DIREITOS E RESISTÊNCIA
HISTÓRIAS DE QUEM LUTA POR EDUCAÇÃO, MORADIA, MEIO AMBIENTE, PROTEÇÃO, IGUALDADE, CULTURA E OPORTUNIDADES
HISTÓRIAS DE RESISTÊNCIA
“E
ra para a gente estar nos Jetsons e estamos voltando para os Flintstones.” A frase da cantora e compositora Rita Lee resumia, no final de 2021, a sensação de retrocesso dos anos recentes no país – e, poderíamos dizer, no mundo. Conquistas socialmente estabelecidas, que nos permitiam sonhar com um futuro mais tranquilo, igualitário e fraterno, passaram a ser renegadas, ameaçadas, destruídas. Estamos falando de direitos básicos e universais: saúde, educação, moradia, cultura, trabalho, meio ambiente, igualdade. Direitos previstos na Constituição, mas que não se realizam automaticamente. Na prática, demandam políticas públicas e mobilização dos cidadãos.
É disso que trata esta 60ª edição da Primeira Impressão, revista experimental do curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo, produzida na atividade acadêmica Jornalismo Literário em Revista. O tema “Direitos e Resistência”, escolhido pelos alunos-repórteres, é um indicativo alentador desta nova geração de jornalistas em formação. Revela consciência social, engajamento com as lutas de seu tempo, empatia com quem mais precisa.
E nada mais apropriado do que a reportagem, gênero nobre do jornalismo, para dar conta de questões tão complexas. Afinal, a missão de uma boa reportagem é contar histórias em detalhes, investigar o passado, elucidar o presente, indagar o futuro.
Assim conhecemos as batalhas de Seu Paulinho, Luís Gustavo e Tânia para preservar o Morro Santana; o renascer de Margarida e Jasmim na Casa Vitória; o trabalho voluntário que salva animais como Kiara, Aladim e até Bolsonara, vejam só; a jornada de Darwin para superar o preconceito e a deficiência; a saga do venezuelano Espinosa para encontrar, no Brasil, um porto seguro para a família; a dedicação de Júlia e Insano para usar o rap como ferramenta de ensino e conscientização; e os esforços de Lucas, Raique, Hakany, Akira e Camila para se manter e estudar.
São histórias de resistência, atitude fundamental para mudar o mundo em que vivemos e definir um futuro melhor aonde chegar. n
Felipe Boff Professor
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MEIO AMBIENTE E MORADIA
No cotidiano de faltas – de água, de luz, de estrutura –, moradores do Morro Santana tentam mantê-lo a salvo do fogo e da especulação
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VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Protegidas de ex-companheiros abusivos e agressores, residentes da Casa Vitória encontram a paz para viver e sonhar
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ANIMAIS
Vítimas menos visíveis da enchente, cães abandonados em centro improvisado em Canoas aguardam adoção
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DEFICIÊNCIA FÍSICA
Nascido sem parte das duas pernas e de uma mão, Darwin Kremer superou as barreiras de acessibilidade e preconceito
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IMIGRAÇÃO
Da Venezuela para o Brasil, Abimeleth Espinosa e sua família empreenderam uma jornada de reconstrução de suas vidas
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EDUCAÇÃO E CULTURA
Em Novo Hamburgo, escola também é palco para o aprendizado que brota da cultura hip hop
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EDUCAÇÃO E MORADIA
Independente e resistente, a Casa do Estudante Universitário Leopoldense abriga colegas na busca por conhecimento
ENTRE O FOGO E A FALTA
INCÊNDIO QUE ATINGIU O MORRO SANTANA
EM JULHO DE 2024 TROUXE À TONA DORES DOS
MORADORES DA ZONA LESTE DE PORTO ALEGRE
D’ÁGUA
Era uma quarta-feira como tantas outras no Morro Santana.
Enquanto uns preparavam o almoço e outros saíam para trabalhar, Seu Paulinho, aposentado e de vida simples, aproveitava o início da tarde para colocar a conversa em dia com os vizinhos. Conversa vai, conversa vem, e de repente um cheiro estranho e denso começou a se espalhar pelo ar, como um aviso.
O Morro Santana, localizado na Zona Leste de Porto Alegre, se estende por aproximadamente 4,5 quilômetros quadrados, alcançando 311 metros de altitude, representando o ponto mais alto da cidade. Quem vive ali, cercado pelo Pampa e pela Mata Atlântica, sente-se parte daquele lugar. A natureza e o ar puro, apesar de todas as dificuldades, fazem o morro parecer um pedaço de paz entre as curvas e as subidas íngremes que acomodam as casas, muitas construídas às pressas, umas quase se apoiando nas outras. Daquele topo, vê-se toda Porto Alegre, mas a vista bonita contrasta com o descaso público e a rotina de precariedade que os moradores enfrentam.
Seu Paulinho é um deles.
n
Considerado pelos moradores como um patrimônio histórico do Morro Santana, Paulo César Oliveira tem 69 anos, barba e cabelos grisalhos e vive uma vida simples que, de tão simples, beira a precária. Ele se mudou para a localidade aos dois anos de idade. Lá já morou em outros pontos, mas há 37 anos está instalado no mesmo local, quase no topo do morro, junto de sua fiel companheira, a cadela Pretinha. “Eu já pensei em sair daqui, mas não consigo. Eu não abro mão de morar no meio do mato”, ele diz. Entre bambus e plantas que ele mesmo cultiva, construiu um espaço que reflete sua luta e seu apego pelo Morro.
Naquela quarta-feira, porém, o cheiro de queimado não era comum. Paulinho ligou para o 190 assim que viu a fumaça, que estava a cerca de 70 metros de distância de sua casa. A voz do atendente era tranquila, dizendo que já havia equipe na área. Paulinho acreditou. “Eles são especialistas”, pensou ele, mandando uma mensagem no grupo de moradores para acalmar a vizinhança: “Pessoal, fiquem tranquilos, os bombeiros já estão por aqui”. Mas, enquanto o fogo se espalhava, a ajuda nunca chegava. O vento acelerava as chamas, e o cheiro de fumaça preenchia cada canto. Com o
Cada conquista foi nossa. Temos que permanecer, resistir, fazer memória”
190 ocupado de tantas ligações, Seu Paulinho e os vizinhos, sozinhos, começaram a lutar contra o fogo. Um vizinho quebrou um galho e começou a bater nas chamas. Foi a deixa para que os outros moradores se unissem na tentativa desesperada de salvar o que era deles. “A extensão do incêndio era muito grande. Começaram a aparecer várias viaturas da Defesa Civil. A gente implorava por ajuda: ‘Capitão, a gente precisa de água, de um caminhão de água para apagar esse fogo’. Eles estavam nem aí, escutavam e iam embora. O socorro chegou por volta das 19h30, quando a gente já tinha conseguido controlar as chamas”, conta Paulinho. Foram cinco horas de fogo e desespero, de gritos, de gente correndo e, acima de tudo, de abandono. “Se o fogo continuasse por mais 10 minutos, a gente não tinha mais casa”, ele lembra, agregando uma reflexão: “Tu sabe que ao mesmo tempo que tava queimando o Mato Grosso, foram fornecidos 50 profissionais daqui
pra ir pra lá apagar o fogo e ajudar? Toda essa gente preparada que foi pra lá, faltou aqui”.
A dor que aquele incêndio trouxe era mais antiga, marcada por cada pedido de ajuda ignorado e pela falta de serviços básicos. Água encanada, coleta de lixo, eletricidade constante – tudo era um luxo distante para muitos dali. Seu Paulinho, por exemplo, é conhecido na vizinhança pelos seus lanches, mas ironicamente vive sem geladeira. Duas delas ocupam espaço em sua casa, ambas incapazes de conservar qualquer alimento. Para ele, e para tantos
outros no Morro Santana, a sobrevivência diária vem temperada com a contradição e a dureza da escassez.
Nada na torneira
No Morro Santana, a rotina é esta: abrir a torneira e ver o nada. Do ponto mais baixo ao pico mais alto, a falta de água não surpreende ninguém. “Volta e meia, quando já falta água há dias, a galera desce e fecha a Protásio. Aí aparece o DMAE com alguma desculpa pra enrolar a gente”, comenta Luís Gustavo, estudante de Ciências Sociais e parte do coletivo Preserve Morro Santana.
Lá há uma parte regularizada e outra que ainda não foi, mas mesmo a parte regularizada sofre com a falta de água. O
n Seu Paulinho, Tânia e Luís Gustavo fazem parte do coletivo
Preserve Morro Santana
Departamento Municipal de Água e Esgoto diariamente envia um caminhão pipa para abastecer as caixas comunitárias das ocupações da parte alta. A ajuda é constante, mas insuficiente. “Dizem que não tem água encanada aqui porque a bomba não sobe até o topo do Morro. Como é que o homem foi à Lua, mas a água não chega aqui? O prefeito também mora no alto. Ele tem água, e a gente não?”, questiona Seu Paulinho, com a voz cheia de revolta.
Segundo os moradores, a situação só tem se agravado com o crescimento da especulação imobiliária na região e a construção de condomínios com centenas de apartamentos. E foi observando e analisando essa realidade que parte da população se juntou e organizou um coletivo. Criado em maio de 2021 a partir de movimentos já existentes na comunidade, o Preserve Morro Santana luta pelos direitos básicos da população, promovendo eventos, protestos e atividades educativas para conscientizar a população sobre a importância de conservar o Morro Santana, uma das maiores áreas verdes da cidade.
Para Tânia Silva, uma das vozes mais antigas do coletivo, o Morro representa mais do que um endereço. Formada em Letras e pedagoga em uma escola estadual, Tânia é uma mulher preta que vê naquele lugar a conexão com a própria ancestralidade. Cada espaço guarda histórias. Ela, como muitos ali, não quer sair. “Eu quero ficar aqui pelo compromisso que temos que ter com a região. Quando cheguei, não existiam asfaltamentos, mal passava ônibus. Cada conquista foi nossa. Temos que permanecer, resistir, fazer memória. Antes, a vista era limpa. Agora, com as construções, já não vemos mais Porto Alegre como antes”, reflete. Assim como Tânia, Paulinho também integra o coletivo, sendo ele e ela os membros mais velhos do grupo. Ambos percebem mudanças nas formas de reivindicar direitos ao longo dos anos. Tânia, ativista desde os tempos de faculdade, relembra os movimentos que liderava em prol dos direitos dos alunos e da comunidade: “Antes a gente
tinha algumas tendências, como ‘liberdade e luta’ e ‘avançar a luta’. Não existia a possibilidade de ser neutro, ou era isso, ou era aquilo. Tinha até luta armada. Hoje não se vê mais isso”. Apesar dessas transformações, ela se adapta e abraça as novas ideias dos mais jovens. Um deles é Luís Gustavo, de 28 anos, estudante de Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e um dos líderes do coletivo Preserve Morro Santana.
A diferença entre Tânia e Luís vai além da idade: enquanto ele, com seu estilo alternativo, tatuagens e paixão por música e fotografia, representa uma juventude variada, ela, uma mulher negra de turbante e conhecimento profundo sobre plantas, é marcada pela força da tradição. No entanto, é justamente essa união entre gerações
ainda mais evidentes. Ao descerem pelo Morro, cruzam com casas à venda. Ao se aproximarem de uma, decidem tentar descobrir o preço. “Tânia, você que é mais desinibida, pergunta o valor para os donos”, pede Luís Gustavo. Tânia hesita e, logo em seguida, se afasta. “Eu não vou perguntar. Você acha que eles venderiam para uma preta? Para vocês, brancos, é mais fácil”, diz, retirando-se ainda mais, quase sumindo de vista. Ninguém os atendeu para dar um valor, mas a cena ficou na memória de todos. Em meio às dificuldades enfrentadas pela comunidade, o racismo permanece, uma lembrança dolorosa de que as lutas, ali, ainda têm muitas frentes.
Racismo ambiental e urbano
e perspectivas que fortalece o coletivo, permitindo que ele siga resistindo e atuando pela comunidade.
Além das reuniões e mobilizações, os integrantes concluíram um curso de trilhas, capacitando-os a guiar percursos pelo Morro Santana. Com parcerias junto a universidades, eles atraem alunos para explorar o local, revertendo os valores arrecadados em benefício do coletivo. O próximo passo é encontrar uma sede no próprio Morro. Durante as buscas, as diferenças entre eles se tornam
Para Tânia, as mudanças urbanas que presenciou em todos esses anos remetem às vivências de seus antepassados. “Minha avó era lavadeira. Ganhava seu troquinho lavando roupa no Dilúvio. A água era limpa, e várias mulheres lavavam ali. Depois da primeira perimetral, todo o esgoto foi despejado lá. Agora, não dá mais pra fazer nada no Dilúvio”, conta, sentida. Seu Paulinho complementa: “O governo faz o que sai mais barato. Eles têm compromisso com o dinheiro, não com a gente. Querem que a gente vá embora”. Esse é o racismo ambiental que se sente na pele e nas memórias. Após o incêndio, o coletivo Preserve Morro Santana se manifestou: os pobres, sem alternativas, vivem nos locais mais frágeis. “Cada vez mais vemos moradias na encosta do Morro, onde a água não chega, mas o fogo queima. A falta de infraestrutura e os riscos ambientais – deslizamentos, enchentes, queimadas – atingem quem vive nas ‘áreas de risco’, onde a população negra e indígena se concentra. Essa é a lógica do racismo ambiental”, escreveram.
Perto da meia-noite, as chamas foram contidas. Mas os moradores do Morro Santana sabem que o fogo que os consome nunca se apagou. n
n O incêndio causou
danos em uma área equivalente a 29 campos de futebol
Cada vez mais vemos moradias na encosta do Morro, onde a água não chega”
n A borboleta na entrada da Casa é um sinal para a transformação. A pequena pracinha no pátio é um aconchego para as filhos e filhas das mulheres abrigadas
O JARDIM DA CASA VITÓRIA
UM REFÚGIO INVISÍVEL, ONDE HISTÓRIAS DE DOR
SE TRANSFORMAM E MULHERES RENASCEM
TEXTO E FOTOS NATHÁLIA JUNG
Uma casa sem endereço conhecido, camuflada entre outras em um bairro residencial na periferia. A placa na cor branca estampa um nome, em roxo, que diz pouco ou quase nada para quem passa desatento: Casa Vitória. Respeito. Igualdade. Valor.
Um morador mais antigo pode ainda se perguntar “Aqui não tinha uma igreja?”. Antiga igreja, virou espaço de proteção. A comunhão agora é de histórias em busca de esperança, as orações continuam ecoando pelo espaço, mais silenciosas, mais doloridas.
Ao se passar pela grade que cerca a casa, pelo portão sempre fechado e liberado só pelo segurança, disponível 24h, cruzar pela borboleta colorida, pendurada na parede de grama verde, e entrar pela segunda porta de madeira ripada, a casa dá as boas-vindas para um espaço que mulher nenhuma quer ter que adentrar.
Instituições de acolhimento e abrigamento para mulheres vítimas de violência são raridade no estado do Rio Grande do Sul, 14 para ser exata. A Casa Vitória, em Canela, é a 14ª. Reformada em 40 dias, em 2021, pela
urgência de iniciar os atendimentos, a Casa funciona com repasse da prefeitura, mas sobrevive por doações da comunidade.
Dentro das paredes, cômodos coloridos, dois banheiros, cozinha completa para todas as refeições e um espaço kids envergonhado, atrás do sofá da sala. No corredor, dois quartos com nome de flor, margarida e jasmim, esperando o desabrochar de novas vidas. A sala da coordenadora, da assistente social e da psicóloga já antecipam a equipe reduzida que gerencia, auxilia e mantém vivo o espaço. “E a gente é só em três, tá?”, confirma Joci, a assistente social. Manoela, a coordenadora, advogada especialista em direito de família, uma mulher de cabelos castanhos, voz alta e imponente, pequena só em estatura, contrapõe a equipe reduzida. “Cada uma abraça muito cada causa. A gente não quer ser só mais um serviço à disposição. Quer ser fator de transformação na sociedade.”
O choque da Margarida
“Foi aí que meu mundo desabou, eu entrei em choque.” Se Margarida (nome fictício, para preservar a segurança da vítima) soubesse que
aquele dia de trabalho mudaria sua vida, talvez tivesse chegado um pouco atrasada para ter mais tempo no seu antigo mundo. Professora da rede municipal, descobriu, depois de 20 anos de casada, que nem toda violência contra a mulher faz marcas visíveis, que nem toda dor causa marca na pele.
Uma das ações da Casa Vitória é levar para escolas da cidade informação, prevenir que saiam dali agressores e vítimas. O que a equipe fez no dia que visitou a escola de Margarida para uma palestra não foi prevenir, mas alertar e salvar. Sentada em um sofá roxo vibrante, contrastando com a pele clara e a postura ainda encolhida, relembra: “Tive uma reação de espanto, porque eu vi que me encaixava muito naqueles tipos de violência”.
Margarida tem 40 anos, cabelos cacheados e pintados, tem a voz calma e suave que acusa a profissão docente, mas também a de alguém que ainda está construindo seu lugar de fala. Foram 20 anos de um relacionamento sem espaço, com muitas críticas e o parceiro com “atitudes progressivas, em que cada dia ele mudava um pouquinho”. “Ele dizia que eu era uma péssima mãe, que eu não era uma boa esposa. Me fazia chorar e ficava na sala assistindo TV e rindo.”
O pedido de separação aconteceu em outubro de 2023 e, desde lá, foram seis meses dividindo o mesmo teto e com ameaças para que desistisse da sua decisão mais importante:
dar fim àquele relacionamento. “Ele começou a fazer jogos, querendo me tirar a casa, tirar os bens materiais. Dizer que eu não seria capaz de me manter, de me sustentar.”
Em abril, quando a Casa Vitória cruzou seu caminho e apresentou as tantas formas de violência, a psicológica e patrimonial que Margarida viria a descobrir que sofria, conseguiu de fato tirar o seu ex-marido de casa com a ajuda de uma medida protetiva. Entretanto, a medida protetiva, apesar de eficiente, muitas vezes não é suficiente. Margarida sabia que “Se ele entrar aqui eu sei para o que vai ser, não vai ser para conversar. Eu ficava em pânico esperando ele surgir”. Em umas das tentativas, o ex-marido quase invadiu a casa, foi impedido pela rapidez de Margarida. O retrovisor do carro, estacionado em frente à moradia, sofreu as consequências: quebrado e destruído.
Contar sua história ainda parece um desafio. Mais de um ano depois do início dessa jornada, faltam palavras, o choro interrompe na narrativa. A filha de nove anos é seu bote salva-vidas. “Agora minha missão é dar suporte. Ela me dá uma forca incrível.” A emoção ao falar da filha deixa claro de onde vem a força para essa
mudança e, apesar de se enxergar pouco como mulher, o ser mãe nunca esteve tão forte.
Mais do que reconstruir sua vida, Margarida luta para se reconstruir: “É um processo, o momento agora é me identificar como mulher, como pessoa. Meu caráter, minha autoestima, foram destruídos por ele. Aos poucos eu vou ter que cuidar de mim e da minha filha. Esse é meu objetivo.”
A reconstrução é feita de forma lenta e cautelosa, o medo de sair à noite ainda impede as coisas simples da vida, mas não impede um “um nascer de novo, muito mais forte.”
“Hoje me sinto livre”, diz Margarida.
O
renascer de Jasmim
Se ele entrar aqui eu sei para o que vai ser, não vai ser para conversar. Eu ficava em pânico esperando ele surgir”
“Quando tu está machucada, quando tu está frágil, se tu não é curada direito, tu continua com aquelas sequelas, continua ferida.” Jasmim (nome fictício) precisou nascer duas vezes, ser curada duas vezes e encontrar força para não ser consumida pela culpa da sua própria vulnerabilidade. Mãe de uma menina de quatro anos, formada em Recursos Humanos, 34 anos. Hoje, conta sua história com o orgulho em cada palavra, com a firmeza na voz de quem conquistou seu espaço a um custo alto. O rosto jovem e as roupas em tons rosa escondem a maturidade de dois relacionamentos e uma história marcada por uma lenta desconstrução da sua independência. O mais longo, um casamento de nove anos, teve fim em outubro de 2023 e, assim como outras mulheres, imersas
e sufocadas, descobriu as violências que sofria depois: “A parte de gestão financeira em casa sempre ficava com ele. Para qualquer coisa que fosse comprar ou eu quisesse, era uma tortura, uma briga.”
O abuso financeiro que sofria e as privações desencadearam o pedido do divórcio e sequelas que não se extinguiram com o fim do casamento. O ex- marido passou a perseguir e ameaçar. Escondido no pátio da casa que antes dividiam, espionou e invadiu a privacidade. “Eu vi um vulto na janela e quando eu vi era ele, me cuidando, a hora que eu chegava e saía.” Orientada por uma advogada, registrou um boletim de ocorrência que afastou, fisicamente, seu abusador.
Encaminhada então para a Casa Vitória, encontrou refúgio em desconhecidas, atendimento e amparo para que conseguisse superar e se reconstruir. Apesar do apoio, a violência carrega também a solidão. Sozinha, tendo que prover o sustento da casa e da filha, o acesso ao dinheiro e ao direito de compra tão desejado não surgiram na mesma velocidade. “Era o meu salário para mim e ela, cuidar da casa. Passei dificuldade, até de ir ao mercado, comprar pães e ficar dividindo para minha filha poder comer.”
O boletim de ocorrência e a medida protetiva não afastaram a sombra do abuso emocional: “Eu me julgava muito pelo término do casamento, eu me condenava por ter acabado com a estrutura familiar da
minha filha.” O choro que encontra as palavras é de tristeza, da vulnerabilidade de uma mulher violentada e de uma mãe que teve que ser cuidada. “Minha filha de quatro anos me levava comida na cama. Ela fazia um sanduíche, do jeito dela, porque eu não tinha força para sair da cama. Eu tive dias que eu não queria resistir. Uma criança de quatro anos, que precisava ser cuidada por mim, estava cuidando de mim.”
Mesmo com o acompanhamento e a luta diária, feridas precisam de tempo para ser curadas. No início de 2024, o envolvimento em um segundo relacionamento foi uma lembrança dolorosa de como traumas podem levar à repetição de ciclos de abuso. “Pela questão psicológica, pela carência, me deixei envolver com outra pessoa e foi muito pior. Fui um alvo fácil.”
Jasmim conheceu o ex-namorado pela internet e, num piscar de olhos, estava envolvida e submissa. Diferente da violência do ex-marido, o novo parceiro foi, aos poucos, consumindo e arruinando sua autoestima e confiança. “Fui me afastando das minhas amigas, eu não podia ter contato com as pessoas. Ele conseguiu fazer com que eu trocasse de número de telefone”. Isolada das pessoas, cobrada para cada passo que dava e com quem falava, nem seu corpo lhe pertencia mais: “Tinha que ter sexo todos os dias, querendo ou não tinha que dar um jeito. Senão, eu estaria com outro, com outra pessoa, eu estaria
traindo.” A intimidade era moeda de troca e a submissão um pré-requisito.
“Era uma mistura de culpa, medo, mas resistência. Eu preciso de uma vida melhor. Foi onde eu me levantei, fui criando forças. A Casa Vitória me ajudou a identificar o perfil.”
Foram dois meses presas a esse relacionamento, sofrendo pela culpa e pelas torturas: “Eu já vim de um relacionamento abusivo, como que eu consegui entrar em outro? Eu me culpava muito por isso, era muito difícil de aceitar”.
A Casa Vitória foi suporte e bote salva-vidas. Com o apoio da equipe, os atendimentos e, principalmente, o acompanhamento psicológico, Jasmim se libertou, aos poucos, e aprendeu a reconhecer os sinais que a mantinham presa nesses relacionamentos abusivos. Com ajuda, deu fim a um ciclo.
Com um novo recomeço, a antiga casa, cheia de memórias que precisavam ser esquecidas, deu lugar a um novo apartamento, um lar que representa para Jasmim liberdade para ela e para a filha. “É a cor que a gente quer, a flor que a gente quer, o cheiro que a gente quer. É meu refúgio, é o refúgio da minha filha, é nossa a história.” “Hoje me sinto muito feliz, muito mais realizada. E cada dia a gente tem lutado e enfrentado”, conclui Jasmim.
O jardim floresceu
O renascimento de cada mulher ecoa a força de cada vivência, e se entrelaçam no jardim da Casa Vitória. As marcas invisíveis causadas pela dor podem seguir intactas, mas suas vozes não contam só suas histórias, contam o testemunho da luta por respeito e dignidade, pela liberdade de ser mulher, de ser mãe.
O choro ao relembrar do abandono e da solidão é escondido, por segundos, por trás dos sorrisos ao final da entrevista, que são símbolos de que a esperança pode florescer. A Casa Vitória continua sua missão, reconstruindo e cultivando novas vidas. “Eu vejo nosso trabalho como pequenos sonhos realizados”, resume Manoela, a coordenadora. n
LATIDOS POR RESGATE
MANTIDOS EM UM ABRIGO CRIADO EMERGENCIALMENTE
EM CANOAS, 198 CÃES ABANDONADOS NA ENCHENTE
AGUARDAM ADOÇÃO
TEXTO E FOTOS HEMELLY MARQUES
As lembranças da enchente que deixou o Rio Grande do Sul em pedaços soam como um pesadelo toda vez que são citadas. Para grande parte da população, foi um momento de angústia e desespero: a sensação de ver lembranças sendo levadas embora pela água escura e suja dos rios e precisar deixar suas casas enquanto elas foram tomadas pelas águas causou traumas profundos. A chuva, que antes trazia acolhimento e conforto, hoje é motivo de crises de ansiedade e preocupação.
A enchente causou danos irreversíveis a diversas famílias gaúchas, mas a água baixou, a limpeza foi feita e a reconstrução está em andamento na maioria dos lares. No entanto, ainda há uma causa humanitária que a maioria não percebe e que continua e continuará precisando de nosso apoio. Seis meses após a pior catástrofe que nosso estado já enfrentou, os latidos no prédio 3 do Centro de Acolhimento de Animais Palmira Gobbi, em Canoas, continuam persistentes, vindos dos 198 cães adultos que restaram ali – um eco do que parece ser, para eles, uma angústia por atenção e um simples carinho. Ao entrar no galpão 2 do abrigo, o primeiro com o qual tive contato, a sensação pesada era palpável. O lugar escuro e mal ventilado me causou uma impressão de abandono e descuido. Por mais que aqueles animais, tecnicamente, estivessem abandonados ali, eu relutava em pensar dessa forma. No entanto, após passar uma tarde acompanhando a realidade deles, percebi que era exatamente isso que sentiam e viviam: o abandono de não ter um lar. Ao me aproximar dos cães, eles começaram a latir; a princípio, pensei que fossem agressivos, até perguntar a uma cuidadora se poderia me aproximar. Ela respondeu que sim. Foi quando percebi que, na verdade, o que eles queriam não era passar medo e sim chamar nossa atenção para que pudéssemos lhes dar um pouco de carinho e afeição, que era o que eles mais precisavam naquele momento. A simples ação de se aproximar
e passar a mão neles os deixava eufóricos; pulavam, latiam e se esfregavam em nossas mãos, à procura de algo que era cada vez mais escasso naquele ambiente em que estavam acondicionados.
Ao entrar ali, quem primeiro me chamou a atenção foi Bolsonara, nome que me trouxe vários questionamentos sobre o motivo. Por que alguém daria o nome do ex-presidente a um animal tão dócil e bonito? Com pernas longas e uma pelagem escuras com alguns pontos mais claros, ela latia e pulava descontrolada, puxava a corrente e tentava se aproximar com grandes olhos tristes e atentos. Após perguntar a um cuidador o motivo do nome Bolsonara, veio a parte que mais me deixou abalada: ninguém ali sabia o motivo do nome de cada animal; os nomes eram dados de forma aleatória, não tinham nenhum significado, nenhuma motivação por trás, foram dados por necessidade de serem catalogados e de preencher uma lacuna na pressa que a enchente demandava. Os nomes eram fixados com um pedaço de esparadrapo na parede ao lado da divisão de cada animal – alguns estavam tão desgastados que não dava nem para identificar o nome, mantendo os animais praticamente no anonimato para aqueles que não os conheciam.
A corrente no pescoço dos animais não lhes permitia caminhar nada mais do que dois passos em direção de afeto. Mesmo assim tentavam, pulavam, latiam tanto que às vezes nem era possível ouvir o que a entrevistada falava. A sinfonia de latidos e até alguns choros ficou bem nítida quando fui ouvir a gravação de voz de Raquel Valssoler: o barulho dos animais dominava o áudio, quase não sendo possível ouvir a voluntária falar. “Os cães que estão aqui, a maioria, são de porte grande. As pessoas procuram geralmente cães menores, que possam ser deixados dentro de casa, o que dificulta ainda mais o acolhimento e adoção desses animais.”
Nesse momento comecei a olhar para o abrigo com outros olhos e reparar nesse detalhe: os animais ali abandonados estavam à mercê de um preconceito que
muitos carregam, de adotar apenas cães pequenos e considerados mais “fofinhos”. A maioria dos cães, senão todos, que estavam ali largados no abrigo eram cães de porte médio a grande. Alguns, como o Pelúcio, um vira-lata que poderia quase ser considerado de pequeno porte, com quem Raquel passeava, era ainda desleixado, com um pelo preto com algumas manchas brancas, parecia malcuidado e velhinho, o que não chamaria a atenção de um possível interessado em um animal “fofinho”.
Além dos animais de grande porte, velhos e “desleixados”,
n Raquel Valssoler é voluntária no abrigo e passeia sempre com os animais
havia uma outra ala que preocupava: os doentes e acamados, que precisam de tempo e dedicação extra. O fato de precisar de cuidados especiais muitas vezes já é motivo que impeça as pessoas de cogitarem adotar um animal doente, o que acaba fadando esses cães a um resto de vida sem esperança de amor.
Parceria entre voluntários e prefeitura
O abrigo, criado no dia 4 de maio de 2024 por voluntários, chegou a receber 3 mil animais catalogados e registrados, mas a coordenadora, Camila Schmitz, acredita que tenham sido muitos mais, pois na urgência da catástrofe, a pressa foi inimiga da perfeição.
As pessoas procuram cães menores, o que dificulta ainda mais o acolhimento e adoção desses animais”
Conversando um pouco com a coordenadora do abrigo, consegui entender qual a atual situação do lugar, que não é mais um abrigo atendido somente por voluntários, mesmo que eles estejam ali diariamente passeando com os animais. No momento, quem financia e cuida do abrigo é a prefeitura de Canoas, que contrata veterinários, cuidadores e dá o suporte com alimentação e necessidades básicas que os animais precisam. Porém, coisas simples que tragam o mínimo de dignidade a esses animais, como a limpeza semanal das cobertas que utilizam, ainda são feitas por voluntários, que deixam de lado sua família, casa e vida para poder ajudar a causa animal.
“Eu estou aqui por amor, eu amo a causa animal, eu amo esses bichinhos e venho aqui sempre que posso. Em dia de semana estou sempre trabalhando, mas aos finais de semana venho aqui e passeio com eles, dou carinho e ajudo com o que posso”, diz Raquel.
Os cães que ali ainda estão abandonados carregam traumas das muitas horas que passaram em cima de telhados, esperando ansiosos seu resgate ou nadando à procura de um lugar seguro onde pudessem esperar o socorro. Alguns, abatidos e com um olhar triste, nem se levantavam quando chegávamos perto.
A solidão que aquele ambiente transmite é um recado a todos aqueles que acham que a enchente só deixou marcas profundas nos humanos. As pessoas
perderam tanto e sofreram tanto quanto os animais. Alguns conseguiram superar e correr alegres quando saem para passear com os voluntários, mas muitos se deitam e ficam olhando com um olhar depressivo para a parede à sua frente. É o caso do Pudim, que tinha três placas que diziam em letras maiúsculas “MORDE MORDE MORDE”, mas que, ao chegar perto, nem virou o rosto para mim. E, não querendo ir contra o aviso que havia nas placas, não me aproximei mais. Talvez esse seja o motivo de tanta tristeza: a falta de afeto devido àquela placa que causa medo em todos que passam por aquele corredor. Em contrapartida, Kiara e Aladim são uma dupla e tanto. Acostumados a sair sempre juntos, Aladim se nega a deixar seu espaço para passear caso Kiara não esteja com ele. E como correm, passeiam e se divertem, escavam o monte de terra que há atrás do abrigo onde estão alocados, até jogando certo punhado em mim ao tentar fotografá-los – o que não deu muito certo, pois não param quietos. São cães que têm uma energia inesgotável, mas o único momento em que podem extravasar é uma vez ao dia, quando algum cuidador vai até seu pequeno espaço, dividido dos colegas de pavilhão por uma placa de MDF e equipado com um pequeno pote de água e alguma coberta jogada em de outro pedaço de compensado pequeno, que serve quase como uma cama. Então podem sair dali para correr, mesmo que em uma coleira, por alguns minutos ao ar livre. É triste pensar que estão condicionados a uma liberdade provisória, quase como detentos cujo único crime foi sobreviver à maior tragédia climática do seu estado, perder sua família e, ainda assim, sofrer pelos meses seguintes à espera de alguém que possa cuidar deles e lhes dar um novo lar. Que este alguém possa ser você, um amigo, um conhecido. Se puder, adote um cachorro. n
n Kiara e Aladim (segundafoto) esbanjam energia sempre que saem para passear. A cadelinha Bolsonara (terceirafoto)chegou ao abrigo logo após a enchente
n Com o braço erguido em gesto de resistência, Darwin exibe a força que o define
DARWIN A JORNADA DE
A TRAJETÓRIA DE UM HOMEM QUE, DIANTE DAS BARREIRAS
IMPOSTAS PELA SOCIEDADE A QUEM TEM DEFICIÊNCIA FÍSICA, CONSTRUIU UM LEGADO DE INSPIRAÇÃO, CORAGEM E REALIZAÇÕES
— Tu nasceu com essa deficiência ou aconteceu alguma coisa?
— Eu nasci assim.
— Por qual motivo? Algo genético?
— Não, até hoje eu não sei o motivo.
— Tua mãe sabia na gravidez que tu nasceria sem as pernas e um braço?
— Não. Por quê?
— Porque se ela soubesse, poderia te abortar, né?
Essa conversa infeliz e extremamente pesada foi uma das que Darwin já passou por diversos momentos da sua vida. Nessa ocasião, foi questionado sobre a sua deficiência física por uma colega de faculdade. Ele foi pego de surpresa e ficou sem saber o que responder.
Nascido e criado no bairro Pátria Nova, em Novo Hamburgo, desde o dia 17 de março de 1963, Darwin Frederico Kremer atualmente mora no terceiro andar de um apartamento localizado na Avenida Primeiro de Março.
Até hoje, Darwin não sabe o motivo de ter nascido sem parte das duas pernas e com a mão esquerda com apenas um dedo. Mais precisamente, agenesia dos membros inferiores e hipoplasia do antebraço e mão esquerdos. É sabido que não foi por um fator genético. Por muito tempo, acreditou que sua mãe poderia ter tomado um medicamento para enjoo na gravidez, chamado
TEXTO E FOTOS
GABRIEL JAEGER
talidomida, que foi proibido após vários bebês nascerem com más-formações congênitas, como encurtamento de membros. Entretanto, descobriu que não foi isso. O fato é que sua mãe, Iara, contraiu rubéola durante a gravidez, tanto que ele nasceu com a doença. Em mulheres grávidas, pode provocar danos ao feto. Porém, esses danos são restritos ao aparelho auditivo, não havendo registros de más-formações nos membros inferiores ou superiores. Ou seja, não tem como concluir nada com tudo isso.
Darwin revela que se aceitou automaticamente com o tempo, porque já nasceu assim. Se tivesse perdido os membros com o passar dos anos, acha que seria muito mais difícil de levar a vida. Dessa forma, foi muito bem acolhido para estudar na Escola Municipal Otávio Rosa, onde não teve recusa do colégio, algo que infelizmente era extremamente normal na época. A maioria dos colégios não aceitava. Porém, a Escola Otávio Rosa não era adaptada para o Darwin. A locomoção era complicada, principalmente para ir ao banheiro. Por muitos anos, ele praticamente engatinhava para andar cotidianamente. Quase nunca usou cadeira de rodas porque mais o atrapalha do que ajuda. Com essas condições, Darwin passou a usar botas especiais para poder se locomover. Isso aconteceu quando tinha 14 anos, período em que estudava no ensino médio, no Colégio Estadual 25 de Julho. Lá, havia dois andares, e subir a escada era uma dificuldade enorme. As pessoas
n Botas especiais marcadas com as letras E e D (esquerda e direita), que acompanham Darwin na sua caminhada de superação
normalmente levavam menos de um minuto para subir. Darwin levava 10. Por vários anos, ele ralava e queimava seu corpo no chão quente por andar daquela forma difícil, principalmente durante os verões. A cada passo dado com as suas pernas e mãos no chão áspero, sentia o calor do asfalto como um lembrete de que sua jornada seria sempre marcada por desafios invisíveis aos outros. Felizmente, as botas facilitaram muito para caminhar e se tornaram essenciais na vida dele, já que as utiliza até os dias de hoje. Ele sempre teve muito apoio da família e de amigos, guarda com carinho os nomes de Noêmia Ruschel, diretora da primeira escola em que estudou, e dos colegas César Rick, Eduardo Bondan e Luciano Costa. Apesar de todas as dificuldades, Darwin nunca se importou com o que os outros pensavam. E jamais se enclausurou dentro de casa por causa de suas limitações. Muito pelo contrário, sempre buscou participar de tudo, principalmente das atividades esportivas. O futebol sempre foi o seu amor. É torcedor fanático do Inter. Jogava com as mãos e, por causa disso, a posição de goleiro foi a mais viável para ele. Como um torcedor fanático, Darwin frequenta o Estádio Beira-Rio
quando consegue ingresso. Por lá, passou por uma situação no mínimo bizarra. Ele se diverte dizendo que nem todas as histórias são tristes. Enquanto subia a longa rampa, sentindo o pulsar da emoção de estar ali para ver seu time do coração, Darwin foi interrompido pelo porteiro distraído, que o olhou como quem vê uma cena de devoção. “Pagando promessa, meu filho? Não é melhor esperar o resultado?”, perguntou o homem com um sorriso inocente. Darwin sorriu, entre o cansaço e a incredulidade, enquanto seus amigos riam sem parar. Depois disso, teve que aguentar as brincadeiras deles, apelidando-o de “o pagador de promessas”.
Após terminar o ensino médio, Darwin passou a se reunir com amigos todas as sextas-feiras para jogar futsal na quadra da Sociedade Fraternal, em Novo Hamburgo. O horário era das 20h às 21h. Ele conta que era ótimo goleiro, pegava quase todas as bolas que vinham rasteiras. O maior problema era quando vinha por cima, mas se esforçava ao máximo para evitar os gols. Era eficiente! Ele conta tudo isso com muita emoção.
Amante da leitura, viveu momentos complicadíssimos na
n Darwin foi homenageado ao se despedir do cargo de Procurador-Geral do Município de Novo Hamburgo (acima,àesquerda) Durante discurso na Câmara de Vereadores (aomicrofone), defendeu os direitos das pessoas com deficiência. Na foto maior, mostra sua habilidade como goleiro: o futebol sempre fez parte de sua vida
adolescência. Ele revela que, por muitas vezes, quis desistir de tudo. Considerava mais fácil do que ter que passar por tantas dificuldades por causa da sua deficiência física. Com muita resiliência, superou tudo isso também.
E a vida sorriu para ele quando conheceu a sua esposa, Janaina Jung, de 57 anos. São 35 anos de casados. Ele a conheceu com 20 anos, ela tinha 16. Antes, Darwin tinha problemas com relacionamentos porque as garotas o rejeitavam devido ao preconceito. Quando conheceu Janaina, sentiu o coração leve, como se, pela primeira vez, alguém o enxergasse sem o véu do preconceito. Ela sorria para ele como se não visse as suas dificuldades, e sim o homem que, por tanto tempo, ele quis ser. Ali, naquele sorriso, havia um futuro que ele não sabia que poderia existir. Por
algum momento, imaginou que não conseguiria casar. Mas, com a Janaina, ele formou uma linda família, com dois filhos, Carolina Kremer e Leonardo Kremer, de 30 e 26 anos, respectivamente. Ela é formada em Biologia e ele é formado em Ciências Contábeis.
Darwin sempre foi um guri de ótimas notas na escola. Resolveu cursar Direito na Unisinos e se formou com muita rapidez, aos 23 anos.
— Tem certeza que tu quer mesmo fazer Direito? — Claro. É o que quero para a minha vida, advogar. — Mas tu sabe que as tuas chances são mínimas, né? Com essa tua condição, quase ninguém vai querer te contratar.
Esse diálogo com um amigo foi uma situação que o chocou na época, mas hoje ele reconhece que era apenas preocupação devido ao preconceito impregnado na sociedade.
Venceu mais um desafio e o seu primeiro emprego foi dentro da área. Fez um estágio no departamento jurídico da Quimisinos e se sentiu muito satisfeito. Em 1988 foi completamente surpreendido, já que foi convidado pelo presidente do antigo Partido Democrático Social (PDS) para se candidatar a vereador do município de Novo Hamburgo, pois não havia pessoas interessadas. Darwin revela que não tinha experiência na política, só conhecia o que lia e acompanhava de vez em quando. A partir disso, começou a campanha eleitoral e passou por situações constrangedoras, como parte da população prometer voto nele por pena.
— Não sabia em quem votar. Mas te vendo nessa condição, vou te dar essa chance.
— Eu não quero voto por dó. Não sou coitado. Estou aqui para tentar mudar a vida de vocês e da cidade. Se for para votar em mim pensando dessa forma, prefiro que não me escolha.
Darwin ri da situação porque imagina que ele deve ter sido o único caso político do mundo em que pedia para algumas pessoas não votarem nele. Quando o eleitor, com olhos cheios de uma compaixão torta, lhe prometeu o voto, ele sentiu o peso do preconceito como um tapa. Ele não era um coitado em busca de caridade. Era um homem forte, cansado de provar que poderia fazer a diferença, que era capaz de comandar e decidir. Naquele momento, cada voto parecia vir como uma pedra em seu caminho – precisava convencer o mundo de que seu mérito não cabia em um rótulo de compaixão. Ele foi eleito. E não foi apenas uma vez, em 1989. Foram três mandatos seguidos, até o ano de
n Darwin ao lado de sua esposa, Janaina Jung, parceira incansável em sua jornada de superação e amor
2001. Na primeira oportunidade foram 852 votos, depois 1.387 e 2.600 votos, sendo o candidato mais votado de Novo Hamburgo. Recebeu muito apoio de Carlos Finck, pai do atual prefeito eleito, Gustavo Finck (PP). Foi autor de projetos importantes, principalmente pelos direitos e pela autoestima das pessoas com deficiência. Em 1999, foi presidente da Casa Legislativa. Posteriormente, atuou também como procurador-geral do município.
— Esse daí que é o procurador da cidade?
— Sim, é o Darwin Kremer.
Na sequência, foi vice-presidente da Associação dos Deficientes Físicos de Novo Hamburgo (Adefi) e do Conselho Municipal das Pessoas com Deficiência, entre 2009 e 2016.
Eu não quero voto por dó. Não sou coitado. Estou aqui para tentar mudar a vida de vocês e da cidade”
— Como um cara sem as pernas é procurador de Novo Hamburgo?
Não consegue nem andar, caminhar direito. Vai procurar o quê?
Essa piada de muito mau gosto, conta ele, foi rotineira enquanto trabalhava nessa função importante.
Aposentou-se por invalidez em 2009 após ser diagnosticado com Parkinson. Diferentemente de como lidou com sua vida por um bom tempo, agora raramente sai de casa. A doença afetou ainda mais a sua locomoção, inclusive a fala, e ele tem que se esforçar para falar algumas palavras com clareza. Com um sorriso de orelha a orelha, acredita que conseguiu ser muito mais feliz do que imaginava ser. Realizou tudo que queria e tem certeza de que é inspiração para outras pessoas.
E, em se tratando de inspiração, Darwin é um ótimo escritor, tem quatro livros. O seu predileto é o “Eu, deficiente físico”, que contém 184 páginas. Ele conta toda a história da sua vida e diversas curiosidades sobre a deficiência física, principalmente no Brasil. Darwin admira muito o próprio livro porque descobriu que ele foi extremamente importante para evitar o suicídio de uma pessoa com deficiência. Uma amiga, que ele prefere não revelar o nome, revelou que uma familiar dela estava prestes a desistir de tudo, mas a leitura do “Eu, deficiente físico” foi crucial para ela ver a vida de uma forma mais positiva. Darwin é o retrato da superação. Em uma época em que nem existiam leis de inclusão para pessoas com deficiência, o advogado e escritor hamburguense venceu várias adversidades para chegar aonde chegou. Quantas vezes nós reclamamos por coisas fúteis? Darwin é exemplo de força, otimismo, persistência, superação, fé e, principalmente, de amor à própria vida.
Fui privilegiado pelo Darwin e ganhei o livro dele com direito a dedicatória. Não tinha melhor forma de terminar a entrevista com uma pessoa que é tão inspiradora a todos. Darwin é o exemplo vivo de que a força de um ser humano não se mede pelo corpo que ocupa, mas pela capacidade de transformar dor em ensinamento, preconceito em resistência e limitações em realizações. Cada obstáculo que superou — desde as ruas de Novo Hamburgo até os cargos de prestígio que ocupou — é uma prova do poder de acreditar em si mesmo, quando o mundo parece querer convencê-lo do contrário.
Através de seu livro, ele não apenas compartilha sua história, mas empresta a outros uma nova forma de ver a vida, uma esperança concreta de que, por mais desafiadora que seja a jornada, é possível construir um caminho significativo. Ao receber sua dedicatória pessoalmente, senti que a entrevista não apenas me apresentou um homem notável, mas me concedeu um profundo exemplo de coragem e perseverança. n
ACOLHIDA BRASILEIRA
BRASILEIRA
FAMÍLIA VENEZUELANA NARRA SAGA PARA DEIXAR O PAÍS EM CRISE E RECOMEÇAR A VIDA NO INTERIOR DO RIO GRANDE DO SUL
TEXTO E FOTO DE VÍTOR WESTHAUSER
Há quatro anos, Abimeleth Espinosa, de 47 anos, tomou a decisão, ao lado da família, de deixar a Venezuela e se mudar para o Brasil. A história começa em uma cidade no centro da Venezuela, chamada Turmero, com pouco mais de 220 mil habitantes – para onde ele, nascido na capital, Caracas, se mudara ainda criança.
Na Venezuela, era professor, formado, de música e idiomas, e tinha duas empresas: uma de manutenção geral, em sociedade com amigos, e outra de eventos. Apesar da vida muito estruturada no país natal, as crises políticas, econômicas e sociais começaram a motivar o debate na família, com mulher e três filhos. “É uma crise social, que eu considero o maior problema que existe”, lembra, afirmando que existe corrupção das esferas mais altas até as mais baixas da sociedade venezuelana. “Nas favelas, como temos aqui, ou em lugares urbanísticos, cidades grandes, tu vai ter a mesma corrupção. Em distinto grau, mas a mesma corrupção”, acrescenta.
Para exemplificar, Espinosa recorda de situações que aconteciam envolvendo os carros dos venezuelanos. Quando o cidadão tinha o veículo roubado, ligava para a polícia. “E a polícia funciona. Ela tem um sistema, prendem a pessoa, mas cobram um dinheiro para devolver teu veículo”, conta. Nessa situação, ele diz que era mais econômico combinar com o ladrão do que com as forças de segurança.
Mas a escolha de mudar de país passou muito pelos problemas econômicos que a Venezuela enfrenta. Espinosa explica que o salário que ganhava já não era o suficiente para viver no país. “Tu recebia em bolívar, porém, quando tu ia comprar alguma coisa, os comércios cobravam em dólar.” Essa situação acabava tornando o acesso à comida muito difícil. Não existia falta de emprego, mas o salário não chegava para as necessidades diárias ou para demandas eventuais, como ter que arrumar o carro.
Justamente por causa da crise econômica, que estava se aprofundando, a família começou a conversar sobre a possibilidade de deixar o país. Primeiro, falaram com um grupo de amigos que
viviam nos Estados Unidos. Eles conseguiram contato com duas empresas que dariam o emprego e o visto para Espinosa e sua esposa, mas só poderiam levar o filho mais novo – os dois mais velhos teriam de ficar na Venezuela. A situação não agradou a família, que decidiu: “Ou vamos todos, ou não vamos”.
Posteriormente, ele recebeu proposta de duas orquestras da Espanha, onde o irmão mora. As empresas iriam pagar todos os gastos, mas somente Espinosa poderia viajar, a família teria de permanecer na Venezuela.
Após essas duas tentativas que fracassaram, um dia Espinosa estava conversando com alguns amigos e um deles sugeriu: “Por que você não vai para o Brasil?”. Em um primeiro momento, pensou que a ideia do amigo era louca, mas ficou com aquilo na cabeça, principalmente na caminhada de volta para casa, que durava uns 40 minutos.
Ao chegar, encontrou a esposa na cozinha e resolveu falar da ideia de irem para o Brasil. Ela imediatamente respondeu: “Essa ideia está na minha mente a manhã toda”. A família é cristã, membros da Igreja de Jesus Cristo Santos dos Últimos Dias, e tem o costume de rezar e jejuar em momentos em que tem de fazer
escolhas importantes. E foi isso o que fizeram. A grande questão a ser resolvida era ter o dinheiro para fazer a viagem. Vender as coisas que a família possuía não era uma solução, principalmente porque todo dinheiro que conseguiam utilizavam para comprar comida. Além disso, de início, Espinosa achou que não conhecia ninguém no Brasil, até que lembrou de um amigo com quem havia tocado música e que tinha se mudado para cá. Foi providencial. O amigo falou com um bispo da igreja, que conseguiu com algumas pessoas recursos para alugar uma casa para Espinosa e sua família no Brasil. Ainda faltava, porém, o dinheiro para a viagem. Espinosa recebeu então a ligação de um cliente que gostaria de fazer uma grande festa de final de ano, entre os dias 31 de dezembro e 7 de janeiro de 2020. Ele calculou quanto custariam as passagens para ir ao Brasil e cobrou somente este valor para fazer a festa, “para evitar que outras empresas entrassem na concorrência”.
A longa viagem
Devido às crises sociais e econômicas, a família teve que pensar até mesmo como seria guardado o
dinheiro e como seria a saída da casa onde moravam. Haveria uma família grande saindo com muitas malas, ou seja, passaria a imagem de que tinha recursos. A solução encontrada foi buscar a ajuda de um amigo: colocaram os instrumentos no carro dele, parecendo que estavam indo fazer uma apresentação musical.
Além disso, a quantia que conseguiram para fazer o trajeto até o Brasil foi dividida entre todos os membros da família. Assim, caso alguém “perdesse” o dinheiro, os outros teriam guardado uma parte. Uma mala e uma mochila foi tudo o que cada integrante da família pôde trazer.
A viagem foi tranquila, apesar de o ônibus ser parado diversas vezes pela polícia venezuelana ao longo do trajeto, revistando o que os passageiros carregavam. Após mais de 30 horas, chegaram à fronteira e ficaram um dia em Pacaraima, pois necessitavam aguardar os documentos para entrar oficialmente no país.
Foi após o desembarque que Espinosa ficou apreensivo com as forças de segurança do Brasil, tanto pela experiência na Venezuela quanto por não saber falar português. Após Pacaraima, a família foi em direção a Boa Vista. O ônibus em que viajavam foi parado em um posto da Polícia Federal. Os
n Venezuelano também exerce atividade de músico, na qual tem formação
policiais solicitaram que Espinosa abrisse as malas. Ao verem os instrumentos, perguntaram: “Você é músico?”. Ele respondeu que sim, e que a esposa era cantora. Os policiais, então, chamaram mais colegas. Eram da banda da polícia. Ajudaram a refazer as malas e lhes desejaram: “Bem-vindos ao Brasil”.
Em seguida, passaram três semanas em Manaus, até conseguirem embarcar, de avião, para o Rio Grande do Sul. Ao chegar a Porto Alegre, Espinosa viu uma cidade grande que, ao mesmo tempo em que era desenvolvida, tinha pobreza e pessoas morando na rua. Algo que ele não queria, pois era uma situação semelhante à que via na Venezuela. E, ao trocar os dólares que restaram, na casa de câmbio, recebeu a orientação de guardar bem o dinheiro e tomar cuidado. Nesse momento ele percebeu que Montenegro, município sobre o qual já havia pesquisado na Venezuela e tinha recebido boas referências, seria uma melhor opção do que a Capital. Além disso, Montenegro tem várias empresas, o que ele via como uma boa oportunidade de encontrar emprego no país.
A vida no novo país
Um dia, já morando em Montenegro, um caminhão parou na frente da casa dos
Espinosa. Bateram na porta, perguntaram o sobrenome da família, abriram o baú do caminhão e começaram a descarregar comida. “Segura aí um minuto!”, interrompeu Espinosa, preocupado que fosse alguma encomenda errada. Mas logo o entregador informou: um supermercado da cidade havia ficado sabendo da chegada da família e enviava os alimentos para ajudá-los a recomeçar a vida.
Um desafio foi encontrar trabalho. Espinosa já havia enviado currículo para diversas empresas, mas não tinha sido chamado, e já estava no Brasil há seis meses. Até que alguém lhe deu uma dica: o motivo de ele ainda não ter emprego estava no currículo. Surpreso, ele quis saber qual o problema, e a resposta foi: “Teu currículo é bom demais”. Então, o venezuelano ajustou o currículo e, duas semanas depois, um frigorífico o chamou para trabalhar. Por volta de dois ou três meses depois, arrumou outro emprego, no Le Monde Bistrô. A dona o convidou para ser atendente e, posteriormente, quando a dona comprou um piano e perguntou
Tu recebia em bolívar, porém, quando tu ia comprar alguma coisa, os comércios cobravam em dólar”
a ele se conhecia alguém que sabia tocar, tornou-se também o músico da casa. Pouco tempo depois, Espinosa foi até a JBS para ajudar um grupo de venezuelanos que haviam sido contratados pela empresa, onde ficou conhecendo os gerentes. Não demorou para irem até o bistrô com um convite para trabalhar no grupo. Ofereceram um bom salário e carteira assinada. Espinosa viu uma ótima oportunidade para conseguir adquirir suas coisas e foi para a JBS. Ao longo do período em que trabalhou no bistrô, ele conheceu diversas pessoas, inclusive gerentes de banco que o ajudaram a entender como poderia financiar uma casa e, depois, um carro. Abriu também uma empresa para suas atividades com a música, que está crescendo e tem ajuda de lojas especializadas locais.
A crise na Venezuela
n Espinosa mantinha o hobby de andar de bicicleta na Venezuela
O país está em uma grave crise política, social e econômica desde 2013, principalmente pela queda no preço do petróleo entre 2014 e 2015, um dos principais produtos exportados pela Venezuela. Os Estados Unidos, durante a gestão de Donald Trump, impuseram diversas sanções contra o país sul-americano em resposta ao regime de Nicolás Maduro. Situação que agravou ainda mais a dificuldade econômica. Além disso, o governo aumentou os ministros na Suprema Corte, perseguiu veículos de comunicação e mudou a Constituição, permitindo a reeleição consecutiva e sem limites. As Forças Armadas também passaram a ser parte de sustentação do governo.
Em 2024, a crise política ganhou destaque novamente. O atual presidente, Nicolás Maduro, declarou-se vencedor das eleições, conseguindo renovar o mandato, mas o pleito foi marcado por denúncias de fraude e perseguição a adversários políticos. A nova crise política gerou tensões inclusive com o Brasil, que exigiu as atas das eleições para reconhecer a legitimidade da vitória de Maduro, mas o governo venezuelano não as apresentou.
No final de outubro, a polícia da Venezuela fez, em uma rede social, publicação de uma imagem com a bandeira do Brasil e a silhueta do presidente Lula, com o texto “Quem mexe com a Venezuela se dá mal”. O post foi visto como uma ameaça ao Brasil e recebeu críticas por parte do Itamaraty. Dias depois, a imagem foi apagada. n
PEDAGOGIA DA RIMA
NAS SALAS DE AULA E EM PROJETOS SOCIAIS, O RAP SE TRANSFORMA EM FERRAMENTA DE EDUCAÇÃO E CONSCIENTIZAÇÃO
TEXTO E FOTOS
AMANDA WOLFF
No coração de Novo Hamburgo, no bairro Canudos, entre ruas de casas geminadas e crianças brincando em praças arborizadas, há uma escola pública chamada Martha Wartenberg, de frente para um comércio local onde as crianças do ensino fundamental vêm experimentando algo diferente: o aprendizado pela rima. Ali, a professora Júlia Maysa Dorneles Ramos, de 25 anos, encontrou no rap uma forma de captar a atenção de crianças que, aos poucos, começaram a sentir o prazer de estudar de uma nova maneira.
Desde 2020, quando começou a trabalhar como estagiária em São Leopoldo, Júlia percebeu que a arte tinha um potencial inexplorado para se comunicar com os alunos e encurtar distâncias na sala de aula. Com sua experiência no Projeto MOVE, um programa comunitário de ensino fundamental, ela não só ensina português, matemática e sustentabilidade, como também trabalha com judô, banda marcial e atividades ambientais, propondo um aprendizado variado, dinâmico e com foco na realidade dos estudantes. Com o tempo, a professora passou a explorar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e viu que, no campo de português, a habilidade de construir rimas era não só
permitida, mas incentivada. Assim, surgiu a proposta inovadora de fazer do rap uma ferramenta de ensino. “A construção de rimas é uma habilidade presente na BNCC e uma maneira dinâmica de engajar os estudantes”, explica. Ela se inspirou em suas vivências e no contato com batalhas de rap, estilo que a conecta com os jovens e permite que eles se sintam parte da aula.
As sextas-feiras na escola são dias especiais. Desde a manhã, é possível sentir um burburinho diferente. Os alunos sabem que a professora Júlia trará o “Dia da Batalha” e que ali terão a chance de mostrar o que aprenderam em versos e rimas. O que começou como uma ideia de integrar o conteúdo da aula a versos rimados evoluiu para desafios que os próprios alunos lançam a seus colegas, versando sobre temas que vão do meio ambiente ao respeito às diferenças. Inspirada em Emicida, a professora incentivou que cada aluno escolhesse um nome artístico para se apresentar na batalha – algo que trouxe ainda mais entusiasmo e deu a cada um deles uma identidade no palco.
“Eles se sentem artistas, como em um show de verdade”, explica Júlia, sorrindo enquanto lembra das primeiras batalhas. “E é lindo ver como um estilo musical que já sofreu tanto preconceito agora pode ganhar esse lugar na escola.”
Impacto de Insano no hip hop
gaúcho
Enquanto caminhava pelos corredores da escola, durante a minha visita, na primeira sexta-feira do mês de novembro, um dia ensolarado e extremamente quente, foi possível descobrir um novo professor que se importa muito com atividades onde a rima se transforma em aprendizado. Júlia segue com o trabalho, mas agora existe, a cada segunda e sexta, uma aula mais do que especial para os alunos mais velhos. Assim comecei a descobrir a trajetória do professor Enio Melo da Silveira, de 25 anos. Ou melhor: foi assim que eu conheci o Insano.
Diziam que ele é o mestre das rimas, um professor de improviso, alguém que eleva a palavra a um nível revolucionário. Em estradas escuras ou escolas públicas, onde falta amparo e perspectiva, o hip hop é sua forma de arte e sua resistência. Entre versos e batidas, Insano planta sementes de consciência e luta para que jovens encontrem sua voz no meio de um sistema que, tantas vezes, os ignora. Ele apenas se considera alguém que pode fazer mudança no mundo em que vivemos, e vê em si inúmeras profissões, dentre elas designer gráfico, MC, poeta, arte-educador e produtor cultural.
O encontro para nossa conversa foi em uma sala modesta, onde o peso da história parecia suspenso nas paredes. Quando ele começou a falar, sua voz parecia seguir o ritmo da batida que sua própria jornada inspirava. “Olha, o hip hop é muito mais do que só a música. São cinco elementos que se complementam e cada um tem sua importância na construção dessa cultura”, explica Insano. “Primeiro, tem o MC, que é a voz, a rima, aquele que manda a mensagem e representa a palavra em ação. Depois, o DJ, que é quem cria o som, a batida, é o ritmo que une tudo. Tem também o Break, a dança de rua que expressa o corpo, a resistência e a liberdade no movimento. Outro elemento fundamental é o Graffiti, que é a arte visual, a maneira de deixar nossa marca na cidade, de contar histórias através das cores e desenhos nos muros. E, por último, mas não menos importante, tem o Conhecimento, que é o pilar central e o que amarra todos os outros. É o conhecimento que faz a gente entender de onde veio o hip
hop, a história, as lutas, e nos lembra da responsabilidade de manter essa cultura viva e revolucionária.”
Entre as muitas lembranças que ele guarda, algumas são como brasas vivas, que ardem com a intensidade das lutas travadas. Insano conta sobre o Molotov Verbal , um evento que organizou ao lado do amigo e parceiro de rimas MC Drosa. Ali, eles buscaram criar um espaço onde a palavra fosse uma arma de revolução. Não apenas um evento de rima ou música, mas um espaço de diálogo e resistência, onde o hip hop serve de alicerce para algo maior, como ele mesmo descreve: “A gente queria revolucionar. A palavra era um ato de resistência em si. E sim, foi revolucionário, principalmente porque desafiou a forma como a sociedade vê a arte e a resistência nas ruas”. No evento, o graffiti e a música se entrelaçaram em um muro de 245 metros, uma verdadeira obra de expressão comunitária que impactou profundamente sua trajetória. “É o tipo de coisa que marca a vida toda”, reflete. Ali, ele encontrou uma forma de eternizar sua luta, um pedaço de sua alma no concreto da cidade. Esses eventos não apenas criam oportunidades para a expressão, mas solidificam uma rede de apoio e de identidade para quem vive a cultura hip hop no Sul. Os encontros e desencontros, segundo ele, formam as raízes de um movimento que transforma as pessoas. Cada show, cada conversa com amigos ou com a família, cada apresentação, marca uma etapa de sua vida. Essas experiências são as que nutrem a cultura hip hop e formam sua essência revolucionária.
O sonho que se tornou realidade
A trajetória de Insano no hip hop começou cedo, movida pelo desejo de expressão e pelos incômodos em viver dentro de uma sociedade cheia de restrições e preconceitos. Por volta dos 19 anos, ele sentiu uma necessidade urgente de se conectar com as ruas, de transformar seu cotidiano e o que amava em algo significativo. Começou a participar de projetos sociais, buscando levar poesia e hip hop para lugares onde a arte pudesse chegar. Desde então, Insano tem atuado em diversas iniciativas, como o Slam Educa, em que leva a poesia para as escolas, não apenas
n A professora Júlia, em sua sala de aula, transforma o aprendizado em rima, aproximando os alunos do conhecimento de forma criativa e dinâmica
como uma forma de expressão artística, mas como um espaço de autoconhecimento e saúde mental.
Ele acredita que quando alguém vê a palavra, quando encontra um reflexo de sua própria vida e suas dores, consegue resistir melhor às pressões do mundo. “A resistência vem de a gente querer se entender mais”, diz ele, “de tentar amenizar esse sofrimento que o mundo nos exige”.
Em uma sociedade em que a rotina e as responsabilidades adultas muitas vezes abafam a criatividade e a expressão, Insano vê na arte uma forma de resgate e libertação. Cada “escritório” (como ele chama suas visitas) em uma escola, um hospital ou centro psiquiátrico é uma oportunidade de relembrar às pessoas que a humanidade não é feita para ser máquina. Em uma atividade com idosos, surpreendeu-se ao ver a animação de alguém redescobrindo o prazer de escrever e criar. Esse tipo de “escritório” revela uma transformação de vida, tanto para os jovens quanto para os mais velhos. É um retorno a um estado mais puro, onde a arte ainda é novidade e chama à criação. E, embora haja desafios, principalmente financeiros, sua paixão é inabalável. “Às vezes vamos de graça, porque se a gente não vai, quem vai?”, conta.
As palavras de Insano refletem uma dedicação inabalável. Para ele, o verdadeiro objetivo é formar e tocar vidas por meio da arte. Ele acredita que a prática da rima, do hip hop, não apenas resgata sonhos adormecidos, mas ajuda cada um a se encontrar de uma maneira nova. “A gente vai se esforçar para sobreviver na Babilônia”, diz ele, expressando as dificuldades financeiras que desafiam constantemente quem se dedica às causas
sociais e culturais. Muitos dos projetos são feitos de forma voluntária, por amor à arte e ao impacto social que ela proporciona.
Escola gaúcha
O Rio Grande do Sul possui uma rica tradição no hip hop. Esse estilo tem uma identidade única no estado, uma voz que se destaca mesmo no meio da diversidade cultural do Brasil. Insano aponta que a originalidade é uma marca do movimento gaúcho. No sul, o hip hop não apenas sobreviveu, mas vibra em cada palavra, em cada batida. Desde a criação do primeiro museu de hip hop da América Latina até a presença de poetas icônicos como Mika Atena e Nega Maria, o Rio Grande celebra o hip hop com uma consequência que reflete as lutas e as vitórias locais. Essa originalidade é fruto de uma conexão profunda com as raízes e com a realidade local, sem pretender imitar ou competir com movimentos de outras regiões. Para Insano, cada estado brasileiro tem sua história e suas figuras emblemáticas no hip hop. A beleza está justamente na capacidade do movimento de reflexão e resposta à realidade particular de cada lugar.
Para Insano, o hip hop não busca reconhecimento em espaços elitizados, mas sim respeito e visibilidade nas ruas. Ele observa o paradoxo do movimento: enquanto a periferia o acolhe como uma expressão revolucionária, setores conservadores o marginalizam. Essa resistência, segundo Insano, reflete o mesmo preconceito que afeta outras manifestações culturais periféricas, visto que o conservadorismo no Brasil, impulsionado por uma elite que deseja manter seus privilégios, ignora e criminaliza a cultura de rua.
Além das dificuldades financeiras, ser artista de hip hop no Rio Grande do Sul significa enfrentar repressão constante. Insano descreve a presença policial em eventos de hip hop, que mais reprime do que protege. “Qual a justificativa de parar um evento só porque estamos cantando com um microfone na mão?”, ele questiona. Frequentemente, batalhas de rap são interrompidas sem motivo aparente, um obstáculo claro ao reconhecimento da cultura hip hop e uma manifestação da desconfiança e opressão que o movimento enfrenta.
Para Insano, a rima é mais do que palavras, é uma forma de educação e transformação de vida. A importância de projetos sociais como o Slam Educa e os seus “escritórios” em hospitais psiquiátricos vai além do simples incentivo à criatividade. Essas iniciativas mostram aos jovens, especialmente nas periferias, que a arte pode ser um canal de expressão, de cura e de fortalecimento. Os relatos de Insano revelam que muitos desses jovens passam a ver o mundo de outra forma, desenvolvendo a capacidade de resistir e de se reinventar. Essa é, para ele, a maior herança do hip hop: a transformação pessoal e coletiva que se reflete em toda uma comunidade. Ele explica que, através da arte, os jovens percebem que o mundo pode ser diferente, que eles têm direito a sonhar e lutar por algo maior. Insano fala da importância de cultivar a criatividade, de resgatar a “infância artística” que muitos adultos abandonam. Com sua vivência e experiência, ele vê a resposta dos jovens ao hip hop como algo muito positivo. “Nas minhas aulas, palestras e oficinas, o que mais me anima é ver o envolvimento e a alegria dos jovens.
A resistência vem de a gente querer se entender mais, de amenizar esse sofrimento que o mundo nos exige”
Para eles, aprender pode e deve ser divertido, mas sem perder a consciência”, diz, enfatizando o poder do diálogo e da troca como caminhos para o respeito. Em seu trabalho, busca criar um ambiente acolhedor e amigável, mas com limites claros. “Eu não quero ser um carrasco, mas quero que respeitem o espaço, e é assim que o trabalho flui.” Isso é o que cria um ambiente colaborativo e seguro, onde os jovens confiam nele e se veem representados. Para Insano, os efeitos dessa abordagem são visíveis: as oficinas acontecem em conjunto, incentivando a união e quebrando as barreiras entre eles. “Eles saem mais felizes, se expressam mais, brincam com as rimas e constroem juntos um espaço de afeto e respeito mútuo.”
Quando reflete sobre a importância do hip hop para além das periferias, Insano expressa o desejo de que aqueles de fora do movimento compreendam a profundidade e o poder transformador dessa cultura. “Queria que todos entendessem a vontade de se aproximar e saber mais sobre o hip hop. Não tenho todas as respostas, mas sei que ele tem um papel único.” Em suas raízes no teatro e nas batalhas de rima, Insano descobriu o potencial da cultura hip hop para dar voz à periferia e inspirar uma juventude a enxergar novos caminhos e acreditar em si mesma. “O hip hop não só cria autoestima, mas também ajuda a manter a fé em seu próprio valor. É uma construção diária que, com tempo e atitudes, faz a pessoa se ver e se aceitar.” Para ele, a magia do hip hop está em unir aprendizado e afeto, respeitando a individualidade dos jovens, fortalecendo sua identidade e trazendo um senso de pertencimento. n
n Insano vê no hip hop um canal de expressão que fortalece a autoestima e cria espaços de afeto e respeito entre os jovens
MORAR, ESTUDAR, RESISTIR
NASCIDA EM 1969 E PROTAGONISTA DE LUTAS HISTÓRICAS, A CASA DO ESTUDANTE UNIVERSITÁRIO LEOPOLDENSE SE
MANTÉM, COM APOIO DA COMUNIDADE
TEXTO E FOTOS LUCAS KOMINKIEWICZ
Acasa colorida na esquina da Primeiro de Março com a Lindolfo Collor, no Centro de São Leopoldo, carrega um profundo significado ainda pouco conhecido. A Casa do Estudante Universitário Leopoldense, a Ceul, criada poucos meses após a Unisinos, representa há mais de 50 anos o direito à moradia para muitos estudantes de baixa renda. Com paredes inteiramente grafitadas, ocupa boa parte da quadra. Tem capacidade para 16 moradores, mas atualmente abriga sete pessoas.
Lucas, um dos moradores, explica que, entre 2014 e 2016, a concessão de uso do imóvel não pôde ser renovada, pois a gestão da Casa não conseguiu regularizar suas contas. O CNPJ foi suspenso devido às dívidas, caracterizando a ação dos moradores, desde então, como ocupação.
Desde a sua fundação, em 1969, a Ceul vem encarando
muitas adversidades que culminaram em mais de uma mudança de endereço. Primeiramente, despejados do prédio pertencente ao Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, os estudantes ocuparam o “castelinho”, parte da atual Câmara Municipal de Vereadores. Após seis anos de resistência, eles foram, também, forçados a abandoná-lo. Ele tinha capacidade para 60 moradores.
A prefeitura chegou a ceder-lhes um terreno na década de 1980, entretanto, era numa parte descentralizada, longe de pontos de ônibus, do acesso à linha do trem que ainda estava em construção e da nova Unisinos. “Era muito distante, e não veio nenhum outro subsídio também para se construir uma casa. O terreno ficou abandonado por não se mostrar viável para atender as necessidades dos estudantes”, conta Lucas.
À época, alguns deles já haviam se mudado para o imóvel na Rua Primeiro de Março, 729, no Centro, onde a instituição
criaria raízes. Anos mais tarde, em 2005, a Casa foi autuada pelo Departamento Autônomo de Estradas e Rodagem (Daer), que havia cedido o prédio, com um pedido de desocupação. Através de uma mobilização junto à sociedade civil organizada e movimentos sociais, a Ceul resistiu. O prédio, a princípio, provisório, abrigaria a entidade pelas próximas décadas. Há alguns anos foi feito um resgate da documentação da Casa, de sua história. “Se hoje temos essa papelada pra provar que estamos aqui desde o fim do século passado, é por conta do movimento desses estudantes”, reforça Lucas. Alguns papéis amarelados pelo tempo mostram um diálogo entre o Daer e a Secretaria dos Transportes do Rio Grande do Sul, tratando da cedência do espaço para a Casa do Estudante.
Sendo autônoma, a Casa obtém recursos exclusivamente do aluguel. Mas, vez ou outra, os moradores promovem arrecadações. Os R$ 1,8 mil, que conseguiram recentemente, poderiam ser utilizados para a regularização do CNPJ, mas acabaram servindo a outra necessidade. “A vaquinha teve seu sucesso no sentido de responder à emergência em que a Ceul estava, seu muro externo havia sido interditado pela Defesa Civil por risco de queda”, diz Lucas, mostrando a área hoje coberta por um tapume.
Os ex-moradores se engajaram na mobilização. Graças, também, à participação da comunidade, que reconhece a Casa como um espaço de fomento à educação, que traz renda para a cidade com mão de obra profissionalizada, derrubaram a parte comprometida do muro. Instalaram o tapume ecológico, de obra, garantindo proteção e privacidade. “A população tem um papel muito importante na preservação e continuidade desse espaço, e ela se mostrou muito acolhedora diante dessa emergência que a gente teve.” Os vendedores ambulantes que fazem uso da calçada também são solidários. Quando as autoridades notificaram os moradores da Ceul,
foram os vendedores que alertaram, “Ó, veio o rapaz da prefeitura, falou do muro, pediu para avisar”. Um muro definitivo, de alvenaria, e instalações mais modernas para o melhor aproveitamento do pátio, que é arborizado, estão nos planos, além de uma entrada oficial e uma saída de emergência, atendendo às exigências dos Bombeiros e da Defesa Civil.
A população tem um papel muito importante na preservação e continuidade desse espaço”
Na primeira visita à Ceul, caía uma chuva leve. Lucas e Raique aguardavam na porta da frente, na Primeiro de Março. Eu estava na Lindolfo Collor, junto ao muro, ao lado do portão de garagem que dá acesso ao pátio. Com eles, na
entrada do imóvel de pé direito alto, estava também Fiona, a cadela que Lucas adotou e se tornou mascote da Casa. Fiona adorou posar para as fotos. Subimos um degrau na entrada, após as grandes portas duplas, com janelas gradeadas, passamos por um portão interno que fecha o corredor principal. As aberturas no corredor são típicas de construções antigas, espessas e arqueadas como as de um túnel.
Na sala de estar, nos colocamos em uma roda de conversa. Em meio aos sons de motores dos veículos e buzinas, comuns a qualquer centro urbano, fomos batendo um papo. Estudante mineira, de Araçuaí, Raique Ramos Rocha, 31 anos, foi a primeira a falar. Com sotaque marcante, falava calmamente,
n Empolgado, o brasiliense Lucas Henrique Carvalho da Silva me recebe na Casa do Estudante e mostra o seu quarto
baixo. Pedi que falasse um pouco mais alto.
n Raique Ramos Rocha sonha em dar aulas e ressalta a conexão da Ceul com a educação
Graduanda em Pedagogia, na Anhanguera, e Teatro, na Uergs, ela conta que esteve na Casa de 2014 a 2018 e retornou em 2022. Raique chegou ali por acaso, pois não conhecia ninguém na cidade.
Já o brasiliense Lucas Henrique Carvalho da Silva, 32, é estudante de Administração na Uniasselvi e morador da Casa desde julho de 2021, tendo conhecido a instituição alguns anos antes, através de amigos. Quando tomou a decisão de sair de sua terra, a Casa do Estudante se mostrou uma alternativa viável diante dos altos valores de aluguel. Para ele, a Casa tem um papel fundamental na sua mudança para o Rio Grande do Sul, na estabilidade que conquistou em São Leopoldo e na continuação de seus estudos.
Na Casa desde março de 2023, Daniel Hakany Costa Dias, 24, não binário, é natural do município gaúcho de Garibaldi e estudante de Artes Visuais na UFRGS. Mudou-se durante um processo de reestruturação da Ceul. Considerando o aluguel bem abaixo da média para se morar no Centro, aproveitou a oportunidade. Conseguiu realizar o Enem e entrar na universidade federal. Hakany conta que foi conhecendo a Casa através de amigos que moravam ali. “De vez em quando eles me chamavam pra dar uns rolês aqui, algumas confraternizações, e foi por conta disso que eu fui chamado também.”
O último a se manifestar foi Akira, 25 anos, o rapaz de cabelos compridos, usando gorro, que estava de pé no canto da sala. Teilor da Silva Correa (seu nome de batismo) veio de Novo Hamburgo e entrou na Ceul na mesma época que Hakany. A Casa ele conheceu através de Lucas. Com maior estabilidade, Akira pôde voltar às artes das quais tinha se distanciado há algum tempo. “Foi uma oportunidade para eu voltar a fotografar, desenhar, serviu bastante como um espaço cultural.”
Ainda na sala, Raique no sofá, Hakany e Lucas, sentados em cadeiras, um de cada lado – Akira nesse momento tinha se retirado
– seguem conversando. Raique conta que, além das tentativas de despejo, já houve interesse na compra do imóvel. “É uma luta histórica, até chegarmos em 2023, quando a gente faz uma nova reocupação pra manter isso aqui e ter um local digno para as pessoas viverem.” O esvaziamento da Casa foi precipitado pela pandemia de
n Daniel Hakany Costa Dias reforça que a Ceul lhe abriu as portas para a universidade
Covid-19. Ocorria uma falta de gestão por parte do pessoal que foi ficando. Critérios históricos da instituição estavam sendo ignorados. Começou-se a colocar exigências de comprovação de renda mínima e carteira de trabalho assinada. Tais condições inviabilizavam que pessoas de fora do estado viessem, devido à distância, pois não tinham como conquistar um emprego na região sem um endereço fixo. Junto a outros estudantes e jovens de movimentos políticos e culturais, houve uma reocupação simbólica. “Um resgate aos princípios da Casa, um
novo regimento interno. A ocupação foi uma ferramenta, mas não porque o espaço estava abandonado, foi uma reformulação de gestão”, explica Lucas, que, afastado da Ceul, se reaproximou, motivado pela história de lutas da entidade. Hoje já finalizaram o novo estatuto, abarcando pontos fundamentais.
n Akira conta que a Ceul lhe reconectou com as artes, por ser também um importante ponto cultural
Divididos em grupos de trabalho, eles cuidam da limpeza, da comunicação, do acolhimento e infraestrutura. Quando um novo morador chega, ele vai, de acordo com suas habilidades e seu tempo disponível, se encaixar em um grupo. Para as questões burocráticas há o conselho administrador. Camila é a presidenta, Raique a tesoureira e Lucas o secretário.
Lucas é do GT de infraestrutura. “Pequenas manutenções, né, porque eu não sou pedreiro, nem engenheiro. Pequenas gambiarras, o que dá pra fazer com silver tape … brincadeira!” Caímos na gargalhada quando perguntei se ele trocava resistência de chuveiro. “Ele é um marido de aluguel mas não recebe e não é casado”, ironiza Hakany. Raique cuida das finanças, das contas de luz, água e internet. A comida e os produtos de limpeza, eles conseguem por meio de doações de cestas básicas de instituições de caridade ou qualquer pessoa que queira colaborar. “Aí a gente coletiviza também, todo mundo tem acesso ao seu arroz, feijão…”, afirma.
Hakany, a jovem de cabelos pretos compridos rajados por mechas loiras, foi a primeira a mostrar seu quarto, de número 7, que fica ao final de um pequeno corredor logo após a sala
de estar. As altas paredes vermelhas do quarto, que tem até um mezanino, cuja escada serve de estante, são repletas de desenhos. Ela conta que pretende permanecer na Ceul até poder se mudar para a Capital, onde estuda. “Eu trabalho de madrugada numa metalúrgica, então... Meio complicado trabalhar de madrugada, e de manhã ter que ir até Porto Alegre, para voltar pra São Leopoldo de tarde. Ter poucas horas pra dormir, depois ir trabalhar de novo”, revela. Sua relação com o desenho, a criação de fanzines, a música e outros trabalhos, que representam, também, uma renda extra, foi uma ponte para a Ceul. Através da escrita e dos desenhos, Hakany cria personagens e histórias. Muitas vezes, inspirados em pessoas que conhece. “Eu gosto de reconhecer as coisas incríveis que cada um tem. E se eu botar numa história, os leitores também vão se apaixonar por essas características, porque não é só sobre um personagem, é sobre o indivíduo de todas as pessoas.”
No início, Hakany e Akira dividiam o quarto de número 8, nos fundos, depois de um corredor que liga a cozinha ao pátio externo. “O problema era quando vinham visitas, sempre ficava bem cheio”, brinca Akira. Uma câmera semiprofissional da Nikon, posicionada no tripé, um highlight , uma mesa de desenho digital, outra com cavalete, muitos mangás enfileirados numa prateleira e outros empilhados em cima de sua mesa, além das muitas roupas em estilo japonês, penduradas num cabideiro, compõem o acervo de Akira. Quando chegou, ele não tinha cama, apenas um colchão. Ele pintou duas das quatro paredes, buscando sobriedade. “Botei um preto, ficou muito escuro, aí tive que comprar um sol”, diz ele sobre uma enorme lâmpada de led. Os problemas que ainda enfrenta são o mofo e uma rachadura na parede da divisa com o terreno vizinho, que, por ora, cobriu com um pano verde. O nome que escolheu para si, ao contrário do que muitos pensam, não é uma referência ao personagem da moto vermelha do anime japonês, mas sim a nomes
como os do autor de mangás Akira Toriyama, criador de “Dragon Ball Z”; do refinador automotivo e especialista na marca Porsche Akira Nakai; e do cineasta Akira Kurosawa, um dos mais conhecidos do Japão. Ele não chegou a conhecer a mãe, e decidiu se tornar Akira a partir dos 12 anos, quando perdeu o pai, que, vítima de depressão, tirou a própria vida. “Eu me dei a oportunidade de carregar algo que eu mesmo construí durante todo esse tempo”, reforça, revelando que pretende alterar formalmente seu nome, Teilor.
Entre 2012 e 2019, Akira morou com os padrinhos. A relação era conturbada. “Não me aceitavam porque eu deixei o cabelo crescer, eu tinha esse estilão mais underground , puxado ali pro estilo emo, gótico. Meu tio não curtia muito que eu ouvia som tipo Slipknot, tá ligado, gritaria e tal. Era até meio engraçado, que eu fazia para aprontar mesmo.”
Sua chegada na Ceul foi mais um acaso. Lucas e Raique lhe convidaram a conhecê-la depois de um encontro não planejado. “A hora que falaram que era um espaço cultural, achei muito maneiro, porque eu sempre estive inserido na cultura, fotografia, audiovisual, música, desenho, eu sempre estive envolvido na arte”, diz Akira, ressaltando também a importância da
socialização entre os moradores. O estudante trocou a licenciatura que cursava em Artes Visuais na Uniasselvi pela da Feevale. Veio a pandemia, e três ou quatro meses depois, se viu forçado a abandonar o curso de vez, pois o ensino remoto não tinha o mesmo brilho do presencial. Por falta de dinheiro, também interrompeu o curso de Concept Art , que estava quase terminando. No trabalho, se divide entre serviços que faz em home office e a instalação de janelas e portas de PVC e alumínio. Almejando estudar na UFRGS, suas expectativas agora estão voltadas para o Enem. Só não bateu o martelo sobre o curso. “Não sei se eu vou pra Artes, porque no desenho eu sou autodidata, eu tenho um contexto, tenho uma planilha do que eu já tenho que estudar, e eu consigo tocar isso por conta”, diz. Para além da importância da formação, ele lembra que ser estudante é um requisito na Ceul. “Eu tô fazendo o Enem já pra manter a minha vaga aqui.”
Morar na Ceul é importante porque aqui também é uma casa voltada à educação”
área que eu tô dentro de todo jeito.”
n Camila Lemos Teixeira conta que, se não fosse a Casa, não conseguiria morar de aluguel e estudar
Raique aguardava na sala. Fomos até o seu quarto, de número 2, que fica perto da entrada, um dos primeiros, logo depois do degrau que liga a antessala onde está a porta da frente. De uma região pobre no interior de Minas Gerais, a estudante veio para São Leopoldo buscar sua oportunidade de ser alguém e crescer na vida. Também por integrar a comunidade LGBTQIAPN+, viu na Ceul um porto seguro. Com muito interesse pela educação, sonha em dar aulas. “Morar na Ceul é importante porque aqui também é uma casa voltada à educação, então é uma
Naquele cômodo, chamam a atenção as grandes portas internas que, atrás de um guarda-roupas, aparecem parcialmente. Elas dão acesso ao “quartão”, o quarto de número 4. Por ser o maior da casa, ele já foi partilhado entre três ou quatro moradores. Era uma prática comum ter esses acessos nas casas antigamente. A história da Casa é tão diversa que ela tem até seu próprio folclore, com suas lendas. “É um prato cheio”, diz Raique, afirmando que já pensou em sugerir um curta-metragem no cenário, ou um documentário. Voltamos uma última vez à sala de estar. Agora era a vez do quarto de número 5, de Lucas, logo ali, na ponta do corredor, mais próximo à sala. O cômodo estreito tem uma janela que dá para a rua, que ele precisou encostar, por conta do barulho dos carros. Da parede ao lado da cama, ele tirou um quadro, revelando um grande remendo. Sendo originalmente um escritório do Daer, o imóvel foi projetado para atender a essas necessidades. “O quarto que eu tô agora provavelmente era um almoxarifado, algum tipo de depósito, em que tinha uma janela onde poderiam ser feitas as retiradas de materiais”, aventa. Lucas, que antes das restrições de circulação motivadas pela Covid-19 havia retornado a Brasília, decidiu vir novamente para São Leopoldo quando as coisas amenizaram. No entanto, a falta de dinheiro e os aluguéis caros ainda eram um empecilho. Amigos o aconselharam a se mudar para a Ceul, pois ele teria onde morar por um preço acessível enquanto estudava.
Também na expectativa do Enem, Lucas quer tentar uma vaga pelo Sisu ou pelo ProUni. Ele conta que, em dado momento, chegou a desistir de se graduar num curso superior. “Acho que o ponto mais forte que essa Casa tem a contribuir para as pessoas é o suporte para buscarem sonhos novos ou resgatarem os que já haviam sido abandonados.”
Três dias depois da primeira visita à Ceul, conforme o combinado, foi a vez da ocupante do quarto de número 6 contar a sua história. Ela preferiu que ficássemos na sala. Sentada no sofá, começou a falar. Camila Lemos Teixeira, 27, é natural de Gravataí (RS), estudante de Engenharia Ambiental, e está na Casa desde fevereiro de 2022.
Ao final da pandemia as aulas já começavam a retornar à presencialidade. Os transportes, porém, ainda estavam restritos. “Eu não tinha como ficar fazendo esse deslocamento, e aí eu conheci
A Casa conseguiu
formar uma galera muito bacana, que saiu daqui super bem de vida”
o Mariano, que era um antigo morador aqui da Ceul. Ele me apresentou, e eu acabei vindo pra cá pra conseguir me manter na Unisinos.” Em outro lugar, ela não conseguiria bancar os custos do aluguel com a bolsa-auxílio do estágio.
Cami ressalta que aqueles que passaram pela Ceul são bastante gratos. “A Casa conseguiu formar uma galera muito bacana, que saiu daqui super bem de vida, que conseguiu construir toda a sua carreira, tipo, tudo que tem hoje, porque teve a oportunidade de ter uma moradia estudantil de baixo custo, o que possibilita que a gente que é estudante, que ganha pouco, tenha uma vida melhor.”
É o caso de Stéfani Bortolini Gonçalves, 25, formada em Letras Português/Inglês, e Joja da Silva Vaicëulionis, 27, Letras Português/Espanhol. Stéfani hoje é teacher assistant em uma escola internacional.
“A Ceul contribuiu para minha permanência na universidade, além de proporcionar um ambiente de exercício da democracia e da vida em coletividade, fundamentais para meu desenvolvimento como cidadã e profissional da educação”, conta. Joja também é professora e continua os seus estudos na pós-graduação.
Diferentemente de outras casas de estudantes, a Ceul não possui vínculos com instituições de ensino. “A gente sempre prezou por essa autonomia, até para podermos nos articular politicamente na militância da pauta
estudantil de uma forma mais efetiva”, explica Raique. A Ceul tem ainda um histórico de acolhimento de minorias. “Muitas vezes a pessoa tá passando por uma transição, tá passando por uma coisa difícil na família, e precisa de um local pra estudar e pra viver a vida que quiser. Aqui sempre teve essa característica de ser um local até para a gente lutar nessas pautas”, diz Raique. “É um front pelas minorias?”, pergunto. “Sim, é. Eu sou minoria, né? Aqui todo mundo quase é.”
Atualmente há um GT de eventos, cujos principais integrantes
não são moradores, mas sim amigos. A ideia é a Casa dar o retorno para a sociedade leopoldense como um ponto cultural para as pessoas se divertirem e o conhecerem. “Porque nunca se sabe quando se vai precisar da Ceul, ou um conhecido, um amigo ou familiar”, pontua Lucas. A Casa é aberta a pessoas de todas as idades. “Sendo estudantes, a Ceul está disposta a acolher”, complementa Hakany. Os eventos se tornam uma forma de estágio para que os moradores possam exibir o seu trabalho, recebendo apoio da população e institucional. A Casa contempla a moradia segura, o acesso à educação, à cultura e a uma alimentação básica. “A cultura tem o seu aspecto de entretenimento, mas também de formação de caráter, de constituição de cidadania, e a Ceul abraçou isso como papel dela também”, conclui Lucas. n
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