Josefa 7

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edição 7

jul/2024

MEMÓRIAS DA ENCHENTE

Revista experimental do curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre

A batalha pelo recomeço em meio a um cenário de guerra na Vila Farrapos 4

União dos moradores oferece socorro e esperança na Vila dos Industriários 10

Um passeio pelas histórias de quem faz o Brique da Redenção acontecer 14

No Passo D’Areia, o amor pelo futebol sobrevive às tempestades 18

Gremistas vão do Humaitá a Curitiba, passando pelas memórias da Azenha 22

Registros do tempo em que a casa deixou de ser porto seguro 28

ÉCraro, mas acontece com frequência. A tirada irônica que usamos para falar daquilo que deveria ser exceção, mas acaba se tornando regra, é apropriada, em dois sentidos, para apresentar esta 7ª edição da Josefa.

Primeiro, pelo que tem a ver com as rotinas de produção do Jornalismo, a profissão que, justamente, orgulha-se de não ter rotina. Mas tem. Trata-se do modo de organizar a produção, sempre premida pelo tempo e pelas circunstâncias. No caso desta revista, de caráter experimental, esse processo envolve meses de leituras, discussões de textos e reuniões de pauta, para só então passarmos à produção de fato. E foi nessa passagem que veio a catástrofe climática que arrasou o Rio Grande do Sul e atingiu em cheio o tema que a turma de Jornalismo Literário em Revista havia definido: Porto Alegre.

A Capital projetada nas pautas se tornara inviável narrativamente. Como seguir adiante com reportagens sobre o dia a dia do aeroporto, as belezas do Guaíba, os passeios na orla? Não bastasse isso, a vida acadêmica sofreu uma interrupção, teve de ser retomada aos poucos, cuidadosamente e de acordo com as possibilidades de cada estudante. A vida, de modo geral, virou um caos.

Em segundo lugar, no sentido de que eventos climáticos extremos deixaram de ser raros; agora, são frequentes. Consequência da exploração predatória da natureza, agravada pelo negacionismo climático interesseiro e irresponsável. E, assim, o cotidiano – a linha mais ou menos contínua dos fatos mais ou menos surpreendentes que constituem nossa vida em comum – sofre uma violenta ruptura. Estamos diante de um acontecimento: “aquilo que irrompe na superfície lisa da História”, na definição do estudioso português Adriano Duarte Rodrigues. Diante do acontecimento, a rotina social é colocada em suspensão. O passado precisa ser revisitado com atenção; o presente precisa ser compreendido com urgência; o futuro precisa ser desvendado como emergência. É tarefa que cabe ao Jornalismo e que, apesar de também abalados, procuramos cumprir. Nesta edição de reportagens possíveis, Porto Alegre narra traumas e expõe cicatrizes, na esperança de que o raro, quando catastrófico, não seja mais frequente.

Felipe Boff

Professor

A gaúcha Maria Josefa Barreto Pereira Pinto foi a primeira mulher jornalista brasileira. Mãe, feminista, poeta, escritora e professora, dirigiu dois jornais, sendo proprietária de um – o Belona Irada Contra os Sectários de Momo –, que circulou em Porto Alegre entre 1833 e 1834. Josefa não teve uma vida fácil. Foi abandonada quando nasceu, mais tarde seu marido a deixou e ela viu seus dois filhos morrerem. O nome desta revista é uma homenagem a ela.

Petra Karenina

DEPOIS DA CHEIA, A

devastação

Moradores da Vila Farrapos, arrasada pela inundação, recomeçaram a vida em meados de junho com o temor de que a tragédia se repita

Fazia quase cinco anos desde a última vez em que estivera na região dos arredores da Arena do Grêmio. Apesar de torcedor tricolor fiel desde criança, nunca fui um frequentador assíduo de estádios, e já há algum tempo me limito a assistir às partidas de futebol somente pela TV. Na manhã ensolarada de quinta-feira, 13 de junho, o trajeto de carro pela Zona Norte de Porto Alegre foi marcado por um cenário que se repetiu ao longo dos quilômetros percorridos: intermináveis pilhas de entulhos amontoados pelas ruas dos bairros Anchieta, Navegantes e Humaitá. Na Avenida A.J. Renner, a linha marrom que marca o nível alcançado pela água estava na altura das janelas dos apartamentos do andar térreo. Nas calçadas da avenida, e também em frente à Arena, os carros que foram abandonados e completamente submersos pela enchente ainda aguardavam serem resgatados por seus proprietários. Completamente pintados pela sujeira da terra seca, pareciam ter saído diretamente do deserto pós-apocalíptico do filme Mad Max. O percurso na Vila Farrapos iniciou pela Rua Luiz Carlos Pinheiro Cabral. É lá que fica a Dico’s Academia, que fez parte de uma reportagem que fiz em 2019 para o Jornal Enfoque, da Unisinos. A academia está no bairro há 15 anos. Enquanto realizava a limpeza do estabelecimento, o casal de professores de educação física Rodrigo Miotto e Amanda Oliveira, que administra a academia, contou que sua casa, a poucas ruas dali, também foi inundada. Antes do baixar das águas, que no bairro ocorreu somente cerca de um mês após a cheia, eles precisaram ficar no abrigo Nossa Senhora dos Navegantes com o filho e seis cachorros. O desafio era duplo: recuperar ao mesmo tempo a moradia e o empreendimento.

Dentro da academia, a marca d’água no pilar amarelo chegava quase até o teto, cerca de 2,5 metros de

Texto Paulo Albano Fotos Petra Karenina

altura. Rodrigo estimava que para recuperar plenamente o local seriam necessários cerca de R$ 150 mil. Ele explicou que a água e o lodo danificaram o estofamento de aparelhos de musculação e o piso, além da ferrugem em equipamentos de metal. Também foram perdidos aparelhos de computador e de som, espelhos e portas. Para retomar a fonte de renda o mais rápido possível, a estratégia seria reabrir a academia assim que a limpeza fosse concluída e seguir operando com capacidade menor até que novos aparelhos pudessem ser adquiridos.

A Rua Luiz Carlos Pinheiro Cabral foi um dos vários endereços da Vila Farrapos em que os moradores reclamaram da falta de recolhimento dos entulhos da enchente pela prefeitura. A meteorologia previa o retorno da chuva no fim de semana. O temor da comunidade era de que os entulhos fossem espalhados pelo aguaceiro, causando o entupimento de bueiros e

a volta dos alagamentos. O morador Jorge Santos vestia botas pretas de borracha e luvas amarelas de proteção e utilizava uma pá para organizar os entulhos em um único monte com o intuito de deixar mais transitável a calçada em frente à Comunidade Cristã Igreja do Deus Vivo, onde uma missa seria realizada mais tarde naquele dia. Quando questionei sobre o cheiro forte na rua, ele respondeu que havia um cachorro morto debaixo da pilha de entulhos. Enquanto ajudava o vizinho, Valdir Wagner se queixava da ausência de serviços públicos. “Eu pago R$ 1,2 mil de IPTU e não tenho recolhimento de lixo e limpeza de bueiros”, reclamou, irritado.

Entre os objetos descartados nas calçadas estavam sofás, colchões, móveis, roupas, brinquedos, livros, álbuns fotográficos de família e mais uma infinidade de itens pessoais inutilizados pela água contaminada. O ponto mais crítico que encontramos no bairro foi a Rua 698. Trata-se de um trecho estreito de chão batido. Em uma situação normal, uma caminhonete de grande porte conseguiria andar pela rua, mesmo que com espaço limitado. Na situação atual, o trecho era intransitável para uma única pessoa a pé. As montanhas de entulhos em frente às residências chegavam à altura do teto. A extensão era tão grande que já não era possível enxergar o fim da rua.

A líder comunitária Caroline Souza, moradora da Rua 698, recusou-se a chamar de lixo os entulhos descartados.

Ela lembrou que são objetos pessoais que possuem valor sentimental e foram adquiridos com esforço. Caroline argumentou que não deseja deixar a casa em que mora mesmo após a enchente. “Nós já temos nossas casas próprias, não queremos Estadia Solidária, queremos que as nossas casas parem de alagar e que os entulhos sejam recolhidos.”

Mais tarde naquela quinta-feira, por volta das 15h, moradores inconformados com a falta de recolhimento usaram sofás, armários e outros móveis descartados para bloquear as ruas Frederico Mentz e Graciano Camozzato como forma de protesto contra a ausência do poder público.

Cenários de guerra em Porto Alegre

Durante a cobertura da imprensa sobre as cheias no Rio Grande do Sul, foi comum escutar jornalistas utilizando o termo “cenário de guerra” para descrever cidades e bairros afe-

Rodrigo e Leco enfrentam o desafio de reconstruir ao mesmo tempo a casa em que moram e o comércio onde trabalham

tados. A visita à Vila Farrapos apenas corroborou aquilo que já se via pela TV e redes sociais: não é apenas força de expressão. Alguns cenários no bairro se assemelhavam mais a um bombardeio do que a uma enchente. A praça em frente à Paróquia Santíssima Trindade virou um cemitério de entulhos. Brinquedos como escorregadores e balanços foram arrastados para longe. A Creche João Paulo II teve o muro de concreto totalmente derrubado pela força da água. Na Escola Estadual Carlos Fagundes de Mello era possível observar janelas e portas quebradas, além de mesas e cadeiras arrastadas. Uma força-tarefa de limpeza do colégio estava em andamento com a ajuda do Exército. A Unidade de Saúde Farrapos seguia fechada. Lá, a linha marrom na parede evidenciava que a água chegara a quase três metros de altura. Os atendimentos médicos estavam sendo realizados em tendas de campanha montadas em frente à Praça do Sesi. O movimento de moradores e voluntários era intenso nesse ponto. Além do volume inacreditável de entulhos, também chamavam a atenção a quantidade de pessoas com mangueiras de lava-jato limpando as casas, roupas e colchões molhados estendidos nos pátios para aproveitar o belo dia de sol forte, cartazes pendurados nos postes à procura de cachorros desaparecidos e longas filas de doações de marmitas e água. As cadeiras azuis de ferro do velho Estádio Olímpico Monumental, que foram colocadas em paradas de ônibus da Vila Farrapos para serem utilizadas pela população após a mudança do Grêmio para a Arena, juntaram-se ao time de relíquias históricas demolidas pela enchente. Entre todas essas particularidades causadas pela cheia, talvez a mais difícil de descrever fosse justamente o cheiro. O trabalho dos repórteres, seja através de

som, imagem ou texto, não consegue transmitir o odor forte e repulsivo a que os moradores de regiões atingidas foram obrigados a conviver mesmo após o recuo da água.

Quem vive de ajudar precisou ser ajudado

Outro lugar revisitado pela reportagem foi a Fundação Fé & Alegria, que fica na Rua José Luiz Perez Garcia. Trata-se de uma instituição filantrópica que presta serviços assistenciais e educativos. Representantes da fundação guiaram os estudantes da Unisinos pela Vila Farrapos durante os jornais comunitários Enfoque produzidos no bairro.

Conforme Fernando Barbosa, funcionário do setor administrativo da Fé & Alegria, muitos itens recém-adquiridos foram perdidos: computadores, freezers, mesas do refeitório infantil e mobiliário. Ele

Ruimar está recomeçando do zero enquanto aguarda o retorno de jogos na Arena para obter renda

Vila Farrapos, decidimos fazer uma pausa, afinal, a fotógrafa estava usando bota ortopédica imobilizadora devido a uma lesão no ligamento do tornozelo sofrida há algumas semanas. À procura de algum comércio aberto, constatamos que todos os estabelecimentos da Avenida Padre Leopoldo Brentano, em frente à Arena do Grêmio, seguiam fechados. Já quase no fim da avenida, o bar e restaurante Santo Expedito foi o único que encontramos reaberto. O proprietário, Ruimar Capalonga, estava de aniversário justamente naquele 13 de junho em que éramos os únicos clientes no estabelecimento dele. Uma dessas coincidências aleatórias da vida. Quando dei os parabéns e perguntei quantos anos estava completando, Ruimar me respondeu que tem 60 e poucos. “Ele não revela a idade”, disse a esposa. Ruimar administra o bar junto com a mulher e o irmão. O comércio funciona no endereço há 23 anos e era mais um entre tantos que teria que recomeçar praticamente do zero: perdeu geladeiras, freezers, equipamentos de cozinha, mesas e cadeiras. Enquanto a fotógrafa descansava por alguns minutos o pé lesionado em uma cadeira de plástico, Ruimar contou que ficou 21 dias ilhado no segundo piso acima do bar. Como a água não chegou ao andar superior, optou por não abandonar a casa em que mora. “Já vi outras enchentes aqui no bairro, mas nunca imaginei que a água chegaria nessa altura. Dessa vez a coisa foi feia”, lembrou.

contou que demorou quase um mês para que fosse possível entrar na sede da instituição após o alagamento.

“Comparado a antes, agora a situação está melhor, mas só melhorou mesmo após a chegada das bombas de drenagem.” Fernando ressaltou que o recomeço do zero tinha que ser pensado um dia de cada vez, “para não despirocar a cabeça”.

Na visão dele, o único consolo na tragédia foi a solidariedade, união e força da comunidade e do voluntariado. Fernando apontou que não houve individualismo ou egoísmo entre os moradores do bairro. “Muitas pessoas voltaram para casa, mas não têm equipamentos de limpeza e nem como preparar refeições. Os moradores se avisam entre si onde está ocorrendo a entrega de donativos.”

Por volta de 13h, a temperatura marcava cerca de 31 graus. Depois de uma manhã caminhando pela

A retomada econômica do Santo Expedito, assim como a de todo o comércio da Avenida Padre Leopoldo Brentano, dependia em grande parte do retorno das partidas de futebol do Grêmio na Arena. É nos dias de jogos que a renda dos bares e restaurantes é garantida. A projeção do clube, no cenário mais otimista, era de retorno ao estádio somente em agosto, o que preocupava os comerciantes locais.

Morador relembra cenas de filme

“Fui resgatado em cima do telhado no segundo andar de casa. As pessoas que faziam os resgates passaram na rua com um megafone avisando que iríamos ficar ilhados sem comida e água. Vocês têm noção de quão surreal é isso?” O relato é de Alexsandro dos Santos, 45 anos, mas ele prefere ser chamado de Leco. “É assim que todo mundo me conhece há 30 anos.”

Leco mora e trabalha na Rua Frederico Mentz, de frente para a Arena do Grêmio. A rua é a que possui a maior movimentação de carros e de comércio dentro da Vila Farrapos. Ele estava chegando no portão de casa com um garrafão de água e um pote de marmita em cada mão quando o abordei para conversar. Junto dele, o cão Totó, um poodle branco que há 13 anos é inseparável do dono.

Assim como muitos no bairro, o imóvel dele serve tanto como moradia quanto fonte de renda. No térreo funcionava a Lan House & Gráfica do Leco. Ali, oferecia serviços de xerox e impressão, produzia presentes personalizados, como camisas, canecas e kits de decoração, além de servir como ponto de coleta e retirada de mercadorias de lojas virtuais. Não sobrou nada. Ao entrar na gráfica para conferir os estragos, era possível perceber a umidade e o mofo que seguiam impregnados nas paredes e no teto. Ele estimava um prejuízo de R$ 50 mil com maquinário e estoque inutilizados pela enchente. “Planejo retomar apenas a lan house, mas não o restante dos serviços”, explicou. Leco relutou para sair de casa, pois não acreditava que a água chegaria aos quase 3 metros de altura do segundo piso onde mora, em cima da gráfica. “Perdi todas minhas roupas, fogão e equipamentos de cozinha.” Após serem resgatados, Leco e Totó ficaram 25 dias em um abrigo em Gravataí. Como grande parte dos acessos de trânsito estavam bloqueados em maio, não pôde ir à casa de amigos ou parentes.

Ele ressaltou que foi muito bem tratado no abrigo, mas frisou que, por se tratar de uma situação de estresse em que muitas pessoas eram obrigadas a ficar confinadas em um espaço físico pequeno por um longo período de tempo, naturalmente a convivência causou alguns conflitos entre os abrigados com o decorrer das semanas.

Assim como diversas pessoas com quem conversei na Vila Farrapos, Leco enfrentava o desafio de recuperar bens pessoais e o comércio ao mesmo tempo. De acordo com ele, muitos vizinhos da Rua Frederico Mentz estavam traumatizados e planejavam ir embora. “Como o meu comércio está fixado há 18 anos nesse ponto e me gera uma boa renda, não pretendo me mudar”, explicou.

Leco contou que os moradores estavam preocupados com a questão sanitária do bairro após a cheia.

“Aumentou muito a proliferação de mosquitos e o aparecimento de ratos. Só eu peguei cinco ratos nos últimos dias, e são uns bichos enormes.” Ele disse que os próprios moradores da rua estavam se organizando para desentupir os bueiros caso a prefeitura

não fizesse o serviço logo. Leco é um dos milhares de gaúchos que aguardavam a liberação do Auxílio Reconstrução. “R$ 5,1 mil não vão solucionar todos os problemas, mas já é alguma coisa. Quero usar o dinheiro para recuperar a minha loja e comprar um guarda-roupa.”

Durante o percurso pela Vila Farrapos, todos os moradores e comerciantes entrevistados exaltaram a solidariedade do voluntariado e da própria comunidade. Havia um consenso entre eles de que a união da sociedade civil foi o ponto positivo extraído da tragédia. Na Avenida Padre Leopoldo Brentano, um panelão de ferro gigante com volume de quase 5 mil litros, 87 centímetros de altura e 289 centímetros de largura cozinhava arroz carreteiro para distribuir à população no fim da tarde daquela quinta-feira. Para dar conta de ferver o fogo do panelão, era necessária uma quantidade enorme de lenha de eucalipto e de galões de água. A iniciativa era coordenada pelo goiano Gugu Nader, 49 anos, que veio ao estado em maio para realizar ações voluntárias em municípios atingidos. “Essa panela foi reconhecida pelo Guinness Book como a maior panela móvel do Brasil. Podem tirar fotos, só cuidem para não cair dentro”, alertou ele, bem-humorado, com um sorriso no rosto. Dez dias depois de percorrer a Vila Farrapos para produzir esta reportagem, um mutirão de limpeza ocorreu no domingo, 23 de junho. A ação foi nomeada como “A Maior Faxina da História do Rio Grande do Sul” e contou com a participação de cerca de 2 mil voluntários e do DMLU para auxiliar na limpeza de ruas, casas e estabelecimentos comerciais dos bairros Humaitá e Vila Farrapos.

Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul foi assolado por enchentes devastadoras, afetando cerca de 440 cidades. Enquanto a destruição trouxe dor e desespero, também mostrou a capacidade do ser humano de se unir e ajudar. Entre os inúmeros locais que abriram suas portas para os desabrigados ou então para receber doações, a Associação dos Moradores da Vila dos Industriários (Amovi) se destacou como um local de esperança em meio ao caos.

Localizada na Avenida dos Industriários, 433, na zona norte de Porto Alegre, a Amovi tem uma longa história de engajamento comunitário. Fundada em 2 de maio de 1951 por moradores do bairro Passo d’Areia, a associação sempre teve como objetivo representar os interesses da comunidade junto às autoridades. Em março de 2024, uma nova diretoria foi eleita democraticamente, composta por personalidades comprometidas e dedicadas, que demonstraram prontamente sua capacidade de liderança e organização.

Quando as enchentes atingiram Porto Alegre, a Amovi suspendeu suas atividades regulares para focar inteiramente no auxílio aos necessitados. Durante todo o mês de maio, o espaço que costumava ser utilizado para aulas de educação física, ginástica e dança se transformou em um centro de arrecadação e distribuição de doações. A transformação foi rápida e eficiente, com as aulas sendo interrompidas e os salões sendo reorganizados para acomodar

solidariedade FAROL DA

Texto e fotos
Dominik Machado
Fabiana Polchowicz

solidariedade

A Associação dos Moradores da Vila dos Industriários se tornou um centro de compaixão e generosidade durante a catástrofe das águas

a enorme quantidade de mantimentos que começaram a chegar.

Rodrigo Maciel, palestrante motivacional e vice-presidente da Amovi, demonstrou ser uma pessoa sensível, atenciosa e disposta em ajudar. Ele relata que, devido à associação ter uma proximidade com diversas áreas afetadas, toda a diretoria se mobilizou rapidamente. Sensibilizados pela situação e buscando oferecer apoio às pessoas desabrigadas, decidiram abrir a disponibilidade do espaço para ajudar aqueles que mais precisavam. Rodrigo enfatiza que essa decisão foi tomada em consenso, refletindo o espírito de solidariedade e união entre a equipe diretiva.

“Priorizamos o atendimento com doações de roupas, kits de cama e banho, materiais de higiene pessoal e limpeza geral, e

Mantimentos chegaram de diversas cidades do Brasil

disponibilizamos cestas básicas”, conta Rodrigo. A lista de prioridades foi elaborada para atender de imediato aos mais necessitados.

As doações eram recebidas em grande quantidade, graças à solidariedade dos moradores do bairro, de diversas regiões do estado e até de outras partes do Brasil. Caminhões lotados de mantimentos chegaram de cidades como Flores da Cunha e Passo Fundo, e até de Vila Velha, no Espírito Santo. A operação envolvia uma coordenação precisa entre os voluntários, que muitas vezes trabalhavam noite adentro para garantir que tudo estivesse em ordem para o dia seguinte.

Como centro de distribuição de doações, a Amovi ultrapassou os limites do Passo

D’Areia para prestar auxílio a desabrigados de outras regiões

Após o recebimento dos mantimentos, as equipes voluntárias da Amovi entravam em ação para realizar a separação e distribuição. “Tivemos uma procura

enorme de moradores do bairro se voluntariando. Assim que a notícia da abertura da Amovi se espalhou, amigos e moradores foram nos procurando para ajudar”, relata o vice-presidente. As equipes eram compostas por pessoas de todas as idades e profissões, unidas por um propósito comum: aliviar o sofrimento das pessoas que foram atingidas. Entre os voluntários que se destacaram estava a analista de RH Isadora Luz, de 27 anos, moradora do bairro, cuja natureza generosa e empática a

levou a se envolver intensamente nas atividades da Amovi. “Como estava tudo bem comigo e com minha família, senti que a forma de ser grata seria ajudando de alguma forma”, conta Isadora. Ela dedicou seus dias à separação de roupas, à organização de produtos de higiene para adultos e crianças e até ao resgate de animais no bairro Humaitá. “A parte mais gratificante foi saber que as doações estavam chegando para as pessoas necessitadas”, relata.

O trabalho voluntário permitiu que Isadora conhecesse novos vizinhos, reencontrasse antigos colegas de escola e se conectasse com outras realidades, tornando-se uma pessoa mais humana. “Indico muito realizar trabalho voluntário, principalmente para quem reclama demais da vida. Eu luto com a depressão e a ansiedade há anos e essa experiência me ajudou bastante. Você está ajudando os outros e os outros estão ajudando você a se tornar uma pessoa melhor”, finaliza Isadora.

Outro voluntário que se destacou por sua persistência e aptidão em ajudar foi Anderson Ribeiro. Mais conhecido como DJ Anderson, da banda gaúcha Ultramen, é morador do bairro e muito ativo em questões culturais e sociais. Com a chegada das enchentes, Anderson viu sua rotina mudar drasticamente. Seus shows foram cancelados durante todo o mês de maio, o que levou a se dedicar integralmente às atividades da Amovi. Anderson acabou trocando o palco pela associação, onde passava horas e horas colaborando em todas as áreas possíveis. “Fiquei durante todo o mês na Amovi ajudando, chegava a ficar quase 24 horas por dia, só ia em casa para dormir mesmo”, conta o DJ. Sua dedicação ia além das tarefas físicas: ele também usava sua influência para mobilizar a comunidade e arrecadar doações. As doações e o trabalho incansável dos volun -

Marisa teve ajuda de Andréia durante a limpeza de sua casa, no bairro Sarandi

tários da Amovi fizeram a diferença na vida de muitas pessoas. Era possível visualizar de longe as filas que se formavam, pessoas atingidas pela enchente que estavam atrás de mantimentos para sobreviver. A associação se tornou um ponto de referência em Porto Alegre, trazendo luz e esperança para os mais necessitados.

Entre os muitos que viram suas vidas virarem um turbilhão estava Marisa Azambuja, funcionária pública de 62 anos, uma das centenas de pessoas que foram atingidas no Sarandi, um dos bairros mais afetados de Porto Alegre. As águas alcançaram até o telhado de sua casa, deixando Marisa, o marido, a filha e a neta sem nada além de alguns documentos, receitas de medicamentos e algumas roupas, que conseguiram carregar às pressas em mochilas. Em questão de horas, perdeu tudo o que havia construído ao longo dos anos.

Marisa relembra o momento com a voz embargada, ainda incrédula diante da devastação que testemunhou. “Eu e minha família perdemos praticamente tudo. Nosso bairro é muito baixo, e a água chegou até o telhado da nossa casa. Todos os nossos bens materiais foram perdidos”, relata, mostrando a resiliência de uma mulher forte, apesar de profundamente abalada.

Em meio ao desespero, a família Azambuja encontrou refúgio na casa de uma antiga amiga, Andréia, no bairro Passo d’Areia. Esse ponto de acolhimento revelou-se uma bênção por estar exatamente em frente à Amovi: essa proximidade permitiu que a família tivesse acesso rápido e constante às doações. “Os primeiros mantimentos que recebemos foram alimentos, roupas e produtos de higiene pessoal. O apoio comunitário da Amovi foi fundamental. Se não fossem essas doações, seria ainda mais

complicado”, diz Marisa.

A acolhida na casa de Andréia, porém, foi breve. Devido à proximidade do Passo d’Areia com locais inundados, a CEEE Equatorial, empresa responsável pela distribuição de energia elétrica em Porto Alegre, cortou a luz para evitar choques elétricos nas ruas alagadas. Sem energia, o abastecimento de água potável também foi afetado, tornando insustentável a permanência prolongada da família. Foi preciso se mudar novamente, desta vez buscando abrigo na casa de outra amiga, na Lomba do Pinheiro. Foi um período de transição repleto de incertezas e desafios, mas permeado pela força da amizade e da solidariedade que os cercava.

“O apoio dos amigos e as doações foram essenciais. Não é fácil passar por essa situação. Não foram apenas bens materiais destruídos, foi toda a nossa história”, finaliza Marisa, emocionada. Suas palavras refletem a profundidade da perda, mas também a coragem e a capacidade de recomeçar, inspiradas pela generosidade de tantos.

A história de Marisa e sua família é apenas uma entre tantas que a Amovi ajudou a transformar. Em meio ao caos e à destruição, a associação se consolidou como um símbolo de compaixão. “Sentimos muito orgulho de ter tomado a frente com a atitude de promover o bem-estar social através do trabalho voluntário durante a calamidade”, ressalta o vice-presidente da associação, Rodrigo Maciel.

Cada doação, cada gesto de voluntariado mostrou que, mesmo nos momentos mais difíceis, a solidariedade pode fazer toda a diferença. O impacto positivo das ações da Amovi durante as enchentes de 2024 ficará marcado na história da comunidade, como um exemplo inspirador de como a união e a generosidade podem transformar vidas em tempos de crise.

Marisa Azambuja/Arquivo
pessoal

No Parque Farroupilha, o comércio e a arte ultrapassam a Avenida José Bonifácio e se transformam em histórias de amor pela profissão e superação de dificuldades

Texto e fotos Rafael Renkovski

Acordar às 10h, preparar um mate bem cevado, colocar a coleira no cachorro e dar uma volta no Brique da Redenção. Para muitos moradores de Porto Alegre, essa é a rotina corriqueira de um domingo. Para outros, que muitas vezes moram fora da Capital, o domingo significa um dia de acordar cedo e voltar tarde para casa. Não sem antes ganhar alguns trocados.

“A vida não é fácil. Eu tinha a mania de me queixar, mas não posso.” Cláudia Rejane é vendedora de bebidas, algodão-doce e alguns torrões de amendoim, e costuma conversar com a clientela que vai até o

POR TRÁS DE UM DOMINGO DE

sol

Vendedora desde os 12 anos, Cláudia Rejane deixa sua casa em Alvorada cedo da manhã para ganhar o sustento oferecendo algodão-doce na Redenção

seu carrinho, na frente do parque de diversões da Redenção – como é mais conhecido o Parque Farroupilha –, para se refrescar ou se adoçar. Ao entregar uma Coca-Cola gelada para uma senhora, disse essa frase e desenrolou uma curta conversa repleta de conselhos recíprocos. Há 42 anos, desde os 12, trabalha com vendas, antes acompanhando a sua falecida mãe. Hoje, mãe de cinco filhos, quatro vivos, dedica os finais de semana ao comércio. De segunda a sexta-feira, precisa cuidar de seu filho autista, de 24 anos, que necessita de uma atenção especial.

As cicatrizes particulares de Cláudia parecem ser deixadas de lado quando, atenciosamente e com bom humor, alegra as crianças que passeiam acompanhadas dos pais e, vidradas, param para comprar um algodão-doce. Moradora de Alvorada, na Região Metropolitana, sai de casa sábado e domingo às 6h40 para pegar a condução até a Capital. Retira o seu carrinho na frente do Auditório Araújo Vianna e começa a rotina de vendas. Sustenta a família com a ajuda de uma das filhas. O marido, com uma hérnia em estágio avançado, não trabalha, mas procura ajudar nos cuidados do filho.

Com 15 anos, Cláudia engravidou pela primeira vez. “Ele trabalhava na Pepsi, era nosso fornecedor. Me engravidou e foi embora para fora”, conta sobre o homem com quem teve um breve relacionamento. Aos sete meses, com uma infecção, o filho faleceu. “Era para ele ter uns 38 anos agora.” Orgulhosa, porém, fala de outra filha, cristã, que, “com a graça de Deus”, curou-se de um câncer e vive bem.

As duas cadeiras brancas de plástico em frente ao carrinho servem de descanso para as pernas que doem, mas também estão disponíveis para receber quem quiser sentar e conversar. Além

Para Jorge Quinteros, negociar antiguidades e objetos colecionáveis é uma forma de resgatar a própria infância. De segunda a sexta-feira, Jorge Luís é gari na zona sul. Nos finais de semana, seu carrinho de picolés alegra as crianças da Redenção

das dores de uma vida sofrida, Cláudia também sofre com dores que podem lhe impedir de trabalhar, caso não sejam tratadas. Diabética e com artrose, ela diz que precisa perder 30 quilos para viver melhor. Pretende entrar na academia “nesta ou na próxima semana”.

A vendedora, que deixou os sonhos de lado para cuidar da família, diz ainda ter um: quer um cantinho só seu para cuidar do filho. “Ele nunca estudou. O médico, na época, disse que não

era para levar. Me arrependi. Ele nunca socializou”, relembra.

Os dois Jorges

Poucos metros separam Jorge Luís e Jorge Quinteros, que não gostam muito da exposição. Ambos trabalham com a infância. Luís vende picolés em frente à pracinha da Redenção e Quinteros vende objetos colecionáveis e antiguidades, resgatando memórias dos que hoje já são adultos ou idosos. Assim como muitos comer -

ciantes, apenas o trabalho no brique não sustenta Luís. Nos dias de semana, é gari na zona Sul de Porto Alegre. Sábados e domingos, assume o carrinho da Kibon. “Moço, qual é o sorvete mais barato?”, pergunta um menino na faixa dos cinco anos. Atencioso, Jorge Luís explica todos os preços. Os de fruta são os mais em conta. Desta vez não vendeu, já que a criança “comeu muito sorvete na casa da avó”, segundo o pai.

“Ontem (sábado), consegui tirar uns R$ 400. Para mim, sobra uns R$ 150”, comenta sobre as vendas. Por cerca de um mês, no entanto, a sua renda foi prejudicada por conta das enchentes que arrasaram o Rio Grande do Sul. Agora, tenta voltar à normalidade.

Argentino de Buenos Aires, Quinteros trabalha no Brique da Redenção desde 2005. Casou-se com uma gaúcha e se mudou para Porto

Alegre. Com objetos antigos e colecionáveis, resgata a infância, tanto a sua quanto a dos outros. É colecionador, apaixonado por brinquedos. Arrepende-se de ter vendido um Fusca de lata, anos atrás.

Apesar de exibir as suas peças, algumas raras, apenas nos finais de semana, diz que seu trabalho demanda os sete dias. “Algumas coisas vêm com graxa, preciso passar um verniz, consertar. Também vendemos por grupos de WhatsApp”, conta, com o sotaque portenho, que não será perdido.

Os olhares curiosos de quem passeia pela Avenida José Bonifácio são muitos na banca de Jorge. Alegra-se ao conversar com os clientes. Entre eles, um homem de cerca de 50 anos que comprou um abridor de garrafa antigo. “Se não funcionar, eu volto aqui”, brincou. Chama a atenção da clientela outra antiguidade: o

Ford Escort 1997 de Jorge, atrás de onde se senta, item que, por enquanto, não troca por nada.

Uma vida pelas telas

Quem passa uma vez pelas caricaturas de Roberto Carlos, Caetano Veloso, Michael Jackson e outros artistas larga um sorriso para Carlos Roberto Silva e Silva, que vive da arte há 35 anos. De segunda a sexta-feira, ocupa um espaço ao lado da Caixa Econômica Federal, na Praça da Alfândega. Aos finais de semana, no início do brique.

“Amo o que eu faço, sou apaixonado”, conta. Largou o trabalho de comerciante para se dedicar à vida de artista. Quando começou, Carlos tinha o costume de desenhar as pessoas de forma escrachada, mas viu no realismo um diferencial dos demais desenhistas de caricatura. “Eu trabalhava muito em casamentos. Como eu ia desenhar aquelas mulheres bonitas de uma forma tão escrachada? Não tinha como”, diz.

Costuma desenhar casais. Usa o truque de já deixar pronto um desenho apenas com a cara por fazer. Assim, termina em cerca de 15 minutos. Mais recentemente, percebeu que o segmento de animais de estimação também rende e está investindo nisso. “Eu preciso inovar sempre. Só assim para viver de arte no Brasil”, reflete Carlos.

A arte faz parte da vida de Carlos Roberto há 35 anos, quando decidiu largar o comércio e viver de seus desenhos

Jogo QUE SEGUE

No ano da enchente, o São José foi protagonista da aflita despedida e, um mês depois, da aguardada retomada do futebol em Porto Alegre

Texto Nícolas Córdova Fotos Eduardo Torres/E.C. São José

Énoite chuvosa em Porto Alegre, o início de uma sequência de três dias com as nuvens carregadas na Capital. O São José vai mais uma vez jogar uma competição nacional em casa. Após perder para o Tombense na estreia da Série C, está na hora de pontuar na tabela e fazer o Confiança do Sergipe sentir o clima frio do sul e tirar, daí, a primeira vitória na terceira divisão do Brasil.

Em frente ao estádio, uma família se abriga debaixo de uma marquise antes de adentrar o Francisco Novelletto Neto, que, diferentemente de Arena e Beira-Rio nos melhores dias, não espera grande público. Na área de credenciamento de imprensa, quatro funcionários conversam tranquilamente enquanto procuram meu nome entre meia dúzia de profissionais que farão a cobertura do importante jogo do time da metrópole que se veste de interior. Zero semelhança com as partidas nas casas de Grêmio e de Inter, onde os colegas formam filas colossais nas pequenas salas – que estariam cobertas de água na semana seguinte – em busca do melhor posto na zona mista. No lugar que o Zeca manda, a área é livre para a circulação dos jornalistas, sem os stewards com coletes verdes que impedem o acesso a determinados lugares dos domínios da dupla Gre-Nal. Ao subir a arquibancada para acessar as cabines de imprensa, não há o constrangimento de esbarrar nos dois ou três torcedores que já estão ouvindo pagode e sertanejo na caixa de som do estádio, o que indi-

No início da semana da enchente na Capital, o São José enfrentou o Confiança, no que seria o último jogo antes da paralisação do futebol no estado

ca que o pré-jogo está acontecendo. Os únicos toques que sinto são do vento de outono gaúcho e das gotas da chuva que descem sobre o gramado artificial do “Zequinha Stadium”, que já demonstra ter algumas poças nas partes em que a iluminação dos refletores permite ver. A precipitação cresce, mas estou protegido na cabine 2 do antigo Passo d’Areia, sentado na única cadeira que achei, vendo os preparadores físicos dos times mandante e visitante espalharem os pequenos cones para o aquecimento do Zeca e do Confiança. O assessor de imprensa me manda mensagem, preciso me deslocar, então fico junto com as tias do cafezinho, que me recebem com café quente e fofocas, na cabine 9. É estranhamente incômodo pensar que aquela delegação do Confiança que estava em campo seria a última a desembarcar

no Aeroporto Salgado Filho, que em seguida fecharia por tempo indeterminado devido à inundação.

Falta uma hora para o jogo. Sai o time do Zeca, e os dois colegas de imprensa presentes se organizam para anotar a escalação. No campo, o time entra no aquecimento, seguido por um tímido aplauso dos pouco mais de 30 torcedores. Com os atletas já à beira do campo para começar o embate, Os Farrapos – torcida organizada do São José – começam os batuques na arquibancada sul do estádio. Apesar de poucos, uns animam os outros em uma noite regada a chuva e paixão pelo Zeca, o clube do bairro Passo d’Areia.

Apita o árbitro. Os sons dos instrumentos se confundem com os gritos dos atletas que estão em campo. Na arquibancada, o seu Bica, de 80 anos, enrolado em uma bandeira do São José, confundindo o branco do alviazul com a palidez dos poucos cabelos que lhe restam, grita mais do que o técnico China Balbino. “Bora pra frente!”, ordena o torcedor ilustre do time da casa. Não basta. Aos 9 minutos do primeiro tempo, a defesa gaúcha erra passes e o primeiro tento da partida é feito, pelo lado nordes-

Diante do Volta Redonda (RJ), o São José realizou a primeira partida da volta do futebol em Porto Alegre

tino. “Professor Pardal!”, reclama o torcedor Wesley Dias, na bronca com o treinador China. Dentro de campo, mesmo na desvantagem, o bumbo dos Farrapos segue a todo vapor. Isolado em uma parte da arquibancada social, o ex-jogador do Grêmio e da Seleção Brasileira Lucas Leiva, ao lado do filho e de amigos, é um dos valentes que encaram o mau tempo da Capital no estádio mais antigo da zona norte. Agora empresário, acompanha um cliente. Aos 26 minutos de jogo, três torcedores mirins agarrados à tela da arquibancada social transpiram a ânsia do restante da torcida pelo gol de empate. 14 minutos depois, três atacantes do Confiança disputam contra dois zagueiros do São José: 2 a 0 para o visitante. Na arquibancada, apoio de uma parte da torcida e, de outra, mais protestos

contra o técnico China. “Um dos piores jogos que já vi aqui”, lamenta Wesley. Termina o primeiro tempo, poucos são os aplausos dos aficionados, e retornam o sertanejo e o pagode nas caixas de som, que acompanharão os deliciosos pastéis de frango que a torcida vai comprar para saborear nos 15 minutos de intervalo.

“São aquelas coisas que não têm muita explicação. Eu gosto muito de estar aqui no Passo d’Areia porque aqui representa o futebol real”, conta Wesley, jornalista que, como tantos profissionais do ramo esportivo gaúcho, abandonou o sentimento por um dos clubes da dupla Gre-Nal para abraçar uma terceira via futebolística da aldeia. “A gente encontra as mesmas pessoas quase nos mesmos lugares, a gente sabe que aqui faz a diferença”, salienta ele, consciente de que a dificuldade financeira do clube é muito maior do que a dos vizinhos da cidade.

Entrada no gramado para o segundo tempo. Na tela da arquibancada, seu Bica grita: “Vamos virar!”. 15 minutos se passam e o tempo contraria o torcedor. O campo molhado pela chuva se divide entre o verde e o preto da grama sintética, cenário razoável para o futebol feio que ambas as equipes praticam. Trocas de passes? Não há. É bola na área e que Deus nos acuda! 23 minutos. O zagueiro do time gaúcho dá uma entrada forte no rival. Fecha-se o bolo e a confusão inicia, sob protestos da torcida. O cartão vermelho sobe e o Zeca, em desvantagem no placar, também fica com um jogador a menos. O pequeno Julian sobe na grade de proteção e esbraveja contra a arbitragem, mas logo

sai devido aos gritos de repreensão da mãe: “Julian, desce daí!”. 29 minutos. Os Farrapos não pararam de batucar um minuto sequer com a bola rolando, mas o time não responde à altura. Bola pra frente e chuveirinho... que resulta no gol de desconto. Ufa! Comemora e aplaude a torcida. 2x1 para o time visitante. Aos 38 minutos, a chance do empate, mas o furo na bola é lamentado pelas vozes presentes. 48 do segundo tempo, bola na trave na cobrança de falta do Zeca. Quase!

Aos 52, a mãe de Julian grita: “TIRAA!”. Quase mais um do Confiança. 53 e o trilo final decreta mais uma derrota do Zeca na Série C e o fim da normalidade do futebol gaúcho em 2024. Os Farrapos se calam e a arquibancada social pede a saída de China Balbino. Dentro de campo, confusão entre os jogadores. Fora dele, os torcedores, antes bravos pela derrota, agora xingam os rivais. Tudo pelo clube. Tudo pelo Zeca. O resultado, desastroso, marcaria também a despedida do futebol profissional, por um bom tempo, em Porto Alegre. No dia seguinte,

o Grêmio jogou no Paraná pela Copa do Brasil. Na quarta-feira, seria a vez do Juventude vir a Porto Alegre para enfrentar o Inter pela competição nacional, mas o mau tempo no estado não deixou a partida acontecer. Dali pra frente, Arena e Beira-Rio alagariam, ruas de Porto Alegre virariam uma extensão do Guaíba e o Rio Grande pediria socorro. Apesar de estar na zona norte da cidade, uma das regiões mais afetadas pela enchente, o estádio do São José não seria atingido pelas águas, permanecendo intacto. Ao contrário de China Balbino, que perderia o cargo em meio ao caos – para substituí-lo, uma ironia do destino: o clube contrataria o técnico Pingo.

O São José só voltaria a campo exato um mês depois, 29 de maio de 2024. Sem chuva e com nova derrota (3 a 1 para o Volta Redonda), mas tinha o que comemorar: o Estádio Francisco Novelletto Neto, desta vez, testemunhava o renascimento do futebol na cidade devastada pela enchente. E, na rodada seguinte, haveria o reencontro com a vitória (2 a 0 sobre o Náutico). Jogo que segue.

Seu Bica, aos 80 anos, está presente em todos os jogos do São José no estádio

casa SAUDADES DE

A Arena, que passou a ser a casa do Grêmio em 2012, também foi atingida pela inundação e ficou interditada

Em meio ao desterro da enchente, uma jornada por três estádios conectados pela paixão ao Grêmio
Texto e fotos Lorenzo Mascia

8de dezembro de 2012 foi o dia em que a vida dos gremistas mudou. Casa do tricolor desde 19 de setembro de 1954, o Estádio Olímpico deu lugar ao novo campo: a Arena do Grêmio. A ideia surgira em 2006, logo após o acesso do clube gaúcho à Série A do Campeonato Brasileiro e a necessidade de reformas. Porém, vendo que seria inviável por conta do tempo de construção, alto custo de manutenção, região de difícil acesso e disparidades com o padrão Fifa, o Olímpico havia chegado ao seu limite.

Em janeiro de 2009, a prefeitura de Porto Alegre aprovou o projeto Arena para a construção do atual estádio gremista e urbanização do entorno da nova casa do clube. A empreiteira OAS ficou responsável pelo empreendimento e, em troca, receberia o terreno do Olímpico, situado no bairro Azenha. Em setembro de 2022, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), encaminhou o prazo de um ano para o fim das obras da OAS, que atualmente se denomina Metha, na Arena e no Olímpico. Sem a atenção merecida, o entorno do velho estádio está abandonado, com carência de iluminação e principalmente de segurança.

O Estádio Olímpico Monumental e a Arena do Grêmio são marcos históricos que simbolizam a evolução e a tradição do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. Em 2012, com a

inauguração da moderna Arena, o clube iniciou uma nova era. Com sua infraestrutura e capacidade para receber grandes eventos, a mudança reflete a ambição e o crescimento do Grêmio no cenário internacional. Mas o Olímpico não sai da memória como palco de grandes conquistas, como o primeiro título da Copa Libertadores da América, em 1983. Seu papel como casa do tricolor por quase seis décadas construiu uma forte identidade e uma rica história para o clube e seus torcedores.

O aposentado Carlos Guardiola, de 60 anos, alto e grisalho, conta sobre como era ver um jogo no antigo estádio com a sua camisa tricolor de 2009: “No Olímpico era muito interessante, porque a gente ficava em uma zona onde se sentava em um banco de cimento frio, mas que a torcida ficava muito mais perto entre si, em uma comemoração de gol, por exemplo. Então, o Olímpico era uma casa onde era muito mais atrativo vibrar, torcer e até levar os filhos.”

Grêmio x Huachipato

Depois de três anos sem jogar a Copa Libertadores, finalmente eu iria rever o meu time jogar uma competição internacional. Confesso que tinha esquecido de como era o clima pré-jogo pois, na última vez, havia começado a pandemia da Covid-19.

O jogo estava marcado para as 19h, porém, quem é viciado em futebol sabe que o jogo começa logo ao acordar. Interfere no foco no trabalho, na academia e nas conversas durante o dia. Saí de casa por volta de 17h porque sabia que ia ser um pouco movimentado e, pelo horário de pico, as ruas estariam congestionadas. Logo ao parar o carro no estacionamento, senti que o ambiente era diferente dos outros jogos. Como em todas as partidas, sigo sempre o mesmo caminho até chegar à rampa de acesso à área de fora do estádio e, passando pela revista, o segurança já falava: “Finalmente vamos jogar a Libertadores, hein, guri!”. Eu só respondi: “Finalmente.”

O tempo estava agradável, nem muito frio, nem muito calor. Subindo até o 4º andar do estádio, tinha a visão completa do campo e de toda a arquibancada, algo que particularmente gosto pois, durante o jogo, analiso a tática do time. Sabe quando o tempo não passa e você começa a ficar cada vez mais ansioso? Pois é, a cada segundo que passava, eu tinha uma mistura de nervosismo com alegria e a emoção de poder rever o meu time de coração voltar a jogar uma competição como a Libertadores.

Com a bola rolando, logo com cinco minutos já se notava o time diferente, parecendo desligado e sem foco dentro de campo. Cheio de desconhecidos ao meu lado, já começavam a aparecer os gritos de “Vamo acordar, c…”, ou “Vamo jogar bola, p…”. Virei para o meu pai e falei a frase que, dois minutos depois, tornou-se realidade: “Se o Grêmio não começar a jogar e acordar para o jogo, vai tomar um gol logo, logo”. Dito e feito. Em uma bola alçada na área, a zaga do tricolor afastou mal por duas vezes e, na sobra, gol do Huachipato, com

O Olímpico, antigo estádio tricolor, hoje está abandonado – mas foi ponto de partida para excursões da torcida

apenas 12 minutos de partida. O que era um clima de felicidade começou a virar de apreensão, pois se continuasse daquele jeito, a derrota viria. Com o desenrolar do jogo, o Grêmio tentou, tentou, teve um gol anulado por impedimento, mas sempre faltava finalizar melhor a jogada. Existe um ditado no futebol que é “A bola pune”, ou “Quem não faz, leva”. Infelizmente, foi o que aconteceu na Arena do Grêmio. Com seis minutos de acréscimo, já

parecia ter acabado a etapa inicial, mas em uma desatenção após uma cobrança de lateral, a zaga afastou, ninguém pegou o rebote e, de fora da área, o jogador adversário acertou um belo chute e fez o segundo gol. Um verdadeiro balde de água fria na torcida gremista. No intervalo, a torcida parecia incrédula com o que tinha acontecido, alguns em estado de choque, outros xingando

a postura do time, porém o sentimento era o mesmo, tristeza. Olhei para a parte de cima do setor e vi uma cena muito curiosa em um estádio de futebol: um pai corrigindo o filho por falar palavrão. No futebol existem algumas formas de passar o intervalo, tais como feliz e comemorando o resultado parcial, irritado e comentando sobre o desempenho da equipe, mas eu ainda não havia vivido um, que era ficar em absoluto silêncio por todo o tempo de descanso dos jogadores.

Partindo para o segundo tempo, a esperança do empate era muito pequena, mas, como torcedor confiante, acreditei que o time pudesse voltar diferente. O jogo começou e o Grêmio mostrou uma reação, construindo jogadas de perigo no ataque e tentando o empate, porém o tempo passou muito rápido e o resultado desejado não veio. Senti aquele gosto amargo e ruim da derrota, pois era considerado um jogo fácil e o Grêmio já poderia encaminhar a classificação naquele momento. Na saída, como de costume, vinham todos os tipos de comentários a respeito da partida, desde críticas aos jogadores e ao treinador, até como a torcida se comportou na maior parte do jogo, sempre cantando e apoiando.

Desalojados pela enchente

Pouco depois daquela derrota na Libertadores, viria um revés muito pior. O futebol parou. O Rio Grande do Sul enfrentou sua pior enchente desde 1941. Naquele ano, em Porto Alegre, a marca do Guaíba chegou a 4,76 metros, equivalente a 59 centímetros abaixo do atual desastre e levou cerca de um mês para retornar ao limite seguro de 3 metros. No ano de 2024, o nível superou os 5 metros. Com estádios alagados, aero -

porto fechado e, portanto, sem condições de receber partidas dos campeonatos nacionais e internacionais, Grêmio e Internacional tiveram diversos jogos adiados por aproximadamente 30 dias. Ficando um período sem treinos e jogos, diversos jogadores da dupla Gre-Nal foram às ruas para ajudar a população de algumas regiões afetadas. Diego Costa e Caíque foram os mais noticiados por parte do Grêmio, participando desde resgates em regiões inundadas a distribuição de alimentos e produtos de higiene. Thiago Maia e Rochet, por parte do Internacional, também atuaram nessas frentes. Os clubes gaúchos se uniram na missão de reconstruir o estado e ajudar o povo que, como gaúcho, não desiste nunca.

Grêmio x

The Strongest

Com a Arena do Grêmio fechada por conta das chuvas, o tricolor foi jogar na cidade de Curitiba, no Estádio Major Antônio Couto Pereira, do Coritiba. Depois de quase um mês longe dos gramados, disputaria novamente uma partida da Copa Libertadores, porém essa viria com um gosto especial.

Sabendo da notícia, brinquei com o meu pai a respeito de irmos ao jogo, pois, além de ser uma experiência nova, estávamos presenciando um marco histórico. Após muita conversa e convencimento, compramos as passagens para Curitiba e eu finalmente realizaria um sonho do pequeno torcedor Lorenzo: assistir um jogo do meu clube de coração fora do estado do Rio Grande do Sul. Com a viagem marcada para terça-feira, 28 de maio, fomos até o ponto de encontro, localizado, por sinal, no Estádio Olímpico. Antes de subir no ônibus, senti uma alegria que não conseguia expressar por palavras,

e sim pelo ato de chorar silenciosamente para o meu pai não ver. Com aproximadamente 12 horas de viagem, dormimos boa parte do percurso para poder descansar para o dia que seria longo e feliz.

Chegando em Curitiba às 11h30, paramos bem na frente do palco do jogo que só seria realizado à noite. Sem qualquer planejamento do que fazer até a hora da partida, tiramos algumas fotos na frente do estádio e partimos para o almoço em um shopping a poucos quilômetros dali. Durante a caminhada, ia reparando em alguns aspectos da cidade, como a limpeza das ruas, os pontos de ônibus parecendo mais seguros e, principalmente, a temperatura muito mais fria do que na capital gaúcha. Chegando ao local de almoço, parecíamos duas celebridades, pois a todo momento recebíamos diversos comentários, como “Vamos, Grêmio”, “É hoje, hein” ou “Hoje Curitiba é Grêmio”. Após o almoço, fomos até o Starbucks para tomar um café e carregar nossos celulares. Lá, encontramos três torcedores que vieram juntamente no ônibus e começamos a conversar sobre o jogo, as enchentes e, principalmente, sobre como iria funcionar a viagem. Relatando que aquela era a minha primeira experiência fora do estado, eles começaram a falar sobre suas vivências e, a cada momento, uma história diferente surgia. Luiz Armindo Gonçalves, policial civil aposentado, baixo, de cabeça raspada e barba falha, perguntado sobre qual a diferença de ver um jogo na Arena do Grêmio e no Olímpico, conta que “é uma sensação diferente, como se não estivéssemos em casa. Mesmo tendo o calor do torcedor e o apoio, não é a mesma coisa”. Enquanto chegavam os cafés, ele também falou sobre ver um jogo do Grêmio como mandante fora de Porto Alegre:

“Este é um jogo atípico, como todos nós sabemos, por conta de tudo que estamos passando no estado. Eu defino esse jogo como emoção, por isso vai ser um dia muito especial como foi com o nosso coirmão. O Grêmio é conhecido por ser imortal, então vamos fazer igual o nosso estado e nunca desistir”.

Frequentando jogos do tricolor desde 1981, Luiz diz que a história que mais o marcou foi no jogo entre Grêmio e Peñarol, em 1983, quando foram em diversos ônibus até o Uruguai e acabaram sendo recebidos com pedradas, o que ele definiu como “estupidez, mas é a tradição deles”. Ele complementa que, normalmente, quando vai a jogos fora, a torcida gremista é muito bem recebida, como foi em Curitiba para aquele duelo, no Rio de Janeiro e mesmo no exterior. Lembrando um pouco mais do seu passado de torcedor, ele expressa que, se pudesse, voltaria ao Olímpico: “Sem dúvida alguma. O Olímpico tinha um calor humano diferente, pois tu sentias aquilo pulsar durante o jogo. A Arena do Grêmio é muito boa, tem todo o conforto necessário, mas também tem uma certa frieza normal por conta de o estádio ser maior e mais moderno.”

Mesmo não querendo falar sobre o assunto, perguntei a ele sobre o contexto das enchentes e como o esporte pode ter ajudado nesse longo e árduo processo de recuperação: “Nem gostaria de falar sobre isso, mas precisamos. Dizer pra ti que eu não chorei duas ou três vezes é mentira, porque esse contexto todo emociona nós gaúchos, né”. Já com a voz meio trêmula por conta da emoção, ele segue dizendo que “ver o nosso estado ser dizimado é muito triste, principalmente vendo a casa da minha mãe ser inundada e só enxergando o teto. Se tu puderes divulgar para o pessoal fora do nosso estado, só peço que

nos ajude agora e no futuro, pois o pós é muito complicado. O esporte volta em uma boa hora, pois acho que nós merecemos um pouco de felicidade e de lazer. Os últimos dias foram terríveis, deixando até a rivalidade de lado”. Aproveitando o contexto da viagem, ele ressalta que, realmente, a torcida do Grêmio possui mais afinidade com certas torcidas, como a do próprio Coritiba, a do Atlético-MG, Vasco da Gama e Palmeiras. Luiz conta que na final da Copa do Brasil de 2016, contra o Atlético-MG, a torcida adversária foi muito bem recebida, sem pedras, copos ou sacos com urina. Mas diz que ficou surpreso com a recepção da torcida “Coxa Branca”, do Coritiba, “pois não sabia que eram tão próximas”. Como jovem torcedor, eu ja -

O Couto Pereira, do Coritiba, foi cedido ao Grêmio para os jogos como mandante, reforçando a afinidade entre as torcidas

mais tinha visto tamanha união entre Grêmio e Internacional, pois os dois clubes possuem uma rivalidade histórica. Ouvindo esse comentário, Luiz me lembra que “nós somos um só, tanto Grêmio como Inter. Neste momento, somos nós por nós, o povo pelo povo. Por isso, espero que o esporte possa nos ajudar muito neste contexto”. Terminando o café, decidimos ir todos juntos até o estádio para aguardar a hora do jogo. Chegando no entorno do Estádio Couto Pereira, os gremistas e os torcedores do Coritiba já haviam tomado conta da rua de acesso ao estádio. Faltando cada vez menos tempo para o apito inicial, fomos até o ônibus largar a mochila e, finalmente, íamos ver o Grêmio jogar novamente. Entrando no estádio, senti uma emoção diferente das que havia sentido nos outros jogos, pois era um misto de felicidade de poder ter a experiência e de emoção de estar vivendo o meu sonho de criança com o meu pai ao lado. Olhei em volta e vi meu pai parecendo uma criança indo ao estádio

pela primeira vez, balançando a bandeira e fotografando o campo. Escolhemos o nosso lugar na arquibancada e bastava esperar o árbitro apitar o início do jogo.

Após o som do apito, a bola rolou em Curitiba. O Grêmio começou o jogo ligado, criando algumas chances de gol, e o torcedor cantava cada vez mais alto. Em um ataque pela direita, Diego Costa levantou a bola na área e Soteldo pegou muito bem com a perna esquerda para marcar o primeiro gol do tricolor gaúcho. A comemoração foi eufórica e os cumprimentos aos desconhecidos aconteciam a todo momento. Dominando o primeiro tempo, o Grêmio foi para o intervalo com o resultado de 1 a 0 e a esperança da classificação aumentando cada vez mais. Parei

um pouco para refletir sobre o momento que estava vivendo ali, realizando o sonho e vendo o recomeço do futebol para o meu time após a enchente. Com a autorização do árbitro, o segundo tempo começou a todo vapor, com o Grêmio trocando passes e, após uma tabela pela lateral, João Pedro pegou firme de perna esquerda e colocou a bola no cantinho do goleiro adversário. 2 a 0. Nesta hora, cada torcedor do Grêmio foi consumido por sentimentos como esperança, felicidade e, principalmente, alívio. Com o jogo mais tranquilo, o tricolor não deixou de atacar e, após roubar a bola no meio-campo, Everton Galdino arrancou pela ponta esquerda e bateu no fundo do gol. Enquanto eu comemorava, um copo de cerveja voou do setor superior e acabou pegando no meu ombro, molhando também a bandeira do meu pai, mas nada ia tirar a minha alegria. Jogo que segue. Com a vitória praticamente garantida, Gustavo Nunes ainda teve tempo de marcar um golaço. Pegando a bola na linha do meio-campo, arrancou em velocidade, passou por três marcadores e deu uma chapada no canto inferior do goleiro. 4 a 0, fora as

chances perdidas. Mais uma vez, um copo de cerveja desceu e acertou em cheio a cabeça do meu pai, respingando em mim, porém não igual à primeira vez. Com a roupa encharcada, comemoramos o resultado e ali já sabíamos que toda a viagem tinha valido a pena. Na saída do estádio, a torcida cantava e vibrava com o ótimo resultado e a volta dos jogos do time. No lugar de encontro, cada um que chegava contava algo a respeito do jogo, ou que previu um gol, ou que tomou uma cervejada na cabeça. Entrei no ônibus e fomos rumo a Porto Alegre com a vitória na bagagem e o sentimento de dever cumprido. Dormi a viagem toda e cheguei em Porto Alegre aproximadamente 10 horas depois da saída de Curitiba.

O Estádio Couto Pereira, palco do jogo da volta do tricolor gaúcho, remeteu-me muito ao antigo Olímpico Monumental, por ter um aspecto de estádio mais antigo, ou, como alguns definem, raiz. Na parte de dentro, três andares ficaram lotados de torcedores fanáticos que tinham esquecido o que era ver um jogo de futebol em um estádio tendo o seu time como mandante – o último jogo em casa, na Arena, fora há mais de um mês, vitória de 1 a 0 sobre o Cuiabá pelo Brasileiro. Apesar das diferenças arquitetônicas e tecnológicas, os três estádios – Couto Pereira, Olímpico e Arena – são conectados por um legado de paixão e excelência esportiva, representando a continuidade e a renovação do espírito gremista ao longo das gerações. Em casa, a primeira coisa que fiz foi dar um abraço apertado no meu pai, pois sem ele nada disso seria possível. Ninguém vive para sempre e, independentemente das coisas ruins, é preciso desfrutar das coisas boas e dar valor a quem está sempre ao seu lado.

casa NOSSA

Entre os lugares em que vivo, nenhum é mais importante que minha casa. A frase é em primeira pessoa, fala de mim, mas não parece descabido esticar o sentimento para uma condição coletiva. Segundo dados da Defesa Civil do Rio Grande do Sul, em 20 de maio, havia no estado 581.633 pessoas desalojadas, sendo que dentre essas, 76.188 estavam em abrigos. Nos últimos quatro anos passamos por duas grandes catástrofes que, ainda que tenham tido desfecho em ações que vieram do ambiente – as chuvas em 2024; o vírus da Covid-19, em 2020 –, têm origens anteriores, provavelmente relacionadas às maneiras como temos vivido deste planeta que nos aponta sinais de esgotamento de formas cada vez mais claras e dramáticas. A casa foi um dos pontos de contato entre os dois acontecimentos. Em 2020, fomos empurrados para dentro dela. Ficar em casa era importante para que o vírus circulasse menos, e assim se fizesse menos trágico. Em 2024, tivemos que sair: pela água que invadia tudo, e

sobreviver era mais importante, ou pela que faltava nas torneiras e nos deixava sem condições básicas para viver; ainda, pela luz que deixava de iluminar, nos jogando numa penumbra assustadora. Vendo agora, nesses dias de penumbra, o que olhei e quis fotografar foi minha relação com a casa. A da Tribo de Atuadores Terreira da Tribo, inundada no Quarto Distrito de Porto Alegre; a das pessoas que, fugindo das enchentes em Eldorado do Sul, Guaíba ou das ilhas, eram resgatadas na ponta do Gasômetro; a casa do Terreiro Nação Ilê de Oyó, inundado na Cidade Baixa; as das pessoas que precisavam escapar da Zona Norte ou, repentinamente, fazer malas e abandonar o Menino Deus; os abrigos que se tornaram novas e temporárias casas de passagem. Mas também de quem, mesmo ilhado, preferiu permanecer, na dependência de alguma ajuda sempre incerta. A casa que foi resguardo em 2020, foi temor em 2024, mas não tenho dúvida, é para onde queremos e precisamos voltar para que o impreciso viver prossiga.

(*) Fotojornalista e professor da Unisinos

Texto e fotos Flávio Dutra*

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

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Agência Experimental de Comunicação (Agexcom)

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EDITORAÇÃO

PROJETO GRÁFICO: Vanessa Cardoso

DIAGRAMAÇÃO: Marcelo Garcia

ANÚNCIO PÁGINA 31

ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Letícia da Rosa

SUPERVISÃO TÉCNICA: Juliano Schmitt

ATENDIMENTO: Luiza Dolores Marques

DIREÇÃO DE ARTE / ARTE-FINALIZAÇÃO: Rian Wolf

REDAÇÃO: Juliana da Silva

FOTO DE CAPA:

Petra Karenina

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