Revista da Universidade Federal do Espírito Santo •
UFES
Maio 2017 • Nº 6
ISSN 2359-2095
RIO DOCE Diagnóstico de uma tragédia Projetos de pesquisa e extensão da Ufes identificam danos e apontam soluções para os impactos ambientais e sociais Pág. 13 a 36
A dor e os direitos dos refugiados
A grave epidemia silenciosa do suicídio
Ações da Ufes buscam dignidade para foragidos de guerras e da fome • Pág. 8
Uma abordagem ampliada sobre o indivíduo e a morte de si mesmo • Pág. 38
Evandro Campos
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
monumento universitário 30 anos O Monumento Universitário – um dos mais representativos símbolos artísticos da Ufes – completa 30 anos de sua instalação no campus de Goiabeiras, em Vitória. A escultura de concreto, erguida na área física do Centro de Artes, com 13 metros de altura e 30 toneladas, foi inaugurada em 10 de junho de 1987. Concebida e planejada pelo professor da Ufes e artista plástico José Carlos Vilar Araújo, a obra evidencia a integração e interatividade entre os três segmentos acadêmicos: professores, técnicos e estudantes. A escultura, que propõe elementos humanos em movimento, ressalta a mobilização e a efervescência da comunidade universitária.
Agência Ufes
Universidade Federal do Espírito Santo • Ufes Reitor Reinaldo Centoducatte Vice-Reitora Ethel Leonor Noia Maciel Pró-Reitora de Administração Teresa Cristina Janes Carneiro Pró-Reitor de Assuntos Estudantis e Cidadania Gelson Silva Junquilho Pró-Reitora de Extensão Angélica Espinosa Barbosa Miranda Pró-Reitor de Gestão de Pessoas Cleison Faé Pró-Reitora de Graduação Zenólia Christina Campos Figueiredo Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento Institucional Anilton Salles Garcia Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Neyval Costa Reis Junior UNIVERSIDADE Revista de divulgação científica, cultural e temas institucionais, produzida pela Superintendência de Cultura e Comunicação (Supecc) da Universidade Federal do Espírito Santo Superintendente de Cultura e Comunicação Edgard Rebouças Secretária de Comunicação Thereza Marinho Secretário de Cultura Rogério Borges Editores Letícia Nassar e Luiz Vital Pauta Edgard Rebouças e Letícia Nassar Reportagem Ana Paula Vieira • Camila Fregona • Hélio Marchioni • Jorge Medina • Letícia Nassar • Luiz Vital • Nábila Corrêa • Patrícia Garcia Fotografia Arquivo Supecc, Jorge Medina, Isabela Altoé (estagiária) Design Juliana Braga e Leonardo Paiva Revisão Márcia Rocha Foto de capa André Azoury Vargas Universidade Federal do Espírito Santo Superintendência de Cultura e Comunicação - Supecc Av. Fernando Ferrari, nº 514, Campus de Goiabeiras Prédio da Reitoria, 1º andar, CEP: 29075-910 Vitória/ES - Brasil Telefone: (27) 4009-2204 E-mail: revistauniversidade@ufes.br ISSN 2359-2095 O conteúdo desta revista pode ser reproduzido, desde que citada a fonte.
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Uma publicação viva
Sumário
A publicação de uma revista como meio de divulgação da produção científica e tecnológica, da inovação e da cultura, da extensão e dos
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temas institucionais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) sempre constituiu um obje-
Ações da Ufes buscam dignidade para foragidos de guerras e da fome
tivo. Este projeto editorial vem sendo construído há alguns anos, e, enfim, conseguimos concretizá-lo em 2013 como veículo de comunicação com a sociedade e com a comunidade universitária. Afinal, esse deve ser um compromisso permanente de uma instituição pública de educação superior. Vale destacar a excelência da produção aca-
38 Suicídio Uma abordagem ampliada sobre o indivíduo e a morte de si mesmo
dêmica presente nas páginas da revista Universidade, bem como a qualidade e o talento demonstrados pela equipe da Superintendência de Cultura e Comunicação (Supecc) em disponibilizar conteúdos tão significativos, por meio de textos, imagens e design criativo. Entretanto, as dificuldades orçamentárias enfrentadas pela Ufes – realidade das demais instituições federais de ensino – nos limitam na intenção de manter a publicação no seu formato impresso. Contudo, para que não percamos esta revista tão valiosa, optou a Supecc pela sua publicação exclusivamente no formato digitalizado, até que uma nova realidade econômica do País e, em especial, das universidades públicas, permita que possamos desenvolver todos os projetos em sua plenitude. Este moderno formato permitirá que a publicação se mantenha viva e dentro do seu propósito original. Assim, a revista Universidade permanecerá sendo um importante espaço de divulgação da elevada e qualificada produção acadêmica. Reinaldo Centoducatte Reitor
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Bioindicadores sinalizam alterações ambientais Avalanche de demandas Um mar de lama Rio muda de cor Visibilidade para as comunidades tradicionais Pesquisa e extensão interagem com comunidades Patentes depositadas pela Ufes Reforma do Ensino Médio Violência e o papel social da mulher idosa Pesquisa da Engenharia Elétrica é premiada Coral da Ufes Artigo: Ufes e Sisu 2017
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Frederico Falcão Salles
Bioindicadores Insetos sinalizam alterações ambientais Nábila Corrêa
Transmissores de doenças e causadores de epidemias, os insetos são vistos como inimigos da saúde pública. Pesquisadores da Ufes, entretanto, identificam algumas espécies que podem ser aliadas do homem em estudos ambientais
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Frederico Falcão Salles
Bioindicadores São organismos vivos usados para apontar precocemente alterações ambientais. Esses indicadores podem identificar diversos tipos de modificações, antes que se agravem, além de determinar qual tipo de poluição pode afetar determinado ecossistema. Entre esses organismos, os insetos têm se mostrado indicadores apropriados para esse fim, considerando sua diversidade e capacidade de produzir várias gerações, normalmente, em curto espaço de tempo.
engue, zika, chikungunya, febre amarela. Em uma época em que um simples mosquito, como o Aedes aegypti, é capaz de disseminar diversos tipos de doenças, a palavra “inseto” é associada genericamente a coisas ruins. Porém não só de animais nocivos é constituída essa classe. Ao contrário, algumas espécies podem ser aliadas do homem, como as usadas como bioindicadores para analisar mudanças ambientais. Segundo Frederico Falcão Salles, professor do curso de Ciências Biológicas do campus de São Mateus, os insetos aquáticos podem ser utilizados de diversas maneiras para indicar a qualidade da água, sendo que a mais utilizada atualmente é por meio dos índices de integridade biótica, que consideram que algumas espécies são mais tolerantes e outras mais sensíveis à poluição. Nesse tipo de estudo são analisadas, mais comumente, a composição e a abundância relativa das espécies em um determinado local. “Quando conhecemos bem as espécies que ocorrem em uma região, a ponto de sabermos quais estão presentes e como elas se comportam com relação à poluição, podemos utilizar esses dados para medir a ‘saúde’ de um determinado ambiente de água doce”, explica Salles. Segundo o pesquisador, espécies tolerantes tendem a aumentar o número de indivíduos em ambientes poluídos, enquanto espécies sensíveis podem ter um decréscimo populacional, chegando em muitos casos a desaparecer em determinado local. Os insetos aquáticos da ordem Ephemeroptera, por exemplo, são um grupo extremamente utilizado como bioindicador de ambientes aquáticos.
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Uma parceria entre pesquisadores da Ufes e da Universidad Nacional de Tucumán, na Argentina, iniciada em 2006, levou à descoberta de novas espécies e gêneros desse tipo de insetos. Além do professor Frederico Salles, da Ufes, são responsáveis pela descrição desses novos espécimes os pesquisadores argentinos Carlos Molineri, Eduardo Domínguez e Carolina Nieto. Patagônia Dando prosseguimento a esse trabalho de cooperação internacional, que já rendeu mais de 10 artigos publicados em revistas estrangeiras, os professores da Ufes Roberta Paresque e Frederico Salles embarcaram em fevereiro de 2017 para a Patagônia. Segundo Salles, a região foi escolhida por ser um local único na América do Sul com relação à composição da fauna. “Além de serem endêmicos dessa região, os insetos da ordem Ephemeroptera que lá ocorrem estão mais relacionados aos insetos da Austrália, não havendo, portanto, outro local onde possam ser encontrados.” A visita técnico-científica tem como objetivo a coleta de espécimes. O material coletado será utilizado em uma revisão a respeito das relações evolutivas entre os integrantes de uma família de Ephemeroptera e também para compor um banco de fotografias dessa ordem de insetos da Patagônia para ilustrar a nova edição do livro “Ephemeroptera of South America”. Além desses trabalhos, o grupo de pesquisadores brasileiros e argentinos têm focado em outros projetos, como a descrição de 11 novas espécies para a ciência.
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ACNUR/David Azia
As crianças são vítimas potenciais das guerras, como na crise de refugiados do Sudão do Sul, na África
REFUGIADOS
Trajetória de luta pela vida Ana Paula Vieira
O Brasil não está na rota prioritária do grande fluxo de pessoas que fogem de guerras e perseguições políticas e religiosas, mas a crise choca o mundo e todos podem ajudar. A Ufes já adota diversas ações, inclusive por meio de um convênio com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
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penas 140 caracteres são suficientes para a pequena Bana Alabed, síria, moradora de Aleppo, transmitir ao mundo via Twitter a gravidade da situação do seu país, em guerra civil desde 2011. Atualmente com mais de 360 mil seguidores na rede social, a menina de sete anos tornou-se um símbolo de coragem e resistência, sem perder a inocência de uma criança. Em 7 de novembro de 2016, ela tuitou: “Acho que minha infância está sendo roubada pela guerra, mas eu luto pela minha infância sob os bombardeios”. Vinte e dois dias depois, ao postar uma foto de sua casa destruída, novamente ela misturou a doçura infantil com a frieza da guerra: “Minhas amadas bonecas morreram no bombardeio à nossa casa. Estou muito triste, mas feliz de estar viva”, escreveu. O apelo da menina comoveu o mundo, que se juntou a ela na rede social por meio da hashtag #StandWithAleppo (fique com Aleppo). Em 19 de dezembro, Bana e sua família foram resgatadas, em uma operação que levou pessoas da zona de guerra para a região de Rashidin, área campestre de Aleppo. Já o menino sírio Alan Kurdi não teve a mesma sorte. Ele também chocou a humanidade e chamou a atenção para a situação dos refugiados, quando a foto do seu corpo, encontrado à beira de uma praia na Turquia, foi divulgada. Em setembro de 2015, aos três anos, foi um dos vários refugiados que já morreram ao tentar atravessar o Mar Mediterrâneo. Ele também se tornou um triste símbolo de uma crise humanitária que se agrava desde 2014, principalmente, na Europa e no Oriente Médio: a crise dos refugiados. Um ano depois da morte do garoto, somente entre os meses de janeiro e setembro de 2016, os dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) mostram mais de 300 mil refugiados e migrantes fazendo a mesma travessia, que acaba na morte de uma a cada 42 pessoas entre aquelas que saem do Norte da África em direção à Europa. Além do caminho pelo mar, o noticiário também mostrou multidões caminhando em direção à Europa, fugindo de situações degradantes e desumanas em seus países de origem. Apesar de não estar na rota, o Brasil tinha 8.863 refugiados reconhecidos em maio de 2016, segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão ligado ao Ministério da Justiça. Ainda de acordo com o Conare, esse número representa um aumento de 2.868% nas solicitações de refúgio em cinco anos: eram 966 em 2010 e chegaram a 28.670 em 2015.
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Unicef/Shehzad Noorani
Menina síria de 12 anos fugiu da província de Idlib para a Turquia, e deixou a escola ACNUR/Andrew McConnell
No cenário de destruição na Síria, crianças tentam se divertir improvisando um jogo de futebol
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Agência Ufes
O diferente também pode agregar, diz professora Os sírios são a maior comunidade de refugiados reconhecidos no Brasil: 2.298 pessoas, de acordo com o Comitê Nacional para os Refugiados. Na sequência, são 1.420 angolanos, 1.100 colombianos, 968 congoleses e 376 palestinos, além de cidadãos de outras 74 nacionalidades. E esse número pode ser bem maior, pois muitos dos refugiados não são nem sequer identificados, algumas vezes por medo de se exporem, outras vezes por falta de informação e dificuldade no acesso aos serviços, o que acaba os afastando do acesso a direitos e ao apoio do Estado. É o que explica a professora do Departamento de Direito da Ufes Brunela Vieira de Vincenzi, cotitular da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, convênio firmado entre a Ufes e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). A professora Brunela ministra a disciplina Direito Internacional dos Refugiados e Migrantes semestralmente, aberta a todos os cursos da Universidade. Essa é uma das primeiras ações decorrentes da instalação da Cátedra na Ufes, que prevê a realização de iniciativas nas áreas de Ensino, Pesquisa e Extensão. “Estudamos direitos humanos, história dos direitos humanos e dos conflitos geopolíticos; não é só Direito”, ressalta a professora. Ela explica que a definição de refúgio adotada pelo Brasil foi trazida pela Lei nº 9.474, de 1997. A legislação considera como refugiada a pessoa que está fora do seu país, não possa ou não queira regressar, ou seja obrigada a deixá-lo pelos seguintes motivos: temores de perseguição por questões de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas e devido a grave e generalizada violação de direitos humanos. Brunela explica a complexidade da questão: “O Direito Internacional é baseado em uma série de normas e convenções das quais os países podem ou não serem signatários. Se assinarem, devem incorporá-las ao ordenamento interno, criando legislação própria”. A Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, adotada em 28 de julho de 1951, é um dos principais tratados sobre o assunto, de acordo com Brunela. Além dessa convenção, a Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU e o Pacto de San José da Costa Rica (uma espécie de declaração dos Direitos Humanos das Américas, segundo a professora) preveem o direito ao asilo
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Brunela de Vincenzi: direito internacional
e ao refúgio. No âmbito da América Latina, na opinião de Brunela, o documento mais importante é a Declaração de Cartagena, de 1984, atualizada em Brasília em 2014, resultando no documento Cartagena +30. Os dispositivos normativos existem, mas a questão é complexa: “É uma zona cinzenta, por isso é tudo muito baseado em acordos. Parece que os países, diplomaticamente, vão conversando uns com os outros, com o Acnur, e aí vão se organizando para atender os refugiados em um determinado lugar, para receber doações de alimentos, remédios”, diz a professora. Brunela analisa todo esse conteúdo com os estudantes na disciplina de Direito Internacional, mas ter o conhecimento dessas regras na prática e saber aplicá-las, exigindo seus direitos, é um desafio para aqueles que estão fugindo de seu país em condições tão brutais. “A vida deles é muito mais difícil aqui, até para abrir uma conta no banco ou receber documentos comprovantes de outros lugares, por exemplo”, enfatiza a docente. Nesse sentido, a instalação da Cátedra da ONU na Ufes também traz benefícios. Como uma das frentes previstas no acordo é a extensão, há um grupo de estudantes que trabalha voluntariamente em uma sala do Núcleo de Prática Jurídica, localizado no campus de Goiabeiras. Coordenado pela professora Brunela, o grupo presta assessoria jurídica para estrangeiros, migrantes, refugiados: “Não temos um corpo de advogados que possa atuar em processos judiciais, o que a gente tem feito é dar assessoria. Aparecem muitas dúvidas sobre renovação de visto depois de muito tempo sem renovar, ou sobre passaporte vencido. Nesse tipo de questão de direito do estrangeiro, a gente ajuda muito”, exemplifica.
Arquivo Pessoal
Direitos dos refugiados Além do auxílio prático à comunidade, as ações previstas pelo convênio com a Cátedra Sérgio Vieira de Mello também abrangem a pesquisa científica. O estudante de mestrado Diego Merigueti está desenvolvendo a dissertação “Existe vida após a vinda? O processo como instrumento de luta dos refugiados pela efetividade de seus direitos” no Programa de Pós-Graduação em Direito, sob a orientação da professora Brunela de Vincenzi. O mestrando estuda os direitos dos refugiados: “O objetivo geral da minha pesquisa é apresentar as ações judiciais como um mecanismo possível e apto para a busca da efetivação dos direitos dos refugiados e solicitantes de asilo no Brasil”. A pesquisa questiona se há o cumprimento efetivo das garantias previstas no aparato jurídico-normativo de proteção e promoção dos direitos dos solicitantes de asilo e refugiados. “A hipótese com a qual eu trabalho é a de que o recurso ao Poder Judiciário para a efetivação dos direitos assegurados ‘no papel’ é um instrumento não apenas apto, mas também necessário para a concretização da própria justiça social. Sem dúvida, é um tema afeto também aos direitos humanos”, avalia o pesquisador. O interesse de Diego pela temática dos refugiados demonstra uma outra via de atuação: ele se aproximou do tema a partir da instalação, em Vila Velha, da organização não governamental Missão em Apoio à Igreja Sofredora (Mais), que acolhia solicitantes de refúgio e refugiados no Espírito Santo. A Ufes também trabalhou em parceria com a ONG, auxiliando na recepção e no apoio aos refugiados. A advogada da Mais, Laise Sindra, graduada pela Ufes, conta que a instituição teve sede no Espírito Santo de 2013 a 2015, período em que atendeu cerca de 140 pessoas diretamente e 50 indiretamente, por meio de orientação jurídica. Em parcerias com igrejas, os refugiados atendidos pela Mais recebiam acolhimento, aula de português, auxílio jurídico, ajuda com documentação, auxílio psicológico e ajuda para obtenção de emprego. Para Laise, em comparação com outros estados do Brasil, o Espírito Santo possui um “atendimento muito bom, mas no início havia o despreparo nos postos de saúde, quanto ao idioma”. Na época da faculdade, a ex-aluna da Ufes foi influenciada por alguns professores, que, segundo ela, a incentivaram a estudar Direitos Humanos, Direito Coletivo e Direito Internacional. Além disso, ela pesquisou o tema e
Mestrando Diego Merigueti: direitos dos refugiados
adquiriu conhecimento na Mais: “Foi muito importante participar da ONG e aprender sobre como realizar um plano de ajuda aos refugiados de forma sábia, que envolve auxílio integral”, explica. A instituição mudou-se para a cidade de Colombo, no Paraná, onde dá continuidade ao trabalho. Apesar de todas essas iniciativas, a professora Brunela ainda vê dificuldades no tratamento da questão dos refugiados: “É uma situação difícil. Eu achava, talvez até um pouco idealmente, que a gente já estava mais evoluído na forma de receber os estrangeiros, mas me parece que não. É um aprendizado que a gente precisa incorporar: às vezes a pessoa não fala português perfeito ou tem sotaque, mas pode ajudar a fazer um documento em francês, por exemplo”, lamenta Brunela. Para a professora, o preconceito ainda é uma barreira, não somente para os refugiados, mas também para os migrantes e estrangeiros de uma forma geral.
Jorge Medina
A instalação da Cátedra na Ufes prevê a realização de atividades nas áreas do Ensino, Pesquisa e Extensão
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Conceito amplo Quando estava em negociação com a ONU para instalar a Cátedra na Ufes, a professora Brunela questionou se estaria dentro do escopo do convênio o atendimento aos estrangeiros, mesmo que não fossem considerados refugiados. À época, ela obteve a seguinte resposta: “todo estrangeiro é importante para nós”, conta. Ela explica: “A distinção é muito tênue. A lei diz que são refugiadas as pessoas que estão fugindo de guerra, de perseguição política, ou por pertencer a determinado grupo social, mas não diz que é refugiado alguém que está fugindo de uma situação financeira ruim, uma crise financeira terrível como na Venezuela, por exemplo; ou fugindo de uma catástrofe ambiental como no Haiti”, afirma a professora, endossando o conceito amplo adotado pela Acnur e criticando o conceito legal. Ela enfatiza que o processo legal permite o pedido de refúgio em qualquer caso. “Qualquer pessoa que chega pode pedir refúgio, tem até uma fila separada em toda fronteira. É obrigatório dar a ela o formulário. Os funcionários responsáveis não podem nem tentar convencê-la de algo diferente, eles têm que entregar o formulário”. Seguindo esse conceito amplo de proteção aos refugiados, imigrantes e estrangeiros, Brunela explica que também há uma preocupação especial com os estudantes vindos de outros países para a Ufes. Dados da Secretaria de Relações Internacionais atestam que, em 2016, cerca de 200 alunos de 30 países estavam matriculados na Universidade. Os convênios com maior número de estudantes são o Programa de Estudantes - Convênio de Graduação (PEC-G), que recebe uma média de 15 alunos anualmente, originários da África, da América Latina e do Caribe; e o PAEC-OEA - Pós-Graduação, que tem uma média de 20 estudantes vindos anualmente das Américas. Pensando nesse público, algumas ações de extensão foram oferecidas ao longo dos últimos anos, como aulas de português para estrangeiros e curso de árabe para os estudantes da Ufes conseguirem se comunicar com refugiados e imigrantes. Esse conjunto de iniciativas, de acordo com Brunela, faz parte da criação de uma cultura receptiva e respeitosa na Universidade, um outro propósito implícito na instalação da Cátedra Sérgio Vieira de Mello.
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“Queremos mostrar que a Ufes é sensível à situação dessas pessoas. É preciso falar, divulgar a Cátedra, para que sejamos uma sociedade que consegue integrá-los. A gente vai vendo que o diferente também pode agregar”, comemora Brunela. Conforme a professora, no campo do Direito Internacional, a interpretação é predominantemente baseada nos interesses políticos e financeiros dos países, mas, no caso do Brasil, a política de recepção aos refugiados é aberta. “Uma das críticas é de que não há muito auxílio financeiro, mas a política brasileira nessa área sempre foi de portas abertas. Desde que chegam, estrangeiros e refugiados têm direito à Carteira de Trabalho, acesso ao SUS, a instrumentos de seguridade social e a escolas públicas”, conta Brunela. Na Ufes, a resolução nº66, editada em 2010 pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe), estabelece procedimentos diferenciados para o ingresso de refugiados nos cursos de graduação. O calendário acadêmico determina o período de requerimento de inscrições dos refugiados políticos, a cada ano letivo, e o processo é feito pela Pró-Reitoria de Graduação. A resolução completa está disponível no site do Departamento de Administração dos Órgãos Colegiados Superiores: www.daocs.ufes.br. Na opinião da professora Brunela, essas ações e a sensibilidade para com a questão dos migrantes, refugiados e estrangeiros em geral podem, inclusive, agregar valor à política internacional brasileira. “O Brasil já tem uma tradição de séculos de receber pessoas. Trazer pessoas com outros conhecimentos, que às vezes podem somar força de trabalho para áreas que a gente não tem, é importante. Mas, acima de tudo, é uma questão humanitária, que acaba sendo um ponto positivo para a política internacional brasileira”, conclui. O mestrando Diego Merigueti completa: “Creio que, com as iniciativas desenvolvidas na Ufes, na Comissão de Direitos Humanos e Relações Internacionais da Ordem dos Advogados do Brasil e na Universidade de Vila Velha, de pouco em pouco estamos conseguindo quebrar preconceitos, romper paradigmas e esclarecer que os refugiados são sujeitos de direitos e nunca chegam de mãos vazias, eles também podem contribuir para o progresso do local de acolhida”.
Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce
RIO DOCE Diagnóstico de uma tragédia sob a ótica das pesquisas O desastre ocasionado pela lama de rejeitos de minérios, proveninentes do rompimento da barragem da Samarco, causou comoção geral e provocou os pesquisadores da Ufes a desvendar a catástrofe e buscar soluções por meio da ciência. Confira nas próximas páginas as pesquisas e ações desenvolvidas durante mais de um ano UNIVERSIDADE U UN NIIV VER ERSI S DA D D DE E-R Revista evvis istaa d daa Uf U Ufes es - M es Maio aiio 2 20 2017 017 7
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ENTREVISTA: MARTA ZORZAL
Com a tragédia veio uma
avalanche de demandas Luiz Vital
André Azoury Vargas
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A pesquisadora Marta Zorzal e Silva é professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Ufes, coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Sociais e o Laboratório de Estudos Políticos. Marta Zorzal é graduada pela Ufes, mestre pela Fundação Getulio Vargas e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Com intensa produção intelectual, é autora de livros e artigos que são referências para a pesquisa científica nas Ciências Humanas, com pós-doutorado no Centre for African Studies – University of Basel, Suíça. Na Rede Ufes – Rio Doce assumiu a coordenação da área socioambiental do projeto. Nesta entrevista, a pesquisadora fala sobre as primeiras estratégias da Rede, destaca as pesquisas inicialmente previstas para serem desenvolvidas, sinaliza entraves e soluções das negociações, ressalta a importância da inserção da Universidade na questão e aponta para os diferentes cenários que circundam a tragédia.
Quais as estratégias desenvolvidas inicialmente pelos pesquisadores com a criação da Rede Ufes – Rio Doce? Iniciamos o trabalho com foco nas comunidades instaladas no entorno do Rio Doce, sobretudo aquelas localizadas no território do Espírito Santo, com especial atenção para a região da foz. Com a situação de emergência instalada, devido à abrangência social e espacial dos danos e destruição causados, a primeira atuação foi no sentido de prestar apoio. Isso foi feito via produção de informações, coleta de dados, mapeamento e análises sobre os riscos e danos causados pelo desastre, direcionados aos órgãos públicos diretamente envolvidos, como o Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema-ES), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Marinha do Brasil, o Ministério Público Federal e do Espírito Santo, e à sociedade em geral.
institucionais da Universidade no âmbito interno e externo. O grupo atua envolvendo as entidades que já são parceiras desde o início das atividades e amplia os diálogos com organizações não governamentais que estão atuando nas questões relativas à tragédia. Nesse sentido, foi articulada com as universidades federais de Minas Gerais (UFMG) e de Ouro Preto (Ufop) e o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (Ifes) a realização de acordo de parcerias para atuação conjunta na Bacia do Rio Doce e no meio estuarino. Na área relativa aos impactos humanos e sociais, em que passei a atuar, a maioria dos projetos apresentados trata dos efeitos da tragédia nas comunidades, com pesquisa, por exemplo, sobre construções de habitações e reconstrução de imóveis, de modo que elas utilizassem os próprios recursos disponíveis, e estudos nas áreas de saneamento, saúde e na questão da água, além de outros direcionados a fazer com que as pessoas retomassem as suas vidas e buscassem alternativas seguras.
A Rede Ufes – Rio Doce veio articular as diferentes ações.
Quais os projetos na área dos impactos humanos e sociais que ganharam consistência?
Sim. Posteriormente a essas ações foi criada a Rede Ufes – Rio Doce, que organizou as ações de pesquisa e extensão em três grandes áreas: aspectos humanos e sociais, físico e ambiental no meio continental, e físico e ambiental no meio estuarino e marinho. Com a função de gestão da Rede foram criados um núcleo executivo e um de articulação, que têm o objetivo de organizar os contatos e parcerias
Temos projetos relativos à saúde física e psicológica, ao mapeamento das populações tradicionais afetadas; projetos voltados para os impactos sociais, psicossociais e culturais focados nos grupos sociais mais afetados que estão sofrendo; sobre os movimentos sociais e de como eles estão reagindo, se organizando e nas suas ações coletivas. Além desses que são mais focados nos atingidos, também
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ENTREVISTA: MARTA ZORZAL
há projetos voltados para as áreas de governança e gestão, sobre a regulação das políticas públicas, como elas estão, quais os instrumentos para consolidá-las, quem são os responsáveis, entre outros.
Quantos projetos aproximadamente estão sendo desenvolvidos pelo grupo?
E em relação aos projetos na área dos impactos humanos e sociais?
Temos 18 projetos que contemplam diversas áreas do conhecimento: saúde, educação ambiental, comunicação, infraestrutura, participação e movimentos sociais, violação de direitos humanos, com informações voltadas para produzir e criar um repositório institucional, em que as comunidades tenham acesso à informação organizada. Esse repositório informacional deve estar disponibilizado para a sociedade e, particularmente, para as instituições públicas.
Já foram realizados, com recursos extensionistas, trabalhos de pesquisa e extensão relacionados aos impactos ambientais e dos atingidos. Ainda continuam aguardando definições financeiras para os estudos sobre os impactos nas comunidades; em relação à saúde das pessoas; psicossociais e culturais; os de infraestrutura e alternativas para a habitação. Tem um projeto da Engenharia de Produção da Ufes, por exemplo, sobre o aproveitamento da lama para a produção de tijolo e telha. São diversos projetos que, porém, estão aguardando recursos para a execução.
A atuação dos pesquisadores se mantém nos limites do território capixaba ou também se estende para Minas Gerais?
Quais são os principais parceiros da Rede Ufes?
A maioria dos projetos da Rede Ufes é desenvolvida no Espírito Santo, mas trabalhamos para estabelecer uma grande rede acadêmica que inclua universidades dos dois Estados, especialmente a Ufes, Ufop e UFMG. A intenção fundamental é dar suporte aos órgãos gestores, tanto os ambientais quanto os das áreas social e econômica, na produção de conhecimento para planejar ações que subsidiem os decisores do Comitê Interfederativo, criado a partir do acordo entre as mineradoras e o governo federal. Esse acordo propôs a criação de uma fundação para implementar os programas previstos, os quais precisarão de aprovação do comitê.
Algumas pesquisas estão sendo feitas com recursos dos próprios grupos de pesquisa e dos programas institucionais? Na verdade, estão em campo, sobretudo nas áreas sociais. Na área ambiental, tivemos aspectos emergenciais, como a viabilização de água potável para as pessoas, e isto, bem ou mal, foi feito logo, a partir de acordos com a Samarco. Nesse aspecto, os pesquisadores que fizeram análises da água tiveram os seus projetos ressarcidos.
Já existem resultados apresentados pelos pesquisadores? Já. As equipes que estão trabalhando com a água, com a biota, com questões relativas ao meio marinho e uma outra voltada para a análise dos impactos
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ambientais entre os atingidos, cujos relatórios de pesquisas estão publicados no site da Rede Ufes – Rio Doce (www.redeufes-riodoce.ufes.br).
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A Rede Ufes tem se articulado, prioritariamente, com os órgãos ambientais, no sentido de se produzir suporte acadêmico, científico e técnico. Isto porque, com a tragédia, veio uma avalanche de demandas que sobrecarregaram esses órgãos. Esse é um aspecto importante na relação da Universidade com esses setores. Outra costura realizada foi chamar instituições – universidades, institutos federais – para essa articulação acadêmica, até para não se fazer pesquisas repetitivas e conseguirmos juntar forças e multiplicar os resultados.
As parcerias estão sendo produtivas? Estamos consolidando um trabalho conjunto com o Ifes e também com a Ufop e a UFMG, visando construir na academia e na sociedade a produção de fluxos de informação e de conhecimento com transparência. Subsidiar o Comitê Interfederativo é fundamental porque é a instância decisória para a formulação da política pública.
E a fundação para o financiamento de pesquisas? A proposta da fundação é que seja uma instituição que tenha a obrigação de executar os programas e projetos nas diversas áreas do conhecimento. Claro que ela poderá contratar qualquer empresa privada nacional ou internacional, mas o problema é que, ao fazer isto, ela poderá produzir informações sem a contraface da academia, com independência, e o comitê poderá ficar refém daquela informação. O comitê deve estar munido de informações que tenham as
Isabela Altoé
controvérsias, e a academia é diversa, é abrangente e tem a legitimidade e isenção necessárias. Entendo que a universidade não deve se relacionar diretamente com a fundação. Ela deve produzir o conhecimento técnico-científico e repassar para os órgãos gestores, para o governo, e aí sim, é o governo quem vai tomar as decisões para diferentes situações por meio da sua representação no Comitê Interfederativo.
Quem tem representação no comitê? De acordo com a cláusula 244 do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), o Comitê Interfederativo é constituído por dois representantes do governo federal, dois do Ministério do Meio Ambiente, dois do governo do Espírito Santo, dois do governo de Minas Gerais, dois dos municípios mineiros afetados pelo rompimento da barragem, um dos municípios capixabas atingidos, e um do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (CBH-Doce), totalizando 12 membros. Já o grupo de articulação fez um caminho em duas direções: por um lado, buscou estabelecer articulação da academia com os órgãos públicos, as agências e órgãos ambientais, visando propor ações de suporte técnico-científico para eles. Noutra direção, investiu na elaboração de um modelo conceitual que viabilize a constituição de uma rede de cooperação entre a academia e os órgãos gestores, para o enfrentamento dos múltiplos impactos advindos do desastre que ocorreu na Bacia do Rio Doce. A ideia básica do modelo prevê a possibilidade de atuação conjunta, na qual a Universidade coloca a sua capacidade de produção de conhecimento à disposição dos órgãos gestores da crise, com o objetivo de subsidiar ações e construir parcerias de longo prazo para apoiar os processos de monitoramento, remediação, compensação e tomada de decisão. Ao mesmo tempo, busca dotar o poder público de capacidade de resposta, por meio de investigação científica e tecnológica.
Já é possível estabelecer um diagnóstico conclusivo na área socioeconômica acerca do tamanho do impacto causado pela tragédia? Há impactos indissociáveis e muitas perdas nas populações ribeirinhas do Rio Doce, nas questões relativas à saúde e ao trabalho, sobretudo. O montante dessas perdas está, mais ou menos, pensado no acordo que impôs o ressarcimento. São perdas bastante elevadas, considerando o grande
Pesquisadora Marta Zorzal destaca que faltam recursos financeiros para executar alguns projetos
número de pessoas que sobrevive da pesca e que perdeu o trabalho. São perdas sociais imensuráveis para aqueles que deixaram de ter a possibilidade de sobrevivência a partir da sua própria renda, nas atividades que desenvolviam, e isto impacta, sobretudo, as populações mais fragilizadas, as tradicionais, os índios, os quilombolas, os ribeirinhos, que viviam do rio. Por isso a necessidade das pesquisas que atuam com o foco psicossocial.
E há regiões distantes da calha do rio que, de algum modo, também foram afetadas... Sim. Nas ações emergenciais, por exemplo, a remoção de pessoas de lugares mais afetados para outros causou problemas sociais e impactos na dinâmica das cidades. Veja o caso de Anchieta, no sul do estado, distante da Bacia do Rio Doce, que acabou sendo fortemente atingida pela tragédia. Isso porque a Samarco tem uma base de operações muito grande no município, que foi fechada, afetando um importante mercado de trabalho que movimenta a economia daquela região. Logo após a tragédia, a empresa e seu porto foram fechados e os reflexos foram imediatos no desenvolvimento e prestação de serviços, no comércio da região. Ou seja, a empresa parou, desempregou um grande contingente de trabalhadores e isso impacta também na prefeitura, na sua receita, que obviamente cai, e isso tem um efeito dominó, derrubando toda uma cadeia produtiva, com efeitos sociais e econômicos muito parecidos com os municípios da região do rio. São questões que não se resolvem tão rapidamente.
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lama Um mar de
Ana Paula Vieira
As análises realizadas pelos pesquisadores da Ufes sobre os impactos da lama no meio marinho apontam para uma tragédia ambiental longe do fim m desastre único. É assim que a professora do Departamento de Oceanografia da Ufes Valéria Quaresma resume o cenário gerado pelo rompimento da barragem de rejeitos de mineração da Samarco, localizada no distrito de Bento Rodrigues, município de Mariana, em Minas Gerais. A lama de rejeitos de minério percorreu os cerca de 550 km de distância entre a cidade mineira e o litoral capixaba, trazendo consequências sociais, econômicas e ambientais que marcam a vida de milhares de pessoas desde o dia 5 de novembro de 2015. Prontamente, professores, estudantes de graduação e de pós-graduação e gestores da Ufes uniram esforços para tentar
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juntar as peças desse quebra-cabeça inédito, que eles continuam buscando resolver mais de um ano depois, por meio da pesquisa científica. Segundo a professora Valéria, encaixar as peças desse quebra-cabeça não é fácil: “Houve outros rompimentos de barragens pelo mundo? Sim, mas não desse nível, desse tamanho. O que aconteceu aqui é único, a gente não tem parâmetro de comparação”, ressalta. E aí está uma das importâncias do trabalho científico e da atuação da academia, a construção de parâmetros. Espera-se que não haja necessidade de utilizá-los, mas o conhecimento estará à disposição: “Tem sido um aprendizado para a comunidade científica, para os órgãos ambientais
Jorge Medina
e para a comunidade em geral”, afirma Valéria. Uma das razões da dificuldade em compreender a situação e construir esse conhecimento reside na complexidade do ambiente em questão. A pesquisadora explica que vários fatores influenciam na dinâmica do oceano, como marés, ventos, ondas, correntes, chuvas, secas, alterações climáticas, trazendo mundanças técnicas e também logísticas para as pesquisas: “Para estar com o barco ali, às vezes, a gente planeja a saída para determinado dia, mas chega uma frente fria e acabou; você só vai fazer daí a um mês, dois meses”, conta Valéria. Por outro lado, ela teve “sorte” – se for possível falar em sorte diante de um caso tão preocupante – nos dias do ocorrido: sua equipe estava com um barco na região Norte do Espírito Santo, próximo ao litoral do município de Linhares, precisamente na praia de Regência, que recebeu a lama. O material foi imediatamente coletado e deu origem às primeiras análises feitas pelos pesquisadores da Ufes. A lama chegou ao litoral capixaba no dia 22 de
novembro e, a partir daí, a Ufes participou de sete expedições. O impacto ambiental foi comprovado e os pesquisadores costumam dividi-lo em dois momentos: o agudo, ou seja, o ocorrido de forma mais imediata; e o crônico, que ocorre em médio e longo prazos e vai requerer um monitoramento constante por anos. E mesmo que a aparência alaranjada da água tenha diminuído com o passar do tempo, as pesquisas indicam que a lama continua ali. Valéria Quaresma explica que o mar sempre recebeu sedimentos do Rio Doce, mas, com a tragédia, o material que aportou foi totalmente diferente e em quantidade muito superior. “Percebemos que veio um fluxo, um material de altíssima concentração, que chegava a ser de 9g de sedimento por litro de água. Fazendo uma comparação, naquele momento da grande cheia histórica de 2013/2014, a concentração máxima percebida ali foi de 300 mg/l, então fica caracterizada a grande diferença de uma situação para outra”, pondera a pesquisadora.
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E as conclusões não são apenas quantitativas. As análises realizadas no Laboratório de Oceanografia Geológica (LaboGeo), onde a professora Valéria trabalha com uma equipe de professores e estudantes de graduação e pós-graduação, também mostraram as características da lama. De acordo com a pesquisadora, o sedimento que vem em suspensão no rio normalmente está na forma de argila, silte ou areia, que são classificações de acordo com a granulometria, ou seja, o tamanho do grão. A areia, o maior deles, tem de 0,05 a 2mm; o silte de 0,02 a 0,05 mm; e a argila é a menor forma, com cerca de 0,02 mm. Ela explica que o material mais fino vem em suspensão na coluna d’água, e quando chega ao oceano, com a mudança de salinidade e pH da água, se transforma em flocos e fica maior, chegando a ficar do tamanho da areia. “Mas o material que é resultado da tragédia é um material extremamente fino, muito cheio de argila, que tinha pouca matéria orgânica e, pelo que eu percebi, não floculou de forma imediata, ficando em suspensão muito mais tempo do que normalmente ficaria. Então além de ser uma concentração absurda, assustadoramente alta para a área, é um material extremamente fino que não floculou”, ressalta Valéria. A principal consequência verificada a partir daí foi a formação de uma camada de lama fluida. O problema desse tipo de camada é que ela não é considerada um depósito, não é funda, é uma suspensão em alta concentração na água do mar e junto ao fundo, conforme relata a professora. O fato de dela não se assentar no fundo do oceano faz com que a lama fluida seja frequentemente suspensa, quando ocorrem entradas de onda, frentes frias, correntes um pouco mais fortes ou uma ventania. “Então, todo o material que normalmente iria para o fundo e ficaria depositado lá, continua indo para a coluna d’água”, resume Valéria. Para além
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das consequências biológicas, a professora se preocupa com o futuro: “O que eu acho mais grave disso tudo é que a população olha, não vê a água laranja e acha que está tudo bem. Não, o material é muito fino, mas está lá, e está sendo sempre reciclado e voltando para a coluna d’água. Não foi só no dia que chegou a lama. O que a gente não pode deixar é isso cair no esquecimento”, enfatiza. Para além do fundo do mar Os efeitos da lama no litoral capixaba não ficaram apenas no fundo do mar. O professor Camilo Dias Júnior, especialista em fitoplâncton, analisou essa espécie que é fundamental para o ambiente marinho, por ser a base da cadeia alimentar no oceano. “Inicialmente, uma coisa que a gente já desconfiava é que a lama, independentemente de sua composição química, causa maior turbidez na água e isso barra a luz. Essa barragem de luz é muito ruim para o fitoplâncton, porque diminui a sua capacidade de fotossíntese”, avalia Camilo. As pesquisas realizadas no Laboratório de Fitoplâncton (LabFito) mostraram ainda um aumento na quantidade de fitoplâncton, provocado pelas chamadas florações algais, um fenômeno de reprodução acelerada do fito. Os pesquisadores coletaram amostras e, ao analisar os pigmentos e a biomassa desses organismos, chegaram à conclusão de que sua incidência aumentou muito em alguns pontos, principalmente mais próximos ao rio. Um dos motivos para esse aumento foi o excesso de ferro na água, dado confirmado pelos pesquisadores que avaliaram as características químicas da água poluída pela lama, no Laboratório de Geoquímica Ambiental. “O fitoplâncton é extremamente sensível ao excesso de ferro, pois se trata de uma substância essencial para ele, a qual existe em uma quantidade muito pequena
Jorge Medina
na água do mar. Então quando há uma entrada de ferro dissolvido, a primeira coisa que acontece é que o fitoplâncton absorve todo o ferro possível e provoca uma floração”, atesta o professor Camilo. Entretanto, Camilo explica que a floração algal não se sustenta: “Aumenta muito e, como tem um excesso de população, ela tende a morrer. A gente analisou também os dois pigmentos do fitoplâncton: um pigmento intacto, que é a clorofila A, e um pigmento senescente, que já está em processo de degradação, que é o feopigmento. Vimos que, depois que subiu a clorofila A, aumentou enormemente a quantidade de feopigmento. Ou seja, o fitoplâncton floresceu, mas imediatamente tornou-se senescente”. E as consequências não param por aí. As investigações também mostraram que houve uma redução da diversidade de espécies de fitoplâncton. Para o professor Camilo, isso ficou claro quando a pesquisa utilizou a metodologia de contagem dos organismos em laboratório. “Imediatamente a quantidade de fitoplâncton triplicou. Só que, na verdade, não foram todas as espécies que aumentaram em número. A maioria tendeu a desaparecer. Isso é uma coisa normal: quando há uma proliferação muito grande de algumas espécies, outras acabam sendo prejudicadas. Então as que proliferaram foram reduzindo a luz para as outras, e isso somado ao próprio sombreamento causado pela lama, provocou uma redução de um terço na variedade de espécies”, explica o pesquisador, referindo-se aos dados percebidos por volta do mês de dezembro de 2015, logo após o ocorrido. O professor Camilo pode fazer a comparação com propriedade, pois já participava de um projeto de levantamento do fitoplâncton em toda a bacia do Espírito Santo, finalizado em 2014, com registros desde a região litorânea até o mar aberto. Ele ressalta ainda a sensibilidade da comunidade fitoplanctônica: ela é a primeira comunidade biológica
a receber os efeitos. Esses primeiros resultados atestam o impacto agudo, mas o professor afirma que expedições posteriores já demostraram que as florações algais continuam, e o desequilíbrio causado por elas também. “O evento que foi agudo naquele momento está passando agora a ser um efeito crônico. O que acontece é que a diminuição na quantidade de fi toplâncton torna as cadeias alimentares mais restritas, porque o fito alimenta o zooplâncton, o zoo alimenta os peixes. Se você diminui a quantidade de fito, diminui a quantidade de zoo, e diminui a quantidade de peixes. Então a gente já passou da fase aguda, mas agora está em uma fase crônica complicada, da qual a gente não conhece os efeitos ainda”, analisa o professor. A pergunta que ainda persiste é: essas alterações na cadeia alimentar já trazem reflexos para os humanos? Para o professor Renato Rodrigues Neto, que pesquisa as características químicas da água do mar atingida pela lama, ainda não há uma resposta. Ele destaca que as pesquisas iniciais sobre a toxicidade da água mostraram que houve o enriquecimento de cinco elementos: ferro, alumínio, chumbo, cromo e manganês. Segundo o professor Renato, o valor do chumbo aumentou 517 vezes e o do ferro 117 vezes. Ele explica que, no caso do chumbo, apesar do grande aumento da concentração desse metal pesado na água, ainda não chega aos níveis de outros locais muito poluídos. “Não é uma concentração tão alarmante nesses primeiros resultados, mas indica que precisa ser monitorada em longo prazo, porque o chumbo causa sérios danos à saúde quando ingerido de forma crônica, isto é, ao longo da vida”, enfatiza Renato. Ele analisa que o ferro não é considerado tão tóxico pelos pesquisadores, nem pela literatura científica, tanto que é um elemento necessário ao crescimento e desenvolvimento das
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Jorge Medina
pessoas. Porém o professor adverte: a questão do ferro é controversa, há uma corrente de pesquisadores que entende que o elemento é tóxico e outra que defente que não é”. Para Renato, a principal preocupação em relação ao ferro é quanto ao desequilíbrio ecológico que pode trazer para o ecossistema, como já demonstrou a pesquisa do professor Camilo Dias sobre o fitoplâncton. As investigações iniciais demonstraram ainda uma concentração de alumínio dez vezes superior à verificada antes da chegada da lama, mas seu nível de toxicidade também não é crítico, de imediato, devendo ser avaliado a médio e longo prazos, conforme o entendimento do professor Renato Rodrigues Neto. O pesquisador alerta: “Inicialmente, o desequilíbrio foi caracterizado, não sabemos ainda se foi momentâneo ou se continuou. E a questão da saúde pública é que deve ser o próximo passo, na minha opinião”. O monitoramento constante da área, como destaca o professor Renato Neto, comprovou-se fundamental: em coleta realizada um ano após o ocorrido, os pesquisadores verificaram que, para os metais, existiu uma diminuição da concentração
A professora Valéria, junto com outros pesquisadores, foi até a foz do Rio Doce para recolher amostras da lama
inicial após impacto e, posteriormente, um aumento em novembro de 2016, quando as chuvas se intensificaram. “Esses novos dados revelaram que ainda existe muito material oriundo da queda das barragens na calha do Rio Doce, o que significa que o aumento demonstrado nos dados da coleta de novembro pode continuar se repetindo a cada ano, em épocas de chuva”, conclui o professor. Jorge Medina
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Os próximos passos As pesquisas dos professores Valéria Quaresma, Camilo Dias Júnior e Renato Neto têm uma preocupação em comum: os efeitos a médio e longo prazos. Para continuarem acompanhando esses reflexos, que eles chamam de crônicos, é necessário realizar um monitoramento sistemático da área, um projeto robusto e demorado. Não há uma solução completa e imediata, como afirma a professora Valéria. Em vários fóruns e eventos científicos de que participou, ela já foi questionada: “Não dá para limpar?”. “Não. É difícil limpar, porque você não sabe efetivamente como esse material que chegou, que é diferente, vai interferir na dinâmica marinha. É preciso mais um ou dois anos de investigação para ter um parâmetro”, declara ela. Durante os primeiros meses de investigações, os pesquisadores da Ufes embarcaram em expedições programadas por órgãos ambientais ou em iniciativas próprias, realizadas de forma particular e baseadas no apoio que a Universidade pôde prover. “No princípio houve todo um trabalho voluntário. Tínhamos vários alunos, profissionais, orientandos. O pessoal se juntou e também já tínhamos projetos anteriores em curso, então ficamos seis meses praticamente com trabalho voluntário”, ressalta o professor Camilo. Porém, os próximos passos dependem de apoio financeiro. O professor Alex Bastos, que coordena o grupo focado no estudo do Meio Marinho, dentro da estratégia de articulação da Rede Ufes - Rio Doce, faz essa projeção: “O fato é que, depois do momento agudo inicial, a gente começou a observar que as coisas continuaram, não no nível inicial, mas como se tivessem estacionado num patamar acima ou diferente do que era antes. Hoje a grande pergunta que a gente tem é quanto à limitação de verba. A equipe realizou uma saída de coleta em abril de 2016, e passou todo o inverno sem coletar, só retornando ao local em 21 de novembro, quando o desastre completou um ano”, afirma o pesquisador. O professor conta ainda que essa atividade foi realizada com recursos próprios e apoio do ICMBio. Eles fizeram coletas no Rio Doce, entre Povoação e Regência, e na região marinha, entre
Degredo e Santa Cruz. Em dezembro de 2016, foi feita outra coleta no ambiente marinho, desta vez com embarcação paga pela Fundação Renova a pedido de órgãos ambientais. Essa Fundação foi criada pela Samarco a partir do Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC) assinado pela empresa e suas acionistas – Vale e BHP Billiton – com o Governo Federal, os estados de Minas Gerais e Espírito Santo e órgãos ambientais. A missão é implementar e gerir os programas de reparação, restauração e reconstrução das regiões impactadas pelo rompimento da barragem de Fundão. Enquanto aguardam as próximas ações, os pesquisadores preparam projetos para serem submetidos a órgãos de fomento. Em dezembro de 2016, três iniciativas a serem coordenadas e executadas na Ufes foram contempladas no edital Apoio ao Rio Doce Capes-Fapes-Fapemig-CNPq-ANA: “Impactos associados a lama de rejeito nos habitats marinhos e estuarinos da foz do Rio Doce: uma visão geológica, física, química e biológica”, sob a coordenação do professor do Departamento de Oceanografia Alex Bastos; “Impactos dos rejeitos de minério da Samarco na biogeoquímica do solo, na biodiversidade e no funcionamento de ecossistemas na Foz do Rio Doce”, coordenado pelo professor do Departamento de Oceanografia Angelo Fraga Bernardino; e “Uma infraestrutura de e-Science voltada à gestão da qualidade de água na Bacia do Rio Doce”, coordenado pelo professor do Departamento de Informática João Paulo Andrade Almeida. Além dessas, outras iniciativas aprovadas na chamada também contam com a participação de pesquisadores da Universidade. Enquanto aguardam os financiamentos, os pesquisadores da Ufes seguem apresentando os resultados já comprovados cientificamente em diversos eventos pelo mundo, e publicando artigos em periódicos nacionais e internacionais. “Quando a gente apresenta, as pessoas ficam chocadas. Esse desastre no Brasil pode ser um marco mundial. Isso pode ser um alerta para outros países”, conclui a professora Valéria.
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RIO muda de COR
Diálogo com a natureza é rompido
Letícia Nassar
A foz do Rio Doce abriga um mosaico de territórios tradicionais, com a presença de indígenas, quilombolas e comunidades de pescadores e ribeirinhos 24
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Arquivo OCCA
Esses são alguns dos relatos, marcados por expressões de tristeza e angústia, que os integrantes do projeto de Extensão Observatório dos Conflitos no Campo (OCCA), formado por professores e estudantes dos cursos de Geografia e Ciências Sociais, ouviram, viram e sentiram em dezembro de 2015, quando percorreram desde o município de Baixo Guandu até Regência (Linhares), onde fica o foz do Rio Doce. “Os rejeitos haviam chegado a Colatina, mas ainda não tinham atingido Regência. No entanto, os moradores das comunidades locais estavam apreensivos, esperando a lama de rejeitos com suas fisionomias marcadas pela tristeza. Eles diziam: ‘Estamos esperando... olhando para o rio para ver a lama chegar... A gente não sabe o que vai acontecer’. Um desespero tomou conta de todos nós, pois já tínhamos visto o rio tomado pelos rejeitos em Colatina,” conta a professora Simone Raquel Batista Ferreira, do Departamento de Geografia e coordenadora do OCCA. A equipe do projeto conhece bem a importância do Rio Doce para essas pessoas, pois há três anos atua junto às comunidades capixabas localizadas próximas ao rio. A foz do Rio Doce configura um mosaico de territórios tradicionais – comunidades pescadoras, ribeirinhas, indígenas, quilombolas – e que são herdeiras dos povos indígenas, como os aymorés, os krenaks e os botocudos. No entanto, essas comunidades têm um histórico de muita expropriação, de invasão e de exploração de riquezas. Desde 2013 que o OCCA trabalha junto com esses moradores em busca da identificação dos seus territórios para dar-lhes visibilidade. “Porque demarcar é para quem chega lá, bate estaca, como a Funai, por exemplo, que marca fronteiras, dá os limites definidos. O Observatório recolhe informações, faz histórico da comunidade e, depois, se esta quiser, pode dar entrada nos órgãos do Estado para solicitar a demarcação”, explica a coordenadora do projeto. a lama chegou. A água do Rio Doce foi ficando escura, densa. Pintando de marrom o leito do rio, a lama também fazia emergir, em busca de oxigênio, os peixes que davam vida ao rio e aos moradores ribeirinhos. “Como batizar as crianças na lama?”, perguntam os índios krenaks. “Sobreviver do quê, se não tem peixes para comer e para vender?”, questionam os pescadores. “Crianças não podem mergulhar no rio depois da escola”, alertam as professoras, pois era para o rio que os alunos iam quando acabavam as aulas.
E
Cartografia social Foi em 2013 que os integrantes do OCCA começaram uma pesquisa que ajudaria uma comunidade a não ser despejada de suas terras. “Nossa pesquisa era em uma comunidade localizada na foz do Rio Doce, que estava sofrendo um processo de despejo, de expropriação do território, por uma empresa do setor metalúrgico. A comunidade queria algum documento, estudos que atestassem que a ocupação deles era tradicional. Eles
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André Azoury Vargas
Desde a chegada da lama, as comunidades estão sem o rio para os batizados, para os mergulhos após as aulas na escola e para a irrigação da lav
não tinham nenhum documento, mas tinham a posse da terra por ancestralidade, ou seja, de pai para filho. Realizamos os estudos e os entregamos ao Ministério Público Federal, que reconheceu o local como sendo território tradicional da comunidade ribeirinha. Desse modo, a empresa não pôde realizar a expropriação. Foi uma vitória muito bacana que nós do OCCA conseguimos”, destaca a professora Simone. A partir dessa pesquisa, outras surgiram, e uma delas foi na comunidade de Areal, próxima à foz do Rio Doce. Os pesquisadores iniciaram os trabalhos em 2015 a partir dos relatos de que seus moradores eram de origem botocuda. “Na versão oficial da história, os botocudos tinham sido exterminados, mas tem os krenak, que são os últimos botocudos do leste e que vivem em Resplendor (município de Minas Gerais)”, destaca a professora. O trabalho do OCCA é fazer uma cartografia social, mas junto com os membros da comunidade. Eles indicam as lagoas onde pescavam, os locais onde moravam e onde tinham os quitungos que produziam farinhas. Como diz Simone: “é um histórico de muita expropriação, de perda de muito território desde a ancestralidade. Essas comunidades e seus territórios estão invisibilizados. Eles parecem que não existem enquanto territórios, enquanto espaço apropriado com modos de viver”. Os pesquisadores do Observatório, porém, já constataram que essas comunidades estão em busca da visibilidade, com a esperança de serem
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reconhecidas como povos tradicionais e de terem seus territórios identificados e, assim, terem peso político e trabalharem por políticas públicas que garantam seus direitos, a recuperação dos ambientes, o acesso a recursos, enfim, ações que estejam afinadas com suas demandas. “Quem é Barra Nova? Quem é Povoação? É uma localidade? Não, são territórios tradicionais. São povos que, perante o Estado brasileiro, têm direitos garantidos tanto na Constituição como em outros documentos. O Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que versa sobre povos indígenas e tribais. De acordo com essa convenção, os territórios tradicionalmente ocupados devem ser reconhecidos e respeitados, as comunidades têm que ser previamente consultadas sobre quaisquer alterações em seus territórios e devem definir o que querem para esses locais. Elas, assim, atribuem a própria identidade como povos tradicionais. Não é a academia quem vai dizer quem elas são. Desse modo, mudamos a lógica colonial. É o sujeito quem vai dizer o que ele quer e quem ele é e até onde vai o território dele, além de outras políticas”, ressalta a professora Simone. Economias enlameadas Em dezembro de 2015, a lama começou a se esparramar alcançando as lavouras e os mangues, de onde os catadores de caranguejos tiravam o seu sustento. “Quando a lama de rejeitos chegou, tivemos
Arquivo Occa
André Azoury Vargas
voura
uma tragédia absoluta, porque as comunidades tradicionais vivem um diálogo muito intenso com a natureza, de onde extraem tudo. Foi muito pesado para Regência, Povoação, Areal... Depois a lama se espalhou e chegou a Degredo, Barra Nova, atingindo uma faixa territorial costeira do Espírito Santo que é ocupada por diversas comunidades tradicionais”, conta a professora que, juntamente com o seu grupo, voltou ao local. Todos participaram, em abril de 2016, da Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce. A caravana, formada por 72 organizações nacionais, regionais e locais, foi dividida em quatro rotas que percorreram a bacia do Rio Doce, desde as nascentes do Alto do Rio Doce até sua foz, na Vila de Regência (Linhares/ES), entre os dias 11 e 14 de abril. Além dos integrantes do OCCA, participaram também professores e estudantes do Organon – Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Mobilizações Sociais, do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Ufes. “A caravana foi fantástica. Subimos de Regência até Governador Valadares (em Minas Gerais), levantando os impactos sofridos nas comunidades tradicionais capixabas. Mais da metade do ônibus que saiu da Ufes era formada por integrantes de comunidades tradicionais e camponeses que foram atingidos pela tragédia. Assim, houve um diálogo com as comunidades, fortalecendo a organização delas”, salienta Simone. Com mais de mil integrantes, as atividades da caravana estimularam a organização política das comunidades, formando os fóruns regionais de
defesa do Rio Doce, pois, para além das reivindicações de reparo de danos, há também a necessidade de ações para que essas pessoas tenham condições de viver. A professora relata com emoção a experiência vivida na caravana: “A relação deles com a natureza é muito intensa. Para os Krenak, o rio é o ancestral mais antigo. Eles foram a última comunidade que visitamos antes de partimos para Valadares e a tristeza deles nos chocou. Seus representantes também participaram da caravana. Para nós que conhecíamos a realidade dessas comunidades, a tragédia da Samarco foi o grito final”. O trabalho do OCCA continua, seja para tirar as comunidades da invisibilidade, seja para também ajudá-las, depois da tragédia, a reconstruir sua relação com o espaço herdado de seus ancestrais. Os integrantes do Observatório acompanham os processos, vão às audiências públicas, monitoram, encaminham denúncias. “Estamos em campo fazendo cartografia social. O estudante está praticando metodologia de pesquisa e extensão. Produzimos conhecimento para construir um mundo melhor, o que significa um mundo onde caibam vários mundos, onde caiba a diversidade dos povos, de cultura, de economias, de concepções, de pontos de vistas, onde não haja predomínios. Além disso, esse é um lugar que nós, academia, ocupamos na sociedade, já que o conhecimento que é produzido na Universidade é considerado legítimo, vamos colocar nosso conhecimento para atuar nessas questões ligadas às comunidades tradicionais”, conclui Simone.
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Arquivo Occa
VISIBILIDADE para as comunidades tradicionais Letícia Nassar
Equipe multidisciplinar de pesquisadores e extensionistas atua, inclusive por meio do ciberativismo, no mapeamento das violações de direitos que atingem grupos sociais que vivem do rio
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lama de rejeitos da barragem da mineradora Samarco não rompeu somente com as formas de organização social das pessoas que dependiam do rio, mas impactou também a própria ação do Estado, que precisou repensar as políticas públicas e as ações governamentais para tentar dar conta da conjuntura crítica instalada pela tragédia socioambiental. Enquanto os pesquisadores do projeto de extensão Observatório dos Conflitos no Campo (OCCA) desempenham suas atividades focadas nos reconhecimentos histórico, social e cultural das comunidades tradicionais, tirando-as da invisibilidade e tornando seus moradores atores com voz ativa nos órgãos que desenvolvem políticas públicas, os pesquisadores do Núcleo de Participação e Democracia (Nupad), do Laboratório de Estudos em Imagem e Cibercultura (Labic) e do Núcleo de Audiovisual (NAV) desenvolvem uma rede de defesa dos direitos humanos mediante a articulação entre os moradores dessas comunidades e os
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atores sociais que representam a sociedade nos canais institucionalizados. Esse grupo forma uma equipe interdisciplinar constituída por cientistas políticos, sociólogos, antropólogos e comunicólogos. Todos participam do projeto de pesquisa e extensão intitulado “Mobilização e controle social no contexto das violações de direitos humanos: impactos da tragédia no Rio Doce e as políticas públicas”, coordenado pela professora Euzeneia Carlos Nascimento, do Departamento de Ciências Sociais da Ufes. “Mesmo envolvidos em outros projetos de pesquisa, paramos as atividades e voltamos nosso olhar para o acontecimento. Em dezembro de 2015, visitamos Colatina e Linhares, especialmente Regência. Conversamos com a população ribeirinha, entidades ligadas ao meio ambiente e à luta contra as violações dos direitos humanos. Formamos a equipe para entender o fenômeno que estava acontecendo e caracterizar a ação da sociedade civil e do Estado, como forma de reagir
Lorena Orletti Del Rey (NUPAD-UFES)
Pesquisadores do Núcleo de Participação e Democracia visitam as áreas atingidas pela lama para diagnosticar os efeitos dos danos e contribuir para a reconstrução das comunidades ribeirinhas
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André Azoury Vargas
Pesquisadores da Ufes acompanham e registram as diferentes formas de ativismo da sociedade civil organizada
àqueles acontecimentos”, conta a professora. A primeira iniciativa do grupo foi identificar as formas de ativismo digital, porque, segundo Euzeneia, a redes sociais apresentavam um conjunto de manifestações, tanto de grupos organizados, quanto de ativistas individuais. E essa participação por meio do ciberativismo começou desde o rompimento da barragem. A pesquisa, desenvolvida pelo Labic, constatou que o período de novembro de 2015 até fevereiro de 2016, se caracterizou como momento de pico de mobilização nas redes sociais. As manifestações expressavam formas de solidariedade aos grupos e famílias atingidos, mas também havia formas de busca de reparação de danos e cobranças às autoridades e empresas envolvidas, para que os impactos fossem de algum modo mitigado. “Além disso, acompanhamos formas de ativismo off-line, ou seja, na sociedade civil, como protestos, teatralização e dramatização do que ocorreu no Rio
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Doce, seja em Vitória, com passeatas e atos públicos, seja em Linhares, especificamente em Regência. Isso nos chamou a atenção para o fato de que, diante dessa conjuntura crítica, a sociedade civil se movimenta”, destaca Euzeneia. Os pesquisadores observaram que o Estado também começou a se movimentar. “Percebemos algumas tentativas de movimentação por parte do Estado, no sentido de buscar e pensar políticas públicas necessárias para reparação dos danos, não só na área ambiental, como na área social, especialmente nos setores ligados à saúde, à qualidade de vida e ao saneamento básico. Essas foram as áreas que tiveram maior atenção em termos de construção de propostas de políticas públicas”, completa. Fragilidade do Estado O acompanhamento dos fatos levou os pesquisadores a concluírem que o Estado estava despreparado e fragilizado para lidar com os acontecimentos.
“Não só por causa da excepcionalidade do acontecimento, que apresenta um problema de grande dimensão a ser tratado, como também por causa das próprias deficiências das capacidades estatais, seja por parte do governo estadual, seja por parte do municipal (Colatina e Linhares), pois estão cotidianamente agindo a partir de uma incapacidade estatal no que diz respeito a uma pequena normatização das políticas sociais, a um quadro de recursos humanos precário, a um quantitativo de recursos financeiros para essas políticas sociais também precário. Enfim, há um Estado que já está precarizado para agir em prol das políticas públicas em um contexto de normalidade, imagine em um contexto de excepcionalidade”, salienta a professora. Delineia-se, então, um quadro no qual existe a atuação por parte da sociedade civil e a fragilidade do Estado para lidar com as consequências do desastre socioambiental. A partir desse diagnóstico, a equipe do projeto tem como problema de pesquisa a reconstrução das comunidades tradicionais a partir da ação conjunta entre sociedade civil e Estado. “Especialmente por se tratar de comunidades tradicionais, que territorialmente já estavam vivendo situações, de formas diversas, de exclusão. A vulnerabilidade social que esses grupos já viviam antes do desastre é potencializada no contexto pós-desastre”, diz Euzeneia. As comunidades tradicionais são formadas por quilombolas, indígenas, assentados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ribeirinhos e pescadores, cada qual com suas especificidades. Como destaca a professora, “não é uma proposta geral que vai adequar-se a todos”. O desafio do grupo é tecer essa diversidade de modo a reconstruir as comunidades impactadas social, ambiental, emocional e simbolicamente pela tragédia. Assim, o grupo expandiu. Além de fazer parte do Rede Ufes – Rio Doce, o grupo constituiu uma rede nacional formada por cinco instituições: Ufes, Universidade de São Paulo (USP), Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Essa rede elaborou
uma proposta para a chamada do edital da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Agência Nacional de Águas (ANA). “A primeira etapa da pesquisa foi feita sem recursos. Mas, para avançarmos em termos de construção de diagnósticos mais robustos, que visam orientar a sociedade civil e o Estado nas suas ações de reconstrução das comunidades, precisamos de investimentos para que os grupos possam se colocar em ação e concentrar seus esforços em torno de uma proposta de recuperação da Bacia do Rio Doce”, explica a professora. É mediante a construção de uma tecnologia de governança que, segundo Euzeneia, é uma tecnologia social que objetiva subsidiar a construção a respeito das formas de reconstrução das comunidades. “Essa construção envolve os atores da sociedade civil, os grupos organizados, as redes que se formaram para apoiá-los, os atores do Estado e os agentes governamentais. Esses dois últimos são os que elaboram e operam as políticas públicas, além de serem os responsáveis pela sua implementação”, diz Euzeneia. Além deles, há também as instituições participativas, que são os canais institucionalizados de participação que foram criados a partir de 1988 e que hoje normatizam a elaboração das políticas públicas. Esses canais são os conselhos gestores de políticas públicas, especialmente os das áreas da saúde, meio ambiente, direitos humanos e em saneamento básico, os comitês de bacias do Rio Doce e o Fórum das Águas. Cobertura digital A dinâmica dos trabalhos dessa tecnologia participativa será por meio de fóruns de discussão presenciais nas comunidades atingidas e de participação on-line, por meio de uma plataforma digital. “A operacionalização será definida a partir dos contatos com os grupos que farão parte desse grande debate. Será como um painel de opinião pública, pois será
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construído coletivamente, e será on-line”, destaca Euzeneia. Para os pesquisadores, essa cobertura digital atingirá não só os grupos organizados ou mais visibilizados, mas também a população que, geograficamente, está dispersa. “Estamos tratando de um problema muito complexo. Para que as soluções de fato sejam colocadas, sejam implementadas, é preciso que as pessoas afetadas façam parte da construção dessa solução. Para que elas se corresponsabilizem, para
que compartilhem desse momento de reconstrução das comunidades. E mais, que essa reconstrução considere suas peculiaridades, as suas necessidades de acordo com seu modo de vida tradicional. Não adianta vir com outro modelo de reconstrução, que deu certo em outro lugar, para ser replicado aqui no Espírito Santo. A participação dessas pessoas é entendida por nós como uma condição para a sustentabilidade”, alerta a professora.
Grafo do Labic sobre a rede de replies (comentários) no Twitter a respeito do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana (MG), em 2015
Ciberativismo e tensão O Laboratório de Estudos em Imagem e Cibercultura (Labic), do Departamento de Comunicação da Ufes, desenvolve, desde 2007, análises das redes sociais que envolvem algoritmos e dados e que são constituídas a partir das interações nessas plataformas. A pesquisa sobre o rompimento da barragem da Samarco/Vale/BHP começou a ser monitorada a partir do dia 1‘ de novembro e se estendeu até o final do mês, só no Twitter. Foram coletadas 37 mil conversas (replies) sobre o crime da Samarco.
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“As redes de conversações são capazes de revelar relações de poder em regime de tensão. Como é o caso da entrada em cena da Vale – nó conversador no grafo – ao tentar se defender através de argumentos baseados na ideia que está a proteger os humanos, os bichos e o local da tragédia. Veja https://goo.gl/ NUEhUl. Ou o tuíte de Miriam Leitão (https://goo.gl/ oFZ7TN), em que a jornalista coloca o dedo na ferida, gerando uma onda de comentários, de crítica à Vale e aos governos que ela financia”, explica o professor e coordenador do Labic, Fábio Malini.
Pesquisa e extensão interagem com
comunidades ribeirinhas Letícia Nassar
Fanpage do Organon
Os relatórios das pesquisas realizadas pelo Organon junto à população afetada pela tragédia no Rio Doce foram citados para fundamentar parte das acusações feitas pela força-tarefa do Ministério Público Federal (MPF) na primeira ação civil pública contra as mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton
o dia 16 de novembro de 2016, a chegada da lama ao primeiro município capixaba, Baixo Guandu, completou um ano. Para marcar essa data, o Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Mobilizações Sociais (Organon) voltou a percorrer essas margens do Rio Doce com objetivo de discutir com a população ribeirinha os processos de construção da mobilização social e do acesso à Justiça. Essa ação, denominada Arena Itinerante, começou suas atividades na comunidade de Mascarenhas, em Baixo Guandu, visitou as comunidades de Itapina e Maria Ortiz, em Colatina; Povoação e Assentamento Sezínio, na Foz do Rio Doce em Linhares; e Barra do Riacho, em Aracruz. A coordenadora do Organon, professora Cristiana Losekann, do Departamento de Ciências Sociais, explica que a Arena faz parte de um processo de formação de defensores populares de direitos, isto é, agentes na defesa de direitos, tais como assessores jurídicos, advogados e
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Pesquisadores do Organon junto à população ribeirinha durante Arena Itinerante realizada em dezembro de 2016
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Agência Ufes
Professora Cristiana Losekann, do Departamento de Ciências Sociais, coordenadora do Organon
cidadãos em geral engajados na defesa de direitos. Esse percurso realizado em dezembro complementa muitos outros que o Organon preparou. “Imediatamente após o rompimento da barragem em 2015, nós iniciamos um trabalho de acompanhamento dos efeitos socioambientais da chegada da lama ao Espírito Santo. Esse trabalho foi uma resposta às demandas de diversos grupos com os quais vínhamos trabalhando desde 2013, quando iniciamos uma pesquisa sobre os processos de mobilização de afetados por empreendimentos extrativos na América Latina, incluindo as mobilizações locais, no Espírito Santo”, conta Losekann. O grupo ouviu reclamações sobre a qualidade da água e doenças na pele, demandas sobre a insegurança em relação à contaminação dos peixes, queixas sobre a perda de um estilo de vida e sobre os impactos econômicos. Os relatórios dessa pesquisa foram citados para fundamentar parte das acusações feitas pela força-tarefa do Ministério Público Federal (MPF) na primeira ação civil pública contra as mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton. A ação pede R$ 155 bilhões em reparação aos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG). “Acredito que essa é mais uma evidência de que, em variadas frentes, a Ufes destaca-se, especialmente no caso do desastre da Samarco, na produção de conhecimento voltado para o interesse público”, diz a coordenadora do Organon. Com o título “Impactos socioambientais no Espírito Santo da ruptura da barragem de rejeitos da Samarco”, o primeiro relatório de pesquisa do Organon aponta que a tragédia comprometeu ou promoveu a perda
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total da lavoura dos ribeirinhos; prejudicou o turismo em Regência (Linhares), inviabilizou a criação de animais para consumo próprio, e causou impactos afetivos, simbólicos e culturais. A pesquisa foi realizada nos meses de novembro e dezembro de 2015. A ação do MPF também cita as entrevistas que os pesquisadores realizaram com a população ribeirinha. O documento cita ainda trechos do relatório técnico-parcial escrito pelo grupo Meio Marinho, responsável pelas pesquisas sobre os impactos da lama de rejeitos nas áreas estuarinas e marinha. O texto destaca os resultados relativos aos altos índices de turbidez da água e ao aumento das concentrações de alumínio, ferro, manganês e crômio na desembocadura do Rio Doce. Efeitos da mineração Como desdobramento dessa primeira etapa, o Núcleo está realizando o projeto “A mobilização dos direitos de atingidos pelo desastre da Samarco: interações e atuação de instituições legislativas e judiciais”, que tem como objetivo investigar a atuação de instituições legislativas e de controle do Estado e suas interações com os atingidos. “Trabalhamos com a perspectiva da mobilização do direito, buscando analisar as formas através das quais os atingidos constituem processos de ação coletiva e interagem com atores do Estado, sobretudo, com instituições do sistema de Justiça”, explica Losekann. A linha de pesquisa que norteia as investigações do Núcleo tem como objeto as lutas dos afetados contra os empreendimentos extrativos, como os de mineração e de petróleo. O objetivo agora é também compreender como esses processos continuam depois do desastre da Samarco. Segundo a coordenadora, “as comunidades têm poder muito reduzido frente a esses empreendimentos. O desastre nos mostrou que os efeitos da mineração vão muito além daquilo que normalmente se prevê em estudos de impacto ambiental realizados antes do licenciamento, portanto, a legislação precisa ser revista. Nunca ninguém pensou que uma ruptura em barragem de rejeitos em Minas Gerais pudesse chegar até o oceano via Espírito Santo, então, é preciso repensar os próprios parâmetros que estabelecem os potenciais afetados em desastres tecnológicos como esse”. Além de estudantes dos cursos de Ciências Sociais, Direito, Arte e Design da Ufes, por exemplo, outras instituições de ensino e da sociedade civil participam dessa rede de pesquisa, tais como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade
Fanpage do Organon
Estudantes, professores e instituições da sociedade que participaram da Arena Itinerante ouviram os relatos dos atingidos e desenvolveram debates a respeito da formação de defensores populares
Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O Organon tem também parcerias com ONGs, Fórum Capixaba em Defesa do Rio Doce, Movimentos dos Pequenos Agricultores, Brigadas Populares, Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, o Movimento pela soberania popular na mineração, a Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale, entre outros. O Núcleo integra, ainda, o Observatório Mariana - Rio Doce que tem financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). A professora Losekann destaca que a universidade pública tem um papel fundamental na sociedade. Na sua opinião, a instituição não deve somente produzir o conhecimento voltado para o interesse acadêmico, mas também para a melhoria das condições de vida. “Nosso grupo procura levar
às comunidades aquilo que temos discutido e produzido em termos de pesquisa científica sobre os dilemas e problemas na construção da ação coletiva, na mobilização social. Assim, nós apresentamos e debatemos junto com as comunidades como a ação coletiva pode se efetivar e produzir resultados que atendam às suas reivindicações”. Quanto aos danos provocados pela lama da Samarco, Cristiana Losekann ressalta que há muito a ser feito. “Ninguém sabe ao certo a extensão dos efeitos da lama. É preciso ainda estancar o vazamento que ainda não parou; retirar a lama que permanece ao longo do rio; analisar os efeitos dos metais em águas subterrâneas. Além de tudo isso, é preciso construir junto às comunidades as formas de reparação desse desastre-crime e construir formas de controle sobre a mineração para que isso não ocorra novamente”, salienta.
Sobre o nome Arena
forma, aquilo que o sociólogo argentino Adrian Scribano chama de “encontros criativos expressivos” e pressupõem a criação de um método que constitua essas arenas públicas de debates, como um espaço aberto para a troca de ideias, diálogo, enfrentamentos e confrontações entre os próprios integrantes de movimentos, organizações e comunidades e entre estes e atores do Estado. Essa proposta sugere que as pessoas exponham suas posições, ideias, incertezas, de maneira argumentativa ou através da expressão estética, emocional e espontânea. Os temas e métodos são definidos previamente, a partir de formatos que nós temos elaborado desde 2013 no Núcleo”.
A professora Cristiana Losekann explica que o nome “arena” está relacionado ao debate teórico que é realizado dentro dos estudos de movimentos sociais. “Nesse sentido nos inspiramos em um conceito de “arena pública” desenvolvido por teóricos pragmatistas e teóricos das vertentes culturalistas dos movimentos sociais”, complementa. Dentro das atividades de extensão e pesquisa do Organon, as arenas públicas são desenvolvidas em uma perspectiva de valorização da experiência, do conflito e das trocas entre as pessoas. Segundo Cristiana, “esse experimento é, de certa
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Patentes depositadas pela Ufes A Ufes possui um órgão que é responsável pela gestão da propriedade intelectual gerada pela Instituição, que é o Instituto de Inovação Tecnológica (Init), vinculado à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. Entre as suas atribuições está a de regular a proteção dos bens intelectuais da comunidade acadêmica por meio de patente de invenções e de novos processos, assim como o registro de programas de computador, de novas marcas e de desenhos industriais. O Instituto é ainda promotor da cultura da inovação, integrando sociedade, empresas e Universidade. Para isso, estabelece mecanismos de
cooperação, como convênios, licenciamento e transferência de tecnologia com outras universidades, centros de pesquisa e instituições públicas e privadas. Entre as 16 empresas que firmaram parceria ou convênio com a Ufes estão a Johns Hopkins University (JHU), Mogai Tecnologia de Informação Ltda, Infectious Disease Institute (IDI) – College of Health Sciences, Makerere University (Uganda) e Ekman – Serviços Ambientais e Oceanográficos Ltda. O Init possui 40 pedidos de patentes depositados no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi). Conheça alguns deles:
Imagens tridimensionais e a educação – Processo de geração e impressão de modelos tridimensionais obtidos a partir da associação de técnicas de microscopia eletrônica ao processo de geração de imagens tridimensionais, bem como o produto obtido a partir desse processo e sua utilização como ferramenta didática.
sendo alta a sua deposição no lixo, causando grande preocupação quanto à sua reciclagem. A nova tecnologia trata de um processo de obtenção de ácido tereftálico por meio da reciclagem química do PET.
Petróleo – Dispositivo e processo para monitoramento da presença de produtos ácidos durante o fracionamento de misturas de hidrocarbonetos, especialmente petróleo. Imobilização de levedura – Processo de imobilização de levedura Saccharomyces Cerevisiae pela utilização de biopolímeros de quitosana, carboximeticelulose e alginato de sódio. Compreende, ainda, a esponja polimérica obtida a partir deste processo. Relaciona-se com o setor industrial de produção de etanol e bebidas alcoólicas, além do setor de energia em geral. Reciclagem química de PET – As garrafas de PET são bastante utilizadas para embalar algumas bebidas,
Ultrassom – Separação das fases de emulsões do tipo óleo e água pela aplicação indireta de ultrassom. Remoção e recuperação de petróleo – Produção de biocompósitos poliméricos magnéticos à base de resinas obtidas a partir da glicerina e do óleo de mamona, produtos resultantes desse processo e uso desses produtos para a remoção e para a recuperação de petróleo. Ondas ultrassônicas – Sistema para a extração de compostos orgânicos e inorgânicos por aplicação indireta de ondas ultrassônicas em banho de ultrassom (US) modificado, aplicando-se à extração de compostos orgânicos e inorgânicos de solos, resíduos industriais, material biológico, vegetais, e de outras matérias complexas, especialmente na produção e refino de petróleo.
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ENTREVISTA: MARIA CARMEM VIANA CAPUTI
A morte
de si mesmo:
suicídio
Jorge Medina
O suicídio é um fenômeno encontrado nas diversas culturas em todo o mundo. Um assunto intrigante desde a Antiguidade até os dias atuais, com seus diferentes significados e sentidos. É um problema que não fica restrito à filosofia ou à psicologia, mas também abrange a medicina, a religião, a ética e o direito. Um assunto grave que ainda precisa ser melhor discutido pela sociedade e que tem crescido nas mais diferentes faixas etárias, grupos, gêneros e classes sociais. De acordo com estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS), pelo menos uma pessoa se suicida no mundo a cada 40 segundos, totalizando mais de um milhão de pessoas ao ano. No Brasil, dados do Ministério da Saúde mostram que, em 2014, foram mais de 10.600 casos. Essa é uma das dez principais causas de morte na população mundial. O suicídio se tornou uma grave epidemia silenciosa de proporções preocupantes. O tema tem atraído a atenção de vários especialistas no mundo inteiro. A palavra “suicídio” foi criada pelo francês Desfontaines, em 1737, para significar o assassinato ou morte de si mesmo, um ato que consiste em pôr fim intencionalmente à própria vida, em um desejo de escapar de uma situação de sofrimento. Para falar sobre esse assunto, a psiquiatra e professora do Departamento de Medicina Social da Ufes Maria Carmem Viana Caputi conversou com a Revista Universidade. O que pensa a especialista você confere a seguir.
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Jorge Medina
Pode-se dizer que o suicídio é multicausal. Quaisquer situações de crise, como existencial, conjugal, amorosa, familiar, financeira, laboral, ou acadêmica, um diagnóstico de doença grave e a perda de entes queridos podem servir de gatilho para a intenção de morte, com o intuito de alívio imediato do sofrimento. Os transtornos mentais, em especial a depressão, também aumentam o risco de suicídio. A intoxicação aguda por álcool e outras substâncias psicoativas também pode reduzir os mecanismos de controle dos comportamentos suicidas. Histórico familiar, abusos físico e sexual, sexualidade, dívidas, doenças psíquicas, psiquiátricas ou físicas e ambiente familiar caótico também são considerados fatores de risco para a morte voluntária. Entre os jovens, a pressão e/ou fracasso nos estudos e os relacionamentos frustrados são as maiores causas. Atualmente, o bullying feito pelas redes sociais e internet também contribui para o aumento das taxas entre os adolescentes. Entre os idosos, a sensação de invalidez, abandono, problemas de saúde e isolamento social causado por viuvez, separações, e distanciamento de filhos e netos, por exemplo, reforçam essa situação.
As pistas A sensação de desesperança e a falta de perspectiva e de solução para qualquer situação considerada crítica, a indisponibilidade de recursos mentais para fazer frente às adversidades do dia a dia e o isolamento social são fatores que devem chamar a atenção para a possibilidade de uma pessoa cometer suicídio, especialmente quando há manifestação explícita de ideação suicida, tentativas anteriores ou presença de sintomas depressivos, uso abusivo de álcool e outras drogas.
A prevenção UNIVERSIDADE - Revista da Ufes - Maio 2017
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ENTREVISTA: MARIA CARMEM VIANA CAPUTI
Pode-se pensar em três níveis de prevenção: A prevenção universal visa à conscientização da população geral acerca do suicídio, por meio de campanhas, entrevistas, debates e políticas públicas. Também preconiza a redução do acesso a meios letais de suicídio, por exemplo, o controle da venda de pesticidas, medicamentos e armas de fogo, e a colocação de barreiras físicas em lugares públicos visados. A prevenção seletiva se dirige a pessoas com risco aumentado, e visa à identificação e ao tratamento de transtornos mentais e do uso abusivo de álcool e outras drogas, além do manejo de situações de crise. A prevenção indicada se volta para o seguimento intensivo de pessoas que tentaram suicídio.
Idade e sexo Não, o suicídio não escolhe idade nem sexo. O suicídio é um fenômeno global, presente em todos os países. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), desde 2014 ocorrem mais de um milhão de casos por ano no mundo, ou seja, um suicídio a cada 40 segundos – sendo 70% em países de baixa renda. É a 10ª causa de morte, com uma taxa de 11.4 mortes para 100 mil habitantes (15.0 entre homens e 8.0 entre mulheres). No Estado do Espírito Santo, conforme dados da Secretaria da Saúde (Sesa), em 2015, foram 4,6 suicídios para cada 100 mil habitantes. O Brasil ocupa a 73ª posição no ranking de países com maior incidência de suicídios, aproximadamente são 10.600 mil casos por ano, com uma taxa média de cinco suicídios por 100 mil habitantes. Nos últimos 25 anos, a taxa de suicídio cresceu mais de 30% entre brasileiros, ocorrendo, em média, 26 suicídios por dia. Os países com maior índice são Lituânia (33,1 por 100 mil), Rússia (30,1 por 100 mil) e Bielorrússia (27,4 por 100 mil). No entanto, não se pode falar que os números citados correspondem à realidade, pelo fato de muitos suicídios serem registrados como acidentes. Deve-se ressaltar ainda que o risco é mais elevado em pessoas jovens, principalmente na faixa etária de 15 a 44 anos. Entretanto, o maior número de tentativas de suicídio é entre mulheres, e o maior número de suicídios é entre homens. O número de tentativas com sucesso é maior nos homens do que nas mulheres, sem dúvida porque os homens escolhem, geralmente, métodos mais violentos, como enforcamento ou revólver, já as mulheres preferem
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métodos como intoxicação por medicamentos. A China é o único país no mundo onde há maiores taxas de suicídio entre mulheres do que entre homens, especialmente nas regiões rurais. Além disso, os maiores índices costumam ser registrados em nações pobres, onde os habitantes sofrem com problemas socioeconômicos. Os métodos mais frequentes de suicídio são por enforcamento, medicamentos, uso de pesticidas, objetos cortantes e armas de fogo.
O que fazer Ao perceber que alguém apresenta algum dos sintomas já relatados, recomenda-se como melhor maneira de enfrentar a situação, procurar ajuda especializada, como psiquiatra, para fazer uma avaliação emocional, ou outros profissionais da saúde mental para tentar resolver, ou pelo menos, minimizar, as situações de crise. A família também pode ajudar abordando o assunto com delicadeza, tentando socializar em esportes, igrejas, clubes, amigos de trabalho, entre outros. O apoio e o acompanhamento familiar são essenciais para prevenir comportamentos que possam levar ao suicídio.
Os sinais Não existe um perfil definido das pessoas que podem cometer suicídio, mas tem de ficar alerta para alguns sinais que são apresentados pelos indivíduos que pensam em desistir da própria vida. Entre os sintomas estão isolamento social, mudanças de comportamento, agressividade, negativismo, indiferença, abuso de drogas, de bebidas alcoólicas ou remédios, tristeza, pessimismo, melancolia, desgosto pela vida e pelo trabalho e falar explicitamente que quer morrer. A importância de se observar esses fatores se dá porque parte das pessoas que cometem suicídio dão algum tipo de sinal de que têm pensamentos suicidas, que muitas vezes são ignorados ou banalizados. Deve-se prestar atenção a esses sinais, pois, no fundo, são formas de pedir ajuda.
Saúde pública O suicídio é um problema de saúde pública que, frequentemente, está associado a transtornos mentais e que pode se tornar uma epidemia
quando o comportamento suicida é compartilhado por um determinado grupo.
Falar sobre o tema Entre as diversas oportunidades para salvar a vida de quem pensa em se matar está a conscientização sobre o assunto, dando voz a quem sofre. O tabu sobre o tema do suicídio é um dos maiores obstáculos no combate a esse grave problema. No entanto, a população precisa ser mais bem informada sobre a depressão, que é um dos principais sintomas que podem levar ao suicídio. Além desses sinais explícitos, há alguns indiretos nos quais também é preciso prestar atenção, como quando a pessoa começa a se despedir de parentes e amigos, tem choros frequentes, preocupa-se em colocar todas as coisas em ordem, ou tem uma aparente melhora de um quadro depressivo, de uma hora para outra. Percebendo esses sintomas, é o momento de ajuda com profissionais de diversas áreas, pois o suicídio é visto como um problema clínico e social. O tabu em torno deste tipo de morte impede que famílias e governos abordem a questão abertamente e de forma eficaz. Aumentar a conscientização, seja por meio de campanhas, como “Setembro Amarelo” ou criação de serviços de apoio, são fatores importantes na luta contra esse tipo de morte.
Os impactos Os suicidas não destroem apenas a própria vida, mas afetam também a família, os amigos e a comunidade, deixando um rastro de dor, angústia e questionamento. Cada suicídio ou tentativa provoca uma devastação emocional entre os parentes e os amigos, causando impactos que perduram por muitos anos. Com isso, os familiares devem ser acompanhados com algum tipo de especialista ou mesmo de amigos, visando minimizar o sofrimento no processo do luto, em caso de suicídio ocorrido, para eles se sentirem acolhidos.
Estratégia de prevenção De acordo com a OMS, uma maneira de dar uma resposta nacional a esse tipo de morte é estabelecer uma estratégia de prevenção, como a restrição de acesso a meios utilizados para o suicídio
(armas de fogo, pesticidas e medicamentos). Também é preciso fomentar a capacitação de profissionais da saúde, educadores e forças de segurança. Os serviços de saúde têm de incorporar a prevenção como componente central. No Brasil, vale destacar o Centro de Valorização da Vida (CVV), que trabalha há mais de 50 anos na prevenção ao suicídio. A entidade atende 24 horas por dia no telefone 141, por e-mail ou bate-papo na internet, no endereço www.cvv.org.br. Na rede pública, é importante ressaltar o trabalho desenvolvido nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
Os meios de comunicação Muito se fala se a mídia deve ou não divulgar mortes por suicídio. Um caso histórico de contágio entre mídia e o suicídio surgiu do romance do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, “O sofrimento do Jovem Werther”, publicado em 1774. Nesse livro, o personagem principal se mata com um tiro após uma paixão não correspondida. Logo após a publicação dessa obra, ocorreu na Europa uma onda de suicidas, principalmente na comunidade jovem. O entendimento de muitos especialistas é que a mídia não deve divulgar a notícia do suicídio em si, somente se for de uma personagem pública. Deve evitar também a descrição detalhada dos métodos utilizados, não deve adotar práticas sensacionalistas e/ou incentivar atitudes estigmatizantes ou discriminatórias. Outro ponto que os meios de comunicação devem evitar são as chamadas dramáticas ou dar ênfase no impacto da morte sobre as pessoas. Além disso, deve evitar procurar uma “causa” para o ocorrido, transmitir uma “teoria” que coloca a culpa em algo ou em alguém; não deve fornecer detalhes do método letal nem publicar fotos. Percebe-se que alguns entrevistados, inicialmente, negam que a vítima tivesse dado sinais de que planejava se matar, mas essa percepção costuma mudar com o passar do tempo. Assim, a importância da imprensa em entrar nessa luta de prevenção ao suicídio, por isso, é de grande utilidade pública divulgar mais informações que possam conscientizar e esclarecer a população sobre esse assunto, pois é necessário falar mais sobre esse problema que está avançando silenciosamente e tira a vida de milhões de pessoas em todo o mundo.
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Educadores reagem
à lei que reforma
Ensino Médio Nábila Correa
A revista Universidade ouviu especialistas em Ensino Médio, professores do Departamento de Educação, Política e Sociedade do Centro de Educação da Ufes – a professora Eliza Bartolozzi Ferreira, coordenadora do Programa de PósGraduação em Educação (PPGE), e o professor Marcelo Lima, coordenador do Laboratório de Gestão da Educação Básica do Espírito Santo (Lagebes). Os pesquisadores apontam, entre as consequências da controversa lei que reforma o Ensino Médio, sancionada em 16 de fevereiro de 2017, a redução da qualidade da educação ofertada pela rede pública de ensino e, assim, uma maior dificuldade no acesso das classes populares à universidade pública, além da crise dos cursos de licenciatura e possível extinção do Sisu. 42
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forma da proposição da nova legislação foi uma das primeiras críticas sofridas pela polêmica reforma da educação básica, imposta por meio da Medida Provisória nº 746, editada em 22 de setembro de 2016, menos de um mês após a deposição da então presidente Dilma Rousseff. Esse tipo de instrumento legislativo, utilizado pela primeira vez para decidir sobre questões educacionais, permitiu que a mudança no nível de ensino intermediário, a qual atingiu principalmente o currículo, isto é, o conteúdo a ser ministrado nesse nível de ensino, tivesse efeito imediato, embora provisório, dependendo de posterior aprovação pelo Congresso. Dessa maneira, a decisão presidencial dispensou consulta à sociedade quanto ao tema e ignorou avanços alcançados para o Ensino Médio, como as Diretrizes Curriculares Nacionais, resultado de um amplo debate entre entidades, academia e demais segmentos da sociedade interessados nas questões educacionais. “Essa MP é um instrumento autoritário, que desconsiderou todas as discussões que aconteceram nas conferências nacionais, regionais e municipais. O atual governo também vem desmobilizando espaços democráticos conquistados pela sociedade, por exemplo, o Fórum Nacional de Educação, que, junto ao MEC, reunia diversas entidades para discutir as questões referentes à educação brasileira”, afirma a professora Eliza Bartolozzi Ferreira. A necessidade de se pensar em mudanças para a área da educação, principalmente em relação ao Ensino Médio, é confirmada pelos especialistas. “O Ensino Médio vive uma crise e isso tem sido uma justifi cação para as reformas que estão vindo. Porém, nem toda mudança é para melhor”, pondera o professor Marcelo Lima. “Com certeza nós precisamos de políticas da educação que deem conta do desafio que é a oferta para todos. Hoje, cerca de 30% dos jovens brasileiros não têm o Ensino Médio completo, e, em consequência, não têm as condições necessárias para ter acesso ao ensino superior”, explica a professora Eliza Bartolozzi Ferreira, acrescentando que a defasagem de escolarização é ainda maior quando se considera apenas a população negra. Entretanto, os pesquisadores da Universidade questionam, entre outros fatores, a intenção e capacidade da proposta apresentada em atingir o problema do afastamento do ensino intermediário, de parte da juventude.
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Escola atrativa Um fator que faria essa reforma falhar na missão de tornar a escola de Ensino Médio mais atrativa para jovens de 14 a 17 anos seria ter foco em alterar o currículo e não em buscar solução para questões mais profundas referentes à estrutura social em que vive grande parte da juventude brasileira. A professora Eliza declara que há muitas dificuldades enfrentadas pelos educadores hoje nas escolas, entre elas, a questão da banalização da violência, a desqualificação e desvalorização do magistério, além da inadequação e deficiência da própria estrutura física das instalações escolares. “Muitas de nossas escolas estão localizadas em bairros violentos, onde a comunidade já vive em situação bastante precária. Esse aluno, então, já enfrenta uma situação difícil no dia a dia, na qual a vida e a morte se tornam questões banalizadas”, pondera a pesquisadora. Quanto à questão da qualificação e valorização dos profissionais do magistério, a pesquisadora aponta a interrupção pelo atual governo de ações como o programa de formação continuada “Pacto Nacional para o fortalecimento do Ensino Médio (PNEM)”, implementado de 2013 a 2015, do qual participaram 7.500 professores da rede estadual do Espírito Santo. Nesse projeto, que teve coordenação geral da Ufes, os professores reuniam-se em grupos nas próprias escolas para ampliar sua formação por meio de cadernos temáticos elaborados pelo MEC, visando colocar em prática as Diretrizes Curriculares Nacionais voltadas para o ensino intermediário. Cada professor recebia também um tablet e uma bolsa de R$ 200,00. “O que aconteceu com o programa? Simplesmente o governo atual acabou com tudo. Havia ainda um recurso que seria usado para continuar essa formação e não sabemos o que aconteceu com ele”, afirma a professora. Em relação à real motivação para a atual reforma do sistema educacional e a celeridade com que foi implantada, o professor Marcelo Lima afirma que estão relacionadas ao compromisso do governo vigente com a política econômica e com a redução dos custos do Estado, o que explica as ações concretas realizadas para reduzir os recursos da educação. “Primeiro ele (o governo) fez a Desvinculação de Receitas da União (DRU), que desvincula 30% daquilo que está previsto na Constituição como dinheiro que a União deve destinar à educação. Depois ele vem com a PEC 55, aprovada no Senado,
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que congela os gastos do Estado, principalmente os primários, como saúde e educação, o que está muito relacionado com a reforma do Ensino Médio, que cria uma série de mecanismos que representam um retrocesso muito grande nas políticas que vinham sendo implementadas para esse nível de ensino”, explica professor Marcelo Lima.
“O Ensino Médio vive uma crise. Porém, nem toda mudança é para melhor”, pondera o professor Marcelo Lima
Ricos e pobres Ao contrário do que vem sendo anunciado na mídia, os pesquisadores apontam como consequência da implementação da reforma do Ensino Médio a provável precarização da oferta de ensino na rede pública, notadamente as estaduais, diminuindo o acesso dos estudantes originários das classes populares à educação superior. “Essa reforma, de um lado, reduz a obrigatoriedade da oferta de elementos educacionais importantíssimos, de outro, ela acena a ampliação de carga horária sem acenar com o financiamento necessário e cria um sistema em que haverá um distanciamento ainda maior entre escola de ricos e escolas de pobres”, declara o professor.
Pesquisadores pontuam aspectos nocivos da legislação Professores da Ufes, especialistas nas questões de Ensino Médio, destacam a seguir as divergências entre a propaganda apresentada sobre a reforma e a gravidade do futuro previsto com a implementação da medida
Uma das principais inovações da proposta de reforma seria a flexibilização de parte do currículo, dividindo-o em itinerários formativos, disponíveis para o estudante escolher, conforme sua vocação, projetos de vida e opção entre entrar diretamente no mercado de trabalho ou dar continuidade aos estudos na universidade. No entanto, para os professores Eliza e Marcelo, a flexibilidade de oferta do currículo é da rede de ensino, e não dos estudantes. “Essa questão da escolha do aluno é falsa, porque, na verdade, não é o aluno que vai escolher e sim o sistema de ensino, que não é obrigado a ofertar todos os itinerários formativos. Se estivesse previsto na proposta de lei que o aluno iria ter à sua disposição a Base Nacional comum mais todos os itinerários formativos à escolha dele, aí a comunicação da mídia sobre a possibilidade de escolha do aluno seria verdade, mas o projeto obriga o sistema a oferecer uma
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formação e, dependendo de suas condições, mais uma”, afirma o professor Marcelo Lima. Para o pesquisador, isso se articula muito com a questão da redução dos custos com a educação, correndo-se o risco de as redes estaduais optarem por ofertar o que é mais econômico, como já ocorreu anteriormente. “Quando veio a reforma do período militar, que instituía o ensino profissionalizante compulsório, as redes estaduais optaram por ofertar os cursos mais baratos, como de contabilidade, administração, magistério etc. É exatamente o que vai voltar a acontecer no bojo dessa mudança”. Ensino integral X atividade remunerativa Uma parte da lei da Reforma do Ensino Médio é a de ampliação de sua carga horária anual das atuais 800h para 1.000h em cinco anos, até chegar, gradativamente, a 1.400h, instituindo-se, assim, o ensino integral em todo o País. Para o professor Marcelo
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Para Eliza, a reforma atual é comparável a outras que ocorreram no País, com destaque para a Reforma Capanema, na década de 1940, e outra posterior, realizada no período da ditadura, na década de 1970. “A reforma Capanema foi uma estratégia usada para inibir a ida das classes populares para o ensino superior. Isso é que os estudos comprovam atualmente sobre essas reformas. Essa atual também pode levar a isso deixando os alunos das escolas públicas com menores condições de acesso à Universidade”, declara a professora. Marcelo Lima afirma que essa reforma não foi pensada isoladamente. Uma das possíveis conexões seria a de enfraquecer o sistema de cotas no Brasil, que permitiu, de um lado, a democratização do acesso ao ensino superior, e, por outro, se tornou um obstáculo para a manutenção da concentração do acesso a esse ensino pelas elites brasileiras. “Se a gente lembrar que o atual ministro da Educação entrou no STF (Supremo Tribunal Federal) com ação de inconstitucionalidade contra o sistema de cotas, você começa a entender que tudo isso faz muito sentido”, afirma Marcelo.
“Nova lei desmobiliza espaços democráticos conquistados”, diz a professora Eliza Bartolozzi Ferreira
Lima, essa medida está relacionada à preocupação que a sociedade tem com a juventude e à ideia de que os jovens estariam protegidos se permanecessem o dia inteiro dentro do espaço escolar. No entanto, o pesquisador aponta que seriam necessárias grandes adequações nas instalações da maior parte das escolas de Ensino Médio estaduais, que não têm uma estrutura mínima para implantar o ensino integral, como biblioteca, quadra esportiva, laboratórios, acesso à internet etc. Todavia, os recursos destinados pela União para a reestruturação das escolas alcançariam apenas o mínimo dos estudantes secundaristas. “O financiamento disponibilizado para o aumento da carga horária não beneficiaria nem 10% das matrículas do Ensino Médio nas redes estaduais. Um programa que se propõe a financiar um aumento de carga horária apenas para a minoria dos estudantes desse ensino não tem a sustentabilidade que diz ter. Ele não vai cumprir o que está propondo”, conclui Lima. Uma outra questão que se coloca com a instituição do ensino integral é que uma parte do
público-alvo do Ensino Médio precisa conciliar os estudos com alguma atividade remunerativa, não podendo, portanto, permanecer o dia inteiro no ambiente escolar. Marcelo Lima coloca que a reforma abre a possibilidade de utilizar a atividade laboral como complementação de carga horária curricular. “Entretanto há casos em que o estudante não vai poder comprovar o vínculo empregatício, por realizar trabalho informal”, pondera o educador. A saída para esses casos seria recorrer ao Ensino Médio noturno. Professora Eliza explica que já existe um processo de redução da oferta no turno da noite, do Ensino Médio regular, com 800h, restando para o estudante trabalhador a modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), que só pode ser cursada por maiores de 18 anos. “O movimento que estamos vendo é de acabar com o Ensino Médio noturno e colocar apenas a EJA, que tem uma carga horária bem inferior. Aqui no Espírito Santo isso já está até bastante adiantado. Não ter Ensino Médio Regular à noite, neste País, é um problema”, conclui Eliza.
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Resultados no Pisa tendem a cair ainda mais Outra justificativa para a necessidade de implantar rapidamente as mudanças no Ensino Intermediário seria o baixo desempenho dos estudantes brasileiros no Pisa – sigla inglesa para Programa Internacional de Avaliação de Alunos –, exame realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), para esse nível de ensino. Dessa proposição se infere que, ao abrir mão de ofertar uma formação geral mais completa ao longo de todo o Ensino Médio e fazer o estudante optar por itinerários específicos de formação, o estudante teria condições de ter melhor desempenho nesse tipo de avaliação internacional. Segundo professora Eliza, os estudos comprovam que os países que retardam o momento em que o estudante deve escolher sua orientação formativa possuem os melhores resultados no Pisa. Por outro lado, as desigualdades sociais entre os alunos são mais moderadas quando o tronco comum é longo, ou seja, como é feito hoje aqui no Brasil, quando o estudante tem mais tempo para fazer essas escolhas. “A França, por exemplo, não vem demonstrando bom desempenho no Pisa, nem a Alemanha, países em que a escolha da opção formativa do estudante ocorre respectivamente aos 10 e 13 anos. Quais países são os melhores no Pisa? Austrália, Canadá, Finlândia, Japão e Coreia do Sul, países que não praticam a diferenciação precoce dos alunos, onde não há organização do ensino flexibilizado”, explica Eliza. Aumento do fosso entre ensino público e privado Os dois professores apontam como uma das consequências mais graves da mudança proposta pelo atual governo para esse nível de ensino o agravamento da chamada dualidade educacional no Brasil, que é a diferenciação de conteúdos ensinados pelas redes pública e privada. “É claro que os alunos da rede privada vão querer o máximo, de forma que isso seja plataforma para que eles acessem o ensino superior, enquanto que, na Rede Pública, o currículo vai ser uma soma de Base Nacional Comum, mais o itinerário formativo que as escolas conseguirem ofertar”, afirma Marcelo Lima. Eliza, por sua vez, analisa que em outros
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momentos da história da educação brasileira, essa dualidade do currículo entre as duas redes de ensino foi ampliada, por meio de Reformas implementadas para o Ensino Médio. “No período da ditadura, a reforma da educação estabeleceu a oferta compulsória de educação profissionalizante no País. A escola pública então passou a oferecer cursos que exigiam baixo investimento. A rede privada, porém, não aceitou isso, então foi editada uma nova lei, permitindo que ela oferecesse um ensino geral, que preparasse o aluno para o vestibular”. Crise nos cursos de licenciatura Há, com a lei agora em vigência, uma flexibilização na exigência da formação dos professores para o Ensino Médio, retirando a exigência da licenciatura plena para lecionar nesse nível de ensino. Isso abre a oportunidade para os licenciados em uma área do conhecimento fazerem complementação pedagógica em outra para ministrarem componentes curriculares de formação geral. Para o professor Marcelo Lima, essa medida promove a desqualificação dos licenciados, sendo cada educador mais qualificado em sua área de atuação original. “Como eu vou, por exemplo, pegar o mesmo profissional para dar aula de Filosofia e Sociologia, sem fazer as duas licenciaturas? Ele vai fazer uma só, com complementação na outra, dominando menos o conteúdo que tem para ensinar. Erros assim já foram cometidos no Brasil. Já existiu, por exemplo, a disciplina de Estudos Sociais, que era um engodo, porque, na verdade, ou você é formado em História ou em Geografia”. Mudanças no Enem e Fim do Sisu As mudanças instituídas também teriam impacto sobre o Enem, sendo cobrada apenas a Base Nacional Comum nesse exame. Dessa forma, haveria um risco muito grande de as universidades deixarem de aderir ao Sisu. “Se você começa a descaracterizar a grande capacidade que o Enem tem de avaliar, porque seu conteúdo caiu, reduziu, as universidades podem optar por utilizar avaliação própria. Aí você implode o sistema criado a partir do Enem, o Sisu, que é muito bom e permite a mobilidade dos melhores alunos para as melhores universidades do Brasil.”, afirma o professor Marcelo Lima.
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VIOLÊNCIA
e o papel social da mulher idosa Letícia Nassar
Dos 450 boletins de ocorrência da Delegacia de Atendimento e Proteção à Pessoa Idosa (DAPPI-Vitória), a mestre em História Luciana Silveira constatou que 300 vítimas eram mulheres idosas
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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indica que a expectativa de vida dos brasileiros aumentou mais de 40 anos no período de 11 anos, atingindo a idade de 75,4 anos em 2014. A pesquisa apresenta numericamente o que é constatado no dia a dia das ruas, shoppings, áreas de lazer e lares do País. E é a partir dessa vivência e da constatação do IBGE que muitas ações começaram a ser cobradas visando à segurança e ao bem-estar dos idosos, como a construção de rampas e calçadas planas, nos locais públicos, e a instalação de barras de segurança e pisos antiderrapantes nas residências. No entanto, não é somente por meio de atitudes que garantam materialmente a integridade física que a vida dos que já estão na terceira idade será melhorada. Afinal, a interação entre sujeitos é tão importante quanto a precaução de acidentes na constituição de uma vida com mais qualidade. Então, como estão as relações familiares? Para muitos idosos, a relação com filhos, netos, noras e genros nem sempre é boa e, para outros, esse relacionamento é emocional e fisicamente doloroso. É a partir dessa realidade marcada no corpo e
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no psicológico do idoso que Luciana Silveira desenvolveu sua pesquisa. O foco escolhido pela pesquisadora foi o da violência contra a mulher idosa, pois número de mulheres que fizeram denúncias é o dobro do de homens. Intitulada “Gênero, velhice e geração: a violência familiar contra a mulher idosa em Vitória (ES), 2010-2012” a pesquisa começa com duas provocações: a da orientadora, professora Beatriz Nader, do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/Ufes), e de uma notícia publicada no jornal A Tribuna a respeito da Delegacia de Atendimento e Proteção à Pessoa Idosa (Dappi), em Vitória, que em um ano de funcionamento já havia registrado 450 boletins de ocorrência, sendo que 300 vítimas eram mulheres idosas. “Mas o ponto de partida para eu pensar o objeto da dissertação foi a fala publicada no jornal para explicar o porquê de as mulheres aparecerem mais como vítimas”, conta Luciana. “A reportagem dizia ser natural essas mulheres, por uma questão de afeto, se envolverem mais nos problemas dos filhos e netos do que os maridos. Além disso, o vício de filhos e netos em álcool ou drogas seria a motivação da violência”, salienta. Provocada, a autora colocou como um dos objetivos da pesquisa questionar essa suposta identidade feminina baseada no afeto e no cuidado. “Eu fui atrás dos boletins de ocorrência registrados pela delegacia de 2010 a 2012. Ao ler esses documentos, constatei que esses fatores estavam presentes. Porém, mais do que esses fatores de ordem estrutural, que são mais gatilhos da violência do que a explicação propriamente dita na ocorrência, eu comecei a ver que tinha a questão de gênero, ou seja, o papel social que as mulheres deviam cumprir na velhice. Além disso tinha a própria questão da velhice, como os estereótipos e os preconceitos em torno dessa fase da vida, que é vista como uma etapa negativa, sinônimo de fragilidade, debilidade física e psíquica”, explica Luciana.
“Há uma associação entre a violência psicológica e a física”, destaca Luciana Silveira em sua pesquisa
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A pesquisa tomou como referencial os documentos oficiais que estabelecem como idosa a pessoa com mais de 60 anos. “A delegacia também toma como recorte essa idade. Porém o envelhecimento é um processo, não há como estabelecer um recorte, pois ele ocorre de modos diferentes, dependendo do acesso que a pessoa tem a bens de saúde, o que faz com que a pessoa envelheça em maior ou menor medida em relação a outras pessoas que não têm acesso a esses bens. Nos boletins a faixa etária variava entre 60 e 84 anos”.
Violência psicológica A dissertação apresenta também outro tipo de violência contra as idosas – a violência psicológica. E isso leva à questão: os filhos faziam isso por que as vítimas eram mulheres idosas? Sim, responde Luciana Silveira. “Primeiramente, há a questão de gênero, o que aproxima a violência contra mulheres idosas da violência que é praticada contra as mulheres em outras etapas da vida. Mas existem as especificidades que precisam ser destacadas quando se fala em violência contra mulheres
Os agressores são maridos e filhos Os boletins de ocorrência trazem à tona uma triste realidade, a de que os agressores eram o marido e os filhos homens e que esses últimos também agrediam a mãe porque ela não queria continuar casada com o pai. “O motivo que a idosa alegava para a separação era de que o casamento já não era bom para ela, porque tinha sofrido violência durante o período matrimonial e que ela não aguentava mais aquela situação. Temos o ciclo da violência, ou seja, que ela começa com a ameaça, parte para a ação física e, só então, nesse último caso, a mulher vai denunciar. Temos também o ciclo da violência dentro do casamento, que vai permeando todas as idades da vida dela – do marido até os netos. Esses últimos aparecem nos boletins em menor grau e ocorre junto com os pais. Duas gerações agredindo mães/avós”. A pesquisadora explica que esses fatos acontecem por causa da questão da habitação e co-habitação entre gerações. Isso porque, seja por dificuldade financeira, seja por rompimento de casamento, filhas ou filhos voltam a morar com as mães e levam seus próprios filhos. Tem-se, assim, duas ou três gerações na mesma unidade domiciliar. A pesquisa constatou que a violência contra mulheres idosas é praticada, predominantemente, em âmbito familiar e doméstico. De acordo com Luciana, cada geração constrói a concepção de velhice de modo diferente, o que acaba gerando conflitos e aliam-se a isso os diferentes estilos de vida. É o que acontece nos casos
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de co-habitação. “Por exemplo, o modo de criação dos filhos. Às vezes a interferência da avó na criação dos netos acaba gerando conflitos entre os adultos. Mas temos também a questão das oportunidades, como o desemprego nas gerações mais novas (filhos e netos). Já os idosos têm a aposentadoria ou a pensão, ainda que não seja suficiente para suprir todas as necessidades básicas, porque o benefício é muito baixo, mas é uma renda garantida todo mês. Filhos e netos dependem economicamente da renda da mulher idosa. No caso dos filhos homens, isso passa até pelo questionamento da sua masculinidade, da não concretização dos papéis sociais masculinos, cujo fundamento é a tríade trabalho, virilidade e violência. Afinal eles têm que ser os provedores, só que dependem da mãe, que é idosa, para sobreviver”. Infelizmente para as mulheres, o lar não representa um local seguro, mas é, ao mesmo tempo, o único lugar onde estão as pessoas que elas amam. Eis então o receio de denunciar. “Constatamos o medo do rompimento dos vínculos familiares, do abandono e da solidão contribuindo para a subnotificação”, esclarece Luciana. Apesar de a pesquisa ter seu foco na violência contra a mulher idosa, a autora destaca que existe a violência contra os homens da terceira idade e que ela é também uma questão de gênero. “Quando resolvi trabalhar com a violência contra as mulheres idosas foi por uma questão de recorte e por achar que as discussões sobre violência de gênero não
idosas. Quando a mulher é mais jovem, o agressor atenta contra o físico, como queimar ou marcar o rosto, porque seria atentar contra a beleza, a juventude. Na velhice, tem-se o pressuposto que a mulher é vista como feia, já gasta, e a agressão não se volta contra o físico, mas contra o psicológico. Assim, o que motiva essas mulheres a ir à delegacia é denunciar as ofensas e os xingamentos. O agressor as chamam de velhas caducas, dizem que elas não prestam mais para nada, que não são boas mães,
que cozinham mal. Portanto, a violência psicológica é o que mais parece nos boletins, mais que a violência física”. Portanto são diferentes tipos de violência. “Há uma associação entre violência psicológica e a violência física. Tem a negligência e o abandono associados, e tem a violência física, a violência patrimonial, a violência econômica – filhos e netos que roubam o cartão de benefício”, diz a pesquisadora.
estavam contemplando a diversidade de mulheres e de contextos em que a violência ocorre, mas não ignoro que exista violência contra os homens e que seja também uma questão de gênero. Os homens foram educados a tratar dos próprios assuntos, se mostrarem machos, donos de si. Então, ir até a delegacia denunciar esse tipo de violência é um sinal de fraqueza, fragilidade. Os estereótipos de velhice também acabam afetando os homens”, diz a pesquisadora. Ela esclarece também que não pôde averiguar a violência contra diferentes grupos étnicos e raciais, visto que os boletins de ocorrência da Delegacia não têm em seus campos de preenchimento os itens cor e etnia.
saudáveis, de uma sociabilidade mais ativa e aberta construindo diferentes imagens da velhice. “Mas essa ideia de velhice pode ser danosa também, porque acaba aprisionando, principalmente a mulher, nessa indústria do corpo e da saúde e encobrindo os estereótipos que continuam existindo em relação à velhice. Ao mesmo tempo, ela continua sendo vulnerável à violência. É um paradoxo”. Por fim, a pesquisadora enfatiza que precisamos questionar nossas atividades relacionadas ao idoso diariamente. “Vejo muitas pessoas julgando uma mulher por causa da forma como ela se veste, se comporta, que aquilo não é adequado para a idade dela, reclamando do idoso que está no ônibus ocupando espaço. Tudo isso é uma forma de preconceito. O que é ser velho? É ficar em casa e não fazer nada? Todo mundo que é velho vive a velhice dessa forma? Precisamos rever a nossa responsabilidade na reprodução desses preconceitos. Acabamos identificando tudo isso lá nos boletins, nas ofensas que são proferidas contra essa mulheres idosas. Esses filhos e netos ouviram isso durante a vida”, alerta Luciana. “Há muito o que avançar nas discussões sobre a violência contra as mulheres. Em termos acadêmicos e de políticas públicas, a violência contra mulheres idosas, por exemplo, ainda recebe pouca atenção. Acredita-se que ela guarda contornos próprios e deve ser analisada e enfrentada considerando suas especificidades, como as construções sociais acerca da velhice e os papéis sociais que a mulher deve desempenhar nessa etapa de vida”, conclui.
Preconceito Luciana destaca que é preciso educar melhor a sociedade a respeito do que é a velhice. “É preciso preparar também os policiais que trabalham nas delegacias, porque eles, em sua maioria, não têm noção das relações de gênero, das relações entre gerações, sobre o modo como se vê a velhice socialmente. Querendo ou não, no nosso dia a dia, a forma como falamos da velhice acaba reproduzindo os estereótipos”. Por outro lado, desde os anos 1980 começou a surgir a ideia de uma velhice ativa que, como diz Luciana, está próxima a tratar a velhice como uma questão de consumo. Tem-se a indústria da estética, dos comésticos, das academias, que coexiste com as ofertas de produtos alimentícios mais
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IDEIA PREMIADA
Pesquisa que auxilia deficiência motora recebe prêmio do Google Research magine poder controlar os equipamentos eletroeletrônicos de sua residência, tais como TV, lâmpadas, ventilador e rádio, além de poder se comunicar por meio de sinais biológicos capturados pelos músculos ou olhos. Esses são os objetivos do trabalho do professor da Ufes Teodiano Freire Bastos Filho e do estudante de doutorado em Engenharia Elétrica, Alexandre Bissoli, com o título “Domótica Assistiva Multimodal com Sistema de Comunicação Aumentativa e Alternativa”, que está entre os 24 vencedores do prêmio Google Research Awards for Latin America. O projeto tem como objetivo desenvolver um novo sistema de assistência para ser utilizado por pessoas com deficiência motora severa e é resultado da pesquisa de mestrado “Solução Multimodal para Interação com Dispositivos de Assistência e Comunicação”, defendida em 2016 por Bissoli. Ele desenvolveu um software que capta o movimento dos olhos, por meio de um rastreador do olhar, e
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direciona o cursor do mouse para os ícones de cada equipamento da residência, selecionando a ação. Já foram realizados testes em 17 pessoas. Agora, segundo o pesquisador, os próximos passos são investir em testes prolongados para avaliar a inserção dessa tecnologia no mercado. Segundo o professor Teodiano Freire, o prêmio da Google Research é uma forma de reconhecimento internacional da pesquisa. “Esse prêmio é um mérito tanto da equipe de pesquisadores quanto da própria Ufes, que nos apoia muito na realização da pesquisa”, afirma. Os trabalhos classificados no prêmio foram anunciados pelo Centro de Engenharia do Google na América Latina, localizado em Belo Horizonte, e fazem parte do programa de incentivo à pesquisa da empresa. A terceira edição do prêmio, versão 2016, distribui cerca de R$ 2,1 milhões, por meio de bolsas mensais para estudantes de mestrado e doutorado em Ciência da Computação, Engenharia e áreas Matheus Andreatta
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relacionadas. As bolsas têm duração de um ano. A edição 2016 do Google Research Awards for Latin America recebeu 473 inscrições de projetos originários de 13 países. Entre os 24 escolhidos, o Brasil ficou com 17, México e Chile com dois cada um, e Argentina, Colômbia e Peru com os demais. O destaque é que, dos 17 projetos brasileiros premiados, 15 deles são desenvolvidos em universidades públicas: UFMG (5), USP (3), Unicamp (3), Ufes (1), UFRG (1), UFU (1) e UFPel (1). Para Berthier Ribeiro-Neto, diretor do Centro de Engenharia do Google na América Latina e idealizador do programa, o prêmio é como um selo de qualidade para o trabalho dos pesquisadores. “Para o Google, a ideia é identificar as universidades de elite em investigação científica, pesquisadores proeminentes e projetos com impacto social e para os pesquisadores é uma vitrine com uma grande visibilidade”, afirma Ribeiro-Neto. Segundo ele, os projetos devem estar alinhados com campos de interesse do Google. Entre eles estão mapas; interação entre humanos e computadores; retenção, extração e organização de informações; internet das coisas; aprendizado de máquina e mineração de dados; dispositivos móveis, processamento natural de línguas; interfaces físicas e experiências imersivas; privacidade; e tópicos relacionados à pesquisas na web. Os principais critérios de julgamento adotados foram: qualidade geral da proposta, potencial de impacto da pesquisa e alinhamento com as áreas estratégicas da companhia. Atualmente, Alexandre Bissoli, está desenvolvendo sua pesquisa de doutorado sobre o desenvolvimento de um sistema de gerenciamento de energia para um ambiente residencial inteligente utilizando a Internet das Coisas, sob a orientação dos professores Teodiano Freire Bastos Filho e Lucas Frizera Encarnação. Bissoli é formado em Engenharia Civil pela Ufes e em Engenharia Elétrica pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (Ifes) e todos os seus projetos estão vinculados ao Laboratório de Automação Inteligente (LAI) da Ufes.
O doutorando Alexandre Bissoli, o professor Theodiano Bastos e uma voluntária testam o novo sistema de assistência a ser utilizado por pessoas com deficiência motora
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A pesquisa realizada pelo professor Theodiano Bastos e pelo doutorando Alexandre Bissoli (foto) desenvolveu um software que capta o movimento dos olhos e direciona o cursor do mouse para os ícones de cada equipamento da residência
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Patrícia Garcia
O maestro Cláudio Modesto conduz o Coral da Ufes desde 1980
Em 40 anos,
muitas histórias de vida no Coral da Ufes Patrícia Garcia
O Coral da Ufes se tornou uma referência nacional no canto coral. Em quatro décadas, são incontáveis os coralistas que vivenciaram essa experiência de encantar e emocionar plateias
“O coral é sempre muito bonito por ser uma música, com todas as suas nuances, feita apenas pelas vozes humanas.” A frase é do professor Manoel Ceciliano Salles de Almeida, reitor da Ufes entre 1975 e 1979. Em sua gestão foi lançada a semente para um trabalho que iria render frutos por muitos anos: o Coral da Ufes. Conduzido pelo maestro Cláudio Modesto desde 1980,
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o grupo celebrou em 2016 seu quadragésimo aniversário, com muitos talentos revelados e histórias para contar. “Não tenho nem como medir a importância do Coral. Foi o início de tudo. Da minha percepção musical, do meu aprendizado, do meu contato com a carreira, do meu desejo de ser cantora. Foi o embrião do que sou hoje”, ressalta a cantora
Arquivo Coral da Ufes
lírica Patricia Eugênio, que participou do Coral entre 1999 e 2004. “Lembro do meu primeiro solo. Estava no Coral havia poucos meses e, sem o maestro saber, aprendi duas músicas com as solistas que acharam minha voz boa. Um dia, uma delas ficou gripada e, durante a música, me pediu para fazer o solo no lugar dela. Não tive nem tempo de pensar: quando vi estava cantando, e o maestro procurando de onde vinha aquela voz. No fim ele me elogiou, mas tivemos que repetir, pois com o nervosismo eu havia cantado rápido demais!”. Depois do episódio inusitado, Patricia nunca mais parou de cantar. De lá para cá, a soprano ganhou notoriedade e já participou de diversas óperas e festivais como solista. Outro cantor que iniciou sua carreira no Coral da Ufes é Max Michel Alves. Formado em Música pela Ufes, foi coralista durante sua graduação, de 2011 a 2015. “Fazer parte do Coral me ajudou de muitas maneiras. A vida acadêmica tem seus ciclos e o Coral não só esteve em muitos deles como serviu de apoio e refúgio para os obstáculos que enfrentei. O Coral é como uma família unida por interesses comuns, então me trazia sempre um sentimento reconfortante de pertencimento”, relata. Entre as histórias mais lembradas pelos coralistas estão aquelas das viagens realizadas pelo grupo, para eventos e encontros de corais em diversos estados do Brasil. “Uma vez, estávamos em um festival em Londrina (PR) e estávamos tão contagiados com a experiência que fomos passear em um shopping e, espontaneamente, começamos a cantar. As pessoas foram parando para ouvir e um homem ainda gritou: Canta mais que está pouco! Rimos muito disso”, conta Max. O estudante Darlaan Berger era novato no Coral quando viajou para um festival em Criciúma, em
Os integrantes do Coral fazem apresentações no Espírito Santo e em todo o Brasil
2015. “Fomos ensaiar em uma igreja, onde depois íamos nos apresentar. Enquanto cantávamos, entrou um homem embriagado que começou a glorificar a Deus com as mãos levantadas, se dirigiu até uma das coralistas e se ajoelhou na frente dela. Tivemos que nos esforçar muito para não rir da situação”, lembra. “O mais importante que o Coral trouxe para a minha vida foram as amizades e as muitas pessoas que conheci”, destaca Darlaan, com um sentimento que pode ser compartilhado por qualquer ex-coralista.
Maestros talentosos Na década de 1970, foi criada na Ufes uma Coordenadoria de Música, comandada pela professora Terezinha Dora Abreu de Carvalho. Ela formulou o Programa de Música para a Universidade e, com isso, foram colocados à disposição da comunidade vários projetos musicais gratuitos, incluindo o Coral da Ufes. Para dar início ao projeto, foi convidado Adolfo Alves, experiente maestro com quase 20 anos de trabalho com grupos vocais. Ele permaneceu como
regente do Coral da Ufes por pouco mais de um ano, deixando o cargo em 1977. Em meados de 1978, Cristiano Dalvi foi convidado para assumir o posto, e levou com ele alguns cantores mais experientes a fim de melhorar a qualidade do Coral. Entre os reforços, estava o contratenor Cláudio Modesto, que dois anos depois, em 1980, assumiria definitivamente como regente do Coral da Ufes e se tornaria, em pouco tempo, uma referência do canto coral no Brasil.
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ARTIGO
Ufes e Sisu 2017 Notas iniciais da gestão do ensino
Zenólia C. Campos Figueiredo Doutora em Educação e Pró-Reitora de Graduação da Ufes
uitas dúvidas foram levantadas no decorrer dos últimos anos sobre a adesão da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Dúvidas essas relacionadas tanto com a indicação desse sistema como uma “nova1” política pública nacional de acesso ao ensino superior, quanto a questões que circularam internamente, tais como o receio de grande mobilidade dos estudantes de fora do Espírito Santo para a Ufes; a elevação da pontuação média nas áreas de conhecimento do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) por parte de estudantes de outros Estados; e as garantias de permanência aos estudantes ingressantes pelo sistema de cotas. Apesar das controvérsias discutidas em estudos sobre o ensino superior no Brasil, sobretudo a relação entre quantidade e qualidade (NEVES; RAIZER; FACHINETTO, 2017), o Sisu, acrescido a outras ações e programas de governo, tem sido reconhecido como um instrumento capaz de ampliar o acesso e alcançar a equidade necessária à educação superior, por estar associado a políticas de reserva de vagas aos estudantes provenientes de escolas públicas e de diferentes camadas econômico-sociais e étnico-raciais. Internamente, com exceção da preocupação com a permanência dos estudantes, que continua sendo um desafio não somente para a Ufes, mas para todas as instituições federais de ensino superior, as hipóteses veiculadas não se confirmaram. Ou seja, nem a mobilidade de estudantes foi alta, nem houve elevação da pontuação média de estudantes de outros Estados. Das 238.397 vagas ofertadas nas 131 instituições públicas de educação superior participantes dessa edição do Sisu, 4.930 vagas distribuídas em
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91 cursos de graduação foram ofertadas pela Ufes. Um total de 85.204 inscrições foi efetivada no sistema para a disputa dessas vagas. Sem dúvida, esse número cresceu exponencialmente, o que é muito bom para a nossa instituição, que se afirma, em definitivo, num sistema nacional de seleção com as mesmas ou melhores condições de ensino, de pesquisa e de extensão que as demais instituições federais de ensino superior do país. Para essas 4.930 vagas, ao contrário do que temiam alguns setores da população capixaba, a maioria de inscritos e de classificados (75,73%) foi de candidatos do próprio Espírito Santo, seguidos de Minas Gerais (10,50%), São Paulo (4,50%), Rio de Janeiro (3,83%) e Bahia (2,27%). Os demais percentuais, em menor proporção, se distribuem por outros estados. Esse percentual de maior número de classificados que residem no ES permanece superior na distribuição dos 91 cursos. Exemplos de cursos em que, comumente, a demanda é alta: Direito: 120 vagas e 93 classificados do ES; Engenharia Civil: 80 vagas e 73 classificados do ES; Medicina: 80 vagas e 52 classificados do ES. Esse percentual de estudantes do Estado subiu ainda mais após a matrícula, já que muitos estudantes de outros estados foram aprovados em suas respectivas regiões e optaram por ficar perto da residência. A pontuação de corte geral nos cursos de licenciaturas, com vistas à classificação, se alterou de modo bastante significativo, sem exceção. Alguns cursos ultrapassaram a média de 700 pontos. História: 771,55 máxima; Educação Física: 728,62 máxima; Física: 789,89; Pedagogia: 720,12 máxima. Da mesma forma, houve alteração para cima na média da pontuação de corte dos bacharelados. Vejamos alguns: Serviço Social: 765,77 máxima;
Agência Ufes
Nutrição: 771,07 máxima; Medicina Veterinária (Alegre): 760,30 máxima; Letras-Português: 763.27 máxima; Arquitetura e Urbanismo: 780,08 máxima. Essa alteração qualifica não somente o processo seletivo, mas os próprios cursos e a formação profissional. Além disso, ajuda a desconstruir a representação comum de que não tendo nota alta de corte mínimo nas áreas de avaliação do Enem, a Ufes classificou candidatos com baixa pontuação, como também a de que os cotistas apresentam notas inferiores que os não cotistas. Tanto as notas mínimas quanto as máximas de cada curso, sem exceção, subiram neste ano. Registro no quadro nesta página exemplos aleatórios, de máximas e mínimas, na Ampla Concorrência e nas quatro possibilidades de Cotas, respectivamente, dos classificados nos cursos. Até o momento, ainda no processo de matrículas, o alto quantitativo de procura em todos os cursos da Ufes; o alto índice de estudantes classificados nas vagas, a alta concorrência nos diferentes cursos, o aumento da pontuação média por curso, a pontuação bastante próxima na maioria dos cursos entre as notas dos candidatos da ampla concorrência e cotistas, o percentual superior de candidatos residentes no ES, bem como os primeiros colocados, indicam que a adesão ao Sisu foi acertada e positiva. Entretanto, esses são motivos de comemoração parcial, porque temos um considerável desafio e longo trabalho pela frente, que é o de efetivar todas as matrículas, acompanhar esses estudantes em sua permanência até a conclusão nos cursos.
Professora Zenólia Figueiredo
1. Nova para a Ufes que fez adesão total somente no ano de 2017. O Sisu acontece desde o ano de 2010. Para se ter uma ideia, no ano de 2016, apenas cinco das 63 universidades federais não usavam o Sisu como forma de ingresso nos seus cursos de graduação. Referências NEVES, Clarissa Eckert Baeta; RAIZER, Leandro e FACHINETTO, Rochele F. Acesso, expansão e equidade na educação superior: novos desafios para a política educacional brasileira. Ed. Sociologias, Porto Alegre, ano 9, nº 17, jan/jun, 2007, p.124-157. Seminário ANDIFES – MEC (2010) – Projeções para o financiamento da expansão das Instituições Federais de Ensino Superior no contexto de um novo PNE 2011-2021.
Cursos
Notas Máximas
Notas Mínimas
Design (Integral)
762,97 – 735,23 – 705,71 – 671,05 – 683,62
697,56 – 672,32 – 660,05 – 641,04 – 663,54
Química (Integral)
756,00 – 731,98 – 676,69 – 661,67 – 696,32
669,05 – 629,92 – 622,64 – 626,74 – 643,49
Oceanografia (Integral)
775,07 – 667,56 – 720,26 – 643,47 – 676,01
709,06 – 641,67 – 714,80 – 632,48 – 671,51
Odontologia (Integral)
781,11 – 737,09 – 733,40 – 727,54 – 754,96
748,67 – 721,69 – 699,21 – 709,03 – 729,49
Pedagogia (Matutino)
720,12 – 681,56 – 650,01 – 657,39 – 645,51
643,23 – 617,91 – 621,47 – 626,68 – 615,35
Educação Física (Noturno)
732,61 – 707,95 – 656,31 – 730,63 – 657,59
663,22 – 633,53 – 631,11 – 651,85 – 632,89
Ciências Econômicas (Matutino)
812,87 – 698,97 – 699,00 – 750,76 – 715,89
716,33 – 645,33 – 667,65 – 677,72 – 642,28
Engenharia da Computação (Integral)
814,43 – 767,88 – 684,93 – 719,12 – 708,15
693,17 – 676,99 – 632,94 – 640,99 – 645,04
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LANÇAMENTOS Álcool, Tabaco E Outras Drogas na Atenção Básica Marluce Mechelli de Siqueira (Orgs.)
Programa de Alimentação Escolar no Espírito Santo: tensões entre Estado e mercado no processo pioneiro de terceirização Paulo da Silva Rodrigues e Rogério Drago
Bravos Companheiros e Fantasmas 6: estudos críticos sobre o autor capixaba Orlando Lopes Albertino, Paulo Roberto Sodré e Wilberth Salgueiro (Orgs.)
Diálogos com os Professores: práticas e reflexões sobre a inclusão escolar Andressa Mafezoni Caetano e Vitor Gomes (Orgs.)
Estradas de Ferro: projeto, especificação e construção Rodrigo de Alvarenga Rosa e Rômulo Castello Henriques Ribeiro
Sistemas de Transportes e Formações Econômicas Regionais: Brasil & Argentina – vol. 2
Viagens, Deslocamentos, Espaços: conceitos críticos Stelamaris Coser (Org.)
Mircea Eliade e a Busca do Sagrado: fragmentos biográficos Antônio Vidal Nunes
Rogério Naques Faleiros e Ivanil Nunes (Orgs.)
Formação de Professores, Práticas Pedagógicas e Inclusão Escolar: perspectivas luso-brasileiras Ivone Martins de Oliveira, David Rodrigues e Denise Meyrelles de Jesus (Orgs.)
Ação Profissional e Inclusão: implicações nas práticas pedagógicas em Educação Física José Francisco Chicon e Graciele Massoli Rodrigues (Orgs.)
A Edufes é filiada à Associação Brasileira das Editoras Universitárias (Abeu)
Metodologias de Pesquisa de Intervenção Com Crianças, Adolescentes e Jovens Ana Cristina Garcia Dias e Edinete Maria Rosa (Orgs.)
Lígia Teixeira Ribeiro – 1994. Ecoline, pastel seco e grafite sobre celulose, de A 16 x L 11 cm, nº de identificação 0572. Exposição “Cartão Postal: artistas brasileiros. A ética e a consolidação da democracia”. 46ª Reunião SBPC/ UFES. Faculdade de Filosofia do Espírito Santo (FAFI), Vitória, de 16/06/1994 a 22/07/1994. Acervo da Universidade Federal do Espírito Santo, Galeria de Arte Espaço Universitário