EDIÇÃO DIGITAL A sabedoria que combate a perda da cultura As receitas de uma medicina milenar
Diversão e resistência no dia da criança Por Fi Ga Duas
EDIÇÃO DIGITAL A sabedoria que combate a perda da cultura As receitas de uma medicina milenar
Diversão e resistência no dia da criança Por Fi Ga Duas
Ofotógrafo Bernardo de Almeida captou a cena acima observando Augusto Loreira, 76 anos, à porta de sua casa. Ocorre que a comunicação falada não foi fácil. Seu Augusto e o fotógrafo não conseguiram se entender com palavras. Mas, a saudação elegante com o chapéu disse tudo. E ela representa a maneira como a aldeia Por Fi Ga recebeu os estudantes dos cursos de jornalismo, comunicação digital, publicidade e bacharelado interdisciplinar em humanidades, artes e tecnologias neste segundo semestre de 2024.
Na capa e nas páginas centrais desta edição, há outras imagens de anfitriões maravilhosos: as crianças. Elas pegaram pela mão os alunos, alunas e professores e nos levaram para conhecer sua reserva, acarinhar os animais, provar as frutinhas
O Enfoque São Leopoldo - Aldeia Por Fi Ga é um jornallaboratório dirigido à comunidade com o mesmo nome localizada em São Leopoldo (RS). A publicação tem tiragem de 1 mil exemplares, que são distribuídos gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do curso de Jornalismo da Unisinos (campus São Leopoldo).
do mato, nos convidaram para suas casas, e apresentaram suas famílias. Fomos acolhidos por muitos parentes, que pousaram para fotos, responderam perguntas, nos guiaram nos sábados de visita e até trocaram mensagens no grupo de WhatsApp durante as semanas de trabalho.
A primeira edição do Enfoque, publicada em outubro, foi lida e corrigida com atenção. Dona Rosalina Aires nos avisou que na página 12 do jornal anterior, consta que ela chegou na aldeia em 2009; mas, isso ocorreu em 2007. Erramos, e infelizmente o papel não pode ser corrigido, mas pode deixar que na versão digital vai estar certinho (promessa, professora Rosalina!). Já nesta segunda edição do jornal, pautamos justamente o encontro de gerações e de hábitos, de épocas e de criações. Idosos e crianças, homens e
mulheres, sons e imagens, educação formal e saberes populares, humanos e bichos, projetos coletivos e práticas de fé individuais. Mais uma vez, contamos com a parceria de professores e funcionários da Unisinos; e do Núcleo de Educação das Relações Étnico-Raciais da Secretaria de Educação de São Leopoldo (SMED-SL) – com agradecimento especial às professoras Rose Diaz e Patrícia Schneider, que nos apresentaram aos moradores e lideranças da Por Fi Ga. A aldeia nos ensinou muito, e o resultado está aqui, captado, escrito e editado. Esperamos que você, leitor, aprenda também sobre o sentido de comunidade. n
CYBELI MORAES FLÁVIO DUTRA Professores editores
| REDAÇÃO | REPORTAGENS – Disciplina: Jornalismo Comunitário. Orientação: Cybeli Moraes (cybelim@unisinos.br). Repórteres: Amábile Corrêa, Arthur Reckziegel, Gabriel Muniz, Larissa Schneider, Lia Kirch, Mateus Dias, Nadine Dilkin. IMAGENS – Disciplina: Fotografia no Jornalismo. Orientação: Flávio Dutra (flavdutra@unisinos.br). Fotógrafos: Bernardo de Almeida, Bianca Juchem, Caroline Lopes, Gabriele Rech, Isabel Froehlich, João Fuchs, Jonatas de Souza, Kauane dos Santos, Lara Zarth, Leonardo Caldeira, Lua Santos e Lucas Pedro dos Santos. Monitora: Amanda Wolff. | ARTE | Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia. | IMPRESSÃO | Gráfica UMA / Grupo RBS.
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Campus de São Leopoldo (RS): Av. Unisinos, 950, bairro Cristo Rei (CEP 93022 750). Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Sergio Eduardo Mariucci. Vice-reitor: Artur Eugênio Jacobus. Pró-reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Guilherme Trez. Pró-reitor de Administração: Cristiano Richter. Diretora da Unidade de Graduação: Paula Dal Bó Campagnolo. Coordenador do Curso de Jornalismo: Felipe Boff.
Ao chegar na Por Fi Ga, a presença vibrante de crianças se destaca imediatamente, seguidas por suas mães, pais, tias e tios. À medida que caminhamos pelo território, encontramos também adolescentes e uma grande quantidade de animais, que acrescentam mais vida ao cenário. Porém, algo provoca uma inquietação: onde estão os mais velhos, os anciãos que carregam as histórias e os valores desse lugar? Onde estão os avós, aqueles que sustentam as memórias da aldeia? A ausência deles levanta reflexões sobre as mudanças da comunidade e o futuro das tradições indígenas.
Em meio a essa realidade, o Censo de 2022 revela uma situação preocupante para a cultura brasileira. Indivíduos com 60 anos ou mais são considerados idosos no país, mas, entre a população indígena, a maioria é jovem. Para cada 100 pessoas indígenas de até 14 anos, apenas 35 têm mais de 60 anos, tendo a população indígena uma idade mediana de 25 anos — dez a menos do que o povo do Brasil como um todo.
Os grupos indígenas também foram os mais afetados pela pandemia de Covid-19, resultado da falta de atendimento de saúde adequado nas aldeias do país. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) estima que mais de 889 indígenas morreram em decorrência da doença, que contaminou mais de 41 mil pessoas de 161 povos. Na aldeia Kaingang, essa realidade da ausência de anciãos é sentida de forma intensa: apenas seis pessoas da reserva chegaram à terceira idade junto aos 315 moradores. Entre eles está João Carlos Kanheró, que completou 105 anos e é a pessoa mais idosa da comunidade. Nascido em Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, ele é filho de Lívia e Jango Kanheró e pai de quatro filhos. Conhecido como Kasú, que significa capim em sua língua, ele tem uma personalidade que chama a atenção. De longe, avista-se um jovem senhor usando um casaquinho de lã, provavelmente feito à mão, de cor verde claro, que jamais aparentaria ter a idade que acumula. Quem conversa com ele percebe que seus 105 anos são apenas um número: Kasú tem uma jovialidade que parece lhe acompanhar desde sempre. Seu João é uma figura que guarda as lembranças e sabedorias antigas. Na tradição Kaingang, os kofàs – como
são denominados os “velhos” – têm um papel muito importante na sociedade. A idade tem influência na hierarquia da comunidade, e a
“A sabedoria do ‘índioʼ não se perde, mas a letra, essa já se perdeu”
João Carlos Kanheró
Seu João abre a caixa de memórias e documentos para contar um pouco da sua história centenária
grande maioria das pessoas idosas ocupa a função de conselheiro. De acordo com o MDHC, os mais velhos também são fundamentais nos processos de demarcação de terras indígenas, sendo as principais fontes de informação e salvaguarda de conhecimento dos territórios. Entre as memórias que compartilha, Kasú recorda do trator de dois discos que sua mãe lhe deu e das longas horas trabalhando na lavoura.
“Estar perto da natureza, isso era felicidade”, ele diz, com saudade. Sua vida o levou por várias partes do Rio Grande do Sul. “Quando a gente tava mal, meu pai já procurava outro lugar onde o povo estivesse unido, onde a gente pudesse trabalhar”, lembra seu João, sempre em uma constante busca por melhores condições ao longo da vida.
Dedicado a levar a palavra de Deus, Kasú se tornou missionário, tarefa que o fez viajar, inclusive a Brasília, para representar o seu povo. Hoje, ele vive uma vida tranquila, mas segue guiado por sua fé e comprometido com sua cultura. Sua maior preocupação, no entanto, é com a língua Kaingang, que ele teme estar desaparecendo. Tem medo que as novas gerações deixem de falar o idioma e esqueçam quem realmente são. “A sabedoria do ‘índio’ não se perde, mas a letra, essa já se perdeu”, lamenta.
Quando questionado sobre o segredo para viver tanto, ele sorri e responde que sua fé sempre foi maior que qualquer dificuldade. Enfrentou muitos desafios, mas se manteve firme pela responsabilidade que sente consigo, com sua família e com seu povo. “Tem muita coisa que vai ser deixada de lado pelos novos, coisas que só os mais velhos sabem”, diz seu João, ressaltando o valor de suas experiências. No entanto, a própria história de Kasú é exemplo de uma preocupação que só cresce. Ele é parte de uma geração que está desaparecendo, e a escassez de anciões como ele na aldeia é um sinal preocupante para o futuro. Ele observa essa realidade com tristeza e esperança ao mesmo tempo, pois é um dos que carrega a responsabilidade de transmitir conhecimento, sabendo que, com cada ancião que se vai, parte também uma porção insubstituível da memória e da identidade de seu povo. Os idosos são as raízes que sustentam a cultura no presente e garantem que os valores indígenas sobrevivam. n
AMÁBILE CORREA GABRIELE RECH
Dona Marfisa Bento, conhecida por Nerã , seu nome indígena, sempre teve paixão pela costura. Ainda na infância aprendeu a costurar à mão, com agulha e linha, e depois com a máquina de pedal manual.
Os dois anos em que mora na aldeia Por Fi Ga – o mesmo tempo em que está casada com Ari Ribeiro – já serviram para que ficasse conhecida no local pelos seus dons artesanais. Tudo com o apoio da vizinha Loiderice Joaquim, mais conhecida na aldeia como Loide, que acabou emprestando sua máquina para Marfisa. Loide não sabia costurar, e o empréstimo seria por dois anos, até que ela aprendesse com Marfisa e também para que
esta pudesse comprar o próprio equipamento. “Fiquei feliz com o empréstimo da máquina, pois não tinha como gerar renda quando cheguei aqui”, conta Marfisa.
Loiderice passou a falar do trabalho da vizinha para as pessoas da aldeia, que logo começaram a pedir reformas de roupas, e, depois, modelos completos a partir de tecidos levados pelas clientes. “Até o pessoal de Capela de Santana [ outra aldeia próxima ], me procura para costurar”, conta Marfisa.
Loiderice acaba de ganhar recursos para compra de equipamentos de panificação
Após as enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul em maio deste ano, a aldeia recebeu várias doações de roupas. Foi daí que Marfisa acabou tendo outra ideia. “Vi que algumas doações que chegavam estavam indo fora, pois era bastante roupa e algumas não dava pra usar. Mas dava pena de descartar, por isso pensei em fazer umas colchas e tapetes”, explica, com o brilho nos olhos de quem gosta do que faz. “Eu fico feliz quando a pessoa usa a roupa que eu faço e conserto. Eu fico contente quando vejo que as pessoas ficam felizes com o meu trabalho. Me sinto bem. Não me importo tanto com o dinheiro,” relata.
Autodidata, Marfisa conta
que muito do que costura também aprendeu na internet, e segue buscando novas ideias. As moradoras da Por Fi Ga também encomendam hoje outros produtos, como capas de almofada, de botijão de gás e cortinas. Ela conta que já recebeu até pedido de roupas masculinas, mas atualmente só trabalha com vestuário feminino. “Eu ainda não sei fazer camisa masculina, mas se pedem é porque eles querem e eu tenho que aprender a fazer”, confessa.
O marido Ari, incentivador do trabalho da esposa, comenta que o ateliê de Marfisa ainda está precário. Hoje ela costura num espaço apertado ao lado de sua cama, sobre uma mesa
Marfisa e Loiderice querem unir mais mulheres aos seus negócios
instável, montada pelo próprio Ari, que também instalou uma lâmpada para melhorar a iluminação. A máquina já é própria, mas o local de trabalho precisa de melhorias. Além disso, Marfisa conta que tem o desejo de fazer um curso profissionalizante na área, para potencializar o seu trabalho, a organização do seu tempo, e o aprendizado de outras modalidades, como crochê e tricô – que ela também já sabe fazer.
DA COSTURA
PARA OS PÃES
Dona Loide, grande incentivadora do negócio de Marfisa, melhorou suas habilidades de costura com as aulas da vizinha, mas sua
Dona Marfisa, costureira da aldeia, exibe um de seus trabalhos após a enchente de maio deste ano. Ela quer ampliar seus negócios e unir mais mulheres
máquina acabou estragando com o uso. Como costurava apenas para si, acabou não conseguindo verba para o conserto do equipamento. Além disso, seu talento empreendedor sempre esteve mais conectado com a gastronomia, devido ao conhecimento em panificação e o desejo de abrir uma panificadora. Ela conversa com o Enfoque da sua cozinha, onde prepara um bolo para a festa das crianças da aldeia e compartilha a receita. “Vai farinha, ovos, margarina, bate todos os ingredientes, coloca no forno por uns 30 minutos e tá pronto”.
Inspirada e proativa, Loide foi atrás de seu sonho, e acaba de ser escolhida para receber um recurso governamental. Moradora da Por Fi Ga há sete anos, agora poderá colocar suas habilidades em prática, pois quando morava em Tenente Portela, conseguiu fazer um curso de panificação por meio de um projeto oferecido pelo Instituto de Inovação para o Desenvolvimento Rural Sustentável (Emater).
Na época, aprendeu a fazer pães, cucas e bolachas e tinha todo o maquinário para a produção e a venda dos produtos. Loide chegou a vender para escolas locais,
mas pelo fato de ser indígena, foi parando aos poucos, já que não conseguiu expandir seu negócio pela dificuldade
“Eu fico contente quando vejo que as pessoas ficam felizes com o meu trabalho. Me sinto bem”
Marfisa Bento
de acesso às escolas estaduais. Quando veio para a Por Fi Ga de ônibus, não conseguiu trazer as máquinas junto, optando por vendê-las e até doar algumas peças.
Mas ela não desistiu. Loiderice conta que fez a inscrição para receber o novo recurso da Emater de São Leopoldo a partir do projeto de fomento às atividades produtivas rurais, que contemplou 40 famílias na Por Fi Ga. A extensionista rural social Adriana Conzatti,
explica que os beneficiados receberam um recurso de R$ 4.600 reais, do Ministério do Desenvolvimento Social, para aplicarem em um projeto produtivo. “A Emater executa as diversas etapas, como a seleção dos beneficiários, diagnóstico, elaboração do projeto e visitas de acompanhamento”, detalha Adriana. Loide conta que o recurso deve chegar no início do ano que vem e quer abrir um espaço para conseguir a sua própria renda. Ela planeja
trabalhar na produção de bolachas, pães, cucas e pastéis. E com o valor que vai receber irá investir em formas, batedeira, forno, liquidificador, cilindro e moedor para ampliar sua fabricação. Para mais adiante, Loide pretende fazer uma casa maior no terreno ao lado de sua casa, mas ainda não tem renda para a construção.
Assim como Marfisa, Loide acredita que empreender é uma forma de unir as mulheres e incentivá-las na busca por autonomia e geração de renda. Por isso pensa em abrir um espaço com esta finalidade. “As mulheres poderiam se juntar mais, para produzir e aprender junto. Algumas até sabem produzir, mas faltam equipamentos e ingredientes”, explica. O trabalho conjunto também reduziria gastos. “Se cada uma ganha um saco de farinha de 5kg, já ajudava, pois com um saco de farinha dá para fazer umas dez cucas”, ensina. A venda dos produtos seria feita dentro da aldeia.
Marfisa também pensa em ampliar os negócios a partir do esforço comum. “Eu penso em juntar as mulheres, porque tem bastante serviço. Tem que cortar as peças e aquelas que querem aprender a costurar e montar, eu ensino também”, afirma. Seu Ari faz coro, dando a ideia de que o trabalho do grupo poderia ser divulgado nas redes sociais. “Podia se fazer uma interação de pontos pra mostrar nossa cultura em lugares diferentes. É uma maneira das ‘índias’ buscarem visibilidade”, incentiva. E completa: “Quando precisar, eu vou buscar linha, bobina, elástico e os tecidos, tudo para ajudar a fazer uma diferença”. n
Kaingangs tratam doenças com curas naturais, mas também usam remédios de farmácia
“Não tem ninguém aqui, sinal de que está tudo bem”, inicia a conversa, em tom descontraído, Sueli Khey Tomás, técnica de enfermagem do Espaço de Saúde Indígena no território Kaingang, em São Leopoldo. O posto fica aberto de segunda à sexta, das 8h às 17h, e é exclusivo para a comunidade.
Uma semana ao mês, uma equipe de profissionais da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), composta por médico, enfermeira, dentista e
atendimento às mulheres, fica disponível para os mais de 300 moradores da aldeia.
A Prefeitura de São Leopoldo também envia vacinas e outros profissionais especializados a cada 30 dias, a maioria de origem Kaingang ou indígena, por meio de uma unidade móvel. Mesmo assim, muitos problemas, dores e doenças são resolvidos por meio de curas indígenas próprias com a utilização de ervas naturais, que não são reveladas por completo pelos mais antigos, nem mesmo para quem irá tomar.
Dorvalino Cardoso, 60 anos, mora no território Por Fi Ga desde 2007 e é conhecedor de diversas receitas indígenas com ervas e plantas. “Se eu
for citar tudo o que eu tenho vou ficar a noite aqui, mas para cada doença do corpo tem um remédio”, explica. Seu Dorvalino conta que, seguindo o ensinamento dos antigos pajés das aldeias, não se oferece medicamento indígena na comunidade. “Quando eles pedem, a gente faz. Os pajés dizem que é sagrado, todo o
“Os pajés dizem que é sagrado, todo o remédio que a gente toma só funciona se acreditar”
Dorvalino
Cardoso
remédio que a gente toma só funciona se acreditar”, afirma. Foi o que fez a técnica de enfermagem do postinho de saúde da aldeia. Sueli tem uma alergia a tomate, e toda vez que come o fruto, fica com manchas vermelhas no rosto e nos braços. O problema foi resolvido com banha de porco e barro deixado por vespas nas paredes, que de acordo com Dorvalino, é bastante encontrado em galpões. “Ao colocar a pasta em cima das manchas, a alergia deixa a pele em apenas três dias”, conta Khey, falando sobre o resultado de um dos tratamentos de seu Dorvalino. “Eu que ensinei para ela… Esta pasta é pra ferida braba”, diz ele.
A técnica de enfermagem conta que está na fila do
Sistema Único de Saúde (SUS) há quatro anos para operar o ombro direito, e que por isso fez uso de uma outra pasta, produzida com a planta hospedeira do eucalipto, para tratar sua articulação. “Funciona como se fosse uma cola. Agora, quando eu for chamada, vou mostrar o raio-x e acredito que não precise mais nem operar”, diz esperançosa. A maior procura por medicamentos no Espaço de Saúde do território da Por Fi Ga fica por conta dos hipertensos e diabéticos, que precisam de medicações de uso contínuo. Mas, para os diabéticos que preferem usar recursos naturais, há receitas com pata-devaca, uma espécie de árvore florida. Sem entregar toda
O atual Espaço de Saúde Indígena conta com sala para atendimento às mulheres, realizados pela equipe da Sesai uma semana por mês
Os efeitos do chá da patade-vaca já são reconhecidos pela ciência tradicional como satisfatórios para o controle da diabetes e seus sintomas colaterais, como o colesterol
a receita, seu Dorvalino comenta sobre a cura. “Cozinha, coloca num litro e depois põe na geladeira”, revela.
Infelizmente, os insumos para as receitas naturais já não são encontrados com a frequência e o volume de antigamente, sobretudo no território da Por Fi Ga. “As ervas dão conforme a região. Aqui nós temos algumas coisas, mas nas aldeias grandes conseguimos fazer muito mais curas”, comenta seu Dorvalino. Já o posto de atendimento comunitário conta com materiais para pronto-socorro, como pasta d’água utilizada em queimaduras, além de testes de gravidez e salas de atendimento clínico, odontológico e de assistência à mulher. Atualmente, é cada vez mais comum que os povos originários utilizem remédios das farmácias. Seu Dorvalino, pai de uma estudante de enfermagem, entende esta opção, mas ainda prefere fazer uso das receitas com plantas e ervas que aprendeu. “Aqui em casa nós usamos tanto os remédios das farmácias, quanto as nossas ervas. Mas a juventude de hoje acredita mais nos médicos e farmácias. O pessoal fica doente, mas não procuram recursos naturais, é mais fácil procurar a medicina tradicional”, opina Dorvalino. Devido a esta procura, o trabalho de Khey não se limita apenas às salas do Espaço de Saúde Indígena. A técnica também marca consultas externas, agenda o transporte e comunica o dia e horário dos procedimentos aos moradores da comunidade. A tarefa extra não é um problema para Sueli que, após se formar, começou primeiro a trabalhar em sua residência. “Eu atendia os ‘parentes’ em casa. Fiz isso por dois anos, até a construção do posto”, relembra. Mas tudo aconteceu à base de muita luta. “As pessoas não querem ter responsabilidade com os indígenas. A prefeitura joga para o Governo do Estado, que passa para o poder Federal, mas a gente faz parte do município também”, recorda Khey.
Após as reivindicações de lideranças da comunidade, o posto de saúde da Por Fi Ga foi inaugurado em dezembro de 2019. Como apoio
Sueli Khey é a única funcionária do posto de saúde, que está aberto de segunda a sexta. O veículo da Sesai é utilizado no transporte de pacientes indígenas em consultas fora da aldeia
de transporte , um veículo Renault Sandero, cedido pela Sesai, fica disponível para emergências e locomoção de pacientes para consultas fora do território. “Eu trabalho das 8h às 17h48, e tem bastante demanda. Geralmente, são cerca de dez corridas por dia”, afirma o motorista Jackson de Oliveira. Ele conta que durante o dia é o responsável pelo transporte dos pacientes para as Unidades básicas de Saúde (UBS), Unidades de Pronto Atendimento (UPA) ou o Hospital Centenário. Já durante as noites e madrugadas, a missão é transferida para os motoristas de plantão, que trabalham no formato 12 por 36, ou seja, uma noite sim e outra não.
Apesar de gostar do trabalho, Jackson se preocupa com os horários em que não há motoristas. “Precisamos de mais um motorista para os finais de semana. Nós três trabalhamos de segunda à sexta, ter outro motorista para fazer plantão durante o sábado e domingo seria uma boa melhoria”, reflete Jackson, que trabalha para uma empresa terceirizada, contratada pela Sesai. Quem coordena os motoristas, os atendimentos e as consultas é a técnica de enfermagem Sueli Khey, que dedica a maior parte de seus dias aos pacientes do Espaço de Atendimento Indígena do território Por Fi Ga. “É muita responsabilidade porque a vida dos nossos parentes acaba ficando nas nossas mãos”, diz Khey, com noção da importância do trabalho de saúde para a comunidade. n
Entre o barulho da cidade e os cantos da ancestralidade, a reserva indígena parece ter sua própria sinfonia
Osom dos carros na Estrada do Quilombo, no bairro Feitoria, reverberam nos ouvidos de quem passa próximo da entrada da reserva indígena Por Fi Ga. No entanto, bastam alguns passos para adentrar a aldeia e a realidade sonora se transforma. É como atravessar uma fronteira invisível, onde o som das cigarras, o canto dos pássaros e o grito dos galos pela manhã fazem parte de uma sinfonia particular. O vento balança as folhas das árvores e os cachorros latem, como se tivessem algo a dizer. Mesmo estando próxima da cidade, a reserva parece ter sua própria sonoridade, com destaque para a natureza. Ao andar pela aldeia, outros sons ecoam das casas, invadindo o ambiente externo. Da casa azul com janelas marrons gastas pelo tempo,escapa uma melodia sertaneja. Uma frase da música chama a minha atenção: “essa luta vai findar e um novo dia vai amanhecer”. Curiosa, me aproximo e pergunto a Bruna Rodrigues Fortes, a moradora, sobre a canção. Ela me mostra com simplicidade o celular, conectado a um aparelho de som Philco pelo Bluetooth, revelando o nome da banda: Louvor Universal. “Gostamos de ouvir música no sábado e no domingo, principalmente de louvor”, comenta, como se a música fosse uma oração que molda os dias de descanso na aldeia.
Mais adiante, em uma casa de madeira, os graves de uma
música do MC Poze do Rodo se ouvem de longe. A batida funk se espalha pelo ar, revelando a vida jovem daquele lar. Vaneli Pedro, moradora da casa, me recebe com um sorriso. “Aqui em casa ouvimos música todos os dias”, ela diz, explicando que gosta de uma mistura de ritmos. “Gostamos de banda, sertanejo, tudo”. Mesmo com vários estímulos sonoros, algo parece faltar. Enquanto as músicas atuais e os barulhos dos animais dominam os espaços, um som parece ausente: as músicas Kaingang, os cantos da ancestralidade. Ao perguntar sobre isso, sou direcionado a João Carlos Kanheró, o morador mais idoso da reserva. Ele me recebe com os olhos iluminados, carregando nas mãos um CD que parece guardar mais do que simples melodias. Vozes Kaingang na Aldeia Grande, lançado em 2005, traz uma combinação de cantos tradicionais e sons instrumentais. João Carlos fala com orgulho de sua história como cantor, recordando o tempo em que tocava gaita nas festas e bailes. “Eu era cantor, tinha gaita e tocava. Mas agora parei e vendi a gaita”, ele revela com nostalgia. O CD que ele guarda traz canções intituladas em Kaingang, como KANHGÁG AG TY KYN KYN ou Os Kaingang tocam juntos, e PÉNKRIG FI TYNH KÃME ou Canto da formiga. Para João Carlos, o disco é mais do que um objeto: é uma parte viva da identidade de seu povo, mesmo que agora seus instrumentos tenham silenciado. Percorrendo a aldeia, também encontro Dona Rosalina Aires, que me conta sobre sua missão
Sons da natureza se destacam entre as músicas que tocam na aldeia. No detalhe, o CD Vozes Kaingang na Aldeia Grande
“Se alguma coisa vai acontecer, os passarinhos chegam perto e cantam”
Rosalina Aires
de preservar a língua e a cultura através do ensino de músicas Kaingang para crianças. Ela diz que os pequenos estão perdendo a conexão com a língua materna, e a música oferece um caminho natural para o aprendizado. “As crianças têm facilidade com a música, aprendem mais fácil
por meio dela”, explica. Uma das canções que Rosalina ensina se chama Dono da Mata, e cada palavra entoada é um esforço para manter viva a tradição que ela tanto valoriza.
Durante minhas passagens pela Por Fi Ga, não vi instrumentos musicais. Mas, ao pesquisar sobre isso, descobri que os mais usados são os de percussão e sopro, sendo que o corpo também é utilizado como um instrumento musical, a exemplo das batidas dos pés e das palmas, que direcionam a melodia em músicas e danças. Dona Rosalina também fala sobre uma outra forma de comunicação: a observação da natureza. “Quando a cidade está muito barulhenta, a gente sabe que vai chover”, diz, revelando uma sabedoria ancestral sobre os sinais do mundo ao redor. Os pássaros também trazem mensagens sutis. “Se alguma coisa vai acontecer com alguém da nossa família, os passarinhos chegam perto e cantam. Eles avisam”, ensina. Um desses presságios recentes marcou sua memória.“Esses dias, um passarinho veio e começou a cantar. Logo depois, soubemos que um pajé de outra aldeia havia falecido. O passarinho já tinha nos avisado”.
E assim, entre sons pós-modernos e cantos antigos, entre o barulho da cidade e a música da natureza, a aldeia vive. Cada casa e cada morador guarda sua própria melodia, numa mistura única de tempos e identidades. O que falta no som, a memória preenche. n
LARISSA SCHNEIDER KAUANE DOS SANTOS
Instituições privadas possuem programas e espaços de escuta dedicados às pessoas indígenas
Para quem faz parte de um grupo minorizado pela sociedade, a dificuldade de acesso à universidade no Brasil torna-se regra, e não exceção. É o caso dos indígenas da aldeia Por Fi Ga, cujos esforços para estudar no ensino superior já foram tema de reportagem da primeira edição do Enfoque
O número de estudantes indígenas, no ano de 2021, era de pouco mais de 46 mil pessoas no país, o equivalente a 0,5% do total de alunos nas universidades. As informações são do Instituto Semesp, entidade que representa as mantenedoras de ensino superior no Brasil.
Mesmo com os baixos índices, o número de pessoas autodeclaradas indígenas nas universidades subiu 374%, e esse aumento se deve, em partes, ao trabalho que vem sendo desenvolvido junto às entidades de ensino para atrair cada vez mais indígenas ao ambiente acadêmico. Para avaliar essa melhora no serviço prestado, entramos em contato com três instituições da região metropolitana de Porto Alegre para entender como funciona o processo de admissão e quais seriam as oportunidades para pessoas indígenas na Feevale, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Pontifícia Universidade Católica do RS (PUC-RS).
A Feevale, localizada em Novo Hamburgo, oferece 60% de desconto nas mensalidades dos mestrados e doutorados para pessoas negras, pretas, pardas, pessoas com deficiência, indígenas, pessoas transgênero, transexuais e refugiados. Já para as graduações existem bolsas específicas destinadas aos indígenas, apenas pelo programa Prouni, que todos os públicos oriundos de escolas públicas podem acessar.
Além disso, a instituição possui um projeto de extensão junto à própria Por Fi Ga. O Múltiplas Leituras iniciou suas ações em 2007 com atividades voltadas à escolarização, leitura e letramento, direitos e cidadania e fortalecimento cultural da identidade Kaingang. O projeto de curricularização da extensão contribui para o aumento da interculturalidade e diminuição do preconceito em relação aos povos indígenas.
Para o professor responsável pelo projeto de extensão,Norberto Kuhn Junior, essas bolsas em universidades comunitárias como é o caso da Feevale são resultado de uma luta que está avançando.
“Isso precisa ser articulado via lideranças da comunidade, tema que se perde a cada troca de cacique, por exemplo. Internamente, no âmbito do projeto temos propostas que foram construídas, mas pela crise imposta pela pandemia, ainda não foram retomadas. A necessidade de bolsas e cotas para juventude indígena em nossas universidades é algo claro e urgente”, destaca.
Na PUC-RS o Programa Raízes também destina bolsas de
“A necessidade de bolsas e cotas para juventude indígena em nossas universidades é algo claro e urgente”
Norberto Kuhn Junior
estudos a pessoas pretas, pardas e indígenas de nacionalidade brasileira que estejam em comprovada situação de vulnerabilidade social e econômica, e que sejam residentes de Porto Alegre ou da região metropolitana da capital. Os interessados podem adquirir essas bolsas através do ENEM, desde que possuam renda familiar de até um salário-mínimo.
A instituição também conta com um Núcleo de Estudos AfroBrasileiros e Indígenas (Neabi). O coordenador do núcleo, Edison Hüttner, informa que a entidade atua em diversas frentes, como promover visitas ao museu da universidade voltados para as crianças, realizar estudos, publicar
Contate a universidade
Feevale
Projeto Múltiplas Leituras nkjunior@feevale.br
PUC-RS
Neabi ehuttner@pucrs.br
Unisinos
Neabi johannacoelho@unisinos.br
artigos, fazer viagens à Amazônia e até mesmo a produção de dicionários Kaingkang-Português. Para ele, os Neabis dão uma resposta até mesmo às universidades sobre o que significa ser indígena. “O trabalho está cada vez melhor e mais abrangente. Por exemplo, agora estamos organizando um núcleo de estudos dentro de uma aldeia no noroeste do estado. A perspectiva é de melhora em todos os sentidos”, diz Edson.
A fim de preservar a cultura indígena, a Unisinos, que possui um campus em São Leopoldo e outro em Porto Alegre, mantém dentro de sua estrutura o Espaço História Indígena, que conta sobre a vida dos povos originários no sul do Brasil desde sua chegada, há 10 mil anos antes de Cristo, até os tempos recentes.“O local nasceu em 2001 a partir dos acervos de obras raras e materiais do século XV até o XX. Aqui estão mais de 200 mil livros e 1,2 mil periódicos. É um verdadeiro presente histórico”, afirma o Padre Felipe Soriano, curador da exposição. O acesso ao memorial ocorre somente via agendamento pelo e-mail memorialsj@unisinos.br, e está aberto ao público de forma gratuita. Assim como a PUC-RS, a Unisinos possui um Neabi que realiza diversos trabalhos com a
Acervos como o do Espaço História Indígena da Unisinos são importantes para ensinar sobre as culturas e diminuir preconceitos
comunidade indígena. Conversas mensais, parcerias e levantamento de necessidades contribuem para a emancipação da comunidade. “A temática dos indígenas não deve ser exclusividade do nosso núcleo e sim algo ampliado a todos. Nossa principal função é na verdade de escuta. Escutar o que a aldeia tem a nos dizer e, a partir disso, caminharmos juntos a fim de buscar melhorias”, aponta Johanna Coelho, professora responsável pela temática indígena.
A partir de uma política de inclusão e diversidade, a Unisinos desenvolveu um programa de ações afirmativas para pessoas pretas, pardas, indígenas e quilombolas que oferece bolsas em nível de graduação, mestrado e doutorado. O programa é voltado para todos os cursos das Escolas da universidade, nas áreas da Saúde, Indústria Criativa, Gestão e Negócios, Direito, Politécnica e Humanidades. O programa da Unisinos foi construído em conjunto por diversas áreas da instituição, orientado pelo compromisso com uma educação inclusiva, democrática, diversa e com responsabilidade socioambiental. n
ARTHUR RECKZIEGEL
LUCAS PEDRO DOS SANTOS
Dados do Censo da Educação Básica de 2023 indicam que 36 milhões de brasileiros com mais de 50 anos não concluíram a educação básica. E entre os 2,5 milhões de alunos matriculados em programas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), apenas 17 mil são indígenas, em um contexto de abandono escolar, na qual 73% dos alunos deixam de frequentar as aulas.
Na aldeia Por Fi Ga, a busca pelo direito à educação assume mais ainda uma dimensão transformadora. Iniciado como um projeto piloto em agosto de 2023, e finalizado em setembro de 2024, o programa marcou a trajetória de cerca de 20 alunos Kaingang, com idades variadas e níveis diversos de escolarização, oferecendo a chance de completar o ensino fundamental, até o 5º ano.
Rosa Pedroso, 51 anos, é uma dessas estudantes. Com uma rotina intensa entre o cuidado da casa e a produção de artesanato, Rosa dedicava duas manhãs por semana para realizar seu antigo desejo de aprender a ler e escrever. “Eu tinha que ir muito longe para estudar quando criança, então minha mãe só me ensinou a fazer artesanato”, recorda Rosa, que passou a infância falando apenas Kaingang e aprendeu o português de maneira informal. “No começo eu tinha muita dificuldade de estudar, e falava pra professora Jéssica ‘acho que não vou aprender a falar bem, porque já sou velha’, mas ela sempre me ajudava”, conta a estudante.
Os benefícios práticos do aprendizado rapidamente se tornaram evidentes. Rosa, que depende da venda de artesanato para viver, aprendeu a fazer cálculos para precificar seu trabalho e evitar perdas financeiras. Além disso, a alfabetização proporcionou maior independência no deslocamento pela cidade. “Agora que eu aprendi a ler, nunca mais peguei o ônibus errado”, comenta. A educação não só facilitou aspectos práticos da vida de Rosa, como também alimentou seu desejo de um futuro melhor para seus filhos.
“Eu sempre falava para eles, ‘no meu tempo não era bom de ir pra escola, hoje em dia é bom de estudar, então vocês têm que aproveitar’”.
O programa EJA na aldeia Por Fi Ga foi implementado pela prefeitura de São Leopoldo, que desenvolveu uma parceria ativa com as
lideranças Kaingang para compreender a demanda local por alfabetização e letramento básico. A professora Jéssica Nucci, que possui formações em alfabetização e geografia, foi uma das responsáveis pela implementação. Ela explica que o município se esforçou para tornar o projeto adaptado
Programa de alfabetização promovido pela Prefeitura certificou dez estudantes Kaingang em um ano
Dona Rosa Pedroso mostra os cadernos que usou para aprender a ler e a escrever, através do programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA)
ao público específico da aldeia, reconhecendo a importância da língua materna e da cultura originária no processo de alfabetização.
Mas devido à falta de apoio dos governos estadual e federal, não foi possível incluir um professor indígena bilíngue no programa, o que, segundo Jéssica, poderia ter ampliado significativamente a qualidade do ensino. “Fizemos ofícios e tentamos contato com a Secretaria de Educação do Estado e até do Ministério dos Povos Indígenas, mas não tivemos resposta”, lamenta a professora. Assim, o ensino foi ajustado para as necessidades da comunidade com flexibilidade de horários e foco em matérias práticas de alfabetização, letramento e matemática básica. O programa também contou com a participação do professor Lucas Farias, especialista em alfabetização e pedagogia.
A sala de aula improvisada foi reformada com o apoio dos próprios alunos, que providenciaram os materiais e móveis necessários. Essa sala, além das aulas regulares, serve também como um espaço comunitário, onde outros professores dão aulas de reforço para alunos Kaingang de outras séries. A metodologia de ensino também precisou de ajustes: cada aula era planejada considerando diferentes níveis de conhecimento e objetivos, com
trabalhos para serem realizados em casa e momentos de interação cultural, como fogueiras e celebrações típicas.
Embora o projeto tenha contado com a presença de 20 alunos inicialmente, em sua maioria mulheres, muitos enfrentaram dificuldades para se manter regularmente nas aulas. Períodos de festividades, colheitas e feiras de artesanato, principais fontes de renda da comunidade, causavam uma rotatividade entre os estudantes.
A taxa de desistência, um dos maiores problemas do EJA no Brasil, afetou também o projeto Por Fi Ga, e apenas metade dos inscritos concluiu as atividades planejadas.
Segundo Jéssica, o sucesso dos alunos que perseveraram é uma prova da importância e do respeito ao ritmo de vida da comunidade. “Tivemos que ser flexíveis para que as aulas fizessem sentido e para que a desistência fosse menor. No final, dez alunos cumpriram seus objetivos e terminaram com uma celebração coletiva”, relata a professora.
“Eu tinha que ir muito longe para estudar quando criança, então minha mãe só me ensinou a fazer artesanato”
Rosa Pedroso
Além da alfabetização, a experiência educacional vivida abriu portas para a continuidade dos estudos e para o desenvolvimento da autonomia dos indígenas Kaingang. Jéssica destaca que a convivência entre os alunos e a equipe também trouxe significados profundos. Ela descreve que muitas atividades foram realizadas para valorizar o coletivo e as trocas de conhecimento
entre a comunidade e os professores. “Eles tinham objetivos distintos, e a gente precisava trabalhar com isso para criar aulas que fossem realmente relevantes. Muitos faziam artesanato e vendiam fora, então cada aluno teve um apoio personalizado”, explica. Para o futuro, a aldeia planeja a continuidade desse projeto por meio da horta comunitária, um novo ciclo que envolverá tanto ex-alunos do EJA quanto membros mais jovens da comunidade. A transição do EJA para a horta representa uma oportunidade para que o conhecimento teórico seja aplicado de forma prática e sustentável. A primeira edição do Enfoque Por Fi Ga contou sobre o projeto, que ocorre em parceria com a Escola Técnica Estadual Visconde de São Leopoldo. O EJA pode ser muito mais do que um simples processo de alfabetização. Ele assume o papel de elo entre a cultura e a educação, proporcionando um caminho para que os indígenas Kaingang recuperem e valorizem seus saberes ao mesmo tempo em que conquistam habilidades essenciais para enfrentar as demandas do mundo moderno. Rosa Pedroso resume, com uma frase e um sorriso, a importância da educação: “A primeira vez que consegui escrever uma palavra sozinha, mas bah, eu fiquei muito contente”. n
MATEUS DIAS
Professores Lucas Farias e Jéssica Nucci posam com alunas e seus pareceres certificados, e também acompanharam as atividades na sala de aula comunitária e também ao ar livre
Os sorrisos dos pequenos Kaingang se com a luta indígena
No dia 19 de outubro, a tena de pequenos e pequenas e cores vibrantes para proposta então é deixar registrado transborda das páginas de um de volta a essência da infância, atividades divertidas, presentes,
Embora seja tradição para a celebração do dia da criança feriado católico em homenagem há cinco anos a Por Fi Ga escolhe moradores em outra data. Isso para os povos originários, o em toda a América Latina, uma contra os impactos da chegada
“Estamos nessa luta há muito portante dar esse momento de adolescentes felizes é essencial. culdades, e esse evento ajuda crianças”, explica Sulei Khey da festa, que é fruto do esforço
A comemoração em uma data as crianças e suas famílias e ciência histórica da aldeia. Desde Colombo às Américas, o 12 de países colonizadores como o “descoberta do novo mundo” nários, significaria séculos de Por isso, atualmente, o Dia da momento de reflexão, e a escolha a data é uma forma de honrar preservar suas tradições.
Mas, mesmo sob o peso crianças na aldeia foi repleta diversão. As doações de brinquedos por pessoas de dentro e fora pelo Neabi, pelo Espaço Colaborativo da Unisinos, foram recebidas Bonecas, carrinhos, jogos, fantasias passaram de mão em mão, aquecendo os corações de todos nidade de participar. Afinal, momento para a constituição
sorrisos pequenos entrelaçam indígena
aldeia que é lar de uma cenpequenas se encheu de alegria celebrar o dia da criança. A registrado no Enfoquinho tudo o que jornal: um evento que trouxe infância, com brinquedos infláveis, presentes, doces e salgados de festa. as pessoas brancas no Brasil criança em 12 de outubro, junto ao homenagem a Nossa Senhora Aparecida, escolhe comemorar seus jovens Isso por que 12 de outubro é, Dia da Resistência Indígena uma ocasião para lembrar a luta chegada dos colonizadores. muito tempo, por isso é imde alegria. Fazer as crianças e essencial. Eles enfrentam muitas difipara que se sintam realmente Khey Tomás sobre a organização esforço coletivo da comunidade. data diferente traz união para também demonstra a consDesde a chegada de Cristóvão de outubro é celebrado pelos “Dia da Hispanidade” ou da mundo” – que, para os povos origide exploração e extermínio. da Resistência Indígena é um escolha da Por Fi Ga por reservar honrar a luta de todos os povos e da história, a festa para as repleta de risadas, leveza e muita brinquedos e alimentos, feitas fora da comunidade, e também Colaborativo e pela Ação Social recebidas com grande entusiasmo. fantasias e até bolhas de sabão fazendo brilhar os rostos e todos que tiveram a oportuAfinal, toda festa de criança é um constituição de novas memórias. n
Deixados na entrada da reserva, a população de animais domésticos aumenta na aldeia
Ao chegar na Por Fi Ga, os repórteres do Enfoque são recebidos não apenas pelas pessoas, mas por uma matilha variada de cachorros que já parecem conhecer bem o ritual de chegada de visitantes. Com latidos cheios de energia, os cães se aproximam com seus olhares curiosos e parecem pedir carinho. Seus pelos, de todas as cores e texturas, apontam a diversidade que já faz parte da aldeia. Alguns trazem cicatrizes visíveis, outros parecem ter sido apenas afetados pela idade. Muitos têm um ponto em comum: foram deixados ali por pessoas de fora da comunidade. Leandro Rodrigues Fortes, morador da aldeia desde o início da ocupação do local, explica essa situação. “As pessoas largam os animais aqui na frente pra gente cuidar”, diz, com um certo pesar na voz. Mesmo sem uma estrutura adequada, os moradores conseguem manter
a harmonia entre humanos e bichos. “A prefeitura vem uma ou duas vezes por ano pra vacinar os animais e castrar. A convivência deles com a comunidade é tranquila, nunca tivemos nenhum acidente grave”, conta.
Os animais não são apenas espectadores passivos da vida na aldeia, eles estão presentes no cotidiano. A pequena Emanuele Pedro da Costa, de apenas 10 anos, sorri ao falar de seus companheiros de quatro patas. “Gosto de brincar, de correr com eles”, diz ela, enquanto aponta para um grupo de filhotes próximos a sua casa. Emanuele parece compartilhar um segredo quando conta sobre a mãe dos filhotes. “Ela é bem braba, já mordeu umas três pessoas”, confessa.
“As pessoas largam os animais aqui na frente pra gente cuidar”
Leandro Rodrigues Fortes
Além dos cachorros, há outros animais que convivem em harmonia no espaço da aldeia. Gatos, gansos, galos e galinhas circulam livremente, compondo o cenário. Essa relação entre eles e os
moradores demonstra que ali a vida é livre, as brincadeiras são cheias de movimento e o carinho flui naturalmente. Mesmo havendo relatos da presença do Poder Público para ações de vacinação e castração desses animais, é possível ver cadelas cuidando de seus filhotes e cachorros com machucados expostos. Entretanto, ao ser questionada pela equipe de reportagem, a secretária de Proteção Animal, Thais Arend, comenta que não há registro de atividades da Prefeitura de São Leopoldo dentro da aldeia. A secretária afirma que não tinha conhecimento da necessidade da população, mas ressalta que a Prefeitura tem programas de consultas veterinárias para pets e tutores beneficiários de programas sociais. Elizandra Cardoso, outra moradora, expressa seu receio em relação ao apoio da prefeitura. “Agora vai trocar a gestão e não sei como vai ficar. Tenho medo que as coisas sigam se arrastando”, desabafa.
A incerteza quanto às políticas públicas futuras deixa a comunidade em alerta, especialmente porque o abandono de animais parece ser uma constante. A reportagem do Enfoque apurou que os serviços de vacinação e castração que vem sendo realizados na aldeia partem da atuação de protetores voluntários, alguns deles cadastrados pela Prefeitura. Um exemplo do trabalho realizado por protetores animais na aldeia é o projeto Feevale Pet, realizado por estudantes e professores da universidade de Novo Hamburgo. A professora responsável pelo projeto, Gabriela Porciuncula Costa, conta que ela e os alunos observaram a presença de pulgas e carrapatos. “Alguns animais tinham pequenas lesões de pele e quatro apresentavam estado grave de sarna. Alguns animais foram castrados por ação de veterinários locais, mas a maioria não. Havia várias fêmeas prenhas”, afirma. Além de avaliar o estado de saúde dos animais, o grupo realiza palestras para as crianças e entrega doações de vermífugos e medicamentos para pulgas e carrapatos.
Entre os latidos, a história dos cães da aldeia revela uma lição de afeto. Mesmo quando abandonados, encontram ali uma nova chance. A convivência pacífica entre os animais e os moradores, também revela a luta silenciosa de uma comunidade que, além de seus próprios desafios, estende a mão e o coração para aqueles que foram deixados para trás. n
LARISSA SCHNEIDER
LIA KIRCH
KAUANE DOS SANTOS
Em São Leopoldo, o abandono de animais é um problema de saúde pública que sobrecarrega os canis municipais e os projetos voluntários. Para denunciar maus-tratos de animais pode-se entrar em contato com a Secretaria de Proteção Animal (Sempa) pelo WhatsApp (51) 98924-7903, de segunda a sexta, das 9h às 14h.
A gestão atual da Sempa também oferece
atendimento para cães e gatos, de segunda a sexta, com agendamento prévio obrigatório pelo WhatsApp. O serviço é destinado para pessoas beneficiadas por programas sociais como Bolsa Família, Tarifa Social na conta de água ou luz, Devolve ICMS, Minha Casa Minha Vida, São Léo Mais Renda, Fies e Loas. Para ser atendido, o tutor responsável pelo animal deve apresentar cópias
dos comprovantes do programa social em que está inscrito e também de residência.
O abandono de animais é crime, de acordo com a Lei Federal nº 14.064/20, com pena de detenção de até cinco anos. Além disso, no Código de Proteção e Bem-Estar Animal do Município de São Leopoldo, o abandono de animais é considerado infração grave, punida com multa.
Os cachorros são adotados por toda a comunidade, mas abandono é crime e amplia problema de saúde pública
Pulseiras, colares e cestos não são apenas objetos. Por trás de cada palavra dita por uma pessoa indígena, e cada artesanato marcado por grafismos, existe a história preservada por muitas gerações
As famílias Kaingang carregam duas marcas, Kamé (um traço, ou râ téi) e Kairu (uma bolinha, ou râ ror ). Segundo estudos da antropóloga Juracilda Veiga, elas se opõem e se complementam – tanto que duas pessoas da mesma marca não podem formar um casal, pois
elas representam as dualidades das ervas medicinais, da culinária, do artesanato e das pinturas corporais.
A artesã Rosa Pedroso, ou Kafej (Flor, em Kaingang) confecciona cestos feitos de tiras de taquara do mato. Neles, molda a marca Kamé que herdou da família paterna. “Nosso pai nos ensina desde pequenos. Nós puxamos a marca do nosso pai”, explica. A comunidade Por Fi Ga é parental, ou seja, os filhos (independente do gênero) herdam a marca masculina.
O ancião João Carlos Kanheró, ou Kasú (Capim),
destaca a importância que a herança paternal tem para a comunidade. Ela age com um guia, que define a forma como o indivíduo vai interagir com o coletivo enquanto cidadão da aldeia. “Por causa do sinal que eu estou aqui, o sinal do meu pai, do meu primeiro vô… Eu sou marca redonda, meu pai é marca redonda, e a minha mãe é marca comprida”, explica seu João.
“Nós puxamos a marca do nosso pai”
Rosa Pedroso
A língua Kaingang também é transmitida de forma oral entre as gerações. Os pais são responsáveis por mantê-la
viva ao ensiná-la para suas crianças. Os nomes não são dados de forma aleatória, eles trazem uma forte conexão com a ancestralidade e a natureza. Idioma da família Jê , integrante do tronco Macro-Jê, as línguas Kaingang e Xokleng (falada apenas em Santa Catarina) formam o conjunto restrito das línguas e culturas Jê do Sul, ou Jê Meridionais. Como todas as línguas indígenas em território brasileiro, o Kaingang não possuía uma escrita própria, assim como também o
A descendência Kaingang se desenvolveu no Brasil à sombra das araucárias, entre São Paulo e Rio Grande do Sul.
Português, até cerca de 1200 depois de Cristo. Mas, ao contrário dos europeus, não foram os próprios Kaingang que começaram a escrever sua língua. Nos anos 60, a pesquisadora-missionária Ursula Wiesemann, do Summer Institute of Linguistics, definiu um alfabeto para esta escrita, que começou a ser ensinado aos próprios professores Kaingang para alfabetização no idioma. n
LUA SANTOS
MATEUS DIAS
JONATAS DE SOUZA
LUA SANTOS
JOÃO FUCHS
RISCOS RETOS
GRAFISMO - ARTESANATO
PONTOS
GRAFISMO - ARTESANATO
Iniciativas ajudam famílias Kaingang a não perder a cultura da língua própria escrita e falada
O Instituto Kaingang (INKA) realiza contação de histórias no idioma, que podem ser conferidas no YouTube (@institutokaingang). Aponte a câmera do celular para o QR Code ao lado de cada imagem para acessar as histórias em vídeo.
Confira lista de algumas palavras importantes na língua Kaingang e a respectiva tradução em Português. A seleção foi adaptada do Dicionário KaingangPortuguês, de Ursula Wiesemann.
EKRÃN – Plantar
ENHTUNO – Estudo
FE KÃNHVY – Alegria
FE MÁG – Forte
FE PE – Amor
GIN – Criança
GRINGÉN – Dançar
JAVE – Antepassados
JYKRE KURIJ – Justiça
JY NIGÃN – Proteger
KA – Árvore
KAFY – Vida
KANHKÃ – Família
KÃNHVÉG – Alma
MỸNH – Mãe
NHUN KE – Abraçar
NŨNE – Língua
PANH – Pai
VÃGFY – Artesanato
VE PE – Natureza
Équase heresia chamar uma fotografia de ancestral, sobretudo por ela estar cada dia mais presente em nossas vidas. Hoje, capturamos com smartphones, drones ou câmeras digitais. E fazemos muitas selfies. Porém, como optei, mesmo em tempos pós-modernos, por usar a fotografia analógica, revelada em processo químico, uso aqui o termo ancestral para recuperar de alguma forma os primórdios da fotografia.
Um dos pioneiros da invenção, Joseph Nicéphore Niépce, em meados de 1826, encontrava muitas dificuldades para captar e obter insumos para as suas imagens. Na época, o padrão analógico era o único para registrar fotografias – e hoje sinto quase a mesma dificuldade do francês que usou primeiro deste processo. A fotografia química é para os resilientes. Neste momento, sinto-me próximo do povo Kaingang, que ainda tenta manter acesa a chama de suas tradições e cultura. Daí a insistência de realizar retratos analógicos. Um retrato é um estilo de fotografia que se concentra em uma pessoa ou um grupo para tentar transmitir características e emoções. Também remonta ao começo da história da fotografia, pois “tirar” um retrato
quase é sinônimo de fazer uma fotografia. Mas o retrato é uma fotografia interessada pela pessoa humana. A aldeia Por Fi Ga é quase uma ilha isolada em um grande conglomerado urbano, no qual a comunidade está dentro, mas nem sempre inserida. Sinto-me também assim, quando uso uma câmera de 1956, e remo contra a maré da falta de manutenção dos equipamentos, da busca de filmes não mais fabricados ou pelos altos preços praticados por insumos quase totalmente importados. Ao mesmo tempo, é um grande prazer interagir com pessoas que deixam despertar sua curiosidade sobre um aparelho estranho, que não mostra de forma instantânea as imagens. Crianças acham divertido; adultos e idosos ficam saudosos de ver um aparelho que lhes traz de volta as memórias de um tempo no qual aquela prática era comum de sentir: a expectativa.
De forma esteticamente nostálgica, estão aí os retratos de amoras silvestres, estrelas, luas, macacos, beija-flores, taquaras do mato e pombinhas rolas. Retratos de nomes e pessoas Kaingang. n
LÉO CALDEIRA
“É um grande prazer interagir com pessoas que deixam despertar sua curiosidade sobre um aparelho estranho, que não mostra de forma instantânea as imagens”
AUTO-RETRATO
Leonardo Caldeira e o equipamento usado nas imagens abaixo: Rolleiflex
E
Comunidade fez arrecadação para realizar obra, mas precisa de apoio para concluir o projeto
Imagine um campo de futebol de terra batida, sem as linhas de marcação, sem bancos de reservas, e com as goleiras feitas de madeira de eucalipto. O campo acaba quando o mato no entorno não deixa mais a bola rolar. Este é o lugar preferido das crianças da aldeia Por Fi Ga, um ótimo espaço para brincar, mas não para ser espaço de esporte e lazer de uma comunidade com mais de 300 pessoas, com times de futebol feminino e masculino que costumam jogar.
Cansados de esperar por uma solução do poder público, que já prometeu um espaço mais adequado e não cumpriu, o jeito foi dado pela comunidade. Organizados pelo cacique Elton Nascimento, os moradores fizeram uma arrecadação para conseguirem aterrar as áreas com pedras nos cantos do campinho. “O que me deu força para realizar esta iniciativa foram as crianças mais novas, quando elas
disseram que o lugar preferido do território é o campo. Isto me pegou na alma, pois eu sei que o espaço está ruim”, lembra o cacique.
A arrecadação resultou em R$1.200 reais, mas faltaram R$120 para pagar as seis horas de serviços de um caminhão e uma retroescavadeira. “A ideia era aterrar os lugares do campinho que tem pedra, a gente imaginou que daria para fazer bastante coisas, mas o tempo e o valor foi o suficiente só para empurrar a terra”, conta Elton.
A aldeia possui equipes de futebol feminina e masculina, que já participaram de reuniões com a Secretaria de Esporte e Lazer de São Leopoldo (Semel), mas até o momento, nenhum dos projetos propostos saiu do papel. “Esse pedido não é de agora, isto já vem de muito tempo atrás, já era para terem feito o campo”, fala Elton, que ainda relembra do dia que teve a oportunidade de conversar diretamente com a Semel. “Vai lá! Eu vou te ligar quando estiver saindo daqui”, teria dito o secretário de Esporte e Lazer da época, mas o cacique afirma que nunca teve retorno. “A gente saiu com esperança, que
ficou lá em cima, e até hoje não vieram. A partir do momento que você faz a tentativa e a pessoa te dá a palavra e não cumpre, a gente fica meio ressabiado”, desabafa o líder da comunidade.
Sem recursos financeiros do poder público, a arrecadação para melhorar o campo foi
Cacique Elton mostra local onde a terra foi revolvida no entorno do campo. As pedras continuam a atrapalhar o uso do único espaço esportivo da aldeia
uma tentativa de solucionar os problemas da estrutura de forma independente. “Eu fico indignado porque faz anos que a gente luta por isso. Nós estamos nos virando. Infelizmente, somos esquecidos na parte de esporte e lazer”, lamenta o cacique. Vaneli Pedro, moradora da reserva e jogadora da equipe feminina do time da aldeia, conta que antigamente havia iluminação no campinho, e isso já fazia uma grande diferença. As dificuldades pela quais passam o time feminino foram contadas na primeira edição do Enfoque Por Fi Ga
“A gente sabe que tem secretarias responsáveis que poderiam ter equipado melhor o campo. A gente fica triste com essa situação. Eu pensei em pôr a mão ali e quem sabe alguém vem olhar e dar atenção para o projeto que queremos fazer com a gurizadinha”, deseja o cacique. O Enfoque entrou em contato com o atual secretário de Esporte e Lazer de São Leopoldo, Éder de Oliveira Krakeker, mas não foram encaminhadas respostas até o fechamento desta edição. n
“Quem sabe alguém vem olhar e dar atenção para o projeto que queremos fazer com a gurizadinha”
Elton Nascimento
A comunidade usa tanques antigos e múltiplos varais para secagem de roupas
Moradores já receberam máquinas de lavar, mas buscam apoio para construir espaço apropriado
Uma nova iniciativa promete trazer melhorias significativas para as 85 famílias que vivem na Por Fi Ga: a construção de uma lavanderia de uso comum. A ideia visa facilitar o acesso a cuidados básicos de higiene e também aliviar a rotina doméstica dos moradores, sobretudo, das mulheres. Em 22 de agosto deste ano, a comunidade recebeu cinco máquinas de lavar com capacidade para 22 quilos, uma doação do Projeto SOS RS, que conta com recursos coordenados pelo estado, em parceria com a ONG Pachamama, com sede em Pelotas. A iniciativa foi realizada como parte do esforço em apoio às populações afetadas pelas enchentes de maio de 2024 no Rio Grande do Sul. “Realizamos também o transporte das máquinas, pois os moradores da aldeia não possuíam recursos.
Aproveitamos para levar medicamentos, roupas e alimentos. A necessidade estava grande naquele momento”, conta Rosane Simão, representante da Eletrolux, uma das empresas que atuaram na captação de recursos e oferta de doações para o estado. As máquinas de lavar representam mais do que simples equipamentos para a aldeia: são oportunidades de promover bem-estar e dignidade entre moradores, que enfrentam desafios cotidianos. Sandra Rodrigues, 34
“A
gente está atrás de parceiros que possam fazer uma doação para conseguirmos continuar essa obra”
Sueli Khey Tomás
anos, destaca a importância da futura lavanderia: “Algumas pessoas têm em casa a sua máquina, mas a ideia da lavanderia comunitária é para que todos possam usar”, diz. Além do acesso mais igualitário e da promoção de bem-estar, estudos apontam que as lavanderias compartilhadas reduzem consideravelmente o gasto de água em até 65%, diminuindo também o trabalho doméstico de mulheres e sendo espaços de interação social com capacidade de geração de renda.
Apesar do entusiasmo gerado pelas doações, o projeto encontra-se atualmente paralisado. As máquinas de lavar, que poderiam já estar em uso, estão armazenadas no centro comunitário e em uma peça improvisada como sala de aula, aguardando uma estrutura própria para abrigá-las. A construção da lavanderia ainda não começou, pois a comunidade enfrenta dificuldades para adquirir os materiais necessários para erguer o local de forma adequada e também instalar os
equipamentos. Segundo Sueli Khey Tomás, uma das líderes da iniciativa, a comunidade segue em busca de apoio. “A gente está ainda atrás de parceiros que possam contribuir com a nossa luta, com a nossa movimentação, que possam fazer uma doação para conseguirmos continuar essa obra”, comenta.
Enquanto isso, muitas pessoas da comunidade seguem utilizando antigos tanques de cimento para fazer a higiene de suas roupas. Muitos reservatórios não possuem encanamento e acabam servindo como espaços onde a água da chuva pode ficar parada, o que pode ser preocupante com a chegada do verão e o aumento da população de mosquitos. Tanques sem manutenção podem ser focos para o desenvolvimento dos insetos que transmitem dengue. Para evitar o mosquito, é importante manter os tanques vedados e limpos com água sanitária. n
MATEUS DIAS
LUCAS PEDRO DOS SANTOS
Práticas evangélicas e indígenas coexistem no mesmo território
Tecnologia, esportes, idioma, saúde e tradições: há tempos a coexistência dos povos originários com as pessoas brancas vem impactando os hábitos e costumes dos indígenas. Com a espiritualidade, não seria diferente, e a aldeia Por Fi Ga é um exemplo disso. Atualmente, dentro da reserva, existem três igrejas diferentes, todas evangélicas e trazidas pelos brancos com o passar do tempo. Os pastores atuais, no entanto, são indígenas: dois homens e uma mulher. À sua maneira, cada um traz o evangelho para dentro da aldeia, por meio de cultos, orações e louvores.
A primeira figura a ser citada nas conversas com os moradores é a de Alécio de Oliveira. Aos 54 anos, é o pastor da Assembleia de Deus, que realiza cultos semanais para seus fiéis. Desde 2007 na Por Fi Ga, Alécio passou a ser evangélico em 2016. “Antes eu era
cacique, então ficava afastado desse universo por conta do meu cargo. A partir do momento em que saí da função pude conhecer mais o evangelho”, explica.
Há quem diga que a cultura indígena não deveria se misturar com a religião dos brancos. Entretanto, Alécio não poderia discordar mais. “São [culturas] inclusive muito parecidas na forma de louvar um único Deus. Muitos dizem que os evangélicos estão terminando com o nosso povo, mas pra mim isso não é verdade. Acho que as duas podem existir no mesmo ambiente. A gente luta pela cultura indígena na Por Fi Ga, sobretudo em relação à comida e a língua. Não é o evangelho que extermina a cultura, ele ensina a viver no caminho certo de Deus”, opina o pastor, que desde 2017 está à frente da Assembleia de Deus.
Garfej, que significa flor de milho, é o nome Kaingang de Alécio, que faz questão de ministrar seus cultos misturando o português com seu idioma. As cerimônias incluem uma oração coletiva inicial, um
momento de louvor, os cânticos e, por fim, a mensagem do pastor, que Alécio entende ser parecida com a homilia dos católicos.
Segundo o pastor, para quem vem de fora, pode parecer estranho ver igrejas dentro das aldeias, mas é algo bastante comum atualmente. “As comunidades de indígenas que são maiores já possuem até mesmo prédios cristãos dentro de seus territórios”, e por isso Alécio destaca a vontade de ampliar seu trabalho para trazer mais fiéis para sua igreja.
Já o pastor Moisés da Silva vê a relação entre o evangelho e os costumes indígenas de outra maneira. Atuando desde o ano passado na Igreja Pentecostal Jardim de Deus, acredita que por estar na função de liderança
religiosa não pode mais praticar os costumes Kaingang. “Continuo aconselhando meus filhos a preservarem e praticarem sua cultura. Jamais irei obrigar nenhum deles a seguir o caminho de Deus, mas espero que não sigam as escolhas que eu fiz na juventude e que mantenham seus costumes para manter viva a história do nosso povo”, explica o pastor de 48 anos.
“São culturas muito parecidas na forma de louvar um único Deus. Muitos dizem que os evangélicos estão terminando com o nosso povo, mas pra mim isso não é verdade”
Alécio de Oliveira
Ele vê a grande necessidade de engajamento da juventude indígena junto a sua cultura como forma de sobrevivência. “Os novos líderes não dão tanta importância a essa questão cultural. Com as mortes dos pajés e sem possíveis substitutos, os ensinamentos relacionados à medicina, religião, linguagem e práticas artesanais perderam espaço”, afirma Moisés, que
acredita que as igrejas ganharam força nas aldeias justamente para ocupar esse vazio deixado pela perda das figuras dos pajés.
Sua relação com a religião começou no século passado. Seu primeiro contato com o evangelho foi em 1998. À época, Moisés conta que qualquer manifestação que não fosse indígena era proibida por ordem dos pajés que lideravam a aldeia. Entretanto, um pastor indígena entrou na aldeia, e Moisés começou a visitá-lo com frequência. Ali ouviu suas primeiras lições de fé. “Eu bebia e fumava bastante naquele período. Minha vida era toda bagunçada e o pastor me ajudou a largar os vícios que eu possuía”, aponta o homem que não lembra seu nome indígena pois foi adotado no primeiro ano de vida.
Hoje, o pastor ministra cultos duas vezes na semana, com a presença de dez fiéis que ficam em torno de duas horas ouvindo as pregações, orando e testemunhando na igreja que fica a alguns metros da casa de Moisés. Sem receber nada pelo
trabalho, relata que faz tudo por conta de sua fé.
A terceira liderança evangélica da Por Fi Ga é Maria de Fátima, 48 anos, da Igreja Só Senhor é Deus e Universal. Trata-se do único templo dentro da reserva com uma pastora. “Sempre segui o caminho de Deus, para mim sempre foi o certo”, orgulha-se.
Apesar de já ter sido criada em uma família evangélica, sem a prática da cultura e religião Kaingang, Maria segue incorporando aspectos de sua identidade indígena, como a língua, as comidas típicas e os artesanatos. A vivência de sua fé nunca foi um empecilho para continuar na luta dos povos originários. “Como diz a Bíblia, para mim tudo é permitido, a pessoa apenas tem que se sentir à vontade fazendo aquilo. Ninguém é obrigado”, explica.
A trajetória de Férr – seu nome Kaingang que significa asa – até a aldeia Por Fi Ga começou há muitos anos. Nascida em Planalto, no norte do estado, teve o primeiro contato com uma aldeia na reserva indígena Nonoai, para onde mudou-se após conhecer o marido. Aos poucos, sua família começou a deslocar-se para São Leopoldo. Primeiro, foi sua sogra, que veio vender artesanatos na cidade. Em seguida, os irmãos da sogra. Depois, Maria e o marido vieram em definitivo para a Por Fi Ga.
O fato de ter sido escolhida para liderar a igreja reflete em uma transformação dentro de seu círculo religioso. Mesmo em um ambiente predominantemente masculino, o respeito que a comunidade tem por Férr prevaleceu. Numa época em que os homens não frequentavam mais a igreja, ela ganhou a bênção do antigo pastor, Nilson José Castilho. “Ele vinha de muito longe, não conseguiria manter os cultos”, comentou. Para este problema, Nilson tinha a solução. Na época líder do grupo de oração, Maria foi orientada a continuar “com a obra de Deus”, até surgir alguém capaz de dar continuidade. Ninguém se mostrou mais capaz do que ela própria, que até hoje segue como pastora, realizando cultos para homens e mulheres.
Ainda assim, algumas pessoas de outras igrejas não enxergam com bons olhos a existência de uma pastora mulher. Conforme Maria explica, alguns ministérios não aceitam que o gênero feminino ocupe uma posição de liderança religiosa. “Fora do cristianismo a mulher sofre preconceito, na Igreja também”, pontua. Mas, para a sua congregação, ela ensina que se você for dedicado à Deus,
atencioso com as pessoas, atendê-las corretamente e ser respeitoso, honesto e sincero, você já está apto a ser pastor, independente do seu gênero.
Ainda assim, opina: “Por mais difícil que esteja, ela continua. O homem, quando está difícil, já desiste. O homem não tem a mesma fé da mulher”.
Para lidar com o preconceito, a pastora comenta que o aprendizado vem de fora da aldeia. Quando ainda morava na Vila dos Tocos [local onde antes ficava a Por Fi Ga], Maria muitas vezes sofreu discriminação pelos brancos que frequentavam a mesma igreja. “A gente percebia que olhavam a gente dos pés à
Pastor Alécio (de verde) defende que a cultura indígena e a evangélica caminhem lado a lado. Por ser mulher e indígena, pastora Maria de Fátima teve que vencer o preconceito duas vezes. Pastor Moisés diz que foi salvo pelo evangelho, que o tirou de um caminho sinuoso e o colocou junto à Deus
cabeça, e isso machuca.” Este foi mais um dos motivos que levaram Maria e sua família a buscarem o acolhimento na aldeia do bairro Feitoria. Apesar de tudo o que passou e ouviu, Férr ressalta que não guarda os comentários maldosos das pessoas. Pode até ouvi-los, mas não deixa no coração. “A gente
é ofendido e fica com mágoa, mas aquela pessoa pode ser até mais machucada do que nós. Deus me ensinou a sempre perdoar”, orienta. n
Assim como os vivos pigmentos que compõem as pinturas tradicionais e os adornos Kaingang, as pessoas da reserva indígena Por Fi Ga são como pinceladas de diferentes tonalidades, todas essenciais para formar uma obra completa. Cada cor representa uma história, uma contribuição única para o coletivo. Para o plantio, o artesanato, a construção ou as atividades culturais, cada pessoa traz suas habilidades únicas. Mas todas elas juntas formam uma paleta de tons harmônica, bela e forte, que só emerge quando cada um se dedica ao propósito do bem comum. n
BIANCA JUCHEM