A UMBANDA É RACISTA? No momento em que a sociedade coloca questões morais a serem debatidas, em vários campos, é mais do que oportuno refletirmos se nossa religião, a Umbanda, é racista ou não. A Umbanda vem sendo construída a dezenas de anos pelos inúmeros Espíritos atuantes na religião, que representam uma parcela da figuração nacional, um panteão de marginalizados; como também, pelos os inúmeros adeptos da religião de um colorido multirracial. Não iremos ver opiniões ou atitudes dos Espíritos atuantes na Umbanda que demonstrem racismo, talvez na totalidade dos terreiros. Todos atendem e acolhem a qualquer pessoa que os procuram sem nenhuma distinção. Entre os adeptos da Umbanda o racismo pode ser percebido, dentro e fora do Terreiro, seja por palavras ou atitudes. Aqui neste artigo nos interessa pontuar como umbandistas expressam modos de pensar e atitudes racistas, ao praticarem e explicitarem sua concepção sobre a Umbanda. O racismo é um modo de pensar, um conjunto de opiniões e atitudes que vão distinguir e atribuir superioridade a uma matriz racial, entendida não apenas por características físicas hereditárias, mas também pela cultura dessa matriz. Cultura aqui compreendida como um jeito, uma forma de atribuir valores a diversas questões. Há décadas diversos pesquisadores vêm colocando em cena a questão do “embranquecimento” da Umbanda. Alguns entendem essa afirmativa apenas como uma questão da cor da pele dos adeptos da Umbanda. Pensar dessa forma é não perceber outros fatos. A questão do “embranquecimento” da Umbanda se apresenta com uma parcela de umbandistas, que desde o início do século passado vem tentando desqualificar alguns elementos das culturas indígenas, negras e de outras culturas excluídas renegadas a marginalidade, formadoras da Umbanda, em detrimento da cultura européia cristã que também é uma de nossas bases. Logo, uma questão de racismo.
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Em relação à cultura indígena nacional, isso pode ser observado, quando umbandistas que a defendem como uma de nossas bases religiosas culturais importantes, pouco sabem dizer sobre sua influência em nossa religião. Negam que muitos de nossos rituais se assemelham a práticas de pajelança, rejeitam as influências do Culto da Jurema presentes na Umbanda; não considerando os chamados “mestres da Jurema”, como Mestres”, por serem espíritos que teriam origem étnica nacional e terem sido pessoas simples do povo. “Mestres” para estes seriam espíritos de outras etnias de relevância social e cultural. Também umbandistas afirmam que a cultura indígena presente na Umbanda, é originária de cultos índios de outros países, como por exemplo, da cultura norte americana ou de nações indígenas andinas, como maias, astecas e incas, supostamente superiores culturalmente aos de nossa terra. A afirmação de que estes teriam dado a matriz da cultura indígena brasileira é uma desvalorização desta cultura, em detrimento de outra matriz cultural. Se no início do século passado pouco se sabia sobre os aborígines brasileiros e mais especificadamente sobre sua cultura religiosa, que poderia ter contribuído com essa desvalorização e racismo presente na Umbanda; não há por que hoje com tantos estudos sobre os índios brasileiros, não se rever essa concepção. A concepção da Entidade/Caboclo, que representa o arquétipo da cultura indígena nacional, como o indígena dócil, do “bom índio”, o índio romantizado de José de Alencar, daquele que ficou do lado dos colonizadores e lutou ao lado deles, ainda é expressa por vários umbandistas. De outro lado, vários autores nos contam que uma forma dos colonizadores se entenderem com os nativos, foi de criarem mecanismos para separar os índios em aliados e inimigos, como uma forma de classificá-los numa hierarquia social e que estes indígenas se utilizaram desses mecanismos em estratégias de sobrevivência na época colonial. Conceber as Entidades/Caboclos desta forma não seria colocar a Umbanda como uma religião do conformismo, que reuniu espíritos que aceitaram a imposição da cultura religiosa européia como superior? Não seria essa forma de pensar nossos Caboclos/Entidades um racismo presente na Umbanda?
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A desvalorização e o racismo quanto a matriz cultural negra presente na Umbanda é mais evidente, que a matriz cultural indígena, e se expressa de diferentes formas. Umbandistas usam o termo Orixá, que todos sabem ser originário dos cultos Iorubas, mas alguns ao conceituá-lo como “forças da natureza presentes no Universo”, logo de todos os povos, generalizam e negam a matriz cultural negra da Umbanda. Podemos perceber essa negação da matriz cultural negra, também na discussão do nome de nossa religião e de onde ele provém. Alguns defendem que este nome tem origem no sânscrito ou em outras aglomerações e paradigmas culturais sem ligações consistentes. De certo, no início do século passado, esse termo era comum para os povos Bantos1 que eram expressivos no sudeste brasileiro, tendo como significado “a arte da cura”. Nega-se esse fato por que ele era usado nos calundus e as chamadas macumbas2 , cultos negros hostilizados como primitivos? .
O congá elemento litúrgico, axis importante na Umbanda , que quase todas as vertentes têm, pode também ser uma expressão do racismo na Umbanda. Chamá-lo de Altar e aproximá-lo mais de religiões cristãs, não denotaria preconceito cultural? Congás habitualmente contém imagens de Santos Católicos e de Entidades. Há décadas farta bibliografia explica do por que este era formado assim. A questão do sincretismo entre Santos e Orixás, foi utilizado para fugir da repressão policial. Uma coisa é usar o nome congá nos Terreiros, sem saber de fato o que esse elemento ritual significa e sua origem em cultos negros; outra é negar a origem dessa representação sincrética que está presente em congás de Umbanda e os motivos de sua formação. 1
Sobre a questão do embranquecimento da Umbanda, Claudia Lima, no artigo: Muntu – Uma reflexão da expansão do Povo Banto no continente Africano e da interseção sociocultural na formação da Identidade brasileira, cita: “os estudos étnicos referentes ao negro no Brasil. Privilegiaram o grupo iorubano/sudanês, como modelo da matriz africana com maior prevalência no país, classificando de superior em seus aspectos de organização social, cultural e religioso, em detrimento a cultura banto. Essa teoria concebida por Nina Rodrigues, a partir das suas observações na última década do século XIX, é fundamentada pela ideologia racial elaborada pela elite brasileira, caracterizada pelo ideário de branqueamento. 2 A Cabula era um culto religioso realizado pelo povo Banto nos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais. Os cabulistas eram conhecidos como “feiticeiros". Foram também historicamente responsáveis pelo surgimento de vários quilombos. A Macumba era um culto realizado no Rio de Janeiro. Local que na época concentrava vários negros ex escravos libertos no Cais do Porto.
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A questão do entendimento do sincretismo 3 Orixá/Santo Católico na Umbanda também pode denotar racismo a partir do momento que seja visto somente a supremacia de um credo sobrepondo o outro. Uma questão é a Umbanda ter vertentes que venerem também Santos Católicos e se utilizem de imagens destes; outra é considerar que a totalidade da Umbanda assim o faz, impondo uma concepção religiosa Cristã de base e única para a Umbanda. Racismo, repetimos, é atribuir superioridade a uma matriz racial. A concepção da Entidade/Pretos Velhos, que representa o arquétipo da cultura negra vinda para nosso país, como um arquétipo que não só representa a sabedoria, mas também a docilidade, expressão de alguém que se rendeu ao poder dos colonizadores, “o bom escravo”, aquele que não se rebela, frente ao poder de seu colonizador é ainda expressa por vários umbandistas. 4 Conceber as Entidades/Pretos Velhos desta forma, não seria pensar que a Umbanda é uma religião do conformismo, que reuniu espíritos que aceitaram a imposição da cultura religiosa européia como superior? Não seria essa forma de pensar nossos Pretos Velhos/Entidades, uma subordinação ao colonizador, um racismo presente na Umbanda? A Umbanda em quase sua totalidade se utiliza de inúmeros elementos da matriz cultural negra desde contas, atabaques, danças, cantos, gestos, éticas, etc. 3
Tomaz Laycer, no artigo da Senzala á Capela se referindo ao sincretismo cita: “A forma de preservação da identidade negra e de seus valores culturais foi a assimilação e a incorporação de elementos da religiosidade católica, num processo de reelaboração simbólico-religiosa em que orixás e santos católicos encontraram um espaço de coexistência dentro da senzala. Mas essa não foi uma experiência histórica pacífica, sendo que até hoje os ritos afro-brasileiros esbarram em preconceitos e hostilidades. Ao longo da história do Brasil ocorreu um sincretismo religioso e cultural complexo – um verdadeiro caldeirão que caracteriza a congada e tantas outras manifestações afro-brasileiras não como uma simples assimilação da cultura do outro, imposta como forma de domínio, mas sim como resistência política, por meio da qual é preservado um arcabouço cultural ao mesmo tempo em que se constrói uma outra estrutura cultural, numa nova composição de símbolos e representações, surgindo assim uma nova identidade totalmente particular." 4 - A história nos indica como eram percebidos os negros rebeldes”. O episódio da destruição do Quilombo de Palmares, no século anterior, demonstra que os negros obtinham proteção real simbolizando também a da própria Igreja -, principalmente devido a sua condição de cristãos escravos. Aos negros que, como os quilombolas de Palmares, optaram pela vivência de um cristianismo fora das regras propostas, foi negado o direito aos sacramentos cristãos. Ronaldo Vainfas lembra uma carta enviada pelo Padre Antônio Vieira, em 1691, para Lisboa. A carta seguia em resposta a uma consulta feita pelo governo colonial que solicitava o seu parecer sobre a sugestão de um religioso italiano de ir a Palmares para catequizar os seus moradores e convencê-los a renderem-se ou fazer nova tentativa de acordo. Segundo Vainfas, o jesuíta parece sugerir a impossibilidade de administração dos sacramentos ou doutrina para rebeldes, revelando que a catequese só faria sentido se fossem escravos (Vainfas, 1996: 78). A recusa dos moradores de Palmares em aceitar a condição legal da escravidão levou a Igreja a rejeitarlhe a assistência espiritual e o rei a autorizar a sua destruição...”, in O Culto a Santos Católicos e a Escravidão Africana na Bahia Colonial, de Tania de Santana.
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Apesar disso, adeptos da religião persistem na tentativa de dizer o que é ou não Umbanda, por conta de aspectos rituais negros presentes em alguns Terreiros. Há uma “acomodação cultural” em algumas Umbandas ou o que há na verdade, é uma “apropriação indébita” de elementos religiosos negros, sem sua plena aceitação e compreensão? Mesmo com justificativas contemporâneas, é visível um elemento de desqualificação de alguns aspectos rituais como inferiores; negando que são matrizes culturais/religiosas diferentes, e como tal devem ser entendidas e não contrapostas. Não há sentido em se contrapor concepções de matrizes culturais diferentes. Transparece uma intenção de colocar uma matriz cultural como superior e assim está se cometendo racismo. A contraposição da concepção de “caridade” como sendo da Umbanda que se contrapõe a “lei da Salva” originária em cultos religiosos negros, é um desses exemplos. Entendemos que aqui a concepção de caridade cristã está sendo simplificada. Caridade5 seria qualquer ato de auxílio ao próximo, desprovido de interesses que beneficie quem o pratica. O que muitos se referem em relação à “Caridade” na Umbanda é sobre a questão da espiritualidade e seu uso com fins monetários. É disso que tratam quando citam: “dar de graça o que de graça foi recebido”. A “lei da salva” tem sido expressa pelo pagamento de alguns serviços espirituais. Originalmente na África, não era dinheiro que se “trocava” por trabalhos espirituais, mas este também podia ser usado com esse fim. A lei da salva expressa na verdade uma concepção mais ampla, a de que sempre é necessário troca - de energia. Conceito largamente utilizado em vários de nossos rituais, desde o acender de uma vela a uma entidade, como oferecer algo pedindo bênçãos.
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“... a Umbanda costumo dizer, baseado em alguns antropólogos e psicanalistas, é o divã popular, aonde muito de nossas facetas internas, a ira, a soberba, a vaidade, a inveja, aonde nossos arquétipos ancestrais vem a tona, "nossos exus internos, nossas crianças internas, nossos caboclos internos" através da simbiose com o sagrado são trabalhados e aprimorados. Equilíbrio é a palavra. Estando ativo dentro da religião, através de oferendas, banhos, da performance ritual, do "dar de comida a cabeça", faz com que as nossas mazelas, nossas loucuras humanas sejam transformadas em bondade, em fraternidade, em comunhão com a comunidade, em afago, em palavras ao próximo. É o exercício continuo do que se chama dentro da umbanda de "caridade". In Fórum da RBU – Rede Brasileira de Umbanda. Citação de Benazzi, Laércio. http://www.rbu.com.br/forum/topics/ex-umbandista-provacoes-ou? commentId=2104617%3AComment%3A868926
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Em cultos católicos, um padre católico faz uso de sua espiritualidade para rezar missas, já que este é considerado um interlocutor com o Divino; e cobra por algumas missas e rituais. As indulgências a pecados, eram trocadas por dinheiro. Estes não seriam usos da espiritualidade com fins monetários? Se nos ativermos na Umbanda, é comum hoje que sacerdotes criem novos rituais inspirados por suas Entidades; e que vendam cursos destes rituais. Também é comum hoje, que sacerdotes escrevam livros inspirados por suas Entidades, que são vendidos. Não estariam estes sacerdotes, indo contra a idéia “dar de graça o que de graça foi recebido”, que se convencionou como “Caridade” na Umbanda? Difícil compreender por que na Umbanda, se silencia diante de algumas práticas que se utilizam da Espiritualidade com fins monetários, mais contemporâneas e se ataca uma prática de herança da matriz negra. Finalmente, outra das expressões do racismo presente entre adeptos da Umbanda, é dizer que na Umbanda não se pratica sacrifício animal. Uma coisa é um Terreiro não ter como prática ritual a imolação animal, outra é dizer que a Umbanda não pratica esse ritual e que Terreiros que o fazem não são Umbanda. Os Umbandistas que assim procedem, expressam um pré conceito, por que se baseiam em um não entendimento do ritual, para rechaçá-lo, baseados em concepções culturais diferentes. A imolação animal é um ritual presente na Umbanda pela cultura religiosa negra, mas também existe em várias outras culturas. A imolação animal é uma oferta aos Orixás, baseia-se na essência vital, o sangue. Sangue não entendido apenas como vida, mas que possui uma energia elementar, que produz Axé e energia vital a quem oferece, numa constante troca energética, que é base de concepção culturas religiosas negras. Compreender o racismo, como pensar e agir a partir de uma matriz racial superior a de outra, é perceber que infelizmente alguns umbandistas, praticam uma Umbanda racista e tentam impor essa concepção a totalidade da Umbanda. Vivemos em uma sociedade com apelos e/ou declarações ufanistas, de que não há racismo e preconceitos dentro do Brasil, mas infelizmente nosso dia a dia, as segregações feitas pela sociedade e pelo sistema, mostram que isso não é real. A Umbanda tem como sua mola mestra, a pluralidade de concepções e a aceitação de diversos meandres culturais, uma junção de valores de diversas culturas formadoras. Contudo em alguns setores e 6
vertentes temos sem sombra de dúvida uma segregação tanto racial como social. Por uma Umbanda onde as matrizes culturais formadoras se assentem de forma igualitária, sem que uma tente se sobrepor a outra! Por uma Umbanda, que não pratique a intolerância, discriminação, e racismo intra religioso! Por uma Umbanda democrática e não, racista! Essa é a Umbanda que acreditamos e você? Tania Jandira R. Ferreira Umbandista da Aldeia do Caboclo Arari no Rio de Janeiro Laércio Adriano Benazzi Sacerdote da Casa de Umbanda da Terra e da Vida Sagrada, em Londrina, Paraná,
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