Enfoque Porto Alegre - Bairro Farrapos - 5

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ENFOQUE

BAIRRO FARRAPOS

PORTO ALEGRE 5

UMA COMUNIDADE EM RECONSTRUÇÃO

Semeando a esperança, famílias pintam mural durante encontro na sede da Fundação Fé e Alegria, no bairro Farrapos

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Nosso destaque para a Paróquia Santíssima Trindade, símbolo de apoio à comunidade local, durante e após a grande enchente. Leia entrevista com Pe. Vicente

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Após 4 meses da enchente, Grêmio volta à Arena com estádio parcialmente aberto, reaquecendo o comércio local e trazendo esperança para aos moradores

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EDIÇÃO DIGITAL
Páginas 12 e 13

Pe. Vicente em frente à paróquia: com três metros de altura, a edificação salvou a vida de muitas pessoas e animais durante a enchente de maio

Recomeçando com fé e muita alegria

Estudantes de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre, na disciplina de Jornalismo Comunitário, visitaram o bairro Farrapos, mais especificamente a Fundação Fé e Alegria e arredores da Arena do Grêmio, para realizar as matérias que seguem neste Enfoque . O ponto principal das pautas girou em torno do processo de reconstrução da comunidade local e do lar dos gremistas neste momento ainda considerado como pós-enchente.

O Enfoque Porto Alegre - Bairro Farrapos é um jornallaboratório dirigido ao bairro com o mesmo nome localizado na Capital gaúcha. A publicação tem tiragem de 1 mil exemplares, que são distribuídos gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do curso de Jornalismo da Unisinos (campus de Porto Alegre).

enfoqueportoalegre@gmail.com

Enquanto cada repórter e fotógrafo/a/e esteve nas ruas, foi praticamente impossível não se emocionar com os relatos e, principalmente, com a alegria das crianças que se reencontravam no evento de boas-vindas às famílias promovido pela instituição. Lá, as fotos da destruição nas portas e as marcas de barro nas janelas em uma sala de aula demonstram que, apesar de sofrer com a enchente histórica em maio, a união da comunidade permitiu a retomada da Fundação.

Ao escrever essas linhas, penso em como você, que lê este jornal, está perto de nós, estudantes-repórteres. Lamentamos as perdas e a destruição, ao mesmo tempo em que celebramos a retomada das atividades socioeducativas, do esporte e da rotina de nossos leitores. Esperamos poder contar, em nossa próxima edição do Enfoque, que tudo já está bem. n

LIZ FONSECA LUÍSA BELL

| REDAÇÃO | TEXTOS E IMAGENS – Disciplina: Jornalismo Comunitário e Cidadão. Orientação: Beatriz Sallet (bsallet@unisinos.br). Repórteres: Bárbara Bühler, Bárbara Neves, Dominik Polchowicz Machado, Eduarda Cidade, Giordano da Costa Martini, Giovani do Prado Baltezan, João Pedro Mendoza de Menezes, Leonardo Vieira Martins, Liz Peres Fonseca, Luís Henrique Silva Leite, Luísa Bell Santos, Nícolas Córdova da Silva, Petra Karenina Drago Pacheco, Rafael Renkovski, Valentina Lopardo Malara e Vinícius da Silva Alves. | ARTE | Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia. | IMPRESSÃO | Gráfica UMA / Grupo RBS.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos –Unisinos. Campus de Porto Alegre (RS): Av. Nilo Peçanha, 1.600, bairro Boa Vista (CEP 91330 002). Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Sergio Eduardo Mariucci. Vice-reitor: Artur Eugênio Jacobus. Pró-reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Guilherme Trez. Pró-reitor de Administração: Cristiano Richter. Diretora da Unidade de Graduação: Paula Dal Bó Campagnolo. Coordenador do Curso de Jornalismo: Felipe Boff.

Encontro marca retomada do projeto Fé e Alegria

Com 43 anos de atuação no Brasil, programa fornece atividades para jovens no contraturno da escola

Era uma manhã nublada de sábado quando cheguei à sede do Fé e Alegria, na Vila Farrapos, em Porto Alegre. A instituição enfrentou sérias dificuldades durante a enchente que assolou a capital gaúcha, no último mês em maio. A água subiu tanto que chegou ao teto de algumas salas de aula, como mostram as fotos lá coladas nas paredes.

No entanto, o clima ali não era de tristeza. As crianças corriam por todos os lados e as dezenas de famílias presentes, seja da comunidade ou visitantes de fora, se reuniam para conhecer mais sobre o projeto, sendo recepcionadas pela alegre cantoria das crianças e adolescentes do Fé e Alegria.

Elis Santos Marques, 68 anos, compartilhou o impacto que o projeto tem em sua vida, especialmente no auxílio da educação de seus netos. “Eles vão para o colégio de manhã, e, quando saem, vêm para cá”, conta. Mesmo após a enchente, que duramente afetou sua família, a fundação tem fornecido cestas básicas à comunidade. “O dia em que eu falo ‘hoje não vai dar pra vocês irem, pois está chovendo’, eles respondem: ‘Ah, não, vó, mas vai acalmar’”, diz Elis com um sorriso.

Bernardo, 10 anos, um dos netos de Elis, falou com entusiasmo sobre as atividades que realiza no Fé e Alegria. “Aprendo informática e artesanato, mas o que eu mais gosto é de jogar futebol”, brinca ele, sem esconder a paixão pelo esporte. “Mexer no computador é legal, mas prefiro fazer gols”, complementa.

Jéssica da Silva Andrade, 39 anos, é mãe de sete filhos, que frequentam a escola pela manhã e participam do projeto no turno da tarde. “Quando chegam doações de cestas básicas, temos direito de receber por causa das crianças. Eles ajudam muito”, conta Jéssica, lembrando também do período em que ela e a família passaram 30 dias em um abrigo em Cachoeirinha, por causa da inundação que tomou conta da residência dela. “Na minha casa, aqui na Vila Farrapos, somos seis

pessoas. Todos tivemos que ir para o abrigo”, explica. Ela destaca ainda o apoio que o projeto oferece aos jovens a partir dos 16 anos na criação de currículos. “Tem meninas aqui que já estão trabalhando em mercados como menores aprendizes. Isso é muito bom”, finaliza Jéssica.

Entre os presentes, estava o irmão Tranquilo Fiameto, 61 anos, que faz parte da equipe do Fé e Alegria. Ele destaca o objetivo do dia: “Hoje, o grande objetivo é socializar as ideias em torno do Fé e Alegria. Se a gente reparar ao redor, tem desenhos feitos pelas próprias crianças e pelas

famílias que colaboraram de alguma forma”, explica.

Fiameto ressalta a importância da solidariedade no processo de reestruturação após a enchente. “Depois da enchente, houve todo esse trabalho de reestruturação, e isso sem dúvida só foi possível com a ajuda de muita gente”, diz ele, lembrando que a água permaneceu no local por mais de um mês.

Atualmente, a unidade atende cerca de 140 crianças em dois turnos. “Aqui não é escola, não é creche, não é alfabetização. O objetivo é o serviço de convivência, reforçar os laços consigo mesmo, com os outros, com a

“Depois da enchente, houve todo esse trabalho de reestruturação, e isso sem dúvida só foi possível com a ajuda de muita gente”

Irmão Tranquilo Integrante do Fé e Alegria

A integração entre a comunidade da Vila Farrapos e as Famílias Anchietanas teve brincadeiras, apresentações e lanche coletivo. A festividade contou com a participação da família Santos Marques (Gustavo, Elizandra e Elis, na foto com fundo verde); de Luciane Oliveira Marcelita Rossi e Jéssica da Silva Andrade (foto com fundo cinza); e do Irmão Tranquilo, uma das lideranças da Fundação Fé e Alegria

família e com a comunidade”, explica Fiameto. Ele descreve como o projeto acolhe pessoas em situação de vulnerabilidade, proporcionando apoio psicológico e estrutural. “As famílias chegam aqui desestruturadas, e nosso papel é oferecer uma palavra de conforto, um apoio”.

A relação com o governo, segundo Fiameto, é limitada à manutenção mínima do projeto. “Se dependêssemos do governo para reestruturar tudo, ainda estaríamos no meio do entulho. Agora, a gente percebe que a solidariedade está se afastando. Conforme o tempo vai passando, vão esquecendo da gente”, lamenta.

Ainda assim, o trabalho no Fé e Alegria continua, com o firme propósito de transformar vidas, uma história por vez. “São pessoas vulneráveis, mas, quando você olha para elas, são seres humanos que merecem ajuda. Cada um tem sua própria história de vida”, finaliza Fiameto, com o olhar firme, mas cheio de compaixão.

O QUE É O PROJETO

A Fundação Fé e Alegria é uma iniciativa de Educação Popular e Promoção Social, conduzida pela Companhia de Jesus, que presta apoio a crianças, adolescentes, jovens e adultos em situação de vulnerabilidade social. Seu objetivo é colaborar para o futuro de milhares de pessoas, buscando construir uma sociedade mais democrática, justa e solidária. Com 43 anos de atuação no Brasil, a organização faz parte da Federação Internacional de Fé e Alegria e está presente em 14 estados, beneficiando diretamente mais de 12 mil pessoas. Suas unidades oferecem uma ampla gama de projetos voltados ao fortalecimento da estrutura familiar e à promoção da autonomia dos atendidos. Entre as atividades estão o Ensino Básico e Infantil, cursos de formação profissional, alfabetização e oficinas de esporte, arte e cultura. A Fundação também estabelece parcerias com escolas públicas, creches e casas de acolhimento, além de promover ações de integração para migrantes venezuelanos e oferecer serviços de apoio a pessoas em situação de rua. n

LEONARDO MARTINS LUÍSA BELL

Em 20 anos, Conceição já presenciou algumas enchentes no bairro

Deixar a casa para trás passa a ser possibilidade

Após as enchentes de maio de 2024, moradores da Vila Farrapos vivem em meio aos entulhos e convivem com dúvidas sobre a continuidade no bairro

Transformações urbanas são necessárias conforme a expansão de uma cidade ocorre. Por vezes, são positivas, mas, por outras, trazem complicações aos moradores de uma determinada localidade. No limite entre os bairros Humaitá e Navegantes, está a Vila Farrapos, uma das regiões mais pobres da cidade. Essencialmente residencial e com pequenos comércios, o bairro foi inchando com o crescimento populacional da Capital e ganhou uma nova roupagem com a chegada da Arena do Grêmio.

Entre a rua Voluntários da Pátria e a avenida A.J. Renner, as vielas do bairro exprimem uma dura realidade. No chão com asfalto mal-acabado, a poeira levanta com o passar das pessoas e das rodas das bicicletas, cercados por casebres que estampam as marcas das enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul em maio de 2024. É visível uma normalidade ainda não restaurada e, na cabeça dos moradores, pairam dúvidas sobre a continuidade no bairro.

Há 22 anos, Maria Isnaia Camargo, que está desempregada, mora na Vila Farrapos. Vive acompanhada de seus animais de estimação: um cachorro e uma caturrita. “Não tínhamos problemas com enchentes”, conta, relatando que os contratempos começaram a aparecer com

a construção da Arena, entre 2010 e 2012. “Foi construído tudo muito rápido e sem estrutura nenhuma na rede pluvial. Não fizeram planejamento nenhum”, diz. Enquanto limpa, quatro meses depois, os resquícios das águas que chegaram até o teto da sua casa, Maria revela a vontade de se mudar para outro local, mas esbarra no preço estimado do imóvel atingido. “Eu penso em reconstruir e depois sair. Agora não vale a pena. Eu não vou vender a minha casa por R$ 20 mil. Minhas meninas já moram em Lages (Santa Catarina) e, se der tudo certo, vou para Florianópolis”, comenta.

“Ferramenta chave para os problemas da Vila Farrapos”

Na vizinhança, o desejo de deixar o bairro também existe, conforme conta a moradora. Tem também o fato de que muitos moradores ainda nem voltaram às suas casas. “A Denise nem voltou, ela não vai voltar mais. Dentro do bairro, se forem caminhando, vocês vão ver casas fechadas e que as pessoas nem voltaram para limpar. É muito dolorido”, relata.

Vanessa Gomes Conselheira do plano diretor

Na mesma rua de Maria, a menos de um quilômetro, vive Vera Tavares da Silva. Há 24 anos no bairro, compartilha da ideia de que a Vila Farrapos “sempre encheu”, mas nunca como em maio deste ano. “Entrem!

A casa é nossa”, disse para

alguns familiares que chegavam de Águas Claras, de táxi, durante a entrevista.

“Criei os meus filhos aqui, foi a minha primeira casa própria”. Ao contrário da vizinha, Vera não pretende deixar a região. Lá, nos dois andares de uma moradia entregue pela prefeitura de Porto Alegre há mais de duas décadas, ela compartilha a convivência com quatro, “em seguida cinco”, familiares, já que mais um neto está a caminho. Em comum com Maria, tem a vassoura, que segue limpando os resíduos das enchentes.

Vera, que sempre trabalhou como empregada doméstica, também teve que deixar o lar temporariamente. Foi, junto com a família, para a casa do patrão. Tímida para tirar um retrato, procura abstrair os problemas

para seguir em frente.

Adentrando a Vila Farrapos, uma outra personagem chama a atenção. Vestindo um agasalho do Grêmio, tem em uma mão duas sacolas de compras e, na outra, uma bengala. Desde 2002, Conceição, que calcula ter 90 anos, mora na região. Pelos vizinhos, é chamada carinhosamente de vó. Diz ter vivenciado duas ou três enchentes mais bruscas, mas que a deste ano foi a pior. Lamenta a perda do bananal no pátio da sua casa.

Nascida e criada “na la voura”, no município de São Nicolau, que faz fronteira com a Argentina, é outra moradora que planeja dei xar o bairro após vender a sua casa. Se depara, tam bém, com a desvalorização do imóvel na localidade. “Eu ia morrer”, diz, se não tivesse sido resgatada e passado cerca de três me ses na casa de uma sobrinha no Parque dos Maias.

Quem vive no bairro Far rapos e já está acostumado a conviver com alagamen tos, se deparou com outra versão neste ano. Enfren tando o medo do retorno e a vida em meio aos entulhos, os moradores protestaram por mais ações do poder público no final do mês de maio, após quase um mês debaixo d’água.

Atrasada há quatro anos, a revisão do plano diretor de Porto Alegre pode ser uma oportunidade para algumas mudanças na região. O projeto, que é o principal em termos urbanísticos da cidade, deve ser readequado a cada dez anos e prevê a definição de pontos na mobilidade urbana, segurança, qualidade de vida e na capacidade de prevenção a eventos climáticos extremos do município. Tudo isso com participação popular e pactuado entre a sociedade, o Estado e os futuros governos.

que é importante uma readequação com a “melhoria da infraestrutura de drenagem e a implementação de soluções baseadas na natureza”.

De forma prática, Vanessa cita alternativas como “parques lineares e áreas de retenção de água”, além

trução e reordenamento do uso do solo, “garantindo que as áreas de risco não sejam ocupadas de forma inadequada”. Para isso, segundo ela, “é possível desenvolver projetos de habitação que respeitem as características locais e estejam preparados

versidades climáticas”.

Enquanto as soluções ficam, para gestores, no plano das ideias, os moradores agonizam por soluções que são urgentes. n

RAFAEL RENKOVSKI

LUÍS HENRIQUE LEITE

Enquanto a moradora Maria Isnaia Camargo (primeira foto abaixo) cogita sair de casa, Vera Tavares não quer abandonar o lar em que vive há 24 anos

Eleita no início de 2024 como a representante do plano na região de planejamento número 2, que comporta 20 bairros de parte da zona Norte, do Quarto Distrito e das ilhas, entre eles, a Vila Farrapos, Vanessa Gomes pensa que o projeto “pode ser uma ferramenta chave na solução dos problemas habitacionais da Vila Farrapos e região”.

“Pode orientar políticas de reurbanização das áreas afetadas, priorizando moradias de interesse social e a reconstrução de infraestrutura com foco em resiliência climática”, argumenta a conselheira. Ela complementa

LUÍS HENRIQUE

Fé e Alegria: uma Fundação que inspira compaixão

Funcionários e famílias que participam da instituição relatam suas experiências nas enchentes de 2024

As enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul, entre os meses de abril e maio desse ano, deixaram mais de 600 mil pessoas fora de suas casas. Na capital do Estado, especificamente no bairro Farrapos, a situação não foi diferente: a água tomou conta das residências e as famílias tiveram que abandonar suas casas rapidamente. A Fundação Fé e Alegria, entidade beneficente que lá atua, se mobilizou na ajuda às famílias afetadas pelas cheias.   Coordenadora de trabalho educativo e do projeto Entre Culturas na Fundação, Rosângela Campos Rodrigues, comenta que estavam em reunião quando a enchente invadiu o

bairro: “Não estávamos com os alunos, mas saímos correndo. Levei o celular institucional, os educandos começaram a ligar desesperados”, relembra. Contou que os jovens que frequentam a fundação lhe avisaram que estavam com a água batendo no peito. Desesperados, não sabiam para onde ir e o que iriam fazer.

Padre Vicente Palotti Zorzo, gestor pedagógico da Fé e Alegria e coordenador da Paróquia imediatamente reuniu o grupo de apoio da instituição para definir como iriam atuar. Inicialmente visitaram as famílias da comunidade nos alojamentos, mas também em outras cidades da região metropolitana, para onde levaram cesta básica, medicação e roupas.   Para Rosângela, era importante que os alunos se conectassem com quem tinham algum vínculo, em meio a tra-

gédia. “Somos muito gratos aos voluntários. Mas com os voluntários dos abrigos, eles não tinham vínculo. Eles se encontravam acuados”. Por isso, a equipe do Fé e Alegria fez um cronograma de visitas para encontrar com essas famílias e prestar-lhes ajuda.

“As famílias são muito gratas, porque eles chegavam lá e nos abraçavam. Obrigada, senhora. A gente só queria um abraço”, comenta Rosângela com os olhos cheios de lágrimas. O fato de muitos jovens precisarem de ajuda dentro da comunidade resultou em um aumento de alunos no centro. Antes das enchentes,

a fundação atendia 35 alunos e durante as cheias passou a ter 80. “O padre também acolheu algumas crianças de fora. Ele disse que as crianças também iriam precisar desse atendimento e a gente não ia negar. Eles ficaram completamente desassistidos.

“A gente perdeu tudo, ficamos sem nem um prato. Saímos de casa com água no pescoço. Quase morremos”

Leila Magrete Moradora do bairro

Eu tenho educandos que até hoje não estão tendo aula”, ressalta Rosângela.

No pós-enchente, segundo a coordenadora, teve um aumento do trabalho infantil. Os jovens estão indo trabalhar na obra porque muitas residências estão sendo reconstruídas. “Eles estão indo para a obra e para lavagem dos carros. Isso aumentou aqui

no território. Então, essa é nossa preocupação porque a oferta de estágio é pouca por aqui. A gente vem tentando fazer parcerias.”

REDE DE APOIO

Leila Magrete Marques da Silva frequenta a fundação Fé e Alegria desde quando seu neto Thales, que ela cria como filho, passou a fazer parte da instituição, aos 6 anos de idade. E ele já vai fazer 17 anos. Durante as enchentes, a moradora do bairro Farrapos, perdeu tudo.   “A gente perdeu tudo, tudo, tudo. O meu filho também que mora nos fundos perdeu tudo também. Temos duas moradias em um terreno, ele mora nos fundos e eu na frente. A gente perdeu tudo, ficamos sem nem um prato. Saímos de casa com água no pescoço. Quase morremos.”

A família de Leila ficou

Leila Magrete e o filho são uns dos beneficiados da Fundação

Da esquerda para a direita, de cima para baixo: Silmara Duarte Sales, Carolina Duarte Borba, Elisiane Roche e a filha Aysha, Simone Algeri, Márcio Bachi e Rosângela Campos Rodrigues

abrigada na casa da irmã, no bairro Jardim Leopoldina, em Porto Alegre. Segundo ela, as pessoas que atuam no Fé e Alegria foram até lá, logo no primeiro dia, para ajudá-los. A instituição deu roupas, rancho de comida e material de limpeza. “Estão sempre ajudando a gente em tudo”, ressalta.

Para Leila, esse período pós-enchente está sendo difícil, a recuperação está sendo aos poucos. Entretanto, por meio da instituição, ela e seus parentes encontram apoio emocional. Eles participam de reuniões para ajudar nesse processo. Além disso, Leila comenta que o trauma psicológico segue presente na sua vida.   “o trauma está difícil. A gente vai se recuperar, mas é difícil. Todo dia que tu vai mexer em uma coisa e quanto mais tu vai mexendo, mais coisa tem para fazer. Aí tu te sente assim, dá vontade de desistir, mas não consegue. Não tem para onde ir mais. Essa é a única casa que a gente tem.”

Elisiane Roche também teve sua casa afetada pela enchente, o nível da água alcançou dois metros na sua

residência. Ela perdeu tudo e conseguiu abrigo na igreja do padre Vicente. Para ela, uma das dificuldades enfrentadas foi o cuidado com as crianças.

“Foi tudo bem difícil, porque daí eles choravam. Eu ficava mais triste pela situação que eles estavam passando, porque a gente não imaginava que ia acontecer isso. Foi bem difícil mesmo”, descreve emocionada.

A ajuda psicológica que a fundação Fé e Alegria oferece é essencial para Elisiane e sua família, que recebem acompanhamento de psicólogos da instituição, visto que a sua casa segue parcialmente inabitável. Quando chove, entra água em algumas partes.   Elisiane tem 4 filhos e sua maior preocupação é ter uma residência arrumada para dar conforto para eles. As filhas mais velhas sofrem de depressão e ansiedade. “A de 19 ficou com mais ansiedade agora. Eu também tinha perdido a minha mãe fazia oito meses, então foi bem complicado”, relata.

PROFISSIONAIS

QUE MUDAM VIDAS  Assim como Rosângela, outras lideranças da fundação Fé e Alegria auxiliaram as famílias que foram atingidas pelas enchentes recentes.

A assistente social, Silmara Duarte Sales trabalha na fundação Fé e Alegria há 8 anos. Para ela, durante as enchentes, a principal dificuldade enfrentada por parte da instituição foi o deslocamento, porque as cheias

causaram danos às vias de acesso, assim dificultando a chegada até a fundação, aos abrigos e as residências das famílias atingidas.

“Esse esforço exigiu grande resiliência e dedicação para garantir que todos se sentissem amparados durante esse período difícil. Apesar dessas adversidades, continuamos a trabalhar incansavelmente para atender às necessidades das pessoas afetadas e adaptar nossas estratégias para melhor apoiar a comunidade.”

saram ficar esperando pelo resgate em seus lares, tiveram traumas com o barulho da chuva e do mau cheiro.

“A nossa casa é uma identidade nossa. E quando a gente perde a nossa casa, a gente acaba perdendo também parte da nossa identidade. Então, esse trabalho que a gente vai fazer junto das famílias é para recuperar essa identidade, recuperar algumas coisas da casa para que eles possam retomar suas vidas de forma mais empoderada.”

“A nossa casa é uma identidade nossa. E quando a gente perde a nossa casa, a gente acaba perdendo também parte da nossa identidade”

Ao ser questionada sobre o que mais a marcou durante as enchentes de 2024, Silmara destaca: “Foi um momento devastador, mas a solidariedade que surgiu em meio ao caos foi realmente notável e se destacou como um dos aspectos mais impactantes dessa tragédia. Enquanto as águas inundavam ruas, casas e comunidades, o verdadeiro espírito de união e ajuda mútua emergiu.”

Jeniffer Borsatto Psicóloga da Fundação

Carolina Duarte Barbosa é assistente social na fundação também há pouco tempo e atua no projeto SOS Enchente. Segundo ela, nesse período pós enchente, as famílias estão um pouco inseguras.

onde fica situada a fundação teve que ser praticamente toda reformada. O muro da frente, antes da água atingir dois metros e meio, contava com um desenho colorido. No entanto, segundo Márcio, há um novo projeto para a entrada principal, o qual contará, naquela fachada, a história do que aconteceu, mas retratando a esperança nas famílias que estão retornando depois desse episódio.

SOLIDARIEDADE

QUE INSPIRA

As famílias cujos filhos estudam no colégio Anchieta ajudaram na reconstrução da fundação Fé e Alegria. A professora universitária, Simone Algeri, com a equipe dos anchietanos conseguiram doações de roupas, cestas básicas, brinquedos, materiais escolares para a comunidade da Farrapos.

Psicóloga social recente na fundação, Jeniffer Cristina Borsatto participa de um projeto de amparo e acolhimento, o SOS Enchente, que atende as necessidades básicas da comunidade. Segundo ela, algumas pessoas que preci -

“Quando tem uma chuva a gente percebe que parece que houve um trauma, mas a gente está buscando vinculá-las novamente à instituição e eles estão vindo aos poucos. Todas as famílias que a gente foi chamando estão sendo recíprocas ao nosso chamado, estão vindo e a gente está organizando um acolhimento.”

O coordenador administrativo da Fé e Alegria, Márcio Bachi, conta que a casa

“A principal necessidade durante a catástrofe foi o acolhimento, entender a tristeza do momento que eles estavam vivendo, de serem acolhidos não só nas necessidades materiais, mas principalmente nas questões emocionais.”

Para a professora, o trabalho voluntário é fundamental para tornar o mundo melhor e, consequentemente, mais humano. Ela, seu marido Ricardo e a filha Roberta frequentam a fundação há cinco anos.  n

BABI BÜHLER BÁRBARA NEVES

É bom estar de volta

Na manhã de 14 de setembro, o Encontro das Famílias Anchietanas marca o regresso dos professores, alunos e familiares à sede da Fundação Fé e Alegria, localizada no bairro Farrapos, zona norte de Porto Alegre, após as enchentes de maio. No mural que foi pintado durante o evento, fica eternizada a mensagem que já se podia ver nos rostinhos das crianças: “nenhum de nós é tão bom quanto todos nós juntos”. Na página 3 desta edição, contamos tudo sobre o evento. Neste ensaio, trazemos algumas imagens da manhã do reencontro, repleta de sorrisos e atividades. n

LIZ FONSECA

LIZ FONSECA

Mobilização comunitária foi fundamental para acelerar a limpeza nas ruas secundárias do bairro

Presente, andando por toda a comunidade e atento aos pequenos detalhes contados pelos moradores sobre suas vidas após a enchente do último mês de maio, é assim que o coordenador geral da Fundação Fé e Alegria do Brasil, padre Vicente Palloti, 58 anos, circula pela Vila Farrapos.

À frente da fundação e da Paróquia Santíssima Trindade desde 2021, Pe Vicente enfrentou um dos maiores desafios junto aquela comunidade, apoiado pela fé e esperança. No momento crítico, a igreja, construída em uma elevação de três metros de altura, se tornou um ponto de abrigo para os moradores do bairro. Isso para qualquer um que precisasse de ajuda, desde famílias com crianças, idosos, cadeirantes até animais.

O padre, natural de Cerro Largo, no interior do Rio Grande do Sul, foi acordado às 22h30 do dia 03 de maio por moradores que pediam ajuda enquanto o Rio Guaíba começava a transbordar. Em entrevista ao Jornal Enfoque, ele detalha os desafios enfrentados e destaca o papel comunitário que a igreja desempenhou e continua desempenhando na reconstrução da Vila Farrapos após a enchente.

Enfoque – Qual é a função da igreja no apoio comunitário, especialmente em situações de emergência como a enchente de maio de 2024?

P. Vicente – Na noite de 03 maio, quando as pessoas chegaram aqui, elas queriam um lugar para se sentirem amparadas e aguardarem por ajuda. A água subiu muito rápido. A igreja é uma referência de suporte e apoio para a comunidade. As pessoas têm a sensação de que “se eu for lá, serei acolhido”, e foi assim que funcionou, independente de crenças religiosas, a paróquia foi uma fonte de esperança, mesmo a gente ainda não tendo noção da gravidade da situação.

Além disso, a igreja serve como uma fonte de apoio emocional para os moradores. A dimensão religiosa insere as pessoas em um projeto, em uma história, e dá sentido, alento. A sensação de fazer parte de algo e não estar sozinho é grandiosa. Em uma comunidade, a igreja possui o papel de mostrar para as pessoas que elas são

A fé na reconstrução da Farrapos

importantes e que a presença delas é lembrada.

Enfoque – Como o senhor observou a mobilização e atuação do poder público para ajudar os moradores da Farrapos?

P. Vicente – Não teve um alerta para evacuar a vila. Apenas éramos avisados sobre as comportas do Guaíba que estavam rompendo, mas

para quem não entende, isso não significa muito. Houve uma falha grande da municipalidade, as bombas não funcionavam. Fomos vítimas de um negacionismo sobre a gravidade da situação.

Enfoque – Em que momento o senhor percebeu a real gravidade da situação durante a enchente?

P. Vicente – Quando um

uma fila de prioridade para os mais necessitados.

Enfoque – A responsabilidade de cuidar das pessoas acolhidas e auxiliar na organização dos resgates lhe afetou emocionalmente?

P. Vicente – Essa experiência me deixou muito mais assertivo e focado para tomar decisões. O cérebro reage a situações para tua sobrevivência. Então, em um contexto como esse, tu te perguntas “como posso ajudar?”. Como quando chegaram as primeiras famílias com cachorros e me perguntaram se eu iria autorizar. Em uma hora dessas, eu nunca iria impedir que os animais entrassem na igreja e fossem acolhidos. Era preciso pensar de maneira rápida.

Enfoque – Como foi retornar no dia 29 de maio para a igreja?

P. Vicente – Quando eu retornei à igreja e vi os resultados do alagamento na parte de baixo, incluindo na minha casa, foi impactante, mas ao mesmo tempo motivador. Era muita gente espalhada pela Farrapos ajudando e limpando, dava uma adrenalina, uma vontade e um sentimento de que nós poderíamos reconstruir nosso lar. Foi uma sensação de que o melhor estava por vir.

Enfoque – Quais foram as lições mais importantes que o senhor tirou dessa experiência?

bombeiro chegou para os resgates e perguntou se a igreja tinha mais um andar, por questões de segurança. Ali a gravidade da situação ficou clara. As pessoas estavam tossindo e se sentindo mal, então o pessoal do resgate pediu que eu organizasse a ordem das evacuações para quando os barcos chegassem. Todos queriam sair e levar suas famílias consigo, mas foi necessário criar

P. Vicente – O que eu tenho dito para todos é que o nosso tesouro é o que temos conosco. As situações passam, muitas coisas que considerávamos importantes foram embora e muitas coisas que considerávamos como uma conquista, nós perdemos. Mas o que nos ensina são as cicatrizes, as paredes marcadas pelo barro, nelas encontramos força e alento para caminhar. Quando estávamos fazendo a limpeza, as pessoas chegavam, mesmo com as mão sujas, a única coisa boa que poderíamos dar e receber era um abraço. A pandemia veio e nos isolou, a enchente devolveu essa união. Deus se mostra através do humanismo e do cuidado com o meio ambiente e não através de discursos ou narrativas religiosas. Muitas das pessoas que me ajudaram não eram religiosas, mas tinham sensibilidade com a dor humana. Não é preciso ser cristão ou fiel para ajudar ao próximo. n

EDUARDA CIDADE LUÍSA BELL

Retomada do curso de corte e costura traz esperança

Costureiras comemoram a volta do curso de corte e costura após as enchentes de maio

Ocurso corte e costura promovido pela Fundação Fé e Alegria, com sede dentro da Paróquia Santíssima Trindade, tem como objetivo atender mulheres em contextos de vulnerabilidade social. Teve sua retomada em terças e sábados, após as enchentes de abril, a qual devastou também a Vila Farrapos, onde diversas pessoas perderam suas casas, tendo que se deslocar para abrigos ou mesmo outras cidades da região metropolitana de Porto Alegre.

O curso iniciou recentemente seu primeiro módulo com uma nova turma e está acolhendo um grupo de mulheres da Farrapos, mas também de outras localidades, como é o caso da Celita Antunes que nos conta que, apesar de ter perdido a sua casa por causa da enchente, foi o curso de corte e costura que mudou sua vida para melhor. Agora ela consegue naquele

local produzir diversas roupas para si e para sua família, retirando dali seu sustento com a confecção de roupas. Umas das grandes ajudantes para a volta do projeto foi o grupo Pré-CVX A Caminho, Porto Alegre, Regional Sul, o qual auxiliou na retomada do Projeto Social de Corte e Costura. Eles contribuíram desde o começo com campanhas de doações de roupas, cobertores e água. Ajudaram na aquisi-

Espaços públicos

A importância da reurbanização das praças

Comunidade sugere a urgente reurbanização das praças e parques do bairro Farrapos, para muitos o único local de entretenimento

A Vila Farrapos foi uma das regiões mais atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul. Com a triste tragédia, os espaços públicos do bairro ficaram em situação precária e a revitalização deles se fez necessária para a po -

ção de kits de corte e costura, linhas, tecidos. Um dos membros do Pré-CVX João Carlos Rocha comentou: “A água chegou quase no teto da sala de corte e costura e foi perdido tudo o que tinha antes aqui”. Ele disse que foi chamado pelo padre Vicente, na Fundação Fé e Alegria, para ajudar a retirar as pessoas da paróquia quando da enchente.

O padre Vicente Zorzo, por sua vez, comentou sobre o pro-

jeto: “Nós recebemos máquinas de costura, mas elas eram antigas, mas nós queríamos máquinas novas”. Conseguiram então com outra instituição as máquinas modernas que estão sendo utilizadas pelas costureiras. Adriana Carvalho comenta que melhorou muito o seu desenvolvimento na costura com as novas máquinas. Ela, que é avó, faz roupas para ela e para o netinho.

Janete dos Santos, que

participa do projeto, comenta que as máquinas ajudaram muito ela a aperfeiçoar suas técnicas na costura. O curso possui uma grande produção de roupas feitas pelas novas participantes, que abastecem suas famílias e para outros projetos da Fundação, como o da capoeira.

Todas essas mulheres têm a colaboração da professora Carmem Clara, de origem venezuelana e atualmente mora no bairro Santa Tereza, aqui na capital. Ela já mora no Rio Grande do Sul desde 2020, e já tem experiência no corte e costura, e passa todo seu conhecimento para as alunas. Ela comenta “Tenho uma gratidão imensa por ser professora dessas incríveis alunas”.

Na ocasião, senti a felicidade das mulheres presentes durante a aula, e constatei que ali estava algo importante para renovar a esperança nessas mulheres que acabaram perdendo suas casas, mas seguem com muita vontade de continuar batalhando pelos seus sonhos. n

pulação. As praças sempre contribuíram para o bem físico e mental dos moradores, sendo usadas para esportes e lazer deles.

Vera Lúcia, moradora do bairro e mãe de três filhos, falou da importância da qualificação das praças para as crianças e adolescentes. “Meu filho maior ama jogar bola e tenho certeza de que no campinho aqui de casa ele não estará fazendo nada de errado.” Ela também relatou que está acima do peso e voltou a correr

Após enchente, moradores pedem investimentos em manutenção e segurança nas áreas de lazer

na Praça do Sesi devido as reformas feitas no local.

“Apesar da gente sempre querer dar uma desculpinha para não caminhar, a reurbanização na praça nos trouxe um conforto de poder sair na rua e fazer exercícios sem se preocupar com algo a mais.”

Além da revitalização, a segurança nos locais também é um fator determinante para o bem-estar da população. O advogado Joel Galvão, especialista no as-

sunto, reforça que: “a ação do poder público torna-se o principal fator para que o ambiente das praças seja habitável, garantindo a segurança, a manutenção e a possibilidade de frequentá-las”. Ele também afirma que a prática de esportes e lazer refletem diretamente na economia de investimentos por parte da prefeitura (dinheiro público) na área da saúde pública. Portanto, vemos que está havendo um avanço em relação a reestruturação das principais praças do bairro. Entretanto, a manutenção e cuidado se deve ser corriqueira e intensa. Assim, a população poderá usufruir da região e melhorar o bem-estar. n

JOÃO PEDRO MENDOZA GIORDANO MARTINI
VINICIUS ALVES GIOVANI DO PRADO BALTEZAN
Janete (à esquerda) experimenta nova máquina. Celita mostra roupa costurada por ela

Três meses de muita limpeza e mobilização

Mobilização comunitária foi fundamental para acelerar a limpeza nas ruas secundárias do bairro

Esta matéria é uma atualização da reportagem publicada originalmente na edição 7 da revista Josefa, escrita por Paulo Albano, no qual fui a fotógrafa. A saída de campo foi realizada no dia 13 de junho de 2024. Naquele momento, a Vila Farrapos havia sido devastada pelas enchentes de maio, e os moradores enfrentavam o caos de uma comunidade destruída. Agora, três meses depois, essa nova reportagem, após uma visita ao bairro no dia 14 de setembro de 2024, mostra como a situação evoluiu e os desafios que ainda persistem.

A enchente deixou um rastro de destruição e uma quantidade imensa de resíduos, com as áreas secundárias sendo as mais afetadas pela demora na limpeza. O entulho nas ruas menores chegou a mais de dois metros de altura e se estendia por um comprimento que parecia interminável, provocando indignação nos moradores e criando um cenário de precariedade e risco à saúde pública.

A LIMPEZA DOS BOTA-ESPERAS

Os bota-espera são áreas temporárias criadas pela prefeitura para armazenar os resíduos acumulados após desastres naturais, como a enchente de maio. Esses espaços funcionam como depósitos provisórios, onde o entulho e outros materiais coletados das áreas afetadas são armazenados antes de serem transportados para aterros permanentes. A ideia é agilizar o processo de remoção dos resíduos das ruas, centralizando-os em pontos estratégicos da cidade, facilitando o trabalho das equipes de limpeza e evitando que os materiais fiquem espalhados nas vias por longos períodos.

A MCT Transportes Ltda. foi contratada emergencialmente pela Prefeitura de Porto Alegre após a desistência da empresa vencedora do edital de chamamento público. A MCT foi responsável por recolher os resíduos sólidos de três depósitos

e depois: acima, rua tomada por entulhos com objetos estragados descartados pelos moradores. Abaixo, no início de outubro, já não havia mais lixo em frente às casas

Antes

temporários, localizados em várias regiões da cidade.

Júlio César Souza da Silva, gerente da MCT, compartilhou os desafios enfrentados pela equipe. “Já estamos aqui faz umas três semanas. Todo dia, cerca de 40 cargas saem daqui e vão para Minas-Leão, no aterro de lá”, disse. Segundo ele, as operações de remoção no bota-espera da Avenida Voluntários da Pátria exigiram o uso de escavadeiras hidráulicas e tratores de esteira, e a empresa disponibilizou uma equipe com quatro operadores de maquinário e 40 motoristas para fazer o transporte dos resíduos.

O gerente descreveu como o trabalho de remoção dos resíduos da enchente foi marcado por uma carga emocional significativa. Embora sua equipe esteja acostumada a transportar lixo urbano comum, os resíduos deixados pela enchente eram diferentes, envolvendo não apenas entulhos, mas também pertences pessoais, móveis e até animais mortos. “Ali estava a vida das pessoas, né? Não é um lixo comum, tem outro sentimento diferente, sabe? Tu pensa, quantas pessoas passaram anos conquistando tudo aquilo ali, e em pouco tempo, tudo se acabou”, reflete Júlio sobre o impacto emocional do trabalho.

Júlio César mencionou a presença de catadores próximos às áreas de remoção. “Pedimos para o pessoal se afastar porque é perigoso. Quem está operando as máquinas não enxerga de dentro, então, para evitar acidentes, a gente trabalha junto com a guarda civil para pedir que saiam”, comenta.

Além de atuar na coordenação das operações de limpeza em Porto Alegre, Júlio César, também foi pessoalmente afetado pela enchente. Morador de Triunfo, cidade que sofreu com o encontro dos rios Taquari e Jacuí, sua casa foi inundada, assim como a residência de sua filha. Ele relatou que, apesar de morar a cerca de 10 quilômetros do rio, nunca havia visto a água chegar até sua casa. Triunfo, assim como Porto Alegre, enfrentou grandes desafios durante esse período, e Júlio César ficou impedido de retornar à sua casa por 18 dias devido às enchentes e aos bloqueios nas estradas.

MOBILIZAÇÃO DA COMUNIDADE

Ademar da Silva Rodrigues, morador do bairro Humaitá há 25 anos, ainda se lembra do momento em que viu sua casa ser tomada pela água. “Eu dobrei a esquina e, quando voltei, estava tudo alagado. A parte de baixo da

minha casa acabou, não deu tempo de salvar nada”, lamenta Ademar. Ademar também relatou a demora na remoção do entulho em sua rua. “Ficou muito tempo aqui, faz pouco tempo que eles terminaram de limpar. Tinha colchão, móveis, tudo jogado”, diz. Em junho, enquanto as vias principais começaram a ser limpas, as travessas e ruas menores continuaram cheias de entulho. Preocupados com a situação, os moradores se organizaram e realizaram uma manifestação para pressionar o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU).

para mobilizar a comunidade após a enchente. A cabelereira é conhecida por estar sempre envolvida em ações comunitárias e se considera uma pessoa ativa no bairro. “Eu participo porque gosto de ajudar. Estou sempre em movimento, ajudando quem precisa.”

“Ali estava a vida das pessoas, né?

Não é um lixo comum, tem outro sentimento diferente, sabe?”

Júlio César da Silva Gerente da MCT Transportes

Caroline Souza, moradora da Rua 698, liderou o movimento. Caroline é cabeleireira, podóloga, depiladora e body piercier, além de vender semijoias. Mãe de dois filhos, uma jovem de 17 anos e uma menina de 5, ela foi peça fundamental

Incontestada a demora na limpeza das ruas secundárias, Caroline organizou uma manifestação que fechou a rua principal Frederico Mentz, reivindicando que a equipe de limpeza atue nas ruas que estavam sendo negligenciadas. “Fizemos um protesto à tarde, e no dia seguinte eles começaram a limpar aqui. Mesmo assim, a mão de obra não veio. Eles trouxeram os tratores e caminhões, mas quem teve que ajudar no trabalho fomos nós, os moradores”, relembra a moradora.

Caroline descreveu os três dias intensos de trabalho: “fi-

camos debaixo de sol e chuva, sem comer, ajudando a limpar. Peguei pneumonia, machuquei os joelhos, e uma outra moradora cortou o pé, mas não desistimos”. O esforço do grupo que contava com cerca de 20 pessoas da comunidade garantiu que a limpeza fosse concluída, deixando todas as ruas da área organizadas. A estimativa de Caroline é que a equipe contratada tenha trabalhado mais de 20 dias após a mobilização. “Deixaram todas as ruas, becos e vielas limpas, tudo ficou bem organizado”, relata. Caroline, que tem seu salão de beleza no bairro desde 2011, também compartilhou como sua vida pessoal foi impactada pela enchente. “Perdi tudo em casa e no salão, mas já estou conseguindo me reerguer. Em 2020 também perdi tudo por conta de outro evento trágico, e agora, mais uma vez, tive que começar do zero”. A profissional expressou alívio e gratidão ao compartilhar que, apesar das dificuldades enfrentadas, já conseguiu organizar sua casa e retomar o funcionamento do salão de beleza.

Para os moradores, a esperança é de que, com o tempo, suas vidas possam ser reconstruídas, peça por peça. “Aos poucos, a gente vai adquirindo o que perdeu. Deus é bom, vai nos dar tudo em dobro”, compartilha Ademar.

ATUALIZAÇÃO

A MCT está na fase final do trabalho de remoção de resíduos no depósito mencionado, com previsão de conclusão para início de outubro. No total, serão retiradas aproximadamente 40 mil toneladas de lixo provenientes da enchente. Além disso, a equipe iniciou recentemente a limpeza no Porto Seco, no Sambódromo, com a retirada de entulhos também oriundos das inundações. Embora a limpeza nas principais áreas tenha avançado, o processo de reconstrução da Vila Farrapos está longe de ser finalizado. Para muitos, a remoção dos entulhos foi apenas o início de uma longa jornada. n

A MCT estima retirar 40 mil toneladas de lixo de terreno. A água que inundou o bairro saiu de bueiros (abaixo, à esquerda), que não deram conta do alto fluxo. Moradores precisaram abandonar as residências

NÍCOLAS CÓRDOVA
PETRA KARENINA

Instituição tenta se reerguer após enchente

Fundação Fé e Alegria retomou atividades socioeducativas em junho, mas ainda trabalha com horários reduzidos

As chuvas intensas que atingiram Porto Alegre entre maio e julho deste ano deixaram marcas profundas no bairro Farrapos, especialmente na comunidade Fé e Alegria. Alunos da turma de Jornalismo Comunitário, da Unisinos POA, visitaram a região para entender como a Fundação Fé e Alegria, pilar educativo e social da comunidade, está ajudando famílias e crianças a superarem os desafios desse período de reconstrução.

Isabel, 46 anos, mãe de uma aluna da instituição, compartilha o impacto emocional que as enchentes causaram em sua família. Ela e o marido, donos de uma marca de roupas, precisaram se mudar temporariamente para outro apartamento. Durante o tempo fora de casa, Isabel desenvolveu depressão. “Foi um período de muita angústia. A gente não sabia quando tudo voltaria ao normal. Isso afetou minha saúde mental e o bem-estar de toda a família,” conta. Segundo ela, o retorno da filha Rebecca, de 17 anos, às atividades do Fé e Alegria foi essencial para melhorar o ânimo da jovem e ajudá-la a retomar o interesse pelos estudos.

Rebecca, aluna do ensino médio em uma escola local e frequentadora do Fé e Alegria no turno inverso, relembra a tristeza por não poder participar das atividades da instituição durante as enchentes. “Eu sentia falta das aulas de informática, dos meus amigos e da rotina que eu tinha com eles” relata a jovem. Além disso, o medo de novas enchentes permanece presente. “É difícil não pensar que pode acontecer de novo a qualquer momento.”

A comunidade se reúne para celebrar o reinício das atividades na Fundação Fé e Alegria

Para Priscila Cruz, 38 anos, educadora do Fé e Alegria, o cenário foi de desolação total. “A água chegou ao teto em algumas salas de aula, perdemos praticamente tudo,” relata. Mesmo assim, a instituição reabriu em junho, ainda que com horários reduzidos. A recepção foi surpreendente. “No primeiro dia, tivemos 30 crianças, mesmo com muitas famílias ainda em abrigos. Aos poucos, o número foi crescendo. As famílias faziam questão de trazer seus filhos para a instituição, mesmo enfrentando tantas dificuldades.”

A reconstrução da escola contou com o apoio da comunidade e de doações, sempre sob a liderança do Padre Vicente, figura central na mobilização para a recuperação do espaço. Após as enchentes, a fachada foi pintada de branco, e as paredes internas ganharam cores vibrantes, remetendo a um local alegre e de superação. A instituição também oferece atividades educativas psicoló-

gicas, realizadas por voluntários, para ajudar na recuperação emocional das crianças. Mesmo com o espaço recuperado, o processo de reconstrução vai além das estruturas físicas. O desenvolvimento das crianças, que já havia sido aba-

“O desenvolvimento das crianças que haviam sofrido o impacto da pandemia foi afetado novamente pelas enchentes”

lado pela pandemia, também foi pelas enchentes. Priscila aponta que muitas crianças, que deveriam estar alfabetizadas ou mais avançadas nos estudos, apresentam atrasos de aprendizado. “O tempo perdido nas enchentes se soma ao impacto da pandemia, e agora estamos trabalhando para recuperar essas lacunas,” explica. Enquanto a comunidade Fé e Alegria se reorganiza, a resiliência das famílias e o apoio da escola mostram a importância da união para superar as adversidades. A luta pela reconstrução continua, e o papel da instituição na vida de crianças e jovens permanece inestimável.

CONHEÇA A FÉ E ALEGRIA

A Fundação Fé e Alegria, inaugurada em 2005 na região do Arquipélago, em Porto Alegre, tem como missão promover a educação e o desenvolvimento social em áreas vulneráveis. Desde 2010, atua no Centro Social de Educação e Cultura Farrapos, na Zona Norte da cidade, onde expandiu seus serviços para atender pessoas em situação de rua e famílias em situação de vulnerabilidade. A instituição atende mais de 155 crianças e adolescentes, de seis a dezessete anos, e é um símbolo de resistência e esperança para a comunidade, que enfrenta dificuldades agravadas pelas enchentes. Para contribuir com a reconstrução e continuidade do trabalho, a Fundação está arrecadando doações de roupas, brinquedos, alimentos e outros itens essenciais. Interessados em ajudar podem entregar suas doações diretamente no Centro Social, localizado na Paróquia Santíssima Trindade, ou entrar em contato com a equipe da instituição para mais informações: mobilizacao@fealegria.org.br. n

VALENTINA LOPARDO MALARA LIZ FONSECA

O retorno dos jogos na Arena no pós-enchente

Após mais de quatro meses longe de casa devido às enchentes que devastaram a região, o Grêmio finalmente retorna à sua casa

No dia 20 de abril de 2024, o Grêmio encarava o Cuiabá em sua Arena, pelo campeonato brasileiro. Na ocasião, o time comandado por Renato Portaluppi venceu a partida pelo placar de 1 a 0. O que não se poderia imaginar é que essa partida seria a última do time em seu estádio, por, pelo menos, os 04 meses Seguintes.

Depois de ser invadido pela enchente, em maio, o estádio ficou inundado e submerso nas águas turvas do Guaíba por pelo menos 20 dias. Assim como toda a região da Vila Farrapos e do bairro Humaitá, localizados ao redor da Arena. As áreas, severamente atingidas, sofreram danos por conta da enchente, com casas e comércios destruídos pela força da água.

No primeiro domingo de setembro último, após 134 dias de espera, Grêmio e Arena se reencontraram. O Grêmio enfrentou o Atlético-MG e o placar da partida não foi comemorado por seus torcedores, afinal, o confronto acabou tendo o time visitante como vencedor por 3 x 2.

Apesar de já terem se passado quase 04 meses desde a enchente, naquele reinício de atividades na Arena, ainda era possível observar os estragos causados pelas águas no bairro. Em 2023, torcedores do Grêmio fizeram grafites em vários pontos da comunidade, mas, devido aos mais de 20 dias sob as águas, esses grafites acabaram ficando sujos e deteriorados. Também, bem em frente à Arena, na Av. Padre Leopoldo Brentano, ainda é possível ver até onde o nível da água atingiu as árvores do canteiro central.

Dentro do estádio há falhas no sistema elétrico, ainda comprometido pela enchente. De modo que não foi possível acessar o estádio pelas catracas, e os ingressos tiveram que ser validados manualmente pelos funcionários do estádio. Apesar da Arena do Grêmio ter capacidade para mais de 50 mil pessoas, nessa retomada, somente 12,7 mil torcedores puderam ser acomodados nos setores mais próximos do campo, ficando os outros três andares sem a

presença de público por conta de uma orientação da Brigada Militar, junto com a direção da Arena que tratou a partida como um evento teste. Outro aspecto que chamou atenção foi a situação dos bares dentro do estádio. Devido à falta de energia elétrica, não houve

atendimento nos pontos de venda fixos. Apenas vendedores ambulantes estavam disponíveis, oferecendo água, refrigerantes e salgadinhos industrializados. Vale destacar que as vendas eram realizadas exclusivamente em dinheiro, já que a Arena ainda não tinha a infraestrutura de inter-

Parcialmente recuperada, Arena voltou a receber jogos do Grêmio. Com isso, estabelecimentos comerciais nas proximidades do estádio comemoraram o retorno dos clientes

cados até o retorno. “Os prejuízos foram incalculáveis.

Não somente em termos do que foi destruído, mas também, ao que se deixou de faturar. E é algo que não se ajustou até agora”, conta o proprietário. Luciano enfatiza a importância da retomada dos jogos, porém, lamenta que a partida que marcou o retorno teve restrições no público. “Somente com a volta do público total será possível recuperar o bar. Ainda assim, a projeção é de que os prejuízos serão recuperados apenas 18 meses após o retorno dos jogos com público normal”, destaca Luciano.

“O bairro precisava do Grêmio e o Grêmio precisava do Bairro”

Morgana Garcia Torcedora e frequentadora do O Bar

net necessária para aceitar cartões de débito e crédito.

Apesar do placar, que frustrou os torcedores gremistas, do lado de fora do estádio houve comemoração dos comerciantes locais, pois, os dias de jogo trazem um movimento significativo para o bairro, com torcedores frequentando bares, restaurantes e lojas locais. Dos diversos bares ao redor da Arena atingidos pela enchente, “O Bar” foi um deles. Luciano Janssen, dono do estabelecimento, conta que foram momentos compli-

O dono do estabelecimento espera que as partidas voltem com o público sem restrições o mais breve possível, pois, com a Arena tendo sua capacidade máxima, ou seja, 55 mil torcedores, os estabelecimentos ao redor projetam maior faturamento. A resiliência de Luciano e de outros comerciantes da região é inspiradora. Eles não apenas reconstruíram seus negócios, mas também ajudaram a comunidade, trazendo de volta a vida que o bairro ganha nos dias de jogos na Arena. Morgana Garcia, uma das frequentadoras assíduas do “O Bar” comemorou o retorno dos jogos do Grêmio na Arena, e pode voltar ao estabelecimento.“A economia do bairro precisa girar para que as pessoas que ali vivem voltem a respirar mais tranquilas, após toda catástrofe vivida. Minha avaliação em voltar é a melhor possível”, afirmou Morgana.

A torcedora lembrou sua tristeza ao ver o local em meio a enchente, pois, sabia da importância que o Bar tem na vida dos proprietários. Em relação ao retorno dos jogos, ela conta que o bairro precisava do clube na sua casa, e que o clube precisava do seu público o mais próximo possível, após ter disputado suas partidas em quatro Estados diferentes, nos últimos meses. “O Bar ganha muito com este retorno”, defendeu Morgana. A enchente de maio ficará marcada na vida de todos, por conta dos muitos desafios vividos na região, mas a volta dos jogos na Arena é um sinal de recuperação. Esse retorno não é apenas um marco esportivo, mas também um símbolo de esperança para a comunidade da Vila Farrapos. n

DOMINIK MACHADO

Making of

Aretomada das atividades dos projetos mantidos pela Fundação Fé e Alegria, no bairro Farrapos, foi marcada por uma grande festa. A foto maior, em frente à instituição, que logo terá seu muro novamente pintado pelos artistas locais, mostra a alegria que marcou a celebração do dia 14 de setembro de 2024, no Encontro das Famílias Anchietanas (reportada nesta edição) com a comunidade assistida pela Fundação. As demais imagens, trazem um pouco dos bastidores dos nossos repórteres em ação. n

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