antigos destinados ao coro apenas continham os textos, o que resulta que todas as melodias tinham de aprender-se e interpretar-se através da memória. Na tentativa de facilitar o trabalho dos cantores, o primeiro passo foi a introdução de vários símbolos (neumas) escritos por cima dos textos dos cantos, em meados do século IX. Tais símbolos desenvolveram-se a partir dos acentos gramaticais, que indicavam a direcção ascendente ou descendente da melodia, designando-se mais tarde por neumas adiastemáticos, sem pautas, in campo aperto (em campo aberto) ou quironómicos (Grout e Palisca, 1997; Hoppin, 1991). A notação neumática primitiva era bastante complexa e indicava subtilezas de interpretação que permanecem problemáticas ainda nos dias de hoje quanto à sua execução. Os primeiros neumas dão-nos a indicação específica referente ao número de notas e ao seu movimento ascendente ou descendente; contudo, não existe forma de determinar a amplitude dos intervalos entre as notas ou sequer a primeira nota apresentada. No século X, os escribas começaram a colocar neumas com alturas diferentes, o que nos permite entender de uma forma mais clara a configuração da melodia. A esses neumas dá-se o nome de neumas diastemáticos – a palavra grega para “intervalo”, (Grout e Palisca, 1997; Hoppin, 1991). Seguidamente, apareceram uma ou duas linhas horizontais que representavam notas determinadas. No início, as linhas podiam ser apenas tracejadas sobre o pergaminho e praticamente invisíveis nos dias de hoje; mais tarde, surgiram linhas de cor, a vermelho representando a nota Fá, e a amarelo representando a nota Dó. No século XI, Guido d’Arezzo descrevia já a pauta de quatro linhas colocando letras no início da pauta correspondente às notas, letras essas que deram origem às claves utilizadas na notação actual (Grout e Palisca, 1997; Hoppin, 1991). A letra C indica a clave de Dó e a letra F indica a clave de Fá; de acordo com a evolução da notação, as mesmas letras vão-se transformando até às claves correspondentes actuais. Gradualmente, o tetragrama (pauta com quatro linhas) tornou-se corrente e a notação neumática evoluiu de forma a permitir uma colocação exacta sobre as linhas e os espaços. Concretamente, a notação do Norte de França desenvolveu as figuras quadradas que são
80
a base da notação do cantochão ou canto gregoriano (Grout e Palisca, 1997; Hoppin, 1991), daí o nome de notação quadrada. O documento em análise apresenta-nos as figuras quadradas e já no sistema de pentagrama. A julgar pelos caracteres apresentados e pelo modo de impressão, calcula-se que seja um documento, sensivelmente, dos séculos XVII e XVIII. A partir do Canto de Vésperas Festum Dolorum B Marie Virg, encontramos já alguma complexidade na escrita musical, que nos leva a crer numa colecção longitudinal de cânticos religiosos. A notação quadrada indica de forma clara todas as alturas das notas musicais, no entanto a indicação das durações falha totalmente, e como consequência o ritmo do canto gregoriano tem sido e provavelmente será sempre um tema muito controverso. O ritmo musical resulta da alternância entre dois opostos: o impulso, chamado Arsis, e o repouso, chamado Tesis (Hoppin, 1991). Apesar de existirem sinais respeitantes ao ritmo em muitos manuscritos medievais, os estudiosos não conseguiram ainda chegar a acordo quanto ao seu significado, existindo por isso várias teorias respeitantes à execução rítmica do canto gregoriano face à evolução da notação quadrada nas diferentes épocas (Hoppin, 1991). Os teóricos da Alta Idade Média deixam claro que o canto gregoriano empregava notas longas e curtas. No entanto, os tratados confirmam o princípio, mas não oferecem a informação suficiente para a sua aplicação.
4. DOCUMENTO MUSICAL DO MOSTEIRO BERNARDO: CARACTERIZAÇÃO E ANÁLISE
DE
S.
Objectivando-se uma análise/investigação mais precisa, foi-me permitido tirar fotografias do documento musical do dia-a-dia das monjas da Ordem de Cister, fontes primárias que irão ser utilizadas para demonstrar de forma clara e objectiva a música presente no documento em questão4. A análise será baseada em distintos elementos do canto gregoriano de forma comparativa e contextualizada.
4.1. ÂMBITO E DESENHOS MELÓDICOS O canto gregoriano é um canto a solo ou em cantochão coral com melodias do rito cristão, exclusivamente vocal e inteiramente 4
A publicação das fotos foi autorizada pela Câmara Municipal de Portalegre, detentora do documento em análise.
81
monofónico, ou seja, compreende apenas uma melodia cantada por um solista ou por um coro e sem acompanhamento instrumental. O movimento melódico do canto gregoriano efectua-se preferencialmente por graus conjuntos, isto é, as melodias são compostas por intervalos de 2.ª, sendo o intervalo maior, a terceira, o que confere ao texto musical um carácter ondulante. Uma peça musical composta por uma única melodia pode parecer estranha e monótona aos ouvintes do século XXI; no entanto, com algumas audições e mente aberta é possível compreender e apreciar as maravilhas subtis deste canto, que se apresenta como música no seu estado mais puro, com uma técnica vocal específica e adaptada perfeitamente à sua função litúrgica. O âmbito (intervalo entre a nota mais grave e a mais aguda) do canto gregoriano está inscrito no âmbito normal das vozes masculinas, sendo o papel das mulheres na liturgia quase inexistente (Hoppin, 1991); o mesmo não se aplica aos conventos de monjas. Segundo o documento em investigação, o âmbito das vozes adapta-se às vozes masculinas e às femininas, embora se registe mais exemplos nos registos graves (voz masculina), o que nos leva a crer que originalmente não foi escrito para vozes femininas, mas adoptado posteriormente.
Figura1: Movimento ondulatório (Canto Cisterciense do Mosteiro de S. Bernardo)
As frases pelas quais é composta uma melodia surgem de uma forma ondulatória; por exemplo, pode registar-se uma elevação gradual das notas até meio da frase, sensivelmente, e uma progressiva descida até ao final de frase. O movimento contrário também acontece, ou seja, desce progressivamente para voltar a subir. Na figura 1 encontramos, no primeiro sistema, uma descida Lá-Ré e uma subida gradual até à nota Si; no segundo sistema acontece o inverso, uma subida Sol-Ré e uma descida gradual até à nota Mi.
82
No entanto, é mais comum encontrar frases com o primeiro tipo de curvatura. São também comuns os movimentos de arco incompleto, em que existe uma elevação rápida com um salto melódico e uma progressão ascendente ou descendente. Na figura 2 encontramos um salto melódico Lá-Ré e uma subida progressiva até ao Si. Na figura 3 há um salto melódico Ré-Si e uma descida progressiva até à nota Dó.
Figura 2: Movimento de arco incompleto: salto melódico descendente e subida progressiva (Canto Cisterciense do Mosteiro de S. Bernardo)
Figura 3: Movimento de arco incompleto: salto melódico ascendente e descida progressiva (Canto Cisterciense do Mosteiro de S. Bernardo)
4.2. PALAVRA E MÚSICA ”El sentido de las palabras es inconfundible, brillan con verdad, hablan de rectitud, incitan a la humildad y inculcan justicia; llevan la verdad a la mente de los que las oyen, devoción a sus afectos, la Cruz a sus vicios y disciplina a sus sentidos. Si hay que cantar, la melodía será grave y no ligera ni grosera. Dulce pero no frívola, encantará a los oídos y moverá el corazón, iluminará los corazones tristes y suavizará las pasiones airadas, nunca será oscura, intensificará el sentido de las palabras. No se desaprovecha un pequeño provecho espiritual cuando las mentes están distraídas del sentido de las palabras por la frivolidad de la melodía, cuando es transmitido por las modulaciones de la
83
voz más que por las variaciones del significado.” S. Bernardo5
Como podemos entender, as palavras de S. Bernardo dão livre expressão à firme crença cisterciense de que a melodia deve estar ao serviço do texto. Ou seja, a música cisterciense (e na sua globalidade a música eclesiástica medieval) tem apenas a função de acompanhamento da liturgia, consequência que resultou numa certa estagnação da música desde o início da Idade Média até à Ars Nova (século XIII). Encontram-se três tipos de composição, e consequentemente de execução, do canto gregoriano no que respeita à relação texto/ música: silábico, neumático e melismático (Grout e Palisca, 1997; Hoppin, 1991).
Figura 4: Tratamento silábico (Canto Cisterciense do Mosteiro de S. Bernardo)
No tratamento silábico, a cada sílaba do texto corresponde uma nota musical (figura 4); no tratamento neumático, cada sílaba irá corresponder a um grupo de duas a cinco notas, sensivelmente (figura 5), enquanto que no tratamento melismático cada sílaba corresponde a um número alargado de notas (figura 6).
Figura 5: Tratamento neumático (Canto Cisterciense do Mosteiro de S. Bernardo)
5
Cart. 398, Bernardo de Claraval, Obras Completas VII, 1135-1139, In
Exordium, trad. D. Manuel Llahues Meizoso [1999?].
84
Figura 6: Tratamento melismático (Canto Cisterciense do Mosteiro de S. Bernardo)
Ainda em relação ao documento em análise, muitas melodias contêm a junção de dois ou três tipos de composição/execução. No primeiro sistema, temos o exemplo do tratamento neumático na melodia que corresponde ao Alleluia; no final do segundo sistema encontramos o tratamento silábico em mino omnes, e o tratamento melismático está presente no terceiro sistema em ejus (figura 7).
Figura 7: Tipos de composição/execução: neumático, silábico e melismático (Canto Cisterciense do Mosteiro de S. Bernardo)
4.3. TÉCNICA DO CANTO CISTERCIENSE S. Bernardo, abade de Clairvaux, ensinou aos monges a forma de cantar, afirmando que a mesma agradava a Deus e aos anjos: ”No alarguemos demasiado la salmodia, cantemos en un tono rotundo, con una voz llena de vida. Entonemos al unísono la primera y segunda mitad del verso y también al unísono terminémoslo. Que nadie sostenga la nota final, sino que la deje rápidamente. Después del metrum (la pausa en el punto medio) hagamos una buena pausa. Que nadie empiece antes que los demás ni se agarre a la nota final. Cantemos unidos, siempre en pausa unísona, siempre escuchando a los otros.
85
Cualquiera que comience una antífona o salmo, himno, responsorio o aleluya, permítasele cantar una o dos partes lentamente (tractim) mientras los demás guardan silencio, y donde él acabe empiecen los demás sin repetir lo que él ha dicho… Cuando cantemos himnos, aleluyas o responsorios debemos hacer una pequeña pausa al concluir, especialmente en los días festivos.” Exordium, trad. D. Manuel Llahues Meizoso [1999]
A reforma cisterciense foi, sobretudo, um movimento de renovação espiritual, “el mayor contraste entre la reforma cisterciense y las costumbres cluniacenses, se dio en la Liturgia” (Lekai, 1987: 325). Os princípios reformistas de autenticidade e simplicidade estão reflectidos na forma de execução do canto: mais sóbria e simples, fácil de interpretar, coerente com a natureza do canto e contribuindo para uma liturgia que conduzisse à oração. A segunda Reforma Cisterciense teve como base o trabalho realizado em Rheims, Beauvais, Amiens e Soissons: as melodias foram modificadas para que a cada uma correspondesse unicamente um modo eclesiástico, não resultando por isso no canto cisterciense a junção de vários modos numa única melodia que nos conduz a uma mistura de cantos que não é natural degeneres et non legitimae - e que torna mais difícil a sua interpretação; simplificaram-se ou encurtaram frases exuberantes; e excluiu-se o bemol da notação do canto (Lekai, 1987).
Figura 8: Alterações acidentais: Si Bemol, Dó Sustenido e Fá Sustenido (Canto Cisterciense do Mosteiro de S. Bernardo)
Contudo, no livro do Mosteiro de S. Bernardo, provavelmente devido às alterações que ocorreram na segunda metade do século XVII e à possível transposição dos modos eclesiásticos para que o âmbito das melodias fosse acessível às vozes femininas, o Si bemol mantém-
86
se, surgindo ainda outros acidentes como o Fá e o Dó sustenidos (Si bemol e Dó sustenido no primeiro sistema e Si bemol e Fá sustenido no segundo sistema), (figura 8). A segunda reforma eliminou ainda as repetições textuais e musicais e restringiu o âmbito das melodias, ou seja, as melodias foram alteradas para que o intervalo entre a nota mais grave e a nota mais aguda não superasse dez notas (Hoppin, 1991). De acordo com o documento musical em investigação, o âmbito máximo é de nove notas musicais, e no segundo sistema surge a nota mais aguda (Ré) e a nota mais grave (Dó), (figura 9).
Figura 9: Âmbito musical (Canto Cisterciense do Mosteiro de S. Bernardo)
4.4. A LITURGIA MUSICAL, ESTRUTURA DA FONTE DOCUMENTAL EM ANÁLISE O Canto Gregoriano pode ser classificado segundo a execução: antifonal (dois coros cantam alternadamente), responsorial (a voz do solista alterna com o coro) e directo (não existe alternância). Ainda no que concerne aos conceitos responsorial e antifonal: o tratamento responsorial é desenvolvido a partir da recitação de salmos em torno da dominante6 (Hoppin, 1991; Kennedy, 1994); e o tratamento antifonal é desenvolvido como melodia pura (Kennedy, 1994). Não correspondendo à execução responsorial, era comum um solista cantar as primeiras notas de forma a dar a entoação e a entrada ao coro 6
A dominante é a nota mais frequente da melodia que juntamente com a final e o âmbito, permite identificar o modo eclesiástico. Apesar da distinta função da dominante da harmonia tonal, este termo é o mais comummente aceite; contudo, também se pode designar por nota tenor, tubae, ou nota recitativa (Hoppin, 1991).
87
(Grout e Palisca, 1997), assinalada por um símbolo específico (*) (figura 10)7.
Figura 10: Entoação e entrada do coro (Canto Cisterciense do Mosteiro de S. Bernardo)
Muitas terminações do Canto Gregoriano são representadas por vogais da seguinte forma: “euouae” (caso exemplificativo da fonte musical do Mosteiro de S. Bernardo, figura 11); tais vogais são uma abreviatura das últimas seis sílabas da frase et in saecula saEcUlOrUm, AmEn (“...por todos os séculos dos séculos. Amen”).
Figura 11: Terminação do Canto Gregoriano (Canto Cisterciense do Mosteiro de S. Bernardo)
As duas categorias principais de serviços religiosos são a Missa e o Ofício Divino.
7
É muito gracioso encontrar ao longo do documento indicações específicas da solista “Anna”, exemplo na figura 9.
88
Missa A palavra Missa vem da frase que termina o serviço Ite missa est (Ide-vos, a congregação pode dispersar). O serviço também é conhecido noutras igrejas cristãs por: eucaristia, liturgia, sagrada comunhão e Ceia do Senhor. Na igreja católica, a forma cerimonial de celebrar a missa designa-se por Missa Solemnis (missa solene) e inclui vários números de peças cantadas pelo celebrante e um coro ou congregação. Por sua vez, a missa divide-se em duas partes: Próprio (proprium missae) e Ordinário (ordinarium missae) (Tabela 1). Os textos do Próprio são variáveis conforme a época do ano e as datas de festividades ou comemorações, sendo os principais momentos musicais o Intróito, o Gradual, o Aleluia, o Trato (raro hoje em dia, comum na Idade Média), o Ofertório e a Comunhão; enquanto que os textos do Ordinário são invariáveis: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Agnus Dei e Ite missa est (Grout e Palisca, 1997; Hoppin, 1991). A Tabela 1: Partes Constituintes da Missa: Próprio e Ordinário Introdução
Liturgia da palavra
Liturgia da eucaristia
Próprio
Intróito
Gradual Aleluia/Trato
Ofertório Comunhão
Ordinário
Kyrie Gloria
Credo
Sanctus Agnus Dei Ite, missa est
Ofício Divino A celebração do Ofício Divino é diária, realizada pelo clero secular e pelos membros de ordens religiosas. Dele fazem parte orações cantadas em horas determinadas, sempre pela mesma ordem, daí a designação também de horas canónicas: Matinas (antes do nascer do Sol); Laudes (ao alvorecer); Prima (6:00 horas); Terça (9:00 horas); Sexta (12:00 horas); Nonas (15:00 horas); Vésperas (pôr do Sol); Completas (normalmente logo a seguir às vésperas, ou seja antes do recolher). O Ofício é composto por orações, salmos, leituras, antífonas, responsórios, hinos, Te Deum e cânticos do Antigo e Novo Testamentos (Benedictus, Magnificat e Nunc Dimitis). Os documentos manuscritos e impressos da Missa e do Ofício Divino têm designações diferentes face à sua composição texto/música: Missal, textos da Missa; Breviário, textos do Ofício Divino; Gradual, textos e música da Missa; Antifonário, textos e música do Ofício Divino.
89
O documento musical pertença do Mosteiro de S. Bernardo e das monjas da Ordem de Cister apresenta partes do Gradual e do Antifonário, especificamente cânticos de Vésperas (7ª hora canónica do Ofício Divino) contendo Hinos, Magnificats, Antífonas e partes do Próprio da Missa, a avaliar pela presença do Intróito, Gradual e Comunhão, fazendo ainda parte o Trato numa das partes do Próprio Festum Dolorum B Marie Virg. Todas estas peças musicais8 encontramse impressas em manuscrito e no final do livro é-nos apresentado o Ordinário da Missa, com o Kyrie, Gloria, Sanctus e Agnus Dei, ou seja a missa do dia-a-dia das monjas.
5. A TÍTULO DE CONCLUSÃO Após a caracterização estrutural e a breve análise contextual do livro de canto gregoriano do Mosteiro de S. Bernardo, poder-se-á afirmar que ainda muito ficou por dizer e investigar. Uma das questões que se pode colocar a priori é a adequação do documento em análise face à época em que a Ordem foi instituída em Portalegre até à sua extinção (1504 – 1878). Para isso há que analisar de forma exaustiva: as regras litúrgicas instituídas pelo seu fundador, D. Jorge de Melo, que se encontram nos Estatutos do Mosteiro de S. Bernardo de Portalegre, datados de 20 de Agosto de 15319; documentos de historiadores dos séculos XVI e XVII, Chronica de Cister, de Bernardo de Brito, Annales Cistercienses, de Ángel Manrique bispo de Badajoz, Fasciculus Sanctorum Ordinis, Lilia Cistercii e Menologium Cisterciense de Crisóstomo Henríquez (Lekai, 1987: 318); e estudos mais recentes como Memória Histórica do Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Monjas da Ordem de Cister da Cidade de Portalegre (Gusmão, 1860) - nome que se explica pelo facto de a fundação do Mosteiro de S. Bernardo ter sido criada em honra de Nossa Senhora da Conceição; e fazer um estudo comparativo com outros documentos musicais cistercienses da mesma época. Surgem ainda novas questões no que concerne às Ordens feminina e masculina. Poder-se-á estudar a hipótese lançada anteriormente sobre a alteração dos modos eclesiásticos que possibilita a adequação do âmbito das vozes femininas ao canto original. Para 8 9
Cerca de noventa e quatro, algumas incompletas.
Códices Alcobacences, códice 223, fólios 273 -291, documento pertença da Biblioteca Nacional de Lisboa.
90
futuras investigações propõe-se a análise dos modos e transposições dos cânticos do documento musical das monjas da Ordem de Cister do Mosteiro de S. Bernardo, em Portalegre.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRITO, Manuel Carlos; CYMBRON, Luísa (1992); História da Música Portuguesa; Universidade Aberta; Lisboa. BUCHO, Domingos (1994); Mosteiro de S. Bernardo de Portalegre – Estudo HistóricoArquitectónico, Propostas de recuperação e valorização do património edificado; (Dissertação de Mestrado); Universidade de Évora. CASEY, Michael (1999); Exordium Unidad Nueve, Liturgia; Documentos Cistercienses (trad. D. Manuel Llahues Meizoso); http://users.skynet.be/am012324/exordium/esp/9.pdf; em 02/09/2008. Estatutos do Mosteiro de S. Bernardo de Portalegre (1531); de 20 de Agosto; Códices Alcobacenses, códice 223, fólios 273-291. GROUT, Donald; PALISCA, Claude (1997); História da Música Ocidental; Gradiva; Lisboa. GUSMÃO (1860); “Memória Histórica do Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Monjas da Ordem de Cister da Cidade de Portalegre”, O Instituto, vol. IX, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1860. HOPPIN, Richard (1991); La Música Medieval, Ediciones Akal, Madrid. KENNEDY, Michael (1994); Dicionário Oxford de Música, Publicações Dom Quixote, Lisboa. LEKAI, Louis (1987); Los Cistercienses, Ideales y Realidad, Editorial Herder, Barcelona.
91
CORES E SONS COLOURS AND SOUNDS Helena Maria da Silva Santana * (hsantana@ca.ua.pt) e Maria do Rosário da Silva Santana ** (rosariosantana@ipg.pt)
RESUMO
Neste texto pretendemos mostrar de que forma os universos artísticos do compositor português Cândido Lima e da pintora Maria Helena Vieira da Silva concorrem para a realização de um universo imagético (um universo que se exprime através de imagens tanto sonoras como visuais) e, de um objecto artístico único (atendendo à maneira como se concretiza e projecta no espaço da Casa de Serralves). A construção de um espectáculo de cor e som, através do veicular da obra musical Polígonos em som e azul e de um conjunto de quadros de Maria Helena Vieira da Silva, é única à data do concerto sendo, no nosso entender, relevante o seu estudo. É nossa intenção mostrar igualmente de que forma as obras de Maria Helena Vieira da Silva, através dos seus conteúdos estético imagéticos, influem a escrita e o discurso musical do compositor, bem como de que forma o espaço da Casa de Serralves se transmuta na, e pela escrita, dos dois autores. Palavras chave: música, pintura, interacção, Cândido Lima, Maria Helena Vieira da Silva
ABSTRACT
This paper will show how the artistic universes of the Portuguese composer Cândido Lima and that of the painter Maria Helena Vieira da Silva contribute to create an extraordinary imagistic universe and a singular object of art. It will also show how the works of Maria Helena Vieira da Silva, in the way she paints and sees the world, offer the composer a different way of working and approaching art. The architectural scheme of Casa de Serralves in Oporto is also very important. The space changes the artistic approach of both artists and the way the artistic project of Polígonos em Som e Azul is seen and assimilated. Keywords: Music, painting, interaction, Cândido Lima, Maria Helena Vieira da Silva
* Helena Santana estudou Composição Musical na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo do Porto. Em 1998 obteve o grau de Docteur na Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV). Professor Auxiliar no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro. Doutorada pela Universidade de Aveiro L’Orchestration chez Iannis Xenakis : L’espace et le rythme fonction du Timbre, publicada
92 pelas Presses Universitaires du Septentrion, Villeneuve D’Ascq, França e do livro (In)EXISTÊNCIAS do SOM. ** Rosário Santana estudou Composição Musical na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo do Porto. Em 1998 obteve o grau de Docteur na Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV). Professora Coordenadora na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico da Guarda, Doutorada pela Universidade de Aveiro, Elliott Carter: le rapport avec la musique européenne dans les domains du rythme et du temps, publicada pelas Presses Universitaires du Septentrion, Villeneuve D’Ascq, França.
93
1. INTRODUÇÃO A música e a pintura revelam-se profícuas na descoberta de novos universos imagéticos, universos esses que se constróem na interacção manifesta tanto a nível individual de si para consigo como, e paralelamente, entre si e com o outro. A obra constrói-se individualmente fundando-se naquilo que o artista nos apresenta, e naquilo que somos e nos propomos ser através dela. Simultaneamente, notamos que a reciprocidade das artes permite a construção de objectos multidisciplinares e de universos artísticos mais ricos do ponto de vista não só artístico como imagético e musical. A interacção entre a música e a pintura, bem como a interacção com outras formas de fazer e pensar a obra, permite reflectir sobre a arte de uma maneira nova, através de novos prismas, prismas esses que se revelam portadores de novas disposições sobre a arte e o fazer artístico. Neste sentido, « tout au long du XXème siècle, peintres et musiciens ont multiplié des formes d’échanges qui vont bien au-delà des parallélismes auxquels ont été trop souvent réduites les relations entre disciplines artistiques. [Verificamos que,] à cet égard, les expérimentations menées par les futuristes et les dadaïstes au début du siècle, de même que les démarches de Kandinsky, de Klee ou de Mondrian, ont constitué de précieux catalyseurs pour les artistes qui souhaitaient dépasser les catégories conventionnelles. Ainsi, le temps va devenir une composante concrète d’un travail plastique. L’espace prend place comme une dimension à part entière d’un projet musical. Un objet sonore est envisagé sous le double aspect de son apparence visuelle et de ses conséquences acoustiques. Les nouvelles technologies elles-mêmes se situent au croisement de différents modes d’expression. »1 Assim, artistas, pensadores e criadores, interagindo, continuam de forma incessante a construção de um caminho visando novos e profícuos objectos e espaços de arte. Os espaços de arte, e da arte, revelam-se pela obra e no sentir da obra. O estudo das possibilidades criativas, discriminativas e sonoras de um espaço de arte, e do seu fazer, leva o artista, compositor, criador, a estabelecer relações de reciprocidade entre diversas áreas do saber e do fazer artístico. Estas relações, e ralações próprias ao fazer da arte, fundam-se e fundamentam-se em 1
Bosseur, Jean-Yves, Musique et arts plastiques – Interactions au XXe siècle, Minerve, Paris, 1998, s.p..
94
conhecimento e em intuição de artista, um conhecimento que provém de diversas áreas do saber tanto científico, como sensitivo e artístico. A arte, manifestando-se no espaço e no tempo de uma existência física mascarada e marcada por um sentir de autor, um sentir físico, emocional e psicológico (do ser e ter humanos), revela faces de uma mesma moeda, uma moeda de troca e de reversibilidade entre o imaginário e o poético, entre a imagética e a poiética da obra e do artista criador. Som e cor, textura e luminância, harmonia e equilíbrio, forma e conteúdo, todos concorrem para a concretização de uma ideia, para a definição de um organismo que traduz o ser e o ter de quem faz arte. O fazer da obra - físico, profundo e inalcançável - mostra-nos um ser de artista que se acalma numa acção tangível através do objecto de arte que se define, mas, e simultaneamente, se mostra inatingível na mais profunda e relevante acção - a transmutação e transfiguração de quem cria. Alvo de estudo, análise e interpretação, uma obra nunca se revela no ser que cria mas no ser que frui. É sua condição revelar mais de quem frui do que de quem cria pois, a obra, é sempre o seu reflexo, o seu espelho, o seu sentir, construindo-se à posteriori numa acção sempre distante e distinta do seu fazer. A criação revela uma sua face; a interpretação, um seu querer; o fruir, um seu sentir. Neste jogo, verificamos que a criação denota bastante do ser que se propõe vivenciá-la seja no seu acto primeiro – a sua construção; seja no seu acto segundo - a sua fruição. A criação e definição do objecto artístico enraíza-se no mais profundo do ser humano, traduzindo, muitas das vezes, o mais inconsciente do seu eu, manifestando faces ocultas e muitas vezes queridas indizíveis do seu ser, manifestações que não ocorreriam certamente num estado de consciência plena. O fazer artístico projecta o ser humano num semitranse onde se enuncia através do objecto de arte2. O seu dizer traduz uma experiência, um manancial de provas e existências que consciente ou inconscientemente quer purgar. Não será alheio a isto certamente o processo de catarsis que alguns dizem secundar o feito criativo. A 2 O acto criativo projecta sempre o criador para estados emocionais onde se verifica o estreitamento do seu campo de consciência. A sua atenção, a sua energia, o seu viver encontram-se manipulados e regidos pela necessidade de produzir. A exaltação e o êxtase, a agonia e a violência contidas, e próprias ao acto criativo, vivenciados e compreendidos em pleno unicamente por quem por este acto passa, projectam o criador para uma faixa de consciência diferente da vivenciada em outros actos da existência humana.
95
catarsis purifica, reafirma e redimensiona os factos da vida, levando o artista a ultrapassar-se inexoravelmente. Nesta purga e evoluir constante, e segundo José Gil, o artista volta incessantemente à sua massa primitiva, ao seu reservatório de experiência, de onde tira a força virgem das suas formas. Simultaneamente, refaz um mundo que se encontra mais ou menos moldado pela linguagem. A sua experiência não é pura, mistura imagens actuais e imagens arcaicas, emoções que acabam de irromper e recordações várias. Esta mescla torna-se então a contradição da nova imagem, uma imagem vinda do imaginário e da imaginação, vinda do caos original que é necessário ao artista reactivar sem descanso. E na interpretação da obra não acontece o mesmo? E na sua fruição não será igual? A obra serve sempre de espelho, de reflexo de um ser em transmutação. Uma obra vivificada hoje, revela-se um ser oportunamente diferente da obra que se nos revelará amanhã, pois, a obra, é um reservatório de emoções e transfigurações de um ser sempre diverso. Não sendo constante, o Homem transfigura-se na obra nela se revelando. Assim, uma interpretação e uma fruição de obra nunca se repetem. A mudança, a constância e a inevitabilidade do devir temporal torna-nos sempre diversos e, consequentemente, sempre únicos face à obra e à sua concretização. No caso de Cândido Lima, a recordação dos quadros de Maria Helena Vieira da Silva conjugada com experiências colorísticas diversas, resultou numa criação vívida, e simultaneamente espontânea, uma criação sem precedentes na sua obra, uma criação que se revê em imagens, acções e reacções que se traduzem num sonoro prenhe de emoções e de concepções criativas. O mundo sonoro construído e manifesto num espaço arquitectónico próprio, e manifestamente cheio de significantes e significado para o autor, revela algumas das suas características mais marcantes enquanto compositor, algumas das suas relações e interacções com o universo da pintura e da arquitectura, bem como algumas das conexões que consegue, e concebe, entre o som, a cor, o espaço e a espacialização dos elementos constituintes da obra de arte. O universo musical, misto, descerra dois mundos de som paralelos que se engendram e manipulam mutuamente. O imagético e o poético dos dois concorre para a construção de um sonoro distinto, um sonoro que tenta a colagem, a releitura e a recriação do pictural, do arquitectural e, simultaneamente, do emocional, definindo-se num espectáculo de rara beleza e inovação. Esta recriação não se faz somente através de uma leitura e tradução do dizível destas duas artes,
96
a pintura de Maria Helena Vieira da Silva e a arquitectura da Casa de Serralves, mas, na tradução gráfica e coloristica dos espaços propostos. Olhando e animando a partitura, e o objecto sonoro que nos é proposto, notamos a presença dos objectos plásticos da pintora agora fecundados pelo som. Esta vivência, por vezes bastante primária (e plástica), também ela se faz e se materializa. A esta primeira subjaze uma segunda, mais profunda, mais pensada, mais humana, dos objectos primeiros. É nesta que o compositor mais se traduz, é nesta que o criador mais se purifica, é nesta que o fruidor, e o veículo de tradução do seu autor - o som, mais confluem. É querer de artista que a sua obra transforme o ser que frui. É querer de artista que a sua obra se eternize no tempo. É querer de artista que o seu eu se instale. Não será a obra e a sua cristalização uma tentativa, por parte do seu autor, de perdurar no tempo e no espaço infinitos? No entanto, por muito que se queira instalar e, mais tarde mudar, e porque não transfigurar a existência do mundo, o artista na realidade só perdura e se transforma a ele próprio. A obra é um ser perene e o tempo uma realidade implacável.
2. CORES E SONS A construção e revelação do artístico enquanto reflexo de sinestesias e reciprocidades entre o fazer de distintos autores torna-se portador do novo, do único, do invisível e do indizível da arte, invisível e indizível que se traduz unicamente através da sua fruição e do seu fruidor. Quando alvo de análise e reflexão, essas imagens e acções podem revelar características insuspeitas. Por um lado, carregam consigo conteúdos não conscientes de sentido, de uma não consciência que convém distinguir, uma consciência reveladora de um inconsciente freudiano e, por outro, anunciam mensagens subliminares, periféricas e/ou irreflectidas, possuindo no horizonte conteúdos de natureza psicológica ou fenomenológica denunciadores do acto e do feito criativo. Estas imagens reveladoras de pequenas percepções do ser, fazer e ter da obra (e do artista), implicam toda uma semiótica relacionada com uma acção, seja ela de natureza evolutiva, seja ela de natureza regressiva, do ser e do ter que a projectam e dimensionam. Este lado invisível, embora materializável do fazer artístico, este lado que reúne a percepção do mundo e do fazer progressivo inerente à criação de uma obra, mostra uma relação marcada entre o visível (manifesto na obra da pintora e do compositor) como o invisível (o imaginário e a imaginação, o criativo). A constante desta equação é
97
sempre a criação de um objecto que será eternamente a resultante de uma reunião de factores visíveis e invisíveis, pertencentes a universos criativos decorrentes. Assim, a obra musical situa-se num paradoxo, porque a linguagem, invisível, traduz-se, embora de forma inconsciente, na construção activa de factores no universo do sujeito criador, do intérprete, do espectador, e, da relação que se manifesta e estabelece entre eles. A interacção entre as diversas forças criativas e fruitivas, tanto visíveis como invisíveis e inquantificáveis, as quais emergem de pormenores tanto de natureza formal, como imagética, pictural ou sonora, tem um papel decisivo no êxito ou no fracasso da criação do objecto artístico. A sua interpretação, quando efectiva e necessária, resulta numa manifestação sempre dependente de quem recria e frui. Emerge igualmente condicionada pelos espaços da Casa de Serralves, pela temporalização e pelos coloridos e luminâncias que esta contém e adquire nos momentos da sua criação e fruição, adquirindo ainda, a sua forma e conteúdo, no agir e fruir do seu público. A obra, a maneira como esta se instala e progride no espaço da Casa de Serralves, reflecte o seu público e a maneira como este interage com o espaço e com as manifestações artísticas que nele se projectam e constróem. Não podemos ficar alheios a esta realidade, bem como às condicionantes físicas e temporais do espaço que as envolve. O espaço condiciona a obra e a obra o espaço; o tempo reflecte-se nos espaços e o espaço nos tempos. Espaciotemporalidades definem-se de forma diversa nas cores e sons projectados da imagética, da poética e da poiética das obras, dos tempos e dos lugares. Partindo destas premissas, verificamos que o trabalho do compositor procura inspiração no universo imagético que o circunda e na pintura de Maria Helena Vieira da Silva, dando origem a um universo de características únicas, as quais se manifestam não só interessantes para ele, como projectadamente para o mundo e o seu espectador. A arte, manifestação do sensível, objectiva-se na obra. O homem, como ser pensante, traduz-se nesta, reflectindo-se enquanto involuntário do mundo, da vida, e de uma existência marcada por tempos e lugares que habita, e que se declaram, também eles, tanto na obra como enquanto obra. Para que estes se confessem enquanto arte, muitos atestam ter que obedecer a princípios técnicos e estéticos rígidos, e ser regidos por leis que se afirmam enquanto codificadores de códigos e princípios de harmonia universal sendo que, o belo, manifesto estético do que é harmónico e harmonioso, traduz, aqui, uma beleza contida no objecto de arte. Enquanto produto do humano, o objecto de arte
98
veicula não só o ser, como a existência de códigos técnicos e estéticos, morais e sociais, linguísticos e regionais, absolutos. O arquétipo manifesta-se aqui de forma magistral3. A sua tradução objectiva-se obra, permitindo ainda a interacção e a reciprrocidade entre diversos domínios artísticos. Assim, se por um lado a interacção, a reciprocidade e a sinestesia entre domínios sensitivos e artísticos diversos pode conduzir a relevantes reflexos e manifestações de arte, reflexos e manifestações possuidores de enorme riqueza e beleza artística, por outro, e no caso da sinestesia entre a percepção do som e da cor, podemos aceder a objectos artísticos de uma declarada beleza e coerência artísticas. Não é raro ao longo da história da arte encontrar elementos de reciprocidade entre os domínios artísticos da música e da pintura, sendo que, e no caso da obra Polígonos em Som e Azul (1988-89) do compositor português Cândido Lima (n. 1937), esta se manifesta num querer e dizer dos objectos plásticos da autora Maria Helena Vieira da Silva. Para 16 instrumentos e fita magnética, a obra releva igualmente o espaço físico onde se encerra, o espaço da Casa de Serralves na cidade do Porto4. A ligação entre cor e som realiza-se por um processo psíquico complexo, uma transferência sensorial que reúne referências 3 Para nós, arquétipo revela aqui não só o “modelo ideal”, o “modelo primeiro”, mas também, e seguindo a doutrina de Jung (1875-1961), modelos que estejam de acordo com a teoria estóica da alma universal concebida como origem da alma individual, e as imagens ancestrais e simbólicas materializadas nas lendas e mitos da humanidade os quais constituem o inconsciente colectivo. Este revela-se posteriormente não só no indivíduo, como em sonhos, delírios ou algumas manifestações de arte. (Cfr. Dicionário Universal da Língua Portuguesa, Texto Editora, Porto, 1995, p. 144.) 4 Sendo 7 as cores do arco íris e 7 as notas musicais, várias foram as hipóteses de correspondência entre os domínios da cor e do som, mas houve, quase sempre factores aleatórios: qual a nota a atribuir à cor de frequência mais baixa (vermelho)? Partindo desta, a equivalência poderia ser obvia, mas qual o critério para o primeiro passo? Newton terá sido um dos percursores de uma correspondência deste tipo; no seu caso, ao vermelho corresponderia o ré, seguindo depois a ordem do espectro e o modo dórico renascentista… Muitos outros se seguiram a Newton, incluindo correspondências cromáticas, além das diatónicas sugeridas, mas sem nunca deixar de haver parâmetros aleatórios. Mas, independentemente das especulações teóricas acerca de eventuais correspondências entre som e cor, o facto é que, instintivamente, associamos determinados sons a determinadas cores e, provavelmente, apenas por coincidência obedeceriam a uma escala linear; essa associação terá outro tipo de condicionantes, entre elas, e sobretudo, questões estéticas e psicológicas. Assim, e dada a aleatoriedade já mencionada, a base para estipular equivalências não será puramente física e científica, contendo, também, muito de intuitivo e subjectivo.
99
simbólicas, históricas e culturais, corroborando os sentidos com uma certa significação. Do ponto de vista psicológico há uma relação de semelhança entre a percepção do som e da luz. A cor é uma sensação de luz transmitida ao cérebro através do olho, consistindo a luz em ondas de energia que viajam em várias extensões. O cérebro processa a informação dando vida a milhões de tonalidades, cada uma com a sua frequência. Este processo revela-se muito semelhante ao da audição e percepção do som, onde a vibração do ar tem uma certa frequência que, ao elevar-se de um corpo vibrante, passa pelo aparelho auditivo e é ulteriormente associada a várias sensações físicas, emocionais e sensitivas. Partindo do princípio de que cada pessoa é única, o nosso olho/cérebro, ouvido/cérebro reage de maneira diferente. O som permite-nos criar uma linguagem imagético sonora própria, e a cor, uma linguagem imagético visual que reflecte as mesmas características. Portanto, quando falamos de cor, e ainda mais de cor associada ao som, não podemos falar em termos absolutos, mas sim, em termos relativos e subjectivos, reflexo do ser que os vive, sendo a sinestesia, e neste contexto, um caso particular de vivência da cor e do som5. Na vida quotidiana somos constantemente encurralados por sons e cores e as nossas acções influenciadas por estes. A nossa experiência visual e auditiva começa desde tenra idade, evoluindo em consonância com a nossa evolução geral. A cor e o som definem 5 Sinestesia (Grego, syn = união + aisthesis = percepção) é o termo utilizado para descrever um fenómeno em que estimulo de um determinado sentido (por exemplo, a audição) origina não só a sua percepção correspondente, mas também a de outros sentidos (por exemplo, o visual). O caso mais descrito tem sido o que origina a associação entre som e cor, ou seja a audição colorida. Normalmente, o sinestésico, ao ouvir um determinado som visualiza, involuntariamente, formas simples coloridas, que variam consoante a pessoa que escuta, o som, etc. O fenómeno poderá ocorrer num músico com ouvido absoluto, sendo uma relação entre frequências sonoras e luminosas, ou num músico com ouvido relativo, estando, neste caso, implícitas relações tonais e que, assim, não serão, porventura, constantes. O fenómeno pode ter resultados diferentes em situações idênticas; em exemplo: dois músicos com ouvido absoluto. Por outro lado, poderá ocorrer num ouvinte sem formação musical especializada mas, nesse caso, as relações seriam diferentes. No entanto, o fenómeno, ao situar-se na dimensão som/cor, não se limita a relações de altura (pode ser, por exemplo, a percepção do timbre a despertar a percepção da cor). Este caso impulsiona mais uma série de variantes, em que algumas poderão ser de falsa sinestesia, ou seja, uma associação psicológica motivada por eventuais clichés, como seria a afirmação “o timbre é a cor do som”. Devemos salientar que a sinestesia representa um fenómeno físico e não psicológico.
100
elementos essenciais do nosso mundo e das nossas emoções. Os nossos olhos e ouvidos são atraídos pelas cores e pelos sons muito intensivamente, percebendo a cor de um objecto, ou a intensidade e qualidade de um som, mesmo antes de estarmos conscientes de diversos dos seus pormenores, pormenores estes relacionados com as curvas, o fraseado, ou a construção dos seus elementos mais mínimos e estruturais. O trabalho do criador, do compositor neste caso, reflecte esta realidade. Sendo ele um ser com uma existência e vivência exclusivas, a sua maneira de pensar a cor do som e o som da cor é específica, revelando uma obra manifestamente diferente da de outro. O espectador traduzirá este universo reflectindo também a sua realidade e imagem do mundo psicológico e físico que representa. Cores e sons são diversos; obras e lugares, seres mágicos possuidores de uma força transmutativa sempre presente, nunca ausente na consciência e inconsciência de quem permanece na obra e na espacio-temporalidade da sua apresentação. Mas as cores são mais do que combinações de cores primárias. Elas constituem um sistema de comunicação não verbal. As cores têm simbolismos e significações peculiares que as tornam elementos importantes, se não fundamentais da nossa vida, pois influenciam cabalmente a sua qualidade. A memória das cores é um fenómeno onde a cor cunho de um certo objecto influencia a nossa percepção sobre aquela cor em geral. Então tudo é baseado na memória das cores, onde e quando as experimentamos. Não se passará o mesmo com o som? E o cheiro?... O seu simbolismo e a sua comunicação não verbal vai permitir, conjuntamente com a construção da obra de arte e a sua fruição temporal, a construção de um significante e de um discurso de cores e significantes picturais que se traduziram, neste caso, em som e espaços de som únicos. Neste sentido, alguns artistas actuais, os que realizam apresentações conjuntas de som e imagem, mantêm uma investigação contínua sobre a forma de melhor conjugar estas duas realidades. A sua análise constante, bem como o estudo aturado sobre a maneira de as conjugar, ora simultânea ora sucessivamente, permitiulhes concluir que, o ritmo e a rítmica de construção da obra poderia ser uma via. Neste sentido, os aspectos rítmicos revelam-se uma ponte entre os dois universos, mas outros há que a eles se aliam, e que se revelam de grande interesse e relevância, como é o caso da aplicação dos princípios e técnicas que provêm do contraponto e de universos contrapontisticos ditos mais clássicos. Assim, “The expression of motion of an aural or visual object depends on the motion of other objects in the field of perception. Counterpoint can be defined as the
101
relationship of independent motion of a minimum of two objects. If the rules of linking are observed and sounds and images are referring to each other, because they belong to different modalities they can always be perceived independently, therefore they naturally create counterpoint.”6. A extrapolação destes conceitos para outros domínios científicos e artísticos, permite ao compositor transpor de um domínio ao outro algumas características do universo pictórico de que dispõe e contrapõe com o seu sonoro. Permite-lhe criar ainda um contraponto com o espectáculo visual que se vivencia na Casa de Serralves. O contraponto entre os dois discursos, o contraponto em cada um dos dois, o contraponto com o arquitectural objectiva-se numa realidade farta de significados. No entanto, não devemos esquecer que: «un art doit apprendre d’un autre art l’emploi de ses moyens, même des plus particuliers et appliquer ensuite, selon ses propres principes, les moyens qui sont à lui et à lui seul»7. Neste contexto surgem diversas formas de formalizar o processo. Lumia é a designação de um destes processos descrevendo um tipo de arte que “permite ‘tocar’ imagens da mesma forma que um músico toca sons”8, e que terá como objectivo a interpretação simultânea de som e imagem para que se reflictam mutuamente proporcionando uma vivência (pseudo) sinestesica ao espectador9. Segundo Thomas Wilfred são três os fundamentos da Lumia: forma, cor e movimento10. Estas três dimensões da Lumia foram alvo de formulação de princípios relevantes, por pintores, realizadores e compositores, sendo o ritmo, um factor comum aos três: “There is a rhythmic element to each of the three dimensions. The changing of colours is rhythmic, the ways in which forms are arranged (even in static images) is often described in terms of rhythm, and movement in time is inherently rhythmic. This suggests that rhythm constitutes a particularly rich point of entry for the design of instruments and for the development of technique for playing visuals in performance with music”11. Será que 6
http://www-crca.ucsd.edu/~jarek/index_ideas.htm
7
Kandinsky, Vassilly, Du spiritual dans l’art, Gonthier, Paris, 1969, p. 76.
8
Collopy, F., "Color Form and Motion: Dimensions of a Musical Art of Light”, Leonardo, nº33, 2000, s. l., p. 355. 9
O termo terá sido primeiramente usado por Thomas Wilfred, criador do
Clavilux e fundador do “ The Art Institute of Light”. 10 Collopy, F., opus cit., p. 356. 11 Collopy, F., opus cit., p. 356.
102
o espectáculo aqui analisado não será um Lumia sendo que, neste caso, é o compositor que toca o sonoro de acordo com o visual de Maria Helena Vieira da Silva? Visual e sonoro constroem-se segundo ritmos e rítmicas peculiares, mas que se dizem diversos e manifestos de forma conjunta e similar. O compositor alude ainda a um ritmo de visualização da exposição e do espectáculo que se encontra manipulado pelo sonoro da obra12. Aqui surgem três ritmos simultâneos, o ritmo do visual, o ritmo do sonoro e, o ritmo de fruição. Embora se condicionem mutuamente são, no entanto, livres.
3. POLÍGONOS EM SOM E AZUL Sabemos que, em Portugal, o estudo simultâneo e a interacção e reciprocidade das artes geram distintas manifestações artísticas nas mais diversas áreas e temporalidades. Por outro lado, o uso das novas tecnologias como suporte à criação musical fomentou este processo. O seu estudo, bem como o estudo das técnicas empregues na sua concepção e criação, leva-nos a vastos domínios da criação e interpretação musicais. Paralelamente podemos referir que estes princípios, bem como os inerentes à construção de um Lumia, parecem constituir um ponto de partida para o corrente trabalho mas, é necessário ainda, sistematizar alguns princípios e possibilidades, bem como explorar o aspecto espacial do fenómeno sonoro conducente, neste caso, ao estudo de uma tridimensionalidade visual e de uma tridimensionalidade sonora. A interacção entre cor, som, e o universo pictórico de Maria Helena Vieira da Silva, revela-se não só uma mais valia na determinação dos objectos sonoros e musicais da obra, como na determinação dos significantes e significados que nos são transmitidos. O compositor constrói a obra nesta constante. Se por um lado, os elementos que trabalha, estrutura e define são vários e complexos, por outro, o seu domínio técnico e expressivos revelam-se continuamente presentes. O seu pensamento lógico, estruturado e claro, define espaços de som e cores característicos. A obra, extensa e complexa (30 minutos), define um mundo sonoro inusitado onde, um 12
Afirma, no entanto, que este ritmo, descrito num conjunto de ordens enumeradas no programa do concerto, não interfere com a forma de fruirmos o espectáculo a não ser que assim o desejemos.
103
pensamento estruturante aliado a uma expressividade desusada, se conjugam para dar forma, e revelar, um mundo sonoro e pictural em perpétua transformação (aqui, o universo pictural de Maria Helena Vieira da Silva). Notam-se no entanto inúmeros traços que definem o criador. Mantendo-se, clarificam o nosso percurso de fruição e conhecimento da obra. Relevando conjuntamente o espaço, Polígonos em som e azul desenvolve-se num espaço próprio - a Casa de Serralves na cidade do Porto -, construindo-se de forma diversa nos distintos espaços que a mesma nos apresenta. Os diferentes instrumentos encontram-se dispostos segundo um esquema espacial preciso, assim como as colunas difusoras da banda sonora. O espaço interior, de dois pisos, conflui num espaço interior, e interno à obra, que permite a confluência de dois (quatro) espaços de som. O público pode, e deve, movimentarse ao longo da execução e audição da obra, e da fruição da exposição de quadros de Maria Helena Vieira da Silva, havendo um esquema de movimentação previsto pelo compositor. Este esquema inclui ordens de movimentação dos ouvintes, ou não, enquanto dura a obra. Este esquema não regula, não direcciona, não impõe um movimento que é necessário, ou imposto, seguir. O esquema, baseado no tipo de universo sonoro concebido, e fruído, reflecte os diversos percursos do espectáculo que nos é presenteado, percursos esses que são de natureza tanto sonora, como pictural ou física. Assim, universos mais estáticos aludem ao estatismo do ouvinte, e universos mais dinâmicos, à movimentação do público. O compositor salienta o facto da obra ter exactamente trinta minutos, o esquema de movimentação do público estar dividido em oito partes, o final da obra implicar a deslocação de todos os músicos para uma sala octogonal, e esta marcha ser determinada por um som com uma periodicidade de oito segundos e o número de intérpretes ser de dezasseis (8+8). A determinação matemática das estruturas organizativas de uma obra através do número oito, tem o seu reflexo ainda na obra Bleu-Rouge (Regards) (1992), do mesmo autor. Nesta obra, a parte central reflecte a utilização do número oito e, segundo o compositor, esta secção é para oito instrumentos, possui uma base harmónica de oito sons, tendo sido iniciada no dia 8 de Agosto de 1988. O autor alude ainda às efemérides dos 80 anos (8x10) de Maria
104
Helena Vieira da Silva e Olivier Messiaen13. Refere ainda que um conjunto de oito sons é constantemente variado e revitalizado ao longo da obra servindo como elemento estrutural e estruturante a nível harmónico e melódico. Estrutural e formalmente, e em Polígonos em Som e Azul, o número oito surge ainda no final da obra quando os músicos, que se encontram dispersos pelas várias salas do edifício, se deslocam até um ponto final de todo o processo de condução do som. Estes movem-se para um ponto único na sala do rés-do-chão que possui, e como já referimos, oito lados. O final da obra adivinha-se e constroi-se de forma sucessiva através da deslocação e movimentação do som no espaço. O seu redimensionamento constante, a construção e a variação contínua de polígonos de som no espaço, a sua concentração sucessiva num volume e forma cada vez mais pequeno e condensado, leva o ouvinte, também ele, a deslocar-se nos espaços de fruição para a zona de finitude do mesmo. Nesta altura o espectador encontra-se manipulado pelo sonoro. Saindo indistinta e indiferenciadamente do imagético visual, o ouvinte embrenha-se unicamente no som e no sonoro. A isto não será certamente alheia a movimentação física dos instrumentistas que se deslocam de forma manifesta nos espaços da Casa e que prendem o olhar, o ouvido e o pensar de quem está. A isto não será alheio também o sonoro que se cria e recria através da componente gravada em fita. A isto não será também alheio o tempo de fruição e definição do espectáculo. O músico-investigador, trabalhando e estudando o fenómeno sonoro e desenvolvendo trabalho de investigação em vários domínios do conhecimento científico e musical, contribui para a divulgação e sistematização de conhecimentos que permitem, facilitam, sistematizam e clarificam a abordagem de novos mundos sonoros por parte do músico–criador e do músico–ouvinte. Quando aplicamos a designação “novos mundos sonoros”, não nos referimos somente aos universos sonoros contemporâneos, mas também àqueles que, independentemente da época histórica onde se inserem, ainda não são do conhecimento profundo do sujeito que os aborda. A produção de conhecimento relativo ao mundo e ao fenómeno sonoros, aos processos de concepção, produção e difusão do som, tarefa de todo o investigador, permite clarificar, sistematizar e inovar no processo de criação; para nós, e neste caso, o processo de criação engloba tanto o 13
Cfr. Lima, Cândido, Origens e Segredos da Música Portuguesa Contemporânea, Edições Politema, Instituto Politécnico do Porto, Porto,
2003, p. 135.
105
acto de composição, como o acto de interpretação da obra concebida. A nível pictural não se passará o mesmo? Sabemos que Maria Helena Vieira da Silva tocava harmónico e que tinha uma notória e conhecida predilecção por Purcell. Podemos afirmar que a ligação aos clássicos14 e a um universo de características tonais é uma atracção comum a muitos outros pintores, nomeadamente Paul Klee e Kandinsky que tinham uma profunda admiração por Bach e Beethoven respectivamente15. Segundo Cândido Lima, “É neste contexto evocativo também da pintora que aparece uma passagem estruturada com base em funções tonais (em sol menor) integradas na sonoridade e na linguagem global da obra. Princípios tonais sobrepõem-se no tempo, em vez de se sucederem, interagindo através de configurações idênticas nas várias vozes, como uma heterófonia; os acordes e as suas funções sobre um só eixo, isto é, sobre uma só escala e uma só tonalidade (sol menor). O desafio [segundo o compositor] foi proceder de tal maneira que o efeito auditivo [desta] passagem não se afastasse da coerência sonora e estrutural da obra. A cor da música de Purcell e da sua época devia transfigurar-se numa outra cor, a cor duplamente metafórica da própria obra e da cor- atmosfera dos quadros e do pensamento vindo de outros lugares [construindo-se] um tecido plurifuncional e multiespacial”16. A interacção entre as artes manifestando-se mais uma vez. Paralelamente, e se durante a primeira parte do século XX as associações entre várias disciplinas se ficaram normalmente pelo estado virtual (à excepção das formas tradicionais de confrontação audiovisual que representa a ópera ou o bailado), o imaginário contribui para tecer as diversas e vastas relações que nos são sugeridas de forma mais ou menos indirecta pela prática artística. Em alguns casos, 14
Clássico enquanto manifesto de um modelo de beleza e perfeição. O classicismo representa uma época que abrange os sécs. XVI, XVII e XVIII, correspondentes aos períodos do Renascimento, do Barroco e do Neoclassicismo, cuja orientação estética, que se reflectiu em todas as artes, se rege por padrões humanistas de moderação, dignidade e equilíbrio que se manifestam numa preocupação pela perfeição da forma baseada no predomínio da ideia de conjunto e cuja inspiração está na antiguidade greco-latina. Note-se contudo que a nível musical o período clássico compreende um momento bem definido da História da Música (finais do século XVIII – início do século XIX), que se rege por princípios bastante rígidos reflectindo os princípios inerentes ao classicismo, nomeadamente a clareza, a simetria e o equilíbrio.
15
Cfr. Lima, Cândido, opus cit., p. 137.
16
Cfr. Lima, Cândido, opus cit., p. 137.
106
historicamente mais próximos de nós, é a cooperação efectiva das diferentes formas de expressão que nos convém e que efectivamente se concretiza em Polígonos em som e azul. Música, pintura e arquitectura, confluem para um objectivo comum - a criação de um objecto artístico de características singulares onde a reciprocidade se manifesta na sinestesia fruitiva das realidades artísticas. Ora separada, ora simultaneamente, constroem-se na interacção que manifestam17.
4.CONCLUSÃO Se o artista, o compositor, o pintor, o arquitecto, estrutura e pensa a obra em função das condicionantes e determinantes que se impõem, a obra só vive no tempo e espaço da sua concretização, interpretação e fruição. Sem o intérprete e, simultaneamente, sem o ouvinte, o fruidor do objecto artístico, a obra não existe, não vive enquanto ser e ter. Existindo e funcionando como veículo transmissor de uma vida, de um mundo subjectivo que se quer comunicar, o intérprete, no caso de uma obra musical, ao executá-la deve, quando possível, realizar um trabalho prévio com o compositor e com todos os agentes criativos que secundam o objecto de arte. Deste trabalho, que se quer cúmplice, o primeiro impregna-se das preocupações, atitudes, aspirações estéticas e poéticas, ideias, ideais e formas de se ver e recriar no tempo e espaço próprios criando, de seguida, as formas, as arquitecturas e os mundos sonoros, poéticos e poiéticos destes, e que são agora da sua responsabilidade, aquando da interpretação da obra, e no momento efectivo da sua comunicação. Esta responsabilização permite-lhe uma melhor e efectiva concretização do querer de artista, uma mais eficiente e profícua caracterização do visível, invisível e indizível da obra mesmo que estes só se definam no fruidor da obra de arte.
17
Normalmente, os pintores projectam-se mais facilmente no universo sonoro que os compositores no universo das artes plásticas. Este facto confirma-se ainda hoje. No entanto, desde o romantismo, que encontramos múltiplos testemunhos de “audições coloridas”. Schumann escreve numa carta de 1833: “sinto-me imensamente feliz quando um raio de sol dança sobre o meu piano de cauda, como que brincando com o som, ele mesmo apenas uma luz vibrante” (Shumann, Clara e Robert, Lettres d’amour, Éditions Buchet/Chastel, Paris, 1987, pág. 32), ou ainda em Chopin que declarava a Delacroix ver a sua nota favorita, o sol, em azul.
107
Uma boa interpretação faz-se quando, depois de investigar os meandros da obra, o intérprete se encontra apto a realizar as suas escolhas interpretativas, propondo as suas próprias respostas, as suas direcções e gestos para a construção do edifício proposto, e no qual se identifica uma gestualidade própria, traduzindo uma forma de estar, um estilo. A projecção sonora do texto musical, resultante da sua performance, torna a existência espacio-temporal da obra possível e sem a qual esta não existe. Traduzindo um estilo, uma linguagem, um universo sonoro que se quer assimilado e compreendido antes de ser transmitido, a interpretação exige uma investigação prévia por parte do instrumentista das questões colocadas no momento da abordagem inicial da obra, tornando, futuramente possível, a existência e vivência de um organismo musical (e neste caso pictural), no espaço e no tempo. Os textos, musical e pictural, a base de trabalho do intérprete, deverão ser desmontados, de forma a desvendar a sua riqueza, os seus segredos mais profundos. Encontrar o equilíbrio entre os universos do compositor e da pintora, transcritos no texto musical e pictural que nos é proposto, e o universo do intérprete, traduzido na gestualização da obra que permite a sua eclosão e a comunicação de um universo sonoro imagético-poético, é tarefa de todo o intérprete. O pictural impregna-se do sonoro, e o sonoro adquire as cores do pictural. As duas realidades absorvem-se reciprocamente, vivificando-se sinestesias entre as duas artes, na alma e no ser de quem as frui. Uma boa interpretação exige do intérprete o conhecimento profundo da obra, assim como o respeito de uma estética, de um estilo. O domínio do estilo e das técnicas instrumentais e interpretativas da obra, o conhecimento profundo da sua linguagem e a sua prévia interiorização, contribuem para que comunicação desta se faça nas melhores condições, e que o respeito do texto e do contexto musicais e pictóricos se verifique. A investigação contribui para que todas estas fases tenham sucesso, e a execução da obra e a criação do espectáculo multidisciplinar seja a tradução, o mais fiel possível, de universos pessoais, tanto do compositor como da pintora, os quais são a tradução, musical e pictural, de uma vivência própria, reflectida, reflexiva e reveladora. Assim, e no espaço da Casa de Serralves, manifesta-se e desenvolve-se uma outra realidade criativa e fruitiva. Nela, os objectos de arte não se confrontam, antes interagem para uma nova leitura dos espaços da Casa. Os espaços ganham vida, cor, som, sendo vividos de forma diferenciada pelos espectadores. Se o som se difunde, a cor se funde com ele. Se o som se reflecte, a cor se deflecte face a este e
108
aos reflexos e luminosidades de um entardecer soalheiro e outonal. O devir temporal transforma invariavelmente a luminância próprias ao espaço da sala, da tela, do som. O som torna-se sombroso, as cores tornam-se frias mas a realidade da obra continua profunda, crua, ocre, opressiva. Nesta luta, som e cor interagem construindo dois universos paralelos que, disponibilizados pelos autores, se determinam na escolha do ouvinte. A obra torna-se aberta pela indeterminação da sua escuta. A obra torna-se densa pelo fluir sinestézico e recíproco dos dois espaços. A obra revela-se, relevando o outro.
BIBLIOGRAFIA Bosseur, Jean-Yves (1998); Musique et arts plastiques – interactions au XX e Siècle; Minerve, s. l. Bosseur, Jean-Yves (1999); Musique et Beaux-arts – De l’antiquité au XIX e Siècle ; Minerve ; s. l.. Collopy, F. (2000); "Color Form and Motion: Dimensions of a Musical Art of Light”; Leonardo; nº33; s. l.; 355-360. Dicionário Universal da Língua Portuguesa (1995); Texto Editora; Porto. Gaillot, Bernard-André (1997); Arts plastiques – Eléments d’une didactique critique; PUF; Paris. Kandinsky, Vassilly (1969); Du spiritual dans l’art; Gonthier; Paris,. Lima, Cândido (2003); Origens e Segredos da Música Portuguesa Contemporânea; Edições Politema; Instituto Politécnico do Porto; Porto. Maia, Pedro Junqueira (2002); (cord.); Cândido Lima; Atelier de Composição; Porto. Shumann, Clara e Robert (1987); Lettres d’amour; Éditions Buchet/Chastel; Paris. Sitios : http://www-crca.ucsd.edu/~jarek/index_ideas.htm
109
BRASIL: A CONSTRUÇÃO DE UM CAPITALISMO SEM RISCO, 19301985
BRAZIL: BUILDING A CAPITALISM WITHOUT RISK, 1930-1985 José Carlos Almeida Alexandre* (jcalexandre@ipg.pt)
RESUMO
No período 1930-1985, a industrialização por substituição de importações (ISI) tornou-se o modelo de eleição dos governos brasileiros. O desenvolvimento seria o resultado da aplicação da ISI através do planeamento estatal. Naquele período, o Brasil obteve resultados notáveis em termos de crescimento económico. Todavia, estes sucessos foram sempre perseguidos pelo problema da inflação e do endividamento externo. Registaram-se também progressos assinaláveis em vários indicadores sociais, mas o Brasil continuava a ser uma das sociedades mais desiguais do mundo. Qual foi o papel do Estado brasileiro na implantação do capitalismo? Como é que surgiram e se desmoronaram os diferentes regimes sociais e de acumulação e as estratégias de desenvolvimento? Como é que o Estado articulou as ambições da sociedade e do mercado? Para responder a estas questões, vamos concentrar-nos nas relações de poder e conflito dentro da sociedade brasileira e entre a sociedade e o Estado. Com este objectivo presente, analisaremos as interacções destas relações internas, por um lado, com a evolução das instituições económicas e políticas, e por outro, com as estratégias de desenvolvimento seguidas pelos governos. Palavras-chave: Estado, planeamento, proteccionismo, conflitos sociais, industrialização
ABSTRACT
In the period 1930-1985, industrialization based on substitution of imports (ISI) became the Brazilian Governments’ preferred model. Development would be the result of that State planned strategy. In that period Brazil registered notable economic growth. However, output growth was accompanied by severe inflation and external debt problems. And, although there were also remarkable results in terms of several social indicators, Brazil continued to be one of the most unequal societies in the world. What was the role of the Brazilian State in the implementation of capitalism? How did the differing social and accumulation regimes and development strategies rise and fall? How did the State articulate the ambitions of society and the market? To respond to these questions, the focus will be on the power relations and conflict within the Brazilian society and between society and State. With this goal, the interactions
110
of these internal relations with, on the one hand, the evolution of the economic and political institutions and, on the other hand, with the development strategies followed by the government will be analyzed. Key words: State, planning, protectionism, social conflict, industrialization.
* Obteve, em Julho de 2008, aprovação nas provas de Suficiência Investigadora no Doutoramento em “Fundamentos de la Investigación Histórica” da Faculdade de Geografia e Historia da Universidade de Salamanca. Mestrado em Comércio Internacional pela Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, em Fevereiro de 2001, com a dissertação: “Evolução da desigualdade salarial na indústria transformadora e abertura da economia portuguesa”. Licenciatura em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, que concluiu em Julho de 1994. Prof. Adjunto na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico da Guarda. .
111
1. INTRODUÇÃO O Brasil desfrutou no começo do século XX de uma relativa democratização e abertura do sistema político e de um crescimento económico notável, baseado na exportação de produtos primários. Todavia, a crise dos anos 1930 e a posterior cristalização política de um regime nacional-popular puseram ponto final ao anterior regime de acumulação e assentaram as bases de uma industrialização por substituição de importações (ISI), motor do crescimento económico do pós-guerra. Entre 1950 e 1970, a ideologia dominante sobre o desenvolvimento da América Latina era emanada da Comissão Económica para a América Latina (CEPAL). O “cepalismo” promoveu o modelo de desenvolvimento de industrialização por substituição de importações, o intervencionismo económico do Estado, o populismo e o nacionalismo. O Estado era o principal actor e o mercado era relegado para um papel secundário no processo de desenvolvimento. A combinação de marxismo, teoria da dependência e “cepalismo” engendrou a ideologia dominante na América Latina em termos de desenvolvimento. Numa palavra, o desenvolvimento seria o resultado da aplicação da ISI através do planeamento estatal. O Brasil não saiu deste esquema geral que marcou a América Latina, principalmente a partir do pós-guerra. Pelo contrário, foi um dos países latino-americanos que seguiram o modelo “cepalista” mais a rigor. A ISI nasceu quase inadvertidamente depois da Grande Depressão. Para fazer frente à crise, foram implantadas uma série de medidas proteccionistas para equilibrar a Balança de Pagamentos. O objectivo inicial não era combater o problema da dependência em relação aos países mais desenvolvidos, mas sim combater os estrangulamentos internos, diminuindo para o efeito as importações. Paulatinamente, a ISI gerou a ascensão de novas classes sociais na arena política brasileira, primeiro, das classes médias e, no começo dos anos 1940, das massas populares. A elite política não podia continuar a ignorar os desejos e as ambições destes grupos. Estas classes exigiam um novo modelo político que lhes permitisse uma maior participação política e que lhes aumentasse os rendimentos. A reorientação da economia para as actividades industriais, que marcou o período pós-1930, e a consequente crise de hegemonia da burguesia oligárquica e do sistema liberal vigente na etapa histórica
112
anterior aceleraram a escolha da ISI como modelo de desenvolvimento a partir do ano de 1940. Qual foi o papel do Estado brasileiro na implantação do capitalismo? Como é que surgiram e se desmoronaram os diferentes regimes sociais e de acumulação e as estratégias de desenvolvimento? Como é que o Estado articulou os desejos e aspirações da sociedade e do mercado? Para responder a estas questões, vamos concentrar-nos, em especial, nas relações de poder e conflito dentro da sociedade brasileira e entre a sociedade e o Estado. Com este objectivo, analisaremos as interacções destas relações internas, por um lado, com a evolução das instituições económicas e políticas e, por outro, com as estratégias de desenvolvimento seguidas pelos governos.
2. DA EMERGÊNCIA DAS MASSAS À QUEDA DA REPÚBLICA POPULISTA “The revolution of 1930, the ‘Estado Novo’ (1937-1945), the
presidency of Juscelino Kubitschek (1956-1961) are often portrayed as critical junctures in a sustained process of state building and heavy industrialization.” (Addis, 1997, 134).
A partir da década de 1930, a ISI torna-se o centro de gravidade de uma nova estratégia de desenvolvimento, que se consolidaria nas décadas de 1940 e 1950. Em primeiro lugar, esta estratégia implicou uma perda de importância relativa do sector exportador no processo de formação do rendimento nacional e, ao mesmo tempo, um aumento da participação e do dinamismo da actividade interna. As transformações da estrutura produtiva circunscreveram-se basicamente ao sector industrial e às actividades conexas, sem modificar consideravelmente a situação do sector primário e as actividades tradicionais de exportação – que se revelariam fundamentais na obtenção de divisas para financiar o desenvolvimento dos sectores industriais. Tornou-se necessário criar um tipo de economia que contemplasse a criação de uma base económica de sustentação dos novos grupos sociais emergentes – classes médias urbanas que passaram a partilhar o poder com a oligarquia - e que oferecesse simultaneamente oportunidades de inserção económico-social aos grupos populares numericamente mais relevantes, cuja crescente importância nas cidades podia abalar o sistema político.
113
Durante todo este processo, o papel do Estado expandiu-se. Era ao Estado que cabia tomar as medidas necessárias para a protecção do mercado nacional, proceder à transferência de rendimentos do sector exportador para o sector interno e criar os núcleos fundamentais de infra-estruturas para apoiar a ISI – fábricas nacionais de aço, refinarias de petróleo, centrais eléctricas, etc. Deste modo, o jogo político-social consistia nos acordos e alianças que as diferentes forças sociais conseguiam alcançar e que expressavam o novo equilíbrio de poder. Nesse equilíbrio, participavam e disputavam a sua hegemonia tanto os sectores agro-exportadores, industriais e financeiros como os sectores médios urbanos. Enquanto os sectores populares – classe operária, massa popular urbana e trabalhadores agrícolas – apareciam normalmente como base de apoio do novo bloco de poder ou simplesmente como classes subordinadas. Nas décadas de 1940 e 1950 distinguiram-se dois tipos de orientação: uma, implícita na pressão das massas, que se expressou numa maior participação política e social e deu origem a uma tendência para uma maior distribuição social e económica; a outra, coexistente com a anterior, manifestava os interesses dos novos sectores dominantes, através da continuidade da expansão económica orientada para o mercado interno e do reforço do nacionalismo, possibilitando a incorporação das massas no sistema de produção e no sistema político. São estas duas orientações – o “distributivismo” social e económico e o nacionalismo - que configuram, grosso modo, o Estado populista nascido depois da Grande Depressão.
2.1. GETÚLIO VARGAS: O PRECURSOR DE UM ESTADO POPULISTA Em 1930, o governo revolucionário de Getúlio Vargas chega ao poder. É o fim da Primeira República, também conhecida como “República Velha”, que havia, desde 1889 (um ano após o fim da escravatura), substituído a designada fase do “Império” (1822-1889). Uma república “(...) imperfeita e responsável por ter exacerbado
ativamente os problemas sociais, políticos e económicos herdados do império.” (Weinstein, 1996, 63)
Com Vargas, o Estado reforça muito a sua intervenção e os seus poderes de controlo. Há um forte investimento em infra-estruturas e uma política económica nacionalista que pretendia criar uma indústria forte. Desde então, o Estado é o líder do desenvolvimento económico do Brasil.
114
A Revolução de 1930 e o primeiro governo de Vargas (19301945) são o resultado de um conjunto de factores internos e externos, que contribuíram para a queda da Primeira República e o desgaste dos seus mecanismos políticos. Os factores externos resultaram basicamente da crise de 1929, que quase aniquilou o mercado mundial do café brasileiro, cujo preço diminuiu de US$0,40 por libra (453 Kgs) para US$0,08 (Lafer, 2002). Apesar da forte crise no mercado mundial do café, a procura interna brasileira manteve-se relativamente estável (Lafer, 2002), o que incentivou os empresários a reorientarem os investimentos e a produção para o mercado interno. Como resultado destas mudanças económicas, os interesses tradicionais dos grupos ligados ao café deixaram de ser sinónimo do interesse nacional. Esta crise de hegemonia explica a deterioração do poder político das elites, bem como a emergência da classe média como uma nova força política do sistema. Nestas circunstâncias, com as elites divididas e ameaçadas externamente, as ambições populares descobrem em Getúlio Vargas o homem providencial. Vargas conseguiu organizar e manter unida uma coligação de forças vitoriosas, formada pela classe média e por uma parte das elites. Esta coligação de forças e interesses faria a revolução de 1930 e criaria um regime novo. Vargas representava um poder paternalista para a classe média, cujas aspirações e ambições aumentavam à medida que os factores externos debilitavam as elites. Em 1937, Vargas conduziu um golpe de estado que criaria o chamado “Estado Novo”. O “Estado Novo” conciliou a ambição de Vargas em permanecer no poder com as ambições da classe média de uma maior estabilidade, mais ou menos assegurada com os empregos públicos. Vargas criou um regime regulador, do tipo militar-burocrático, caracterizado por uma política de clientela muito mais favorável à classe média do que a “República Velha” (Lafer, 2002, 35). Isto significa que o regime compreendia a necessidade de satisfazer a procura de emprego da classe média. Não obstante, convém sublinhar que este regime não mudou significativamente a estrutura da população activa, como se pode confirmar na tabela 1. A partir de 1943, Vargas começa a afastar-se dos seus apoios iniciais. Esta viragem política explica-se por um conjunto de transformações sociais e políticas. Em primeiro lugar, a ISI alcançou algum vigor, como se pode observar na tabela 2. Em segundo lugar, o crescimento da população, na década 1940, foi de 2,4%, enquanto o da população urbana foi de
115
5,4% (Lafer, 2002: 37). Ao mesmo tempo, o desenvolvimento dos meios de comunicação e dos transportes contribuiu para uma maior mobilização social. Tabela 1 – Distribuição da população activa por sectores, 1920 e 1940 1920
1940
Nros. Absolutos
%
Nros. Absolutos
%
Sector primário
6.377.000
69,7
9.726.000
67
Sector secundário
1.264.000
13,8
2.144.000
14,8
Sector terciário
1.509.000
16,5
1.563.000
18,2
Total
9.150.00
100
14.523.000
1000
Fonte: Lafer (2002)
Vargas estava atento a todas estas mudanças. Foi essa visão que o fez criar, em 1944, o Conselho Nacional de Indústria e Política Comercial, com o intuito de organizar a política comercial e industrial do Brasil do pós-guerra. Tabela 2 - Índice de produção industrial brasileira 1930-1945 1939 100 1940 105
1933 67 1941 111
1934 70 1942 113
1935 83 1943 125
1936 82 1944 130
1937 89 1945 137
1938 89
Fonte: Lafer (2002)
Vargas começou, consequentemente, a formar uma nova base de apoio político, composta pelos sectores operários e urbanos emergentes, dando a origem ao “trabalhismo”. Estes grupos sociais novos seriam incorporados na sua anterior base de apoio. Antes da sua queda em 1945, provocada por um golpe militar, Vargas criou ainda o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Democrático (PSD). A acção destes dois partidos seria decisiva nas décadas seguintes. Vargas preparou o caminho para uma forma diferente de participação política, que marcaria o período 1945-1964, o populismo.
2.2. A EMERGÊNCIA DAS MASSAS A presença popular é, sem dúvida, o facto político novo da etapa democrática que se inicia em 1945. Pela primeira vez na história do Brasil, as massas urbanas surgem livremente na arena política. Há, todavia, uma persistência dos esquemas de poder vigentes na ditadura e que se expressa no facto de o sistema de partidos – que
116
tem muito pouca autonomia em relação ao poder executivo – se basear nos dois agrupamentos criados por Vargas no final do regime ditatorial. Apesar das similitudes com o período precedente, esta é uma etapa em que se torna mais notório o conflito das forças sociais que servem de sustentação ao Estado e é também a etapa em que esse compromisso entra em ruptura. Os golpes de estado surgem desde o início da democracia como um instrumento que a direita ameaça usar a qualquer momento para reparar a sua perda de importância eleitoral e para neutralizar os efeitos da pressão popular (Weffort, 1978). A pressão popular intensifica-se bastante nos últimos anos deste período democrático. Principalmente após a renúncia de Jânio Cuadros, em 1961, surgem formas de acção popular que vão além das formas tradicionais. As greves dos trabalhadores são frequentes, há uma importância crescente dos grupos nacionalistas, há uma extensão dos direitos sociais aos trabalhadores rurais e os camponeses mobilizam-se em torno de organizações sindicais. Na década de 1950, a taxa de crescimento da população foi de 3%, mas a da população urbana foi de 6% (Lafer, 2002, 39). Em 1950, 36,2% da população era urbana, quando em 1960 essa percentagem é de 45,1%. A legitimidade do regime e das autoridades passou a estar dependente do apoio de grupos mais amplos1. Por outras palavras, “(...) a política brasileira deixara de ser assunto limitado às elites.” (Lafer, 2002, 40) Se a política deixou de ser somente uma questão das elites, interessa saber como se processou a conciliação das aspirações e ambições das massas populares com as das elites. Os partidos revelaram-se incapazes de responder às novas circunstâncias, porque mantiveram a estrutura herdada do período precedente a 1930. Os partidos permaneceram como partidos de quadros e não de massas (Lafer, 2002). Por consequência, a sua importância declinava à medida que aumentava a mobilização social. Esta ausência de canais políticos de integração política, uma vez que nenhuma organização funcionava como intermediária entre o Estado e o cidadão comum, propiciou o surgimento de relações directas do tipo massas/elites. Esta relação pessoal e directa foi uma condição essencial para a emergência do populismo brasileiro, mas não é suficiente para explicar 1 Apesar do aumento da participação política, aproximadamente 50% da população tinha idade inferior a 18 anos (o mínimo exigido por lei para se poder votar) e 50,6% da população com mais de 15 anos era analfabeta e, por isso, também não podia votar.
117
o seu desenvolvimento. As relações pessoais e directas reforçaram a tendência do executivo para funcionar como árbitro dos interesses dos diferentes grupos, mas, a longo prazo, o sucesso dessa arbitragem dependia das possibilidades da conciliação dos interesses dos diferentes grupos. Como a política das massas é, em parte, o resultado da manipulação das massas pelas elites, interessa saber: primeiro, quais eram os interesses dos elites; segundo, qual era o grau de conciliação entre as elites e as massas.
2.3. A CONCILIAÇÃO DOS INTERESSES DAS MASSAS E DAS ELITES Não era um equilíbrio fácil de forças. Todavia, a força dominante da política brasileira, desde o regresso de Vargas em 1951 como o presidente eleito até à administração de João Goulart (1961-1964), era uma coligação com apoio popular e comprometida com o desenvolvimento capitalista de Brasil. Weffort (1978) sugere que populismo era uma manifestação da fraqueza dos grupos urbanos dominantes, que não eram capazes de estabelecer uma hegemonia, ao contrário de que tinha acontecido com a elite rural durante o período do “império” (1822-1889) e da “República Velha” (1889-1930). Assim, os grupos urbanos dominantes foram forçados a governar indirectamente em aliança com a burocracia do Estado e com as classes urbanas populares. Todavia, os interesses antagónicos destes grupos sociais foram subordinados ao crescimento de uma economia capitalista. Durante algum tempo, esta aliança funcionou e os diferentes interesses foram satisfeitos. Tanto os operários como os empresários pretendiam que o governo criasse tarifas proteccionistas, subsídios e crédito que permitissem, simultaneamente, subidas dos salários e dos lucros, ainda que à custa do resto da população devido às inevitáveis subidas dos preços. A intensificação da industrialização implicava uma pressão na Balança de Pagamentos, uma vez que o que ocorreu foi uma substituição das importações de bens manufacturados por bens de equipamento – necessários às novas indústrias brasileiras. Esta situação acabou por revitalizar o sector do café, porque só este conseguia obter as necessárias divisas nos mercados internacionais. Ao mesmo tempo, o Brasil dispunha de um trunfo, uma grande quantidade de terras cultiváveis e uma elevada oferta de mão-de-obra. Isto permitiu o desenvolvimento simultâneo do sector exportador e do
118
sector industrial, pelo menos na década de 502. Por outras palavras, os interesses dos sectores exportadores e industriais não eram incompatíveis. Há estudos (por exemplo, Cardoso, 1964) que revelam que havia um compromisso básico entre a elite vinculada ao sector exportador e a elite ligada ao sector industrial. Este compromisso radicava em diversos factores. Como a expansão do sector industrial foi uma consequência da menor rentabilidade do sector exportador, quando este se tornou novamente mais atractivo, os empresários do sector industrial passaram a investir no sector exportador e vice-versa. A diversificação dos investimentos evitou conflitos económicos e permitiu a consolidação de uma consciência de classe entre os proprietários das terras e entre os industriais. Por outro lado, as massas mobilizadas reivindicavam sobretudo por mais oportunidades do trabalho. Esta aspiração não era incompatível com os interesses da elite industrial e também não prejudicava os interesses da elite exportadora, devido à existência de uma grande quantidade de terras cultiváveis. A industrialização correspondia também aos interesses da classe média, dado que implicava uma crescente burocratização das empresas e do Estado e, consequentemente, gerava mais oportunidades de emprego.
2.4. O “PROGRAMA DE METAS” DE JUSCELINO KUBITSCHEK: O CULMINAR DA POLÍTICA CONCILIATÓRIA A conciliação de interesses dos diferentes grupos sociais culminaria durante o mandato de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Kubitschek apresentou, pela primeira vez, numa campanha eleitoral, uma proposta de planeamento. O “Programa de Metas” serviu de garantia e de promessa para atender às necessidades das massas (oportunidades de emprego) e das elites (promoção do estilo conciliatório). Kubitschek propunha uma intervenção activa do Estado, orientada por um plano de desenvolvimento. Não se tratava de um plano rígido da economia brasileira, “mas de uma programação
metódica de medidas governamentais, de objectivos e metas para a iniciativa privada.“ (Lafer, 2002, 48). No “programa dos objectivos”, Kubitschek tentou terminar com a
concepção dominante de que o Brasil era essencialmente um país de 2 Apesar de um sistema designado de “confisco cambial”, através do qual o Estado transferia reservas cambiais para o sector industrial, o rendimento absoluto do sector exportador continuava a ser atractivo.
119
bens agrícolas por vocação hereditária. A solução proposta era uma vigorosa política de industrialização, com base num aprofundamento da ISI. O governo de Kubitschek logrou criar uma indústria automóvel no Brasil. Como o país não tinha a tecnologia nem o capital necessário, a solução foi atrair investimento estrangeiro. O governo fundou uma agência especial para negociar com as empresas multinacionais, o Grupo Executivo da Indústria Automobilística (GEIA), e foi muito generoso na atribuição de subsídios. Por seu lado, as multinacionais também estavam interessadas em explorar o enorme mercado de países como o Brasil. Passados poucos anos, o Brasil obtinha um saldo positivo porque as multinacionais tinham de pagar impostos. Kubitschek prometia fazer “50 anos em cinco”. De facto, verificou-se uma taxa de crescimento média anual entre 1955 e 1961 de 6.1% e o Brasil registou melhores desempenhos económicos do que os seus vizinhos latino-americanos. Kubitschek queria fazer uma ruptura com o passado, mas, ao mesmo tempo, queria consolidar os consensos existentes na sociedade brasileira. Nesse sentido, o “Programa de Metas” vem apenas aprofundar políticas que vinham de trás, aproveitando inclusive os estudos e os técnicos entretanto formados. Há, então, uma maior consciência das interdependências dos sectores. Segundo Lafer, o “Plano de Metas” foi, em geral, um êxito, tendo alcançado muitos dos seus objectivos, e o “Sucesso global pode
ser atribuído à decisão de preparação para implementação, isto é, ao controlo pela administração paralela sobre as incertezas vitais na economia (...). As deficiências parciais podem ser atribuídas ao próprio plano, isto é, às estimativas incorrectas de necessidades futuras (...) ou ao fato de que algumas metas escapavam ao controle daqueles órgãos de ponta.” (Lafer, 2002, 157).
Não obstante, este plano teve custos, inflação e aumento dos custos administrativos. Em parte, é possível afirmar que estes custos são o resultado perverso da política de conciliação. A inflação era vista como a alternativa mais viável para financiar o “programa dos objetivos” – bem como Brasília, a nova capital -, visto que a alternativa, uma ampla reforma fiscal, poderia pôr em perigo o equilíbrio de forças dos diferentes grupos sociais. O aumento dos custos administrativos resultou da opção de Kubitschek por criar uma administração paralela, em vez de reformar a burocracia existente. Uma vez mais, a razão principal dessa estratégia
120
era a necessidade de conciliar os diferentes interesses, alimentando, assim, uma “política de clientela”. No sucesso do “Programa de Metas” germinavam, todavia, as sementes da queda da “República Populista”. O sucesso do “Programa de Metas” esgotou as possibilidades conciliatórias do populismo. Em 1961, a preparação de qualquer planeamento era muito mais difícil. Por um lado, era difícil plasmar num plano as pressões difusas para a mudança provenientes do eleitorado, e, por outro, não era evidente o que era necessário fazer em termos de planeamento e desenvolvimento. Tornava-se necessária uma maior competência cognitiva e administrativa, à medida que um país se desenvolve, a economia torna-se mais interdependente e complexa, o que faz com que os mecanismos de planeamento se tornem cada vez mais ineficazes, ainda por cima quando há a necessidade de conciliar diferentes interesses dentro da sociedade.
2.5. A QUEDA DA REPÚBLICA POPULISTA: ORIGENS ECONÓMICAS A incapacidade para superar os obstáculos levaria à renúncia do Presidente Jânio Quadros em 1961 - nove meses após ter tomado posse - e João Goulart sucumbiria em Março de 1964. Há diversas teorias que tentam conectar o golpe militar de 1964 com a situação económica de Brasil. Escolhemos as duas que nos parecem mais pertinentes, o problema da distribuição do rendimento e a necessidade de um programa muito duro de estabilização económica. Há também uma tese muito interessante e controversa de O’Donnell (1973) que associa a estratégia de desenvolvimento seguida no Brasil com o fim da democracia em 1964. Supostamente, a ISI, numa primeira fase, após a grande depressão dos anos 1930, agradou a todos os grupos sociais e foi uma das principais características dos governos populistas da América Latina. Não obstante, esta política tem um custo a médio prazo, o fim dos regimes que promovem este tipo de estratégia. A consequência desta política é a substituição de importações por outras importações, os países têm de importar tecnologias mais avançadas e bens de capital necessários às suas novas indústrias e, deste modo, deterioram a Balança de Pagamentos, causando inevitavelmente uma crise no regime e dando origem a estados burocrático-autoritários. Serra (1972) tenta demonstrar, apoiando-se em estatísticas, que a análise de O’Donnell está errada. Serra considera que a principal consequência da ISI é a necessidade de o Estado favorecer as classes
121
mais elevadas para criar um mercado interno para as suas indústrias novas de automóveis e electrodomésticos, contribuindo assim para um aumento da desigualdade social. Ainda que as estatísticas possam corroborar a tese de Serra, não nos parece plausível que os militares tenham realizado o golpe militar com o objectivo de subir o nível de vida das classes mais altas, para assim assegurar a sobrevivência da ISI. De facto, as políticas restritivas dos primeiros anos da ditadura prejudicaram todos os grupos sociais (Wallerstein, 1980). De qualquer maneira, a ISI está ligada ao problema da distribuição dos rendimentos e à necessidade de um programa muito duro de estabilização económica. É o que vamos tentar demonstrar de seguida. 2.5.1. O PROBLEMA DA DISTRIBUIÇÃO DO RENDIMENTO Durante o governo de Kubitschek foi possível subir os salários e os lucros reais à custa de uma inflação relativamente moderada. Mas, a partir dos anos 60, durante o governo de Goulart, verifica-se uma estagnação económica que torna insustentável esta situação. Ao mesmo tempo, a classe operária adquire uma maior consciência de seu poder e ganha autonomia política. Por isso, alguns autores (Jaguaribe, 1965; Cardoso, 1968, cit. in Wallerstein, 1980) consideram que a burguesia retirou o seu apoio ao regime democrático porque as subidas dos salários ameaçavam os seus lucros. Todavia, a importância das alterações da distribuição do rendimento a favor dos salários, antes do golpe militar de 1964, não é confirmada pelos dados existentes sobre salários e lucros. Wallerstein (1980) demonstra que, após 1960, durante o governo de Goulart, os lucros foram mais favorecidos do que os salários (Tabela 3). Tabela 3 – Lucros e salários em termos reais 1960-1963 1960 1961 1962 1963
Lucros líquidos totais 100 115 131 125
Salário médio 100 104 108 107
Fonte: Wallerstein (1980)
Os salários reais alcançaram um máximo durante o governo de Kubitschek. O salário mínimo real era maior em 1952 (durante o governo de Vargas) que em 1963 (no fim do governo de Goulart). À superfície, isto parece um paradoxo. Sobretudo se consideramos que Goulart era um político veterano, cuja carreira se havia apoiado nos
122
interesses da classe operária. Na realidade, os sindicatos encontravamse num beco sem saída. Confrontados com a crise económica e sem a força para avançar com uma estratégia de insurreição, os líderes dos movimentos laborais foram forçados a aceitar uma moderação salarial e a concentrar-se num plano de reformas, com a esperança de que a situação económica mudasse. Desgraçadamente, a crise agravou-se e o descontentamento dos trabalhadores intensificou-se 2.5.2. A NECESSIDADE DE UM PROGRAMA MUITO DURO DE ESTABILIZAÇÃO ECONÓMICA É necessário ter em conta que, na fase final do período democrático, o quadro político continuava a ser o populismo. Tornaramse necessárias reformas estruturais, tanto do ponto da vista do desenvolvimento industrial como do ponto da vista do processo de democratização social e política. Todavia, nenhum dos grupos dominantes se mostrava capaz de levar a cabo essas reformas. Quando Goulart tentou avançar com as reformas, desencadeou a crise fatal do regime populista. A coligação de forças que apoiava o regime democrático não conseguiu resistir ao fracasso de uma série das tentativas para implantar, entre 1959 e 1964, um programa da estabilização económica (Wallerstein, 1980). O regime democrático revelou-se inepto para resolver um problema sério de “estagflação” (inflação, desemprego e défice externo elevados) e, ao mesmo tempo, para recuperar o crescimento económico. Antes de analisar como a “estagflação” contribuiu para uma crise política no Brasil, convém recordar as duas principais teorias que tentam explicar o problema recorrente da inflação na América Latina, em especial no pós-guerra. Uma é conhecida como “estruturalista”, e enfatiza a rigidez da oferta3; a outra é a conhecida tese monetarista, que considera que o problema radica numa procura excessiva, criada por erros de política económica dos governos. Um estudo de Kahil (1973, cit. in Wallerstein, 1980) parece confirmar a tese monetarista. Este autor verificou a existência, entre 1948 e 1964, de enormes e crescentes défices públicos, rápido crescimento do crédito bancário e permanentes e crescentes aumentos do salário mínimo. A inflação, entre 1950 e 1958, variou entre os 10% e os 20%; acelerou em 1959, abrandou em 1960 e disparou em 1961, alcançando os 100% quando Goulart foi destituído. Para compreender 3 A oferta não responde aos aumentos da procura e, por consequência, os preços sobem.
123
esta evolução da inflação, é necessário recuar no tempo, pelo menos até ao governo de Kubitschek. Após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil teve sempre défices comerciais. Este problema agravou-se muito durante o governo de Kubitschek, devido à sua política de ISI. O seu governo foi forçado a pedir no exterior elevados empréstimos para financiar as importações necessárias ao processo de industrialização. Pior, em 1954 o preço do café começou a baixar. Por consequência, a partir de 1953-1954, “Brazil had no choice but to keep to a prudent speed the rate of
industrialization while considering the relief or burden on the balance of payments.” (Skidmore, 1967, 116).
Ante este cenário, o governo brasileiro dispunha de duas soluções, ou reduzia as importações - e colocava em perigo o crescimento económico - ou tentava cobrir o défice comercial com mais investimentos e empréstimos no estrangeiro. Kubitschek escolheu a segunda opção. O êxito desta solução dependia da criação de riqueza que permitisse, no curto prazo, pagar a dívida. Infelizmente, serviu apenas para adiar e ocultar temporariamente o problema. Convém sublinhar que a administração de Goulart tentou implantar, um programa da estabilização. Mas, as medidas deflacionarias prescritas pelo FMI implicavam uma redução da procura de importações até que o equilíbrio da Balança Comercial fosse alcançado. Por outras palavras, o rendimento de todos os sectores da economia brasileira teria de diminuir, pelo menos a curto prazo. Goulart não tinha, em Junho de 1963, apoio de nenhum grupo social. Em suma, as origens da crise económica que precedeu o golpe militar remontam às políticas económicas de Kubitschek. Todavia, Goulart não teve arte nem engenho para superar a situação de impasse a que se havia chegado4.
4 É importante sublinhar que a crise económica foi apenas uma das causas do golpe militar. Alguns autores consideram que durante a administração de Goulart era possível evitar o golpe militar. Após a demissão de Quadros, Goulart assumiu a presidência num regime parlamentarista, resultado das negociações em 1961, entre as forças militares e as forças políticas civis. Goulart poderia ter tentado seguir uma política mais moderada e aceitar o parlamentarismo, embora com menos poderes. Preferiu fazer um plebiscito em 1963 para retornar a um regime presidencialista. Ganhou o plebiscito, perdeu a confiança dos movimentos conservadores e, principalmente, das forças de esquerda, a sua base principal de apoio. Por isso, alguns autores responsabilizam a incapacidade política de Goulart pelo golpe militar (Addis, 1997, 136).
124
3. DO ESTADO BUROCRÁTICO-AUTORITÁRIO À RESTAURAÇÃO DA DEMOCRACIA “Brazil’s military gave much lip-service to the free market doctrine but in practice adopted the most closed economic system on the continent.” (Pang, 2002, XV).
Em 31 de Março de 1964, ocorreu o golpe militar e o marechal Castelo Branco assumiu a presidência da República em nome do movimento militar que destituiu Goulart. A queda de Goulart assinalou o fim da “República populista”, uma vez que o movimento de Abril de 1964, que se autodefinia como uma “Revolução”, trouxe mudanças significativas em relação à importância atribuída anteriormente à participação política e à representatividade. A preferência pelos chamados “ atos institucionais” em vez do processo eleitoral ilustra bem as diferenças entre a “República Populista” e o período “revolucionário”. A legitimidade do regime não seria mais o “povo”, através do voto popular, mas sim a auto-outorgada legitimidade da “Revolução”. Em suma, os valores da democracia, dos direitos humanos e de uma sociedade aberta5 foram sacrificados em nome do objectivo supremo do crescimento económico. Nos primeiros anos, o governo da ditadura militar levou a cabo medidas deflacionárias muito duras. Para sanear a economia, o governo diminuiu o ritmo das obras públicas, cortou subsídios - principalmente ao petróleo - e dificultou o crédito interno. Em pouco tempo, aumentaram as falências e o padrão de vida da população baixou. Passada esta fase de saneamento económico, a ditadura militar, na prática, prosseguiu, com algumas correcções e ajustamentos, as políticas populistas que herdou dos governos civis que havia derrubado. A ISI continuou a ser o modelo eleito. O nacionalismo económico intensificou-se, raiando a xenofobia. O intervencionismo do Estado atingiu níveis inéditos. De resto, estas políticas gozavam de amplo apoio dentro da sociedade brasileira.
5
Ao longo da ditadura militar foram contidos vários movimentos de guerrilha urbana e rural, mas sem que se atingissem os níveis de violência de, por exemplo, a ditadura argentina dos finais dos anos de 1970 (Pang, 2002).
125
3.1. A “REVOLUÇÃO” DE 1964 E A CONCENTRAÇÃO DE PODER A redução das variáveis da participação imposta pela ditadura militar tinha como intenção promover uma concentração do poder, que era vista como essencial para ultrapassar o impasse administrativo criado nos últimos anos da República. O “Programa de Ação Económica do Governo” (PAEG) foi elaborado como um plano de emergência por Roberto Campos, ministro extraordinário do “Planejamento Governamental e Coordenação Económica” (1964-1967), e tinha como principais objectivos, dominar a inflação, implantar reformas estruturais e retomar o desenvolvimento. A ideia essencial de Castelo Branco e de Roberto Campos era uma concentração de poder para modernizar e aumentar a capacidade das instituições e, uma vez alcançado esse objectivo, abrir o sistema político para permitir uma maior participação. Ficaram a meio caminho da sua suposta intenção inicial. A inflação foi controlada. A taxa de inflação baixou de 91,6% em 1963 para 51,2% em 1965, 36,8% em 1966 e 25,4% em 1967. Até se sentirem os efeitos do primeiro choque petrolífero (1973), a taxa de inflação manter-se-ia à volta dos 20%. Verificaram-se, de facto, algumas reformas importantes: a reforma do sistema fiscal; a reforma dos sistemas bancários, de crédito e monetário, com a criação do Banco Central, do Conselho Monetário e com novas condições para os mercados financeiros e de capital; a reforma do sistema de habitação, com a criação do Banco Nacional de Habitação, para a construção em grande escala de novos fogos urbanos. A reforma administrativa era agora possível porque havia muito menos pressão política para a manutenção e a criação de empregos no Estado. E foram também ensaiadas algumas tentativas para uma reforma agrária. Todavia, a recuperação dos canais de representação e comunicação populares não se verificou. Pelo contrário, em 27 de Outubro de 1965, o segundo “ato institucional” dissolveu todos os partidos políticos, facilitando a intervenção do Estado para reprimir as actividades consideradas “subversivas”. Isto significou a limitação de jure y de facto dos canais da representação e comunicação populares6. 6 Após esta obstrução da participação política, Castelo Branco formou o partido do governo, o Arena, e permitiu a criação de um partido para a oposição, o MDB. Além disso, trabalhou num projecto da reforma institucional que estabeleceria as regras da vida política no Brasil. Essas
126
Com a inflação controlada, Costa e Silva (1967-1969), o sucessor de Castelo Branco, elege a reconciliação do controlo da inflação com o desenvolvimento económico como o objectivo prioritário da sua política económica e financeira. O “Plano Estratégico de Desenvolvimento” (PED), elaborado pelo “Ministério do Planejamento e Coordenação Geral”, para o período 1969 e 1970, materializou essa política. Entre 1967 e 1973, a economia brasileira cresceu a uma taxa média anual de 8%. Este período é considerado por alguns autores como “milagre económico”.
3.2. A CONTINUAÇÃO POR OUTROS MEIOS DA INDUSTRIALIZAÇÃO POR SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÕES Há semelhanças entre o crescimento dos anos 1950 e o crescimento do fim dos anos 1960 e do princípio dos anos 1970. Ambos assentavam no crescimento do consumo de bens como os automóveis, ambos exigiam um crescimento dos sectores de bens intermédios e de capital. O papel do Estado era fundamental no desenvolvimento de indústrias básicas como a energia e os transportes. Ao mesmo tempo, verifica-se um investimento forte de capital estrangeiro (Wallerstein, 1980), mas existiam algumas diferenças. Na ditadura militar, a partir de 1967, o crescimento é impulsionado pelo bom desempenho das indústrias de automóveis, construção civil e electrodomésticos. As indústrias de material eléctrico, química, construção naval e de bens de capital também aumentaram muito as suas produções. A política anti-inflacionária de elevadas taxas de juro no período anterior tinha reduzido o consumo e o investimento. Com o PIB abaixo da sua “taxa natural”, o objectivo do PED era estimular a procura privada. Foram então adoptadas pelo governo políticas monetárias e fiscais expansionistas. Em consequência, as despesas do Estado aumentaram. Em 1972, foi lançado o “I Plano Nacional de Desenvolvimento” (IPND), que continha uma série dos objectivos que deviam ser alcançados até 1974. Em suma, entre 1967 e 1974 verificou-se uma expansão dos investimentos do Estado em infra-estruturas e a presença deste na economia reforçou-se e, por consequência, a da burocracia também. regras foram promulgadas em Janeiro de 1967 pelo Congresso e tornaram-se efectivas com a tomada de posse de Costa e Silva.
127
O Estado foi menos entusiasta dos investimentos do capital estrangeiro do que no período de Kubitschek. Criou e mudou frequentemente as leis sobre esta matéria, criando deliberadamente dificuldades às multinacionais (Weyland, 1996). Em 1973, com o primeiro choque petrolífero, termina este período de expansão. A economia brasileira dependia muito da energia do petróleo - representava mais de 40% da energia consumida. Os espectros da inflação e do endividamento externo assombravam, uma vez mais, o Brasil. Em 1974, Ernesto Geisel chega ao poder (1974-1979). Ante a crise económica, Geisel podia adoptar a solução ortodoxa de implantar políticas económicas restritivas. Preferiu lançar, em 1974, o “II Plano de Nacional de Desenvolvimento” (IIPND). Ao mesmo tempo, lançou o seu projecto de “distensão” (Mathias, 1995) ou “abertura”, supostamente com a intenção abrir gradualmente o regime à democracia. Com o II PND, a administração de Geisel pretendia implantar indústrias de bens de capital e, deste modo, aprofundar a política de ISI. Representou um enorme esforço financeiro do governo brasileiro. Esta opção relevava de um certo nacionalismo económico, que se traduzia nomeadamente em privilegiar o investimento nacional e relegar para segundo plano o investimento estrangeiro. Antes do choque petrolífero de 1973, 90% dos investimentos do Estado eram financiados pelos impostos. Depois dos choques petrolíferos (1973 e 1979), o crédito nos mercados financeiros internacionais tornou-se mais barato e acessível. E o governo recorreu aos empréstimos no exterior para financiar o aprofundamento da ISI, ensaiando a criação de uma indústria de computadores7, com o objectivo de atingir a auto-suficiência tecnológica. Além disso, avançou com projectos faraónicos8, a fim de impressionar o mundo e afirmar o Brasil como a principal potência regional da América Latina.
7
Os computadores ou a “informática” eram uma obsessão dos jovens oficiais nos anos 1970 e 1980. Muitos estavam convencidos de que era uma oportunidade para o Brasil se afirmar definitivamente como uma potência regional (Pang, 2002). Em 1983, o governo introduziu a “Lei Informática”, reservando a produção e o marketing dos computadores a empresas brasileiras. O Estado não criou empresas públicas para o efeito, mas promoveu, a partir do zero, a criação de uma indústria informática. Passado pouco tempo, era já possível perceber o fracasso desta política. As empresas brasileiras não conseguiram tornar-se competitivas, visto tratar-se de uma indústria de constantes mudanças e progressos, o que exigia um grande investimento. 8 Os mais conhecidos são Itaipú ($15 biliões), Tucurui ($ 6 biliões) e Carajás ($ 60 biliões).
128
A grande disponibilidade de crédito barato nos mercados internacionais permitiu aos militares não subirem os impostos, o que os tornou, na altura, muito populares, pelo menos junto de alguns sectores da população. O endividamento parecia, à primeira vista, uma estratégia equilibrada e racional. Segundo Hirschman (1987, 22), “Rather than completing the
import-substituting sequence, a newly industrializing country may at some point make a clear break with the whole process, dispensing with the services rendered by imports in mapping and developing its own market.”. Ou seja, não se tratava apenas de mais um passo no
caminho da industrialização. Tratava-se de uma ruptura. Uma consequência imediata, e previsível, foi o aumento do endividamento externo. Em 1971, o endividamento externo do Brasil representava 7,7% do PIB; em 1980, 31,3%; em 1988, 36,5%. Embora fosse das maiores dívidas externas em termos absolutos da América Latina, em termos de percentagem do PIB era, em 1981 e em 1988, menor do que a da Argentina, do Chile ou de Portugal (Tabela 4). Tabela 4 - Dimensão da dívida externa, em percentagem do PIB 1971, 1980 e 1988 1971
1980
1988
Argentina
7,5
35,6
48,4
Brasil
7,7
31,3
36,5
Chile
21,4
45,5
88,3
6,8
39,8
44,1
Portugal
Fonte: Vitelli (2000)
O aumento da inflação foi outra das consequências perversas da estratégia do governo de Geisel, entre 1976 e 1980, a taxa da inflação média anual foi de 52,1%, mas, entre 1981 e 1988, era de 228,4% (Vitelli, 2000). De qualquer maneira, a economia brasileira continuava a crescer a bom ritmo, entre 1973 e 1983, o PIB cresceu a uma taxa média anual de 4,5% (Rapoport, 2000). Entre 1974 e 1981, o PIB per capita cresceu a uma taxa média anual de 18,8% (Vitelli, 2000).
3.3. O FIM DE UM MODELO DE DESENVOLVIMENTO O Estado brasileiro conduziu o crescimento da economia durante décadas. À medida que a economia crescia, o poder do Estado crescia também. Em 1956, as propriedades dos investidores estrangeiros representavam 34,4% do capital, enquanto em 1979
129
representavam somente 22,5%. Em 1982, o PIB brasileiro era 55% maior que o PIB total dos quatro “Tigres Asiáticos” – Coreia do Sul, Formosa, Hong Kong e Singapura - e era equivalente a 86% do PIB do Canadá. O produto industrial dos quatro “Tigres” era cerca de 76% do brasileiro (Pang, 2002). O controlo público do crédito concentrou no Estado um grande poder na definição da política da industrialização. Perto de dois terços de todo o crédito, em meados dos anos 1970, provinham de bancos estatais (ibidem). Em 1947, os gastos do Estado eram 17% do PIB; no começo dos anos 1970, ascendiam a 33%. O sector público produzia mais de 50% do PIB. Das 20 maiores empresas brasileiras, 19 eram propriedade do Estado. Até 1990, o Brasil manteve-se uma economia fechada. O Banco Brasileiro para o Comércio Externo (CACEX) tinha uma lista de tarifas para 13.500 artigos. Esta lista era conhecida como Anexo C. Dos 13.500 itens, 3.000 estavam pura e simplesmente proibidos de entrar no país. A protecção do mercado brasileiro efectuou-se de muitas maneiras: interdição da entrada no mercado de bens como os computadores; tarifas elevadas para os automóveis, as televisões e os sistemas de áudio; subsídios generosos em sectores como a agricultura. O Banco Mundial estimou que as tarifas do Brasil sobre os produtos industrializados eram três vezes superiores aos da Coreia do Sul, um país conhecido pelo seu proteccionismo. A estratégia do Brasil, desde 1930, foi construir um capitalismo sem risco, um capitalismo com um mercado interno protegido e fechado. Em 1980, as exportações brasileiras representavam 9,6% do PIB, o que correspondia a menos de 40% das exportações da Coreia do Sul9 (Pang, 2002). É verdade que no final dos anos 1970 e no princípio dos anos 1980 o Brasil continuava a ser competitivo - produzia e exportava mais automóveis e aço do que o Reino Unido -, mas começava a vacilar. Não dispunha da tecnologia necessária para competir com êxito nos mercados internacionais. Os computadores eram um sector diferente, exigiam um investimento massivo em investigação. Além disso, no princípio dos anos 1980, a economia mundial estava estagnada, depois de mais um 9 Os “tigres asiáticos”, ao invés do Brasil, optaram desde os anos 1960 por políticas promotoras das exportações.
130
choque petrolífero, e o Brasil revelava dificuldades em pagar os enormes empréstimos que havia contraído na época do crédito barato, na expectativa de que a sua economia crescesse sempre a bom ritmo. Desgraçadamente, estas previsões revelaram-se demasiado optimistas e a factura das políticas dos anos anteriores surgia agora muito pesada. Por outro lado, a política de “abertura” de Geisel propiciou um debate interno sobre o melhor modelo de desenvolvimento a seguir. A esquerda nacionalista não tinha dúvidas: exigia a expansão das políticas populistas de autarcia e de protecção das empresas (as principais eram públicas); mais regulação do comércio externo e do investimento estrangeiro. Ao contrário, os novos ventos internacionais exigiam mais liberalização, privatização e desregulação. O famigerado consenso de Washington, produzido em meados dos anos 1980, promulgou várias medidas para combater o pesado endividamento dos países da América Latina. As medidas assentavam num tripé, privatização, desregulação e liberalização. Pretendia-se, desta forma, reduzir o peso do Estado, reestruturar as políticas económicas, cortar despesas em programas sociais, liberalizar o comércio internacional, desregular os mercados nacionais e privatizar as empresas propriedade do Estado. O governo militar, acossado pelas pressões externas e pelo statu quo interno, sentia-se manietado, sem saber qual era o melhor rumo a seguir. Numa palavra, nos anos 1980, o modelo da ISI já não funcionava, estava desajustado à nova realidade, a emergente globalização, cujo principal motor económico é o sector privado. O Brasil necessitava com urgência de reformas. João Figueiredo (1979-1985), o último presidente dos governos militares, ainda ensaiou algumas, mas sem êxito. Em 1985, voltava a democracia e a esperança renascia.
4. CONCLUSÃO A ISI atravessou, com pequenos ajustamentos, todo o período 1930-1985. Foi o modelo de eleição, primeiro dos regimes populistas, depois da ditadura militar. Os resultados desta estratégia de desenvolvimento, centrada no mercado interno e tendo o Estado como actor principal, são controversos. “Brazil has experienced stunning
success as well as striking failure. Between 1940 and 1980, rapid growth turned this largely agrarian country into a major industrial power. In the 1980s and early 1990s, however, Brazil suffered from a profound
131
economic crisis. Moreover, deep social inequality and widespread poverty have continued to plague the country.” (Weyland, 1996, 189).
O Brasil é um país de contradições. Tornou-se, depois da Segunda Guerra Mundial, a maior potência da América Latina, destronando a velha rival Argentina. A ISI obteve no Brasil melhores resultados económicos do que nos seus vizinhos latino-americanos. Este sucesso relativo deve-se, em grande parte, à maior dimensão do mercado brasileiro, que permitiu obter importantes economias de escala e, assim, criar e desenvolver novas indústrias. Este sucesso tinha, todavia, algo de artificial, uma vez que se apoiava num proteccionismo obsessivo, que atravessou todo o período 1930-1985, e que gozava de um apoio quase unânime dentro da sociedade brasileira. O Brasil verificou, depois da Segunda Grande Guerra, períodos de grande crescimento económico, em especial na segunda metade dos anos 1950 com Juscelino Kubitschek e na ditadura militar entre 1967 e 1973. A inflação e, em especial a partir do início dos anos 1980, o endividamento externo foram o reverso da medalha de décadas sucessivas de forte intervencionismo estatal. Em meados dos anos 1980, este modelo de desenvolvimento estava esgotado. Verificaram-se também melhorias notáveis em vários indicadores sociais. Por exemplo, entre 1965 e 1985 (Diamond et al., 1989): a taxa de mortalidade infantil passou de 104 por mil para 67; a percentagem de pessoas com capacidade de ler escrever passou de 61% para 76%; a esperança de vida das mulheres passou de 59 anos para 67 e a dos homens de 55 para 62. Infelizmente, o desenvolvimento não chegou a toda a população e a desigualdade social manteve-se ou agravou-se. O Brasil continuou a ser uma sociedade, escandalosamente, desigual. “Using data from
1960 to 1980, Serra reports that concentration was still going on in the 1970s.The lowest 20% of the economically active population had gone from 3,9% of total income in 1960 to 3,4% in 1970, to 2,8% in 1980; the top 10%, from 39,6% to 46,7%, to 50,9%. This means that the governmental policies practiced throughout this period, at best, did not counteract structural forces making for greater inequality; at worst they aggravated their effect.” (Lamounier, 1989, 134).
Este grau de desigualdade social é, sem dúvida, um dos maiores obstáculos a uma verdadeira consolidação democrática. Depois de 1985, o regime democrático seguiu, no início, uma política tão xenófoba como a da ditadura militar. As reformas receberam grande oposição da esquerda, dos tecnocratas nacionalistas, dos
132
sindicatos, da comunidade empresarial. Numa frase, ninguém ou quase ninguém, queria as reformas. Os primeiros anos da democracia não foram fáceis e o Brasil mergulhou num caos político. Era difícil conciliar os interesses de uma classe política habituada a viver debaixo da protecção da ditadura militar e a decidir autoritariamente com uma classe política mais jovem. Ironicamente, foi um ex-socialista (para alguns, marxista) que começou, em meados dos anos 1990, a desmantelar o Estado populista e proteccionista, fundado por Getúlio Vargas em 1930, construído pelos seus herdeiros e expandido pelos militares. Fernando Henrique Cardoso foi o homem que conduziu o Brasil nos primeiros passos da liberalização económica, provocando uma ruptura numa história que durava há mais de 60 anos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Addis, Caren (1997); “A clash of paradigms: recent interpretations of Brazilian Development”; Latin American Research Review; 32; 3; Pittsburgh; 123-139. Cardoso, F. H. (1964); Empresário Industrial e Desenvolvimento Económico; Difel; São Paulo. Diamond, Larry e Juan J. Linz (1989); “Introduction: Politics, Society, and Democracy in Latin America”; Democracy in Developing Countries; 4; Latin America in Diamond, Larry, Linz, Juan e Lipset, Seymour Martin (org.), Lynne Rienner, Boulder (Colorado); 1- 58. Graham, Richard (1988); “State and Society in Brazil: 1822-1930”; Latin American Research Review; XXII; 3; Pittsburgh; 223-236. Hirschman, Albert O. (1987); “The Political Economy of Latin American Development: Seven Exercises in Retrospection”; Latin American Research Review; XXII; 3;Pittsburgh; 7- 37. Lafer, Celso, JK e o Programa de Metas, 1956-1961, Editora FGV, Rio de Janeiro, 2002 Lamounier, Bolívar (1989); “Brazil: Inequality Against Democracy”; Democracy in Developing Countries; 4; Latin America in Diamond, Larry, Linz, Juan e Lipset, Seymour Martin (org.), Lynne Rienner, Boulder (Colorado); 110-157. Mathias, Suzeley Kallil (1995); “Ernesto Geisel e a distensão: projecto militar e discurso político”; História; 14; São Paulo; 61-75. Mendes, Claudinei M. M. (1997); “A Coroa Portuguesa e a Colonização do Brasil. Aspectos da atuação do Estado na Constituição da Colónia”; História; 16; São Paulo; 233-253. O’Donnell, Guillermo (1973); Modernization and Bureaucratic Authoritarianism: Studies in South American Politics, Berkeley, University of California, Institute for International Studies. Pang, Eul-Soo (2002); The Internacional Political Economy of Transformation, in Argentina, Brazil, and Chile since 1960; Palgrave Macmillan; New York. Rapoport, Mario (2000); Historia Económica, Política y Social de la Argentina, Ediciones Macchi, Buenos Aires. Serra, José (1972); El Milagro Económico Brasileño: Realidad o Mito?; Quimantu; Santiago do Chile. Skidmore, Thomas E. (1967); Politics in Brazil 1930-1964: An Experiment in Democracy; Oxford University Press; New York.
133
Wallerstein, Michael (1980); “The Colapse of Democracy in Brazil: Its Economic Determinants”; Latin American Research Review; XV; 3; Pittsburgh; 3-40. Vitelli, Guillermo (2000); Los Dos Siglos de Argentina; Prendergast; Buenos Aires. Weffort, Francisco C. (1978); O Populismo na Política Brasileira; Editora Paz e Terra; Rio de Janeiro. Weinstein, Barbara (1996); “Essa Não É a República dos Meus Sonhos: Obstáculos Históricos à Democracia Política e Social no Brasil”; Revista Brasileira de História;16; 31; São Paulo; 62-75. Weyland, Kurt (1996);“Development, Democracy, and Inequality: New contributions on the Brazilian Political Economy”; Latin American Research Review; 31; 3; Pittsburgh;189-202.
135
PROBLEMÁTICA E DIMENSÕES DO PLANEAMENTO ESTRATÉGICO
STRATEGIC PLANNING PROBLEMATIC AND DIMENSIONS António José Gonçalves Fernandes * (toze@ipb.pt) Maria Isabel Barreiro Ribeiro * (xilote@ipb.pt)
RESUMO
Este artigo aborda a problemática do planeamento estratégico e mostra a classificação e agrupamento das escolas de formulação da estratégia em dimensões. Neste contexto, Mintzberg (1991) considera a existência de duas dimensões, nomeadamente, a dimensão prescritiva e a dimensão descritiva. Apesar disso, durante a breve revisão da literatura sobre estratégia levada a cabo para a elaboração deste artigo, pareceu adequado considerar outra dimensão designada de integrativa. Esta situação prende-se com o facto de uma das escolas descritivas - a escola da configuração - se destacar de entre as escolas descritivas pela sua perspectiva unificadora e pelo seu carácter eclético. Palavras-chave: Planeamento Estratégico, Dimensão Prescritiva, Dimensão Descritiva, Dimensão Integrativa.
ABSTRACT
This article examines controversy in strategic planning and reveals the classification and grouping of the schools of thought on strategy formulation and its different dimensions. In this context, Mintzberg (1991) considers the existence of two dimensions, namely, prescriptive and descriptive. However, in the literature review on strategy carried out for this article, a new strategy dimension was considered and designated integrative. The integrative dimension incorporates one of the descriptive schools, namely, the configuration school due to its unifying perspective and eclectic nature. Keywords: Strategic Planning, Prescriptive Dimension, Descriptive Dimension, Integrative Dimension.
* Professor Adjunto Equiparado do Instituto Politécnico de Bragança. Doutor em Gestão pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro ** Professora Adjunta Equiparada do Instituto Politécnico de Bragança. Doutora em Economia pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
136
1. INTRODUÇÃO Segundo Badu (2003), expressões como planeamento de longo prazo, planeamento empresarial, planeamento estratégico, planeamento, estratégia, gestão estratégica ou ainda outras combinações destes termos foram usadas em diferentes contextos para designar a mesma realidade e foram, igualmente, usadas para designar realidades diferentes. Na verdade, surgiram diversas definições de estratégia que entram em conflito com outros conceitos e que em muito contribuíram para a confusão em torno do conceito de estratégia. Assim, sem a pretensão de se fazer um estudo exaustivo acerca do tema, este artigo propõe-se colocar alguma ordem na confusão existente. Para isso, exploram-se alguns conceitos relacionados e apresentam-se as dimensões nas quais Mintzberg (1990), Mintzberg et al. (2005) e Mintzberg e Lampel (1999) agrupam as diferentes escolas de formação da estratégia, nomeadamente na dimensão prescritiva e na dimensão descritiva. Para além disso, este artigo defende que uma das escolas descritivas – a escola da configuração – deve constituir uma nova dimensão, designada de integrativa, uma vez que, apesar das suas características, marcadamente descritivas, não rejeita os conhecimentos e os contributos das escolas prescritivas. De facto, esta abordagem à formação da estratégia, com o seu pragmatismo, assume um carácter unificador e constitui-se como uma ponte entre as dimensões prescritiva e descritiva.
2. ESTRATÉGIA E GESTÃO ESTRATÉGICA Segundo Evered (1983) e Ghemawat (2002), a palavra “estratégia” remonta aos antigos gregos, sendo sinónimo de comandante militar ou magistrado. Contudo, a utilização do termo aplicado à gestão data do século XX e o seu uso consciente, em contextos competitivos, é ainda mais recente. Por isso, pode dizer-se que o planeamento estratégico começa com os militares, pois, para Correia (1992), a estratégia não é mais do que a arte da coordenação e direcção das operações militares em larga escala. Neste contexto, a estratégia consiste na manobra das forças no sentido de as colocar nas posições mais vantajosas antes do confronto com o inimigo. No âmbito das organizações não militares, Andrews (1977) considera a estratégia como o conjunto da missão, dos objectivos principais ou metas, das
137
políticas e planos essenciais para a realização dessas metas, apresentados sob a forma de uma selecção de actividades a que a organização se dedica ou vai dedicar-se. Nesta linha, a gestão estratégica consiste, segundo Hatten (1987), no processo através do qual uma organização formula objectivos e usa os recursos próprios e/ou alheios no sentido de os alcançar. Neste contexto, a estratégia é o meio que permite à organização a persecução desses objectivos. É a arte de aliar a análise interna à sabedoria utilizada pelos gestores para criar valor a partir dos recursos e aptidões que eles possuem, ou seja, a análise e a acção são partes integrantes da direcção estratégica. Por essa razão, ainda segundo Hatten (1987), o desenho de uma estratégia de sucesso depende de dois factores-chave, nomeadamente fazer aquilo que se faz bem e escolher os competidores que se podem derrotar. Nesta linha, David (2008) considera que a gestão estratégica tem de levar a cabo políticas que possam beneficiar dos pontos fortes, diminuir o impacto dos pontos fracos, aproveitar as oportunidades e minorar os efeitos das ameaças provenientes do ambiente externo à organização. Por seu lado, para Johnson e Scholes (2002), a estratégia não é mais do que a direcção de longo prazo que a organização deve seguir no sentido de atingir objectivos que, segundo Hickson et al. (1986), afectam a organização como um todo. Por essa razão, Asch (1989) defende que as decisões estratégicas estão intimamente ligadas à natureza fundamental da organização. De facto, as decisões estratégicas incluem resoluções acerca das actividades nas quais a organização deve envolver-se; acerca da aquisição e investimento em recursos; e acerca da natureza e andamento dos processos de mudança. Dada a complexidade em torno do conceito de estratégia, Mintzberg (1987a) recorre ao uso dos cinco P’s (plan, ploy, pattern, posicion e perpective) para a definir. Para este investigador, o primeiro P - plan - diz respeito ao plano e, nesse sentido, a estratégia é vista como um curso de acção definido conscientemente, ou como um conjunto de directrizes, para enfrentar uma dada situação. Nesta definição, as estratégias são elaboradas com antecedência relativamente às acções nas quais devem ser aplicadas, e são desenvolvidas de forma consciente e intencionalmente dirigidas a um propósito. Como plano, a estratégia pode ser geral ou específica e, nesse sentido, Mintzberg (1987a) define-a como o segundo P - ploy-, ou seja, como estratagema ou táctica que permite enganar e derrotar um competidor. No entanto, segundo este investigador, definir a estratégia como um plano ou estratagema não é suficiente, tornando-se necessária uma definição
138
que englobe o comportamento resultante. Para isso recorre ao terceiro P - pattern -, que não é mais do que um padrão de comportamento caracterizado pela sua consistência, ainda que não seja intencional. O quarto P - posicion - identifica a posição da organização no ambiente no qual está inserida. Segundo Hofer e Schendel, citados por Mintzberg (1987a), nesta definição a estratégia converte-se numa força mediadora entre a organização e o entorno, ou seja, entre o ambiente interno e o ambiente externo. Por fim, no quinto P- perspective - pode dizer-se que a estratégia olha para dentro, isto é, a estratégia definida como perspectiva relaciona a organização com o seu entorno e consiste, não apenas na eleição de uma posição, mas também numa forma arraigada de perceber o mundo. Neste sentido, a estratégia está para a organização tal como a personalidade está para o indivíduo. Na mesma linha, Mintzberg e Quinn (1996) definem estratégia como um padrão ou plano que integra os objectivos globais da organização, as políticas e as acções sequenciais. Uma estratégia bem formulada permite ao gestor de topo coordenar os recursos da organização no sentido de a posicionar de uma forma única e viável, baseada nas suas competências relativas internas, antecipando as mudanças do ambiente externo e os movimentos contingentes dos oponentes inteligentes. De forma semelhante, Koontz e Weihrich (2006) consideram que as estratégias são programas gerais de acção que englobam compromissos e recursos para pôr em prática uma missão básica. Segundo estes investigadores, os objectivos são concebidos e iniciados com o propósito de dar à organização uma direcção desejada. Precisamente, para Mintzberg (1987b), a estratégia é necessária, não só para estabelecer uma direcção, mas também para direccionar o esforço, definir a organização e proporcionar consistência.
3. PLANEAMENTO ESTRATÉGICO Chandler (1962) define planeamento estratégico como a determinação de objectivos de longo prazo de uma organização, a adopção de um curso de acção e a afectação de recursos necessários para levar a cabo esses mesmos objectivos. Por isso, para Thibodeaux e Favilla (1996), são muitos os benefícios que derivam da aplicação do planeamento estratégico à tomada de decisão. Por essa razão, segundo Nir (1999), os processos de planeamento e a produção de planos estratégicos assumem-se como actividades centrais para os gestores. De facto, a formulação do plano estratégico consiste num comportamento orientado para o futuro no qual a preocupação com as
139
relações complexas e dinâmicas entre a organização e o ambiente externo assume especial relevância. Nesta linha, Thibodeaux e Favilla (1996) afirmam que, mais do que responder e reagir ao ambiente externo, o planeamento estratégico permite à organização iniciar, influenciar e, simultaneamente, definir objectivos básicos para afectação de recursos e redução dos conflitos internos que tendem a aumentar quando a subjectividade ou a intuição se tornam a base das grandes decisões. Para além disso, o planeamento estratégico permite à organização aproveitar vantagens-chave que constituem oportunidades, minimizar o impacto das ameaças externas, capitalizar os seus pontos fortes e melhorar aspectos que constituem os seus pontos fracos. Por seu lado, Steiner (1997) define o planeamento estratégico a partir de quatro pontos de vista. O primeiro tem a ver com o carácter futurista das decisões correntes. Ou seja, esta ferramenta da gestão permite olhar para uma cadeia de causa e efeito na qual as consequências de uma decisão actual ou planeada são visíveis, ao longo do tempo; identificar os diferentes cursos de acção; identificar oportunidades e ameaças e, através da combinação de dados relevantes, tomar decisões baseadas nessas oportunidades e ameaças. Em segundo lugar, o planeamento estratégico é um processo que envolve o estabelecimento de um conjunto de objectivos organizacionais; a definição das estratégias e políticas para os atingir; e o desenvolvimento de planos detalhados que assegurem a implementação das estratégias de forma a atingir os fins em vista. Em terceiro lugar, o planeamento estratégico é uma atitude, uma forma de vida. Finalmente, em quarto lugar, o sistema estratégico formal permite fazer a ligação entre os três maiores planos, designadamente os planos estratégicos, os programas de médio prazo, os orçamentos de curto prazo e os planos operacionais. Em síntese, o conceito de planeamento consiste no processo de determinar quais são os principais objectivos da organização e os critérios que presidiram à aquisição e afectação de recursos com vista à consecução dos referidos objectivos.
4. FORMULAÇÃO DA ESTRATÉGIA Para Pearce e Robinson (2007), a formulação da estratégia inclui a identificação dos pontos fortes e pontos fracos da organização, a determinação das ameaças e das oportunidades externas, o
140
estabelecimento de objectivos, a definição de políticas, a motivação dos membros da organização e a afectação de recursos, de forma a permitir que as estratégias formuladas deliberadamente possam ser realizadas com sucesso. A avaliação da estratégia permite fazer o controlo dos resultados, quer da formulação quer da implementação. A implementação consiste na tradução das estratégias formuladas em directrizes orientadoras das actividades diárias dos membros da organização. Para Badu (2003), é na fase da implementação que o gestor de topo delega o desenvolvimento da estratégia funcional nos subordinados encarregues da gestão operacional das áreas de negócios. Por vezes, o processo de implementação pode envolver um grupo muito diverso de pessoas. Em certos casos, os responsáveis pela implementação serão todos aqueles que fazem parte da organização. Por esta razão, o planeamento estratégico é um processo participativo no qual diferentes pessoas participam no seu desenvolvimento, quer ao nível funcional, quer ao nível do negócio. Para Hunger e Wheelan (1998), uma abordagem participativa da formulação e implementação estratégicas fornece uma grande variedade de perspectivas, que tem como resultado um plano mais sólido e realista. O envolvimento do pessoal do nível operacional no desenvolvimento de estratégias funcionais melhora o seu conhecimento do que deve ser feito para que os objectivos anuais sejam atingidos e, dessa forma, contribui para o sucesso da implementação. Talvez mais importante, melhora os níveis de compromisso e, consequentemente, a produtividade geral. Na perspectiva de Mintzberg (1994a), para as escolas prescritivas, o modelo de planeamento da formulação da estratégia consiste na tentativa de transformar o processo de tomada de decisão estratégica através do uso detalhado de checklists e de fluxogramas. Esta abordagem, caracterizada pela análise e resolução sequencial de problemas, é criticada por diversos investigadores, nomeadamente Rhenman (1973), Hamel e Prahalad (1994) e o próprio Mintzberg (1994a). Precisamente este último defende a tese de que a fase de formulação da estratégia é a “caixa negra” do modelo de planeamento estratégico e, como tal, ninguém sabe ao certo o que se passa no seu interior. Mais, Mintzberg (1994b) sugere que o planeamento estratégico deve ser abandonado por se revelar como um factor de impedimento ao pensamento estratégico. Segundo este investigador, para as escolas prescritivas, o planeamento estratégico baseia-se na análise, isto é, consiste em desmontar um objectivo em passos, desenhando a maneira como esses passos devem ser implementados e estimando as consequências de cada um desses passos. Mas, para Mintzberg
141
(1994b) e Boyd, Gupta, e Sussman (2001), o planeamento estratégico baseia-se na síntese, ou seja, assenta na intuição e na criatividade como a forma de permitir a formulação de uma perspectiva integrada, uma visão de onde a organização quer estar. Segundo Johnston e Bate (2003), a integração da inovação no pensamento estratégico vem permitir uma nova forma de ligar criatividade e planeamento estratégico, que se traduz na identificação de novas oportunidades de negócio. Segundo Morrison (1994), o problema do planeamento estratégico, visto na óptica da dimensão prescritiva, reside no facto de os proponentes admitirem que a análise encerra a síntese. Para além disso, defende que, dentro daquilo que pode ser considerado como as boas práticas da gestão, planeamento estratégico, pensamento estratégico e elaboração da estratégia são conceitos sinónimos. Ainda segundo Morrison (1994), esta crença baseia-se no pressuposto de que o futuro é previsível e que o processo de elaboração da estratégia pode ser formalizado. Por seu lado, por oposição a Ansoff (1975), Mintzberg (1994b) considera que a previsão de descontinuidades como a inovação tecnológica é difícil, senão impossível. Por isso, defende que a formalização da estratégia deve deixar de ser uma sequência de análise através de procedimentos para passar a ser acção. Ou seja, as acções não planeadas ou experiências podem, sempre que mostrem a sua validade, convergir em padrões que se convertam em estratégias. Segundo Mintzberg (1994b), a essência da elaboração da estratégia reside no processo de aprendizagem que vai acontecendo à medida que se age. Este facto está, segundo este investigador, na base da falência do planeamento estratégico, porque os sistemas formais nunca poderão internalizar, compreender ou sintetizar a informação decorrente deste processo. Por essa razão, a aprendizagem desempenha um papel crucial no desenvolvimento de novas estratégias.
5. DIMENSÕES DA ESTRATÉGIA Pelo exposto, verifica-se que são muitas as definições de estratégia que se podem encontrar na literatura da especialidade. Efectivamente, para Freire (2002), poucos são os conceitos que têm sido alvo de tão grande variedade de interpretações como a estratégia. Segundo Martinet (1988), a incerteza em torno do conceito produz modelos de formação da estratégia muito diversos que, por vezes, entram em confronto no que diz respeito a factores teleológicos,
142
ecológicos, políticos e ideológicos. Por seu lado, para Mintzberg (1990) esta situação ocorre devido ao facto de a estratégia, como disciplina, ser ainda muito recente e, como tal, ainda não ter atingido um estatuto científico que lhe permita produzir um paradigma unificador. Ao invés, segundo este investigador, a estratégia gravita em torno de um fórum eclético. Nesta linha, Freire (2002) sugere que, embora todos pareçam estar de acordo quanto à necessidade da estratégia para o sucesso da organização, ninguém parece estar de acordo quanto ao significado e muito menos quanto ao conteúdo. Contudo, segundo Badu (2003), são muitos os temas que surgem, de forma persistente, nas diversas definições. Por isso, segundo este investigador, o planeamento estratégico pode ser visto como a formulação, implementação e avaliação das acções que permitem à organização atingir os seus objectivos. Mintzberg e Lampel (1999) sugerem que tal diversidade fica a dever-se aos contributos das dez escolas que, ao longo de décadas, foram marcando o conceito de estratégia. Para ordenar a multiplicidade de interpretações existentes, estes investigadores, na linha de Mintzberg (1994a), propõem a constituição de duas dimensões de formação da estratégia, que podem observar-se na tabela 1, designadamente a dimensão prescritiva e a dimensão descritiva. Tabela 1 – Dimensões do Planeamento Estratégico Dimensão
Escolas
Metáfora
Mensagem pretendida
Mensagem atingida
Selznick; Andrews
Aranha
Adaptar
Pensar
Planeamento
Ansoff
Esquilo
Formalizar
Programar
Posicionamento
Porter; Schendel; Hatten
Búfalo
Analisar
Calcular
Empreendedor
Schumpeter; Cole
Lobo
Prever
Centralizar
Desenho Prescritiva
Descritiva
Integrativa
Fontes
Cognitiva
Simon e March
Mocho
Criar
Prevenir
Aprendizagem
Lindblom; Cyert e March; Weick; Quinn; Prahalad e Hamel
Macaco
Aprender
Jogar
Poder
Allison; Pfeffer e Salancik; Astley
Leão
Promover
Reunir
Cultural
Rhenman; Normann
Pavão
Harmonizar
Perpetuar
Ambiental
Hannan e Freeman
Avestruz
Reagir
Capitular
Configuração
Chandler; Mintzberg; Miles e Snow
Camaleão
Transformar
Acatar
Fonte: Adaptado de Mintzberg (1990, 1994a e 1994b), Mintzberg e Lampel (1999) e Mintzberg et al. (2005).
A primeira é composta por três escolas cuja postura assenta “no que deveria ser”; a segunda dimensão é organizada em seis escolas nas quais a postura reside “naquilo que é”. O conteúdo do quadro mostra as escolas da formação da estratégia, os principais contributos,
143
a mensagem que pretendiam fazer passar e aquela que, efectivamente, passou. Para além disso, pode ver-se que a dimensão integrativa inclui, segundo Fernandes (2007), apenas a Escola da Configuração. Esta escola, segundo Mintzberg e Lampel (1999), é uma escola assumidamente descritiva. No entanto, para Fernandes (2007), esta escola assenta numa filosofia unificadora que alia “o que deveria ser” “àquilo que é”. Por essa razão, no âmbito desta revisão da literatura optou-se por destacar a Escola da Configuração da dimensão descritiva por integrar, igualmente, os contributos das escolas prescritivas. De facto, a Escola da Configuração adopta uma postura eclética, considerando os contributos das escolas de formação da estratégia, independentemente de serem prescritivas ou descritivas. Na metáfora de Mintzberg et al. (2005), a estratégia e todas as suas componentes são representadas pelo elefante e é, precisamente, a ele que se pretende observar com o safari proposto por estes investigadores. No entanto, para observar o elefante, tal como em qualquer safari, muitos outros animais são observados. Estes animais correspondem às imagens das dez escolas do pensamento estratégico, que explicam, cada uma à sua maneira, o processo de formação da estratégia.
5.1. DIMENSÃO PRESCRITIVA Como se pode ver no quadro 1, na dimensão prescritiva Mintzberg (1990, 1994a e 1994b), Mintzberg e Lampel (1999) e Mintzberg et al. (2005) incluem três escolas da formulação da estratégia, nomeadamente a Escola do Desenho, a Escola do Planeamento e a Escola do Posicionamento. Para Knights e Morgan (1991) e Falshaw, Glaister e Tatoglu (2006), as escolas referidas caracterizam-se pelos modelos racionais que, segundo estes investigadores, constituem a ortodoxia da gestão estratégica. Nesta linha, Calori (1998) considera que, entre as décadas de 50 e 80 do século passado, o conteúdo, o processo e as premissas dos modelos de estratégia empresarial se baseavam no paradigma cartesiano, ou seja, no racionalismo moderno. Efectivamente, no período que medeia entra as décadas de 50 e 80 do século passado, as escolas prescritivas dominaram, segundo Goulliart (1995), o panorama do planeamento estratégico das organizações. Para este investigador, o modelo de análise SWOT dominou o planeamento estratégico da década de 50; a década de 60 trouxe consigo os modelos qualitativos e quantitativos da estratégia; e, na década de 80, o planeamento estratégico tornou-se padronizado devido ao uso em massa do modelo
144
das 5 forças competitivas de Porter (1991). Na metáfora de Mintzberg et al. (2005), a aranha (escola do desenho) é uma figura solitária que tece uma teia, suficientemente forte para marcar as suas vantagens competitivas na selva; o esquilo (escola do planeamento), sempre em acção, procura e organiza os alimentos que vai armazenar para os meses seguintes; e o búfalo (escola do posicionamento) continua sentado numa posição, cautelosamente seleccionada.
5.2. DIMENSÃO DESCRITIVA Para Mintzberg (1973), os anos 70 do século XX contribuíram com alguns modos alternativos de concepção da estratégia, designadamente o modo empreendedor (intuitivo) e o modo adaptativo (aprendizagem). Mas, para Goulliart (1995) e Calori (1998), foi a partir de meados da década de 80 que surgiram as escolas descritivas, e com elas prevaleceram conceitos como a intenção estratégica, as competências centrais e a orientação para o mercado. Segundo Goulliart (1995), na década de 90, a transformação organizacional ganhou centralidade, pelo que os modelos das escolas descritivas passaram a colocar ênfase na adaptabilidade, flexibilidade, importância do pensamento estratégico e aprendizagem organizacional. Neste contexto, a agilidade estratégica tornou-se mais importante que a própria estratégia, pois permite que a organização mude a sua estratégia à medida que as mudanças ambientais ocorrem. Pelo exposto, pode dizer-se que a migração das estratégias de desenhos, dos planos e/ou das posições precisas, tão características da dimensão prescritiva, para visões vagas e perspectivas alargadas da dimensão descritiva, surgiu com alguma naturalidade. Como se pode observar no quadro 1, Mintzberg (1990, 1994a e 1994b), Mintzberg e Lampel (1999) e Mintzberg et al. (2005) incluem seis escolas de formulação da estratégia na dimensão descritiva, nomeadamente a Escola do Empreendedor, a Escola Cognitiva, a Escola da Aprendizagem, a Escola do Poder, a Escola Cultural e a Escola Ambiental. A Escola do Empreendedor centra o processo de formação da estratégia na intuição e na criatividade. Neste contexto, de acordo com Fulmer e Perret (1993), Fulmer e Franklin (1994) e Hamel e Prahalad (1994), o futuro deve ser inventado e não previsto. Por essa razão, Godet (1989 e 1993) defende que diferentes futuros são possíveis e, como tal, o futuro tem de ser construído. Por isso, a inovação deve, segundo Johnston e Bate (2003), ser integrada no pensamento estratégico. A Escola Cognitiva surge, segundo Mintzberg et al. (2005) e Mintzberg (1994a), com o intuito de tentar compreender a forma
145
como as estratégias evoluem na mente do estratega. A Escola da Aprendizagem baseia a formação da estratégia na tentativa e no processo experimental. Ou seja, para Mintzberg (1994a e 1994b), a estratégia imerge num processo de aprendizagem colectiva. Processo que, de acordo com Prahalad e Hamel (1994) e Unland e Kleiner (1996), torna as organizações mais adaptáveis face às rápidas mutações do meio ambiente. No contexto da Escola do Poder, o processo de formação da estratégia assenta, segundo Mintzberg et al. (2005) e Doz e Prahalad (1991), no poder e na exploração dos processos políticos para a resolução de conflitos. Para a Escola Cultural, a formação da estratégia é vista como um processo social enraizado na cultura. Nas palavras de Bate, citado por Maull, Brown e Cliffe (2001), a cultura é um fenómeno estratégico e, simultaneamente, a estratégia é um fenómeno cultural, porque, em primeiro lugar, a formulação da estratégia é uma actividade cultural, isto é, o desenvolvimento da estratégia é desenvolvimento cultural; e, em segundo lugar, a mudança cultural é mudança estratégica. Por fim, na Escola Ambiental, a envolvente torna-se, para Mintzberg e Lampel (1999), assume o papel principal no processo de formação da estratégia. Neste contexto, a organização deve estar preparada para responder, de forma eficaz, às forças externas. Ou seja, o sucesso da organização depende, segundo Prahalad e Hamel (1994), da maior ou menor capacidade da adaptação face às mudanças registadas no meio ambiente. Esta escola tem o mérito, segundo Mintzberg et al. (2005), de trazer a análise sistémica para o seio do pensamento estratégico. A envolvente, até então desprezada pelas outras escolas, torna-se o tema principal no processo de formação da estratégia, permitindo que as organizações estejam preparadas para responder, de forma eficaz, às forças externas. Na metáfora de Mintzberg et al. (2005), o lobo (escola do empreendedor) considera seriamente a hipótese de ficar com o búfalo para si evitando a competição com os leões por causa das gazelas. O mocho (escola cognitiva) tem sempre uma opinião, mas é de tal forma analítico que, provavelmente, apenas está a fantasiar consigo mesmo. Os macacos (escola de aprendizagem) saltam na ramagem, respondendo aos movimentos dos companheiros e aprendendo com eles. Entretanto, os leões (escola de poder) observam as gazelas para escolherem a que pretendem abater. Simultaneamente, os leões jovens medem forças para definir a ordem pela qual vão comer primeiro. O pavão (escola cultural) está alheio a tudo isto, pois só lhe interessa uma boa aparência. A avestruz (escola ambiental), para além de não se preocupar com o decorrer dos acontecimentos, esconde a
146
cabeça debaixo da areia, o que, segundo Mintzberg et al. (2005), é um comportamento muito arriscado na selva da gestão estratégica.
5.3. DIMENSÃO INTEGRATIVA Para Fernandes (2007), a dimensão integrativa engloba apenas a escola da configuração que, segundo Minzberg et al. (2005), tem duas perspectivas. Uma descreve os estados da organização e do seu contexto, e a outra descreve o processo de formação da estratégia. Na realidade, segundo estes investigadores, são duas faces da mesma moeda, isto é, se uma organização adopta um determinado estado, então a formação da estratégia transforma-se num processo de transição de um estado para outro. Dito de outra forma, a transformação é uma consequência inevitável da configuração. Por isso, no âmbito desta escola, a chave da gestão estratégica reside na capacidade de adaptação à mudança, uma vez que as estratégias são planos adaptados a uma situação específica. Para Mintzberg e Lampel (1999), trata-se de uma vertente mais académica e descritiva, que olha para a organização como configuração, ou seja, como clusters de características e comportamentos, e integra as reivindicações das outras escolas, cabendo a cada configuração o seu lugar próprio. Na metáfora de Mintzberg et al. (2005), o camaleão (escola de configuração) possui uma grande capacidade de adaptação face às mudanças do ambiente externo, mas, apesar de estar em constante mudança, não será, afinal, um animal como qualquer outro?
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se pôde verificar, em torno da estratégia e do planeamento estratégico existe alguma confusão. Para colocar alguma ordem nessa confusão, Mintzberg (1991), Mintzberg e Lampel (1999) e Mintzberg et al. (2005) classificaram e agruparam os contributos de diversos investigadores em dimensões. Essencialmente, esta base de trabalho considera a existência de duas dimensões no que diz respeito à formação da estratégia: a dimensão prescritiva e a dimensão descritiva. No entanto, de acordo com Fernandes (2007), pareceu interessante destacar a Escola da Configuração de entre as escolas descritivas, pois, embora seja uma escola descritiva, tem em consideração os contributos das outras escolas e integra-os naquilo que Mintzberg (1994a) apelida de visão episódica do processo de formação da estratégia. Desta forma, surge uma dimensão combinada
147
que se designou de integrativa, na qual se põe em evidência a sua característica distintiva, ou seja, a capacidade de integrar no seu seio os contributos de todas as outras escolas. De facto, segundo Mintzberg e Lampel (1999), com a Escola da Configuração chega-se, finalmente, a uma literatura e a uma prática mais extensivas e integradoras. A abordagem pragmática da dimensão integrativa, no que diz respeito ao processo de formação da estratégia, permite sanar as clivagens existentes entre as escolas que integram a dimensão prescritiva e as escolas que integram a dimensão descritiva. Neste contexto, a estratégia gravita em torno de um fórum eclético. A dimensão integrativa proposta por Fernandes (2007) e adoptada neste artigo, apesar de não se constituir como o paradigma unificador da estratégia referido por Mintzberg (1990), apresenta algumas características embrionárias. Futuramente, se as condições necessárias ao seu desenvolvimento forem reunidas, a dimensão integrativa poderá evoluir de perspectiva unificadora para paradigma unificador da estratégia. Para isso, torna-se necessário dar o primeiro passo, ou seja, destacar a Escola da Configuração de entre as escolas descritivas, uma vez que, como foi referido, recupera e reafirma os contributos das escolas prescritivas e promove a conciliação com aspectos contidos na dimensão descritiva, designadamente a inovação e a análise sistémica. Para que a dimensão integrativa possa evoluir no sentido do paradigma unificador da estratégia, é imprescindível que os conteúdos programáticos das disciplinas relacionadas com a estratégia e o planeamento estratégico vão mais além das raízes (dimensão prescritiva) e do tronco (dimensão descritiva) e mostrem a árvore no seu esplendor (dimensão integrativa), isto é, mostrem as raízes, o tronco e a copa.
BIBLIOGRAFIA Andrews, Kenneth (1977); El Concepto de Estrategia de las Empresas; Ediciones Universidad de Navarra; Pamplona. Ansoff, Igor (1975); “Managing Strategic Surprise by Response to Weak Signals”, California Management Review; 18; 2; 21–33. Asch, David (1989); “Strategic Control: an overview of the issues” in Asch, David e Bowman, Cliff (Eds); Readings in Strategic Management; Macmillan; London. Badu, Edwin (2003); “Staff Participation in the Strategic Planning Process in University Libraries in Ghana”; Education Libraries Journal; 45; 3; 19-26.
148 Boyd, Lynn; Gupta, Mahesh; Sussman, Lyle (2001); “A New Approach to Strategy Formulation: Opening The Black Box”; Journal of Education for Business; 76; 6; 338-344. Calori, Roland (1998); “Philosophizing on Strategic Management Models”; Organization Studies; 19; 2; 281-306. Chandler, Alfred (1962); Strategy and Structure; MIT Press; Cambridge. Correia, M. (1992); Nova Enciclopédia Portuguesa; 9; Ediclude; Lisboa. David, Fred (2008); Strategic Management: Concepts and cases; Prentice Hall; Lebanon. Doz, Yves; Prahalad, Coimbatore (1991); “Managing DMNC’s: A Search for a New Paradigm”, Strategic Management Journal; 12; 4; 145-164. Evered, Roger (1983); “So What Is Strategy?”; Long Range Planning; 16; 3; 57-72. Falshaw, Richard, Glaister, Keith; Tatoglu, Ekrem (2006); “Evidence on formal strategic planning and company performance”; Management Decision; 44; 1; 9-30. Fernandes, António (2007); “Dimensão Integrativa do Planeamento Estratégico”; Revista Portuguesa e Brasileira de Gestão; 6; 2; 14-19. Freire, Adriano (2002); Estratégia: Sucesso em Portugal; Verbo; Lisboa. Fulmer, Robert; Franklin, Stephen (1994); “The Merlin Exercise: Creating Your Future through Strategic Anticipatory Learning”; The Journal of Management Development; 13; 8; 38-43. Fulmer, Robert; Perret, Solange (1993); “The Merlin Exercise: Future by Forecast or Future by Invention?”; The Journal of Management Development; 12; 6; 44-52. Ghemawat, Pankaj (2002); “Competition and Business Strategy in an Historical Perspective”; Business History Review; 76; 2; 37-74. Godet, Michel (1989); “Effective Strategic Management: The Prospective Approach”, Technology Analysis & Strategic Management; 1; 1; 45-55. Godet, Michel (1993); Manual de Prospectiva Estratégica: Da Antecipação à Acção; Publicações Dom Quixote; Lisboa. Goulliart, Francis (1995), “Planning Theory: The Day the Music Died”; Journal of Business Strategy; 16; 3; 14-20. Hamel, Gary; Prahalad, Coimbatore (1994); “Competing for the Future”; Harvard Business School; Boston. Hatten, Kenneth (1987), Strategic Management: Analysis and Action; Prentice-Hall; New Jersey. Hickson, David et al. (1986); “Top Decisions: Strategic Decision Making in Organizations”; Jossey-Bass; San Francisco. Hunger, David; Wheelan, Thomas (1998); Strategic Management; Addison-Wesley; Readding. Johnson, Gerry; Scholes, Kevan (2002); Exploring Corporate Strategy; Prentice-Hall; London. Johnston, Robert; Bate, Douglas (2003); The Power of Strategy Innovation: A New Way of Linking Creativity and Strategic Planning to Discover Great Business Opportunities; Amacom, New York. Knights, David; Morgan, Glenn (1991); “Corporate Strategy, Organizations and Subjectivity: A Critique”; Organization Studies; 12; 2; 251-273. Koontz, Harold; Weihrich, Heinz (2006); Administración: Una Perspectiva Global; McGrawHill; Ciudad de México. Martinet, Alain (1988) ; “Les Discours Sur la Stratégie d’entreprise” ; Revue Française de Gestion ; 67 ; 49-60. Maull, Roger; Brown, P.; Cliffe, R. (2001); “Organisational Culture and Quality Improvement” ; International Journal of Operations & Production Management ; 21; 3; 302-326. Mintzberg, Henry (1994a); The Rise And Fall of Strategic Planning: Reconceiving The Roles For Planning, Plans and Planners; The Free Press; New York. Mintzberg, Henry (1994b); “The Fall and Rise of Strategic Planning”; Harvard Business Review; 72; 1; 107–114. Mintzberg, Henry (1991); “Learning – 1, Planning – 0: Reply to Igor Ansoff”; Strategic Management Journal; 12; 6; 463–466.
149
Mintzberg, Henry (1990); “The Design School: Reconsidering the Basic Premises of Strategic Management”; Strategic Management Journal; 11; 3; 171-195. Mintzberg, Henry (1987a); “The Strategy Concept I: Five P´s for Strategy”; California Management Review; 30; 1; 11-24. Mintzberg, Henry (1987b); “The Strategy Concept II: Another Look at Why Organizations Need Strategy”; California Management Review; 30; 1; 25-32. Mintzberg, Henry (1973); “Strategy Making in Three Modes”; California Management Review; 16; 2; 44-53. Mintzberg, Henry et al. (2005); Strategy Safari: A Guided Tour Throught the Wilds of Strategic Management; Free Press; New York. Mintzberg, Henry; Lampel, Joseph (1999); “Reflecting on the Strategy Process”; Sloan Management Review; 40; 3; 21-30. Mintzberg, Henry; Quinn, James (1996); The Strategy Process: Concepts, Context And Cases; Prentice Hall; London. Morrison, James (1994); “From Strategic Planning to Strategic Thinking”; On the Horizon; 2; 3; 3-4. Nir, Adam (1999); “Time Perspectives Of Strategic Planning Processes And Plans As A Function Of Gender And Echelon Socialization”; Sex Roles; 41; 9/10; 737-752. Pearce, John; Robinson, Richard (2007); Strategic Management: Formulation, Implementation and Control; Irwin; Homewood. Porter, Michael (1991); Estratégia Competitiva: Técnicas para análise da indústria e da concorrência; Editora Campus; Rio de Janeiro. Prahalad, Coimbatore; Hamel, Gary (1994), “Strategy as a Field of Study: Why Search for a New Paradigm?”; Strategic Management Journal; 15; special; 5-16. Rhenman, Eric (1973); Organization Theory for Long Range Planning; Wiley & Sons; New York. Steiner, George (1997); Strategic Planning: What Every Manager Must Know; Free Press; New York. Thibodeaux, Mary; Favilla, Edward (1996); “Organizational Effectiveness and Commitment Trough Strategic Management”; Industrial Management & Data Systems; 96; 5; 21-25. Unland, Mark; Kleiner, Brian (1996); “New Developments in Organizing Around Core Competences Wide Variety of Tapes, Adhesives, and Fasteners”, Work Study; 45; 2; 5-9.
151
O SECTOR COOPERATIVO DA VINHA E DO VINHO NA UNIÃO EUROPEIA: REFERÊNCIA ESPECIAL A ESPANHA
THE COOPERATIVE SECTOR OF VINEYARDS AND WINE IN THE EUROPEAN UNION: THE SPAIN SITUATION Amparo Melián Navarro* (amparo.melian@umh.es), Genoveva Millán Vázquez de la Torre*** (gmillan@etea.com) e Armando Mateus Ferreira*** (armando@esa.ipcb.pt)
RESUMO
O cooperativismo é habitualmente referido como uma solução adequada para a gestão e a comercialização de produtos agro-alimentares. No presente trabalho efectua-se uma revisão descritiva do cooperativismo vitivinícola na União Europeia (UE), no que se refere às principais cooperativas, e faz-se uma análise do sector cooperativo do vinho em Espanha. A União Europeia (UE) ocupa um lugar destacado no mercado vinícola mundial. As adegas cooperativas destacam-se essencialmente pela sua base social, não pelo volume de facturação, muito embora representem uma importante quota de mercado do sector, da ordem de 70% em Espanha e 50% em Portugal e na França. Uma característica evidente é que agrupam um elevado número de sócios, factor importante para o crescimento interno e para a afirmação da cooperativa. Em Espanha, terceiro país produtor mundial de vinho, são 57 as Denominações de Origem segundo o Regulamento (CE) 510/2006, e aproximadamente um terço da sua produção está catalogada como vinho de qualidade, segundo o mesmo Regulamento. Embora existam adegas cooperativas em praticamente todas as regiões, a maior parte localizam-se nas Comunidades Autónomas Castela–La Mancha, Catalunha e Comunidade Valenciana. Palavras-chave: Cooperativas, Espanha, sector vitivinícola, União Europeia.
ABSTRACT
Cooperative organization is usually regarded as an ideal solution for the management and marketing of food products. In this paper the authors review the foremost wine cooperatives in the European Union descriptively and analyze the cooperative sector of wine in Spain. The European Union (EU) occupies a prominent position in the global wine market. Cooperative wineries
152
stand out primarily for their social base, not for their turnover, although they have a significant market share over the figures in their sector, some 70% in Spain and 50% in Portugal and in France. A prominent feature is that they bring together a large number of members, which is important for the internal growth of the cooperative and its strength on the market. In Spain, the third-largest wine producing country in the world, there are 57 Appellations of Origin recognized under the (EC) Regulation 510/2006, and roughly a third of its production is classified as quality wine under this regulation. Although there are cooperative wineries in almost every region, the majority are located in three autonomous regions Castilla-La Mancha, Catalonia and the Valencian Community. Key words: Co-operatives, Spain, wine sector, European Union.
* Dra. Ingeniero Agrónomo, Catedrática de Escuela Universitaria, Profesora de la Escuela Politécnica Superior de Orihuela, Universidad Miguel Hernández. ** Dra. Ciencias Económicas y Empresariales, Profesora Titular Facultad de Ciencias Económicas y Empresariales, Universidad de Córdoba. *** Instituto Politécnico de Castelo Branco, Dr. Engenharia Agronómica, Professor Adjunto, Escola Superior Agrária, Instituto Politécnico Superior de Castelo Branco.
153
1. INTRODUÇÃO Num mercado cada vez mais globalizado e competitivo a cooperação apresenta-se como uma das estratégias ao dispor do empresário agrícola, especialmente nos casos de pequenas e médias explorações, para melhorar e desenvolver a sua actividade e alcançar uma maior dimensão que lhe permita obter vantagens nos planos económico, produtivo, comercial e social (Ciruela e Tous, 2005). As cooperativas agrícolas são estruturas associativas dotadas de uma ampla base social, que se caracterizam por assumirem o papel de importantes agentes geradores de actividade, com capacidade de contribuir decisivamente para o desenvolvimento sustentável de numerosas zonas rurais, tanto na perspectiva económica como social e ambiental. A sua génese está estreitamente vinculada ao desenvolvimento de actividades no âmbito da produção, do comércio, da área financeira ou prestação de serviços (Gómez-López, 2004). De todos os sectores em que se pode expandir o fenómeno associativo através da formação de cooperativas, destaca-se o sector agrário, e em particular o sector vitivinícola, sobretudo nas fases da produção e da vinificação, e com menor realce na fase de comercialização. No presente trabalho, faz-se inicialmente uma revisão do sector cooperativo, apresentando alguns indicadores do sector da vinha e do vinho a nível europeu. De seguida, faz-se uma abordagem profunda deste sector em Espanha, analisando com detalhe a importância das adegas cooperativas e a sua distribuição por regiões ou comunidades autónomas. São apresentadas as diferentes denominações atribuídas aos vinhos de qualidade e, por último, são apresentadas as conclusões derivadas do trabalho.
2.- O COOPERATIVISMO VITIVINÍCOLA EUROPEU. ALGUNS INDICADORES ECONÓMICOS E EMPRESARIAIS Segundo a Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV), 59% da superfície vitivinícola mundial localiza-se na Europa, 22% na Ásia, 12% na América, 5% em África e 2% na Oceânia. Uma parte importante destas produções encontra-se organizada em cooperativas agrárias, sobretudo na Europa.
154
A nível europeu o cooperativismo vitivinícola sobressai sobretudo por aglutinar um elevado número de associados nas cooperativas agrícolas de base que formam, de modo a disponibilizarem conjuntamente os seus produtos, a transformação e comercialização dos mesmos. Contudo, os seus níveis de facturação não se apresentam tão destacados. Segundo a Comissão Geral de Cooperação Agrícola (COGECA, 2005), entre as primeiras 25 cooperativas agrícolas europeias pelo volume de facturação não existe nenhuma cooperativa que pertença ao sector vitivinícola. A cooperativa que ocupa a primeira posição por volume de facturação é a Metsäliito, na Finlândia, cooperativa do sector florestal que facturou 8 300 milhões de euros em 2003, e é também a cooperativa que agrupa o maior número de sócios e de empregados de toda a Europa (131 000 sócios e 29 000 empregados). A Bay Wa é a segunda cooperativa no ranking de facturação, tem a sua sede na Alemanha, pertence ao sector de abastecimento e factura 5891 milhões de euros; a terceira cooperativa é a Arla Foods, do sector dos lacticínios (sede partilhada entre a Dinamarca e a Suécia) e facturou 5460 milhões de euros em 2003. Segue-se a dinamarquesa Danish Crown, do sector cárnico, com 5 420 milhões de euros. Entre as 25 cooperativas agrárias europeias com maior actividade económica pelo indicador do volume de facturação anual, dez pertencem ao sector dos lacticínios e seis ao sector de abastecimentos. Por países, são os nórdicos (Finlândia, Dinamarca, Suécia) e em seguida os Países Baixos, juntamente com a França e a Alemanha, que concentram as cooperativas mais fortes segundo o volume económico de facturação anual. Contudo, fazendo uma análise das 25 primeiras cooperativas agrárias europeias por número de sócios, então aparecerão várias do sector vitivinícola. Em décimo primeiro lugar, situa-se a CAVIRO – Consorzio Coopperativo, cooperativa italiana do sector do vinho, com 25 000 associados (221 milhões de euros de facturação); em décimo quinto lugar aparece a Agricultores Cooperativa União of Iraklio (ACU) da Grécia, com 21 000 associados (44 milhões de euros), embora a sua actividade não se limite ao sector do vinho, incluindo também os sectores do azeite e do abastecimento. As principais cooperativas agrícolas europeias pertencentes ao sector vitivinícola pelo volume de facturação apresentam-se na tabela 1. Naquela, observa-se que entre as dez primeiras cooperativas agrícolas europeias por volume de facturação do sector vitivinícola, sete são italianas, que entre si facturam 986x106 euros (COGECA, 2005).
155
Apenas uma destas dez é francesa, que com um volume de facturação de 321x106 euros, é a mais importante de toda a União Europeia (UE). Tabela 1. Principais cooperativas agrícolas europeias do sector vitivinícola. Nome
País
Facturação (milhões €)
Nº de Sócios
Nº de Funcionários
1
Les Vignerons du Val d’ Orbieu
França
321
n.d.
n.d.
2
Grupo Italiano Vini
Itália
236
n.d.
340
3
CAVIRO-Consorzio Cooperative
Itália
230
25.000
350
4
CAVIT
Itália
226
5.400
n.d.
5
Cantine Cooperative Riunile
Itália
95
1.200
215
6
Wütembergishe Weingärtner
Dinamarca
79
71
158
7
Cantina de Soave
Itália
79
1.700
n.d.
8
Mezzacorona
Itália
70
n.d.
n.d.
9
Badisher Winzerkeller eG, Breisack
Dinamarca
51
74
170
10
CEVICO
Itália
50
n.d.
90
Fonte: COGECA, 2005. n.d.: dados não disponíveis
A União Europeia (UE) ocupa um lugar preponderante no mercado vinícola mundial, representando 45% da superfície vitícola do planeta e 65% da produção. Os três principais países produtores são a França (51,1x106 hl), a Itália (50,5x106 hl) e Espanha (39,8x106 hl), totalizando 86% da produção da UE. Somando ainda a produção da Alemanha (9,1x106 hl), Portugal (7,3x106 hl) e Grécia (4,0x106 hl) alcançam-se 98,4%, isto é, a quase totalidade do vinho produzido no denominado “Velho Continente” (OIV, 2006). Tabela 2. Principais países produtores de vinho na União Europeia. Dados gerais das cooperativas agrícolas do sector vitivinícola Nº Coop. Agrícolas Alemanha Espanha França Itália Portugal Grécia
239 625 900 92 119 80
Facturação (milhões €) 800 1 400 3 400 900 n.d. 400
Quota de mercado (%) 32 70 52 n.d. 50 30
Nº de Socios 59 000 172 000 120 000 38 600 60 000 7 800
Nº de Funcionários 3 300 4 950 8 700 900 2 200 500
Fonte: COGECA, 2005. Dados de 2003, excepto Itália 2004. Resto dos países da UE, informação não disponível
Os valores relativos ao número de adegas cooperativas agrárias do sector do vinho nestes países, ao volume de facturação, à sua quota de mercado, número de sócios e empregados, segundo COGECA (2005), são apresentados na tabela 2.
156
A tabela 3 apresenta os dados gerais nas cooperativas agrícolas do sector vitivinícola em alguns dos países mediterrânicos da União Europeia (Grécia, França, Itália e Portugal), assim como indica a posição (ranking) de cada uma das adegas cooperativas sobre o total do respectivo país, segundo o volume de facturação e considerando todos os sectores. Por exemplo, a cooperativa Carmin de Portugal, que ocupa a oitava posição no país, significa que com os seus 34x106 euros de facturação, é a oitava cooperativa agrária em Portugal, em termos de facturação. Tabela 3. Alguns dados gerais das cooperativas agricolas do sector vitivinícola em alguns países mediterráneos da União Europeia País
Grecia
Nome cooperativa
Facturação (milhões €)
Nº de Funcionários
ACU Iraklio
44
140
Ranking da cooperativa no país, segundo o volume de facturação 4ª
ACU Peza
33
110
6ª
França
Les Vignerons du Val d’ Orbieu
321
--
31ª
Itália
Grupo Italiano Vini
236
340
4ª
CAVIRO-Consorzio Cooperative
221
350
5ª
34
90
8ª
Portugal
Carmin Adega Cooperativa do Redondo
16
60
10ª
Adega Cooperativa Coves Santa Marta
16
80
11ª
Adega Cooperativa de Borba Adega Cooperativa da Azueira Adega Cooperativa de Almeirim
15 13 11
70 40 50
14ª 17ª 19ª
Fonte: Elaboração própria a partir de COGECA, 2005.
Assim, por exemplo, na Grécia, ACU de Iraklio (vinho e azeite) situa-se na quarta posição, com 44 milhões de euros de quota de negócio, 21 000 sócios e 140 funcionários, em sexto lugar aparece a ACU de Peza, também do sector do vinho e do azeite, com 33 milhões de euros, 3 000 associados e 110 trabalhadores. Em França, a cooperativa Les Vignerons du Val d’ Orbieu aparece apenas na posição 31, com um volume de facturação de 321 milhões de euros, sendo a primeira cooperativa europeia no sector vinícola, revelando, portanto, a importância que tem o sector cooperativo neste país. Em Itália, surgem nas quarta e quinta posições duas cooperativas vitivinícolas, o grupo italiano Vini, com 236 milhões de euros facturados e 340 funcionários, e CAVIRO Consorzio, com 221 milhões de euros, 25 000 associados e 350 trabalhadores. Em Portugal são várias as cooperativas vitivinícolas
157
que se destacam relativamente aos restantes sectores quanto ao volume de facturação, muito embora estas cifras de negócio não sejam tão elevadas quanto nos países anteriormente mencionados. Concretamente, a cooperativa Carmin, com um volume de facturação de 34 milhões de euros e 90 funcionários, ocupa a oitava posição; a Adega Cooperativa do Redondo e as Caves Santa Marta, ambas com 16 milhões de euros de facturação e 60 e 80 funcionários, respectivamente, ocupam a décima primeira e décima segunda posição; a Adega Cooperativa de Borba em décima quarta posição, com 15 milhões de euros e 70 funcionários; em décimo sétimo lugar aparece a Adega Cooperativa da Azueira, com 13 milhões de euros e 40 funcionários, e a Adega Cooperativa de Almeirim, com 11 milhões de euros de volume de negócio e 50 funcionários em décimo nono (tabela 3).
3. O COOPERATIVISMO VITIVINÍCOLA EM ESPANHA O cooperativismo agrário espanhol constitui hoje uma importante realidade, não apenas social, mas também económica, visto haver experimentado um importante desenvolvimento empresarial (Juliá, 2002). A maioria dos proprietários de explorações agrícolas em Espanha são associados de cooperativas, e cerca de 42% da Produção Final Agrária (PFA) é comercializada através destas organizações (CCAE, 2006). Além disso, as cooperativas agrícolas concentram em muitos casos a maior parte da produção de determinadas culturas (produtos), como é o caso do vinho (70%). Por grupos de actividade, a percentagem de entidades associativas agrárias (EAA)1 que se vinculam ao sector vitivinícola é de 17,8%, relativamente ao total de 4 195 em 2003 (CCAE, 2003). O volume de facturação ascendeu aos 1 400 milhões de euros (9,9% da facturação total das EAA). Embora sejam montantes salientes, o volume de facturação e desenvolvimento empresarial é inferior ao do sector das frutas e hortaliças, além de que as suas quotas de mercado decairiam bastante se referidos exclusivamente aos denominados vinhos de qualidade. As EAA detêm uma quota-parte muito importante da actividade económica do sector agro-alimentar espanhol, com uma facturação no ano de 2005 que ultrapassou os 16 000 milhões de euros. Desta 1
Cooperativas e Sociedades Agrárias de Transformação (SATs)
158
actividade económica beneficiam mais de um milhão de sócios em todo o território nacional, e em praticamente todos os subsectores agro-alimentares, proporcionando emprego a cerca de 100 000 pessoas. Cerca de 80% das EAA enquadram-se em Federações Regionais de Cooperativas, e estas, por seu lado, na Confederação de Cooperativas Agrárias de Espanha (CCAE, 2006). Analisando o sector cooperativo, e em especial o cooperativismo vitivinícola espanhol, pode concluir-se que o número total de cooperativas vitivinícolas é de 575, segundo os dados da CCAE (2007b), sendo de 3 086 o total de cooperativas agrícolas, o que perfaz de cerca de 19% de cooperativas vinícolas (Figura 1). Outros sectores, como o hortofrutícola e o do azeite, apresentam um maior número de cooperativas, com cifras que rondam os 27% e 23%, respectivamente.
Vitivinícolas 19%
Azeite 23%
Forragens e Herbáceos 17%
Hortofrutícola 27%
Pecuária 14%
Figura 1: Distribuição percentual por sectores das cooperativas agrárias em Espanha, Ano 2007 Fonte: Elaboração própria
Ainda que o fenómeno cooperativo se encontre por toda a Espanha, sendo que existem cooperativas em praticamente todas as províncias, a sua distribuição não é homogénea e em algumas zonas desenvolveu-se com maior intensidade. Também em determinadas regiões se produziram movimentos associativos posteriores, que deram origem à criação de cooperativas de segundo grau. Uma cooperativa de segundo grau é uma cooperativa cujos sócios são de outras cooperativas. Se as cooperativas tradicionais (ou de primeiro grau) são formadas pela união de sócios que constituem a cooperativa de base,
159
as cooperativas de segundo grau são constituídas pela união de cooperativas. Estas cooperativas de segundo grau permitem gerir de forma muito mais eficaz um volume muito maior de produto, no caso presente de vinho. Tabela 4. Número de adegas cooperativas e cooperativas agrícolas espanholas de primeiro e segundo graus por província e comunidades autónoma, ano 2007 Comunidade Autónoma
Província
Galiza
Astúrias País Basco
Navarra La Rioja Aragão
Corunha Lugo Orense Pontevedra Asturias Álava Vizcaya Guipúzcoa Navarra La Rioja Huesca Zaragoza Teruel
Castela e Leão
Madrid
León Zaragoza Palencia Burgos Valladolid Salamanca Ávila Segovia Soria Guadalajara Madrid
Nº Adegas Cooperativas 9 0 0 5 4 1 7 7 0 0 38 27 37 0 30 7 36 8 6 0 13 4 5 0 0 0 0 11
Nº Adegas Coop. 2º grau 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Nº coop. agrícolas 104 30 35 13 26 20 71 37 17 17 203 35 157 25 95 37 239 29 27 21 45 41 35 26 9 6 3 30
Nº coop. agrícolas 2º grau 4 2 1 1 0 1 4 3 -1 6 0 7 -6 1 17 1 2 0 3 4 6 1 0 0 0 0
Fonte: Elaboração própria a partir de CCAE, 2007b.
Nas tabelas 4 e 5 mostra-se a distribuição por província e por comunidade autónoma das adegas cooperativas espanholas, sendo também indicado o número total de cooperativas agrárias e quantas destas são cooperativas de segundo grau (2g) no sector vitivinícola e no conjunto de todas as cooperativas agrárias. Uma análise por comunidade autónoma reflecte que Castela La Mancha concentra 29% das cooperativas vitivinícolas espanholas, seguindo-se a Catalunha e a Comunidade Valenciana, com as valores de 15% e 14%, respectivamente, e o resto das comunidades com valores em torno de 5-7% (figura 2).
160
Tabela 5. Número de adegas cooperativas e cooperativas agrícolas espanholas de primeiro e segundo grau por província e comunidade autónoma, ano 2007 Comunidade Autónoma Castela – La Mancha
Província
Toledo Ciudad Real Cuenca Albacete
Extremadura Cáceres Badajoz C. Valenciana
Castellón Valencia Alicante
Andaluzia
Murcia Baleares Catalunha
Total
Huelva Sevilla Córdoba Cádiz Málaga Jaén Granada Almería Murcia Gerona Lérida Barcelona Tarragona Total
Nº Adegas Cooperativas 173 52 48 41 32 26 1 25 78 2 62 16 38 11 1 11 8 3 2 1 1 4 0 88 9 7 10 62 575
Nº Adegas Coop. 2º grau 6 2 1 2 1 2 1 1 6 1 4 1 2 0 0 0 1 1 0 0 0 1 0 3 0 0 1 2 22
Nº coop. agrícolas 389 119 104 96 67 193 76 117 382 129 186 67 676 55 109 102 33 93 127 100 57 83 3 501 55 175 93 178 3 086
Nº coop. agrícolas 2º grau 25 4 7 9 5 17 5 12 27 10 12 5 36 1 11 6 1 5 6 3 3 6 0 13 1 6 1 5 166
Fonte: Elaboração própria a partir de CCAE, 2007b.
Contrasta quando a distribuição é efectuada sobre o total de cooperativas (figura 3), pois embora Catalunha e a Comunidade Valenciana mantenham cifras similares, já que existe um certo equilíbrio com o resto dos sectores cooperativos, em Castela–La Mancha reduzse significativamente a menos de metade, e também se reduz de forma significativa em La Rioja, ao passo que outras comunidades autónomas (CCAA) aumentam o seu peso relativo, como, por exemplo, a Andaluzia, dado o peso importante que aí tem o sector do azeite, ou nas Astúrias e Galiza com o sector ganadeiro, cujos dados se acumulam no grupo do resto das CCAA não referenciadas explicitamente nas figuras 2 e 3.
161
Andaluzia 7%
Resto 6%
Navarra 7%
La Rioja 5% Aragão 6%
C.Valenciana 14% Catalunha 15% Extremadura 5%
Leão e Castela 6% Castela - La Mancha 29%
Figura 2: Distribuição das cooperativas vitivinícolas espanholas. Peso relativo por comunidade autónoma, ano 2007 Fonte: Elaboração própria
Resto 16%
Navarra La Rioja 6% 1% Aragão 5%
Catalunha 15%
Andaluzia 20%
C.Valenciana 12%
Leão e Castela 7%
Extremadura 6%
Castela - La Mancha 12%
Figura 3: Distribuição do total das cooperativas agrárias espanholas. Peso relativo por comunidade autónoma, ano 2007 Fonte: Elaboração própria
162
Em algumas das comunidades autónomas, o sector vitivinícola é o mais importante dentro do sector agrário. Assim, a relação das cooperativas vitivinícolas face ao total de cooperativas é de 77% em La Rioja e de 44% em Castela–La Mancha (é nesta comunidade autónoma que se localiza a maioria da adegas cooperativas). Os valores absolutos são indicados na figura 4, onde se evidencia que a Andaluzia, com um valor superior ao de La Rioja, apenas representa 6%, dado o importante peso que o sector do azeite tem nesta comunidade, onde existem 326 entidades cooperativas de azeite. 800
Adegas cooperativas 700
676
Total cooperativas agricolas
600 534 501
500 389
400
382
300 239 203
200
193
173
157 88
100 38
27 35
37
Navarra
La Rioja
Aragão
78 36
26
38
32
0 Catalunha
Leão e Castela
Castela - La Extremadura C.Valenciana Mancha
Andaluzia
Resto
Figura 4: Nº total de cooperativas e adegas cooperativas espanholas, ano 2007 por comunidade autónoma Fonte: Elaboração própria a partir de CCAE, 2007b
É um facto assente o ainda incipiente cooperativismo de segundo grau, pois apenas estão registadas 22 cooperativas do sector do vinho, num total de 166 do conjunto dos sectores agrícolas (azeite, hortofrutícola, etc), o que representa apenas 13% das cooperativas agrárias de segundo grau (CCAE, 2007b). De todas as comunidades autónomas, são Castela–La Mancha e a Comunidade Valenciana que têm um maior número de cooperativas de segundo grau, 6 em cada uma destas duas CCAA, que correspondem, respectivamente, a 3,5% e a 7,7% do total de adegas cooperativas (CCAE, 2007b). Em algumas
163
comunidades autónomas, como é o caso de Galiza, La Rioja, Aragão, País Basco, Madrid, Leão e Castela, que detêm muita relevância no sector vitivinícola, não existe nenhuma cooperativa de segundo grau neste sector. Destaca-se o caso das Astúrias, onde a única cooperativa existente é uma cooperativa de segundo grau. Este facto é extremamente importante para o seu futuro, pois como referem Meliá e Juliá (2006), as cooperativas de segundo grau consolidam-se como estruturas capazes de comercializar as produções das suas cooperativas associadas, aproveitando as vantagens derivadas da concentração da oferta, e melhorando a sua posição no mercado. Além disso, foi graças a elas que se tornou possível o desenvolvimento de processos industriais, que, por requererem em muitos casos investimentos iniciais muito avultados, ter-se-iam manifestado inacessíveis para as cooperativas de base, ao mesmo tempo que pouco rentáveis economicamente, devido aos seus reduzidos volumes de actividade. Outro aspecto que merece uma análise é o que concerne à sua base social. Em Espanha, o número médio de sócios por cooperativa é de 252 (983 210 agricultores associados em 3 902 cooperativas), ao passo que na União Europeia é de 427 (COGECA, 2005), o que demonstra que a dimensão empresarial das cooperativas é reduzida comparativamente às suas homólogas europeias. Por comunidade autónoma, por exemplo, em Castela–La Mancha, e particularizando com o sector vitivinícola, Olmeda et al., (2001) referem que o número médio de sócios por cooperativa é de 300 e que aproximadamente 55,7% das adegas têm menos de 500 associados, e na Comunidade Valenciana o número médio de sócios é de 387 por cooperativa (217 330 associados e 562 cooperativas - CCAE, 2007a). A Andaluzia é a comunidade autónoma com maior número de sócios cooperativistas, com um total de 238.750 associados, representando 24,3% de todos os agricultores espanhóis associados em cooperativas. De seguida aparece a Comunidade Valenciana com 217 330 associados (22,1%) e Castela – La Mancha com 125 273 associados (12,7%). As quatro comunidades mediterrânicas (Andaluzia, Comunidade Valenciana, Múrcia e Catalunha) somam 534 340 associados, que representam 54,3% dos cooperativistas espanhóis (CCAE, 2007a). O número de sócios e de cooperativas têm vindo a diminuir com o passar dos anos. A redução do número de cooperativas deve-se sobretudo, a processos de fusão que se estão a verificar em muitas sociedades cooperativas espanholas, em busca de uma dimensão
164
competitiva, a fim de enfrentar os novos desafios do mercado e da globalização. A redução do número de sócios deve-se a que as gerações de jovens não se vinculam tanto à posse de terra como os seus antepassados, pois está a assistir-se a uma redução da população agrária activa, em simultâneo com o abandono de algumas explorações agrícolas. A comunidade autónoma com maior número de cooperativas agrárias é a Andaluzia, onde existem 783 cooperativas, representando 20,1% do total das cooperativas espanholas. Segue-se a Comunidade Valenciana, com 562 cooperativas (14,4%), e Castela–La Mancha, com 449 cooperativas (11,5%). Mantém-se, assim, a mesma tendência verificada para os sócios, isto é, verifica-se uma concentração do número de cooperativas e de sócios nestas Comunidades. De modo similar, na faixa mediterrânica sediam-se 1 865 cooperativas, quase metade do total do país (47,8%). Chama-se a atenção para a Catalunha, que tem um número relativamente importante de cooperativas (453, representando 11,2% do total), mas em que o número de associados é baixo, totalizando apenas 55 620 sócios, isto é, 5,7% do total de Espanha (CCAE, 2007a). O número médio de sócios por cooperativa é de 252, tomando de forma agregada a totalidade de cooperativas e o total de associados de Espanha. Não obstante, quando se analisa esta relação por comunidades autónomas, observa-se muita disparidade entre elas, como se mostra na figura 5. Apenas algumas comunidades se aproximam da média, mais concretamente a Galiza, Aragão, Madrid e Múrcia. As comunidades onde é maior o peso do cooperativismo, como a Andaluzia e a Comunidade Valenciana, apresentam valores muito superiores à média (305 e 387 sócios, respectivamente). Outras comunidades, como a Cantábria e La Rioja também apresentam uma dimensão social importante, com o número médio de sócios nas suas cooperativas superior à média de Espanha. Este aspecto merece realce, porque é interessante o crescimento interno da cooperativa para o seu fortalecimento. Sem dúvida, outras zonas de Espanha, como o País Basco, Navarra, Extremadura ou Baleares, rondam em média 150 sócios por cooperativa, e na Catalunha o número médio é de 128 de associados por cooperativa, cerca de metade da média geral das cooperativas agrárias espanholas. A utilização das novas tecnologias da informação e da comunicação (NTIC) pode ser um indicador do nível de actualização das adegas. Assim, um estudo de Gómez Limón et al, (2000) sobre o uso da internet no comércio e marketing vitivinícolas no sector
165
empresarial nacional revela que a maior parte das que fazem uso deste recurso são sociedades anónimas (69,7%), face aos 17,4% das sociedades de responsabilidade limitada e aos 12,9% das cooperativas, explicando que tal se deve, sobretudo à sua maior orientação para o marketing e à sua maior capacidade em termos de recursos humanos. 450 387
400 350 300 250
305
288
270
279 256
245
298 266
247 208
200 150
167 138
215 152
150
128
100 50 0
Figura 5: Nº médio de sócios por cooperativa e comunidade autónoma, ano 2007 Fonte: Elaboração própria a partir de CCAE, 2007a
Este aspecto reflecte novamente o atraso estratégico das cooperativas, que apesar de comercializar uma elevada percentagem da sua produção (cerca de 70% - CCAE, 2006), os valores de vendas através do comércio electrónico quase não tem expressão. A mesma conclusão é apontada pelo trabalho de Mozas et al. (2001) para o sector cooperativo oleícola, pois as sociedades cooperativas, maioritárias na produção de azeite, também não recorrem a este veículo de comercialização (Internet), de tal modo que as páginas web de empresas não cooperativas superavam as pertencentes a entidades cooperativas. Obviamente, com o comércio electrónico podem obterse importantes economias de escala graças ao aumento da dimensão do mercado, pois as empresas podem dispor virtualmente de tantos clientes quantos os utilizadores da Internet. Outro aspecto positivo
166
desta tecnologia é a eliminação de barreiras físicas e temporais para as encomendas.
4.- O SECTOR DO VINHO EM ESPANHA E AS DENOMINAÇÕES DE ORIGEM A superfície de vinha em Espanha ultrapassou os 11,5 milhões de hectares (ha) em 2005 (primeiro país do mundo por área plantada, 14,9% da superfície mundial), embora a sua baixa produção (39,8 milhões de hl de vinho e mosto), coloque este país no terceiro lugar, atrás da Itália e da França (MAPA 2007b), por volume de produção no mundo. No que se refere ao volume de exportação, e de acordo com a mesma fonte, a Espanha ocupa a terceira posição, com 14 milhões de hl, atrás de Itália e França, com valores de 17 e 14,5 milhões de hl, respectivamente. O mercado do vinho é um mercado muito concentrado, já que metades das importações mundiais são realizadas por apenas quatro países (Alemanha, Reino Unido, EUA e França MAPA, 2007b). Os vinhos de qualidade produzidos em regiões demarcadas (VQPRD)2 representam 35,5% do total da produção nacional de vinho e mosto, que, no ano de 2006, de acordo com a previsão do MAPA (2007a), ascendeu a 42,5 milhões de hl. O Regulamento (CE) 510/2006 do Conselho, de 20 de Março de 2006, sobre a protecção das indicações geográficas e das denominações de origem dos produtos agrícolas e alimentares, estabelece as definições de Denominação de Origem Protegida (DOP)3 e de Indicação Geográfica Protegida (IGP)4. Estas são as duas figuras de protecção que se 2 VQPRD é um termo da regulamentação comunitária que engloba quatro níveis do sistema de protecção de origem e a qualidade dos vinhos espanhóis (Vinhos de Qualidade com Indicação Geográfica, Denominação de Origem, Denominação de Origem Qualificada, e Vinhos de Pago) 3
Uma DOP é o nome de uma região, de um lugar determinado ou, em casos excepcionais, de um país, que serve para designar um produto agrícola ou um produto alimentar, originário da dita região, lugar ou país, cuja qualidade ou características se devem fundamentalmente ou exclusivamente ao meio geográfico com os seus factores naturais e humanos e cuja produção, transformação e elaboração se realizam nessa região geográfica delimitada.
4
Uma IGP é o nome de uma região, de um lugar determinado ou, em casos excepcionais, de um país, que serve para designar um produto agrícola ou um produto alimentar, originário da dita região, lugar ou país, que possui uma qualidade determinada, uma reputação ou outra
167
aplicam aos produtos agrícolas e alimentares diferentes do vinho e das bebidas espirituosas. Em Espanha são 57 as Denominações de Origem de Vinho registadas. Na tabela 5 apresenta-se a sua distribuição pelas comunidades autónomas. Tabela 5: Denominações de Origem de Vinhos registadas por Comunidades Autónomas em Espanha Zona
Denominação de Origem
Andalucía
Málaga
Montilla-Moriles Sierras de Málaga Condado de Huelva
Jerez-Xérès-Sherry, Manzanilla-San Lúcar de Barrameda
Aragón
Calatayud
Somontano
Illes Balears
Binissalem- Mallorca
Pla i Llevant
Canarias
Abona Lanzarote
Tacoronte-Acentejo Ycoden-Daute-Isora
Valle de la Orotava Valle de Güímar,
La Palma El Hierro
Castilla-La Mancha
Almansa Valdepeñas Jumilla
La Mancha Ribera del Júcar V.P. Guijosos,
Manchuela V.P. Dominio de Valdepusa
Méntrida Mondéjar
Castilla y León
Bierzo, Rueda
Ribera del Duero V.Q. Arlanza V.Q. Arribes
V.Q. Tierra del Vino de Zamora V.Q. Tierras de León
Toro Cigales
Cataluña
Alella Cataluña Cava
Conca de Barberà, Costeres del Segre Priorato
Pla de Bages Ampurdá-Costa Brava Montsant
Terra Alta Penedés Tarragona
C. Valenciana
Alicante
Utiel-Requena
Valencia
Cava
Extremadura
Cava
Galicia
Monterrey
Cariñena
Campo de Borja
Cava
Ribera del Guadiana Rías Bajas
La Rioja
Cava
Madrid
Vinos de Madrid
Ribeiro
Ribeira Sacra
Valdeorras
D.O.Co Rioja
Murcia
Bullas
Jumilla
Yecla
Navarra
Navarra
D.O.Co Rioja
Cava
País Vasco
Chacolí de Getaria, D.O.Co Rioja
Chacolí de Alava Cava
Chacolí de Vizcaya
Fonte: Elaboração própria a partir de MAPA, 2007b. V.Q. Vinho de Qualidade; V.P. Vinho de Pago; D.O.C ou Denominação de Origem Controlada
Segundo os dados do MAPA (2007a), a superfície total inscrita era de 680 472 ha em 31-07-2006 (um crescimento de 8,6% relativamente à campanha de 2004/05) para os VQPRD. O número total de viticultores inscritos era de 169 106, existindo 2 928 adegas característica que pode atribuir-se à sua origem geográfica, e cuja produção, transformação ou elaboração se realizam na zona geográfica delimitada.
168
engarrafadoras (67%) e 1 439 adegas não engarrafadoras (33%). As existências nas adegas são de 20.425.283 hl (3,8% inferior ao ano anterior), e o volume de vinho qualificado é de 13 370 530 hl (1,8% superior ao ano anterior). 55% dos vinhos são tintos, 16% brancos, 6% rosados, 16% espumosos e 7% vinhos licorosos. O comércio total de vinhos ascende a 11.077.109 hl (59% destinado ao comércio interno). Do vinho destinado às exportações, 85% é comercializado engarrafado, sendo o restante a granel. Por zonas económicas, 77% do comércio externo destina-se à União Europeia, 8% à Europa não comunitária, 7% aos EUA, e 8% aos restantes países.
5. CONCLUSÕES A União Europeia (UE) ocupa um lugar preponderante no mercado vinícola mundial, representando uma parte importante da superfície e da produção vitícola mundial. Os três principais países produtores são a França, a Itália e a Espanha, sendo este último o que tem maior superfície de plantação de vinha. A cooperação apresenta-se como uma das estratégias ao dispor do empresário agrícola, para melhorar e desenvolver a sua actividade que lhe permita obter vantagens nos planos económico, produtivo, comercial e social. De todos os sectores em que se pode expandir o fenómeno associativo através da formação de cooperativas, destaca-se o sector agrário, e em particular o sector vitivinícola. Um dos aspectos que mais se destaca no cooperativismo do vinho é a importante quota de mercado que as adegas cooperativas detêm no sector. Em alguns países mediterrânicos esta quota pode alcançar os 70%, como no caso de Espanha, ou 50%, como na França e em Portugal. No ranking das 25 primeiras cooperativas europeias, por volume de facturação, não se encontra nenhuma das adegas cooperativas de países europeus. Sem dúvida, as adegas cooperativas destacam-se essencialmente pelo número de sócios (três adegas cooperativas entre as 25 primeiras cooperativas europeias por número de sócios). O cooperativismo no sector vitivinícola destaca-se pela importante base social que representa, de tal modo que o número de sócios nas cooperativas deste sector é maior que no conjunto das restantes cooperativas agrárias. O facto de dispor de uma base social ampla, com um elevado número de associados, é importante para o
169
fortalecimento da cooperativa, favorece o crescimento interno da cooperativa e permite melhorar a sua capacidade negocial, ao concentrar um maior volume de oferta. As cooperativas do sector vitivinícola espanhol representam, em número de entidades, 19% do total de cooperativas agrárias registadas em Espanha. Não é o sector mais numeroso, visto ser superado pelos sectores hortofrutícola e dos azeites, mas é, porém, muito importante a quota de participação das adegas cooperativas em Espanha, que alcança 70% do total da produção de vinho comercializado. Ainda que o fenómeno das adegas cooperativas se encontre por toda a Espanha, sendo que existem cooperativas em praticamente todas as províncias, a sua distribuição não é homogénea e em determinadas regiões desenvolveu-se com maior intensidade (Castela La Mancha, a Catalunha e a Comunidade Valenciana). Destaca-se também que em algumas das comunidades autónomas o sector vitivinícola é o mais importante dentro do sector agrário. Assim, a relação das cooperativas vitivinícolas face ao total de cooperativas é de 77% em La Rioja. As zonas onde é maior o número de cooperativas são as que concentram também um maior número de sócios. A Espanha é o terceiro país do mundo em volume de produção de vinho e também o terceiro em volume de exportação. De toda produção nacional, 35,5% tem a denominação de vinhos de qualidade produzidos em regiões demarcadas (VQPRD). O Regulamento (CE) 510/2006 do Conselho que dita as normas sobre a protecção das indicações geográficas e das denominações de origem dos produtos agrícolas e alimentares permitiu o registo de 57 Denominações de Origem de vinho que cumprem os requisitos da norma. A competitividade no mercado vinícola é muito elevada, donde resulta a importância de os países produzirem vinhos de qualidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CCAE (2006); Confederación de Cooperativas Agrarias de España; Madrid; http://www.ccae.es. CCAE (2007a); Cooperativismo en cifras Confederación de Cooperativas Agrarias de España; Madrid; http://www.ccae.es. CCAE (2007b); Mapas cooperativos; http://www.ccae.es. CIRUELA, Antonio M., TOUS, Dolores (2005) “Cooperativas agrarias turísticas. Hacia un modelo integrador y sostenible de gestión rural”; Revista de Estudios Cooperativos (REVESCO); 86; 39-60; www.ucm.es/info/revesco.
170
COGECA (2005); Las cooperativas agrarias en Europa. Cuestiones fundamentales y tendencias; Confederación General de Cooperativas Agrarias de la Unión Europea; CCAE; http://www.ccae.es. GÓMEZ-LIMÓN, José A., SAN MARTÍN, Roberto, PEÑA, Nuria (2000); “El uso de internet en el comercio y el marketing vitivinícola. Análisis del sector en España”; Revista de Estudios Agrosociales y Pesqueros; 189; 119-156. GÓMEZ LÓPEZ, David (2004); Las cooperativas agrarias. Instrumento de desarrollo rural; Publicaciones Universidad de Alicante; Alicante. JULIÁ, Juan F. (2002); “El cooperativismo agrario y su contribución al desarrollo rural. Libro Blanco de la Agricultura y el Desarrollo Rural”; Ponencia presentada en Jornada autonómica C. Valenciana; Valencia. MAPA; Ministerio de Agricultura, Pesca y Alimentación (2007a); Datos de los vinos de calidad producidos en regiones determinadas. Campaña 2005/06. Dirección General de Industria Agroalimentaria y Alimentación. Secretaría General Técnica; 62; http://www.mapa.es. MAPA; Ministerio de Agricultura, Pesca y Alimentación (2007b) Estrategia vino 2010. Dirección General de Industria Agroalimentaria y Alimentación; 101; http://www.mapa.es. MELIÁ, Elena, JULIÁ, Juan F. (2006) La intercooperación: una respuesta a las actuales demandas del cooperativismo agrario; in XI Jornadas de investigadores en economía social y cooperativa; Santiago de Compostela, de 25 al27 de Outubro 2006. MOZAS, Adoración, BERNAL, Enrique, RODRÍGUEZ, Juan C. (2001); El cooperativismo oleícola y las nuevas tecnologías; in X Simposium Científico-Técnico Expoliva; Jaén, 24 a 26 de Maio de 2001. OIV; Organización Internacional de la Viña y el Vino 2006. Estadísticas del sector vitivinícola; http://www.oiv.org OLMEDA, Miguel, CASTILLO, Juan S., BERNABEU, Rodolfo, GARRIGÓS, Noelia (2001); Análisis estratégico de las bodegas acogidas a las D.O. en Castilla-La Mancha; in IV Congreso Nacional de economía agraria; Pamplona de 19 a 21 de Setembro 2001. Reglamento (CE) nº 510/2006 del Consejo, de 20 de Março de 2006 (sobre la protección de las indicaciones geográficas y de las denominaciones de origen de los productos agrícolas y alimentarios); DOCE. Diario Oficial de las Comunidades Europeas; de 31 de Março de 2006.
171
UM ESTUDO DA AFLUÊNCIA TURÍSTICA EM PORTUGAL E ESPANHA A STUDY OF TOURIST AFFLUENCE IN PORTUGAL AND SPAIN Ana Rita Garcia* (arita@esg.ipcb.pt) e Sara Morgado Nunes** (sara@esg.ipcb.pt)
RESUMO O Turismo é um sector importante na economia ibérica. Países como Portugal e Espanha fruem de uma localização geográfica privilegiada, com uma vasta oferta ao nível do património cultural, histórico e ambiental que, a juntar à facilidade de acesso e à estabilidade social e política, atrai anualmente milhares de turistas de determinados mercados turísticos internacionais. Neste trabalho procedemos a uma breve caracterização do turismo na zona referida, definindo os perfis das suas regiões-produto. Uma análise de índices de afluência turística por país de proveniência dos turistas permitiu detectar a existência de alguns factores comuns e específicos das regiões em estudo. Palavras-Chave: Turismo; Afluência Turística; Análise de Correspondências.
ABSTRACT Tourism is an important sector in the Iberian economy. Countries like Portugal and Spain enjoy a geographically-privileged location, with a vast offer of the cultural, historical and environmental heritage that, in addition to the ease of access as well as social and political stability, attracts thousands of tourists annually from certain international tourist markets. This paper will then briefly characterize tourism in Portugal and Spain, defining the profiles of their product regions. An analysis of rates of tourist affluence by country of origin of the tourists detected the existence of some common and specific factors of the regions studied. Keywords: Tourism; Tourist Affluence, Correspondence Analysis.
172 * Licenciada em Sociologia pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Professora-Adjunta da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico de Castelo Branco. ** Licenciada em Ensino da Matemática e Ciências da Natureza pela Escola Superior de Educação de Castelo Branco, possui o Mestrado em Matemática Aplicada pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Equiparada a Professora-Adjunta da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico de Castelo Branco.
173
1. INTRODUÇÃO O significado que atribuímos ao vocábulo turista é relativamente recente. Não se conhece a data exacta do aparecimento da palavra; aceita-se que a origem radique nas viagens que os ingleses, oriundos de camadas sociais mais elevadas, se habituaram a realizar no continente europeu, na segunda metade do século XVIII, para complementarem a sua educação. Denominava-se Grand Tour ou, mais tarde, apenas Tour. As pessoas que empreendiam esta viagem Tour - eram chamadas de Tourists. A viagem turística integrava, portanto, o desejo de conhecer as particularidades e a cultura de outros povos, as suas tradições, o exotismo, a descoberta de novas paisagens, da natureza e do carácter histórico de aldeias, vilas e cidades (Cunha, 2003). Mathieson & Wall (1982) definem turismo como o movimento temporário de pessoas para destinos fora dos seus locais normais de trabalho e de residência, as actividades desenvolvidas durante a sua permanência nesses destinos, bem como as facilities criadas para satisfazer as suas necessidades. Esta definição enfatiza a complexidade da actividade turística e deixa perceber, implicitamente, as relações que envolve. Embora as referências ao turismo evidenciem, normalmente, o turismo internacional e seja esta dimensão a que vem à mente quando se fala em turismo, o facto é que os movimentos turísticos no interior de cada país são, regra geral, superiores aos fluxos internacionais. O turismo passa, actualmente, por um processo de reestruturação, gerado pela procura de soluções de entretenimento alternativas. Trata-se da procura de viagens mais curtas, mais individualizadas (pequenos grupos), voltadas para o contacto com a natureza (turismo ecológico) e com as comunidades locais (turismo rural e cultural). Segundo a OMT (2003), enquanto o turismo de massas cresce a uma taxa anual média de 5%, o turismo segmentado (alternativo) mantém uma taxa anual de crescimento de 10%, nos últimos anos. Este novo perfil de procura turística exige dos operadores e dos gestores de áreas receptoras a criação de produtos especializados que permitam uma vivência mais activa aos interessados, e que favoreçam os contactos directos com os habitantes locais. O turista deixa, assim, de ser o invasor e passa a ser o Convidado para o habitante do lugar; com formações e informações culturais distintas, ambos apostam na troca mútua de experiências.
174
Com este trabalho pretendemos caracterizar sumariamente as regiões de Portugal e de Espanha, bem como efectuar uma análise da afluência turística ao mercado ibérico. Assim, numa primeira fase elaborámos uma revisão bibliográfica sobre a procura turística em Portugal e Espanha; descrevemos os principais destinos em Portugal e Espanha recorrendo a guias turísticos impressos e disponíveis online. Numa segunda fase, procedemos à análise de dados da afluência turística com base nas técnicas da Estatística Descritiva e com recurso à análise de correspondências.
2. A PROCURA TURÍSTICA EM PORTUGAL E ESPANHA A Península Ibérica tem, neste domínio, capacidade competitiva. A acessibilidade é fácil, a estabilidade política e social é real, está afastado o temor de surtos epidémicos; acresce que não possui factores desmotivadores de turismo. Portugal e Espanha (Sul e Centro) têm períodos de exposição solar, por ano, dos mais elevados da Europa. A qualidade do património ambiental e natural é um factor de dinamização da criação de expectativas. A riqueza do património histórico e cultural é atractiva em ambos os países. Na verdade, os fluxos turísticos estão relacionados com o comportamento psicossocial do conjunto de turistas. Este comportamento é condicionado por: a) sazonalidade; b) destinos (núcleos receptores de turismo); c) segmentação da população e volume demográfico; d) tipo de oferta e qualidade dos serviços. As correntes turísticas podem modificar o comportamento, segundo mudanças ou oscilações conjunturais motivadas pela informação e persuasão da publicidade e do marketing dos destinos. Sabemos que os operadores turísticos desempenham um papel decisivo na “orientação” dos fluxos turísticos; através de políticas promocionais, dispõem da capacidade de potenciar ou condicionar um destino. Portugal está ainda muito dependente dos operadores turísticos. Uma análise comparativa dos catálogos promocionais dos destinos concorrentes – Espanha, Grécia e Itália - destinados ao Reino Unido e à Alemanha, efectuada pela Confederação do Turismo Português, em 2005, mostra que, quando se referem a Portugal, os operadores Neckermann, Tui, Thomas Cook, Olimar e Cadojan apenas indicam o Algarve, a Madeira e, pontualmente, os Açores e Lisboa. Em termos quantitativos, a oferta do destino turístico Espanha é esmagadora, quando comparada a Portugal (Confederação do Turismo Português, 2005).
175
Acresce que a duração da estada de um turista, numa dada região ou país, depende do objectivo da viagem, das condições existentes, das características do local visitado, dos preços praticados, da duração das férias e das motivações. Considerando um determinado turista, a sua permanência num país ou numa localidade decorrerá de condições susceptíveis de proporcionar uma estada atraente e agradável. Este aspecto é importante porquanto as receitas decorrentes do turismo dependem mais da duração da estada do que do número de turistas. A capacidade de retenção do turista numa região depende, pois, de múltiplos factores locais: uns ligados às condições naturais (paisagem, praias, termas, neve); outros aos investimentos realizados (infra-estruturas, alojamento, diversões, parques de atracção); e alguns emergem da capacidade criativa local (manifestações culturais, informações sobre a região, organização de actividades para ocupação de tempos livres). Partindo dos pressupostos enunciados, pretendemos com este estudo definir sinteticamente os perfis das regiões-produto de Espanha e Portugal, perceber quais são as principais atracções turísticas, estabelecer comparações entre as ofertas promovidas, averiguar a existência de factores comuns e específicos das regiões em estudo, avaliar a preferência demonstrada por nacionais e estrangeiros relativamente a regiões seleccionadas para estadas de lazer.
3. O TURISMO EM ESPANHA Espanha apresenta uma vasta oferta turística. Seguindo roteiros existentes no mercado (American Express, 2007; Turismo de España 2008, entre outros), de forma sumária, indicamos aspectos mais valorizados pelos autores dos referidos guias. Assim, a Andalucía é a região mais diversificada de Espanha. Na Costa do Sol, as praias atraem quem procura mar e sol. Já a área de Almería é a mais árida de toda a Europa. Os picos mais altos da Espanha continental estão na Sierra Nevada; a temperatura é muito baixa no Inverno, sendo acompanhada de precipitação abundante em forma de neve. Denominada por muitos como “a ponte entre continentes”, a “porta da Europa”, o “ponto de encontro entre mares”, foi palco de vivência de homens desde a pré-história até à actualidade. Os sucessivos invasores deixaram as marcas na região; os Romanos construíram cidades como Córdoba e Itálica; os Mouros reconstruíram e
176
aperfeiçoaram, deixando monumentos como a Mesquita de Córdoba e o Palácio de Alambra, em Granada. O mundo dos touros, do flamengo, do xerez, da literatura, da ópera (Carmen, el Barbero de Sevilla), são pilares de identidade na Andalucía. Aragón incorpora, também, uma grande variedade de cenários, desde os picos cobertos de neve do Parque Nacional de Ordesa, nos Pirinéus, até às planícies secas do interior. As cidades de Zaragoza e Teruel contam com monumentos mudéjares e um vasto património que atrai turistas. As Asturias são uma província e um principado, sob o patrocínio do herdeiro do trono de Espanha. Os cumes íngremes oferecem oportunidades para o alpinismo e para passeios pedestres; algumas áreas podem ser exploradas de carro ou de bicicleta. A costa oferece praias arenosas, para banhos. As principais cidades são Oviedo, capital da província, Gijón, Avilés, Langreo e Mieres, onde se concentra a maior parte da população, contrastando com as áreas de "vazio humano", que correspondem às regiões montanhosas. A Cantabria, cuja capital é Santander, situa-se no norte da Península Ibérica. Destaca-se uma ampla oferta cultural, sobretudo no Verão. Museus, feiras taurinas, casino de jogos oferecem o ócio que visitantes procuram. O turismo rural é cada vez mais procurado, pela busca de contacto com a natureza. Encontramos numerosas aldeias que mantêm a paisagem, as tradições, os costumes, em suma, uma identidade rural. A comunidade de Castilla-La Mancha é herdeira da região histórica de Castilla la Nueva. Visitar as suas cidades e povos, apreciar monumentos, saber a história, saborear a gastronomia tradicional ou participar em festas populares são atractivos desta comunidade. O Românico do norte de Guadalajara, a rota de D. Quijote de la Mancha, as Lagunas, as covas e abrigos pré-históricos de Los Casares são atractivos da região. Esta província oferece, ainda, a possibilidade de usufruir o turismo de saúde: ali se encontram os balneários de estâncias termais, antigas Casas de Baños, hoje convertidas em alojamentos rurais e centros spa. Os reinos de Castilla y León desempenharam um papel histórico importantíssimo na Idade Média e na Reconquista. Desde esta época até aos nossos dias, o Homem deixou mostras da arte e cultura no território; Castilla y León herdou um conjunto histórico e artístico que apreciamos nas ruas, nas cidades (Salamanca, Burgos). Os castelos revelam o passado histórico desta comunidade; omnipresentes na paisagem, singulares na localização, plantados por toda a geografia regional, não há monte que não mostre imponentes fortificações que
177
tornaram respeitáveis os senhores de Castilla y León. As grandes celebrações religiosas da Semana Santa convertem-se em extraordinários museus de arte. A Cataluña situa-se a nordeste da Península Ibérica. Barcelona é a capital. Reconhecida como nação, como acontece com a Galicia, a Andalucía e o País Vasco espanhol, não sendo independente, tem bastante autonomia. Possui um governo, uma cultura diferenciada e reconhecida e uma língua própria: o Catalão. Os principais destinos na Cataluña são: Barcelona, com um património histórico-cultural relevante, as praias da Costa Brava e Costa Dorada, estações de esqui. Os concertos, os festivais e as celebrações populares enchem as localidades de animação. As habaneras, canções tradicionais que recordam as viagens de marinheiros de épocas passadas, podem ouvir-se nas noites de Verão. A Extremadura tem um passado histórico partilhado com Portugal. Um sem fim de demonstrações folclóricas, nascidas em tempos ancestrais, pode ser apreciada nesta comunidade: o fim das colheitas e a Quaresma abrem os principais períodos de feiras e festas. A Extremadura é uma amálgama de climas, costumes, de edifícios que enformam o património histórico-artístico. Nas Islas Canarias encontram-se praias de fina areia, que gozam de uma temperatura primaveril durante todo o ano. São compostas por sete ilhas (Gran Canaria, Fuerteventura, Lanzarote, Tenerife, La Palma, Gomera e Hierro) e sete ilhas menores. Tenerife é a mais extensa (2.059 km²); aí se encontra, o Parque Nacional del Teide, o Pico del Teide, com 3.718 metros de altitude, o mais alto de Espanha. As Islas Baleares estão localizadas no Mar Mediterrâneo. As principais são: Mallorca, Menorca, Cabrera, as islas Pitiusas, Ibiza e Formentera. A ilha Mallorca, com quase 80 quilómetros de extensão, sobressai pela sua diversidade. As praias brancas dotadas de todos os serviços, com águas claras e límpidas, são ideais para o banho e para a prática de actividades náuticas. O golfe tem também um grande protagonismo; existem numerosos campos adaptados a todos os níveis. A boa comunicação aérea e marítima permite fazer escapadinhas a partir de Mallorca a outras Islas Baleares, como Ibiza e Menorca. A Galicia, comunidade autónoma situada no noroeste de Espanha, com estatuto de nacionalidade histórica, é célebre tanto pelas suas paisagens, verdes nos campos e prateadas no mar, como pelas edificações que vão desde as pitorescas casas até às jóias
178
monumentais. O Cabo de Finisterra é atracção para muitos turistas. O interior é essencialmente montanhoso e no litoral, sulcado por numerosas rias, sente-se a acção moderada do mar; as Rías Baixas são a área mais quente do Norte. Madrid, localizada no centro do país, é a capital de Espanha; caracteriza-se por uma vida cultural activa; bibliotecas, universidades, museus, exposições e todo o tipo de actos culturais enriquecem a vida na cidade. O ócio está garantido através de uma ampla oferta de teatros, óperas, zarzuelas e concertos, ao longo do ano. As festas populares e as feiras taurinas são outros aspectos atractivos a ter em conta. A região de Murcia, comunidade autónoma, tem a capital em Murcia, ainda que Cartagena seja a capital legislativa. O folclore combina manifestações religiosas de larga tradição com festejos de corte laico e raiz pagã. A costa, com cerca de 200 praias, nos mares Mediterráneo e Mar Menor, converteu-se numa das mais importantes concentrações turísticas da Costa Cálida. A Comunidad Foral de Navarra tem como capital Pamplona. O artesanato e o folclore são muito ricos, manifestando-se em todas as festas populares. A de San Fermín é a mais conhecida internacionalmente, que se realiza em Pamplona entre o 6 e o 14 de Julho, ou os Carnavais Navarros, com os seus típicos Zanpantzarrak. O País Vasco possui "nacionalidade histórica" reconhecida pela Constituição Espanhola; está dividido em três províncias: Álava (Araba), Vizcaya (Bizkaia) e Guipúzcoa (Gipuzkoa). Além das montanhas com paisagens maravilhosas, os atractivos desta comunidade prendem-se com a possibilidade de praticar desportos relacionados com a montanha. A riqueza da cultura tradicional deriva da sua situação estratégica a partir da qual os marinheiros bascos alcançaram as longínquas costas da Terra Nova e da Gronelândia. O País Vasco possui um folclore muito peculiar, visível nas festas populares e nos desportos autóctones, como o conhecido jogo da Pelota Vasca. A Comunidad Valenciana, banhada pelo mar Mediterrâneo, integra as províncias de Alicante, Castellón e Valencia. As festas, como Las Fallas, cuja origem se perde no tempo, ou as Fiestas de Moros y Cristianos, declaradas de interesse turístico internacional, que comemoram as batalhas que foram tão frequentes neste litoral, são ofertas turísticas incontornáveis. O artesanato, rico e abundante nas suas manifestações, pode ser apreciado em Feiras como La Mostra d’Artesanía de Altea.
179
Em suma, a oferta é múltipla e contempla um leque de opções susceptíveis de interessar turistas das mais variadas classes sociais e com os mais diversos interesses.
4. TURISMO EM PORTUGAL Do ponto de vista promocional, existem diversas regiõesproduto (áreas promocionais), que apresentam características homogéneas de oferta. Pela Região Norte, solares da antiga nobreza abrem as portas ao turismo de habitação. Entre as atracções da Região Norte, destaca-se a cidade do Porto, que deu o nome a Portugal. Possui um centro histórico com um conjunto arquitectónico de excepcional valor e é Património da Humanidade. Destaca-se, ainda, a cidade de Guimarães, conhecida como o berço da nação; a impressionante paisagem desenhada pelo rio Douro, inscrita também no Património da Humanidade, uma gastronomia única, a par do Vinho do Porto, são ofertas que muitos turistas escolhem. Também o Parque Nacional da Peneda-Gerês é lugar de paisagem deslumbrante e de práticas desportivas alternativas. No Centro, os castelos de fronteira são monumentos que ajudam a compreender a cultura e a vivência dos antepassados. Na sua maioria classificados como monumentos nacionais, são, maioritariamente, construções dos séculos XI, XII e XIII; tiveram vocação militar de defesa e permitiram a consolidação do território nacional. A região, de história rica e diversa, ostenta marcas culturais específicas. Nas grandes cidades, são os monumentos que falam dos grandes momentos da evolução histórica do país. Os centros históricos das cidades, as Sés de Aveiro, Coimbra, Viseu e Guarda chamam turistas. As colecções de arte dos museus, como o de Aveiro, instalado no Convento de Jesus, o Museu Grão Vasco, em Viseu, são espaços que convidam à visita. Em Castelo Branco, o Jardim do Paço chama visitantes. Conímbriga expõe 2000 anos de história no preservado conjunto de ruínas romanas. Coimbra é o local para conhecer os amores proibidos de Pedro e Inês, na Quinta das Lágrimas. Esta cidade é, aliás, das mais famosas do país; a Universidade, as tradições estudantis, o Fado de Coimbra povoam o imaginário nacional e interessam visitantes. A Serra da Estrela oferece óptimas oportunidades para montanhismo e escalada. Subir aos 1991 metros na Primavera, percorrer a pé 375 km de trilhos entre lagoas graníticas e vales
180
profundos, tal como poder fazer rappel, slide ou BTT são actividades convidativas. Lisboa, situada à beira do Tejo, é uma das poucas capitais europeias com rio e mar. A cidade desde sempre se abriu, acolhedora, às muitas chegadas e partidas; teve como ponto alto a época dos Descobrimentos e foi das praias do Tejo que partiram caravelas e naus para chegar por mar até à distante Índia. À beira rio, dois grandes monumentos, entre outros, assinalam este período: a Torre de Belém e o Mosteiro dos Jerónimos. Após o terramoto de 1755, a Baixa Pombalina foi reconstruída, mas muitos dos bairros medievais permanecem. A pé, de eléctrico, de barco num passeio no Tejo, ou mesmo de metro, são meios possíveis para descobrir a diversidade cultural que Lisboa oferece. Em Sintra, os passeios de coche, os mistérios da Serra e da Quinta da Regaleira e a riqueza de um património arquitectónico único, de que o Palácio da Pena é ex-libris, convidam o visitante a permanecer nestas paragens. Situada junto ao mar, Cascais tornou-se, a partir da 2ª metade do séc. XIX, uma estância de veraneio preferida pela aristocracia. O Alentejo possui planícies a perder de vista que combinam sol e calor. No interior, a planura, as searas; no litoral, praias selvagens. O litoral reúne agradáveis praias concorridas e outras em estado selvagem; entre a foz do Sado e o Algarve, um paraíso natural de areia e mar avança por Porto Covo, Milfontes, Almograve e Zambujeira do Mar. Mas nem só de praia vive esta costa. Há muito mais para fazer: surf, mergulho. Passeie-se pelos castelos e aldeias do Alentejo. O pretexto para a viagem é visitar aldeias e pequenas vilas que ainda mantêm costumes tradicionais e produtos regionais de qualidade. O Algarve é conhecido pelo agradável clima, ao longo de todo o ano, pela orla costeira repleta de praias fabulosas que convidam aos desportos náuticos, pelos campos de golfe e pelas sofisticadas estruturas hoteleiras. Nos Açores, em pleno Atlântico, a natureza encontra-se, em alguns espaços, em estado puro, de vegetação intocada. São nove os lugares de aventura que convidam ao mergulho, ao montanhismo e à observação da fauna marinha. Na Ilha do Faial, passam mais de 24 espécies, desde a baleia azul, o maior animal da Terra, aos cachalotes e golfinhos. É denominada "ilha azul"; as hortênsias prolongam os caminhos até ao mar. A capital, Horta, tem uma marina, ícone para quem cruza o Atlântico; é conhecida entre os navegantes de todo o mundo. A pesca de alto mar, o mergulho, a espeleologia, a escalada, o parapente, o rapell ou voos de ultraleve são algumas das actividades que pode praticar nos Açores. Ali se encontra, também, um rico
181
património histórico; sobressaem os templos e as artes de baleação. Na Terceira, Angra do Heroísmo é Património Mundial graças ao centro histórico renascentista. Merecem atenção bonitas casas de arquitectura tradicional, a Sé, a Igreja maneirista de Nossa Senhora da Guia e o Museu de Angra, bem como o Palácio dos Capitães-Generais. A Madeira é propícia ao turismo activo, oferecendo desportos de aventura na terra e no mar: asa delta, parapente, mergulho, surf, rappel, trekking e passeios pedestres que possibilitam o contacto directo com a natureza. Detém um património natural de elevada importância científica, destacando-se a floresta indígena denominada Laurissilva, que foi reconhecida pela UNESCO como Património Natural Mundial (American Express 2005; Turismo de Portugal 2008, entre outros). A análise sintética que efectuámos das diferentes regiões turísticas de Portugal e de Espanha permitiu verificar que são múltiplos os tipos de turismo que a Ibéria proporciona. A semelhança entre os dois países é visível, no âmbito da oferta turística. A maior diferença, óbvia, situa-se na dimensão e na promoção dos destinos. Em suma, de acordo com os roteiros consultados, percebemos que os autores têm como objectivo oferecer uma descrição das diferentes regiões/comunidades que motive a deslocação/estada nos vários locais. Reconhecemos, também, que o turista recorre habitualmente a guias para programar as suas viagens. Assim, poderá estabelecer-se, depois, um pacto entre a obra e aquele que visita ou gerar-se antagonismo entre autor e leitor pelo facto de as expectativas serem defraudadas. Qual é, então, a proveniência geográfica dos turistas? Que regiões escolhem? Quais as mais visitadas?
5. METODOLOGIA As medidas estatísticas da procura turística podem ser avaliadas, fundamentalmente, através de: a) entradas pelas fronteiras; b) registo de hóspedes nos meios de alojamento; c) gastos efectuados pelos visitantes. Neste estudo, optámos pelo indicador “dormidas em estabelecimentos hoteleiros”, por permitir avaliar quer os movimentos turísticos dos não residentes (turismo receptor), quer o dos residentes (turismo doméstico); acresce que o registo do turista é feito pelo país de residência.
182
Recorremos, assim, aos síitios do Instituto Nacional de Estatística Português (http://www.ine.pt) e do Instituto Nacional de Estatística Espanhol (http://www.ine.es) e analisámos o número de turistas que visitaram Portugal e Espanha (por número de dormidas nos estabelecimentos hoteleiros), durante o ano de 2006, segundo a proveniência geográfica: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Países Baixos, Polónia, Reino Unido, República Checa, Suécia, Outros Países da União Europeia (UE), Outros Países da Europa e Estados Unidos da América (EUA).
6. RESULTADOS OBTIDOS A análise estatística dos dados realizou-se com a versão 15.0 do software SPSS. Tabela 1: Número de turistas que visitaram Portugal e Espanha (por número de dormidas nos estabelecimentos hoteleiros) durante o ano de 2006, segundo o país de proveniência. País de Proveniência
Portugal
Espanha
Total
Portugal
12.350.000
1.248.932
13.598.932
Espanha
3.194.900
47.444.139
50.639.039
Alemanha
3.862.800
7.106.809
10.969.609
Áustria
325.000
287.056
612.056
Bélgica
556.400
1.015.059
1.571.459
Dinamarca
490.000
322.586
812.586
Finlândia
371.500
173.624
545.124
França
1.241.100
3.387.318
4.628.418
Irlanda
967.300
533.470
1.500.770
Itália Países Baixos Polónia Reino Unido
953.300
2.483.812
3.437.112
1.795.300
1.212.412
3.007.712
167.500
192.103
359.603
7.257.600
7.979.996
15.237.596
República Checa
70.400
154.560
224.960
Suécia
553.100
467.787
1.020.887
Outros Países - UE
236.800
228.016
464.816
1.042.400
736.685
1.779.085
623.700
1.595.831
2.219.531
Outros Países - Europa EUA
Em 2006, Portugal e Espanha receberam mais de 112 milhões de visitantes provenientes dos países atrás referidos; os espanhóis,
183
seguidos dos ingleses, portugueses e alemães, são os mais representativos no que respeita à afluência turística (Tabela 1). Uma primeira análise descritiva dos índices de afluência turística, por região, permitiu destacar aspectos importantes. A observação dos valores percentuais mais representativos, no que respeita à proveniência dos turistas que visitam Portugal, evidencia que, nalgumas zonas, a afluência turística dominante é a de portugueses. Assim, 75,3% dos turistas que visitam o Alentejo, 67,7% dos visitantes da região Centro, 63,0% dos que visitam a região Norte e 44,7% dos turistas que se deslocam aos Açores são portugueses. Aos turistas espanhóis deve-se 13,5% da afluência turística na região Norte, 10,8% na região Centro e 7,3% no Alentejo. No caso do arquipélago dos Açores, os visitantes dinamarqueses e suecos representam, respectivamente, 12,1% e 9,5% da afluência turística. Lisboa recebe 32,4% de visitantes portugueses, 18,2% de turistas espanhóis; também os visitantes alemães (7,5%), italianos (6,7%), ingleses (6,5%) e franceses (6,0%) apresentam uma expressão importante no total dos que visitam a capital portuguesa. Por outro lado, a maior parte dos turistas que optam pelo Algarve são provenientes do Reino Unido (36,3%), Portugal (23,9%), Alemanha (11,4%) e Países Baixos (8,9%). Também os visitantes do arquipélago da Madeira são sobretudo ingleses (25,2%) e alemães (24,8%); os turistas nacionais constituem 14,4% da afluência. Relativamente ao turismo em Espanha, a afluência é, também, essencialmente dominada pelos espanhóis, que representam, para todas as regiões consideradas (excepção das Baleares, Canarias, Andalucía e Cataluña), mais de 70% dos visitantes. É nas ilhas Baleares e Canarias que os turistas estrangeiros assumem maior importância; destacam-se os visitantes alemães, que representam respectivamente 38,4% e 25,2%, e os ingleses que se situam nos 25,3% e 20,3%, respectivamente. Além dos 66,7% de visitantes espanhóis, a Andalucía recebe 9,5% de turistas ingleses e 6,4% de alemães. A Cataluña é também visitada maioritariamente por espanhóis (48,8%); recebe ainda 11,4% de turistas ingleses, 10,8% de franceses e 6,2% de italianos. Regiões como Aragón, Asturias, Cantabria, Castilla León y Castilla-La Mancha caracterizam-se pela afluência dos turistas nacionais; representam respectivamente 87,2%, 91,4%, 88%, 84,8% e 88,6% do turismo nestas regiões. Na Comunidad Valenciana, o turismo nacional tem um peso de 72,7%; os visitantes ingleses representam 13,6% do turismo nesta região. Na Extremadura e Galicia, os visitantes espanhóis representam
184
89,7% e 84,6%, respectivamente, da afluência turística, contribuindo os portugueses em 5,8% para o turismo na Galicia. Além dos 82,8% de espanhóis, Navarra recebe 5,1% de turistas franceses e 3% de alemães. A capital espanhola é visitada por turistas das mais variadas proveniências; no entanto, 70,5% desta afluência é constituída pelos próprios espanhóis, registando-se 5,7% de turistas dos EUA e 4,6% do Reino Unido. Os resultados obtidos indicam que os turistas espanhóis constituem 45% de toda a afluência turística em Portugal e Espanha, os portugueses representam 12,1%, os ingleses 13,5% e os alemães 9,7%. Analisando agora as regiões portuguesas e espanholas cuja afluência tem mais peso no turismo ibérico, constata-se que: a) dos turistas portugueses, 24,5% prefere o Algarve; 17,5% opta por visitar a região de Lisboa; 16,9 % escolhe o Norte; 16,9% selecciona o Centro de Portugal e 6% viaja pelo arquipélago da Madeira; demonstram, pois, preferência pelo turismo interno ou doméstico; b) os turistas espanhóis dão preferência à região da Andalucía (19,1%), Cataluña (12,5%), Comunidad Valenciana (10,4%), Madrid (10,3%), às Islas Canarias (4,6%) e Baleares (3,3%); c) os ingleses optam, preferencialmente, pelo Algarve (33,1%), Baleares (13,5%), Madeira (9,4%), Cataluña (9,7%) Andalucía (9,0%), Canárias (8,7%) e Comunidad Valenciana (6,4%); d) os alemães visitam prioritariamente as ilhas Baleares (28,4%), as Islas Canarias (15,1%), o Algarve (14,5%) e o arquipélago da Madeira (12,8%). As regiões mais representativas no turismo ibérico são a Andalucía (12,8%), o Algarve (12,4%) e a Cataluña (11,5%). Ao conjunto de dados em análise, aplicou-se a técnica de Análise de Correspondências. Na representação, o primeiro eixo recolhe 51,9% da variabilidade dos dados e o segundo eixo 27,8%, o que perfaz um total de 79,8%, indicando que é possível obter uma representação bidimensional com uma boa qualidade. O Teste do QuiQuadrado para a independência (p-value<0,001) indica a existência de uma relação clara entre as regiões portuguesas e espanholas visitadas pelos turistas e o país de proveniência. Na projecção das regiões em estudo no espaço bidimensional (Fig.1), as contribuições relativas dos pontos à inércia das dimensões indicam que o Algarve é a categoria que mais contribui para o posicionamento do eixo 1 (com uma contribuição relativa de 0,212), sendo as Islas Baleares a que mais contribui para o posicionamento do eixo 2 (com uma contribuição relativa de 0,263), seguidas do Centro e
185
do Norte de Portugal (com contribuições relativas de 0,175 e 0,151, respectivamente). Assim, o eixo 1 parece opor o turismo português ao turismo espanhol, enquanto o eixo 2 opõe um turismo caracterizado pela busca de sol e praia, típico do Algarve, Madeira, Baleares e Canarias, a um turismo de natureza mais cultural, que as restantes regiões oferecem. 2
Alentejo Centro Norte
1 Açores
Dimensão 2
Lisboa
Castilla la Mancha Galicia Aragón Asturias Cantabria Navarra Murcia Andalucía Comunidad Valenciana
Castilla y Léon País Vasco Madrid 0
Cataluña Algarve
Madeira
Canarias
-1 Baleares
-2 -2
-1
0
1
Dimensão 1
Fig.1: Representação das regiões em estudo no espaço bidimensional.
1,5 Portugal
1,0
EUA
Dimensão 2
0,5 Polónia
Espanha
França
Outros Países - UE Itália Outros Países - Euro Dinamarca Bélgica
0,0
Países Baixos Irlanda Áustria República Checa Finlândia Suécia Reino Unido
-0,5
-1,0 Alemanha
-1,5 -2,0
-1,5
-1,0
-0,5
0,0
0,5
1,0
Dimensão 1
Fig.2: Representação dos países de proveniência dos turistas em estudo no espaço bidimensional.
186
É também importante observar as contribuições relativas das dimensões à inércia dos pontos, que traduzem não só a quantidade de variância de cada categoria que é explicada por cada dimensão, como dão também indicação acerca da qualidade de representação dos pontos na solução final. Assim, associadas ao eixo 1 temos a Andalucía (com uma contribuição relativa deste eixo de 0,981) e as regiões de Aragón, Asturias, Cantabria, Castilla y León, Castilla La Mancha, Comunidad Valenciana, Murcia, Navarra, País Vasco, La Rioja e Ceuta y Melilla (todas elas com contribuições relativas do eixo 1 superiores a 0,8). Ao eixo 2 surgem sobretudo associadas as ilhas Canarias e Baleares (com contribuições relativas deste eixo de 0,862 e 0,708, respectivamente). Por sua vez, na projecção dos países de proveniência em estudo no espaço bidimensional (Fig.2), as contribuições relativas dos pontos à inércia das dimensões indicam que Espanha e Portugal são as categorias que mais contribuem para o posicionamento do eixo 1 (com contribuição relativas de 0,423 e 0,415, respectivamente), sendo também Portugal, Alemanha e Reino Unido que mais contribuem para o posicionamento do eixo 2 (contribuição relativas de 0,389, 0,303 e 0,210, respectivamente). Assim, o eixo 1, parece opor os turistas portugueses aos turistas espanhóis, enquanto o eixo 2 evidencia o facto de os principais clientes do turismo português serem provenientes da Alemanha e Reino Unido. Assim, associados ao eixo 1 temos sobretudo os turistas espanhóis (com uma contribuição relativa deste eixo de 0,926) e os portugueses (com uma contribuição relativa deste eixo de 0,658). Ao eixo 2 surgem sobretudo associados os alemães (com uma contribuição relativa deste eixo de 0,642) e os ingleses (com uma contribuição relativa deste eixo de 0,541). A representação conjunta das regiões e dos países de proveniência dos turistas em estudo no espaço bidimensional (Fig.3) sugere que o Alentejo, o Centro e o Norte de Portugal se diferenciam. Em particular, estas regiões caracterizam-se por uma afluência turística sobretudo nacional. Também no arquipélago dos Açores os visitantes nacionais assumem uma representação importante, em termos de afluência turística, ainda que outros países europeus constituam mercados emissores de relevo na região açoriana. No Algarve, Ilhas da Madeira, Canarias e Baleares encontra-se um tipo de turismo semelhante, apreciado pelos turistas do Reino Unido, Irlanda, Alemanha, Finlândia, Países Baixos, Suécia, Áustria e República Checa.
187
2
Alentejo Centro Norte Portugal
1 Açores
Dimensão 2
Lisboa
Castilla y Léon EUA Galicia Asturias Castilla la Mancha País Vasco Polónia Aragón Cantabria França Outros Países - UE Madrid Espanha Murcia Outros Países - Euro Itália Comunidad Valenciana Dinamarca Andalucía Bélgica Cataluña Países Baixos Suécia Áustria Algarve República Checa Finlândia Irlanda Canarias Madeira
0
Localização Proveniência
Reino Unido Alemanha
-1
Baleares
-2 -2
-1
0
1
Dimensão 1
Fig.3. Representação conjunta das regiões e dos países de proveniência dos turistas em estudo no espaço bidimensional.
As regiões da Cataluña, Andalucía, Comunidad Valenciana, bem como as capitais portuguesa e espanhola, distinguem-se das restantes pela diversidade de turistas que recebem, provenientes dos mais variados países. Por sua vez, Aragón, Asturias, Cantabria, Castilla y León, Castilla-La Mancha são regiões visitadas sobretudo por espanhóis, ou seja, o turismo interno assume grande importância.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS É possível identificar a existência de um eixo comum ao desenvolvimento do Turismo em Portugal e Espanha. Como factores que favoreceram a procura, destacam-se aspectos como as condições naturais e climatéricas, o elevado grau de competitividade em termos de preços, o sentido de hospitalidade, a peculiaridade das culturas e as acessibilidades. Na verdade, a afluência turística dominante na Ibéria é
188
maioritariamente portuguesa e espanhola. Todavia, a Península atrai visitantes doutros países, de acordo com os interesses e necessidades dos mesmos. Em Espanha desenvolve-se, hoje, um turismo de massas, mais forte e mais sólido, enquanto actividade económica, do que o dominante no contexto português. Em Portugal vive-se o desafio da diversificação. O seu equilíbrio e o seu crescimento sustentado dependem fortemente de factores como: a diversificação de mercados; o desenvolvimento de produtos e de motivações, a par da adopção de estratégias empresariais baseadas na inovação e na divulgação; o desenvolvimento e na resposta às motivações e necessidades dos clientes. Actualmente, as vulnerabilidades mais significativas no turismo português decorrem da excessiva concentração: a) em termos de mercado de origem (mais de metade das dormidas de estrangeiros na hotelaria global provém do Reino Unido e da Alemanha e cerca de dois terços de dormidas em todos os meios de alojamento provêm destes dois países e da Espanha); b) territorial (só o Algarve detém mais de 40% da oferta turística nacional e, em conjunto com a Costa de Lisboa, absorve 70% de todas as dormidas de estrangeiros); c) em atractivos e motivações (o sol e o mar são a base essencial de oferta; aposta-se fundamentalmente nas motivações que estão na origem da procura do sol e do mar). Algumas regiões portuguesas, embora disponham de condições naturais e culturais susceptíveis de reterem os visitantes, apesar de serem atravessadas por importantes correntes turísticas, permanecem meras zonas de passagem; não possuem equipamentos adequados nem revelam capacidade para criar condições mínimas de retenção.
BIBLIOGRAFIA American Express (2007); Guia American Express Espanha; Dorling Kindersley; Civilização Editores; Lisboa. American Express (2005); Guia American Express Portugal; Dorling Kindersley; Civilização Editores; Lisboa. Confederação do Turismo Português (2005); Reinventando o Turismo em Portugal: estratégia do desenvolvimento turístico português no 1.º quartel do século XXI; Confederação do Turismo Português; Lisboa. Cunha, L. (2003); Introdução ao Turismo, Verbo, Lisboa. Mathieson, A. & Wall, G. (1982); Tourism: Economic, Physical and Social Impacts; Longman; London,.
189
Organização Mundial de Turismo (2003); Guia de desenvolvimento do turismo sustentável; Porto Alegre: Bookman. Turismo de Portugal, Destinos. Retirado a 20 de Janeiro de 2008 de http://www.visitportugal.com/Cultures/pt-PT/default.html Turismo de España, Comunidades Autónomas. Retirado a 20 de Janeiro de 2008 de http://www.spain.info/TourSpain/Destinos/mapas/sus+Comunidades+Autonomas.htm?Lan guage=es.
191
ADITIVE FABRICATION OF MEDICAL MODELS USING THREEDIMENSIONAL PRINTING FABRICO ADITIVO DE MODELOS MÉDICOS POR IMPRESSÃO TRIDIMENSIONAL Fernando Cruz* (ifcruz@est.ips.pt)
ABSTRACT Additive Fabrication Technology (AFT) has much to offer to the medical device industry, namely due to two principle advantages offered in comparison with other manufacturing technologies, i.e., the ability to manufacture highly complex parts to very high standards in highly flexible production volumes and the ability to produce devices that suit anatomical or physiological requirements of specific individuals, resulting in lower fabrication costs for these medical devices. This article presents some case studies on the application of one of the fastest and most affordable AFTs presented in the market today, i.e., Three-Dimensional Printing (3DP), to produce customized anatomical devices from anatomical data captured from an individual, by Computed Tomography (CT) or Magnetic Resonance Imaging (MRI), creating a unique design used for medical applications, such as visualization, diagnosis, operation planning, design of implants, external prostheses, surgical templates, production of artificial organs, communication (between the medical team and/or medical doctors and patients), teaching or didactic aids, or the production of medical surgical instrumentation tooling. Keywords: Medical Devices, Rapid Manufacturing, Three-Dimensional Printing, Reverse Engineering.
RESUMO
As Tecnologias de Fabrico Aditivo (TFA) têm, em relação às tecnologias convencionais, vantagens adicionais para serem usadas no fabrico de dispositivos médicos, quer pelo facto de poderem gerar formas geométricas de elevada complexidade, quer ainda por poderem gerar essas formas directamente a partir de informação médica individualizada, o que permite a obtenção desses modelos médicos em condições economicamente vantajosas. Neste artigo são apresentados os resultados de um trabalho de investigação abrangendo vários casos de estudo de modelos médicos obtidos pela tecnologia de Impressão Tridimensional (3DP), uma das tecnologias aditivas emergentes e com maior expansão comercial na actualidade. Estes
192
modelos foram produzidos a partir de dados anatómicos personalizados obtidos de pacientes através de Tomografia Computorizada (TAC) e Ressonância Magnética (RM), tendo sido feita uma análise técnico-económica dos modelos produzidos. As possíveis aplicações destes modelos pelos profissionais de medicina incluem modelos para visualização, para diagnóstico, para pré-cirurgia, para projecto e fabrico de implantes externos e internos, para fins educacionais e didácticos, para efeitos de comunicação, ou para o fabrico de instrumentação médica. Palavras-Chave: Modelos Médicos, Tridimensional, Engenharia Inversa.
Tecnologias
de
Fabrico
Aditivo,
Impressão
* Licenciado e Mestre em Engenharia Mecânica pelo IST, e Doutor em Engenharia Mecânica pela Universidade de Brunel (Inglaterra), tendo defendido uma tese doutoral sobre Biofabricação. Docente da Escola Superior Escola Superior de Educação de Bragança. Professor Adjunto Equiparado no Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Superior de Tecnologia de Setúbal do Instituto Politécnico de Setúbal.
193
1. INTRODUCTION Additive Fabrication Technology (AFT) or Rapid Manufacturing (RM), originally known as Rapid Prototyping (RP), is one of the fastest developing manufacturing technologies in the world today. It is different from the conventional fabrication processes (i.e. subtractive type as milling or compressive type like casting and moulding). On contrary, RM processes are of additive type, because parts are built in a layer-bylayer basis. Basically, most RM processes can be described as a layer-bylayer building technology with the exception of the holographic techniques. Solid or surface models created by a 3D CAD system are converted to a Standard Triangulation Language file (*STL) which is a list of triangular facets representing the surfaces of an object to be built, together with a unit normal vector associated with the outer surface of each triangle. Facets are created by a process called “tessellation”, generating triangles that approximate to the object surface described in the CAD solid model. This facet file is then sliced into thin slices and a slicing file is created. This information is passed to an RM system to build the model. Then, a solid of some predefined shape is created, by successively adding raw material in 2 D layers. The prototypes can be made from plastic, paper, ceramics, metals, and composites of them, and, in general, RM systems can be classified into three different categories based on the initial form of materials used (i.e., liquid-based, solid-based and powder-based). A distinct advantage of creating a part layer-by-layer is that the geometric complexity of the part has significantly less impact on the fabrication process than in the case of traditional manufacturing processes. Other advantages are: no need of tools, short time to produce the parts, very little human intervention and set-up time, and lower fabrication costs (Cooper, 2001).
2. RAPID MANUFACTURING TECHNOLOGIES The first commercial RM machine available was the Stereolithography Apparatus (SLA), introduced by 3D Systems Inc. (USA), which first appeared commercially in 1987. Nowadays some of the more popular processes are: • Stereolithography (SL);
194
Fused Deposition Modelling (FDM); Selective Laser Sintering (SLS); • Laminated Object Manufacturing (LOM); • Three-Dimensional Printing (3DP). After the part is built, and depending on the system, postprocessing will normally be necessary (i.e., cleaning, removal of supports, sanding, painting, sintering post-curing, infiltration, etc). According to the Wohlers Report 2007, the five major RM technologies commercialised in the world today are SL, FDM, SLS, LOM and 3DP, being the SL, FDM and SLS as the most used in the USA, Japan and Europe. Annual unit sales of RM machines have grown by more than 26 times – 157 units to 4,165 from 1993 to 2006. In the last few years 3DP technology had an increase on sales of ≅ 34% (including systems from the major USA companies 3D Systems, Stratasys and Z Corp., and other minor companies). This technology represents nowadays ≅ 30% of all RM systems installed worldwide. In fact, and according to the report, 3D printers sold over the past four years (2003–2006) represent 68 percent of the total number of additive systems installed during this period. The main reason for this success is due to the fact that 3D printers are low-cost variations of additive systems that are office friendly, easier to use, and less expensive to operate (Wohlers, 2007). • •
3. THREE DIMENSIONAL PRINTING The Three Dimensional Printing (3DP) process is a Rapid Manufacturing technology, invented and patented at Massachusetts Institute of Technology (MIT) for the rapid and flexible production of prototype parts and tooling directly from 3D CAD models. The 3DP technology was subsequently licensed and further developed by Z Corporation (ZCorp) Company (Massachusetts, USA) which commercialised its first 3D non-colour printer (Z402) in 1997. Presently ZCorp commercialises three 3DP machines (i.e., ZPrinter 310 Plus, a non-colour printer machine, and ZPrinter 450 and Spectrum Z 510, colour printing machines). Nowadays other companies in the market offer as well this technology, such as Dimension (Dimension website, 2007), a USA company, and Objet Geometries, from Israel (Objet website, 2007), although operating with polymers.
195
The study presented in this article was performed using a ZCorp apparatus. This process belongs to the solid-based Rapid Manufacturing systems which primarily use powder as the basic medium for prototyping (other RM technologies included in this group are, for example, Selective Laser Sintering/SLS and Direct Metal Laser Sintering/ DMLS).
3.1. THE ZCORP PROCESS The basic principle of this Rapid Manufacturing technology is the building of parts in layers, i.e., on a layer-by-layer basis. First, a thin layer of powder is spread over the surface of the powder bed. From a computer 3D model of the part, a slicing algorithm computes information for the layer. Using technology similar to ink-jet printing, a binder material is ejected onto the powder where the object is to be formed. A piston then lowers so that the next layer of powder can be spread and selectively bonded. This layer-by-layer process repeats until the part is complete. Following the heat treatment, unbounded powder is removed, leaving the fabricated part.
3.2. PRINCIPLE OF ZCORP 3DP creates parts by a layered printing process and adhesive binder bonding, based on sliced cross-sectional data. A layer is created by adding another layer of powder. The powder layer is selectively joined, i.e., where the part is to be formed, by ink-jet printing of binder material. The process is repeated layer by layer until the part is completed. When the ink droplet impinges on the powder layer, it forms a spherical aggregate of binder and power particles. Capillary forces will cause adjacent aggregates, including that of the previous layer, to merge. This will form the solid network which will result in the solid model. The binding energy for forming the solid comes from the liquid adhesive droplets. This energy is composed of two components: one its surface energy and the other its kinetic energy. As this binding energy is low, it is about 104 times more efficient than sinter binding in converting powder to a solid object, as in the SLS process (Chua et al., 2003). Parameters which influence the performance and functions of the process are the properties of the powder, the binder material, and the accuracy of the XY table and Z-axis control.
196
Figure 1 (ZCorp website, 2007) describes schematically the 3DP process (left hand side) and presents a view of a 3DP apparatus (right hand side):
Figure 1: 3DP principle and the Spectrum Z 510 colour printer
Materials used include elastomers and composite plaster based materials (for prototypes and functional parts). The binder is, usually, a glue aqueous solution.
3.3 PROPERTIES OF PARTS PRODUCED BY 3DP (ZCORP) Like the other powder based RM processes, packing densities are from 50 percent to 62 percent, meaning that subsequent postprocessing work is necessary to transform the â&#x20AC;&#x153;green-bodiesâ&#x20AC;?, as 3DP produced, into full density parts. This post-processing treatment includes heat treatment (sintering), or infiltration with a polymer (cyanoacrylate resin) or water, in order to obtain parts with better mechanical properties depending on the final application of parts.
3.4 ADVANTAGES (ZCORP) points.
AND
DISADVANTAGES
OF
3DP
Like other RM processes, 3DP presents both strong and weak
197
Advantages:
i) High speed: Fastest 3D printer to date. Each layer is printed in seconds (typically 2-4 layers of 0.089-0.102mm per minute, depending on the model), reducing the prototyping time; ii) Versatile: Parts are currently used for the automotive, packaging, education, footwear, medical, and aerospace and telecommunications industries. Parts are used in every step of the design process for communication, design review and limited functional testing. Parts can be infiltrated if necessary, offering the opportunity to produce parts with a variety of material properties to serve a range of modelling requirements; iii) Simple to operate: The office compatible ZCorp system is straightforward to operate and does not require a designated technician to build a part. The system is based on the standard, off the shelf components developed for the in-jet printer industry (e.g., the machines use HP standard ink cartridges, which are voided and subsequently filed with the binder), resulting in a reliable and dependable 3D printer; iv) No wastage of materials: Powder that is not printed during the cycle can de reused; v) Colour: Enables complex colour schemes in the parts from a full 24-bit palette of colours; vi) Resolution: The Spectrum Z510 system offers a resolution of 600Ă&#x2014;540 dpi, while the other two models offer a resolution of 300Ă&#x2014;450 dpi. Disadvantages:
i) Limited functional parts: Relative to other RM processes (SLS, for example), parts built are much weaker, thereby limiting the functional testing capabilities; ii) Limited materials: the materials available are only starch, highperformance plaster-based composites, elastomeric, investment casting and direct casting materials, with the added option to infiltrate paraffin wax, plastics or cyanoacrylate. Before infiltration parts are fragile and must be handled with care; iii) Poor surface finish: Parts built by 3D printing have a relatively poorer surface finish and post-processing (as in the majority of the other RM processes) is frequently required (by means of a airbrush into a vacuum cleaner box integrated in the printer). The post processing time will depend on the complexity of the part, the skill of the user, and the
198
infiltrated used. Nonetheless, it is still minimal compared to some other RM processes.
4. RM OF MEDICAL MODELS: FROM SCAN DATA TO 3D PHYSICAL DATA In the last few years several research institutions, medical industries and commercial organisations have integrated Medical Imaging (CT, MRI), Computer Aided Design (CAD) and Rapid Manufacture (RM) techniques to fabricate customised 3D physical medical models. These models are being used for several applications, such as visualisation, diagnosis, operation planning, design of implants, external prostheses, surgical templates, production of artificial organs, communication (between the medical team and/or medical doctors and patients), and teaching or didactic aids. Another application field is the production of medical surgical instrumentation tooling. As for implantation, medical models obtained by RM are normally used indirectly, as masters, to produce prostheses in biocompatible conventional materials (e.g. titanium, cobalt-chrome alloys, medicalgrade alumina, medical-grade silicone elastomer, apatite, etc,), namely by casting and spray metal moulding. RM has the ability to fabricate models with complex geometric forms and, thus, is very suitable to reproduce the intricate forms of the human body. The use of RM in medical applications is a relatively young field and the main limitations of this manufacturing route, thus far, are: Non-biocompatibility of the existing materials used in the RM machines; Continuing high costs of model production; Time needed for model production; Model quality (surface finish, anatomical accuracy). With the aid of a RM model, visualization of intricate and hidden details of traumas by surgeons is enhanced. The selection of materials for medical models manufacture depends on the use of the model. This aspect can be summarized as shown in Table 1.
199
Table 1: Selection of materials for medical models manufacture Use
Requirements
Visualization
Medium mechanical properties. Transparency, low cost. Opacity in some applications (foot).
Surgery Planning
Good mechanical properties (robust). Easy to use with surgical instruments, (cutting, drilling, tapping). Transparency. Sterilizable (take to operation room).
Implant Manufacturing
High accuracy and dimensional stability. Investment casting capability (metal implants) Use as patterns for moulds. Efficient thermal degradation.
Direct Implants
Excellent long-term mechanical properties. Chemically stable no degradation. Fully compatible with human tissue (no release of toxic or irritating compounds). Many years before adopted (toxicity)
The next steps to improve the use of RM in the production of medical models include (Bibb, 2007): Producing customised implants; Producing implants to be used directly, in biocompatible materials (e.g. hydroxyapatite based); Assuring long-term compatibility of the implants.
5. CASE STUDIES In this section some relevant case studies of medical models manufactured using this research are presented. These models were produced using the 3DP process (ZCorp technology), at Protosys - a Portuguese service bureau that provides CAD/CAM/RP solutions for several applications (Protosys, 2007).
5.1 MODELS FOR TEACHING PURPOSES Usually, is not easy to obtain medical models for anatomical studding (whether real organs or replicas). The possibility of print, directly in colour, allows for a better way of identify the different parts of an organ. In addition, the low cost of the materials and the speed of construction allows students to print the models at school and take the models with them to continue their studies at home, or elsewhere.
200
In Figure 2, some examples of organs produced using a ZCorp colour printer (Z 510) are presented:
Figure 2: Coloured heart (left hand side), open heart (middle) and kidney section (right hand side)
5.2 MODELS FOR SURGERY PLANNING The use of customised medical models to assist surgeons in preparing for especially complex operations (surgery planning), results in better surgical preparation, reduced surgery time (up to 50% operation reduction time) and reduced cost for the patient. Figure 3 shows some examples of 3DP models, manufactured to allow analysing pathologies prior to surgery:
Figure 3: Damaged skull (left hand side), mandible (middle), and foot (right hand side)
Other models were produced for implantation and medical instruments applications. The net costs involved in producing a model include the costs of powder, binder, print heads and infiltrate (if necessary). In Table 2 a summary of the technical data for the production of the above mentioned medical models is presented.
201
Table 2: Technical construction data Model Skull
Material
3DP Apparatus
Volume (cm3)
Plaster Composite Plaster Composite
Zprinter 310
217.23
Mandible
Zprinter 310
22.82
Foot
Plaster Composite
Zprinter 510
Time of Construction (h) 3.62
Infiltrate
Model Skull
Water resin
203.84 Net price of Model (materials only)/price 43.20/63.06
Mandible
0.88
Water resin
6.24/8.1
Foot
2.33
Water resin
45.56/65.48
Both the high speed of construction and the low cost of the manufacture are evident.
6. CONCLUSIONS AND FUTURE TRENDS 3D Printing is a very powerful route to rapidly produce accurate medical models from anatomical data captured from patients for several applications (e.g., teaching and communication aids, surgical planning, design of medical instruments, surgical guiding for dentistry). The next frontier will be the fabrication of medical customised models for implantation in the human body, using biocompatible/bioresorbable materials (e.g., bioceramics, as hydroxyapatite), directly from a 3DP apparatus. R&D in this emergent field is being carried out as this article is been written.
ACKNOWLEDGMENTS The author would like to gratefully acknowledge Marco Gomes (Protosys), for his support and contribution to this research.
BIBLIOGRAFIA Bibb, R. (2007);â&#x20AC;?Rapid Manufacturing: The Future of Medical Devices?â&#x20AC;?; The TCT Magazine; Vol.15; Is.2; April; Ed. Rapid News Publications plc.; UK; pp. 33-39.
202 Chua, C. K., Leong, K. F. and Lim, C.S. (2003); Rapid Prototyping-Principles and Applications, 2nd Edition; Ed. World Scientific Publishing Co.; Singapore. Cooper, K. G. (2001); Rapid Prototyping Technology-Selection and Application; Ed. Marcel Dekker Inc.; USA. Wohlers, T. T. (2007); Wohlers Report 2007-Rapid Prototyping; Tooling & Manufacturing State of the Industry - Annual Worldwide Progress Report; Ed. Wohlers Associates Inc.; Detroit; Michigan; USA. Websites: www.dimensionprinting.com; accessed online December 2007. www.2objet.com; accessed online December 2007. www.protosys.pt; accessed online December 2007. www.zcorp.com; accessed online December 2007.