Enfoque Santa Marta 12

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ENFOQUE SANTA MARTA

SÃO LEOPOLDO / RS NOVEMBRO / DEZEMBRO DE 2018

EDIÇÃO

12

IURY RAMOS

FIM DE JORNADA LAURA ROLIM

GABRIELA DA SILVA

ROBERTA ALANO

O ENFOQUE SE DESPEDE RECONTANDO HISTÓRIAS E INDAGANDO SOBRE O FUTURO DA VILA PÁGINAS 9 a 17

NOVAS PRÁTICAS

A tecnologia faz parte da educação na Vila. Página 3

NO LAR, TRABALHO DURO Quem não vai ao serviço, mas também não tem folga. Página 5

SONHOS DAS CRIANÇAS Garotada ilustra profissões e desejos para o futuro. Página 18


2. Editorial

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Despedida

uando encerramos algum ciclo, levamos com a gente as marcas que conquistamos ao longo das jornadas. Após 12 edições do Enfoque Santa Marta, chega a vez de nos despedirmos. Essa despedida, entretanto, nos deixa com a sensação de termos construído uma bela relação de trocas. Ao mesmo tempo em que desempenhamos o desafiador papel de dar voz para pessoas que nunca haviam compartilhado suas

memórias, também tivemos a oportunidade de conhecer histórias inspiradoras. Pelas ruas percorridas, nos deparamos com uma vila cercada de desejos e anseios. Ao longo dos últimos dois anos, pudemos escutar atentamente os mais variados relatos. E, mais do que ouvir, pudemos aprender com os moradores. Fomos sempre recebidos com simplicidade, disponibilidade e, claro, com muitas cuias de chimarrão. Por muitos sábados, a San-

ta Marta abriu as portas de suas casas para nos ensinar sobre coragem, jogo de cintura e resistência. Nesta última edição, voltamos no tempo. Recontamos histórias, reencontramos pessoas e vimos através da lente da retrospectiva que as lutas continuam. Lutas por saúde, educação, infraestrutura, moradia, trabalho e uma vida mais digna. Entretanto, nem só de batalhas vive a Vila. Nessa retrospectiva também acompanhamos histórias que

se modificaram, conquistas que foram alcançadas e uma comunidade que cresce junto com seus moradores. Uma das grandes características da Santa Marta é a união dos moradores. União para vencer os desafios do dia a dia, união para resolver os problemas locais, união para manter de pé uma Associação de Moradores atuante, união para incentivar o desenvolvimento econômico e social. A Vila carrega consigo di-

versas marcas. Consequências de um abandono constante por parte do Poder Público. Mas, apesar de tudo, os moradores não fogem à luta. Acordar cedo todos os dias em busca de melhores condições de vida já virou rotina para quem tem como essência a determinação. Ao seu modo, a Vila resiste e, com sua força, ensina. Obrigado, Santa Marta! EDUARDA BITENCOURT MARTINA BELOTTO DANIELA GONZATTO

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Santa Marta é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Santa Marta, em São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares e três edições por semestre, é distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo. Edelberto Behs (Coordenador do Curso de Jornalismo): (51) 3591.1122, ramal 1354 / edelbertob@unisinos.br Pedro Luiz S. Osório (Professor responsável): posorio@unisinos.br

EDIÇÃO E REPORTAGEM — Disciplina: Jornalismo Cidadão. Orientação: Pedro Luiz S. Osório. Edição de textos: Arthur Menezes de Jesus, Caroline Santos dos Santos Tentardini, Eduarda Bitencourt de Oliveira, Eduarda Guilhermano Rocha, Martina Belotto Michaelsen, Thanise Melo da Silva e William Gonçalves Lima Martins. Edição de fotos: Iara Jaqueline Baldissera. Reportagem: Arthur Menezes de Jesus, Artur Cardoso Colombo, Bibiana Faleiro, Caroline Santos dos Santos Tentardini, Eduarda Bitencourt de Oliveira, Eduarda Guilhermano Rocha, Estephani Luana Richter Gehrke, Franciele Arnold Pereira, Gabriel Appelt Nunes, Iara Jaqueline Baldissera, Laura Hahner Nienow, Lucas Girardi Ott, Marcelo Janssen Neri da Silva, Mariana Artioli de Moraes, Martina Belotto Michaelsen, Natan Magri Cauduro, Nicole Thaís Roth, Paola Pereira Guimarães, Thanise Melo da Silva, Vanessa Dias da Fontoura, Victória Rambo de Lima, Vitor dos Santos Brandão da Silva e William Gonçalves Lima Martins. FOTOGRAFIA — Disciplina: Fotojornalismo. Orientação: Flávio Dutra. Fotos: Aline Grubert, Amanda Krohn, Ângelo Santos, Arthur Eduardo, Bruno Flores, Daniela Gonzatto, Douglas Glier Schutz, Gabriela da Silva, Gustavo Machado, Henrique Abrahao, Iury Ramos, José Hameyer, Juliane Kerschner, Laura Rolim, Leila Donhauser, Lohana Souza, Luciano Pacheco, Mateus Friedrich, Milla Lima, Roberta Alano, Suélen Pereira, Suélen Hammes Rodrigues, Tainara Pietrobelli, Thais Ramirez e Vanessa Wagner. ARTE — Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia. IMPRESSÃO — Realização: Gráfica UMA / Grupo RBS. Tiragem: 1.000 exemplares.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 750. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: Pedro Gilberto Gomes. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Alsones Balestrin. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente dos Cursos de Graduação: Paula Campagnolo. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.


Tecnologia .3

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Educação e novas práticas tecnológicas A Escola Santa Marta inova e oferece a seus alunos aulas de Iniciação Científica e Gamificação

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tecnologia digital chegou para ficar. Hoje ela está presente na vida de muitas pessoas de diversas formas. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil encerrou o ano de 2016 com 116 milhões de pessoas conectadas à internet, ou seja, 64,7% da população com idade acima dos 10 anos. Ao perceber essa atual ambiência tecnológica, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Marta aposta em iniciativas que envolvam os alunos nestas novas práticas. São oferecidas aos estudantes do colégio aulas de Iniciação Científica e Gamificação. Marcos Vinícius da Rosa, 13 anos, está cursando o 6º ano do ensino fundamental na EMEF Santa Marta. Ele conta que não tem computador em casa e não consegue usar seu celular, pois o carregador estragou. E que além de jogar e assistir vídeos no Youtube, também estuda. “Agora eu estou usando o telefone da minha mãe. Então, quando a professora pede para fazer algum trabalho ou tenho que responder alguma pergunta, entro no Google e pesquiso”, diz o estudante. Já para Nicolas Caique Jacoby, 12 anos, que também está no 6° ano do ensino fundamental da Escola Santa Marta, as brincadeiras na rua são mais interessantes, pois não gosta de navegar na internet. Ele conta que tem computador em casa, mas não usa. “Eu não uso computador em casa, mas na escola a professora pede para a gente fazer pesquisas. Às vezes nas aulas de Ciências também usamos a internet”, comenta o aluno.

EDUCAÇÃO CIENTÍFICA

A EMEF Santa Marta tem em sua grade de ensino a matéria de Iniciação Científica, onde os alunos aprendem os métodos básicos de uma pesquisa científica. Segundo Marcos, essa é a aula em que eles mais

Na aula de Iniciação Científica, laboratórios de informática são utilizados para pesquisa

para a melhor utilização dos equipamentos fotográficos. A ideia é que esses alunos auxiliem aos demais, para que tenham bons resultados nos trabalhos de aula. Sandra comenta também sobre o uso de celulares em sala de aula. Segundo ela, a utilização de smartphone na aula de Iniciação Científica é liberada para fins pedagógicos. “Se essa ferramenta pode contribuir para a realização da pesquisa, ela será utilizada”. A professora ainda fala sobre a importância da tecnologia nos dias atuais. “Eu acho fundamental que saibamos nos apropriar dessas ferramentas. O mundo hoje está muito tecnológico, então temos que estar muito atualizados em relação a isso. A tecnologia é uma forma de ultrapassarmos os muros virtualmente”, diz Sandra.

GAMIFICAÇÃO NA ESCOLA

A professora Sandra Grohe explica tarefa de aula para alunos da Santa Marta utilizam os computadores e as ferramentas de busca. “A gente usa o computador nessa matéria para pesquisar os temas que o professor nos passa. Depois disso a gente começa a montar a s h i p ót e s e s ”, co m e n t a o aluno do 6º ano. A aula de Iniciação Científica é ofertada para as turmas do 5º ao 9º ano do ensino fundamental. Os alunos recebem uma formação inicial em metodologia, com os passos de uma pesquisa científica. De acordo com Sandra Grohe, profes-

sora da EMEF Santa Marta, cada estudante tem acesso a uma conta no Google. “Eles criam uma conta no Google, onde eles têm acesso a todas as ferramentas onli-

“Eu percebo que eles estão mais presentes e com mais vontade de participar da escola” João Paladini Professor

ne, como o docs, ferramentas de apresentação e até a criação de formulários, para fazerem questionários”, conta a professora. O Governo Federal disponibilizou para a escola uma internet de dois megas. Além disso, o colégio conta com um bom aparato tecnológico: três projetores, oito tablets, 29 computadores, seis notebooks e três máquinas fotográficas, uma delas semi-profissional. A Prefeitura de São Leopoldo proporcionou a um grupo de alunos do colégio uma capacitação

Além de Iniciação científica, a EMEF Santa Marta oferece aulas de Gamificação. É uma metodologia de ensino que traz atividades lúdicas, se inspirando nos mecanismos de jogos digitais. “Nós criamos jogos reais, onde para eles pularem para a próxima fase devem, por exemplo, resolver uma equação matemática”, comenta João Paladini, que tem 32 anos e é professor de Matemática da escola. Para o ano que vem, a ideia é transformar estas atividades lúdicas, realizadas em sala de aula, em virtuais. Segundo o professor, é possível dar vida a essas histórias dentro do computador. “Tudo que eles estão fazendo hoje na vida real, nós vamos fazer nos computadores da escola. Inclusive já construímos personagens e reproduzimos algumas partes da comunidade”, conta o professor. Segundo João, essa nova maneira de ensinar já está produzindo resultados, como a diminuição da evasão escolar nas suas aulas. “Eu percebo que eles estão mais presentes e com mais vontade de participar da escola”. diz João Paladini. WILLIAM MARTINS ROBERTA ALANO


4. Educação

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Ler para se informar Moradores indicam que o hábito da leitura predomina para jornais e sites de notícias

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omo disse o escritor português José Saramago, “a leitura é, provavelmente, uma outra maneira de estar em um lugar”. Ler por prazer para se informar ou, até mesmo, por obrigação é algo que requer atenção e tempo. Como a frase diz, é provável que o leitor entre no mundo da leitura e esqueça tudo que há em volta. Para alguns moradores da Vila Santa Marta, o hábito de ler é mais voltado para jornais e sites de notícias de seus interesses. Já a leitura de livros por prazer e vontade própria, não é um costume. A falta de interesse pela leitura é a razão mais comentada entre os entrevistados. Para o funcionário público Aurélio de Oliveira, 44, ler de se interessar do começo ao fim é bem difícil. “Também porque tenho problema de visão, embaralha tudo quando leio. Por isso, comecei a usar óculos”, relata. Morador da Santa Marta há 27 anos, o operário estudou até a 5ª

Costume de ler é mais voltado para jornais e sites de notícias de interesse dos moradores série do ensino fundamental. “Li livros no colégio por obrigação, era muito arteiro. Depois de adulto li só os da igreja”, explica. Vilson José Zoia, 64, lê jornais, mas é seletivo na hora de escolher os temas de sua leitura. “Leio no jornal assuntos do meu interesse,

que condizem com a minha rotina”, conta. Zé trabalha na empresa de reciclagem da Vila e estudou até o 5º ano do ensino fundamental. Ele conta que leu livros na escola, mas depois disso nunca mais se interessou. “Mas a televisão e o rádio estão sempre ligados, isso sim eu

uso bastante”, finaliza. Vindo de Parobé e morador da Vila há cinco anos, Fernando da Silva, 32, é vendedor de morangos e conta que lê pouco, pois a vida é corrida. “Não dá para sentar com calma e ler. Mas eu sei que a leitura tira o foco da correria da vida”, considera.

Fernando estudou até a 8ª série do ensino fundamental e informa que lê com frequência o jornal NH de manhã, um hábito rotineiro. Já Éverton Mello, 29, motorista e morador da Vila há 12 anos, não lê por falta de interesse. Quando lê, utiliza a internet, principalmente matérias e notícias sobre esporte. “Nunca fui dedicado a ler. Com o tempo livre, isso é a última coisa que passa na cabeça”, diz. Éverton conta que estudou até a 8ª série do ensino fundamental e na escola leu porque foi solicitada a leitura de alguns livros. Estar ciente do que acontece na região e no mundo é fundamental, e a leitura, seja onde for, é o caminho certo. Assim como livros, que nos fazem viajar para outras realidades, os jornais e, principalmente, a internet, também são capazes de nos fazer enxergar outras vivências. Por isso, a importância da leitura ser um hábito rotineiro. Palavras são armas poderosas para o conhecimento. MARIANA ARTIOLI BRUNO FLORES

Poucos jovens fizeram as provas do ENEM Nos dias 4 e 11 de novembro aconteceram as provas do Exame Nacional do Ensino Médio, o ENEM. Participaram em todo o Brasil, milhares de estudantes que estão concluindo o ensino médio, sonhando com a vida acadêmica. Mesmo com tantos adolescentes, é difícil encontrar na Santa Marta alguém que fez as provas. A maioria precisa parar de estudar para ajudar com o sustento do lar. Samuel Pavão Pereira, 15, por exemplo, está na sétima série e sonha em fazer uma faculdade de engenharia. Mas a realização é uma incerteza, o menino acredita que logo será obrigado a parar de estudar para trabalhar.

FOCO NO FUTURO

Mesmo com tantos adolescentes na Vila que precisam largar os estudos, ainda é possível encontrar aqueles que buscam um futuro melhor em uma sala de aula. Gabriel da Rosa Oliveira, 19, é um desses. O menino que precisa se deslocar a outro bairro para poder estudar, se preparou para prestar o ENEM. Uma de suas ferramentas de estudo são as videoaulas no youtube. Focado nos números, Gabriel quer estudar Enge-

Gabriel se desloca até outro bairro para poder estudar

nharia Mecânica. Para ele tanto faz em qual universidade passar, o importante é conseguir alguma bolsa de estudos. “Não vou ter condições de pagar a faculdade, é uma coisa muito cara”, afirma. Fazendo o último ano do ensino médio à noite na Escola Estadual Emílio Sander, durante o dia Gabriel ainda cursa mecânica de usinagem no Senai. Lá, recebe um auxílio para continuar estudando. Ele reconhece que o fato de poder continuar frequentando a escola é “um privilégio para poucos”, e isso só é possível graças ao apoio dos pais. A mãe, Sônia Mara da Rosa, 37, sente muito orgulho ao ver como o filho se esforça para realizar seus sonhos. “Ele até se afastou bastante do amigos de infância, porque seguiram outros caminhos”, observa. Nicolas Birch Marques, 20, precisou trancar duas vezes o colégio. A primeira vez foi quando tirou a habilitação de motorista, e a segunda, devido a um acidente que o deixou com a perna engessada. Parou no segundo ano do ensino médio e com ajuda de seu patrão, atualmente faz curso de eletricista instalador no Senai. Ele trabalha com

refrigeração industrial e tem como objetivo se especializar ainda mais no setor de elétrica. “É uma área que eu gosto”, comenta. Por isso pretende concluir os estudos no ano que vem e depois começar um curso de eletrotécnica.

O que é o ENEM O Enem é um Exame Nacional com o objetivo avaliar o desempenho de estudantes que estejam finalizando o ensino médio no Brasil, servindo também como porta de acesso ao ensino superior. Quem faz as provas, poderá ingressar nas universidades públicas através do Sisu, e nas universidades privadas, através dos programas ProUni e Fies. O primeiro dia de provas aconteceu no dia 4 de novembro, aplicando questões de linguagens, ciências humanas e a redação. Já no dia 11 de novembro, foram as provas de ciências da natureza e matemáticas. O resultado do gabarito saiu no dia 14 de novembro, já o das provas sairá em janeiro, mas sem data prevista ainda. ESTEPHANI RICHTER ÂNGELO SANTOS


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Cotidiano .5

O trabalho delas, em casa Na Vila, as donas de casa cuidam da limpeza da casa, das compras do mercado e têm tempo para ganhar uma graninha extra

P

ara quem observa de longe, ter como ofício a dedicação ao lar pode parecer um trabalho leve. Porém, é justamente o contrário – ser uma dona de casa significa trabalhar do momento em que levanta até a hora de dormir. E essa rotina de tarefas já garantiu a essas trabalhadoras seus direitos, assegurados por lei. Donas de casa podem se aposentar, basta comprovar ter entre 5 e 15 anos de recolhimento do INSS e ter mais de 60 anos de idade. Assim, elas recebem o benefício de um salário mínimo. Para Maria Helena Saraiva, de 73 anos, sua vida na Santa Marta é satisfatória. Ela cuida da sua casa, onde mora há 20 anos. “Tenho que agradecer a Deus por conseguir fazer tudo sozinha, limpar a casa, ir ao mercado. Tenho minha independência”. Sua filha, Fátima Aparecida Saraiva, de 52 anos, combina as tarefas com o serviço terceirizado. Ela refila palmilhas para uma empresa de São Leopoldo. Outra dona de casa que tem uma fonte de renda é Ilma da Silva Santos, de 73 anos, que é uma artesã. Ela faz crochê e outras peças de artesanato, que vende no seu próprio lar, onde mora com o marido. Fátima realiza todas as tarefas pertinentes ao cuidado do lar. Tira o pó, varre, lava louças e roupas - e também concilia elas ao trabalho que realiza de casa. Ilma é mãe de quatro filhos, um deles falecido. Ela aprendeu a fazer crochê sozinha e diz que não para nunca: “De manhã costuro e tenho que fazer o almoço. Só sento na hora de comer e logo tenho que lavar a louça. De tarde, faço crochê. Descansar, mesmo, só na hora de dormir”. Dona Ilma, como Maria Helena e Fátima, acorda cedo: já está de pé às seis horas da manhã.

“Tenho que agradecer a Deus por conseguir fazer tudo sozinha, limpar a casa, ir ao mercado e ver as amigas. Tenho minha independência” Maria Helena Saraiva Dona de casa

Quando o assunto é mercado e contas a pagar, são Maria Helena e Fátima que realizam esse serviço. Atualmente, Fátima tem apenas a companhia do marido em casa. A mãe de Fátima mora sozinha, os quatro filhos já estão “criados”, como ela diz, e seu companheiro já faleceu. Por sua vez, Fátima também teve quatro filhos, todos morando fora de casa. Dona Ilma tem ajuda do marido na hora de ir ao mercado. As compras maiores são feitas por ele, que vai de carro e consegue carregar mais peso. A compra de pães para família e coisas menores, fica para a artesã. Para Fátima e Ilma, ter uma fonte de renda que lhes permite trabalhar em casa é algo positivo. Antes, Fátima trabalhava fora e, ao chegar do trabalho, tinha todo o serviço do lar para realizar. Agora, ela consegue encaixar o serviço terceirizado com os afazeres do lar. Já Dona Ilma recebe seus clientes em casa e faz, com prazer, o crochê. “Da costura não gosto muito, mas o crochê é bom, sempre faço”. Além disso, ela também tem ajuda da filha, que faz patchwork em panos de prato. Moradora da Vila há 30 anos, considera que a Santa Marta evoluiu muito. Para ela, a Vila está mais segura. A satisfação de morar lá é compartilhada por Maria Helena e Fátima.A única observação é a respeito do transporte, já que a Santa Marta fica um pouco longe do Centro.“Nossos ônibus vêm em intervalos muito longos”, comenta Maria Helena.

Dentro da rotina de Maria Helena, sobra um tempinho para atividades de lazer

LAZER E DESCANSO

Mas nem tudo é trabalho na vida das donas de casa. Toda terça, quinta, sexta-feira e aos domingos, Maria Helena e Fátima vão à igreja - ambas são evangélicas. Mãe e filha participam do coral e dos eventos religiosos. Dona Maria Helena, inclusive, costuma se encarregar da alimentação de quem participa das festividades. Como diz Fátima, “nossos passeios são para Deus”. Maria Helena,apesar de sentir “algumas dores”, como ela diz, é muito ativa e não deixa de tirar um tempo para si. Começa o dia levantando cedo e indo caminhar.“Depois, vou visitar minhas amigas e, quando posso, venho aqui na Fátima tomar um chimarrão”. Para ela, é fundamental ter um tempo de descanso e lazer. “Se nem as máquinas, que são máquinas, aguentam trabalhar o tempo todo, imagina a gente. Precisamos de um tempo para nós”, comenta. NICOLE ROTH GABRIELA DA SILVA

Além das atividades domésticas, Fátima trabalha em casa para conseguir um dinheiro extra


6. Saúde

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Mesmo administrando uma mercearia onde diariamente vende álcool, o comerciante Adão Eloir Reis afirma não sentir mais vontade de consumir a bedida

A luta contra os vícios A vitória conquistada por moradores da Vila que, por anos, estiveram presos ao alcoolismo e ao tabagismo

Á

lcool e tabaco são drogas lícitas, mas, diariamente, destroem vidas. Segundo a última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada em 2013 pelo Instituto Nacional Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 13,7% dos brasileiros se classificam como alcoólatras, e 12,7% são fumantes. Vícios presentes na Vila Santa Marta. Mas se destacam as histórias daqueles que venceram a batalha contra esses males, ou ainda estão na luta. Uma dessas histórias é a do comerciante Adão Eloir Reis, 56. Ele viveu cerca de 25 anos de sua vida dependente. Começou ainda na adolescência, consumindo os restos do açúcar deixado nos copos pelo pai alcoólatra. Conforme foi crescendo e “criando asas”, o gosto pela bebida aumentava. Adão relata que perdeu muitas coisas por causa do álcool,

mas antes de perder a família, resolveu, por conta própria, abandonar esse mal. São aproximadamente dez anos sem colocar uma gota de trago na boca. Ele não teve ajuda de ninguém no processo de cura. Nem a esposa, Terezinha Lemes, 51, acreditava que ele conseguiria. Certa vez, bebeu demais, deixou a ‘bodega’ sozinha e não sobrou nenhuma mercadoria. Nesse dia, avisou Terezinha: “Oh! mulher, só tu vai saber, nunca mais vou botar bebida de álcool nenhuma na minha boca”, relembra. Antes, bebia três litros de cachaça por dia, mas, desde o dia em que de-

Cristina superou o álcool, mas ainda está na luta contra o tabagismo. O tabaco está em sua vida desde os 15 anos. Para ela, deixar o cigarro é muito mais difícil

cidiu se abster, não ingeriu sequer cerveja sem álcool. Apesar de ter vencido o vício, o álcool deixou danos em sua vida. Ele pensa no tempo a mais que teria para viver, se não tivesse se perdido. Em seu tempo de alcoólatra, entrou em uma briga e levou uma facada no peito. “Me meti em uma encrenca que nem era minha”, relata. Ficou apenas a cicatriz de uma época sombria. Terezinha e a filha, Sabrina Lemes, 16, contam que, apesar das brigas na rua, dentro de casa era diferente, nunca foi violento com elas. Dono de uma mercearia, Adão sempre aconselha clientes e amigos a largarem a bebida. Lembra de apenas uma vez onde quase recaiu. Após se envolver em uma briga, no momento de raiva, abriu o freezer para pegar a cachaça. Quando percebeu o que estava fazendo, deu um soco na própria cabeça e, desde então, nunca mais nem pensou nisso. Nos primeiros dias ficou ‘desnorteado’, mas, após todos esses anos livre da dependência, afirma não sentir falta.

CONFORTO ENGANOSO

Cristina*, 52, também foi alcoólatra por muitos anos. Foram aproximadamente 15 anos de sua vida perdidos. Ela acredita que a culpa do vício são os traumas de infância, os quais também trouxeram a síndrome do pânico a sua vida, e um casamento frustrado. Mas se tornou adicta de fato, quando foi morar no Paraguai, onde ficou nove anos.Lá,sentia-se muito sozinha,e foi no álcool onde encontrou companhia. Com lágrimas,lembra quando a filha mais velha disse que usaria todo seu dinheiro para interná-la. Cristina se viu sem saída e decidiu mudar de vida. Encontrou auxílio em Deus e nos irmãos da Igreja Deus é Amor. Afirma: sem eles, não conseguiria.“Eles te abraçam e acolhem qualquer causa, eles não renegam ninguém”, conta. Segundo ela, seus sonhos foram interrompidos devido ao alcoolismo, e se não fosse por isso, hoje estaria muito melhor. Cristina superou o álcool, mas ainda está na luta contra o tabagismo.O tabaco está em sua vida desde os 15 anos. Para ela, deixar o ci-

garro é muito mais difícil.Em suas tentativas para parar, ficou muito agitada e com mal-estar.“Eu acho que tem três coisas que a medicina não pode curar, o vício do álcool, o vício do cigarro e o câncer, isso aí é só por Deus”, opina. Luiza*, 22, filha de Cristina, também está lutando para abandonar o cigarro. No dia da entrevista, estava há quatro dias sem fumar. Essa é sua primeira tentativa em dois anos de vício. Junto com a bebida, veio o cigarro, só por diversão. Nessa brincadeira, conta que gastava R$ 200 por mês com o tabaco. Segundo Luiza, esses primeiros dias estão sendo horríveis. Para diminuir a ânsia, pesquisou na internet. “Quando dá vontade de fumar, é preciso tomar água gelada”. Ela tem o apoio de toda a família, mas sua maior motivação é o filho de nove anos, pois sabe como isso pode prejudicá-lo. (*) As entrevistadas não quiseram identificar-se, por isso receberam nomes fictícios

ESTEPHANI RICHTER ÂNGELO SANTOS


Saúde .7

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A favor da doação de vida Moradores da Vila contam o que os motivou a se tornarem doadores

mo”, enfatiza ele. Michael, assim como Pedro, também possuía a identificação de doador no documento de identidade, porém na atualização dos dados ela deixou de existir. No mercado onde trabalha, Michael explica a Valmir Marcos Fagundes que não hesitaria em ser doador em uma situação de necessidade. O microempresário Valmir diverge da opinião de Pedro e Michael quando o assunto é doação. Ao contrário dos dois doadores, Valmir afirma que tem medo de ser identificado como doador e tenha a morte acelerada ou os órgãos roubados por conta disso. O microempresário representa uma parte da população que não aceita ser doadora devido aos boatos. Para alterar essa realidade, iniciativas como o Setembro Verde - mês de conscientização sobre o assunto - se espalham pelo país explicando a doação de forma simplificada.

“D

oar órgãos é doar vida”, o famoso jargão de campanhas de transplante e doação é também o sentimento que rege os moradores da Santa Marta decididos a virar doadores. O assunto, apesar de ainda ser considerado tabu em grande parte do bairro, é abordado com tranquilidade pelo vigilante Pedro Rotta e pelo comerciante Michael Wagner, que consideram o ato uma “responsabilidade social”. Segundo dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), o Rio Grande do Sul é o sexto estado com mais doadores efetivos de 2018, com 117 doações. Entretanto, o número de doações ainda é baixo quando comparado com a lista de espera do estado, que conta com mais de mil e trezentas pessoas. São esses números que motivam Pedro a se candidatar como doador voluntário. Ele afirma ter conhecido a doação na época que frequentava o Supletivo, e, ao fazer a Carteira de Identidade, não hesitou na hora de marcar-se como doador de órgãos. A doação presumida entrou em vigor no ano de 1998 com a lei 9.434 e estabeleceu que todas as pessoas seriam consideradas doadoras, com exceção aquelas cujo documento de identidade trouxesse o registro de “não-doador”. A lei, contudo, não funcionou como o esperado e tornou-se inválida em dezembro do ano 2000. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, hoje, a lei brasileira exige apenas o consentimento da família para retirada de órgãos e tecidos para doação. Pedro conta que seu documento não possui mais a identificação de doador, entretanto essa questão já foi acordada com sua família e suas duas filhas concordam com a decisão. Para ele, a doação também passa pela fé e assim se torna importante de ser acertada com os familiares. “Para mim, isso é super importante. Uma questão de irmandade cristã. Ninguém está livre de também precisar um dia”, assinala. Para o comerciante Michael Wagner, a questão da fé e da religiosidade não é tão presente na tomada de decisão sobre a doação de órgãos. “O que menos importa para mim é em que se acredita, a doação é uma questão de dar vida ao próxi-

Pedro não hesitou em se tornar doador

“O que menos importa para mim é em que se acredita, a doação é uma questão de dar vida ao próximo” Michael Wagner Comerciante

Para Michael, a doação é uma responsabilidade social

Etapas da doação de órgãos Diagnóstico de morte encefálica

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O órgão é retirado e refrigerado. Ele é levado para a central de notificação até se definir quem será o receptor ideal

Família é avisada e precisa assinar o termo por escrito mediante testemunhas para autorizar a retirada

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Órgão é levado para o hospital onde está o receptor, enquanto ele passa pelo pré-operatório

Entrevista com a família para investigar histórico clínico e rastrear possíveis doenças; se necessário, pede biópsia

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6

Medicação para evitar rejeição

Além dos boatos, outro fator que ainda impede o crescimento do número de doadores efetivos de órgãos no Brasil é a resistência das famílias. Devido à lei, mesmo que a pessoa se considere doadora, somente os parentes de até segundo grau terão o poder de efetivar o ato. A rejeição ainda é alta e alcançou 40% das famílias do Rio Grande do Sul no ano passado, segundo o Ministério da Saúde. Hoje, iniciativas como o Setembro Verde, e campanhas de doações se espalham pelo estado para conscientizar e diminuir a alta rejeição Em São Leopoldo, a doação ainda encontra resistência. Visando diminuir as negações familiares de doação, o vereador David Santos (PP), criou um projeto de isenção da taxa de sepultamento para famílias de doadores de órgãos ou tecidos corporais. O projeto foi vetado pelo Executivo e aguarda a decisão final da câmara de vereadores. EDUARDA BITENCOURT LOHANA SOUZA


8. Política

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Problemas que continuam Em clima de indignação, eleitores não esperam nada menos que mudanças vindas do próximo presidente e governador

A

no de eleição geralmente costuma ser repleto de promessas, além de muita esperança. Durante os dois anos que o Enfoque esteve da Santa Marta, diversos problemas foram apontados pelos moradores, como falta de saneamento básico, de estrutura para mobilidade e acesso à saúde, muitos deles não solucionados pelo poder público. Neste final de ano, os relatos dos moradores estão passando certa desconfiança em relação ao futuro do país e do seu lugar de moradia, sentimento reforçado pelas eleições. Para Mário Augusto Miguel, 54, nada vai mudar com a eleição, pois falta “força de vontade” dos políticos. “Falta caráter e vergonha na cara”, exclama Miguel. Atualmente desempregado, ele disse não ter candidato para a presidência da República e que iria anular seu voto. “Bolsonaro não tem credibilidade e é racista, e o que podemos esperar do Haddad?”, comentou o leopoldense, sobre os então concorrentes à Presidência.

Toda chuva é motivo de preocupação para Dirce, já que sua rua não possui pavimentação

“Para ir (consultar) eu vou a pé, tomo uns remédios para caminhar”

SAÚDE PREOCUPA

Divulgada pelo portal Agência Brasil em fevereiro deste ano, uma pesquisa aponta que 44,8% dos entrevistados usam o SUS. Na Santa Marta, grande parte dos moradores utilizam o sistema. Mário está esperando há quase um mês por uma cirurgia de retirada da vesícula para sua esposa. “Essa (cirurgia) é aquela que se faz um dia e no outro está bem. Nem isso dá certo”, reclama Miguel. Devido a demoras no atendimento público de saúde, tem até quem prefira pagar uma consulta particular do que comparecer em uma Unidade Básica ou de Pronto Atendimento. Esse é o caso do montenegrino Sérgio Osvaldo Lottermann, 57. “Esses dias eu fui por causa de dor no joelho, fiquei quatro horas e meia esperando para ser atendido. Lá você fica mais doente do que já se encontra”, reclama Lottermann, que atualmente está desempregado. Segundo o site da Prefeitura de São Leopoldo, o Espaço Santa Marta, ao lado da Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Marta, tem atendimento ao público de segunda a sexta-

Orestes Maciel de Souza

Para Sérgio (D) e Giovani, os próximos governadores e presidentes devem mudar tudo -feira. Orestes Maciel de Souza, 63, morador da Vila Santa Marta há 12 anos, conta que sofre com um problema de cartilagem e está há um ano esperando por consulta com um ortopedista. “Para ir (consultar) eu vou a pé, tomo uns remédios para caminhar”, lamenta o trabalhador informal, que ainda tem esperanças de que o próximo presidente melhore o sistema de saúde no Brasil.

PAVIMENTAÇÃO

Durante os dois anos na Santa Marta, um dos maiores problemas constatados pelos repórteres junto aos moradores foi a falta de asfalto e lombadas nas ruas. A dona de casa Dirce Gigolettie Antunes, 36, vê como um dos principais problemas da Vila a falta de revestimento nas ruas. “Quando chove, isso aqui fica um absurdo”, exclama a porto-alegrense. Ela diz que o

problema, por hora, diminuiu, porque ela fez uma valeta dentro de uma vala que corre logo atrás da rua 13. “Fizeram uma boca de lobo para a água não entrar dentro de umas casas, mas não arrumaram o resto, logo, a água inundava toda a nossa rua”, diz Dirce.

PRESENÇAS ILUSTRES

Em época de eleição, os problemas começam a ganhar

destaque pelos candidatos aos cargos, ou pelo menos é o que os relatos dos moradores mostram. A comerciante Sabrina Feijó, 22, conta que, antes da eleição para Prefeitura de São Leopoldo, em 2012, o vencedor daquela disputa, Aníbal Moacir (PSDB), esteve várias vezes na Vila. “Ele perguntava o que nós queríamos, anotava em um caderno e chegou a prometer um posto de saúde ali. Passou a eleição e não fez nada”, lamenta Sabrina. Mas também tem um pouco esperança de mudança que os eleitores da Vila aguardam por melhorias das próximas gestões públicas. O trabalhador autônomo Giovani Elias de Moura, 59, pensa que os próximos governantes devem ser radicais. “Tem que mudar tudo, porque está uma porcaria”, exclama Moura. Natural de Getúlio Vargas, Giovani acredita que o rumo do Brasil pode melhorar. “É difícil, mas ainda tem chance”, completa o autônomo. MARCELO JANSSEN JULIANE KERSCHNER


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Retrospectiva .9

Conquistas da Santa Marta Melhorias realizadas nos últimos anos têm impactado positivamente a vida da comunidade

A

vanços nas áreas da educação e saúde, construção do principal espaço de lazer e conversas bem-sucedidas com o poder público para instalação de uma iluminação pública digna. Essas foram algumas das melhorias ocorridas nos últimos anos da Santa Marta. Fruto dos santamartenses organizados na Associação dos Moradores, as mudanças têm influenciado diariamente, de forma positiva, na vida de quem reside no bairro leopoldense. De quatro anos para cá, a infraestrutura da Vila sofreu alterações significativas que melhoraram a qualidade de vida dos residentes. Em fevereiro de 2016, longos anos de tratativas com a prefeitura foram recompensados com a instalação das novas lâmpadas de LED (dispositivo mais durável e econômico) nos postes das ruas. “Esbarramos um pouco na burocracia e na falta de vontade dos outros, mas conseguimos concretizar esse antigo desejo de iluminar todo o bairro”, conta Dilce Maria da Rosa, Presidente da Associação de Moradores. Outro passo importante na história da Vila foi a construção da quadra poliesportiva, hoje o principal espaço de lazer do bairro. Em 2015, os moradores receberam a visita de professores e estudantes da Universidade de Michigan, dos Estados Unidos, que criaram o projeto Together You Make Santa Marta Home (Juntos, Fazemos Da Santa Marta Nosso Lar, em tradução livre). O estudo montado pelos norte-americanos viria a ser premiado dois anos mais tarde e o dinheiro recebido como premiação foi revertido para a Santa Marta. Com os R$ 48 mil necessários, a obra foi concluída no dia 31 de março de 2017, e a solenidade de inauguração teve a presença do prefeito de São Leopoldo, Ary Vanazzi (PT). “Hoje, a criançada fica aí até as 8 horas da noite, até Conquistas na não dar mais, e isso é infraestrutura do muito bom para elas bairro tem trazido e para a Vila”, comenta Vilson Prestes, um mais alegria e a dos fundadores da autoestima aos Santa Marta. Além disso, a Sanmoradores ta Marta passou a contar com um novo espaço de saúde pública, instalado nas dependências da escola, que possui hoje um médico-clínico e um pediatra à disposição da comunidade. “Não é exatamente o que a gente merece, nós merecemos muito mais, mas já é alguma coisa”, reconhece Dilce, esperançosa de que a Santa Marta possa contar com uma Unidade Básica de Saúde no futuro. Conforme Dilce Maria, as conquistas na infraestrutura do bairro têm trazido mais alegria e a autoestima aos moradores. “Nesses últimos tempos saímos no jornal, recebemos a visita de Michigan e ganhamos mais visibilidade. Isso influencia muito na vida das pessoas”, conta a Presidente da Associação. Dilce afirma ainda que as melhorias criam um sentimento de pertença na comunidade, que passou a cuidar melhor dos espaços públicos, recolher o lixo e cooperar com a preservação da Santa Marta. Em concordância com Dilce, Vilson Prestes afirma que ganhar mais visibilidade foi um fator essencial na vida dos santamartenses. “Depois que o jornal Enfoque entrou aqui na vida do povo, a gente melhorou como comunidade, como pessoas, ficamos mais humildes e tivemos mais atenção do poder público”, relata Prestes. Para o futuro, a comunidade espera ainda diversas melhorias, como um campo esportivo para o Esporte Clube Santa Marta, o time de futebol da Vila. VITOR BRANDÃO AMANDA KROHN

Desde fevereiro de 2016, as ruas da Santa Marta contam com postes de iluminação de LED

Construção da quadra poliesportiva foi uma das principais conquistas da Vila nos últimos anos

Associação dos Moradores também recebeu melhorias na infraestrutura recentemente


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Como estão as in

Em edições anteriores, o Enfoque Santa Marta trouxe como pauta projetos sociais qu público. Outros são feitos pela comunidade e para a comunidade. Nesta última edição

Pastoral necessita de apoio

Atividades físicas esperam orientador Considerando a importância da prática de exercícios físicos, um grupo de oito mulheres se reunia duas vezes na semana na sede da Associação de Moradores da Santa Marta para se exercitar. Organizado por Dilce Maria, presidente da associação, e Rosângela de Souza, 50, dona de casa e moradora da Vila, os encontros ocorreram ao longo de 14 meses, mas tiveram fim em março deste ano. Na página 10 da segunda edição do Enfoque Santa Marta, o projeto, que havia começado em pouco tempo, era colocado como grande oportunidade de praticar esportes na Vila de forma acessível. Quando o professor das

Brinqu ecoló

atividades não pode continuar oferecendo as aulas semanais, a falta de um orientador desanimou as participantes, que já somavam 14 mulheres. Rosângela foi grande beneficiada pelos encontros, lamenta que não puderam continuar. Ela perdeu 32 quilos, com os exercícios e acompanhamento nutricional, na época. “Tínhamos até um grupo no Facebook, onde a gente colocava vídeos (dos exercícios)”, lembra. Segundo ela, o maior desafio é financeiro. “É um bairro pobre, e as pessoas não conseguem pagar academia”, diz. VICTÓRIA LIMA JOSÉ HAMEYER

Uma vez por mês, as líderes visitam as crianças cadastradas no projeto, questionando aspectos da vida dos pequenos Projeto de ação social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, a Pastoral da Criança, chega até Santa Marta por meio da paróquia São João Batista, de Arroio da Manteiga, São Leopoldo. Em visitas mensais, as líderes do projeto na Vila visitam as crianças cadastradas, com o objetivo de acompanhar a nutrição, a educação e o lazer dos pequenos. Com encontros trimestrais, que ocorrem na sede da Associação de Moradores da Vila Santa Marta, os voluntários do projeto verificam o peso e a altura das crianças atendidas. “Colocamos esses números em um sistema no computador, que já mostra se está acima ou abaixo do peso”, explica Dilce Maria, presidente da associação. “A gente exige que elas tenham as vacinas em dia, que as mães levem ao médico quando as crianças estão doentes”, afirma Salete Zórzi, líder da Pastoral, que atua há 10 anos na Vila.

Na primeira edição do Enfoque Santa Marta, publicada em abril de 2018, a Pastoral foi pauta da repórter Mirian Centeno. Na época, a ação atendia 27 famílias, com um total de 50 crianças, contando com o voluntariado de 11 líderes. Hoje, a situação mudou e o projeto encontra dificuldades, com apenas seis líderes atuando na Vila, o número de famílias aumentou para 47, e um total de 57 crianças. Ângela Vieira Cavalheiro, 23, é dona de casa e recebe apoio da Pastoral. Segundo ela, a maior beneficiada é a filha, a pequena Amanda Vieira Leal, de apenas 10 anos. “É bom para o acompanhamento dela”, afirma. Com 6 crianças em casa, Enilda Teresinha Flores, 50, recebe apoio da Pastoral há mais de 1 ano. Para ela, as doações e o acompanhamento do peso e nutrição dos filhos e netos fazem a diferença. VICTÓRIA LIMA VANESSA WAGNER

Ana Helena busca utilizar m recicláveis para construir br

Rosângela pesava 120 quilos. Com ajuda de nutricionista, montou grupo para fazer exercícios físicos

Todas as quartas-feiras, durante a tarde, Ana Helena Alves traz um pouco de brincadeiras às crianças de Santa Marta. A ideia dela é incentivar e ensinar as crianças da Vila a transformarem lixo reciclável em brinquedos. Pés de lata, aviões de garrafa PET e até amarelinhas feitas de retalhos de calça jeans, não há limites para a imaginação. “E também com esse trabalho, a gente desenvolve o intelecto, a cooperação entre as crianças, uma ajudando a outra, elas acabam realizando uma integração”, explica. Ana, que é pedagoga, realiza esse trabalho semanal porque acredita que, tirando a Escola Santa Marta, há poucos projetos sociais dentro da Vila voltado às crianças. O projeto Brinquedos Ecologicamente


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niciativas sociais?

ue ocorrem na Vila. Alguns deles são bem estruturados, e envolvem o apoio do poder o, fomos até a Vila para revê-los e saber como estão hoje. Confira alguns deles!

uedos ógicos

Oficinas de música Criado pela Unisinos e pela Orquestra Unisinos Anchieta, o Projeto Vida com Arte disponibiliza oficinas de música para jovens em São Leopoldo e Porto Alegre. Eles são atendidos por um grupo de 11 profissionais da música e da área social. As aulas passam por áreas como a introdução, à teoria musical e seguem para o aprendizado de um instrumentos. É o aluno que escolhe o instrumento que quer utilizar, conforme a preferência e habilidade dele. Eloísa Silva, 12, é uma das beneficiadas dessa iniciativa. Ela mora junto com sua família em Santa Marta. Se integrou ao projeto em 2013, e hoje é especialista na viola de arco. A mãe dela, Juçara Castro da Silva, acredita que o projeto é importantíssimo para a filha. “É emocionante

ver ela se apresentando na orquestra, ainda mais que ela é muito tímida”, explica. O irmão de Eloísa, Claiton da Silva, 18, também fez parte do projeto, como percussionista. Por já ter terminado o ensino médio, ele não participa mais das aulas, mas continua vivendo no meio musical. “Hoje eu lido com a música no lado mais profissional, tocando em orquestras e participando de grupos musicais”, conta. Ele afirma que pretende, a princípio, seguir a carreira de musicista. “Participar desse projeto mudou a minha perspectiva de vida, pois agora sei que é necessária muita determinação e dedicação para seguir nesse caminho”, revela. GABRIEL NUNES SUÉLEN PEREIRA

materiais rinquedos Corretos ainda está em período de criação, mas a pedagoga estima que cerca de 15 a 20 crianças participem. Ela também tem planos de realizar uma oficina de grafite para os pais e crianças da Vila. Desde 2015 ela realiza trabalhos desse gênero, atuando na área da educação extraclasse. “A motivação para realizar esse tipo de trabalho vem de um motivo familiar, pois meu terceiro filho é portador de necessidades especiais”, revela. Assim, ela busca trazer atividades que auxiliem na capacidade motora das crianças. Com o apoio de algumas empresas parceiras, ela planeja fazer com que a comunidade participe mais do projeto. GABRIEL NUNES SUÉLEN PEREIRA

Sopão é exemplo de cuidado Maria Helena é uma das responsáveis pelo preparo da sopa

Entre os projetos sociais realizados na Vila Santa Marta, o sopão feito pela Assembleia de Deus Unida (ADU), é uma ação consolidada na comunidade. Desenvolvida no salão da igreja, a refeição é distribuída para todas as pessoas que passam por alguma necessidade. É nesse local onde elas encontram a benesse, daqueles que tentam amenizar as dificuldades dos mais pobres. Cerca de 160 famílias são beneficiadas pelo sopão, que acontece aos sábados, das 8h da manhã às 16h da tarde. No inverno, há vezes em que as panelas de modelo industrial não são suficientes para atender a demanda da Vila. Porém, no verão a procura é baixa. Segundo uma das voluntárias, Maria

Helena Saraiva, 72, a vinda do calor e as festas de final de ano reduzem o consumo desse tipo de alimento. Contudo, afirma que durante a temporada, no mínimo 80 famílias são atendidas. Quando a igreja recebe mantimentos e estes não são utilizados na sopa, acabam sendo repassados aos que vão até o local em busca de ajuda. Para Maria Helena, o alimento é só o primeiro passo para dialogar com quem enfrenta momentos difíceis. “Atendemos desempregados, viúvas, crianças. Gente pobre mesmo, que mora no fundão da Vila. Gente que mora perto do lixão. E que dependia da reciclagem e fechou”, conta a voluntária. THANISE MELO HENRIQUE ABRAHAO

Acolhimento e aprendizado

Eloísa pratica diariamente, desde que começou a participar do projeto, em 2013

O interesse de Salete de Paula Zorzi, 53, por uma atividade da Unisinos na associação da Vila, permitiu que ela e outras mulheres criassem um grupo de convivência. Há 8 anos, meninas e mulheres se reúnem toda segunda-feira, das 16h às 17h da tarde para desenvolver técnicas de fuxico, crochê e pintura. Participam pessoas com

idades e histórias de vidas distintas. São estudantes, donas de casa, mulheres que trabalham durante meio turno e aposentadas, tornando o ambiente de aprendizado também de acolhimento. Assim como Salete, algumas participantes têm a oportunidade de conquistar seu dinheiro a partir do artesanato. THANISE MELO


12. Retrospectiva

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Cooperativas: altos e baixos Coleta de resíduos é a fonte de renda de muitos moradores da Santa Marta

A

s cooperativas de reciclagem apareceram diversas vezes nas páginas do Enfoque ao longo de suas edições. Fonte de renda de muitos moradores da Santa Marta, ao todo foram quatro reportagens abordando o tema. A primeira vez foi na terceira edição, de junho de 2017. Na época, a Cooperesíduos, hoje com as atividades paralisadas por tempo indeterminado, vivia um momento de mudanças e expectativas. De lá pra cá, muita coisa mudou.

PRODUTIVIDADE

Com a chegada do verão, a tendência é o aumento da quantidade de material reciclado. E a estação mais quente do ano chegou em boa hora para a Nova Conquista. A cooperativa, que recentemente foi tema de reportagem por aqui no mês de setembro, estava operando abaixo da capacidade. A tesoureira, Daiana Anjos da Silva, diz que pouco a pouco as coisas estão melhorando. “De um mês pra cá a quantidade de material está aumentando e o preço também. Agora no verão esperamos um acréscimo ainda maior na coleta e

Cooperesíduos segue com as atividades paralisadas por tempo indeterminado na reciclagem”, pontua. Antes associação e desde 2015 cooperativa, atualmente a Nova Conquista conta com 12 associados e veículo próprio para a coleta dos materiais. A presidente, Kelly Raquel Lemos da Luz, no cargo há cerca de um ano, afirma que a cooperativa coleta cerca de 26 toneladas de resíduos ao mês. Ela diz estar satisfeita com o trabalho realizado, atualmente está dentro da capacidade. “Como cooperada, me senti no dever de ajudar e

coloquei meu nome à disposição, já que a antiga presidente passava por uma situação difícil”, expõe, ao ser perguntada porque quis ficar à frente da Nova Conquista.

INTERRUPÇÃO

A Cooperesíduos - sigla para Cooperativa de Catadores de Resíduos e Prestação de Serviços de São Leopoldo Ltda - que já chegou a operar em três turnos, 24 horas por dia, encerrou as atividades em abril deste ano, depois de

25 anos. A triagem, que era realizada em um galpão junto ao aterro sanitário municipal, foi paralisada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) da cidade. O MPT exigiu uma série de adequações no espaço de trabalho, como o Programa de Controle Médico e de Saúde Ocupacional (PCMSO), Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA), além de questões ligadas ao conforto e eficiência no desempenho das atividades dos cooperados.

Mesmo antes do fechamento da unidade, a cooperativa já vinha passando por dificuldades. O maquinário defasado e saída da empresa parceira que ajudava nos custos já colocava a Cooperesíduos em situação difícil. Com o fechamento, muitos catadores começaram a trabalhar de forma autônoma. O problema é que, com muita gente coletando, o volume que cada um reaproveita diminui, e consequentemente os ganhos também. A 9° edição do Enfoque, de junho deste ano, expôs o problema na reportagem chamada “Cadê a cooperativa?”. Desde então, os sócios seguem no aguardo de uma definição junto ao poder público. O certo é que a Cooperesíduos não voltará a funcionar. Pelo menos não com o mesmo nome. Os sócios esperam encontrar um local para que outra cooperativa seja iniciada, desta vez com os equipamentos e adequações necessárias. “Estamos esperando uma nova documentação para levar ao prefeito e recebermos a autorização, só queremos trabalhar”, afirma a vice-presidente, Daniela Portal. Por enquanto, apenas o nome da nova instituição foi escolhido: Renascer. LUCAS GIRARDI OTT DOUGLAS SCHÜTZ

Cuidando dos locais de convívio As crianças da Vila gostam mesmo é de brincar na rua, nas praças e na quadra. Em um sábado pela manhã é possível observar que realmente eles são utilizados, mesmo não estando nas melhores condições de uso. Por isso, os cuidados com os locais públicos de lazer precisam de atenção por parte das autoridades. Na comunidade, são três áreas das quais os moradores podem usufruir. A primeira é a praça onde fica o pórtico da Santa Marta, que foi construído com a verba de uma premiação ganha pela Vila, através de um projeto da Universidade do Michigan. O local conta com poucos brinquedos, balanços, escorregador e uma gangorra, além de um

banco e uma lixeira. Claudia do Santos, 8, conta que vai na praça todos os sábados, quando a grama está aparada. “Minha mãe não deixa eu vir quando a grama está muito alta porque pode ter bichos” diz a menina, ela acredita que deveria ter mais balanços, por conta da quantidade de crianças que frequentam. Segundo Vanderlei Calderini, 50, dono de uma ferragem em frente, são somente os moradores que cuidam do espaço. “Nós que fazemos a manutenção como o corte de grama e a limpeza, até mesmo a ponte da entrada, eu doei madeiras e o pessoal da Vila que fez o reparo”, contou o comerciante. Segundo ele, a ponte estava “caindo aos

São os moradores que cortam a grama e recolhem o lixo pedaços”, por isso foi necessária tal medida. Os demais locais ficam junto à Associação dos Moradores. No local tem uma

praça com alguns brinquedos de madeira, mais bem cuidados do que na primeira. E também a quadra de esportes, construída igualmente com a

premiação do projeto social. Segundo a presidente Dilce Maria da Rosa, 41, o vandalismo diminuiu bastante, então a associação tem trabalhado para manter tudo em ordem, cortando a grama e realizando pequenos reparos, como nas goleiras, que já precisaram de solda algumas vezes. Eles também contam com a ajuda dos funcionários voluntários da empresa Companhia Riograndense de Valorização de Resíduos (CRVR). Apesar da pouca manutenção por parte das autoridades, os moradores prezam pelos locais, porque são o principal entretenimento para a criançada. CAROLINE TENTARDINI DANIELA GONZATTO


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Falta de regularização: a Vila ainda é invisível Mesmo sendo um dos principais problemas da Santa Marta, poucas são as ações para formalizar o registro dos terrenos e moradias

E

nquanto as pequenas e grandes casas erguidas por entre as vielas sofrem cada vez mais alterações à medida em que os anos passam, as mais de mil famílias que residem na Vila Santa Marta ainda não possuem nenhum tipo de documentação de posse dos terrenos Soeli lembra: sem legalização, a comunidade fica esquecida Aquiles e Fátima querem ter o documento oficial doados pelo governo municipal há mais de 30 anos. Alagamentos constantes, lixo a SEM ESCRITURA da. Outras ruas nem isso tem, a realidade está diferente, contabilizado, ou seja, não céu aberto e arroios poluídos Com estes impasses, os mas ao mesmo tempo a Pre- apesar das dificuldades de “existe” legalmente. Conforsão parte do cenário de quem moradores que adquiriram feitura não se interessa que infraestrutura ainda existen- me a urbanista Adriana Leal, vive na localidade. Pouco foi imóveis na Vila possuem ape- paguemos o imposto”. tes. “Nós aqui não tínhamos isso causa graves problemas feito por parte do governo nas o contrato de compra e Apesar de não estarem nem uma lâmpada, agora te- sociais como a segregação para melhorar as condições venda que garantem as matrí- legalizadas ainda, quem re- mos. Podemos sair à noite e urbana. “O indivíduo além de vida da população culas na Prefeitura Municipal. side nas ruas laterais da Vila no verão as crianças brincam de morar em uma zona periMesmo com uma popula- É a realidade de moradores comemora algumas melhorias até tarde”, relata a morado- férica não tem endereço, ou ção de 1.200 famílias, a re- como Soeli Fontes, 53, que na comunidade. Até então, ra Paula Santos, 41. seja, dificulta a chegada de gularização dos imóveis da adquiriu seu imóvel em 2003. muitas casas possuíam licorrespondências, não comlocalidade parece não estar “Tenho só o contrato de com- gações irregulares, sem que MARGINALIZAÇÃO prova residência. Acaba sendo entre as prioridades do poder pra e venda e nunca falamos houvesse luz em algumas das Quando não há regulari- marginalizado na sociedapúblico. Segundo dados do em ter escritura. Fizemos ruas da comunidade. Agora zação do terreno, ele não é de, pois não terá o mesmo IBGE, de 2010, São Leopoldo uma reforma sem financiaacesso a empregos formais tinha 35% das moradias loca- mento algum”, conta. com carteira assinada, por lizadas em áreM e s m o exemplo”, enfatiza. as de ocupação assim, Soeli Segundo ela, uma das prinirregular. Entre Quando não há entende a imcipais ferramentas para o fim os principais regularização do portância de da desigualdade urbanística exemplos conlegalizar seu é a implantação de políticas c r e t o s d e s t a terreno, ele não é terreno e dar públicas que facilitem o acesg r a v e q u e s - contabilizado, ou início ao pagaso dos moradores ao procestão social, há mento do IPTU. A Vila sofre com a entre- Postal (CEP) registrado. Os so de regularização. o e x e m p l o seja, não “existe” “O povo daqui ga de correspondências. Um Correios, então, passaram Uma das ações implantada Vila San- legalmente está esquecido, dos problemas ocorre com a entregar lá também as das pela Prefeitura Municipal ta Marta. é como se não os endereços da rua princi- correspondências de mopara solucionar este problema Para a presidente da existíssemos. Se legalizasse pal, batizada com o nome da radores da Vila Santa Marem diversas regiões do muniassociação de moradores, tudo, acho que poderíamos Vila. Há três anos, seus mo- ta. Um dos prejudicados é o cípio é o programa “RegulaDilce Maria da Rosa, 41, a ter melhorias na Vila”, salienradores deixaram de receber comerciante João Lopes, que riza São Leo”. Amparado pela regularização não aconte- ta. Assim como ela, outros correspondências. O proble- lamenta a inexistência de Lei 13.465/2017, o objetivo é ce por falta de iniciativa do moradores tem esperanças ma surgiu quando uma das CEPs no bairro que “oficialregulamentar áreas ocupadas poder público. “Desde que de que isto aconteça. ruas do Bairro Campestre re- mente” não existe. de maneira irregular na cidaassumi a presidência da Aquiles Antunes Maciel, cebeu oficialmente o nome de. Iniciado em Julho deste NATAN CAUDURO associação, bato nesta te- 62, e a esposa, Fátima Antude “Santa Marta” e teve um ano, o projeto tem como coorSUÉLEN RODRIGUES cla e a desculpa é sempre nes, 54, compreendem a imCódigo de Endereçamento denadora a secretaria de Habia mesma. Dizem que este é portância da regularização. tação, Karina Camillo. um trabalho moroso, mui- Aquiles afirma que ao tenKarina explica que a ideia to burocrático, etc.”. tar vender o imóvel, acabou é oficializar a titularidade Além disso, a localidade desistindo pela falta de dodos imóveis em que o moseria dividida em três partes cumentação. “Sem escriturador vive há anos. “Vamos no plano diretor do municí- ra é como se não existisse. buscar as informações com pio, sendo uma delas consi- Nem a Caixa libera finanos moradores e levar esta derada área verde outra per- ciamento”, ressalta. documentação para o Registencente ao Governo Federal, Em relação a ausência de tro de Imóveis. Desta forma e uma propriedade privada. investimentos do Executivo, o podemos entregar a eles a “Sempre nos argumentam casal acredita na importância titularidade de seus imóque este dilema é o que di- de estar em dia perante ao poveis”, afirmou em um vídeo ficulta a regularização. Mas der público, mas não tem indivulgado pela Prefeitura. A eu penso que se este proble- teresse em se regularizar. “Foprevisão é que a Santa Marta ma existe, façamos primeiro mos habitando e levantando seja atendida em 2019. da área verde, o importante casa, mas ninguém tem docuJoão se declarada prejudicado EDUARDA ROCHA é dar início ao processo”, mento. Nós temos luz e temos pela inexistência de CEPs LUCIANO PACHECO afirma a presidente. água, nossa rua até é asfalta-

Correspondência que nunca chega


14. Retrospectiva

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Lixo e esgoto sufocam arroio Moradores procuram alternativas para combater a poluição do riacho, como o plantio de bananeiras

tamento, por isso os moradores são obrigados a despejar os resíduos nas águas do canal.

BUSCANDO SOLUÇÕES

O

Arroio da Manteiga é um dos riachos que percorre a Vila Santa Marta. Em novembro de 2017, habitantes, em matéria veiculada no jornal Enfoque edição 5, reclamaram da poluição, do esgoto e de um projeto da prefeitura local cujo objetivo era realocar famílias que vivessem em áreas de risco (margens do arroio são instáveis e existe o risco de desabamento). Um ano depois, nada mudou. As famílias da Vila seriam movidas para um terreno ao lado do loteamento Tancredo Neves.Para que a mudança ocorresse, era necessário o uso de recursos federais vindos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Segundo Dilce Maria da Rosa,presidente da Associação de Moradores da Santa Marta, o PAC foi encerrado e nenhuma casa foi construída. O metalúrgico Enir Jocelino Hubner, 55, vive na Santa Marta desde 1994. Vinte e quatro anos depois, o morador afirma que nunca viu o arroio da Manteiga limpo. Pelo contrário, as águas que percorrem a Vila sempre estiveram poluídas por esgoto e pelo lixo. O cheiro forte é um fator que

O arroio da Manteiga é um dos oito riachos que passam pela cidade de São Leopoldo

incomoda, especialmente no verão: “Aquela água, não tem como usar”, afirma Hubner. Para a professora de Educação Ambiental e Iniciação Científica, Sandra Lilian Silveira Grohe o arroio da Manteiga é confundido com um valão, por isso há o descarte incorreto de lixo. A Vila é uma ocupação irregular e, por conta disso, carece de alguns serviços básicos, como o saneamento. As casas no entorno do arroio não possuem sistema de esgoto que os liga a uma estação de tra-

Sandra sugere alternativas para lidar com a poluição. Ela diz incentivar o uso de círculos de bananeiras para minimizar o impacto da água cinza (vinda de pias, chuveiros e tanques) no arroio. O processo é um tanto complicado, mas consiste em jogar a água cinza em um buraco fundo e repleto de folhas, galhos e palha. Esses materiais ajudam a separar as impurezas do líquido. As raízes das bananeiras sugam e evaporam a água, deixando no interior do buraco os resíduos poluentes. A Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Marta, como forma de ensino, incentiva o cuidado com o meio ambiente. Entre os trabalhos oferecidos pela instituição, estão o “Águas Vivas” e a“Comissão de Meio Ambiente e Qualidade de Vida ( COM-VIDA)”. “Pode ser que não seja percebido, mas nosso trabalho de formiguinha já teve resultados”, afirma Sandra. Entre eles, estão a implementação de lixeiras pela comunidade e a fixação de placas, em pontos estratégicos do arroio,alertando: “não jogue lixo”. NATAN CAUDURO TAINARA PIETROBELLI

De olho nos mapas Mapas, além de auxiliar na localização, também mostram a dimensão do lugar mapeado. Moradores da Santa Marta estão acostumados com o bairro e pensam que ali é um lugar pequeno. A verdade é que a Vila tem cerca de cinco mil habitantes, mais populosa que 231 municípios do Rio Grande do Sul, como Pinhal, Arambaré, Vista Alegre e São José do Herval, por exemplo. Arno Freitas Rosa, 49 anos, mora na Vila há 15, e ficou surpreso ao saber da quantidade de pessoas com que ele divide o bairro onde reside. Para quem não conhece a Santa Marta, se localizar lá dentro é difícil. “Os moradores são acostumados, sabem onde fica cada coisa, mas para os visitantes, os mapas são muito importante”, conta.

A comunidade afirma que a ferramenta também auxilia muitos entregadores de mercadorias a encontrarem lojas e mercados. Em junho do corrente ano, o Enfoque fez uma enquete com os moradores para saber quais são os pontos de referência do bairro. Com as informações recolhidas, em parceria com o curso de Arquitetura da Unisinos, foi elaborado um mapa interativo da Santa Marta. O resultado pode ser conferido na nona edição do jornal. A finalidade do mapa criado pelo Enfoque é social e engloba uma ideia de representatividade construída com os moradores. O principal objetivo foi contribuir para que cada residente se sinta integrante de um lugar maior, e que seus lugares favoritos da comunidade tenham o destaque e divulga-

ção merecidos. Hoje, a Vila já conta com três grandes mapas, feitos pelo Projeto Água Viva e distribuídos ao longo do bairro: um que dá as boas-vindas, na entrada; outro no centro e mais um dentro da escola. O mapa também desperta o interesse das crianças que já nasceram na era digital e que, talvez, nunca tiveram contato com esse guia. Gabriel, 10; Carlos, 11; e Anderson, 13, afirmam que nunca usaram mapa, mas toparam o desafio de se localizarem com o auxílio de um. Não é que as crianças souberem mostrar direitinho onde moram? Ainda, conseguiram localizar a escola, a quadra esportiva e a associação. “E ali fica o mercado!”, apontou Anderson. Os amigos Gabriel, Carlos e Anderson mostram que sabem usar o mapa

LAURA HAHNER NIENOW IURY RAMOS


Retrospectiva .15

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Alimentação saudável Moradores contam como cultivar a própria horta pode ajudar na saúde

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er uma vida mais saudável é uma atitude que demanda alguns cuidados. Segundo Clara Vogt Dettemorn, 88 anos, plantar a própria salada é um hábito que a ajudou a manter-se firme até esta idade. A moradora conta que desde criança tem prazer em mexer com a terra. Filha de agricultores de Três Passos, ela explica que o plantio é uma paixão passada de pai para filhos. Clara, hoje, queixa-se de não ter espaço para plantar mais. Em sua horta, é possível observar pés de alface, couve e cebolinhas. “Eu gosto de plantar, mas eu também gosto de comer”, diz. A santamartense relata que mesmo sendo fumante nunca teve nenhuma doença, além da pressão alta. Ela atribui isso a sua alimentação saudável proveniente do hábito de plantar o próprio alimento desde a infância, em sua cidade natal. Situação que não é diferente na casa de José da Silva, 61. O pedreiro, natural de Santo Antônio da Patrulha, conta que durante toda a sua vida sustentou o hábito de plantar para seu consumo próprio. Há 11 anos,

Elsa se orgulha dos alimentos sem venenos ele mantém sua pequena plantação no pátio de casa e tem orgulho de dizer que é tudo sem nenhum agrotóxico. “Não tem comparação, nunca tive nenhum problema de saúde”, explica. Silva se queixa de não poder ter mais árvores frutíferas em seu pátio, além de uma romãzeira e uma bergamoteira, esta, que já começou a dar frutos para a próxima colheita. “Sou que eu quem cuida de tudo, até as plantas, minha esposa tem pavor de mexer na terra”, diz em meio a risos.

ROTINA DIÁRIA

Na casa da Elsa Amaral, 56, a horta que ela mantém em seu pátio é sinônimo de alimentação saudável para toda a família. “Eu sem-

pre gostei de plantar, por que daí não precisa comprar”, conta. A moradora cultiva muitos temperos e chás, mas também aipim, couve e árvores frutíferas co m o p i t a n g u e i r a . Elsa diz que o alimento plantado em sua casa é puro, não tem nenhum veneno. Apesar de consumir muito do que planta, ela afirma que, às vezes, precisa recorrer ao mercado para comprar frutas, verduras e legumes. Em sua rotina diária, o cuidado com a horta é feito sempre na parte da tarde, quando ela aproveita para regar suas hortaliças.

DESDE O BERÇO

Cultivar o próprio alimento é algo que vem de berço na família de Gleci

A horta de Gleci é farta em hortaliças. A alface é a preferida Giehl, 45, porteira na Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Marta. Há 24 anos como moradora da Vila, ela cultiva uma horta recheada de variedades no pátio de casa, hábito que veio desde seu tempo de juventude quando morava em Planalto, no Paraná. “Não tem explicação plantar a própria verdura. Não tem produto químico nenhum, é tudo natural, tu sabe o que tá comendo”, diz Gleci. Ela conta que gosta muito da alface, hortaliça cultivada em uma horta suspensa feita de canos largos na garagem de casa, pois, segundo a moradora, é mais prático e protege a verdura do sol. Gleci não costuma ir ao mercado, mas acaba recorrendo a este recurso quando

sua horta não tem o que ela quer consumir. “Toda vez que eu compro alface do mercadinho eu fico com problemas no esôfago, até perguntei pro médico o motivo disto acontecer, ele disse que é por causa dos produtos químicos” explica. Por este motivo, a moradora insiste em ensinar os filhos e os dois netos a se alimentarem bem. “Meu neto já chega aqui atrás dos moranguinhos, o mais novo é louco por salada e bergamota”, diz. Ela revela que quer plantar beterrabas no futuro mas, por causa da terra vermelha, a verdura não vinga. “Espero conseguir um dia”. VANESSA FONTOURA GUSTAVO MACHADO

No aterro, a situação ainda é a mesma O Aterro Sanitário Municipal foi desativado em 2011 devido ao tempo de vida útil que, segundo especialistas, é de 20 anos. Desde então, vem sendo feita um monitoramento pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental do Estado (Fepam). O órgão tem como objetivo diagnosticar, acompanhar e controlar a qualidade do meio ambiente do local, garantindo que os moradores permaneçam em segurança. Segundo Pedro Santos, porteiro do local, não existe mais nada ativo no terreno atualmente. “A prefeitura que é responsável pela regulamentação junto à Fepam. Frequentemente é feito uma inspeção aqui, eles fazem análises do solo e ar”, conta. O

novo aterro foi construído a cerca de 3km da antiga localização, um pouco mais afastado das habitações da Vila. Ainda com o monitoramento constante do solo, água e ar, o aterro apresenta riscos para os moradores vizinhos do lugar, por conta do chorume e de gases da decomposição. De acordo com o Fepam, são necessários alguns cuidados para quem mora próximo da região. Como evitar o plantio e o consumo de alimentos das áreas próximas ao aterro, não ingerir água de poços artesianos da região e habitar a uma distância mínima de 500 metros da região. CAROLINE TENTARDINI DANIELA GONZATTO

Mesmo desativado, o local pode trazer riscos para os moradores próximos


16. Retrospectiva

ENFOQUE SANTA MARTA | SÃO LEOPOLDO (RS) | NOVEMBRO / DEZEMBRO DE 2018

Faltam saúde e informação Com poucos recursos no Espaço Santa Marta, os moradores do bairro são atendidos na Unidade Básica do Campestre

Quando questionada sobre o Espaço Santa Marta, uma espécie de posto de saúde, ela se surpreende dizendo nunca ter ouvido falar sobre ele. Hoje, a Secretaria de Saúde de São Leopoldo disponibiliza os medicamentos que ela precisa. “Esse mês meu genro foi buscar, mas o que pedia na receita estava em falta. Então eu tenho que ficar esperando”, lembra.

D

o outro lado de uma das portas de madeira perto da Rua Seis da Santa Marta, vivem Dona Alzira Moura, 60, e a filha Jéssica. Ao entrar, se é recebido por uma senhora baixa e com olhar profundo de uma vida cheia de histórias nem sempre boas de contar. Era uma manhã nublada de sábado que trazia ares de nostalgia. Há alguns anos, Dona Alzira levou um choque ao ligar o forno elétrico na tomada. Com a queda, machucou as costas, tendo que ser levada ao hospital de Porto Alegre, cujo nome não lembra. Desde então, ainda com resquícios do ferimento, os problemas de saúde só pioraram. Em uma biópsia pedida pelo médico, ela foi diagnosticada com câncer no útero e começou a se tratar. Mas o processo foi interrompido, porque a filha Jéssica tem

TRABALHO ÁRDUO

Alzira: dificuldades por não conseguir a aposentadoria síndrome de down e é dependente de Dona Alzira. Recebendo apenas o benefício deficiência da filha, o dinheiro nem sempre é suficiente para o transporte até Porto Alegre, onde é atendida. Na caixinha de remédios estão os medicamentos que auxiliam no tratamento da depressão, hipertensão e no alívio das dores que sente diariamente.

Mas o problema de saúde vai muito além das dores e também passa pela falta de informação. Sem saber ler, Dona Alzira não sabe o nome dos remédios que toma. E mesmo passando pelo processo de tratamento de um câncer, sua incredulidade com a doença a faz afirmar que todas as fraquezas estão ligadas à queda causada pelo choque.

De porta em porta, as quatro agentes de saúde que atuam na Santa Marta passam seus dias identificando pacientes que são enviados à Unidade Básica de Saúde (UBS) do bairro Campestre. Em casos mais graves, os médicos os encaminham para os hospitais de São Leopoldo e Porto Alegre. Perto da casa de Dona Alzira, mora uma das agentes, Tanise Cristina Brehm Duarte, 37. “O Espaço Santa Marta que recebe médicos, mas não está registrado como UBS e não comporta uma estratégia de saúde”, explica. Neste espaço, uma técnica de enfermagem

realiza curativos, afere a pressão e aplica vacinas receitadas. Nas quartas-feiras de manhã, a médica da unidade desce até o bairro para o trabalho de obstetria com as gestantes.

OUTRA ALTERNATIVA

Na casa de Dona Ivone Gomes, 71, os remédios são comprados em farmácias e os exames particulares. Hipertensa, ela regra sua alimentação com saladas e cozidos, e parte da pensão que recebe todo mês tem que ser reservada à saúde. Faz dois anos que desistiu de esperar o atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) “É muito difícil depender disso. Quando é particular, é tudo muito caro, mas eu não tive outra opção”, conta. Hoje, com exercícios uma vez por semana e seguindo as recomendações dos médicos, ela cuida para prevenir os problemas causados pela hipertensão e pela tireoide, e recebe visita das agentes de saúde da Santa Marta. BIBIANA FALEIRO LEILA DONHAUSER

Moradoras querem escolher o tipo de parto Conforme os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) o Brasil está em 2º lugar no mundo em percentual de cesarianas. Sabemos que a OMS estabelece o percentual de partos cesarianos seja de até 15%, no nosso país esse número chega a 57%. Isso equivale a 40% dos partos realizados na rede pública e chegam a quase 85% dos partos da rede privada. Na comunidade Santa Marta o pensamento e a atitude das mulheres são diferentes do que mostra o estudo da OMS. Quando questionamos nossas entrevistadas sobre o tipo de parto que gostariam de fazer ou que fizeram, a resposta é sempre unânime, relatam ao parto normal pelo fato da recuperação ser muito mais rápida do que o parto cesáreo. Ana Caroline da Silva Santana tem 18 anos e está à espera da Tiffany Gabrielly que vem ao mundo no próximo mês. Faz o acompanhamento pré-natal no posto de saúde do bairro vizinho da comunidade, no bairro Campestre.

Que há poucos dias foi transferido os atendimentos para um local ao lado da Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Marta. “Desde que eu descobri que estava grávida que comecei a fazer o acompanhamento pré-natal e na primeira consulta me perguntaram se eu queria cesárea ou parto normal, eu escolhi o normal, pela recuperação”, explica Ana. Ela lembra também que as consultas mensais nada mais são do que medir a pressão arterial, medir a barriga e ouvir o batimento cardíaco do bebê.

OPÇÃO IGNORADA

Chaiane da Rosa Borges, 17 anos e tem a pequena Sophia Isabele de dez meses. Conta que fez o acompanhamento pré-natal no posto de saúde do bairro Campestre. Foi encaminhada para fazer exames. E seguiu fazendo todo esse acompanhamento mês a mês, mas lembra de que em momento algum foi lhe dado a opção de escolher o tipo de parto que poderia ser feito.

Ana Caroline, de 18 anos, quer evitar o parto cesariano “Eles nunca me perguntaram nada, nem sobre como eu queria ganhar ela e foram bem pouco as perguntas enquanto eu estava grávida, eram mais consultas de rotina como peso, ouvir o coração dela e no final tinha exame de toque”, conta. Chaiane explica que teve pré-eclâmpsia - alteração patológica caracterizada por hipertensão arterial, nefrite e perturbações hepáticas - então

quando foi ganhar a Sophia eles não puderam induzir o parto para ela conseguir ganhar com mais rapidez por causa da pressão, fazendo assim com que ela ficasse em trabalho de parto mais de doze horas, mesmo sem resultado. Foi então que os profissionais da saúde, plantonistas do dia, tiveram que estourar a bolsa e logo depois Sophia veio ao mundo. Emily dos Santos Wag-

ner tem 19 anos e é mãe do Arthur de seis meses. Também fez o acompanhamento pré-natal no posto de saúde do bairro Campestre e conta que em nenhum momento da gestação, nas consultas mensais não foi questionado se ela teria preferência por algum tipo de parto, porém depois de mais de 24 horas em trabalho de parto, com o coração do pequeno Arthur enfraquecendo os batimentos cardíacos, levaram Emily para fazer o parto cesariano. “A gente fica meio que a mercê da sorte na gravidez, pois não temos um ginecologista para acompanhar a gente no posto de saúde, é um médico que atende tudo e todos sem diferenciação”, explica Emily ao relatar a preocupação que teve quando se deparou com uma médica cubana do programa mais médicos. “Ela tinha enormes dificuldades de entender o português”, conta. PAOLA GUIMARÃES THAIS RAMIREZ


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Retrospectiva .17

Deixar a Vila? Nem pensar A segurança da comunidade vem melhorando nos últimos anos

G

eralmente, o sonho de todas as pessoas é morar em grandes centros urbanos, onde se tem acesso com facilidade a quase tudo que se necessita, como saúde, lazer educação. Indo na contramão dessa tendência, os entrevistados nesta edição afirmam que não deixam a Vila por nada, exceto se a profissão exigir. Como é o caso da moradora Kárita-Ruama Rocha Netto, 21, formada em Fotografia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. A fotógrafa pensa na possibilidade de se mudar da Vila, mas somente por uma questão de logística. Proprietária da Kárita-Ruama Fotografias, a empresária quer expandir os negócios. “Penso que eu tenho muito a crescer profissionalmente”, diz. Quando questionada sobre a segurança do local, a moradora fala que melhorou muito. “ Me criei aqui. Estudava a noite, sempre dependi de ônibus para ir à Unisinos e nunca fui assaltada”, afirma. “ Atravessamos momentos difíceis no que diz respeito a segurança na Vila, mas aqui vivemos em comunidade, um cuida do outro,” acrescenta a fotógrafa.

Joceli e Kárita-Ruama concordam que a união é fundamental

ESCOLA AJUDA

A Escola Municipal de Ensino Fundamental realiza projetos sociais em horários inversos às aulas com as crianças e isso é muito importante”, afirmam. Atualmente as novas gerações têm mais oportunidades através dos programas comunitários que envolvem os alunos, tais como: a banda da escola, futebol de salão, canoagem no rio dos Sinos entre outros.

“Nossa Santa Marta estava muito famosa pela violência, mas hoje tudo melhorou”

UNIÃO FACILITA

A segurança pública é sempre uma questão preocupante, pois está atrelada a outros fatores como infraestrutura, por exemplo. E não é de hoje que a Santa Marta tem lutado, através de seus representantes por melhores condições em todas as áreas. O resultado depende em grande parte do poder público, mas a população seja ela em bairros ou em grandes metrópoles, tem um papel importantíssimo no bom andamento dessa engrenagem. Com pequenas atitudes tais como: preservar a iluminação pública, manter locais de uso coletivo como praças e parques limpos, para que não sejam ocupados por usuários de drogas, são fundamentais para aumentar a segurança. Embora já tenham obtido muitas conquistas, ainda há muito a ser feito pela Vila. Para a mãe de Kárita-Ruama, Joceli Rocha Netto, 42, empresária do setor de ves-

tuário e residente a 18 anos na Vila, o começo não foi nada fácil. A moradora lembra que não tinha luz, água, nem mesmo uma rua para os carros trafegarem. Ainda na primeira semana, presenciou uma briga entre vizinhos.”Na primeira semana eu já queria ir embora”, lembra. Mãe e filha são unânimes em dizer que a má fama da Vila vai além da realidade. Mas, que hoje muita coisa mudou. Para elas o trabalho em conjunto entre associação de moradores, escolas e igrejas, ajudou na conscientização dos moradores, contribuindo muito para as transformações.”Nossa Santa Marta estava muito famosa pela violência, mas hoje tudo melhorou”, garantem.

Joceli Rocha Netto Empresária Cleonice Puhl (D) nem se imagina morando em outro lugar

Carla deseja ser policial militar e atuar na Vila

Outra moradora que não trocaria sua casa por nenhum outro lugar, é a senhora Cleonice Puhl, 48, moradora do local a 24 anos. “As pessoas sempre falam de coisas ruins do bairro, mas durante todo esse tempo que moro aqui nunca fui assaltada, tampouco tivemos problemas com alguém”, garante. Já Carla Monique, tem 10 anos e o sonho de ser policial militar. “Eu me imagino fardada cuidando dos carros, das pessoas e das crianças”, afirma. Quando questionada sobre o futuro a menina diz que pretende se formar na carreira militar e exercer a função na Vila. “Quando me casar pretendo continuar morando aqui”, finaliza. IARA BALDISSERA MILLA LIMA


18. Infância

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Do esporte ao Youtube: os sonhos das crianças Nos planos da garotada estão as profissões que querem seguir, além de preocupações com moradia e com suas famílias

Y

Além de sonhar em ser jogador, Gustavo deseja conhecer pessoalmente seu maior ídolo, o jogador português Cristiano Ronaldo. Até hoje, ele lembra do primeiro jogo em que viu o CR7. “Eu jogo futebol desde que sou pequeno, por isso, meu sonho é ser jogador profissional. Lembro de uma partida do Cristiano que eu vi quando tinha uns quatro anos. Queria conhecer ele e outros jogadores, como o Philippe Coutinho”, explica.

outuber, jogador de futebol, policial. Muitos são os desejos da garotada para o futuro. Apesar da predominante paixão pelo esporte, diversos outros sonhos passam pela cabeça das crianças da Santa Marta. Na era da tecnologia, as plataformas digitais surgem como alternativa para os jovens, que aprendem diver- APRENDENDO NO VÍDEO sas dicas e projetam planos a partir Enquanto desenhavam, os meninos do que enxergam nas telas. comentavam sobre os canais do YouEm folhas de ofício e lápis colori- tube que assistem. “Eu vejo uns vídeos dos, as crianças da Vila contavam o que para aprender a desenhar. Quando querem para o futuro. Em duas mesas não sei como fazer alguma coisa que colocadas na frente da Associação de eu quero, eu procuro no Youtube”, Moradores, a garotada se organizava disse Gustavo. A admiração pelo ese, em meios a risadas, desenhavam porte também é visível nos vídeos profissões, casas e muitos sonhos. assistidos pelos garotos. Na plataEntre os traços, exforma, eles contam plicavam o porquê que podem visualizar de suas escolhas. “Eu as principais jogadas estou desenhando so- “Eu jogo futebol dos craques de futebre futebol, porque desde que sou bol, além de aprengosto do campinho. derem diversas dicas pequeno, por isso, Gosto de sair de casa esportivas. e vir aqui. Parece que meu sonho é ser Nicolas, inclusive, a cabeça fica mais jogador profissional” desenhou um youtuleve”, disse Gustavo, ber como profissão de apenas oito anos. Gustavo que gostaria de seO esporte e, prin- 8 anos guir. No desenho, o cipalmente, o futebol jovem é ambicioso. eram desenhos coJunto à imagem de muns entre os pequenos. Os irmãos um adolescente falando em um vídeo, Kauã e Ruan ilustraram quadras de ele escreveu que seu canal chegaria a futebol em suas folhas. “A gente vai ter sete bilhões de inscritos. “Eu quero no campinho há um tempão. Queria ter um canal com algumas dicas e jogar no Grêmio”, conta Kauã, de 10 curiosidades. Também acho legal um anos. Já Ruan, de oito anos, deseja canal que eu assisto, o Desimpedifazer parte da equipe do time gaú- dos, que é de futebol”, afirma. cho rival. “Eu também adoro futebol, mas prefiro ser do Inter ou até do CASA E AMIZADES Corinthians”, comenta. Entretanto, Além dos desejos relacionados os sonhos da dupla de irmãos não ao esporte e às tecnologias, os gaficam somente no esporte. rotos se preocuparam em desenhar Nas folhas de papel, também esta- suas famílias, amigos e residências. vam desenhos de outras profissões que No desenho de Gustavo, uma granadmiram. Ao lado um grande campo de casa amarela de quatro andares, verde, Ruan desenhou uma camisa com piscina ao lado, chama a atendo exército. “Eu queria trabalhar lá ção. “Eu quero morar num lugar bem pra poder defender o Brasil”, explica. grande. Talvez eu tenha uma família Enquanto isso, perto de um placar grande também, então, precisa ter de um jogo de futebol, Kauã ilustrou espaço pra todo mundo. E uma pisciuma arma. “Acho legal ser policial. na no pátio seria legal”, falou. Queria ser para poder ajudar as ouEntre os guris que desenhavam, o tras pessoas. Desenhei uma arma, já mais novo e mais tímido era Pedro, que os policiais têm”, relata. de sete anos. No desenho, ele imaTambém amante de futebol, Nico- gina ser um super-herói e, ao meslas, de 15 anos, retratou um jogador mo tempo, um policial. Ao lado das com a camiseta do Barcelona. Ele co- profissões, ele fez questão de ilusmenta que vai à quadra da Santa Marta trar vários amigos e, aos fundos, uma para treinar desde a época em que casa. “Eu gosto do Batman, queria ser não havia sido reformada. “Quando um super-herói. Mas também quero eu tinha uns 10 anos, já comecei a crescer com muitos amigos e ter uma jogar. Me imagino sendo meio-cam- casa para morar”, comenta. po do Barcelona, então, me desenhei MARTINA BELOTTO com a camiseta e com várias pessoLAURA ROLIM as me aplaudindo”, descreve.

No desenho de Gustavo (abaixo), ele mostra que sonha ser jogador de futebol, conhecer o jogador Cristiano Ronaldo e ter uma grande casa com piscina. Pedro desenhou que gostaria de ser um super-herói e um policial, além de desejar ter muitos amigos e uma casa

Jogador, policial e youtuber foram as profissões mais desenhadas pela garotada


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Comunidade .19

Desejos de fim de ano Moradores falam sobre as mudanças que desejam para si e para Vila em 2019

É

comum, antes da meia noite do dia 31 de dezembro, fazermos pedidos e desejos para o ano que está por vir. O Enfoque perguntou aos moradores que tipo de mudanças desejavam em suas vidas e para a Vila no ano de 2019. Em meio a desejos de mais saúde e uma educação de qualidade, esses moradores deixaram claro a vontade de evoluir e a esperança de uma vida melhor no futuro. A aposentada Maria Joreni, 53 anos, explica que cuida da mãe idosa e de um filho com deficiência e por isso espera um sistema de saúde melhor em 2019. “Eu gostaria de poder realizar consultas mais rápidas e baratas”. Quanto à Vila, ela diz

que já houve muitas mudanças, sempre positivas, “Hoje temos colégio pertinho, posto de saúde onde posso levar a mãe para ver a pressão, mercado por perto, ônibus”. Mesmo assim, ela acrescenta que mudar para melhor é sempre bom e deseja a continuidade destas mudanças no ano seguinte. Pedro Fernandes Siqueira, 60 anos, também toca no assunto da saúde, e desabafa: “Não faz um ano que eu perdi a perna por complicações no uso excessivo de cigarro, por isso, para 2019 eu desejo uma vida mais saudável e mais feliz”. Apesar do desejo de mais saúde, sorrindo, Pedro conta que deveria estar tomando remédios, mas decidiu pular um dia de tratamento para tomar uma cachaça, em um churrasco com os amigos, “Tomo remédio por causa da perna e não deveria estar tomando

uma cachacinha agora, mas vem “Eu preciso me formar, faz eu me sentir melhor, por é meu futuro”. Além disso, isso estou tomando”. morando com os pais e com Quanto ao que ele deseja as irmãs, ele deseja ajudar em para a Vila, Pedro diz esperar casa, arranjando um emprego que todos tenham em 2019. a oportunidade de Quanto à Vila, assar uma carne em “Eu preciso Crusoé deseja um casa, assim como me formar, é lazer de melhor ele. “Está uma criqualidade. Ele exse muito grande meu futuro” plica que costuma aí, pessoal sem dijogar bastante funheiro, mas espero Crusoé de Almeida tebol na quadra que todos consi- Estudante junto à associação gam ter um mode moradores e por mento como esse, assim como isso gostaria de uma revitalieu estou tendo hoje, com meus zação na área: “Com uma rede amigos”, deseja ele. nas goleiras ou na lateral a bola não ia ir tanto pra fora, hoje a EDUCAÇÃO MELHOR gente tem que ficar buscanJá Crusoé Antunes de Al- do ela muito longe”. meida, tem 18 anos e estuda na Outro que deseja uma eduEscola de Ensino Fundamental cação de melhor qualidade é da Santa Marta, no nono ano. Leandro Gonçalves, 27 anos. Ele conta que pretende se for- Ele mora com os pais, a esposa mar este ano e deseja ir para e com o filho de cinco anos e o ensino médio no ano que explica que nada das coisas

as quais deseja é para si, mas sim para a criança. Leandro é pedreiro e tem uma rotina apertada. Estudando fora do bairro, é a criança precisa almoçar na escola, mas não gosta da merenda servida. Por isso, Leandro tem pensado em mudá-la para a Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Marta, no ano que vem. Sobre o que ele espera para a Vila, Leandro também pede melhorias de infraestrutura. Segundo ele, em alguns momentos a sua rua cheira muito mal devido a focos de esgoto não tratado. Ele conta que gostaria, no ano o qual está por vir, que muitas coisas melhorassem no seu lar, mas principalmente que não precisasse mais sentir aquele cheiro em dias de chuva. ARTUR CARDOSO COLOMBO ARTHUR EDUARDO

Maria Joreni deseja uma saúde melhor e elogia o posto de saúde da Vila

Apegado ao filho, Leandro Gonçalves explica que nada deseja para benefício próprio, apenas do filho. Por isso, considera a educação essencial

Crusoé Antunes espera uma revitalização nas áreas de lazer da comunidade em 2019


ENFOQUE SANTA MARTA

SÃO LEOPOLDO (RS) NOVEMBRO / DEZEMBRO DE 2018

EDIÇÃO

12

Genericamente única

D

a entrada da Santa Marta até o seu coração, onde se situa a associação de moradores, é possível notar que a esteira da história não correu na mesma velocidade para todos. Na rua principal, a contradição grita. Na mesma cena, há um carro do ano, um carro (que um dia também foi do ano) de quatro décadas atrás e uma carroça (o carro do ano em passado um pouco mais distante). A fotografia vai sendo alterada a cada metro. Uma realidade vai se descortinando. São muitos mundos coabitando o mesmo lugar. É uma partitura mais do que caótica, mas que, para os ouvidos acostumados, faz um som linear. Só que, nesse caso, os instrumentos são a voz do passarinho, o som do carro que vende ovo, os latidos dos incontáveis cachorros da rua, as conversas sem pressa na frente dos supermercados, o sertanejo da década de 1980 do rádio de um homem - que, trajando calça jeans e chinelo, faz exercícios em um aparelho que só deveria existir nas propagandas dos canais de televisão fechada. Aos moradores, não há estranhamento. Sejam mais ou menos entusiasmados, parece unanimidade: a Vila melhorou e/ou está melhorando. É um otimismo necessário. Mas as vitórias pessoais são tão distantes umas das outras, e são tão

distintas. Para um casal, a estabilidade financeira e as frequentes viagens e os seguidos períodos na casa de praia são o troféu da aposentadoria do marido e do sucesso do empreendimento da mulher. A poucas portas dali, a vizinha comemorou não estar mais doente e poder complementar a renda da casa, entregue pelo Bolsa Família. Jovens da mesma idade comemoram, cada um em sua ideia de necessidade, o videogame novo e o prato cheio sobre a mesa. Tudo a poucos metros de distância. O acesso ao consumo põe tecnologia e dispositivos móveis de toda a sorte num bairro em que nem a moradia está garantida. Mas, à medida que se sobe as lombas, o sinal de telefone pode ir ficando fraco. Aliás, que lombas! Para muitos, o caminho até chegar em casa é íngreme e cansativo. Assim, ainda que a prática de esporte não esteja garantida, faz parte da rotina o obrigatório exercício físico de ir e vir. Talvez reflexo disso, talvez de motivações mais tristes, não há tantas crianças com sobrepeso, como apresentam os dados da televisão. As crianças, aliás, mantém uma vida bem diferente daquelas dos grandes centros. Caminham pelas ruas. Brincam. Interagem. Não estão guardadas pela segurança dos muros de um con-

domínio, mas pela sorte do acaso que os carrega nos braços, e também pelo estabelecimento das forças paralelas, que garantem segurança sem acaso algum. Assim, mais uma face da periferia se mostra: à margem do que o Estado pode dar, o que há de mais basilar é, invariavelmente, marginal. Não há medo de assalto. Mais uma vez, a lógica dos grandes centros não faz sentido. Ali, há quem garanta que não haverá “chinelagem”. Nesse bojo, não entram violência doméstica, tráfico e assassinato, aparentemente.A regulamentação paralela tem nuances e estrutura moral própria. Aos demais, cabe acatar. E, ao que parece, não costumam achar tão ruim. Nem bom. É o que tem. O medo é de não haver renda. Os microempreendimentos estão por toda parte. Possibilidades que nascem da necessidade de sobreviver, abrir negócio é fruto de marido preso e desemprego, entre várias outras coisas. Aos que buscam trabalho por ali mesmo, o fechamento da reciclagem foi trágico. E, de um modo geral, os negócios não chegam a ir tão bem assim para que possam contratar funcionários. Além do mais, boa parte ainda está na informalidade. Sendo assim, quem busca uma assinatura na carteira de trabalho bate pernas bem

longe do local onde mora, e se dispõe a pegar os não tão frequentes ônibus na região ou a gastar o pouco do ganho em combustível. É o que dá. Aspectos se colocam, fazendo com que a Vila seja única. Um lugar cheio de singularidades.Ainda assim, não poderia um lugar tão diferente ser mais simbolicamente representante de qualquer outra vila da região metropolitana. Cada história de vida, com seus ricos detalhes, faz do ambiente uma síntese das estruturas periféricas gaúchas. E se, por um lado, a contemporaneidade não chegou em tantas esferas aos moradores, por outro, a Santa Marta conserva um sentimento que deveria estar acima de qualquer interpretação que se tenha do tempo-espaço: a sensação de comunidade está sempre presente. Da associação até a entrada do bairro, não interessa muito mais do que a simpatia de quem por ali transita, pois há muitas portas abertas ao viajante que busca conhecer histórias. Quando se está com sorte, é possível até integrar alguma roda de chimarrão. Nesse sentido específico, será muito bom se o futuro nunca chegar por lá. ARTHUR DE MENEZES MATEUS FRIEDRICH


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