Sem a Clausura o Olhar Já Era Enclausurado

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O ano de 2020, por razões bastante conhecidas, cristalizou um sentimento que me acompanha desde que me entendo por gente: como é possível viver neste planeta da forma como tem sido há pelo menos três séculos? É claro que quando criança o pensamento era menos elaborado, mas eu era movido a refletir sobre o destino de todo aquele lixo produzido em casa e chegava à conclusão de que, na verdade, tinha alguma coisa de muito errada naqueles resíduos que não retornam para os ciclos do planeta. A economia, preconizada pelos doutos, especialistas que ditam o que funciona ou não – como se essa fosse uma questão estritamente técnica –, é baseada em disperdícios e cadeias altamente perdulárias, à medida que a fome, num mundo que nunca produziu tantos alimentos e nunca foi tão capaz de resolver os problemas a partir da sofisticação técnica, continua, como diria João Bosco e Aldir Blanc, “coisa dos hômi”. A vida, de fato, não me parece qualquer coisa com um sentido dado. Afinal, quem diria que a partir de enzimas, reações de eletrólise, ajuntamento em aminoácidos e, posteriormente, organismos mais complexos seria possível chegar a uma espécie que consome o planeta de modo a satisfazer suas necessidades narcísisticas, portanto nada a ver com a sobrevivência. No entanto, é preciso politizar esse debate e descortinar o planeta que, de fato, consome o planeta. Não são todos os seres humanos os responsáveis pelo atual Antropoceno e, mesmo aqueles que o são, também não podem ser inteiramente responsabilizados. O que quero dizer é a forma como tudo se estrutura. É, portanto, a sintaxe desse sistema econômico – o motor, esse sentido de estar no mundo que é esquizofrênico. O esgotamento do modelo capitalista, que soa como um eufemismo – já que os desafios colocados para o projeto civilizatório são imensos e complexos –, decorre, no cerne do sistema, de já não se ter mais para onde ir. Todos os mercados já estão explorados, todas as jazidas de todos os minerais já são conhecidas, os direitos mais elementares para a vida no planeta estão sendo transformados em commodities: desde o acesso à água, até o resguardo da vida privada. Não se pode, mesmo com a obsolescência programada, comprar cinco geladeiras por ano, 3 carros GLX turbo power por semestre, 10 celulares “I qualquer coisa” a cada três meses. Então, que se mercantilize aquilo que é demanda necessária para a manutenção da vida, essa é a lógica. As fronteiras não existem para esse capital que precisa da liberdade dos mercados, o capital que hoje rende em São Paulo, deve ser capaz de render o dobro amanhã em Tóquio, Dubai, Cingapura ou Delaware. Contraditoriamente, os muros nunca foram tão presentes: o que escancara o apartheid institucionalizado pelo estado sionista israelense, aquele que se constroi na fronteira dos EUA com o México, os tantos outros construídos em bairros como Morumbi, Jardins, Corredor da Vitória, Barra da Tijuca. Existem, até mesmo, os muros invisíveis, como o que separa as margens do Rio Tietê, onde estão colocadas expectativas de vida com diferenças abissais: uma típica de países da África Subsaariana e outra semelhante a de países do Welfare State europeu. Os povos autóctones têm constituído para si um outro mundo, que não é pautado no consumo, na propriedade privada e na existência de fronteiras como sentido da vida. Talvez resida nessa circunstância o fato de suas vidas estarem sempre ameaçadas, esses povos nos mostram um mundo materializado a partir de outras relações que não aquelas decorridas de um desdobramento do primeiro assassinato da humanidade: o de Abel por Caim que, ao cercar um pedaço de terra existente nesse planeta há bilhões de anos, o chamou de seu e ditou quem podia, ou não, usufruir daquele chão.

SEM A CLAUSURA O OLHAR JÁ ERA ENCLAUSURADO

Fui impelido a escrever tudo isso porque não há outra forma de abordar a pandemia de Covid-19 que não seja sob esse aspecto sistêmico, o de um mundo estreitamente interligado nas injustiças e na bonança. Tenho certeza de que em tempos de convívio social esse trabalho, certamente, ganharia outra expressão. Portanto, sinto que é um dever lançar um olhar, ainda que brevemente, sobre o que tem acontecido nos últimos dez meses. Essa pandemia, como os surtos anteriores de Sars-Cov do começo do século, resulta justamente do entendimento de que o planeta está à nossa disposição para consumi-lo à exaustão. Essa visão torpe e distorcida de progresso – palavra perigosa, sempre à mão dos perversos quando se trata de consultar sua cartilha em que, a propósito, também consta a palavra ordem – desconsidera a vida das outras vidas do planeta e, paradoxalmente, pode estar levando o próprio criador do conceito – o homo sapiens – para o mesmo destino. À medida que a urbanização avança sobre áreas de florestas virgens, que as geleiras, cujo interior abriga vírus em estado de latência há milhões de anos, derretem, enfim, que todos os biomas são impactados pelo processo “civilizatório”, nós nos colocamos em contato com animais que são potenciais vetores e nos tornamos também vetores. Quanto tempo levará para que um dos bilhares de vírus presentes na Amazônia, tão destruída e ameaçada, passe também para os seres humanos? Caso isso aconteça, os gênios da geopolítica se sentirão confortáveis em chamá-lo de vírus brasileiro? Será que até lá, para os privilegiados que podem, nos isolaremos outra vez em nossas casas? E, ao fim dessa ou da próxima pandemia, retornaremos resignados para o automatiquês da vida cotidiana?

SEM A CLAUSURA O OLHAR JÁ ERA ENCLAUSURADO

Música: Transmission for Jehn: Gnossiene nº1 (Exclusive Spoken Word) Tierney Malone, Geoffrey Muller

É preciso dizer que esse trabalho gerou em mim um processo catártico e que, como em toda catarse, me coloca algumas dificuldades na tentativa de organização de um pensamento que, quase sempre, precisa de tempo para ser refletido e elaborado. Não quero dizer, no entanto, que haverá um tempo em que tudo estará devidamente realizado, mas me lanço na tentativa de explicar o que me motivou. Ver o mundo pela janela e permanecer, de certa forma meditativa, com o olhar estabilizado em algum elemento da paisagem – daqui eu tenho o privilégio de ver um morro com uma mata secundária muito bonita –, é muito importante para se refletir sobre algumas coisas. Foi justamente num momento assim que me veio a ideia de fazer esse trabalho. Eu senti que não poderia acontecer de outro jeito, afinal olhar pela janela deixou de ser, há muito, uma contingência para se tornar uma necessidade: é preciso olhar o mundo lá fora, mesmo que meu corpo só possa estar lá por razões estritamente necessárias. Permanecer enclausurado pode ser angustiante, essa angústia não tem a ver, necessariamente, com a incerteza do meu destino – eu sei da minha sorte de poder me recolher e me resguardar de um mundo que, em pandemia, submete outros corpos ao risco de se contagiar e a tantas outras violências. A clausura interfere no olhar que, muitas vezes, não pode alcançar o horizonte, o respiro. Não quero fazer nenhuma comparação absurda entre esse momento e o confinamento de uma solitária, em que a pessoa com a perda da luz do dia, das referências espaciais e do tempo é alijada da própria subjetividade, mas a sensação é a de que a percepção do tempo e do espaço durante essa pandemia – em função da mudança de rotina, da confusão entre o trabalho e o espaço de reprodução da vida, de estar sempre sujeito ao confinamento da casa, da distância que o isolamento social pressupõe, de ver o mundo no enquadramento da janela – se tornou outra coisa.

A música escolhida, quando a ouvi pela primeira vez, ajudou a realizar muitas coisas e, assim, pude imaginar algumas imagens que poderiam ser feitas. Foi também a partir dela que me veio a ideia da metáfora de uma viagem interestelar. No confinamento da quarentena ver o universo lá fora só se torna possível, como quando se está dentro de uma nave, a partir da janela. Quando se faz um mesmo percurso a pé ou dentro de um carro, por exemplo, é possível ter compreensões até mesmo contraditórias do caminho que se faz: para quem está dentro do carro é possível ter a impressão de que mesmo uma rua muito suja é limpa. Quem anda a pé consegue descrever pontos de declividade, cheiros, poças d’água de uma chuva recente, infestação de baratas em função do verão que acaba de chegar, se a rua é limpa ou não, quanto tempo leva para se chegar em algum lugar – já que não se enfrenta congestionamentos de pedestres. Ao caminhar, em oposição ao carro e para um mesmo lapso de tempo, se percebe de fato o que é o caminho. O carro, o trem ou o avião percorrem determinada distância em tempo ínfimo, a pé levaria minutos, horas ou dias. Em todo caso, quando se está em movimento, é sempre o espaço que está a ser percorrido num dado tempo. Aqui, ainda em quarentena, não sou eu quem percorre o espaço ao olhar de forma estática pela janela. Quando acelero as imagens captadas de um determinado momento de observação, tenho a impressão de que foi o espaço quem me percorreu e deixou marcas em mim. Eu sou o sendero.

SER MARCADO PELO QUE ACONTECE LÁ FORA Levar a câmera para a janela e observar o que poderia ser captado é como se eu me lançasse ao mar ou ao espaço, não se pode prever, ainda que se tenha alguma ideia, o que pode acontecer. Uma expectativa com condições muito determinadas, sobretudo nesse caso, é simplesmente irrealizável. É preciso estar aberto para a viagem e escolher qual guinada dar em função do vento que sopra. Como em toda história que se deseja contar, houve renúncias. Algumas imagens, que me pareceram incríveis se tomadas de forma isolada, não caberiam no trabalho porque diziam, senão muito pouco, nada no contexto do rumo tomado. Ao gravar, principalmente as outras vidas em outros apartamentos, nem sempre era possível ver com nitidez o que determinada pessoa fazia no momento, mas, quando transferidas da câmera para o computador, eu era tomado, em alguns casos, por surpresa, nunca por indiferença. A oportunidade de ver o que o outro sentia num dado momento me fez ter vontade de dançar, de fumar um cigarro, tomar um café ao lado daquelas pessoas e me levou a sentir um profundo pesar de presenciar a dor e a angústia alheia sem poder fazer nada. É do sentimento de não poder estar junto que decidi me colocar, mesmo que virtualmente, ao lado da pessoa captada. Eu me imagino, já que eu só posso ver de dentro da minha nave-apartamento, num lugar em que eu não posso estar e ao lado de outra vida, de outra poeira estelar, de outra estrela observada a partir da minha nave. É aqui que a metáfora ganha contornos de materialidade e literilidade, já que somos, de fato, restos de estrela.

A presença do olho retoma a ideia de janela de onde se vê. O corpo é a nave e, no caso do olhar, com ou sem pandemia, o único enquadramento possível de onde eu posso ver para o resto da minha vida. A tendência, mesmo sem o enclausuramento, já era o do isolamento em lugares onde só é possível se relacionar com os seus afins. Essa não é, num país desigual como o Brasil, uma opção para alguns, mas é uma escolha deliberada para outros. Essa mesma lógica – numa relação dialética – muito ligada à apartação social, à violência urbana e às desigualdades e injustiças sociais, não permite a preservação socioambiental, nega a convivência – uma das principais virtudes das cidades – para produzir condomínios gradeados, envoltos por lâminas de “segurança”, de muros altos e cercas elétricas. É curioso que na normalidade a que tantos querem voltar, já se pressupunha e se encarava o outro como um perigo a ser evitado, contornado. No entanto, nesse momento, o principal motivo de angústia para grande parte das pessoas é não saber, justamente, quanto mais durará o distanciamento social. O que nos atormenta é que, com a imposição do lockdown, se descortina o afastamento que já existia entre nós: a indiferença com a dor alheia, com a dor do planeta. A pandemia desvela, sobretudo, que quando existia normalidade nós já estávamos em lockdown dentro de nós mesmos. Nossa alma já era refratária a uma genuína presença do outro nas nossas vidas. Tudo isso que está acontecendo nos obriga, de alguma forma, a ter que viver com a gente mesmo e, se antes só existia uma alegoria de si – uma personna –, agora é preciso nos confrontarmos com quem nós somos de fato.

PROJEÇÕES PARA UM (POSSÍVEL) FUTURO Entendo que esse trabalho desautoriza qualquer pensamento conclusivo, mas abre espaço para alguns desdobramentos a partir das reflexões expostas. Uma possibilidade que se abre é a de trabalhar com a projeção de imagens em empenas e fachadas dos prédios. Poderia ser captada uma cena de um apartamento e, a partir dela, com trabalhos de edição e montagens, ser feita uma projeção na mesma ou em outra janela. Nesse caso, me interessa o estranhamento que pode ser despertado em quem vê a cena e não consegue distinguir se é real ou não. A imagem deverá ser, portanto, projetada exatamente à risca no enquadramento da janela. Além disso, outros tipos de projeção poderão ser feitos que não se limitem à linha da janela do apartamento vizinho. Talvez, esse seja um dispositivo possível para poder travar alguma relação com as outras vidas que orbitam a nave de onde eu vejo. A verdade é que eu não sei inteiramente por que faço isso, mas eu sinto que pode ser arte quando não se tem o domínio completo dos porquês e pra onde se vai.

IN(TER)VENÇÕES URBANAS: A ARTE E A ARQUITETURA COMO CONSTRUTORAS DE DISSENSOS UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

Florianópolis, janeiro de 2021.

PROFESSOR: RODRIGO GONÇALVES DOS SANTOS ALUNO: UMBERTO VIOLATTO SAMPAIO


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