Enfoque Ocupação Justo 8

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ENFOQUE OCUPAÇÃO JUSTO

SÃO LEOPOLDO / RS JUNHO/JULHO DE 2020

EDIÇÃO

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DIENIFER DE LIMA

OCUPAR PARA VIVER DEZ MIL FAMÍLIAS, DEZ MIL HISTÓRIAS IGUAIS NAS OCUPAÇÕES DO MUNICÍPIO. LUTAS POR MORADIA, ÁGUA, LUZ, TRABALHO, SANEAMENTO, ALIMENTO. LUTAS PELA VIDA Páginas 8 e 9

DEFICIENTES NA PANDEMIA: QUEM OS AJUDARÁ?

VENCENDO O VÍRUS E CONFIANDO NA PROVIDÊNCIA DIVINA

SERVIÇOS PÚBLICOS DISPONÍVEIS E COMO CHEGAR NELES

Conheça a história da Shirlei, deficiente auditiva que depende da leitura labial para poder se comunicar. Ela sonha com máscaras transparentes

Joicimara superou a doença e quer voltar ao emprego. Sandra estuda a Bíblia e espera que não falte trabalho ao marido André

Saúde, educação, violência doméstica, segurança, assistência social, auxílio jurídico. Veja como e quando utilizar as estruturas de apoio à população

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2. Editorial

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SAMANTHA HARRAS

Ainda em isolamento social A

oitava edição do Enfoque Ocupação Justo traz várias histórias de como as famílias vêm enfrentando a pandemia. Neste semestre, os alunos tiveram uma experiência diferente. O isolamento social não impediu que a turma deixasse de retratar as diferentes realidades dos moradores. A palavra desse primeiro semestre poderia ser reinventar ou adaptar. Isso porque ao longo das nossas entrevistas, vimos o quanto a solidariedade é essencial para as pessoas que vivem na Vila. Já são mais de cem dias de isolamento e o amparo veio da união entre os habitantes da Justo. Em mais uma edição histórica do Enfoque, os moradores tiveram uma participação importantíssima. Afinal, além de dividirem conosco as suas histórias, compartilharam experiências e imagens, tudo isso on-line. Além disso, buscamos mostrar a rotina de outras ocupações. Bem como procuramos demonstrar quais iniciativas estão sendo mais eficazes para enfrentar o Coronavírus. A pandemia mudou a vida de muitas pessoas e é nesse período que precisamos ser fortes e acreditar que dias melhores virão. Enfrentar o presente sem esquecer de olhar para o futuro. A empatia tem se mostrado fundamental para isso, visto que, mesmo diante um momento delicado como esse, a Justo não deixou de se unir e lutar. Esperamos que muito em breve, possamos estar juntos e conhecer todas as pessoas incríveis que nos ajudaram tanto nesse semestre. Mais do que nunca, precisamos reconhecer e agradecer aos moradores por tornarem possível a construção dessas duas edições do Enfoque em meio a pandemia. Essa é a prova de que a união faz toda a diferença. Muito obrigado e boa leitura! FABRÍCIO SANTOS JULIANA BORGMANN

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Ocupação Justo é um jornal experimental dirigido à comunidade da Ocupação Justo, em São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares, neste semestre teve suas edições reduzidas de três para duas, excepcionalmente. É distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo.

EDIÇÃO E REPORTAGEM

Disciplina: Jornalismo Cidadão. Orientação: Pedro Luiz S. Osório (posorio@unisinos.br). Edição: Bruno Ferreira Flôres, Fabrício Santos dos Santos, Juliana Elisa Matte, Borgmann, Régis Bittencourt Viegas, Renan Cassiano da Silva Neves, Rodrigo Derany Jankoski Pacheco e Vinícius Emmanuelli Peres. Reportagem: Andressa Nicolly Morais da Silva, Bruna Larissa Lago, Bruno Ferreira Flores, Caren Lopes Rodrigues, Fabrício Santos dos Santos, Frederico Barasuol Wichrowski Dias, Grégori de Moraes Soranso, Juliana Elisa Matte Borgmann, Régis Bittencourt Viegas, Renan Cassiano da Silva Neves, Rodrigo Derany Jankoski Pacheco, Tainara Braga Pietrobelli e Vinícius Emmanuelli Peres.

ARTE

Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia.

IMPRESSÃO

Gráfica UMA / Grupo RBS. Tiragem: 1.000 exemplares.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 750. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: Pedro Gilberto Gomes. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Alsones Balestrin. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretor da Unidade de Graduação: Sérgio Eduardo Mariucci. Gerente dos Cursos de Graduação: Paula Campagnolo. Coordenador do Curso de Jornalismo: Micael Vier Behs.


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Histórias de vida .3

Comunicar-se, mais uma dificuldade para Shirlei ARQUIVO PESSOAL / SHIRLEI DA ROSA DA SILVA

Deficiente auditiva, ela depende da leitura labial, agora escondida pelas máscaras

A

lém do isolamento social, para Shirlei da Rosa da Silva, de 35 anos, a pandemia de coronavírus trouxe barreiras ainda mais difíceis de serem superadas. Com deficiência auditiva, ela tem um obstáculo extra no dia a dia, a comunicação. O uso de máscaras é obrigatório - e necessário - mas para Shirlei, representa a impossibilidade de se comunicar, pois a leitura labial é o seu meio exclusivo de manter o diálogo com a maioria das pessoas, já que desconhece libras, a linguagem de sinais. “Há aqueles que são compreensivos, se afastam e tiram a máscara pra falar comigo. Mas também há muito preconceito, pois algumas pessoas me ignoram e querem que eu entenda a qualquer custo o que está sendo falado”, relata Shirlei. Para ela, é visível que as medidas de prevenção à Covid-19, raramente são inclusivas para pessoas com deficiência: “Meu sonho nesse período é que o uso de máscara transparente seja obrigatório, pelo menos no comércio essencial, como os supermercados, e que as pessoas tenham um pouco mais de empatia com deficientes auditivos”. Superação é a palavra que marca a vida de Shirlei. Apesar das limitações, ela se comunica perfeitamente, tanto na escrito, como através da fala, e relembra que no início da vida escolar, o ensino era bem diferente: “Não recebi nenhuma atenção especial, naquele tempo não existia inclusão como hoje, eu avisava os professores sobre a minha dificuldade e sentava bem na frente para fazer leitura labial.”

OS DESAFIOS

Como ocorre com a maioria da população brasileira, a vida financeira também foi afetada. Segundo ela, o custo para se manter também ficou mais alto, e apenas com o auxílio doença que recebe, fica difícil manter os gastos com o filho de oito anos, e do irmão Deiviti, de 22 anos. Ele, afetado pela pandemia, precisou abandonar o trabalho como motorista, e ir morar com Shir-

Shirlei aproveita o tempo livre para brincar com o filho, Eduardo

lei. No entanto, é ele quem lhe ções: não entrar com o filho no ajuda, como intermediário, consultório, ou entrar sem pona sua comunicação. der entender a fala da médica, Embora a sijá que a máscara tuação financeira impede a leitutenha sido pre- “Meu sonho ra labial. judicada, ela não nesse período Mas, apesar possui direito ao de tantas difié que o uso auxílio emergenculdades, Shirlei cial, por conta do de máscara não se deixa ababenefício que já transparente lar, e faz o possírecebe devido a vel para auxiliar um problema de seja obrigatório, os pais, seu Masaúde, pelo qual pelo menos nuel, de 72 anos, aguarda sua vez e dona Zaida, de na fila para a no comércio 59, que também cirurgia. Além essencial” é acometida por disso Eduardo, problemas de filho de Shirlei, é Shirlei da Rosa da Silva saúde. Ambos asmático, razão se enquadram pela qual necessita de visitas no grupo de risco, e por isso, regulares ao médico. Com a contam com a ajuda da filha pandemia, a mãe tem duas op- para realizar atividades como

compras em supermercado e farmácia. É uma tarefa complicada, já que o casal mora na vila Santa Tereza, o que exige o seu deslocamento. Agora, Shirlei se prepara para a volta às aulas do filho, por enquanto, em ambiente virtual. Eduardo está em casa desde o fim de março, recebendo atividades dos professores através do WhatsApp. Há algumas semanas, o ensino nesse modelo fez uma pausa para inserir o conteúdo em plataformas e aplicativos específicos, o que representa um novo desafio para a mãe, que precisará auxiliar o filho pequeno.

AMOR PELA JUSTO

Moradora da Ocupação Justo há mais de oito anos, Shirlei

diz que gosta do local: “Eu amo morar aqui, é um lugar seguro e acolhedor”. Segundo ela, o convívio com a comunidade é bom, inclusive durante o isolamento, já que participa dos grupos virtuais dos moradores. Para isso, utiliza um aplicativo que transforma também os áudios em mensagens de texto. Assim como a maior parte da população, Shirlei teve que abrir mão de atividades da vida cotidiana, como passeios ao ar livre, e idas ao parquinho com o filho pequeno, mas para ela, isso não é motivo de choro. Pelo contrário, ela encara a vida sempre sorrindo, e destaca que na ocupação Justo, é feliz. TAINARA PIETROBELLI


4. Histórias de vida

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Preocupações com o futuro e o desrespeito à quarentena Moradores falam dos seus temores: a falta de cuidados coletivos e o desemprego

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PREOCUPAÇÃO

Segundo Balduíno, seus vizinhos fazem exatamente o posto. Ele acredita que isso seja por conta das muitas dúvidas causadas pelas autoridades. Estas dúvidas diante das recomendações gerais em relação ao vírus estariam afetando seus comportamentos. Conta que outra medida preventiva importante que está tomando em sua casa é evitar ao máximo visitas. Sempre que necessita realizar compras, segue os protocolos determinados pelo governo e profissionais de saúde ao pé da letra. Sempre prioriza ao máximo a sua própria segurança e a de sua família.As medidas que adota, para ele, são um gesto de respeito. Respeito“àqueles que doam suas próprias vidas ao próximo”. Balduíno conta que fica muito triste ao percorrer a ocupação e avistar moradores que não seguem as medidas impostas. Nessas ocasiões, percebe, ainda, pessoas compartilhando chimarrão em rodas. Ato extremamente perigoso diante do coronavírus. Além disso, continuam a realizar

SEM EMPREGO

Neli Camargo de Campos tem 60 anos de idade e trabalha como diarista. Mãe de oito filhos e divorciada há 17 anos, mora na Justo há sete. Está sem trabalho no momento. Ela conta que seu trabalho mudou depois da pandemia do novo coronavírus. Antes conseguia trabalhar cinco dias por semana. Hoje, apenas um ou dois, quando há demanda. Costura para passar o tempo e também para ajudar outras pessoas. Confecciona as “máscaras solidárias”. Elas são destinadas ao programa Rede Solidária São Leo. São distribuídas posteriormente para quem mais precisa.

Muitas pessoas passeiam e tomam mate juntos. Talvez devido às orientações confusas das autoridades DIFICULDADES

Mora apenas com um filho, Luis Carlos de Campos Dias, que tem 38 anos de idade e é especial. Está bastante deprimido e com ansiedade por não poder sair para passear. Um de seus outros filhos

trabalha em uma carvoaria e sofre com muitas dores, relacionadas à sua doença. Tem esclerose múltipla. Ele está com muitas dificuldades para obter a medicação, que tem preço elevado. O valor que recebe do INSS não é suficiente para custear as despesas. Está sendo muito difícil cuidar da sua saúde, conta Neli. Todos os demais, além do que mora com ela, moram com suas esposas. Ela só os visita se a situação demandar urgência. Segundo a moradora, muitos de seus conhecidos que ali moram estão preocupados com o futuro. A maioria relata para ela que está com dificuldades em obter e manter seus trabalhos. Não dão conta de conseguirem o sustento que precisam.

Ela acredita que o preço dos mantimentos pode se elevar a qualquer momento. Conta que ela mesma está sofrendo com muita ansiedade por conta disso. Percebe que a vida realmente não é mais como antes. Tanto Balduíno, como Neli, ambos moradores da Justo, compartilham preocupações semelhantes. Balduíno dá ênfase a situação de dúvida que infelizmente é causada por algumas autoridades. Figuras representativas que tecnicamente possuem muito crédito por suas palavras e ações. Manifesta preocupação com a consequência de suas ações para o coletivo. Mas sabe se faz a sua parte. FRED WICHROWSKI

Eliana e Balduíno: recolhimento e inquietações com a comunidade, prejudicada pela falta de orientações precisas das autoridades

ARQUIVO PESSOAL / BALDUÍNO HARCHIBAKE

dia a dia da Justo está sendo extremamente afetado por conta da pandemia do coronavírus.Empregos foram prejudicados,e com isso,o sustento das famílias. A situação é ainda pior para quem já sofria com problemas de saúde.Balduíno e Neli compartilham preocupações individuais e coletivas, diante da situação. Enquanto procuram adotar comportamentos que os protejam da pandemia, visualizam o contrário em suas proximidades.Apesar das dificuldades, enfrentam esse período aproveitando ao máximo as possibilidades existentes. Balduíno Harchibake tem 52 anos e trabalha como supervisor de segurança. Ele mora na Justo e é casado com Eliana Jussara Felhberg. Tem duas filhas. Balduíno conta que para muitos de seus conhecidos e também moradores a rotina mudou bastante.Mas não para ele, que trabalha em um serviço categorizado como essencial. Preocupa-se muito em seguir à risca as recomendações passadas por especialistas de saúde. O morador conta que decidiu, em conjunto com sua esposa, adotá-las. Sempre que está de folga permanece trancado,junto à sua família, dentro de sua residência.

aglomerações e receber visitas sem necessidade aparente.


Histórias de vida .5

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Vitória sobre a Covid-19 e fé no auxílio divino ARQUIVO PESSOAL / JOICE HUDSON

Histórias da família que venceu o vírus e de quem não conseguiu o Auxílio Emergencial

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“Eu sentia muita dor no corpo. Parecia que todos os meus ossos estavam quebrados” Joicimara Hudson Auxiliar de limpeza

Joicimara e os filhos foram infectados pelo coronavírus e estão curados ARQUIVO PESSOAL / SANDRA LUZ

nquanto a pandemia da Covid-19 se espalha por quase todo o mundo, os moradores da Ocupação Justo também foram atingidos em cheio. Joicimara, por exemplo, venceu o novo coronavírus e agora está de resguardo em sua casa. Já Sandra enfrenta os dias de isolamento social buscando esperança na sua fé religiosa. “Eu nunca pensei que pudesse contrair a covid. Acabei me surpreendendo quando soube. Passei muito mal durante uma semana”. A frase é de Joicimara Hudson, de 40 anos. A moradora da Ocupação trabalha como auxiliar de limpeza. Contraiu o vírus no fim do mês de maio e sentiu muito os sintomas da doença. “Eu tive febre, dores de cabeça. Não podia nem virar a cabeça para os lados”, relata. “Muita dor no corpo. Parecia que todos os meus ossos estavam quebrados”, acrescenta. Joicimara mora no Beco B da Justo desde 1998. Hoje, vive com os filhos Jackson Hudson (19), Mateus Hudson (15) e Larissa Gomes (9). Segundo ela, seu ex-marido, Antônio Gomes (45), testou positivo para o vírus primeiro. Como ela tem contato diário com ele e sentiu os sintomas, buscou auxílio médico. “Primeiro, fui a uma clínica. Lá, me disseram que era só uma gripe. Quatro dias depois, eu senti os sintomas e fiz o teste”, explica. De acordo com Joicimara, a empresa lhe afastou das atividades mediante atestado médico. “Eu me afastei do trabalho e a empresa prometeu que não vai cortar o salário de ninguém. Espero que seja assim”, afirma. Durante o período de 20 dias em casa, ficou a maior parte do tempo de cama. “Só deitada, porque estava mal, e olhando televisão. Assistir ao telejornal é triste porque são muitas pessoas que têm o vírus”, conta. “Não é só uma gripezinha”, completa. Além dela, os filhos Jackson e Larissa também contraíram a Covid, porém não manifestaram os sintomas com intensidade. A filha mais velha da família, Caroline Vieira (22), que mora em outra área da Justo, também teve contato com a mãe, mas

“Já tentei o auxílio do Governo três vezes e ainda está em análise. Já faz um mês desde que fiz o último pedido” Sandra da Luz Empregada doméstica

Sandra, o marido André e o filho Pedro seguem praticando a religião, mesmo no isolamento não foi infectada. Atualmente, Joicimara redobrou os cuidados no dia-a-dia. “Eu tenho muito medo do coronavírus. Agora, tenho mais ainda de pegar de novo. Eu sempre usei álcool gel e máscara e acabei tendo [o vírus]”, relata.

SEM AJUDA EXTRA

Durante a pandemia, são várias as alternativas que surgem a fim de tentar superar o isolamento. Para Sandra da Luz (35), empregada doméstica, a religião tem sido fundamental para enfrentar o isolamento social. “Eu sou estudante da Bíblia com as Testemunhas de Jeová.

Antes da pandemia, fazíamos a pregação de casa em casa. Hoje, fazemos por telefone”, explica. “Está me ajudando muito. Eu ligo para as pessoas, a gente se conhece. As atividades espirituais ajudam a mim e aos outros”, acrescenta. Sandra mora na Justo há quatro anos com o marido André (43) e o filho Pedro Henrique (12). A família trocou Caxias do Sul pela ocupação para fugir do aluguel. André é soldador e segue trabalhando em meio à pandemia. “Ele é funcionário de uma empresa. Ele não tem carteira assinada, mas graças a Deus não parou

de trabalhar. Temos uma renda, pelo menos”, conta. Mesmo que André continue trabalhando, Sandra explica como o aspecto financeiro tem pesado durante os últimos meses. Ela vinha trabalhando como empregada doméstica, mas está sem serviço desde antes do surto e vê dificuldade em voltar ao mercado de trabalho. “É difícil arrumar emprego numa época assim. A maioria das empresas está demitindo”, afirma. Por conta disto, tentou buscar o Auxílio Emergencial do Governo Federal, sem sucesso. “Já tentei o auxílio três vezes e ainda está em análise.

Já faz um mês desde que fiz o último pedido”, relata. Enquanto não recebe a ajuda do Governo, Sandra diz que a família consegue se sustentar com a renda do marido e com a ajuda de vizinhos. “Graças ao trabalho do André a gente não passa fome e consegue viver. Aqui na Justo, todo mundo se ajuda com comida, cesto básico”, explica. Para superar a pandemia, ela acredita na fé. “Não é momento de pararmos. É momento de termos fé, fazermos algo um pelo outro e demonstrarmos amor”, finaliza. BRUNO FERREIRA FLORES


6. Comunidade

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Como utilizar os serviços públicos? O jornal Enfoque reuniu informações sobre os principais serviços disponíveis à comunidade e como fazer para acessá-los

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alta de endereço oficial é um problema que gera muitas dificuldades para os moradores de ocupações, como a falta de iluminação pública e saneamento básico, por exemplo. Mas você conhece os serviços públicos a que tem direito? Sabe onde buscar apoio jurídico, como solicitar vagas na educação infantil ou mesmo denunciar violência doméstica? Na Justo, algumas ações estão mais presentes na comunidade, principalmente relacionadas à saúde e educação, como o cadastro de crianças em escolas e a unidade móvel de atendimento médico. Outras demandas como segurança, abastecimento de água e iluminação, são mais negligenciadas, conforme o relato das próprias moradoras que apresentam a sua percepção a respeito dos serviços. Confira a seguir onde buscar cada tipo de atendimento:

ACESSO À SAÚDE

Moradores da Ocupação têm a Unidade Básica de Saúde – UBS Cohab Duque como referência para atendimentos médicos. A UBS também conta com a Estratégia de Saúde da Família (ESF), que realiza visitas e faz o acompanhamento de cada família cadastrada. Porém, como a Ocupação não é uma área regularizada, não há visitas dos agentes comunitários no local. Mas exceções são abertas em casos de dificuldade de locomoção até a unidade. Tanto a UBS quanto a ESF oferecem atendimento clínico, pediatra, ginecologista, dentista, nutricionista, fisioterapeuta e psicóloga, além de fazer aplicação de vacinas. A unidade também conta com uma enfermeira, sendo possível realizar exame pré-câncer, testes rápidos de doenças sexualmente transmissíveis (DST) e, durante a pandemia, testes

de Covid-19. Para consultar, é necessário ter um documento de identificação com RG e CPF ou cartão do SUS. Todas consultas são realizadas através de agendamento. Para a auxiliar de serviços gerais Fabiana Teresinha da Silva, 42, essa é a grande dificuldade de acesso. “Tem vezes que são distribuídas apenas oito fichas, então é preciso passar a noite na fila pra conseguir”, afirma. Apesar disso, Fabiana reconhece que o atendimento prestado pelos profissionais é bom. No momento, estão sendo priorizados os atendimentos em forma de acolhimento. Ou seja, caso a pessoa chegue no posto com qualquer sintoma, há uma triagem para que ela possa ser encaminhada para o médico. De acordo com o diretor da unidade, Nicolas dos Santos Rodrigues, 23 anos, esse procedimento está ocorrendo devido a pandemia de coronavírus. Uma vez por mês, durante um turno do dia, uma unidade móvel vai até a Justo e oferece serviços clínicos, aferição de pressão e de glicose. Segundo Nicolas, não há data e horário certo para a ação acontecer, mas a prefeitura de São Leopoldo divulga com antecedência no site, na página no Facebook e Instagram. No mês de maio, a ação também orientou sobre cuidados em tempos de pandemia, além de distribuir máscaras e remédios através da Farmácia Móvel, serviço que o município passou a oferecer recentemente. Para atendimentos especializados, após a primeira consulta na UBS, o clínico geral encaminha o paciente para consulta no Centro Médico Capilé. “Tem algumas especialidades que a gente não tem aqui em São Leopoldo”, diz Nicolas. Nesses casos, é feito encaminhamento para Porto Alegre ou outro município que ofereça a especialidade. No Centro Capilé, os agendamentos são realizados exclusivamente por telefone.

VAGAS NAS ESCOLAS

Para estudar, as crianças e adolescentes precisam sair da

Ocupação. As vagas nas escolas próximas, tanto municipais quanto estaduais, são reguladas pela Secretaria Municipal de Educação (Smed). Segundo Fabiane Lemos, assessora do Departamento de Tecnologia para Educação (DTE), da Smed, para chegar até as creches e escolas distantes, os moradores usam ônibus escolar. Outra possibilidade para os estudantes é a recarga do bilhete eletrônico municipal, oferecida para que os alunos utilizem linhas de ônibus convencionais, quando necessário. Os benefícios de recarga e ônibus escolar são disponibilizados pelo município, em parte viabilizados pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Para receber os auxílios, os pais ou responsáveis precisam preencher um formulário no Protocolo da Smed. O setor do transporte avalia junto com o DTE e o administrativo, para saber se a pessoa

tem direito ou não. É levado em conta a renda da família e a escola precisa estar a 2km da casa do aluno. O ônibus escolar faz uma rota para pegar os alunos, os locais estabelecidos são nas entradas da Ocupação, pois os veículos encontram dificuldades de circular dentro da Justo. Em alguns casos específicos, como crianças PCD, o transporte busca em casa. Em geral, nas escolas municipais há atividades no contraturno como dança, esportes, tecnologias, além de auxílios em português e matemática. “O projeto é parte integrante da escola. ” Evandro Paixão, 42 anos, Diretor do DTE, se refere ao Colmeia, um projeto de pesquisa que tem oficinas variadas e as áreas são definidas junto com os estudantes. São acompanhadas durante o ano todo pelos professores. Neste momento de pandemia, as escolas estão fechadas. O governo estadual ainda está definindo como será o aproveiFABIANE LEMOS

tamento dos estudos. Segundo Evandro, não há nenhuma obrigatoriedade dos docentes disponibilizarem tarefas, mas alguns professores enviam materiais, que seriam ministrados em aula, para os alunos. Por ser mais próxima, a Escola Estadual Amadeo Rossi é que atende o maior número de alunos da Ocupação. A dona de casa Rosa Maria Lemos, 59, mãe de uma adolescente de 15 anos que é estudante da escola, relata a dificuldade da filha em acompanhar as aulas a distância. “As atividades estão sendo feitas pelo telefone. As vezes ela consegue acompanhar, as vezes fica para trás”, conta. Desde janeiro de 2019, a Smed faz ações nas ocupações de São Leopoldo para cadastrar crianças que ainda não possuem vagas em escolas. “Só em algum caso de 0 a 3 anos, que é um pouco mais complicado de ter vaga, mas mesmo assim, a gente sempre tenta contemplar as crianças de lá“, diz Fabiane sobre os moradores da Justo.

PROTEÇÃO À INFÂNCIA

Moradores recebem apoio da Prefeitura, como na realização de matrículas escolares

Responsável por atender a área que cobre a Justo, o Conselho Tutelar da Região Centro é o órgão que atua na defesa e garantia dos direitos das crianças e adolescentes. São cinco conselheiros disponíveis para atendimento, atuando em revezamento diário tanto na sede quanto no plantão de urgências. De acordo com a coordenadora Dione Oliveira, o trabalho do Conselho se dá principalmente quando há violação de direitos, tanto pela família, quanto pelo poder público. “Quando é negada uma vaga na escola, é preciso intervir pela família”, exemplifica Dione. Orientação sobre a regularização da guarda dos filhos e conflitos familiares são outros dois atendimentos prestados com frequência pelo Conselho Tutelar. Fabiana Silva, que é mãe de uma jovem de 18 e uma adolescente de 16 anos, já precisou acionar o Conselho por uma situação envolvendo a filha mais nova. “Foi até gratificante o


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aconselhamento que me deram. A gente chega lá e é atendido na hora”, lembra Fabiana.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Em casos de violência doméstica, as moradoras da Justo podem buscar auxílio na Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres (Sepom), que fica junto ao prédio da Prefeitura de São Leopoldo. A Sepom tem como função propor, apoiar e desenvolver as políticas públicas de gênero no município, elaborar e implementar campanhas educativas e de combate à discriminação contra a mulher. A Secretaria oferece o serviço de psicologia e avaliação psicossocial dos casos de violência, garantindo o suporte inicial para a superação de situações traumáticas vividas pelas vítimas. Também promove ações, programas e projetos de prevenção e combate a todas as formas de violação dos direitos e de discriminação das mulheres. A Sepom ainda dispõe do Centro Jacobina, que tem como objetivo orientar, acolher e acompanhar psicossocialmente e juridicamente, as mulheres, mulheres transexuais e travestis, em situação de violência de gênero. No Centro, está localizada a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), que atende ocorrências relacionadas às mulheres vítimas de violência. O local funciona apenas de segunda a sexta. Nos finais de semana e feriados, o atendimento deve ser buscado na Delegacia de Polícia de Pronto de Atendimento de São Leopoldo (DPPA), que fica aberta durante 24h por dia.

POLICIAMENTO LOCAL

De maneira geral, os moradores da Justo relatam não haver muitos problemas relacionados à segurança na Ocupação. Contudo, quando se faz necessária a presença do policiamento, as moradoras do Beco A, a dona de casa Rosa Maria e a vizinha Fabiana, alegam que dificilmente são atendidas. “Normalmente são situações de som alto dos vizinhos, porque as casas são muito próximas”, comenta Fabiana. “Quase nunca se vê polícia por aqui”, complementa Rosa. Segundo informações da Comunicação Social do 25º Batalhão de Polícia Militar a área da Ocupação é atendida pelo policiamento ostensivo. A Brigada Militar também reforça que o fato de os moradores não possuírem endereço oficial não impede o registro de ocorrências, e as chamadas de emergência podem ser feitas normalmente.

Endereços e contatos SERVIÇO DE SAÚDE UBS Cohab Duque Endereço: Rua José Olmiro de Andrade, 160, Cohab Duque Telefone: 3588 4932 Horário: Segunda à sexta-feira, das 8h às 12h e das 13h às 17h Centro Médico Capilé Endereço: Rua Conceição, 679, Centro Telefone: 3588 1829 Horário: Segunda à sexta-feira, das 7h às 17h ESCOLAS Creche e educação infantil EMEI Ipê Amarelo Endereço: Rua General Osório, 135, Bairro Duque de Caxias (Vila Duque) Telefone: 3589 8557 EMEI Sonho Nosso Endereço: Av. das Américas, 837, Bairro Duque de Caxias (Cohab) Telefone: 3566 2551 EEIP Anjinho Travesso II Endereço: Rua Jacob Roth, 314, Jardim América Telefone: 3588 6981 EEI Clube da Criança Endereço: Av. Unisinos, 1755, São João Batista Telefone: 3589 5050 Escola de Educação Infantil Privada Carrossel Encantado Endereço: Travessa Carlos Chagas, 113, quadra 11, casa 11 Telefones: 9964 75119, 9922 61174 e 9932 38479 Escolas municipais EMEF Doutor Borges de Medeiros Endereço: Rua Antônio Becker, 181, Bairro Jardim América Telefone: 3588 7180

AUXÍLIO JURÍDICO

Quem não tem condições de contratar um advogado particular pode buscar a Defensoria Pública. Tanto para se defender em uma ação, como para entrar com um processo por ter tido seus direitos violados. Além disso, o órgão ainda atua na mediação e resolução de conflitos, com o intuito de evitar que a disputa se torne judicial. O atendimento gratuito é oferecido às famílias que comprovem renda até três salários mínimos. Ações relacionadas a divórcio, direito à guarda, pagamento de pensão e pequenas causas são exemplos que podem ser acionados no local. Entre as funções da Defensoria também está o atendimento de demandas coletivas de comunidades carentes, como o ajuizamento de ações de defesa do direito à mora-

EMEF Henrique Maximiliano Coelho Neto Endereço: Rua Afrânio Peixoto, 100, Bairro São João Batista Telefone: 3589 7833 EMEF Paul Harris Endereço: Rua Montevidéo, 57, Bairro Santa Teresa Telefone: 3589 7811 EMEF São João Batista Endereço: Rua Aurélio Reis, 248, Bairro São João Batista Telefone: 3589 4467 EMEF Zaira Hauschild Endereço: Av. São Borja, s/nº, Fazenda São Borja Telefone: 3588 6559 Escolas estaduais EEEM Amadeo Rossi Endereço: Praça Viamão, s/nº, Santa Tereza Telefone: 3590 4964 EEEF General João Borges Fortes Endereço: Rua Hermes da Fonseca, 2375, Duque de Caxias Telefone: 3592 1024 EEEM Professora Helena Câmara Endereço: Rua Nereu Ramos, 500, Cohab Duque Telefone: 3590 5553 PROTEÇÃO À INFÂNCIA Endereço: Rua Adão Hoeffel, 59, Bairro Rio dos Sinos Horário: De segundas às quintas, das 8h30 às 17h. Sexta das 13h às 17h. Telefones: 3592 9599 e 98924 6360 – plantão 24h VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Horário: Das 8h30 às 14h30 Telefone: 2200 0371 E-mail: mulher@saoleopoldo. rs.gov.br Centro Jacobina Endereço: Rua Brasil, 784 Horário: das 8h às 14h Telefone: 3592 2184 E-mail: cjacobina@saoleopoldo. rs.gov.br Delegacia da Mulher Endereço: Rua São Paulo, 970, Centro Horário: De segunda a sexta, das 8h30 às 11h30, e das 13h30 às 17h30 Telefone: 3591 3499 POLICIAMENTO LOCAL Delegacia de Polícia Endereço: Rua João Alberto, 96, Fião Horário: 24h Telefone: 3591 5196 Brigada Militar Endereço: Rua Dietrich Hilbk, 80, Morro do Espelho Horário: 24h Telefone: 3592 1270 AUXÍLIO JURÍDICO Endereço: Av. Unisinos, 99, Cristo Rei Horário: De segunda a sexta, das 9h às 12h e das 13h às 18h Telefone: 3568 6127 ASSISTÊNCIA SOCIAL Endereço: Rua Osvaldo Aranha, 56, Bairro Centro Horário: De segunda a sexta, das 8h às 14h Telefone: 3566 1555 E-mail: crascentro@saoleopoldo. rs.gov.br

SEPOM Endereço: Av. Dom João Becker, 754, 2º andar dia digna. A Defensoria teve papel importante na abertura do processo de regularização fundiária da área da Ocupação Justo, atualmente em andamento. No momento não há atendimento presencial, devido a pandemia, mas está disponível o telefone para agendamento quando da retomada do serviço. Quem não conseguiu receber o auxílio emergencial também vai poder abrir recurso na Defensoria Pública.

ASSISTÊNCIA SOCIAL

Um dos serviços mais presentes e essenciais na Justo é o Centro de Referência da Assistência Social (Cras) Centro, unidade de atendimento ao público da Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS). O Cras, que fica localizado no Centro da cidade, tem como principal função o acompanha-

mento das famílias em situação de vulnerabilidade social. Lá é possível obter encaminhamento para segunda via gratuita de documentos, acesso a doações de roupa no Banco do Agasalho, fazer pedido de cesta básica e cadastramento para programas sociais. Normalmente, a maior procura é pela inscrição e atualização do Cadastro Único, requisito para acesso ao Programa Bolsa Família, entre outros benefícios, como a isenção da taxa em concursos públicos. Ronice Reis, casada e mãe de duas filhas, apesar de nunca ter conseguido receber o Bolsa Família, mantém o cadastro atualizado para usar como declaração de endereço. “Aqui é como se a gente não existisse, já que não tem endereço registrado, nem CEP e nem número. Com esse comprovante, pelo menos, a gente

tem um documento para apresentar”, revela Ronice. No local também é feito o encaminhamento de crianças e adolescentes para os Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) ofertados em instituições conveniadas, no contra-turno escolar. A equipe do Cras dispõe atualmente de duas assistentes sociais e duas entrevistadoras, além do setor administrativo. Eventualmente o Cras vai até comunidade oferecer alguns atendimentos, em parceria já estabelecida com a Tenda do Encontro. Durante a pandemia, o atendimento presencial está mantido, mas deve ser agendado com antecedência por telefone.

FOCO É ÁGUA E LUZ

Das principais reivindicações dos moradores, a regularização do abastecimento de água e do fornecimento de energia segue na lista de prioridades. “Estamos lutando para construir um acordo de negociação da área e podermos discutir a implementação definitiva de um projeto de luz e água”, diz o Secretário de Habitação Nelson Spolaor. Atualmente, as redes existentes foram instaladas pelos próprios moradores, o que compromete o pleno funcionamento do abastecimento e traz risco aos habitantes do local. Ronice, que é líder de rua, relata alguns dos problemas vividos por ela e pelos vizinhos diante da precariedade das tubulações e instalações elétricas. “Incomoda bastante ter que abrir buraco por conta própria para consertar esgoto que transborda. Também já passamos vários sustos subindo em poste, tentando trazer energia para dentro de casa”, desabafa. “Aqui em casa a gente não toma a água que vem da rua de jeito nenhum”, revela. Por uma questão de segurança, a família de Ronice consome a água de uma bica próxima, ou recorre a conhecidos que possuam poço artesiano. Por conta da pandemia, as negociações visando a regularização fundiária da área estão suspensas, o que deve adiar um pouco mais as melhorias aguardadas por todos na Justo. Segundo Spolaor, o foco atual da Prefeitura é prestar apoio emergencial às famílias que passam por dificuldades em função da paralisação das atividades econômicas. Poder público e demais instituições que compõem a Rede de Ação Solidária no município estão atuando na distribuição de cestas básicas, de acordo com levantamentos indicados pela própria organização dos moradores. ANDRESSA MORAIS GRÉGORI SORANSO


8. Histórias de lutas

ENFOQUE OCUPAÇÃO JUSTO | SÃO LE

A ocupação de bus FOTOS ARQUIVO PESSOAL / DIENIFER DE LIMA

Líderes das principais Ocupações de São Leopoldo falam sobre a busca por direito a moradia e recursos básicos

O

DIREITOS

São sete grandes ocupações na cidade: Justo, Vila Progresso, Renascer, Steigleder, Amobomfim, Esperança e Redimix. As histórias se assemelham, assim como às dificuldades. “A nossa prioridade é o mínimo de habitação”, diz Cleber dos Santos Martins, um dos líderes da Ocupação Steigleder. Tal qual na maioria dos locais nessa situação, as 211 famílias que residem na vila têm dificuldade nos recursos básicos, como água e esgoto. “Não temos esgoto, temos uma fossa que nós mesmos fizemos. Depois de muita luta colocamos uma mangueira preta para o essencial, mas chuveiro não existe e descarga nem pensar.” A falta de outras necessidades básicas, como escola, por exemplo, tornam o local ainda mais isolado. “Não temos escola nem transporte público. Isso desanima

ainda mais o morador a buscar conquistar algo ou dar um futuro melhor aos filhos”, diz. Os mesmos problemas abatem 144 famílias da Ocupação Esperança. O lugar, que existe há cinco anos, também não possui sistema de esgoto, por exemplo. “Os moradores fizeram uma fossa, mas mesmo assim é horrível. É um problema que passamos”, conta Dienifer de Lima, uma das líderes da vila. O local possui uma escola próxima, porém sofre com a falta de transporte, já que não é contemplado por linha de ônibus.

Existem ainda as desilusões que cercam o ambiente destes locais. Criada em 2016, a ocupação Redimix, no bairro Santos Dumount, perdeu diversos moradores após ordem judicial de desocupação. “Tão logo criamos a ocupação, recebemos uma orientação para sairmos do local. Contratamos um advogado chamado Dr. Bandeiras, mas ele não fez nada por nós. Se aproveitou de nossa inocência”, afirma Líria Graziela Cardoso, líder da ocupação. Segundo a moradora, o advogado contratado afirmou não ser neFOTOS ARQUIVO PESSOAL / ADROILDO GONÇALVES

s locais são diferentes, mas a história é parecida. Costuma começar com pessoas que precisavam de moradia, mas não tinham renda para garantir uma, então, para o bem de sua família, buscaram um local onde pudessem se abrigar e conseguir construir uma vida nova. Essa história se repetiu nas comunidades de São Leopoldo. Na cidade existem sete grandes ocupações que buscam seu direito de moradia digna, com anos de muita luta e perseverança. São aproximadamente dez mil famílias que lutam por direitos básicos, como alimento, água, luz, saneamento, transporte e trabalho.

Moradores das áreas ocupadas recebem apoio de iniciativas como a Rede Solidária

cessária a presença de residentes da ocupação Redimix no dia da decisão judicial, confirmada em 2019 no fórum de São Leopoldo.Após a derrota na justiça e a determinação da desocupação,muitos abandonaram o local.‘“Éramos 320 famílias.Após perdermos na justiça, nos tornamos 180. Muitos foram para outras ocupações e outros foram tentar a sorte em outra cidade”, conta Líria. A data de reintegração de posse foi agendada para 2 de abril de 2020, mas não foi concretizada. Diversas famílias seguem na localidade. Apesar da batalha judicial, o local

conta com coleta regular de lixo, transporte público em diversos horários e ainda duas escolas próximas, além do comércio.

CONQUISTAS

Algumas localidades alcançaram feitos importantes. É o caso da Amobomfim, do bairro Santos Dumount. Uma das primeiras organizações da cidade, a comunidade é de 1999. Atualmente, possui 384 lotes que contemplam 1.200 pessoas. “Após anos de luta, temos esgoto cloacal instalado, água, luz e coleta de lixo. Ainda temos dificuldades como a falta de uma linha de ônibus próxima ou a ausência de espaços para lazer de crianças, mas já avançamos muito nesses 21 anos”, diz Karina Camillo Rodrigues, líder da comunidade. Para os moradores da Ocupação Justo, localizada no bairro Duque de Caxias, o ano de 2020 representou a conquista da abertura do processo de Instauração do Procedimento Administrativo de Regulamentação Fundiária (Reurb) da área da Ocupação. O documento que sinaliza a abertura foi assinado em janeiro pelo prefeito Ary Vanazzy (PT). Apesar do avanço, ainda existe um longo caminho a percorrer. “O início do processo representa um marco,mas ainda precisamos organizar nossa relação com o proprietário do local e temos que consolidar a demarcação das casas. Demos um importante passo,mas ainda estamos na metade do percurso”,declara o presidente da Cooperativa Alto Paraíso, da Ocupação Justo,Fábio Simplício. Fundada em 1998, a Vila Progresso não se considera mais ocu-


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OPOLDO (RS) | JUNHO/JULHO DE 2020

scar uma vida nova Entrevista / Isamara Allegretti

I

samara Della Favera Allegretti, uma das articuladoras do projeto Rede Solidária São Léo e professora da Escola de Gestão e Negócios, participa da Comissão de Curricularização da Extensão na Unisinos, ligada a projetos de extensão da universidade. Confira entrevista:

Busca por direitos básicos e por oportunidades no mercado de trabalho norteiam os objetivos das comunidades das vilas que lutam por regularização

pação. Após processo jurídico, o lo- da cidade é o projeto Rede Solidária cal se tornou uma Cooperativa, no São Léo. Iniciado há 12 semanas, ele início dos anos 2000. “Fizemos um é iniciativa de professores de divertermo de acordo de conduta entre sas áreas da Universidade do Vale Cooperativa, Prefeitura e Ministério do Rio do Sinos (Unisinos). Público e contratamos uma empreO que começou com um semisa pra fazer os serviços técnicos. nário sobre moradia,onde os líderes Hoje estamos com todos os projetos das ocupações tiveram espaço de aprovados e licenciados aguardando fala, acabou gerando nos professomente o cartório finalizar o des- sores uma necessidade de fazerem membramento para transferirmos algo a mais no auxílio das famílias. as propriedades”, conta o líder da “Existe uma cooperativa chamada comunidade Mauro Nunes da Silva. Mundo Mais Limpo que produz A Progresso já avançou em questões sabão a partir do óleo usado, que básicas, como água, luz e transpor- vendiam nas feiras. Quando o isolate público. “Progremento começou, eles dimos ao longo dos tinham 1.300 sabões anos,mas ainda preci- “Somente produzidos e parasamos de atenção em os líderes dos. Através de uma relação a pavimentacompramos conhecem bem vaquinha ção das ruas, oportuo produto e distribunidades no mercado a comunidade ímos nas comunidade trabalho, saúde, e conseguem des”, conta uma das educação e seguranarticuladoras da Rede ça”, destaca Mauro. identificar Solidária, Isamara Allegretti. Essa ação, as pessoas e APOIO segundo Isamara, fez Apesar das difi- organizar a os articuladores veculdades, as ocupa- distribuição rem que podiam fazer ções da cidade recemais pelas comunidabem apoio de diversas dos recursos” des da cidade. instituições que auxiDesde então,a iniIsamara Allegretti liam não só na doação Articuladorano projeto ciativa foi se desende alimento e roupas, Rede Solidária São Léo volvendo e hoje são mas também na sua doadas, em média, 50 luta pela moradia. É cestas de alimentos o caso do Movimento Nacional de por semana. Para alguns líderes, Luta pela Moradia, que tem sedes esse apoio tem feito a diferença em em diversas cidades do país. O ob- suas comunidades. “O MNLM tem jetivo do projeto é o de auxiliar na tido um trabalho muito importante organização e nos processos pelos junto às comunidades, no sentiquais as ocupações costumam pas- do de orientação nas negociações, sar.Além disso,ajudam com doações na ajuda para obter itens básicos, de alimentos e roupas. Outro apoio como saneamento básico”, afirma que tem ajudado as famílias de vilas Adroildo Gonçalves, que faz parte

da liderança da Ocupação Renascer, no bairro Vicentina.

TRABALHO

Uma das principais dificuldades dos moradores das ocupações é a de conseguir uma oportunidade no mercado de trabalho.“Abaixa escolaridade e a ausência de uma residência reconhecida legalmente são barreiras enormes para os moradores conquistarem uma vaga no mercado de trabalho”, disse Fábio, da Justo. Em todas as comunidades, a atividade informal lidera como ocupação dos moradores. Juntar papelão ou garrafas pet, por exemplo, é um meio de garantir o sustento familiar. “Alguns conseguem vagas de pedreiros, por exemplo, mas é raro. Hoje em dia qualquer vaga exige um grau de escolaridade mínimo (fundamental) e isso dificulta a vida de todos”,conta Líria,da Redimix.

SONHOS

Entre os líderes das ocupações, uma meta em comum: condições de moradia e de direitos básicos a todos.“Temos o sonho de estarmos ‘visíveis’ aos olhos da população. Queremos que as residências sejam reconhecidas judicialmente. Direitos básicos como luz e água ainda são difíceis de conquistar em meio a falta de reconhecimento das ocupações”, disse Mauro, da Progresso. “O desemprego e a falta de escolaridade são barreiras para alcançarmos os objetivos, mas jamais iremos desistir”, afirmou Adroildo, da Ocupação Renascer. CAREN LOPES RENAN SILVA NEVES

Enfoque: Como é o funcionamento do projeto? Isamara: A Unisinos já há muito tempo tem contato com comunidades. Fizeram seminário no fim do ano para verificar onde se encontram as comunidades que buscam o direito de morar onde estão. A Justo e a Steigleder, por exemplo, mal possuem água para tomar. Quando começou o isolamento social, soubemos que os sabões produzidos pela cooperativa Mundo Mais Limpo estavam em estoque. O produto é feito a partir de óleo usado e vendido em feiras, mas devido ao isolamento eles tinham 1.300 unidades paradas. Então os compramos através de vaquinha e distribuímos nas comunidades.Vimos que tínhamos mais a fazer então criamos o projeto. Fazemos a arrecadação através da doação de valores para a conta do projeto, mas também aceitamos alimentos e produtos de higiene. Também trabalhamos com o desenvolvimento das lideranças, onde elas falam o que precisam e ajudam na arrecadação e distribuição. A iniciativa tem 12 semanas de existência. Enfoque: Como é feito o trabalho junto às comunidades da cidade? Isamara: Houve um estreitamento de laços junto com as comunidades. Enfoque: Como funciona o sistema das doações? Isamara: Tem uma conta bancária e é feito a transferência ou pagamento por boletos, onde está nessa conta. Uma aluna já fez uma vaquinha na empresa para ajudar e também pessoas nos procuraram pedindo para gerar os boletos todo mês. Mas também podem doar alimentos, roupas, máscaras e álcool. Já teve ação para produzir quentinhas para grávidas e lactantes também. Enfoque: Qual a participação dos líderes das comunidades junto ao projeto? Isamara: Eles têm função fundamental na iniciativa. Somente os líderes conhecem bem a comunidade e conseguem identificar as pessoas e organizar a distribuição dos recursos. Tanto de alimentos, quanto de roupas e máscaras. Eles emergem naturalmente nas comunidades. Enfoque: Como ocorrem os encontros atualmente? Isamara: Existe uma reunião só com as mulheres que ocorre toda sexta a tarde presencialmente, mas estamos pensando em como podemos fazer vídeo conferências. Sábado de manhã é o dia de entrega das cestas, feita em uma das comunidades, geralmente a Steigleder.

Rede Solidária São Léo Postos de Coleta de alimentos, roupas ou produtos de limpeza (abertos das 8h às 18h): MCRS - Rua Pe. Dr. Aloysio Sehnem, 20 - Bairro Cristo Rei COOTRAHB - Rua das Papoulas, Loteamento 60, bairro Santos Dumont l Cooperativa Alto Paraíso - Rua Ermelindo Varniere, 132, Bairro Duque de Caxias l AMMEP - Rua Cora Coralina, 546, Loteamento Pe. Orestes, Bairro Santos Dumont l l

Você também pode doar por meio de depósito bancário: Banco Intermediarium S.A (Código 077). Agência: 00001-9. Conta: 5596022-7 CPF: 426.293.140-49. Em nome de Isamara Della Favera Alegretti.


10. Histórias de vida

ENFOQUE OCUPAÇÃO JUSTO | SÃO LEOPOLDO (RS) | JUNHO/JULHO DE 2020

Isolados, cuidadosos e atentos às notícias ARQUIVO PESSOAL / BRUNA HERBSTRITH

Estudos, lazer e o cuidado extra desse período são o foco da preocupação dos jovens moradores

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A pequena residência agora abriga a família toda também durante o dia, respeitando o isolamento social ARQUIVO PESSOAL / BRUNA HERBSTRITH

ARQUIVO PESSOAL / MATHEUS DIAS MARQUES

urante a quarentena os adolescentes também tiveram que adaptar as suas rotinas para permanecer em casa e estudar de forma adequada. Na Ocupação Justo, Bruna e Matheus são dois dos estudantes que cumprem o isolamento social e estudam em casa, mais uma situação nova para os jovens. Nessa hora, é importante aproveitar o tempo disponível para descansar, estudar e planejar o futuro. A estudante Bruna Rafaela Herbstrith, de 15 anos, nasceu na comunidade e hoje vive com a mãe e o padrasto, a avó, os dois tios e o irmão mais novo, o Brayan, de oito anos. Apesar de ser uma família grande, estão mantendo o isolamento e todos cooperam para se prevenir contra o novo coronavírus. A família veio do bairro Feitoria, em São Leopoldo, há 18 anos e Bruna não pensa em sair do lugar onde cresceu. “Amo morar aqui”, diz a adolescente, principalmente por causa dos amigos que moram por perto. Como não participam das atividades comunitárias, se mantêm informados graças aos grupos do WhatsApp, que também evita precisarem sair de casa. Mas os costumes religiosos permanecem, já que a igreja frequentada pelas duas mulheres mais velhas da família fica do outro lado da rua. A mãe de Bruna recebe um valor do Bolsa Família, e é esse dinheiro que mantém a casa, embora quase não seja o suficiente. Assim como a jovem também acredita que seja insuficiente a atuação do governo nesse momento de crise. A sugestão dela é simples, pensando na própria comunidade onde vive. “O governo podia dar mais cestas básicas e aumentar o auxílio”, sugere Bruna. A adolescente, que não gosta muito de ler, se esforça nas atividades escolares à distância, e nas horas vagas assiste um pouco de televisão e vídeos no Youtube. De antes da pandemia, sente falta dos colegas da sala de aula e dos passeios com os amigos. De visitas ou saídas, ver os parentes, que também moram na Ocupação, é a única atividade que se mantém firme,

Pouca coisa mudou na quarentena para Matheus, acostumado a ajudar em casa e cuidar do avô mas todos usam máscaras e tomam cuidado. Esse cuidado também é observado com as compras, sempre lavadas com água e o sabão da cooperativa Mundo Mais Limpo. Acompanhando as notícias

“O governo podia dar mais cestas básicas e aumentar o auxílio” Bruna Herbstrith Estudante

pela televisão, Bruna acredita que as coisas ainda vão demorar a voltarem ao normal, e apesar de ninguém da família ter ficado doente, teme o futuro. Fora isso, ela diz que a própria rotina não mudou muito. “Não saio muito de casa”, diz, e emenda que no geral, a vida não mudou na comunidade.

NOVOS HÁBITOS

Outro morador que nasceu na Ocupação e agora está em isolamento é Matheus Dias Marques, de 17 anos. Estudante do 8º ano, pega as atividades na escola para fazer em casa, e tem se esforçado

Ciente do tempo necessário para a pandemia passar, a adolescente Bruna aproveita o tempo para estudar para completar o conteúdo. “Tem umas 20 ou 30 folhas, mas eu já estou quase acabando”, comenta Matheus. O adolescente que hoje mora com o avô, o aposentado Dionísio Dias, de 67 anos, sonha em se mudar para o estado de Santa Catarina. E enquanto não pode realizar isso, ajuda o avô com as tarefas de casa. “Eu não sou de ficar na rua jogando bola, andando de bicicleta”, explica. “Gosto de ficar em casa, limpar, lavar a louça. O que tiver que fazer em casa eu faço.” Fora a aula, a quarentena trouxe novos hábitos, como

acompanhar a novela Fina Estampa e assistir o seriado La Casa de Papel. O avô recolhia material de reciclagem mas parou a atividade por enquanto, porque os compradores estão com as portas fechadas. Matheus espera que o fim da quarentena seja próximo, para o avô voltar ao trabalho e também para visitar os parentes de Novo Hamburgo e Charrua. Ele acredita que a pandemia não vá durar muito mais tempo e talvez a mídia esteja exagerando, mas para prevenir, não diminui os cuidados. BRUNA LAGO


ENFOQUE OCUPAÇÃO JUSTO | SÃO LEOPOLDO (RS) | JUNHO/JULHO DE 2020

Histórias de vida .11

Até para conversar com outras pessoas está difícil ARQUIVO PESSOAL / RONICE S.DOS REIS

Antes da pandemia, a família de Ronice tinha o passeio como lazer

Ronice conta como a sua família está enfrentando a quarentena e diz que tudo ficou mais complicado

P

opularmente conhecida por Covid-19, o vírus SARS-CoV-2, está impondo restrições na maneira de viver das pessoas, que estão precisando se readaptar e se reinventar todos os dias. As famílias estão procurando maneiras para viver em segurança nesta pandemia, visto que a transmissão da doença acontece de forma rápida. Por isto o isolamento social é o método recomendado para evitar a contaminação. Moradora da Ocupação Justo há seis anos, Ronice Silva dos Reis, 41 anos, desempregada, está enfrentado este momento atípico com sua famí-

lia: o esposo, Dionatas Tiago Kaefer Silva, 31 anos, e suas duas filhas, Giovana dos Reis de Moraes, 17 anos e Manuella dos Reis Kaefer de dois anos e meio. Alertos na situação, Ronice cobra de todos da família uma atenção maior na higienização e nos cuidados quando precisam sair de casa. “Os calçados são deixados para fora de casa, trocam as roupas quando chegam e realizam a higienização de tudo que vêm da rua, como os produtos do mercado. Os cuidados com a higiene aumentaram na família”. relata. Ronice destaca outra mudança na rotina. Seu marido continua trabalhando, o emprego de Dionatas não parou durante a quarenta, pois ele presta serviço em uma distribuidora de gás, que é considerado serviço essencial e

tem a prerrogativa de conti- escolas públicas devido à nuar prestando atendimen- pandemia, Giovana, que está tos. Então, Dionatas trocou o cursando o primeiro ano do transporte público, que usava magistério na Escola Pedro para se deslocar Schneider, está até o ambiente mais tempo em de trabalho, pelo “Os calçados casa. A vontade carro da família, são deixados de ver as colegas tudo para proe o namorado, que porcionar uma fora de casa, também mora na segurança ainda trocam as Ocupação Justo, maior para todos. são as princi“ G r a ç a s a roupas quando pais dificuldades Deus o serviço chegam e para a jovem de do Dionatas au17 anos. realizam a mentou na qua“É complicarentena. Acredito higienização do fazer ficar em que o isolamen- de tudo” casa. Ela quer to social fez com visitar as amigas que as pessoas Ronice S. dos Reis e curtir o namousassem mais rado. Mas cobro o gás de cozidela mais cuinha”, conta Ronice. dados com higiene, uso de Outra mudança na rotina máscara e álcool gel, quanda família aconteceu. Com do precisa sair de casa”, os estudos paralisados nas c o m e n t a R o n i c e .

Mas não é apenas Giovana que sofre com o isolamento social. Ronice fala sobre outras diferenças perceptíveis para ela na pandemia. “Estamos com dificuldades para pagar contas, com a locomoção até os lugares onde precisamos ir. Tudo ficou mais complicado, até para conversar com outras pessoas”. Por fim, Ronice também relatou que a família sempre foi de consumir mais comida caseira, então a alimentação segue a rotina. Mas o fluxo de frequência à mercados e padaria diminuiu em torno de 90%. “Sempre vamos fazendo a lista de compras e só vamos em último caso, evitando circular e evitando aglomerações nos estabelecimentos”, finaliza. FABRÍCIO SANTOS DOS SANTOS


12. Histórias de vida

ENFOQUE OCUPAÇÃO JUSTO | SÃO LEOPOLDO (RS) | JUNHO/JULHO DE 2020

Enfrentando o luto ARQUIVO PESSOAL / ZISLAINE SANTOS DOS SANTOS

Durante o período de isolamento social, a dor da perda é a companhia diária

“T

enho tentado viver um dia de cada vez”, desabafa a dona de casa Zislaine Santos dos Santos, 42. Ela convive com a lúpus e com o luto. Perder um ente querido gera uma dor inimaginável e intransferível. O processo de luto é algo muito pessoal e que não tem um período específico de duração. Em janeiro desse ano, Zislaine perdeu a sua sobrinha Ariane, aos 28 anos. “Desde a morte dela, fiquei bem desesperançosa”, conta. Zislaine é casada há 23 anos com Paulo Sérgio dos Santos, 44, que no início da pandemia do coronavírus, perdeu o emprego junto com outros 350 colegas. No momento, ele vende máscaras de tecido e distribui currículos. “Agora estamos recebendo o auxílio “Não é nada desemprego do meu marido, mas fácil enfrentar não consegui- o luto e essa mos nos cadaspandemia com trar no auxílio emergencial por todas essas conta de um erro dificuldades” no cadastro”, conta Zislaine. Zislaine Santos Quando ti- dos Santos nha apenas 12 anos de idade, passou dias tendo sintomas estranhos e após um exame foi constada a lúpus, uma doença auto imune, ou seja, quando o sistema imunológico ataca outras partes saudáveis do corpo. Desde lá, ela realiza um acompanhamento mensal em Porto Alegre para o tratamento da enfermidade. Em 2005, após o agravamento da doença, ela teve que realizar um transplante renal. Ela conta que todos os dias toma cerca de 30 comprimidos para manter a doença sob controle. “Eu fico sempre em casa e às vezes vou no mercado. Perdi a consulta desse mês [para o tratamento de lúpus], mas terei em julho novamente. Não é nada fácil enfrentar o luto e essa pandemia com todas essas dificuldades. O que me conforta é a companhia da minha sobrinha Ana Carolina e seu bebê de sete meses, que moram ao lado da minha casa”, relata.

Zislaine e o marido Paulo Sérgio são casados há 23 anos

“FILHA DO CORAÇÃO”

A perda da sobrinha é uma dor diária para Zislaine. Ela conta que nos últimos dias de vida, Ariane morou com ela. “Antes de seu falecimento, eu ficava com ela, pois necessitava de cuidados paliativos. Quando ela tinha 18 anos, teve câncer de mama e, com o tempo, evoluiu para o pulmão seis meses antes da sua partida. Larguei minha vida para cuidar da dela nos últimos meses”, relembra emocionada. Ariane era como filha para Zislaine. JULIANA BORGMANN

Ariane (à esquerda) faleceu aos 28 anos de idade após lutar durante anos contra um câncer. À direita, Zislaine e a sobrinha em agosto do ano passado


Histórias de vida .13

ENFOQUE OCUPAÇÃO JUSTO | SÃO LEOPOLDO (RS) | JUNHO/JULHO DE 2020

A realidade que a TV não mostra ARQUIVO / PREFEITURA DE SÃO LEOPOLDO

A pandemia pegou todos de surpresa. A preocupação é grande, principalmente por causa dos idosos e crianças

Cuidados com a alfabetização e a educação escolar, falta de informações, incerteza: o cotidiano da vila

E

nquanto os meios de comunicação anunciam mortes em cima de mortes devido ao coronavírus, pouco é mostrado sobre a realidade da população carente. Estamos vivenciando um momento único das últimas décadas. Mudanças bruscas nos hábitos do dia a dia afetaram bilhões de pessoas. Boa parte delas nunca antes presenciou lockdown em razão de um vírus. Em razão dos diversos estilos e situações de vida, o impacto foi diferente

para cada pessoa. A preocupação aumenta quando a população menos favorecida sofre os impactos da pandemia. Alexandre Soares, 44, motorista, diz que se preocupa muito com o seu futuro no trabalho. Pai de dois filhos, um com 14 e outro de 5 anos, teme que a pandemia cause uma grave crise econômica e comprometa milhares de empregos. “Além dos empregos, me preocupo também com a saúde da minha família, ainda mais que minha esposa é do grupo de risco”, afirma Alexandre. Patrícia Santos, esposa de Alexandre, 40, desempregada, relata que ficou muito

assustada no início do isola- ficiente. O grande problema mento social. Para ela, pro- agora é a incerteza com o fudutos como álcool em gel e turo e a falta de informações. máscara ficariam Três primos de restritos para Alexandre Peres pessoas com me- “Seria estão desemprelhores situações importante gados desde que financeiras. “Isso o isolatambém termos começou ocorreu de fato, mento, e não samas acho que conteúdos bem como recora fiscalização educacionais rer para ir atrás conseguiu parar de seus direitos. a roubalheira e passando “A gente liga a deu oportuni- na TV” TV e só falam dade aos mais em mortes, mas p o b r e s ”, d e - Patrícia Santos não mostram a clara Patrícia. Moradora realidade que Apesar de hanós da vila vivever na Justo uma comunidade mos. Vejo muito descaso do que busca suprir as necessida- Poder Público e dos grandes des das famílias, ainda é insu- sobre os mais pobres. Cadê

nossos direitos?”, desabafa Suelly Soares 27, diarista e prima de Alexandre. Conversando com a família Soares, todos falaram que o maior desafio que estão passando são com as crianças. Com as aulas suspensas, se preocupam em como cuidar da educação/alfabetização deles, além de mantê-los em casa em meio à pandemia. De acordo com Patrícia, esposa de Alexandre, séries e jogos de cartas estão sendo um meio para acalmar a criançada. “Seria importante também termos conteúdos educacionais passando na TV”, imagina Patrícia. VINÍCIUS EMMANUELLI PERES


14. Histórias de vida

ENFOQUE OCUPAÇÃO JUSTO | SÃO LEOPOLDO (RS) | JUNHO/JULHO DE 2020

Mudanças na rotina causadas pela pandemia ARQUIVO PESSOAL / JOSÉ LUÍS DA ROSA SILVA

Livros, internet e cuidados rigorosos foram itens adicionados no cotidiano da família

A

pós mais de 100 dias de isolamento social e mais de um milhão de casos confirmados no país, a população brasileira está reinventando seu cotidiano. Na Justo não seria diferente. José Luís da Rosa Silva, montador industrial, de 53 anos, narrou como está sendo o dia a dia de sua família neste tempo difícil em que o mundo vive. O montador industrial, que mora há três anos na Ocupação diz que sua vida profissional passou a ser muito mais rigorosa após a chegada do vírus. Manteve seu emprego e com a ajuda do auxílio emergência que sua esposa está recebendo consegue manter a casa. A rotina da família mudou drasticamente, filhos sem escola, sem passeio e ou visitas. Com mais tempo em casa a família passou a escutar mais rádio, por onde se mantém informada do que acontece no mundo. Já os filhos têm se ocupado com a internet. O clima de harmonia na família perdura. José Luís adotou medidas de proteção bem rigorosas para sua família, como o uso obrigatório de máscaras, higienização na ida e na volta dos lugares. As ruas da Ocupação estão com menos pessoas circulando, o que faz com que achem outras maneiras de se distrair. José e sua família estão lendo livros e assistindo series para passar o tempo.

Família Silva: José Luís, Nara Geovana, Iolanda, Maria Eduarda: harmonia no convívio e mudanças severas no cotidiano

RODRIGO JANKOSKI

A Vila quer garantir a segurança Já faz parte do cotidiano dos moradores da Justo as reuniões e assembleias para reivindicar os direitos da comunidade. Muitas coisas estão sendo conquistadas, mesmo parcialmente. Como os encaminhamentos para a regularização dos terrenos. Entre as reivindicações, uma que vem sendo pouco atendida refere-se à segurança. Zislaine Santos dos Santos, 42, secretária, relata que a violência nas ruas da Justo não é alta, mas a Brigada Militar não tem pronto atendimento. “Já houve situações de que a Brigada Militar não veio por não ter endereço certo.

ARQUIVO / THERESA DREISCHALÜECK (IHU)

Cena comum: moradores unidos na defesa dos seus direitos

Nessas situações que foram acionados por diversas vezes, foi pela perturbação com música alta fora de hora, e alegaram que não poderiam vir pois não se tratava de vítimas”, afirmou Zislaine. Alexandre Soares, 44, motorista, afirma que se sente inseguro sabendo que a situação da comunidade é “clandestina e sem amparo do Poder Público”. Ainda segundo Alexandre, situações de violência na Justo são poucas, mas pequenas ocorrências não são atendidas pela polícia militar por causa da falta de reconhecimento da vila na Justiça. “Devido esta ausência

da Brigada Militar, acaba prejudicando os moradores que desejam realizar denúncias”, finalizou Alexandre. Como relatado pelos moradores Alexandre e Zislaine, a ocupação não é reconhecida na Justiça, por isso as dificuldades em procurar a BM. Ocorrências simples em consequência do som alto não são resolvidas. Mesmo com o impasse jurídico, centenas de famílias moram na região e necessitam, garantidos por Lei, que seus direitos à segurança pública sejam respeitados. VINÍCIUS EMMANUELLI PERES


Histórias de vida .15

ENFOQUE OCUPAÇÃO JUSTO | SÃO LEOPOLDO (RS) | JUNHO/JULHO DE 2020

Encontrando saídas para se adaptar ao isolamento FOTOS ARQUIVO PESSOAL / OTONIEL DE LIMA

Família busca novas maneiras de manter suas práticas durante a quarentena

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ucas Gabriel, de cinco anos, filho mais novo de Otoniel de Lima, sempre pede para seu pai rezar com ele, antes de dormir. Uma prática que ganhou muita força agora que os cultos realizados em templos religiosos estão proibidos devido à pandemia do coronavírus. A casa passou a ser a “igreja” da família, onde reunidos fazem suas preces e orações. Casado com Andréia de Bairros da Silva, Toni, como é conhecido na comunidade, trabalha como auxiliar de refrigeração. Função que deixou de exercer em abril, junto do aumento de casos de coronavírus e com as restrições a alguns setores da indústria, impostas pelo Estado. Junto com o casal vivem seus três filhos, Lucas Gabriel, de cinco anos, João Vitor, com 12 vizinhos, seja com o cadastramento para solicitação do aue Elias Gabriel, de 16. Desempregado, Toni e sua xílio emergencial ou na distrifamília dependem da renda buição de cestas básicas. Antes de pandemia Toni de sua esposa, que começou a trabalhar, em maio, na Coope- saia para trabalhar às 7 horas e rativa Mundo Mais Limpo, e do só retornava às 19, durante seis auxílio emergencial concedido dias da semana. Nos sábados pelo Governo Federal. Situação em que estava de folga, levava que preocupa e trás o medo as crianças para brincar na Tende um amanhã com muita da. Aos domingos o passeio era na pracinha. Com a determidificuldade financeira. “Recebemos o auxílio nação do isolamento social, as emergencial, mas vai acabar saídas são para ir ao mercado e né. Daí só por Deus. Somos a esposa para trabalhar, sempre cinco pessoas, daí só o salário com o uso de máscara e fazendo dela é pouco. Trabalhar por a higienização das mãos. Com conta é complicado, o pessoal mais tempo ao lado dos filhos, e não tem dinheiro para fazer sem poder sair para se divertir, manutenção em nada. E quem assistir muitos filmes se tornou tem não quer gastar, Porque prática comum no dia a dia da família. não sabe o que Com as auvai vir ainda, né”, las presenciais comenta Toni. “Recebemos suspensas seus o auxílio dois filhos mais MUDANÇAS emergencial, velhos seguem Impedido de fazendo ativiexercer sua pro- mas vai acabar dades que lhes fissão, Toni pas- né. Daí só por são enviadas de sou a se dedicar modo on-line. às atividades re- Deus” O mais novo alizadas na Tenda entrou este ano do Encontro no Otoniel de Lima na escola, mas início de março. Auxiliar de refrigeração não está receInspirado em seus filhos que já freqüentam, b e n d o n e n h u m exe r c í há dois anos, o espaço de con- cio dos professores. vivência e fortalecimento de vínculos entre os moradores da FUTURO Ocupação Justo. Empenhado a Com preocupação, Toni ajudar, ele destina uma parte diz que algumas pessoas da de seu tempo auxiliando seus comunidade não estão res-

peitando o isolamento social. Segundo ele, o movimento nas ruas permanece o mesmo, dando a impressão de que não estão acreditando no vírus, e a falta de fiscalização por parte da prefeitura contribui para este cenário. Toni conta que quando surgiram as primeiras notícias sobre o vírus ele se sentiu mais apreensivo. O tempo foi passando, ele começou a digerir com mais calma tudo o que está ocorrendo, mas o medo do vírus ainda existe. “O meu medo é alguém da minha família pegar. Porque tem minha mãe e meu padrasto que tem diabetes e problemas respiratórios e meu filho mais novo tem bronquite. Quando tudo passar, pretendo voltar a trabalhar e colocar em prática alguns projetos na Tenda do Encontro”, disse Toni. Sobre seu futuro na Justo, Toni fala com muito carinho sobre sua comunidade. Ele reafirma seu desejo de permanecer lá por muitos anos. “Pretendo morar aqui pra sempre. Quero criar meus filhos e meus futuros netos. É muito bom morar aqui. É um lugar onde são todos unidos e tem a ajuda da cooperativa Alto Paraíso. É um lugar bem tranquilo de morar”, afirmou Otoniel. RÉGIS VIEGAS

Toni, Andreia e o filho Lucas Gabriel: ações solidárias, temor à doença, reforço nos cuidados e no convívio familiar


ENFOQEU

OCUA PO ÃÇ SU J O T

SÃO LEOPOLDO (RS) JUNHO/JULHO DE 02

EDIÇÃO

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Improviso e criatividade no abastecimento de água Comunidade continua sem ter esse direito básico assegurado

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omo em outras ocupações brasileiras os moradores da Justo tiveram seus direitos básicos de estrutura negligenciados pelo poder público, condições estas que garantiriam o desenvolvimento de saúde, especialmente no momento de pandemia que vivemos. O espaço de terra reúne em 42 hectares cerca de 2.500 famílias que não contam com o acesso regular a saneamento básico, água ou luz. Para a Assistente Social, Fabiane M.S. Pinheiro, a resolução da ONU não está sendo respeitada na comunidade Justo “Em 1993 foi instituído

pela Organização das Nações Unidas (ONU) que a Água é um bem natural não somente para os humanos, mas para todos os seres vivos, que necessitam dela para sua sobrevivência. A Premissa pensada pela ONU, infelizmente não é realidade na Ocupação Justo.” destacou Pinheiro. A atual situação da ocupação Justo é reflexo de anos de direitos tolhido pelo poder público, que não garantiu estruturas mínimas e básicas para o desenvolvimento humano. O argumento utilizado pelos vários gestores municipais sempre foi o mesmo, de que as pessoas estariam em uma área privada. Na Ocupação Justo o abastecimento alternativo de água e luz é realizado

por meio de ligações improvisadas, gerando centenas de metros de emendas de fios, canos e mangueiras, que se perdem nas ruas de chão batido. Ações como essas, organizada por moradores, garantem o acesso limitado aos serviços. Para o representante do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), Cristiano Schumacher, seria importante que os poderes públicos garantissem o fornecimento de água nestas comunidades. “Existe um debate acontecendo em São Leopoldo com o Semae, que entende a importância desta ação e já fornece, de maneira emergencial, água para algumas ocupações”, destacou.

“À noite a pressão da água melhora bastante, aproveitamos para encher a caixa. Isso garante água durante todo o dia” Claudio Lima Morador Com o passar dos anos, a comunidade da Justo formou uma rede paralela de fornecimento de água e luz, sempre partindo da premis-

sa de que todos devem ter acesso aos serviços básicos. É o que confirma o operador de máquinas, Claudio Lima, 40 anos, morador da vila há oito anos. Para a água chegar em sua casa ele precisou fazer por conta própria uma ligação na rede geral. “Puxamos uma mangueira da rede geral, às vezes falta, às vezes tem. Para garantir comprei uma caixa de água para amenizar a situação, só assim conseguimos nos virar. Quando falta a água da mangueira tem na caixa,” disse. E acrescentou: “À noite a pressão da água melhora bastante, aproveitamos para encher a caixa. Isso garante água durante todo o dia”. RODRIGO JANKOSKI FABIO SIMPLICIO

A instalação de reservatórios ajuda parcialmente a suportar as constantes faltas do líquido


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