Primeira Impressão 24

Page 1

pg_001_capa B.qxd

7/12/2005

18:07

Page 1


OK [ok texto] [ok foto] pg_002_anœncio 1.qxd

1/12/2005

15:46

Page 1


@ ALTERADO @ pg_003_editorial e expediente.qxd

7/12/2005

| C A R T A

11:32

Page 3

A O

L E I T O R |

Desvelar universos Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) – Endereço: Avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS. Cep: 93022-000. Telefone: (51) 3591.1122. Internet: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO – Reitor: Aloysio Bohnen. Vice-reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: Célio Pedro Wolfarth. Diretora de Graduação: Paula Caleffi. Diretora de Pesquisa e Pósgraduação: Ione Bentz. Diretora de Educação Continuada: Cornélia Volkart. Diretor de Pró-educação: Roberto Haleva. Diretor de Recursos Humanos: Vanderlei de Souza. Diretor de Finanças e Informações: Marcos Baum. Diretor de Marketing: Rogério Delanhesi. CURSO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO – Coordenador Executivo do Curso de Ciências da Comunicação e da Habilitação em Jornalismo: Edelberto Behs.

Foto de Tiago Coelho

“Estranhas, não! Diferentes.” As profissões que nos escapam aos olhos, que não compõem nosso mundo imaginado, ou estão aí, pedindo reconhecimento, são tema desta edição. À primeira vista, sugerimos profissões “estranhas”, mas um sábio aluno retrucou e disse: “Diferentes”, encerrando o sentido exato que queríamos dar às pautas. Tanoeiro, luthier ou sexador de peru mostram a diversidade de profissões desconhecidas; detetives, projecionistas ou recepcionistas de motel parecem sair das páginas da ficção; catadores de lixo, vendedores ambulantes, sapateiro e alfaiate nos trazem de volta à realidade. Esse é o jogo que a revista propõe. Coube aos repórteres a percepção de desvelar universos de anônimos que fazem parte do mundo chamado trabalho. Escondidos ou não, cada um busca seu sustento, seu espaço, sua vida. “Ver” e “enxergar” esses mundos exigiu dos alunos a potencialização dos cinco sentidos. Sem eles, não sairiam do óbvio. O que foi percebido e vivido pelo grupo está nos textos e nas fotos que temos agora em mãos, frutos da visão, da audição, do tato, do paladar e do olfato — sentidos indispensáveis ao repórter. A Primeira Impressão chega a sua 24ª edição revelando também o trabalho dos próprios alunos, que ainda se mantém escondido na sala de aula.

MIRO BACIN THAÍS FURTADO Professores-editores

A revista Primeira Impressão é uma publicação da disciplina de Projeto Experimental em Jornalismo Gráfico, em parceria com a Agência Experimental de Comunicação (AgexCOM). E-mail: primeiraimpressao@icaro.unisinos.br. PROFESSORES EDITORES – Textos: Miro Bacin (mbacin@unisinos.br) e Thaís Furtado (thaisf@unisinos.br), coordenadora da AgexCOM. Fotos: Jacqueline Joner (jjoner@unisinos.br). REPORTAGEM E EDIÇÃO – Alunos de 2005/2 – Turma 23: Adriano

Marcello Santos, Aline Cardias, Ana Júlia Isse, Ana Luiza da Silva Telles Vargas, André de Assis, Beatriz Tavares da Silva Valle, Bruna Karpinski Santos, Daniel Calistro Lessa, Daniela Heck, Danusa Vieira Etcheverria, Darweche Mohamad Makki, Diego Cabral Rosinha, Felipe do Monte Guerra, Gabriela Silva Morel, Giovana Fregapani Pereira, Jorge Henrique dos Santos, Josias Bervanger Oscar, Juliana Inês Casa, Juliano Rocha Rangel, Lara Rosa Lindenmeyer, Lucas Ramos Arisi, Marcelo Kenne Vicente, Márcio Reinheimer, Mariane Brasil Maldonado, Melina Gonçalves, Moises Giacomo Campeol, Renata Dillenburg Hofmann, Ricardo Eccel Prates, Sabrina De David, Sóstenes da Silva, Susiâni Silva, Tatiana Aguiar Fachel e Tomás Reckziegel Bello – Turma 63: Carmen Eloisa Marangoni, Carolina da Silva Alves, Ciro Augusto Francisconi Götz, Claiton de Souza Fortunato, Daiane Evangelista da Vara, Felipe Bueno da Rosa, Fernanda de Souza Dias, Gabriel Dall'Aqua Saldanha, João Vitor Santos, Júlia Colvara Bernardi Leite da Rosa, Juliana Farias Pacheco, Juliano Kaus Rosa, Júlio César Moraes Ferreira, Júlio César Santos Oliveira, Karina Bayer Geiger, Leandro Nazari de Melo, Luciane da Costa Santos, Marcela Amaral da Silva Brown, Marcelo Souza de Oliveira, Marisa Simon, Mary Lúcia da Silva, Michelle Trindade Machado, Nairícia Caberlon, Patrícia Castro da Silva, Pollyane Cássia de Lima e Silva, Raquel Janowski da Silva, Ricardo Born Sander, Tânia da Silva, Thais Regina Zanchettin e Tiago Fernando Machado Nunez. Monitora: Susiâni Silva. FOTOGRAFIA – Grupo de Fotografia da Unisinos: alunos Anna Carolina, Ana Fortes, Angela Alegria, Cândida Lucca, Carla Stahl, Denise Silveira, Leonardo Remor, Pablo Escajedo, Rita Coronel, Tiago Coelho e Zeca Brito, além dos alunos da disciplina. Monitor: Pablo Escajedo. Digitalização das imagens: funcionário Gustavo Diehl (Laboratório de Fotografia) e Laboratório Proccess. Tratamento digital das imagens: professor Fernando Schmitt. PRODUÇÃO GRÁFICA E EDITORIAL (AGEXCOM) – Apoio e organização do lançamento: funcionária Taís Flores da Motta, estagiárias de Relações Públicas Caroline Ávila do Nascimento, Michele da Rosa e monitora Priscila Flores da Motta. Projeto gráfico e diagramação: funcionário Marcelo Garcia. Diagramação: estagiários de Jornalismo Guilherme Fernandes e Patrícia Fachin. PUBLICIDADE – Os anúncios publicados nesta edição foram criados pelos alunos Daniel Boccasius Mastalir, Marcelo Vianna e Michael Estácio Rodrigues, vencedores de uma seleção entre trabalhos executados pela disciplina de Redação Publicitária III, dos professores Ângelo da Cruz, Daniela Horta e Sérgio Trein. A finalização foi feita pelos estagiários Fernando Togni, Inês Johnson, Laura Larre Borges e pelo monitor Caio Schenini (fotos), da área de Publicidade e Propaganda da AgexCOM, sob orientação da funcionária Haradia Moraes e da professora Angélia Najar. Impressão: Gráfica Dolika.

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|3|


7/12/2005

11:38

Page 4

ÍNDICE

@ ALTERADO @ pg_004a005_ ndice.qxd

44

77

06

06 | Sapateiro e alfaiate |

| Enólogo | 35

62 | Jóquei |

| Luthier | 11

38 | Fundidor |

| Locutor de aeroporto | 65

15 | Perito em retrato falado |

| Vendedor de rosas | 41

68 | Passeador de cachorro |

| Projecionista | 18

44 | Catador de lixo |

| Recepcionista de motel | 71

22 | Entalhador |

| Perito em bombas | 50

73 | Futurólogo |

| Peruqueiro | 27

53 | Tatuador |

| Sexador de perus | 77

30 | Tanoeiro |

| Limpador de esgoto | 58

82 | Detetive |

18

104

|4|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |


@ ALTERADO @ pg_004a005_ ndice.qxd

7/12/2005

11:39

Page 5

| NA WEB |

22

Confira em www.portal3.com.br mais textos dos alunos e relatos de suas experiências durante a produção das reportagens

11

30 | Trapezista | 85 88 | Terapeuta de animais | | Artista de rua | 91 95 | Operador de empilhadeira | | Vendedor ambulante | 98 100 | Bruxa | | Profissionais relacionados aos cadáveres | 104 109 | Alpinista industrial | | Professor de cegos | 112

53

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|5|


[ok texto] pg_006a010_sapateiro e alfaiate [[FALTA FOTO]].qxd

|6|

Primeira ImpressĂŁo | Dezembro de 2005 |

2/12/2005

09:09

Page 6


[ok texto] pg_006a010_sapateiro e alfaiate [[FALTA FOTO]].qxd

2/12/2005

09:09

Page 7

Sobrevivendo ao tempo

| Dezembro de 2005 | Primeira ImpressĂŁo

|7|


[ok texto] pg_006a010_sapateiro e alfaiate [[FALTA FOTO]].qxd

2/12/2005

Elas são profissões que estão próximas da extinção, mesmo assim ainda existem pessoas que permanecem sem mudar de ramo TEXTO

DE

LEANDRO MELO

FOTOS

DE

RAFAEL RECH

|8|

E

MARCELO OLIVEIRA

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

09:10

V

Page 8

ocê chega a uma loja e pede uma camisa. Imediatamente o vendedor pega uma fita métrica, mede a largura de ombro a ombro, depois tórax e cintura, a altura, o comprimento dos braços e a largura do pescoço. Feito isso, ele se dirige a uma sala e, horas mais tarde, volta com uma peça exclusiva, que se encaixa perfeitamente no seu corpo. Não, não é assim que acontece hoje, mas, há algum tempo, o alfaiate era o responsável por vestir adultos e crianças, de qualquer classe social. E nos pés, o que calçar? Em seguida mais uma sessão com a fita métrica, teste com formas de solado e, dias mais tarde, um sapato sob medida, com o melhor couro, estaria pronto.


[ok texto] pg_006a010_sapateiro e alfaiate [[FALTA FOTO]].qxd

Assim como o alfaiate e o sapateiro, outros profissionais, em sua maioria homens, entre eles ourives, carpinteiros, afiadores e barbeiros, prestam um serviço valioso à sociedade, embora estejam à margem de outras faculdades, como o médico, o engenheiro e o advogado. Isso porque, sociologicamente, só os últimos são considerados essencialmente profissões, enquanto os primeiros, apenas ocupações. Essa distinção está apenas para o nível acadêmico de divisão social do trabalho, pois compreende-se como profissional aquele que exerce uma atividade ou ofício. De qualquer forma, sejam artesãos, artistas ou profissionais, o valor que hoje se dá a essas atividades, tidas como

2/12/2005

09:10

Page 9

corriqueiras ou de fácil execução, já despertou a ambição de quem procurava uma carreira ou prestígio na comunidade. Não é tarefa fácil, mas hoje em dia ainda é possível encontrar exemplos clássicos de profissionais à moda antiga. Essas profissões podem nunca ter emprestado prestígio a seus executores, mas em outras épocas garantiam um bom salário e uma vida financeira confortável. É com orgulho que o alfaiate Guido Costa Linck, morador de Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre, fala do seu trabalho e da vida. A profissão ele aprendeu, ainda adolescente, com o tio, Francisco D'avila, e as histórias ele coleciona da família e dos mais | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|9|


[ok texto] pg_006a010_sapateiro e alfaiate [[FALTA FOTO]].qxd

2/12/2005

de 30 anos que corta e costura para seus clientes. “O sogro do meu tio falava para a filha dele: 'Tu vais ser infeliz minha filha, este homem é alfaiate, não tem parada, cada dia está num lugar!' É que, naquele tempo, o alfaiate chegava nas estâncias com um carroção e ficava ali, costurando para toda a família, e, quando terminava, ia embora.” E era assim mesmo, mas isso foi muito antes de D'avila aparecer com um diploma que lhe autorizava exercer a alfaiataria. Nesse tempo, as cidades já assumiam o formato que têm atualmente, e era mais fácil estabelecer-se num ponto fixo. Mas a receita era a mesma: uma máquina de costura, algumas réguas e muita experiência, afinal, o candidato a costureiro precisava de prática e dedicação, além de uma mão firme e um olhar preciso. Em poucos minutos de conversa com alguém assim, é fácil perceber um olhar que viaja para além da sala ou pegar carona nas inúmeras histórias da profissão e da vida. O trabalho de alfaiate, muitas vezes passado de pai para filho, também era ensinado na escola. D'avila, tio e mestre de Guido, formou-se numa escola em Santa Maria e ensinou o que sabia aos sobrinhos e irmãos. Guido foi o único que permaneceu na profissão. Ele é apaixonado pelo que faz e é enfático em dizer que não se trata de uma atividade em extinção. Hoje, com 54 anos, ele diz que só tem boas lembranças de uma vida que considera muito bem vivida. “Viajei por vários lugares no país até me estabelecer, nunca gostei de estar preso”. Apesar das andanças, o alfaiate se diz feliz por ter conseguido preservar o espírito que juntou toda a família numa pequena alfaiataria na década de 50 e, hoje, garante uma oportunidade de trabalho para a continuidade da prole. “Já fiz muita coisa na minha vida, agora eu quero deixar uma opção para meu filho e minha nora trabalharem”, explica ele, como se já estivesse riscando uma nova roupa a ser cortada. Também em Gravataí mora o sapateiro Ney Lopes de Oliveira, de 79 anos, 66 deles dedicados a esta profissão, por isso conhecido na cidade como “Seu Ney da Sapataria”. Mesmo há mais de seis décadas quase ininterruptas exercendo o mesmo serviço, ele titubeia na hora de dizer que ama aquilo que faz. “Eu preciso trabalhar, porque minha aposentadoria é insuficiente. Melhor, então, tirar meu sustento daquilo que sei fazer”, enfatiza. Quem acompanha o dia-a-dia de Seu Ney, porém, percebe nas entrelinhas a paixão por aquilo que exerce. Trabalhando em uma pequena sala no centro da cidade, ele arruma saltos e refaz solados, inteiramente rodeado de calçados e bolsas que ainda aguardam reparos. Com a destreza e técnica adquiridas ao longo dos anos, ele se permite conversar e trabalhar ao mesmo tempo. Isso, claro, sem levantar do inseparável banquinho de couro encostado à mesa posta no meio do recinto. |10|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

09:10

Page 10

Há uma diferença entre o sapateiro do início dos tempos, que confeccionava sapatos, e a grande maioria dos que existem hoje e apenas consertam calçados. Mas há algo em comum nas pessoas que exercem uma profissão tão ligada ao criar e ao fazer com as próprias mãos. Historicamente, os sapateiros, alfaiates e artesãos sempre pertenceram a uma classe envolvida em questões sociais, intimamente ligados a anarquistas e ao Partido Comunista. Foi um sapateiro, José Praxedes de Andrade, um dos líderes da Insurreição Comunista de 1945, em Natal, no Rio Grande do Norte. Também os alfaiates marcaram a história brasileira com a Conjuração Baiana, ou Revolta dos alfaiates, pedindo a independência do Brasil em 1798. Ao longo da história, destacam-se outros em todo o mundo, envolvidos em levantes populares contra regimes totalitários ou na organização de sindicatos e agremiações partidárias. Para Seu Ney, a profissão de sapateiro nunca vai acabar, já que sempre haverá pequenos reparos a serem feitos nos calçados. Ele admite, entretanto, que a classe está ficando escassa. “Hoje em dia há muito menos sapateiros do que antigamente. Justamente por isso a quantidade de serviço continua grande, pois a população aumentou e diminuíram os consertadores”, ressalta. A “concorrência desleal” também contribuiu, segundo ele, para a debandada dos sapateiros, que partiram atrás de um novo ganha-pão. “Para fazer um solado eu cobro em média R$ 35,00. Enquanto isso, é possível encontrar calçados importados sendo vendidos a R$ 20,00 nas lojas”, diz ele. Ao falar sobre os cinco filhos, o sapateiro desdenha da profissão que o acompanhou ao longo de toda uma vida. “Todos são mais do que eu”, frisa, sem, no entanto, revelar o ramo em que eles atuam. Mesmo com a idade avançada, Seu Ney comemora a evolução da tecnologia e da modernidade. Pelo menos no que diz respeito à sua profissão. “Atualmente é mais simples ser sapateiro. Antigamente o serviço era todo manual, hoje tem a lixadeira, o acabamento pode ser feito à máquina, que é mais fácil”, exemplifica, enquanto retira a sola de um sapato masculino. O mesmo pensa Guido, que está sempre atento aos lançamentos da indústria da costura. Assim como Guido e Seu Ney, existem milhares de brasileiros que ainda exercem profissões fadadas à extinção, seja pelo mercado voraz ou pela falta de procura. A paixão e o entusiasmo são os combustíveis dessas pessoas, que iniciaram na profissão ainda garotos e que mantém vivo até hoje o gosto pela profissão. São exemplos como esses que tornam a vida um eterno aprendizado e transformam estas profissões antigas numa arte que vai sobrevivendo ao tempo.


DE

ALINE CARDIAS

E

BRUNA KARPINSKI | FOTOS

DE

ANGELA ALEGRIA

11:44

TEXTO

7/12/2005

Arte antes da arte

@ ALTERADO @ pg_011a014_luthier.qxd Page 11


@ ALTERADO @ pg_011a014_luthier.qxd

7/12/2005

11:44

Page 12

Quem escuta um instrumento musical não imagina que a sua construção também exige talento e precisão

P

or trás do fascínio que um instrumento musical desperta, está a arte de quem o constrói. A história aponta para o ano de 1250 como a data do surgimento deste profissional, quando os árabes levaram para Veneza, na Itália, o Alaúde, instrumento musical de origem persa. Os italianos adaptaram o som da palavra para Liuto, e criaram o termo Lutier para denominar as pessoas que fabricavam este instrumento. Já os franceses chamaram o alaúde de luthier e luthieri. No Brasil, são utilizados os termos luthier, luteria e luthieria. Com o passar dos anos, a palavra foi ampliando seu sentido e, hoje em dia, serve para o artesão que produz e conserta qualquer tipo de instrumento musical. Segundo a Classificação Brasileira de Ocupação (CBO) — que é um documento que normatiza e reconhece as profissões — um luthier restaura, transforma, reforma e adapta instrumentos musicais de sopro, cordas, percussão e teclado. Os luthiers, a princípio, são autodidatas, pois procuram, por iniciativa própria, aperfeiçoar-se na profissão, buscando referências teóricas. É o caso de Eldad Chapper, 49 anos, há 25 na profissão. Luthier desde o início da década de 80, Eldad começou a trabalhar com instrumentos artesanais logo após concluir o curso de Engenharia Elétrica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), interessando-se pela construção de flautas de cano de PVC de diversos modelos. Em seguida, os materiais também se tornaram diversificados, como o alumínio e o latão. Foi quando uma flauta de alumínio caiu no chão, ecoando um som interessante, e então ele passou a pesquisar sobre carrilhões (tubos de metal). “Os mesmos tubos que dava pra fazer flauta, davam pra fazer instrumento de percussão”, conta Eldad. Então ele descobriu que as leis matemáticas que regiam a construção de carrilhões em nada tinham a ver com as leis de construção das flautas. “A partir daí comecei a me interessar pela parte científica da construção desses instrumentos de tubos percutidos”, completa o luthier. O barulho intenso durante o trabalho na oficina, desde o corte das madeiras até o movimento das lixas no retoque final, é o custo para um resultado de beleza singular, traduzido no silêncio. Ao longo do tempo ele foi descobrindo que o que não se encontra fácil, muitas vezes, são ferramentas específicas para esse tipo de trabalho. O material é de fácil acesso. Eldad utiliza basicamente a madeira e o alumínio, |12|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

além dos canos de PVC, para a construção dos instrumentos. “Existe uma certa mistificação em relação a materiais. Mas na verdade o que vale mais é a ciência que você tem pra fazer o instrumento do que o material empregado. A sutil diferença está na pomposidade do material”, ressalta o Luthier. Eldad conta que trabalha com uma madeira que praticamente não desafina, a maçaranduba. Os principais instrumentos que constrói atualmente são de barras percutidas, os chamados barrafones — xilofone, metalofone, vibrafone, marimba, todos construídos artesanalmente. “Esse tipo de conhecimento eu adquiri estudando. Então eu tive que reinventar a roda várias vezes pra fazer estes instrumentos. E muitos dos conhecimentos que eu descobri sozinho já existiam. Em todo caso, tem algumas coisas que eu descobri que não existem ou foram esquecidas”, lembra. Eldad fala que em arte vale o instinto. “A gente sente a necessidade da técnica e depois utiliza a ciência para aperfeiçoá-la”, comenta. O também afinador de pianos, avalia que a profissão de luthier lida com a técnica e a ciência do que com arte em si. “É algo que tem bastante mais ciência do que arte. A arte engloba um conhecimento de técnica e de ciência, e é impossível fazer um bom trabalho de afinação de pianos ou qualquer instrumento sem ter algum conhecimento científico”, revela. Ele relata a sua experiência com a restauração de pianos muito antigos, ressaltando que trabalha apenas a parte interna do instrumento e não com o móvel dos pianos. “Aprendi a afinar piano com outro técnico. Trabalhei com ele algum tempo e aprendi a profissão”, relembra Eldad. O luthier e artesão — como se define — trabalha sozinho em sua oficina. Eldad também constrói instrumentos voltados pra área de educação. “São instrumentos de porte menor, mais individuais, menos complexos e mais portáteis. Mas o projeto é basicamente o mesmo”, distingue o luthier. As técnicas artesanais de construção de instrumentos, transmitidas de geração para geração, deram lugar a um corpo estruturado de conhecimento denominado luthieria. E, aproximadamente até a Revolução Industrial, o ofício dos luthiers manteve as características artesanais e familiares. Hoje, devido aos avanços tecnológicos, é grande a variação das maneiras de produção de um instrumento. Porém, mesmo com os padrões modernos da indústria, ainda é possível encontrar fabricantes


@ ALTERADO @ pg_011a014_luthier.qxd

7/12/2005

11:44

Page 13

| Dezembro de 2005 | Primeira ImpressĂŁo

|13|


@ ALTERADO @ pg_011a014_luthier.qxd

7/12/2005

11:44

Page 14

que mantém a forma artesanal de fazer instrumentos, como Francisco Trombini, da cidade de Cachoeirinha, que há 12 anos é especialista na construção de contrabaixos e guitarras eletro-eletrônicos, constituídos basicamente de madeira, resgatando uma prática dos séculos XVI e XVII, quando esse era o único material disponível . Trombini é administrador de empresas e entrou no ramo por gostar. Tem pouco conhecimento musical e não constrói instrumento algum, mas conhece perfeitamente o processo. Sua ligação é comercial, mas fala, com brilho nos olhos, sobre tudo que envolve o trabalho de fabricação. Para ele, a sensibilidade tem que ser desenvolvida na empresa.”Fazer instrumentos musicais é algo muito lindo. Não se pode tratar como se estivesse fazendo um tijolo, tem que ser tratado diferente, porque depois vai ser passada para o músico aquela energia que se coloca no instrumento”, afirma. “É como se fosse uma religião. Ou se acredita naquilo, ou não.” O trabalho artesanal desenvolvido é meticuloso, de muita persistência e atenção. “Um segundo de distração é o bastante para condenar um instrumento”, completa Trombini. Os instrumentos são elaborados individualmente, conforme os pedidos, e materializados pela equipe. Os músicos precisam de um instrumento que tenha visual, sonoridade e beleza. “Ele vai ter tudo o que sonhou. Isso aqui é uma fábrica de sonhos na verdade”, diz ele. Cada instrumento leva em média de 30 a 60 dias para ser finalizado, com tempo necessário para deixar a madeira descansar. Um instrumento mais detalhado, com variações no seu corpo, leva em

|14|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

torno de 120 dias. No prédio que abriga a fábrica de Trombini, há espaços para as máquinas, pequenas, mas úteis como complementares. Todos os passos são cuidadosamente estudados pelos funcionários da produção, desde a escolha das madeiras até os testes de som. Eles são bastante experientes, cada qual é especialista dentro de sua atividade, e destacam que o resultado final é satisfatório porque o grupo está afinado e realmente gosta do que faz. Francisco Trombini define isso como egrégora que é a soma dos pensamentos coletivos. Conforme ele, forma-se quando todos estão pensando a mesma coisa. E, para fazer um instrumento musical, tem que ser por aí. Todos têm que estar voltados para o mesmo pensamento, mesma situação, aí se tem um resultado energético. Essa é a energia que ele fala que é passada para o instrumento. “Fazer instrumentos não é só um negócio, é uma demonstração da arte, da sensibilidade das pessoas”, ressalta. Antônio Carlos Correa de Moura, 54 anos, de Esteio, construiu um instrumento inédito: a gatorra. Mais conhecido como Tony da Gatorra, Antônio Carlos utilizou o conhecimento em elétrica, do qual sobrevive consertando televisões, rádios e vídeos-cassete, para bolar a invenção. A gatorra emite som de bateria e sintetizador através de botões, pois, apesar de ter formato de guitarra, não tem cordas. A sucata é a matéria-prima. O luthier aproveita retalhos de compensado, alumínio de piso de ônibus, botões de teclados de computador entre outros materiais. Tony também criou uma gatorra junior totalmente eletrônica, feita especialmente para crianças.


[ok texto] pg_015a017_retrato falado.qxd

1/12/2005

10:30

Page 15

Apanhador de memórias Há mais de duas décadas, Graciane ajuda a resolver casos policiais com seu talento de desenhista

U

ma das profissões mais famosas e antigas da polícia mundial é ao mesmo tempo desconhecida pelos seus métodos de trabalho. O retrato falado, explorado em diversos filmes e histórias literárias de ficção, é uma ferramenta importante da investigação policial, que, quando utilizado, tem fundamental papel na solução de casos com poucas impressões físicas. Paulo Roberto Graciane entrou para a Polícia Civil no ano de 1980 como escrivão, designado para trabalhar na cidade de Palmeiras das Missões, no interior do Rio Grande do Sul, apesar do desejo de permanecer em Porto Alegre. Como naquela época a polícia não dispunha de computadores, todo o trabalho de Graciane se resumia numa mesa com régua contrim. Usando caneta nanquim,

TEXTO

DE

CIRO GÖTZ

FOTOS

DE

ANA FORTES

E

RAQUEL JANOWSKI

ele traçava gráficos estatísticos e mapas para marcar incidências de crimes, fugas e assaltos a veículos. A oportunidade de voltar para Porto Alegre surgiu pouco tempo depois, a convite do delegado Nelmo Bonnett, que tinha conhecimento do gosto de Graciane pelo desenho. “Eu disse que queria ficar na capital. Fiquei sabendo que a polícia estava necessitando de um desenhista. Aceitei a oportunidade, mesmo com a mão de obra precária do setor nessa época.” Graciane começou na mesa de desenho, utilizando materiais como o normógrafo (régua com letras de tamanhos diferentes), a aranha (instrumento utilizado para traçar as letras do normógrafo), o pantógrafo (instrumento de ponta seca usada para desenhar mapas), o compasso e o transferidor. “O delegado Nelmo | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|15|


[ok texto] pg_015a017_retrato falado.qxd

1/12/2005

10:30

Page 16

Bonnett, hoje falecido, me convidou para fazer retratos falados. Fiz os primeiros e ele adorou.” Graciane não realizou nenhum curso específico. Até hoje ele compra livros com figuras humanas para aperfeiçoar sua técnica. O trabalho em si, de acordo com Graciane, passa por uma análise de casos. Geralmente a importância e gravidade dos crimes são avaliadas pelo delegado, que determina o que deve ser priorizado. Graciane atende delegacias de todo o Estado. “Se alguém que trabalha na investigação da delegacia de Bento Gonçalves liga, precisando de um retrato, peço para me mandarem um ofício solicitando a minha presença no local designado. Com a aprovação da direção, me desloco para lá”, explica. Ele já conhece praticamente todo Rio Grande do Sul. Segundo Graciane, o retrato é como “uma luz no final do túnel” em casos onde existem poucas informações coletadas pela investigação. “O trabalho que faço não é a solução, mas sim um dado a mais no processo investigativo. Têm retratos que eu faço que não dão em nada, às vezes a vítima dá uma descrição tal e, quando capturam o suspeito, ele tem uma cara diferente daquela descrita pela testemunha.” Os desenhos são sempre entregues às delegacias de Porto Alegre e do interior do Estado. Eventualmente são divulgados fora do contexto policial, mas a decisão é dos delegados. Um retrato não depende apenas de uma boa percepção das características do suspeito e de técnica no desenho. De acordo com Paulo Graciane, é necessário um trabalho psicológico com as testemunhas também. Normalmente as vítimas sofrem algum tipo de choque e acabam ficando nervosas no momento em que tentam comunicar as descrições que conseguem recordar. “Eu largo tudo, ofereço um café, digo para se acalmarem, afinal, o agressor não sabe que sua descrição está sendo dada.” O retrato falado é um trabalho de paciência. Graciane diz que o melhor caminho é tentar fazer com que a testemunha se sinta o mais à vontade possível. O segredo é deixar ela falar e prestar atenção em todos os detalhes. “Tem que se sentar e ouvir amigavelmente, porque isso também dá uma tranqüilidade maior para pessoa. Em alguns casos casos cheguei a utilizar uma psicóloga infantil para falar com crianças que foram estupradas. Com crianças é ainda mais complicado, pois elas se distraem muito fácil.” Na investigação, assim como no trabalho de Paulo Graciane, é fundamental ser objetivo e paciente para alcançar resultados positivos. Segundo o delegado do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC), Leonel Carivali, o trabalho investigativo é metódico, mas ao mesmo tempo ágil para que as impressões deixadas em um crime não se percam. “Todo o tipo de investigação pode ser relacionada a um jogo de quebra-cabeça. As partes devem ser encaixadas, aos poucos, até que tenhamos um panorama daquilo que aconteceu e que está |16|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

sendo investigado. O desenho, dentro desse quebracabeça, tem um papel muito importante.” Com as características do agressor colocadas no papel, a polícia inicia um trabalho de eliminação, isto é, fazendo um levantamento de suspeitos que não se enquadram no retrato. Desenhar, segundo o delegado, depende de uma habilidade especial, um dom, pois não é uma simples cópia. É um trabalho de alguém que está recolhendo impressões de uma vítima. “Não é fácil trabalhar nessa atividade, pois a vítima muitas vezes recorda de poucos detalhes, o que dificulta a construção da imagem. E, no processo, o responsável pelo desenho não só capta o que lhe é repassado, mas também precisa interrogar a testemunha para saber como o suspeito agiu durante o crime, como encontrava o ambiente no momento, até pela credibilidade da própria testemunha.” O trabalho de retrato falado necessita ser feito com cautela. Em alguns casos, dependendo das necessidades da polícia, ele pode ser até mesmo divulgado em jornais. As pessoas que trabalham com desenho policial precisam sempre estar se aperfeiçoando nesta área. Não existe um curso específico para formação. O que é feito atualmente é uma transmissão de conhecimento. “Sempre existem pessoas qualificadas e com interesse em aprender, e a polícia promove o encontro desses interessados”, diz. Para o delegado Leonel Carivali, não há tecnologia no mundo, dinheiro, investimento, que supra a boa informação. Esta é a base de qualquer investigação. A polícia tem que saber trabalhar bem com a coleta. “Não adianta ter um laboratório técnico de perícias totalmente moderno, exames avançados de DNA, se não conseguimos bons dados. A informação é o elo entre todas as peças do quebra-cabeça.” Para fazer um desenho, em média, Paulo Graciane leva 40 minutos. Atualmente ele conta com um programa de computador, exclusivo da Polícia Civil, o Faces, que possui elementos gráficos que possibilitam a construção de um retrato pré-finalizado. Detalhes mais singulares, como uma deformação ou um corte, são acrescentados mais tarde no momento de finalização. “Eu imprimo e depois faço o resto à mão. Podem aparecer todos os tipos de características, como rugas, verrugas, cicatrizes, brincos, piercings, bonés, gorros, tocas, um lábio leporino, tatuagens, manchas na pele, barba, bigode, suíça, pé de galinha, brinquinho, uma boca caída, dente saltado, falha de dente, enfim, aparece de tudo.” Graciane disse estar satisfeito com o que faz. Há mais de duas décadas, vários casos já passaram por ele. “Minha mãe é que tem um pouco de receio pelo que eu faço. Mas gosto desta profissão, não adianta. Sempre fui muito ligado ao desenho, e creio que isso se deve à minha criação, já que na minha família outros se interessavam também em desenhar.” A diferença é que Graciane, com sua habilidade, ajuda a resolver casos que muitas vezes poderiam parecer insolúveis.


[ok texto] pg_015a017_retrato falado.qxd

1/12/2005

10:30

Page 17

| Dezembro de 2005 | Primeira ImpressĂŁo

|17|


@ ALTERADO @ pg_018a021_projecionista.qxd

7/12/2005

11:47

Page 18

Uma vida pelo |18|

Primeira ImpressĂŁo | Dezembro de 2005 |


@ ALTERADO @ pg_018a021_projecionista.qxd

7/12/2005

11:48

Page 19

cinema

| Dezembro de 2005 | Primeira ImpressĂŁo

|19|


@ ALTERADO @ pg_018a021_projecionista.qxd

7/12/2005

E

ntre as profissões que conservam um sabor de glamour e um cheirinho de romantismo está a do projecionista, ou operador cinematográfico. Essa denominação objetiva não consegue expressar as sutilezas que ajudam a compor o perfil desse profissional. Muito além de ser um técnico hábil, ele é aquele que alimenta o imaginário, que ajuda a abastecer os sonhos e os delírios de uma platéia cúmplice e solidária. Um desses sensíveis profissionais é Marcos de Brito Paza, que trabalha na sala Eduardo Hirtz, da Casa de Cultura Mário Quintana (CCMQ). “O projetor é como a extensão de cada um, pois ele projeta os nossos sonhos. Sentamos numa sala escura, escura como a nossa mente é, onde as pessoas não se conhecem, mas são solitárias e estão solidárias ao mesmo tempo. São solidárias porque compartilham o filme, o sonho da cabeça de alguém, no caso o cineasta, que fica sozinho neste sonho”, reflete Marcos. O amor pela profissão foi herança de família. Desde pequeno acompanhava o pai, também projecionista, ao trabalho. Todas as tardes, após a escola, era presença confirmada no cinema. Ao mesmo tempo em que a escola o alfabetizava, o cinema lhe ensinava a língua inglesa. Hoje considera-se um amante da sétima arte. “Trabalho aqui porque aqui é lugar de cinéfilo”, diz Marcos. O cinema faz parte de sua vida em todos os momentos. Quando está de folga, dedica-se a pesquisar na internet informações inusitadas e passa as madrugadas vendo e revendo DVD's da sua coleção. Assim, além de curtir a história, pode deliciarse com o making off, com as cenas inéditas e as informações técnicas da produção.

|20|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

11:48

Page 20

Cinéfilo, Marcos Paza já assistiu mais de mil filmes em 30 anos de atividade. Aos 10 anos, já ajudava o pai durante as projeções TEXTO

DE

DAIANE EVANGELISTA DA VARA

FOTOS

DE

TIAGO COELHO

A função desses profissionais não é só vigiar o projetor. É necessário que montem os rolos de filmes, que vêm separados. Antes eram duas máquinas que faziam a projeção. O trabalho era mais complicado. Hoje apenas uma dá conta do recado. Marcos lembra que, quando era pequeno e ajudava o pai, não alcançava nos altos projetores. O pai encaixava a parte superior do rolo e ele cuidava da inferior. Aos poucos começou a aprender o ofício. A partir daí, foi um pulo para passar a montar e projetar os filmes. Esses foram os primeiros passos de uma carreira que já dura 30 dos seus 40 anos. Lembra ainda do primeiro emprego como profissional. Foi numa sala em Tramandaí, aos 17 anos. Na época queria mesmo era fazer festa. Trabalhava durante a noite e de dia curtia a praia. Certa vez seu pai estava de folga e foi visitá-lo. Isso foi numa quarta-feira, o cinema lotado. Foi preparar o filme e, quando abriu a lata, viu que as condições eram péssimas, o rolo veio todo amassado, um horror. Foi aquela correria para conseguir arrumar a tempo. Claro que seu pai teve que pôr a mão na massa e, mesmo assim, não foi possível evitar que o filme arrebentasse cinco vezes durante a sessão. Foi um dos piores momentos. Enquanto tentava concertar, teve que ouvir as criticas do pai, que o cobrava por não ter revisado a

E

PATRÍCIA CASTRO DA SILVA

tempo o material. Marcos diz que quem quer aprender cinema precisa ver cinema mudo, porque cinema é imagem, é tela, tem som, tem áudio, mas antes de tudo é fotografia em movimento. Este apaixonado por cinema, que já assistiu mais de mil filmes, diz que o cinema está se tornado um artigo de elite, de luxo, que a arte do cinema está se perdendo com o tempo. Ele afirma que o próprio cinema americano está filmando o cinema japonês pela escassez de assuntos. Para Marcos, é preciso ampliar a cultura e não delimitá-la. É necessário mostrar o cinema na raiz, introduzir as pessoas e educá-las para o cinema e o teatro, e deve-se fazer isto para dentro da escola. Na época em que seu pai começou como projecionista, a profissão era mais valorizada, tinha mais status, mas a realidade de hoje é diferente. Os salários estão muito baixos, principalmente nas grandes redes comerciais. Um dos poucos cinemas que ainda se diferencia é o da Casa de Cultura Mário Quintana. Lá o salário é superior ao da média da classe e há benefícios como ticket e plano de saúde, vantagens pouco comuns na maioria dos cinemas. Com tantos anos de profissão, Marcos não poderia deixar de contar algumas situações inusitadas que já presenciou. Ele recorda que, numa época, o cinema em que trabalhava começou a passar


@ ALTERADO @ pg_018a021_projecionista.qxd

filmes pornográficos. Um dia ele estava na sua cabine quando subiu um amigo com duas meninas. Seu amigo entrou num quarto que tinha nos fundos da cabine com uma delas. Ele já estava ficando nervoso com a presença da outra menina, mas continuou trabalhando normalmente e ela foi embora. Só depois, Marcos ficou sabendo que eram garotas de programa. Ficou apavorado, o imprevisto poderia ter lhe causado complicações no trabalho. Marcos passa, em média, dois ou três filmes diferentes a cada semana. Embora tenha na bagagem um número expressivo de filmes vistos, cita as cinco produções que foram mais significativos durante sua trajetória: Amor sublime amor (1960), Benhur (1959), Cidadão Kane (1942), Os incompreendidos (1959) e La Dolce Vita (1959). Hoje casado, tem dois filhos

7/12/2005

11:48

Page 21

e três enteados. O ofício que aprendeu com o pai pode estar indo para uma terceira geração, já que seu filho de dez anos está demonstrando interesse pela profissão. Marcos salienta, porém, que ainda é cedo para projetar o seu futuro, já que o menino ainda tem muito para aprender. A magia que o cinema acalanta também seduz outras pessoas que escolheram este como seu ambiente de trabalho. Na bilheteria da sala Eduardo Hirtz trabalha, há dez anos, Madalena John. Ela conta que levou um choque quando teve que trocar o registro de secretária, que tinha na carteira profissional, pelo de porteira, função que exerceu durante seu primeiro ano trabalhando nos cinemas da CCMQ. Na época cursava Letras e comparou o retorno financeiro que teria como professora com o da nova função. O fator econômico foi importante na sua escolha, mas hoje consi-

dera que suas funções a preenchem totalmente. Gosta do contato com públicos diferentes. Crianças, adultos e idosos são freqüentadores assíduos. Para ela, trabalhar na CCMQ é muito bom. “Aqui eu aprendo muito. É preciso saber identificar qual o filme em cartaz que é o mais indicado para um freqüentador indeciso, por exemplo”, diz Madalena. Ela dá as dicas, mas não com a intenção de vender o produto e sim de ver o cliente saindo satisfeito. Para ela, essa sensibilidade foi adquirida com o tempo. O retorno ela vê no público. Alguns lhe dão presentinhos, como balinhas, ou simplesmente, dizem que precisam consultar primeiro a moça da bilheteria antes de escolher o filme. “Muitas vezes não consigo ver todos os filmes, mas fico de orelha em pé, procurando ouvir os comentários de quem está saindo da sessão”, ressalta.

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|21|


OK [ok texto] [ok foto] pg_022a026_entalhador.qxd

|22|

Primeira ImpressĂŁo | Dezembro de 2005 |

30/11/2005

18:17

Page 22


OK [ok texto] [ok foto] pg_022a026_entalhador.qxd

30/11/2005

18:17

Page 23

Dois caminhos, a mesma arte TEXTO

DE

GABRIELA MOREL FOTOS

A

DE

E

SABRINA DE DAVID

CARLA STAHL

história assinala o entalhe em madeira como uma forma de expressão e de registro dos fatos ao longo das civilizações. A comunicação através do entalhe está presente dos grandes e suntuosos portões das igrejas medievais às modernas obras de arte. Martelo e formão são as ferramentas necessárias para o artista trabalhar minuciosamente a madeira bruta, cortando ou extraindo o material supérfluo até obter a forma desejada. Valter Frasson e Haroldo Machado, apesar de muito diferentes, dedicam suas vidas a esse ofício. Frasson, 49 anos, morador de São Leopoldo, é um grande artista. Mas o começo de sua carreira não foi nada atraente. Aos 15 anos, por intermédio de sua mãe, conseguiu emprego com um vizinho. Sua tarefa: entalhar caixões em Caxias do Sul, onde morava. Os primeiros dois dias do aprendiz foram dedicados a conhecer o ferramental e ter contato com a madeira. No terceiro, já estava entalhando. “Comecei a ver aquele trabalho com outros olhos e achei interessante”, lembra. No começo, entalhava em baixo relevo. Mas seu formão foi mais fundo quando o tema do pedido era esculturas. A prática e a necessidade de vencer as encomendas fez com que aprimorasse a sensibilidade com a madeira e com as ferramentas. A passagem pela fábrica de caixões

serviu, antes de mais nada, para Frasson decidir que esta seria sua profissão. O trabalho na fábrica durou sete anos, que lhe rendeu não apenas o conhecimento do ofício, mas também a vontade de empreender. Aos 23 anos, Frasson passou no vestibular para Engenharia Civil na Unisinos e montou seu atelier em São Leopoldo. A confiança em que o negócio daria certo, estava nos conhecimentos adquiridos em Caxias. Sua oficina era uma peça pequena, 2x3: “O suficiente para caber uma bancada, um esmerilho para afiar as ferramentas, a vontade e a gana para crescer”, recorda. Formado, o engenheiro Frasson continuou entalhando. A faculdade foi, para ele, mais positiva intelectualmente do que para a prática do seu trabalho. Entretanto, o processo de produção das suas obras traz à tona as

Frasson e Haroldo, apesar de diferentes, dedicam suas vidas ao entalhe | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|23|


OK [ok texto] [ok foto] pg_022a026_entalhador.qxd

30/11/2005

18:17

marcas de sua formação superior: tanto o simples entalhe do número de uma casa, quanto peças mais complexas, como o “Painel Hall da Biblioteca da Unisinos” são milimetricamente projetados antes da exucação. Seu rigor na produção e finalização das obras o obriga a trabalhar somente por encomenda. É metódico: o cliente explica o que quer, ele elabora o layout e executa o serviço mediante a aprovação final do comprador. Sua vinda para São Leopoldo abriu mais do que as portas de seu atelier. Frasson ganhou o reconhecimento do mundo. Até então, já contabilizou a realização de 700 peças, entre entalhes e esculturas. São painéis, obras sacras, bustos, estátuas, brasões, troféus, móveis e portas. Dentre as obras mais famosas estão a porta da Catedral de Pedra de Canela, o Cristo em tamanho natural, feito para a Igreja Menino Deus de Porto Alegre e a Pietá de

|24|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

Page 24

Frasson, no Santuário Nacional de Aparecida, São Paulo, produzida em oito meses e meio de muito trabalho. Haroldo Machado, 33 anos, ingressou tarde na profissão. Despojado, viu no entalhe uma forma de driblar o desemprego e garantir o pão de cada dia. Ao contrário de Frasson, o paranaense, que mora em Osório desde os sete, é autodidata. “Enquanto eu estou trabalhando, eu estou aprendendo. Ninguém nunca me ensinou como bater o martelo para lá ou para cá. Aprendi por necessidade. Eu acho que eu tinha que ser isso aí”, declara entre muitas risadas. A sexta série incompleta não foi obstáculo. Realizando experimentos e “brincando de artista” , como ele mesmo define, foi testando as possibilidades, sentindo as cores; o que para ele não tem muito a ver com a escola. Seu primeiro contato com a arte foi através da observação de


OK [ok texto] [ok foto] pg_022a026_entalhador.qxd

30/11/2005

outros entalhadores. Um dia, ao esculpir a madeira com um canivete, viu que também podia transformar a matéria bruta em produto artístico. Começou incentivado pelos amigos, que lhe pediram para fazer placas com nomes de pessoas e números de casas. Depois passou a expor seus trabalhos nos eventos da cidade, de onde surgiram as primeiras encomendas. Haroldo, que já trabalhou em fábrica de calçados, gráfica, montagem de torres de telecomunições e servente de obra, optou pela atividade alternativa por não gostar de cumprir horários. “Quando se faz o que se gosta, o trabalho é realizado a toda hora, quando bem entender”, justifica. O próximo passo foi fazer releituras em madeira de mestres da pintura, como Portinari, Picasso e Salvador Dali. Apesar de gostar da arte, teve de se voltar mais pa-

18:18

Page 25

ra trabalhos comerciais para sustentar a família. “Não tem como só brincar de artista, pois só arte não vende”, afirma o artesão. Tem se especializado na fabricação de logomarcas para empresas, placas de sítios, troféus, baús e bancos de jardim. O trabalho rústico de Haroldo difere do requinte das peças de Frasson, que de tão elaboradas não necessitam pintura. Ambas são peças acabadas, que podem decorar qualquer ambiente. Para esculpir, Haroldo prefere usar Itaúba, Cedro e Angelim. Nos quadros e baús utiliza o MDF, Medium Density Fiberboard, ou madeira do futuro, como é conhecida popularmente, por ser boa de trabalhar, leve e não possuir nós. Para pintar usa restos de tintas offset que ganha das gráficas. Frasson usa o Cipreste, os Cedros Comum, Rosa e Amarelo, o Freijó, a Cerejeira e a Tauguari, que são mais maleáveis

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|25|


OK [ok texto] [ok foto] pg_022a026_entalhador.qxd

30/11/2005

18:18

para esculpir. “Algumas madeiras eu ganho, mas tenho que deixar de cinco a dez anos paradas para secar”, conta o engenheiro. As ferramentas utilizadas pelos dois são praticamente as mesmas. Formões de diversos modelos e tamanhos, baseados em três tipos básicos: o goivo (em V ou U), o côncavo e o reto. Enquanto o artista do Vale dos Sinos tem uma média de 115 formões diferentes, o do litoral tem pouco mais de dez. Na verdade, todos fazem a mesma coisa, sendo que os goivos têm a característica de uma colher, enquanto o reto e o semi-reto são semelhantes a uma talhadeira. “Além dessas ferramentas, trabalho com algumas maquininhas manuais, tipo furadeira, tico-tico e lixadeira. Quando a peça é grande e precisa ser desbastada, eu utilizo uma motoserra pequena, a eletrônica, ou o sistema pneumático, que eu criei, para não |26|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

Page 26

desperdiçar o material”, explica Frasson. Por outro lado Haroldo lembra que quando começou tinha só um formão simples. Sonhava em ter um jogo deles, pois achava que assim seu trabalho seria melhor. Com o tempo viu que um único formão reto bastava para realizar todo o trabalho. “É uma questão de técnica e prática”, afirma. Um vive praticamente para fazer entalhes. O outro precisa viver deles. O primeiro não faz de suas obras comércio, enquanto o segundo gostaria de ter material para produzir em escala e vender na mesma proporção. Valter cria suas obras no confortável atelier montado nos fundos de sua residência. Haroldo trabalha em um espaço improvisado na garagem da sua modesta casa. Mas em comum entre eles há a paixão pela arte do entalhe e o orgulho de ser reconhecido como um grande artista.


[ok texto] pg_027a029_peruqueiro.qxd

30/11/2005

18:57

Page 27

Cabeças

feitas

A fabricação de perucas é hoje fundamental no apoio do tratamento de câncer

TEXTO

DE

ANDRÉ DE ASSIS

E

DIEGO CABRAL ROSINHA | FOTOS

DE

ANA FORTES

P

erucas são acessórios produzidos com cabelo natural ou sintético, que são utilizados como uma cabeleira postiça. Há registros do uso das perucas pelos povos egípicios, romanos e gregos, que, na antigüidade, caracterizaram regionalmente não somente as mulheres, mas também os homens. Com o surgimento dos reinos feudais, o adereço perdeu força, só voltando no início do Renascentismo. Nesta época surgem os seus mais ilustres usuários. A rainha da Inglaterra Elizabeth I (1558-1603) e o rei francês Luís XIII (séc. XVII), que começa a usar por causa de sua prematura calvíce e é copiado por toda a corte. Após, no reinado de Luís XIV, a corte chegou a empregar 48 fabricantes de perucas. No século XVIII, embalada pelos avanços tecnológicos da Revolução Industrial, a produção de perucas se desenvolve rapidamente. O uso das perucas cai em total esquecimento no início do século XX. Porém, nos anos 60, Londres passa a ser responsável pelas principais mudanças comportamentais do século, recolocando na moda o uso do adereço. A funcionária Cecília Massimino é formada em Contabilidade, mas largou a profissão para se dedicar à confecção de perucas. | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|27|


[ok texto] pg_027a029_peruqueiro.qxd

30/11/2005

18:58

Page 28

Conta que o nome original de sua função é “wigmaker ”, do inglês. Wig, de peruca e maker de fabricante. “Como sou brasileira, então sou peruqueira”, explica. Segundo ela, “a peruca de fio sintético é mais barata. Cecília compra fios naturais em locais fixos, e paga, em média, 200 reais o quilo, desde que a qualidade seja boa. Hoje em dia a peruca não é utilizada apenas por uma questão de estilo ou modismo. Ela também é uma necessidade da era moderna com todos seus problemas, como doenças e stress. A maioria das pessoas que procuram o serviço o fazem por causa do tratamento de quimioterapia. A quimioterapia é um tratamento eficaz no combate ao câncer, mas cobra um preço: além de náuseas, vômitos e diarréias, o medicamento utilizado provoca a queda de pêlos e cabelos do corpo. Segundo Marisa Costa, relações públicas da Casa das Perucas Jurema, localizada há 47 anos na Avenida Azenha, em Porto Alegre, os médicos indicam o uso da peruca como um apoio psicológico durante o

tratamento. “Há 15 anos realizamos uma pesquisa de mercado com a classe médica para verificar se o uso da peruca teria aceitação junto ao paciente quando este começaasse a perder o cabelo”, destaca. A intenção da pesquisa era mostrar para os médicos que eles deveriam recomendar o uso da prótese capilar antes da queda do cabelo para reduzir a debilidade emocional do paciente. Marisa afirma também que a empresa é a primeira no ramo a participar de um Congresso Internacional de Oncologia. O objetivo foi apresentar trabalho e mostrar a importância da auto-estima durante o tratamento de câncer. “Muitas clínicas de quimioterapia recomendam o uso da peruca, o que para nós foi uma vitória”, finaliza. Mas nem todas as pessoas têm condições financeiras de pagar 400 reais (preço médio) por uma peruca de boa qualidade. Graças aos serviços voluntários, como o prestado pelo Instituto da Mama (Imama), de Porto Alegre, essas pessoas conseguem manter sua auto-estima intacta durante o tratamento de


[ok texto] pg_027a029_peruqueiro.qxd

30/11/2005

18:59

Page 29

quimioterapia. O Instituto foi fundado em 1993, por profissionais da saúde e um grupo de mulheres com histórico de câncer de mama, preocupadas em transmitir conhecimentos e experiências vividas para outras mulheres que passam por essa situação. O principal objetivo do Imama é desenvolver uma maior conscientização das mulheres para que previnam o aparecimento do câncer, mas que também disponibiliza programas voltados à reabilitação física e psíquica da mulher com câncer de mama, visando reintegrá-la a seu meio. Atualmente, o Instituto, que somente no ano passado atendeu mais de 25 mil mulheres, conta com sedes também em Bento Gonçalves, Alegrete e Triunfo, no Rio Grande do Sul. Kátia Barcellos, assistente social do Imama, explica que, o Instituto conta com um banco com mais de cem perucas que são emprestadas para mulheres submetidas à quimioterapia e sem condições financeiras. “São doações espontâneas de pessoas que usaram e não precisam mais”, conta. “Porém, infelizmente, muitos usuários não devolvem o material. Temos perucas de

2004 que ainda não retornaram”, lamenta Kátia. As pessoas que queiram utilizar o serviço devem preencher um cadastro, com nome, endereço e telefone para contato. “O empréstimo é de três meses, podendo ser renovável por tempo indeterminado, porém sempre que esse prazo expira, pedimos para a usuária ligar e atualizar os dados o que nem sempre ocorre”, explica. Após o uso, os acessórios devolvidos são encaminhados para a Casa das Perucas Jurema, onde são feitos os reparos necessários, e em menos de uma semana já estão prontas para serem usadas novamente. De acordo com Kátia, o serviço é feito gratuitamente há mais de cinco anos. Além do empréstimo de perucas, o Instituto oferece psicólogos voluntários que ajudam as mulheres na sua recuperação emocional. Na sala aconchegante, onde são feitas as terapias em grupo, estava presente também uma das beneficiadas pelo serviço social, Jane Toniazzo, de 54 anos, que usa uma peruca emprestada. Ela relata que descobriu que tinha câncer de mama em junho deste ano. “Fui buscar o resultado na Santa Casa onde eu havia feito mamografia. Muito curiosa, abri o envelope. Na hora não sabia se chorava, se corria ou se fugia. Queria sumir!”, lembra. Jane, que faz quimioterapia no Hospital Mãe de Deus desde que fez a cirurgia em 7 de junho, conheceu o Instituto através de uma ex-colega de trabalho que foi lhe visitar quando soube do problema. “Depois não parei mais de vir, é muito bom”, diz eufórica. No primeiro dia ficou tímida e, mesmo sabendo do serviço, não solicitou peruca. “Depois me acostumei e resolvi pedir, falei com a Kátia e ela me providenciou algumas perucas que eu experimentasse”, diz. Segundo Jane, antes de descobrir o serviço ela procurou em lojas do ramo, mas não encontrou nenhum acessório que coubesse no orçamento. “A mais acessível que achei, custava R$ 176,00 e era uma peruca sintética muito simples, quer dizer, se notava que era artificial”, relata. Depois de experimentar diversas perucas sem se adaptar com nenhuma, Jane encontrou a que estava usando durante a entrevista que apesar de ser clara — ela tem cabelo escuro — lhe caiu muito bem. “Hoje, os amigos falam que de tão bem que ficou, quando voltar o cabelo eu posso pintar ele desta cor”, brinca. Estes momentos difíceis, afirma Jane, são tempos para a reflexão da própria vida. “Às vezes a gente se preocupa muito com o serviço, com coisas materiais e no momento em que tu te deparas com uma quase morte. É aí que tu páras para pensar: O que eu estou fazendo com a minha vida? Certas coisas a gente tem que deixar de lado para viver mais”. | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|29|


@ ALTERADO @ pg_030a034_tanoeiro.qxd

7/12/2005

11:55

Page 30


@ ALTERADO @ pg_030a034_tanoeiro.qxd

7/12/2005

11:56

Page 31

Tradição em

madeira | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|31|


@ ALTERADO @ pg_030a034_tanoeiro.qxd

7/12/2005

11:57

Page 32

Ser tanoeiro é um raro caso em que a mecanização abriga apenas o trabalho do homem TEXTO E

DE

FOTOS

N

ANA LUIZA VARGAS

FELIPE M. GUERRA DE

RITA CORONEL

os últimos 50 anos, ficou cada vez mais difícil a conciliação entre os ofícios manuais e a industrialização. Entretanto, há produtos que ainda dependem da mão do homem para ganhar a forma desejada. Algumas atividades que até ontem eram exclusivamente artesanais — como a ferraria, por exemplo — acabaram sendo adaptadas para os novos tempos, com o trabalho manual substituído pelas máquinas, que realizam o mesmo trabalho mais rapidamente e em série. A modernização das atividades manuais está ligada à necessidade de torná-las mais eficientes num mundo globalizado e extremamente competitivo. Mas ainda existem aquelas profissões artesanais onde as máquinas ajudam, mas não substituem o trabalho manual. A tanoaria é um desses serviços que mantém viva uma história de séculos. Tanoaria é o nome dado à arte de fabricar vasilhas, barris ou tonéis de madeira, usados normalmente para acondicionar e conservar vinhos, licores e aguardentes. Antigamente, estas vasilhas — popularmente chamadas de “pipas” — também armazenavam grãos, como milho e feijão, assim como água potável. Estas vasilhas têm dimen-


@ ALTERADO @ pg_030a034_tanoeiro.qxd

7/12/2005

sões e capacidade de armazenagens variadas. Embora as máquinas e a alta tecnologia já sejam utilizadas pelo tanoeiro, este é um raro caso em que a mecanização não se sobrepõe ao trabalho humano e artesanal. A máquina entra como um complemento, mas tudo ainda depende da visão, da técnica e, principalmente, da persistência do tanoeiro. “Quando eu comecei na atividade não tinha este maquinário todo. Antes, para fazer uma pipa de 500 litros, demorava uma semana, todo o encaixe era feito meio no olho. Hoje as ferramentas ajudam a encurtar o tempo de produção e dar um melhor acabamento às peças. Todo o encaixe era feito meio no olho mesmo antigamente”, afirma o tanoeiro Eugênio Mezacasa. Aos 48 anos, o proprietário da Tanoaria Mezacasa começou ajudando o pai a fazer a finalização totalmente manual dos barris. Sua pequena oficina produz barris de todos os tipos e tamanhos em Monte Belo do Sul — um município da Serra Gaúcha, emancipado em 1993, com pouco mais de 2.700 habitantes, próximo ao Vale dos Vinhedos, onde concentram-se algumas das principais vinícolas do Rio Grande do Sul. Trabalho não falta hoje em dia. Bem diferente do tempo de seu falecido pai, Miguel Arcângelo Mezacasa. Quando ele iniciou na tanoaria, as coisas eram bem diferentes. Arcângelo cultivava parreiras para produzir vinho artesanal, para consumo próprio e para vender a uva às vinícolas. Como a propriedade da família era muito pequena para viver apenas do cultivo das parreiras, ele resolveu abrir uma tanoaria para atender aos pedidos das vinícolas e de pequenos agricultores, que necessitavam de barris para armazenar o vinho. O conhecimento Arcângelo adquiriu na prática, copiando, errando, mas nunca desistindo. Durante muito tempo, Miguel

11:57

Page 33

Arcângelo foi o único tanoeiro da região. “Só o pai trabalhava e eu o ajudava”, lembra Eugênio. “Ele adorava, gostava mesmo de trabalhar com isso. Eu sou filho único, então não tinha outra pessoa para ajudar. Também não se tinha estudo, morávamos a uns vinte quilômetros da cidade e não tinha lugar para estudar. Fiz até a 5ª série e, com 15 anos, comecei a ajudar o pai e não parei mais. Fiz várias coisas em madeira, mas trabalhei mais com barris porque gosto mesmo disso”. Eugênio detalha como é aliar a mecanização ao trabalho manual: “Hoje você tem ajuda de prensas, lixadeiras e várias máquinas para o serviço que se torna bem mais livre. Para produzir um barril de 500 litros que antes demorava uma semana, hoje é gasto apenas quatro horas. O trabalho ainda é muito manual, você tem que preparar a madeira, tornear, selecioná-la, olhar as peças para ver se está tudo certo. Mesmo tendo máquinas os encaixes da tampa, que são os mais complicados de fazer, ainda têm que ser feitos artesanalmente. Há uma certa dificuldade e é complicado ensinar este serviço para a gurizada, porque eles gostam de ver a máquina trabalhando para eles, e a tanoaria não é assim”. A fabricação de um barril envolve uma série de procedimentos técnicos que são passados de geração a geração, pois combinam habilidade e “olho de especialista”. Não é tão simples como parece: a madeira cortada precisa ser preparada por um longo tempo até secar a seiva e depois cortada em ripas. O trabalho começa com o encaixe dessas ripas, um serviço praticamente matemático — usam-se de 20 a 30 peças num barril. Depois, aros de metal envolvem a madeira, que é molhada com água quente para ficar flexível. Quando o barril está pronto, ainda passa por testes para ver se não existem vazamentos. Há nove anos, Eugênio tem ser-

viço fixo fabricando barris para vinícolas. Sua tanoaria emprega, quatro funcionários para atender ao grande número de pedidos. As madeiras mais utilizadas são grápia e carvalho. O barril de aço inox torna-se cada vez mais um concorrente. A maioria dos clientes ainda quer a madeira, porque acha que a qualidade do trabalho é melhor, mas também tem os que preferem o recipiente de inox, menos trabalhoso de construir e mais prático. Márcio Brandelli é enólogo da Vinícola Don Laurindo, que fica no Vale dos Vinhedos, e confirma que a indústria do vinho usa tanto barris de aço inox quanto de madeira. Mas o metal, segundo ele, dificilmente vai roubar o lugar da madeira: “O inox é excelente por ser completamente neutro, e assim tem um poder de higenização e limpeza maior. Todas as fermentações dos vinhos são feitas nos barris de aço inox, mas é a madeira que deixa o vinho com mais corpo e mais estrutura. O barril de carvalho faz com que o vinho tenha uma evolução, pela interferência no sabor do vinho, no corpo”. Na opinião do enólogo, um grande vinho tinto não é grande se não for armazenado num barril de carvalho. Já o barril de inox seria usado para fazer vinhos mais leves, mais jovens. A vida útil de um barril de madeira pode não ter limite. Sabendo conservar — inclusive limpando o interior do recipiente regularmente —, pode durar um bom tempo. “Os dez primeiros barris que eu fiz para uma vinícola aqui da região completaram oito anos. Eles fizeram uma limpeza e ficou ótimo para continuar usando”, comprova Eugênio Mezacasa. O enólogo Brandelli salienta que o melhor vinho é aquele maturado em um barril novo, recém-fabricado: “Para fazer um vinho 'top', você tem que usar o barril de carvalho somente uma vez, não se usa duas vezes. Dos barris de primeiro uso saem os melhores | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|33|


@ ALTERADO @ pg_030a034_tanoeiro.qxd

7/12/2005

Artesão: Mezacasa em sua oficina, rodeado pelos barris que constrói com as próprias mãos

vinhos, depois de usar a primeira vez, utilizamos o barril mais dois ou três anos, só que para os vinhos de reserva, não um top de linha”. Diferentes tipos de madeira no barril geram diferentes tipos de vinhos. Cada vinícola tem seu barril preferido, segundo Márcio. Alguns dão preferência aos feitos de carvalho francês; outros preferem madeira vinda da Noruega ou dos Estados Unidos. Na Vinícola Don Laurindo, utiliza-se barris de carvalho francês. Os barris vêm prontos da França, destaca o enólogo. O custo médio é de 600 mil dólares, dependendo do tamanho. |34|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

11:58

Page 34

Para o enólogo, há uma demanda muito grande por toda a região. “O trabalho do tanoeiro não vai acabar, pelo menos não vai acabar tão cedo, porque a gente ainda precisa do barril de madeira para fazer o vinho. Em qualquer vinícola do mundo e em qualquer porão onde se faz vinho caseiro, continuam utilizando o barril, só que nem todos de carvalho, que é uma madeira muito cara. Quem faz vinho em casa, normalmente usa madeira nacional.” Já o tanoeiro Eugênio acredita

que a atividade deverá manter-se por um longo tempo, e continuará sendo manual. “A tanoaria ainda é lucrativa e tem mercado, tem muito trabalho”, salienta. O grande problema é justamente o fato da atividade ser praticamente toda artesanal, o que encarece o produto final. “Deveria dar uma lucratividade maior, porque é um serviço muito trabalhoso. Mas não penso em largar a atividade Queria que meus filhos continuassem, mas eu não sei se vão querer”, finaliza Mezacasa.


@ ALTERADO @ pg_035a037_en logos.qxd

7/12/2005

12:01

Page 35

O prazer do

sabor

O enólogo precisa conhecer todas as etapas pelas quais o vinho passa até estar pronto para ser consumido TEXTO

DE

V

GABRIEL SALDANHA

E

JULIANA PACHECO | FOTOS

isualizar, cheirar, tatear, saborear. Este é o ciclo executado na degustação do vinho, mas o trabalho de um enólogo não fica por aí. Este profissional necessita de uma gama de conhecimentos que vai do plantio da uva, passando pelos fatores climáticos, processos de elaboração e, finalmente, chegando a degustação. Um profissional do vinho pode trabalhar tanto em viticulturas como em casas de vinho, pode cuidar do solo onde a uva será plantada ou assinar e vender o vinho que aprova. O mercado de trabalho para este profissional divide-se em duas áreas. Ele pode produzir e elaborar o vinho, atuando nos parrerais, condicionando e estocando as bebidas; ou comercializar o produto, sendo consultor de consumidores em hotéis, adegas e restaurantes. O enólogo geralmente especializa-se em uma dessas tarefas, mas tem que conhecer as duas, pois uma depende da outra. Para conhecer o vinho, tem que saber como é feito. Para fazer o vinho precisa saber o que se quer alcançar em termos gustativos.

DE

ANA FORTES

Segundo Dirceu Scottá, presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE), a profissão ainda não é regulamentada, e tramita no congresso nacional um projeto de lei a fim de oficializá-la. Dirceu defende a posição do projeto, no qual para ser enólogo deve haver a formação técnica ou tecnóloga (nível superior). Estudante do curso de graduação em enologia, ele também trabalha como enólogo responsável da Dalpizol Vinhos Finos e cita que, após formado, o profissional recebe o registro do Conselho Regional de Química (CRQ). A paulista Eliane Nakadawa mudou-se para o Rio Grande do Sul com intuito de se formar técnica em enologia no Centro de Educação Federal Tecnológica de Bento Gonçalves (CEFETBG), a única faculdade de enologia do Brasil. Já formada há dois anos, ela trabalha atualmente na Vinícola Valduga, ministrando cursos e palestras de degustação. “Oferecemos uma visita técnica aos parrerais para quem se hospeda aqui em Bento e se interessa pelo assunto. Mostramos o processo de plantio, a parte

do envelhecimento da garrafa e depois fazemos a degustação, preenchendo uma ficha da Organização Internacional do Vinho”, explica. Eliane destaca o Rio Grande do Sul como o grande mercado nacional, onde o profissional pode trabalhar com mais facilidade na viticultura. Biólogo por formação, Mauro Corte Real possui quatro publicações sobre vinhos. Em 35 anos de experiência, já viajou pelo mundo em busca de aperfeiçoamento e ministrou mais de 500 cursos. Atualmente, participa como especialista em vinho em um programa semanal de debates de assuntos gerais na televisão. “Dedico-me a enologia a partir do princípio biológico, da fisiologia humana, que atende ao interesse da degustação, pois para tal é preciso conhecer processos químicos também.” Mesmo com esse amplo currículo, Mauro sempre exerceu outras atividades profissionais. Hoje é professor universitário, mas diz que, se fosse de seu interesse, poderia viver só da enologia. Mauro explica que o enólogo não necessita, e nem deve, beber o vinho enquanto degusta, pois isto pode alterar as condições de imparcialidade e de julgamento do mesmo. “A gente cospe o vinho depois de retê-lo na boca no máximo 20 segundos”, descreve. Ele relata conhecer dois enólogos que são praticamente abstêmios e não sabe de nenhum que seja alcoólatra. | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|35|


@ ALTERADO @ pg_035a037_en logos.qxd

7/12/2005

Diego Dequigiovanni, natural de Bento Gonçalves, se formou enólogo também na CEFETBG e trabalha na área de vendas. Conta que seu interesse pelo vinho vem desde criança, por causa da família. “Toda ela, tanto por parte de pai quanto de mãe, é formada por produtores de vinho. Dos meus 20 tios, 18 colhem uvas”, conta. Para ele, o enólogo precisa ser muito dedicado. “A enologia é complicada. Ela existe no mundo inteiro e se diferencia em cada lugar, seja pelo clima, solo ou ambiente. Temos diferentes técnicas que propiciam uma variação muito grande”, coloca. Ele explica que na faculdade a última coisa que aprendeu foi a degustação, pois primeiro ensinase a ser viticultor, com todos os processos químicos e físicos que isso envolve. Depois, ensina-se a degustar a bebida. Diego estudou pelo método francês de elaboração, pela qual a uva passa por poucos processos de transformação por mei da mão do homem e mais pelos fenômenos naturais de fermentação. Apesar da região Sul do Brasil ser responsável por cerca de 90% da produção do vinho nacional e ter todo um histórico na relação com os povos que colonizaram o estado, Diego diz que, da sua turma de 30 formandos, três, como ele, trabalham com vendas, cinco ou seis em vinícolas e o restante ficou fora do mercado de trabalho. Mesmo que o estado represente 80% do consumo nacional, que é de 1,9 l/habitante anualmente, não há mercado para todos ainda. Ele ressalta que São Paulo também se destaca na quantidade de consumo de vinho, mas a diferença está na qualidade do que se consome, pois os paulistas preferem os vinhos mais simples, os ditos de consumo corrente, então, lá o enólogo perde um pouco a sua função. |36|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

12:02

Page 36

Diego vê o vinho gaúcho como um bebê ainda, mas acredita muito na potencialidade do vinho tinto e destaca os espumantes (vulgos champanhes, nome dado aos espumantes produzidos na região de Champagne, na França, onde foram originados) e vinhos brancos. “Os espumantes brasileiros estão entre os melhores do mundo, ocupando o terceiro ou quarto lugar. Temos solo

propício, uvas colhidas na época certa, acidez correta e estilo correto”, classifica. Para ele, o país deveria criar logo uma identidade. “Caracterizo o Brasil como um bom produtor de uvas Merlot e Cabernet Franc. A Argentina tem força em vinhos tintos, até encontra-se vinhos brancos, mas quem fala em vinho argentino logo lembra do Malbec, é a identidade criada por eles. O


@ ALTERADO @ pg_035a037_en logos.qxd

7/12/2005

Brasil não tem esse foco, que deveria ser no espumante. A região de Champagne, na França, por exemplo, só faz espumantes, não produz vinhos”. O enólogo confessa sua preocupação com o preconceito com os vinhos brasileiros. “O consumidor ainda acha que o importado é melhor, mas nem sempre é. Tem vinhos de fora que chegam aqui e não são bons”. O melhor vinho, para Diego, é

12:03

Page 37

aquele que agrada ao apreciador, pois cada um tem um paladar diferente. “Uma pessoa pode achar um vinho de R$5,00 que atenda seu poder aquisitivo e que goste”, afirma. Outro dogma, que para ele deveria ser quebrado, é que vinho é só para quem é entendido. Vinho é para quem aprecia. Acredita que isso é muito difícil em um país pobre como o Brasil, pois o vinho acaba sendo um produto supérfluo,

e diz que seus clientes são na maioria de alto poder aquisitivo. A satisfação do trabalho para Diego é quando ele recebe a parabenização pela indicação de um vinho. Conta que tem clientes que ligam apenas dizendo o que vão comer e a escolha da bebida fica com o enólogo. “Eles não pedem preço, eu poderia mandar qualquer vinho, mas há confiança”, comenta. | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|37|


[ok texto] pg_038a040_fundi ªo.qxd

30/11/2005

21:30

Page 38

Profissão

perigo


[ok texto] pg_038a040_fundi ªo.qxd

30/11/2005

21:32

Page 39


[ok texto] pg_038a040_fundi ªo.qxd

30/11/2005

21:32

Page 40

Os especialistas em fundição dizem que a atividade é a última opção que o trabalhador faz TEXTO

DE

MARIANE MALDONADO

O

ferro é um dos metais mais rígidos em temperatura ambiente. Para torná-lo maleável ou mesmo chegar ao estado líquido, a temperatura deve se aproximar à casa dos 1.500 graus centígrados. O resultado é um caldo brilhoso e incandescente. Nas empresas de fundição, o ferro é fundido em um forno e, quando líquido, é despejado em um recipiente cilíndrico, fazendo encher de luz o interior do prédio escuro, sujo e enfumaçado. É neste local, às vezes iluminado por raios ultravioletas, em outras, sombrio, onde trabalhadores realizam as atividades de fundição. “Aqui é sujo, quente, pesado. Tem tudo o que é desconforto”, sintetiza o técnico em metalúrgica José Laércio Fernandes, 54 anos, que há 33 trabalha em oficinas de fundição. Quem está na profissão é, geralmente, uma pessoa com baixo grau de escolaridade. “O trabalho de fundição é a última opção do trabalhador, em todos os lugares”, revela. E não é para menos. Os gases exalados desse processo e a poeira resultante do serviço de polimento das peças fundidas são altamente prejudiciais à saúde. A silicose é a mais antiga e grave das doenças pulmonares relacionadas à inalação de poeiras minerais. Não há registro de cura. O que se sabe é que a silicose evolui a ponto de incapacitar o trabalhador, que torna-se suscetível à tuberculose e, com freqüência, tem relação com a causa mortis. A luz irradiada da fusão do ferro, que tanto encanta quem vê a operação pela primeira vez, libera raios ultravioletas que obrigam o uso de óculos específicos para não ter os o|40|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

E

SÓSTENES DA SILVA | FOTO

lhos queimados. Os fundidores utilizam também luvas e botas para se proteger das faíscas incandescentes. No processo de vazamento, quando o ferro líquido é despejado em recipientes menores em forma de panelas, o risco de queimaduras graves aumenta e, por isso, todo o cuidado é pouco. O líquido borbulhante é transportado manualmente para ser colocado nos moldes. Mesmo com todos os equipamentos de proteção, não é raro alguém ser atingido por faíscas do ferro. Mesmo com a queimadura, na maioria das vezes superficiais, pois as gotículas não se grudam na pele se sacudidas — a menos que sejam em grande quantidade — o trabalhador tem que agüentar a dor e seguir o caminho a passos largos e firmes. Se com todos os equipamentos de proteção a fundição é uma profissão de perigo, imagine há 5 ou 6 mil anos, quando eram fundidas as primeiras peças em bronze. A Revolução Industrial, na Inglaterra, na metade do século VXIII, impulsionou a atividade com a produção em escala de componentes mecânicos. O trabalho, que durante toda a história da fundição foi desenvolvido de forma rudimentar, deu uma guinada nos últimos anos. Hoje, como em qualquer outro ramo, a má qualidade é inconcebível em fundição. Por isso, ao mesmo tempo em que emprega pessoas com baixo grau de escolaridade, a maioria oriunda da construção civil, estas empresas estão cada vez mais contratando profissionais especializados, alguns formados em curso superior, como engenheiros mecânicos e de produção. Paralelamente, há um processo de modernização

DE

SÓSTENES DA SILVA

da parte operacional, o que faz com que, cada vez mais, as máquinas dividam espaço com os operários dentro dos pavilhões. Além de modernizar, os equipamentos suprem a crescente deficiência de mão-deobra, provocada pelas difíceis condições de trabalho. Por desestimular o ingresso de novos trabalhadores braçais, que optam por profissões menos penosas, as empresas de fundição têm uma característica peculiar: a maior parte dos operários permanece nelas por muitos anos, e até décadas. Dionísio Braun, 53 anos, é um destes. Ele trabalha na Fundição Alca, de Nova Petrópolis, desde a sua fundação, há quase 30 anos. É moldador manual, uma espécie de artesão em fundição. Este tipo de trabalho está, gradativamente, sendo substituído por máquinas sofisticadas, pois não há quem se interesse pelo desafio. “Quanto mais complicado de fazer a peça, mais eu gosto. Teve uma vez que o contramestre disse: 'Até amanhã de noite esta peça tem que estar pronta'. Eu fiquei até de madrugada acordado na cama, pensando em formas de como fazê-la”, conta, orgulhoso de sempre ter encontrado uma solução. Braun, que foge à regra do perfil dos trabalhadores em fundição, pois tem o segundo grau completo, conviveu com muitos colegas que não se acostumaram com a profissão e partiram para outras atividades. “As pessoas param porque encontram uma profissão melhor. Mas eu gosto deste serviço, porque, hoje em dia, a fundição está equipada. É bom de trabalhar”, afirma, conformado com as condições de trabalho.


@ ALTERADO @ pg_041a043_vendedor de rosas.qxd

7/12/2005

13:24

Page 41

Perfume

da noite

TEXTO

H

DE

ANA JÚLIA ISSE

E

LUCAS RAMOS ARISI | FOTOS

á 38 anos Odorico Félix, 56, deixa a noite porto-alegrense mais romântica e perfumada. Vestindo smoking, um buquê de rosas nas mãos e com um andar tranqüilo, Odorico das Flores, como é conhecido na noite, dá um charme especial aos bares e restaurantes sofisticados da capital gaúcha vendendo rosas. Às vezes parece que a profissão de Odorico não é de vendedor de flores, mas sim de cupido, pois nesses quase 40 anos ele ajudou a aproximar inúmeros casais. A idéia de vender rosas em bares e restaurantes foi inspirada num carioca que ganhava a vida com esta pro-

DE

LEONARDO REMOR

Odorico das Flores é figurinha conhecida de bares e restaurantes de Porto Alegre e já foi pauta de programas como Fantástico e Jô Soares | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|41|


@ ALTERADO @ pg_041a043_vendedor de rosas.qxd

|42|

Primeira ImpressĂŁo | Dezembro de 2005 |

7/12/2005

13:24

Page 42


@ ALTERADO @ pg_041a043_vendedor de rosas.qxd

7/12/2005

13:24

fissão, percorrendo a avenida Atlântica, em Copacabana, no Rio de Janeiro. O ex-chefe de Odorico, o jornalista Flávio Carneiro, que estava em férias na “cidade maravilhosa”, foi quem trouxe a novidade para mudar a sua vida, quando tinha apenas 18 anos de idade e trabalhava como office boy da Revista do Globo. Desde que resolveu abraçar a nova atividade, ele sabia que não poderia ser igual a muitos outros que ofereciam flores pelas ruas. Para isso providenciou um figurino diferenciado: trocou o tradicional e esportivo kit “calças jeans, camiseta e tênis”, pelo smoking, recebido de presente por um dos amigos da noite. Além do visual elegante, adicionou discrição e bom senso como elementos para conquistar os clientes. “É indelicado interromper o jantar das pessoas para receber o pagamento pelas rosas, por isso, procuro deixar o cliente à vontade para fazê-lo quando terminar”, explica um dos truques que desenvolveu ao longo dos anos. Para auxiliá-lo o filho, Fábio Alexandre Félix,18, cumpre a tarefa diária de ir a Ceasa buscar as rosas que o pai vende à noite. O cuidado com a preservação das flores também é tarefa sua. “No verão o tempo de estio faz com que tenha que turbinar as rosas com comprimidos de Melhoral”, explica. Estes atributos fazem com que Odorico das Flores seja muitas vezes a atração dos bares e restaurantes. É o que revela o gerente do Restaurante Riversides, no shopping Praia de Belas, Dernaci Vanni. “Quando ele não vem, os clientes reclamam sua presença”, garante. Adrian Lacerda, gerente do Dado Garden's Grill, complementa dizendo que “ele é que dá prestigio para casa. É um prazer pra nós receber a visita dele todas as noites”. As facilidades encontradas no início da profissão nem sempre se repetiram durante a sua trajetória, fazendo com que algumas vezes o aprendizado viesse com os erros. A primeira lição foi recebida na Encouraçado Botequim, boate clássica de Porto Alegre, localizado na Avenida Independência. Odorico percorria o bar como de costume, quando foi abordado por um sujeito que estava interessado em uma moça, que por sua vez, estava acompanhada do namorado em uma mesa do bar. O sujeito insistiu para que Odorico entregasse uma rosa à moça no instante em que o namorado saísse para ir ao banheiro. Inicialmente a proposta foi negada, mas diante do valor oferecido, cerca de três a quatro vezes o valor de venda, sua opinião mudou. Odorico das Flores então, aproximouse da moça, sozinha na mesa, e entregou-lhe uma rosa. Mas antes mesmo dela conseguir segurar o presente, o namorado já estava de volta testemunhando a cena. Quando Odorico preparava-se para sair, foi atingido por um soco do sujeito enciumado. Este episódio, hoje contado por ele com bom humor, serviu como umas das primeiras lições no que

Page 43

ele chama de escola da vida noturna, na qual se considera um graduado. Órfão desde os 13 anos de idade, Odorico tem poucas as lembranças dos pais. O que ficou marcado da infância pobre no bairro Partenon, em Porto Alegre, foram as constantes viagens do pai e as freqüentes doenças da mãe. Depois de perdê-los, viveu de um lado para outro na casa de irmãos e parentes. Hoje, Odorico não abre mão da companhia da esposa, do filho e netos. O vínculo já fez com que ele rejeitasse oportunidades de iniciar outra carreira, a de cantor. “Já tive diversas propostas, de empresários ricos, para gravar meu álbum e cantar no exterior, mas não aceitei, porque não posso ficar longe da minha família”, revela. Odorico começou a misturar música e rosas há tanto tempo que nem lembra mais exatamente quando foi. Mas não perde a chance de soltar a voz quando há possibilidade, seja acompanhando o som do violão e piano ou até mesmo de uma banda completa, em um repertório que, claro, inclui canções que falam de rosa, como “Primavera”, de Tim Maia, e “Como é grande o meu amor por você”, de Roberto Carlos, seu ídolo maior. Pelo que ele mesmo já pode comprovar em suas performances e pelos pedidos dos clientes, principalmente na canção de parabéns, a poderosa voz de barítono agrada tanto quanto suas rosas. A condição de vendedor de rosas lhe proporcionou uma vida mais confortável com a aquisição da casa própria, carro e casa na praia, além de possibilitar, com a ajuda dos amigos da noite, com que realizasse o sonho de ver a festa de 15 anos da neta Evelin Souza Félix. No dia 20 de março de 2004, a Igreja Nossa Senhora da Misericórdia estava cheia, Odorico, enfim, estava realizando seu maior sonho. Cerca de 300 convidados, entre amigos e parentes, presenciaram a valsa, que fez o avô e neta se emocionarem. A música de parabéns, cantada por ele, também os levou às lágrimas. O reconhecimento veio quando ele conseguiu chegar a programas de televisão nacionais como Fantástico e Programa do Jô Soares. Por aqui, o homem das flores também conseguiu atenção da imprensa e foi matéria de capa do caderno Donna, do jornal Zero Hora, além de ser requisitado para cantar em formaturas escolares. Tudo muito bom, segundo ele, mas nada tão gratificante como ter sido convidado para ser padrinho de casamento de um casal de namorados que se conheceram através de uma das suas rosas. Assim Odorico, com suas flores, acabou conseguindo um espaço muito especial na vida dos casais gaúchos que freqüentam a noite porto-alegrense, o de cupido.

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|43|


@ ALTERADO @ pg_044a049_lixo.qxd

7/12/2005

13:27

Page 44

Catadores de

esperança

É do lixo coletado a cada dia que Cristiano e Cátia conseguem garantir o sustento de sua família TEXTO

DE

O

MARISA SIMON

E

TÂNIA DA SILVA | FOTOS

desemprego tem aumentado para aqueles que não tiveram as condições necessárias para competir por vagas no mercado de trabalho formal. Para sobreviver, os mais afetados neste processo de restrição de oportunidades criaram novas alternativas. Os catadores do lixo são um exemplo disso. Além de encontrar uma maneira de sobreviver, também desenvolvem uma atividade que fornece importantes benefícios à sociedade e à preservação do meio ambiente. Aproximadamente 11 mil pessoas ganham a vida com as sobras do consumo da população da capital gaúcha. A maioria é de pessoas que vieram do interior do Estado em busca de um sonho, mas que pela falta de estudo e incentivo não conseguiram alcançar seus objetivos. Viram na reciclagem do lixo a única oportunidade de sobreviver. A imagem do catador de lixo expõe de forma pública a pobreza. Encarados como indivíduos sujos, de quem se quer distância, são pessoas exclusas da sociedade, restritas às vilas e ilhas, que circulam nos bairros comerciais e espaços centrais da cidade. O sol ainda não apontou no horizonte e as carroças, puxadas por cavalos, atravessam a ponte do rio Guaíba, driblando o trânsito para colher o que há de melhor no lixo seletivo dos bairros de Porto Alegre. Cristiano Machado da Silva, 30 anos, pai de cinco filhos, percorre este trajeto todos os dias, juntamente com mais 20 carroceiros da Ilha do Pavão. “Eu me levanto cedo, às 5h30min, es|44|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

DE

DENISE SILVEIRA

covo os dentes, encilho o cavalo e saio para chegar antes do caminhão do DMLU. Recolhemos o lixo nas ruas dos bairros São Pedro, Bom Fim e Partenon. São bairros comerciais, que produzem muito material reciclável, onde podemos transitar com cavalos e carroças”, diz Cristiano. Na rua ele encontra latas, garrafas quebradas ou inteiras, latinhas, jornais, papel branco, garrafas PET, plásticos, papelão e ferro. Acaba levando tudo para separar e selecionar na sua residência, na Ilha do Pavão, onde construiu uma casa de palafitas, embaixo da ponte, para evitar a enchente e ter lugar para guardar o papelão que precisa estar seco para vender. Na década de 70, a ilha foi utilizada como depósito do lixo de Porto Alegre e está caracterizada como zona crítica. No local, sobrevivem aproximadamente 200 famílias em condições de vulnerabilidade e exclusão dos bens e serviços que a sociedade humana construiu até hoje. Para agravar mais ainda a condição de vida dos catadores, a falta de conscientização das pessoas que ainda não possuem o hábito de separar corretamente o lixo orgânico do reciclável acaba provocando acidentes durante o manuseio. Cátia Aparecida Dias de Souza, 27 anos, mulher de Cristiano, possui em uma perna a cicatriz de um corte profundo ocasionado por uma ponta de vidro quebrado que veio junto com o lixo. E é no lixo que os catadores encontram muitas coisas que a população rejeita, mas que ainda tem seu valor, como armários, mesas, roupeiros, bicicletas e alguns


@ ALTERADO @ pg_044a049_lixo.qxd

7/12/2005

13:27

Page 45

| Dezembro de 2005 | Primeira ImpressĂŁo

|45|


@ ALTERADO @ pg_044a049_lixo.qxd

|46|

7/12/2005

Primeira ImpressĂŁo | Dezembro de 2005 |

13:27

Page 46


@ ALTERADO @ pg_044a049_lixo.qxd

7/12/2005

13:27

Page 47

eletrodomésticos. Cátia mostra com orgulho os objetos que vieram dasobra dos outros e que hoje mobiliam sua casa. “Minhas panelas são de lá, inclusive ganhei uma coisa que eu queria muito, uma prensa de cachorro quente, é pequeninha. Quero fazer cachorro quente para vender aqui na vila, é a luz. Até que funciona, está esquentando pouco, mas dá”, sorri. Após a classificação em fardos e sacos, o lixo é vendido para um atravessador da Ilha Grande dos Marinheiros, que depois revende para as indústrias de reciclagem. “Pelo papelão, ele paga de100 até150 reais. As garrafas dão pouquinho, uns10 ou 15 reais por mês, mas se vender tudo junto soma, mais ou menos, de 250 a 300 reais”, explica Cristiano. Com o dinheiro, pagam o “caderninho” no armazém, onde compram arroz, feijão, massa, açúcar, café e, às vezes, um pedacinho de carne. Cristiano diz que é difícil manter a família. Quando não tem comida, ele pesca no Rio Guaíba, mas nem sempre consegue fisgar um jundiá. Catar lixo não é tarefa fácil. Essa alternativa requer talento e habilidade. Além da discriminação social, estes homens e mulheres enfrentam dificuldades no dia-a-dia. Cristiano conta que disputar um espaço com o cavalo e a carroça no trânsito é complicado. “É difícil mesmo! Muitos carros não respeitam. Apertam a carroça e tenho que parar para eles passarem. Quando paro para juntar o lixo, muitos buzinam e tenho que deixar o lixo para trás.” Cátia lembra com indignação das vezes que os cavalos vêm de tão longe, cansados com o peso, e os policiais param as carroças com sobrecarga. Uma vez por semana eles fazem essa rotina na descida da ponte e o pessoal tem que descarregar e vir só com meia carga, porque os sacos pendurados ao redor da carroça podem cair e provocar acidentes no trânsito. “Aproveitamos a viagem para trazer uma carga grande, com mais volume do que peso. Imagina! Plástico não pesa, e o papelão está muito barato. Se não fizermos isso, vamos acabar passando fome”, complementa Cátia. O olhar triste de Cristiano reflete a realidade da situa-

ção em que vive. Ele fica sem palavras para falar de sonhos. “O que eu sonho ter, não faço idéia... No futuro quero ser vendedor de verduras, comprar na Ceasa e sair de caminhão pelos bairros, um dia em cada lugar.” Cátia apresenta sua família com orgulho, são cinco filhos e mais um afilhado que ela cuida porque sua comadre é alcoólatra. Diomar é o mais velho, tem 13 anos, Eva Luana, oito, Carla, sete, Cristian, cinco e a caçula, Jade, dois aninhos. Cátia não gosta que as crianças mexam no lixo. Enquanto ela trabalha, suas filhas Luana e Carla cuidam da casa e dos menores. Às 11h30min ela pára de trabalhar na reciclagem e se dedica em fazer a comida para o marido e sua mãe, que também mora na ilha. Dá banho nas crianças e leva para o refeitório. O refeitório foi criado há dois anos pela Associação dos Funcionários Públicos do Estado do Rio Grande do Sul, entidade mantenedora do Hospital Ernesto Dornelles, que vem contribuindo muito na alimentação das crianças. A mesma também disponibiliza 12 litros de leite por mês para cada criança. Cátia conta que só as mães podem almoçar com as crianças, mas não podem repetir. Já as crianças podem repetir quantas vezes quiserem. “Os meus filhos vão todos os dias. Sábado e domingo eles não ganham comida no refeitório. A comida é bem saudável, tem até sobremesa. Aqui em casa é só arroz, feijão e massa. Lá tem dois tipos de carne e verduras. Depois que as crianças vêm, encaminho elas para o colégio e fico com os outros dois perto de mim.” As crianças estudam na Ilha das Flores, na Escola Oscar Schmidt. A prefeitura disponibiliza um micro ônibus para levá-los. Neste ano a família do casal não passou fome. Conformada, Cátia diz que a condição da maioria das pessoas que moram na ilha é pior. “Tem gente que não tem o que comer. Graças a Deus não estamos passando fome. Mas teve anos em que as minhas crianças diziam estar com fome, pediam pão, eu chorava, tinha crise de nervos, me irritava, porque eu não tinha o que dar para eles.” Em relação ao futuro dos filhos, Cátia imagina que vão estudar bastante para não terem o mesmo destino | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|47|


@ ALTERADO @ pg_044a049_lixo.qxd

7/12/2005

13:27

Page 48

dela. Lembra que sua mãe lhe deu vários conselhos, inclusive o de ter lhe mostrado um caminho diferente. Colocou-a para trabalhar por diversas vezes em casas de família, mas Cátia não parou em nenhuma delas. “Eu preferia estar trabalhando aqui no papel, me sentia melhor, mais a vontade. Agora não está fácil, não posso ficar esperando só pelo marido, tenho que trabalhar na reciclagem para ajudar a botar comida para dentro de casa.” No entardecer, privilegiado pelo magnífico pôr-do-sol, Cristiano, percorre as margens do rio Guaíba, com um caíque feito de material reciclado, em busca de capim para alimentar o cavalo. As mansões, na outra margem ,contrastam com os casebres da ilha. Indiferentes ao ruído ensurdecedor dos aviões que passam rasantes para aterrizar no aeroporto Salgado Filho, as criança brincam em meio ao lixo, junto aos excrementos dos animais. Fragilizadas pela pobreza, seus rostinhos expressam a situação de miséria e exclusão social na qual sobrevivem. Luiz Miranda de Oliveira, 22 anos, analfabeto, portador de necessidade especial, também viu na reciclagem do lixo a única oportunidade para sobreviver. Circula no centro de Porto Alegre com um carrinho de duas rodas que ele mesmo puxa, com aproximadamente 60 quilos de jornal e papelão. Há cinco meses Luiz partiu a pé de Capão da Canoa para Porto Alegre. “Eu dormia na rodoviária em uma caixa de papelão, depois fui morar na Vila dos Papeleiros, onde houve um incêndio e a minha casa queimou. Agora estou aguardando a casa que o Demab me prometeu”, conta entusiasmado. O carrinho é do dono do depósito. Ele empresta para Luiz trabalhar no compromisso de vender para ele mesmo. “Eu já tenho conhecidos nas lojas e nas farmácias que guardam o material para mim. Tenho horário certo para passar, eles me ajudam muito com roupa, dinheiro e comida. Acabei de ganhar 4 reais, comprei um pedaço de carne”, diz apontando para a sacola pendurada no carreto. Luiz conta que

tem a tem a vantagem de poder circular no centro em qualquer horário. Já as carroças têm horário certo. Ele só ficou sabendo depois de adulto que perdeu a metade do pé direito em um incêndio quando ainda era bebê. Sua mãe era alcoólatra e deixou cair um cigarro em seu colchãozinho, mas não guarda rancor. “Tem gente que tem os dois pés e anda roubando e matando. Eu trabalho honestamente. Às vezes, quando chove, meu pé dói, mas não deixo de trabalhar.” Ele arrecada em média 6 reais por dia, conforme o peso do papelão. Luiz também enfrenta problemas no trânsito. “Esses tempos fiquei sem trabalhar, mal bati com o carreto em uma pessoa e fui parar na delegacia, me incomodei, prenderam o carrinho e fiquei sem trabalhar.” Ele sonha em ter uma carroça para deixar de carregar peso, pois sente dificuldade de trabalhar só com a metade do pé. “É difícil puxar o carreto numa lomba, meu pé dói muito. Com a carroça vou ficar sentado, só vou descer para pegar o papel.” Apesar de estarem buscando uma forma de inserção no mundo social e do trabalho, os catadores do lixo realizam uma atividade muito importante. Eles são os responsáveis pela separação e triagem do material que sai do lixo e que depois de vendidos às indústrias de reciclagem se transformam em matéria-prima para novos produtos, poupando os recursos naturais. O reaproveitamento do material reciclado impedirá a contaminação do solo, dos lençóis freáticos e nascentes de rios, pois alguns desses materiais levam anos ou mesmo décadas para serem consumidos pela natureza. No entanto, a coleta seletiva ainda não é habitual entre a população. Mesmo não tendo oportunidade de desenvolver um trabalho melhor, os catadores ainda têm mais consciência ecológica do que muitos dos que ocupam as salas de aula.

Sonhos “Meu sonho é proporcionar um dia de princesa para as minhas filhas. Queria conhecer a banda Rouge e poder visitar o programa do Gugu. Não precisava ele me dar nada, só a felicidade da banda Rouge conhecer as minhas filhas e presenteá-las com os brinquedos que eu nunca pude dar e que eu nunca tive. Outro sonho que ainda quero realizar na minha vida é levar o meu filho mais velho para escolher uma roupa e um tênis do seu gosto na loja. Nunca pude fazer isso, assim como nunca pude levar minhas filhas ao super|48|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

mercado. Luana quer comprar uma caixa de bombom e Carla, iogurte. Elas pedem, elas vêem propaganda na tevê e dizem: Vamos lá mãe? Aí o que eu digo? Para olhar os outros comprar? Eu falo a realidade para elas, a gente tem que comprar na venda. Do contrário, eu vivo muito feliz. Graças a Deus são todos bonitos e saudáveis, nenhum nunca me deu problema de doença, a não ser às vezes que ataca a asma.” Cátia Aparecida Dias de Souza


@ ALTERADO @ pg_044a049_lixo.qxd

7/12/2005

13:27

Page 49

| Dezembro de 2005 | Primeira ImpressĂŁo

|49|


@ ALTERADO @ pg_050a052_bombas.qxd

7/12/2005

13:30

Page 50

Risco total


@ ALTERADO @ pg_050a052_bombas.qxd

7/12/2005

13:30

Page 51

A recompensa maior do perito em bombas está no resultado de seu trabalho: a preservação de vidas TEXTO

DE

DARWECHE MAKKI

E

LARA LINDENMEYER | FOTOS

DE

CÂNDIDA LUCCA

A

mídia expõe diariamente casos de assaltos que envolvem explosivos. Bombas e granadas de mão também têm sido utilizadas para a prática de seqüestros e extorsões. Em muitas situações, o Grupo de Ações Táticas Especiais do Rio Grande do Sul, consegue impedir que algo pior, como uma explosão, ocorra. No ano passado, foi noticiado nos principais jornais do Brasil tentativas criminosas como as que os policiais encontraram nas proximidades de uma ponte em Candelária. Havia perfurações com 20 bananas de dinamite ligadas a fios prontas para serem detonadas. Os explosivos foram retirados do local e logo depois detonados. O cenário acima descrito faz parte do ambiente de trabalho de quem opta por uma profissão perigosa como a do perito em bombas, uma profissão que exige paciência, disciplina, organização, controle do medo e o gosto por situações de risco. Há três anos, o Capitão Luigi Gustavo Soares Pereira, 30 anos, trabalha com desarmamento de artefatos explosivos. Desde o início da carreira, na Brigada Militar, já aspirava trabalhar no Gate. Justifica a opção por ser um trabalho que depende exclusivamente dele. “É o técnico contra o artefato, que é completamente instável”, afirma. Na área de explosivos, sua formação ocorreu na Força Aérea do Rio de Janeiro e no Grupo de Ações Táticas Especiais em São Paulo. O conhecimento técnico foi adquirido na maior parte em outros estados e no exterior: curso de explosivos na Alemanha, no Rio de Janeiro, Curitiba e no quartel de engenharia em Cachoeira do Sul. Hoje, o Capitão Luigi diz estar habilitado para trabalhar com qualquer tipo de artefato explosivo encontrado no Rio Grande do Sul. Com a internet ao alcance de todos, não é necessário procurar muito para se deparar com sites que ensinam a preparar bombas caseiras. Muitos dão até sugestões de onde utilizá-las. Esse tipo de conteúdo, quando encontrado na rede, é desativado pela Policia Federal. O perito em bombas diz que existem páginas que apresentam detalhes e até desenhos de como fazer a montagem do artefato. Para o capitão, a Internet é utilizada como uma forma de pesquisar e testar a periculosidade dessas “receitas” novas que aparecem. Segundo ele, ao contrário do profissional que sabe a quantidade suficiente de explosivos para destruir um prédio, há pessoas despreparadas que utilizam quantidades desmedidas na fabricação e, com isso, acabam machucando inocentes. “Qualquer idiota com uma tonelada de explosivos consegue destruir um prédio”, ressalta. O técnico conta com alguns recursos que lhe auxiliam e, ao mesmo tempo, protegem durante as intervenções. Por exemplo, o traje antifragmentação e kit de linhas e ganchos. A roupa, que é a principal peça para mantê-lo vivo, fica longe de ser algo confortável; pesa em média 40 quilos e é extremamente grande, o que acaba limitando o cruzamento dos braços e a visualização do próprio corpo em apenas 45 | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|51|


@ ALTERADO @ pg_050a052_bombas.qxd

7/12/2005

13:30

Page 52

graus. “O técnico sabe que perder as mãos é uma questão de tempo, pois toda vez que explodir algo, a primeira coisa que perdemos são as mãos, aí estamos aposentados”, destaca. A psicóloga Iara Fasoli, na Brigada Militar há 25 anos, diz que as pessoas que optam por essa profissão identificam-se com trabalhos arriscados. “São aquelas pessoas que no momento que entram numa situação de perigo tem quase uma catarse, há uma liberação dessa energia toda. No momento da intervenção, eles conseguem fazer uma dissociação: entra a razão e sai o afeto”, afirma. Segundo Fasoli, o medo e a ansiedade existem, mas, o que esses profissionais têm é um controle diferenciado. O período de vida útil é curto, de 12 a 15 anos dentro desta especialidade, pois eles costumam lidar com uma carga de adrenalina bem superior a das outras pessoas. O nível de stress é sempre muito elevado. No Brasil, de 1988 até junho de 2001, foram registrados 1.076 casos de atentados a bomba. Dentro do alvo preferido dos agressores estão os carros-fortes e os caixas eletrônicos. Para Luigi, tudo é atividade criminosa, sejam aquelas em que os sujeitos utilizam explosivos com a intenção de causar desordenamento — conhecidos como vândalos — ou aqueles que usam para fins de vingança. Há também criminosos que paralisam atividades de empresas e estradas, passam trotes, realizam aberturas de cofres ou utilizam bombas contra a polícia durante as fugas. Em agosto deste ano, na primeira operação conjunta realizada no país, a Polícia Federal, juntamente com a Polícia Civil e a Brigada Militar do Rio Grande do Sul, foram presos quase todos os integrantes da quadrilha que esteve por trás de ataques violentos e cinematográficos a carros-fortes. Conforme o capitão, desmontar uma bomba de aproximadamente três quilos dentro de um carro-forte foi uma das tarefas mais complicadas que já enfrentou. O local era extremamente apertado e isso dificultou o trabalho. “Quando cheguei, a bomba estava na emi-

|52|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

nência de explodir. Demorei aproximadamente quatro horas para fazer a desativação”, lembra. O número de casos de ameaças de bombas que chegam ao nosso conhecimento através da mídia, não corresponde aos reais dados estatísticos. Quando há uma grande repercussão de explosão de bomba no Brasil, ocorre ao mesmo tempo o aumento das denúncias falsas. Esse é um dos motivos que leva os números de ocorrências serem pouco divulgados. “É passar um filme de artefato explosivo na TV que a gente começa a receber falsas ameaças. Imaginem o pânico das pessoas que vivem hoje em países que estão sob pressão terrorista. Acender uma luz é arriscado. Na Colômbia, todas as pessoas do governo sofrem isso diariamente. Então, não existe vantagem nenhuma da força pública, que somos nós, nesse tipo de divulgação”, complementa. Podemos dizer que, atualmente o terrorismo já atingiu o mundo todo, é o que demonstram as notícias sobre a explosão de cartas-bomba e carros-bomba em países tão diferentes entre si como Suíça e Albânia, Inglaterra e Paquistão, Áustria e Etiópia, Espanha e Sri Lanka. Segundo o site Library, a maior parte dos atentados terroristas dos últimos anos foram praticados com carros-bombas ou caminhões-bombas, detonados por controle remoto, e também através de motoristas suicidas, como foi o atentado contra a força multinacional estacionada em Beirute em 1983, onde morreram 241 americanos e 58 franceses. As embaixadas americanas nessa região do mundo são, hoje, verdadeiras fortalezas com portas de aço de 30 cm de espessura e vidros à prova de bala. Apesar de saber de fatos como estes e de toda a periculosidade da profissão, o perito em bombas mostra-se motivado com o que faz e afirma sentir-se recompensado ao preservar vidas. Diz que conseguiu encontrar nessa profissão a opção de salvar e de evitar que outras pessoas se machuquem. “O que me atrai no meu trabalho é saber que ele faz a diferença”, finaliza.


15:45

Page 53

em movimento

30/11/2005

A arte

[ok texto] pg_053a057_tatuagem.qxd

| Dezembro de 2005 | Primeira ImpressĂŁo

|53|


[ok texto] pg_053a057_tatuagem.qxd

30/11/2005

15:45

Page 54

Cuidado: Edu Tattoo é reconhecido por ter um rigoroso processo de esterilização dos instrumentos

Bosco e Edu Tattoo eternizam formas, cores e sentimentos na pele das pessoas TEXTO

DE

CLAITON FORTUNATO FOTOS

DE

E

JÚLIO FERREIRA

ANGELA ALEGRIA

O

zunido da máquina de tatuar e a dor parecem não incomodar. O trabalho na pele é feito com esmero, inspiração, precisão no traço e paciência. O estudante Lucas Ostjen, 20 anos, quer eternizar uma estrela simbolizando a liberdade. A figura está sendo marcada em sua perna direita, no lado externo, um pouco abaixo do joelho. Ele está tranqüilo. Diria depois que o astral do local colabora muito para que a pessoa possa permanecer calma. O ambiente é familiar. Afinal, José Carlos Dal Bosco Martins, 40 anos, trabalha com a esposa e os filhos. São quatro. Eles acompanham a rotina do casal quase que diariamente. O mais velho, de 17 anos, inclusive, segue a profissão do pai. “O importante é fazer o que se gosta. Aí se faz com amor”, resume Bosco. Para o tatuador, trabalhar com prazer é uma filosofia de vida. E a busca por este ideal lhe rendeu forças na lida com as dificuldades. Desta forma, levou adiante sua paixão pela arte e hoje se diz um homem realizado. Bosco há oito anos vive da tatuagem. Atualmente tem um ateliê em Esteio, região Metropolitana de Porto Alegre. O local é |54|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

movimentado. Para tatuar é preciso agendar. Mas a trajetória até aqui foi árdua. Desde criança, seu lado artístico sempre falou mais alto. Na escola, o que mais gostava era de desenhar. O primeiro contato com a tatuagem foi aos 16 anos. Resolveu testar suas habilidades. Lembra que na época o preconceito era muito grande. “Se eu aparecesse em casa com uma tatuagem, minha mãe me matava. A tatuagem estava muito associada à marginalidade”, recorda. Um


[ok texto] pg_053a057_tatuagem.qxd

30/11/2005

15:46

Page 55

amigo, então, foi sua cobaia. O resultado da incursão inicial não foi dos mais satisfatórios. Decepção geral. Entretanto, jamais cogitou abandonar a arte. Tornou-se um artista plástico. No decorrer dos anos, experimentou desenho, pintura e escultura. Casou-se com Marcí, e, no começo, enfrentou a resistência de ambas famílias quanto ao meio de ganhar a vida. Chegou a trabalhar num escritório, no setor de administração, na capital gaúcha. Não

era sua praia. “Eu dormia na mesa”, lembra. Não durou muito na função. Foi então para as ruas exibir seu talento. Época em que surgia a tatuagem de henna (não permanente). Logo Bosco embarcou na novidade e o interesse pela tatuagem, esquecido no tempo, renasceu com força. Bosco aproveitava principalmente o movimento no litoral. Ganhou experiência e acreditou que estava na hora certa de investir. “Tatuagem é uma arte | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|55|


[ok texto] pg_053a057_tatuagem.qxd

30/11/2005

15:46

Page 56

viva. Teu trabalho está sempre circulando”. E dessa vez, sua esposa serviu de tela para que seu traço pudesse ser aperfeiçoado. Amadurecido para deixar a henna de lado e entrar no mundo da tatuagem, se deteve ao estudo da assepsia — meios de destruir agentes da infecção. Esta deve ser uma preocupação permanente dos tatuadores. É um meio de proteger o cliente e o próprio profissional de doenças como Aids e principalmente hepatite. Natural de Sapucaia do Sul, na região metropolitana, Bosco optou por viajar pelo interior levando sua arte. “Eu tinha agora que ganhar nome como tatuador”, explica. No verão, o litoral era o destino. O meio de vida praticamente itinerante, além do reconhecimento, lhe rendeu recursos financeiros para que conseguisse investir num ponto fixo. Voltou à Região Metropolitana onde há três anos tatua no mesmo endereço no município de Esteio. A jornada de trabalho é longa. Abre a loja por volta das 14h e muitas vezes vira a madrugada. Seu jeito descontraído torna o ambiente agradável. A presença da esposa e dos filhos dá um tom caseiro ao local. Um certo constrangimento e receio inicial ao entrar no recinto ficam de lado nos primeiros cinco minutos de conversa. “Tem que ser assim. Esse papo com quem chega é importante”, relata. E essa troca de idéias com o cliente torna-se uma de suas marcas registradas. “Acabo fazendo amigos de verdade”, conta. Comenta que muitas pessoas chegam inseguras para fazer a tatuagem, sem saber o que realmente desejam. Bosco procura aconselhar, pois o desenho na pele é eterno, mesmo que hoje existam métodos que possam apagar os traços. Mas alguma marca sempre permanece. Tem como lema a alegria do cliente e sua própria satisfação. Mas enfatiza: “Não tatuo por grana. A pele não é um papel que você amassa e joga fora”. Bosco pode ser considerado um cara família. Não tem restrições quanto aos filhos seguirem sua profissão, mas não abre mão de que freqüentem a escola. “O estudo é muito importante”, avalia. Também alerta a prole quanto ao perigo das drogas. Nas horas de folga, gosta de ir ao shopping. Curte também ouvir música, principalmente os irlandeses do U2. Edu Tattoo — assim ele apresenta-se e assim gosta de ser chamado — também demonstra satisfação quando fala de sua profissão. “Eu vivo um sonho”, define. Edu tem 44 anos, 29 de tatuagem. É paulista, mas gaúcho de coração. Veio para o sul do país ainda pequeno. Mas voltou à terra natal em busca da realização. Ainda na infância, ficou fascinado com figurinhas de chiclete que deixavam marcas na pele quando misturadas com água. Na seqüência vieram as revistas — Fatos e Fotos, POP e O Cruzeiro — que esporadicamente traziam fotos de pes|56|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

soas tatuadas. “Aquilo era fabuloso”, recorda. Numa dessas publicações, certa vez, descobriu que um dinamarquês, Mr. Tattoo, tatuador conhecido mundialmente, estaria em Santos mostrando seu trabalho. Não teve dúvida, fugiu de casa e foi conhecer Knud Harald Lucky Gregersen — o nome verdadeiro do Mr. Tattoo. Nesta época Edu tinha apenas 15 anos. “Mr. Tattoo não tatuava menor de idade, mas eu sempre fui grande e aí não teve problema. Fiz duas com ele”, conta. A partir dali, não parou mais. Aos poucos foi aperfeiçoando a técnica. Sua namorada na época foi uma das primeiras a receber na pele o traço do jovem Edu. “Há alguns dias essa namora apareceu aqui para eu tatuar a filha dela. Muito legal”, comenta emocionado. Tattoo, mesmo antes de se dedicar exclusivamente à tatuagem, sempre manteve uma estreita ligação com a arte. Em agência de publicidade onde trabalhou, dedicava-se à parte gráfica. Porém, devido à necessidade, precisou atuar no setor de comércio. “Me ajudou muito também. Passei a ter uma visão comercial.” E talento associado ao tino para negócios somente poderia resultar em sucesso. Hoje seu trabalho é muito valorizado. Atende no centro de Porto Alegre e há algum tempo precisou mudar para uma sala ao lado para contemplar mais espaço. É visível a satisfação no rosto dos clientes. “Essa tatuagem ficou melhor que no desenho original”, expressa o advogado Sérgio Braibant, 52 anos, recém tatuado por Edu. Braibant tatuou um brasão da família. Foi sua primeira tatuagem. “Daqui a pouco vou ter que inventar outra”, comemora. Diz que sempre gostou de tatuagem, mas que demorou porque ainda não tinha certeza do que fazer. Edu costuma dizer que o seu diferencial são os cuidados com a higiene. Além das luvas e das agulhas, materiais descartáveis — ele e os outros três tatuadores, seus funcionários, trabalham com avental e máscara cirúrgica. Os mecanismos fixos das máquinas, biqueiras, após a utilização passam por um rigoroso processo de esterilização. Os passos da assepsia incluem lavagem com sabonete germicida e outros produtos antes de chegar ao Autoclave, um aparelho que tem o funcionamento semelhante a de uma panela de pressão. “O risco de contaminação é zero”, explica um dos colaboradores. Os mesmos cuidados são dedicados aos piercings. Sobre o futuro, Edu não fala em se aposentar. Faz o que gosta e faz com amor. Ele é casado e tem dois filhos, um casal. Ela tem 10 e ele, 12. Sua esposa trabalha junto. Nas horas de folga, Edu gosta de auto-modelismo — carrinhos de controle remoto — e pescaria esportiva. É uma figura que esbanja simpatia. Tem cerca de 30 tatuagens no corpo. “É menos do que gostaria”, conclui.


[ok texto] pg_053a057_tatuagem.qxd

30/11/2005

15:46

Page 57

A tatuagem na história Provas arqueológicas remetem a existência da tatuagem ao Egito entre 4000 e 2000 A.C. Algumas múmias com sinais parecidos com tatuagens foram encontradas no Vale do Rio Nilo. Estudos mostram ainda que nativos da Polinésia, Filipinas, Indonésia e Nova Zelândia também tatuavam-se em rituais religiosos. O pai da palavra “tattoo” foi o capitão James Cook, que escreveu em seu diário a palavra “tattow”, também conhecida como “tatau”, atribuída ao som feito durante a execução da tatuagem. Inicialmente, se utilizavam ossos finos como agulhas e uma espécie de martelinho para introduzir a tinta na pele. No Brasil, o precursor da tatuagem moderna foi o dinamarquês Knud Harald Lucky Gregersen, conhecido popularmente como Lucky, ou Mr. Tattoo. Mr. Tattoo se estabeleceu em Santos-SP, em 1959, utilizando seu talento e suas técnicas de desenhista e pintor profissional. Atualmente, a tatuagem deixou de ser símbolo de marginalidade. Ganhou status de forma de expressão individual de arte e estética.

Ambiente familiar: Bosco trabalha com a esposa e os filhos

Fonte: www.belezainteligente.com.br http://whiplash.net/ | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|57|


@ ALTERADO @ pg_058a061_escafandrista.qxd

7/12/2005

13:35

Page 58

Astronauta

subterrâneo

Um trabalho essencial que ninguém quer fazer TEXTO

|58|

DE

ADRIANO MARCELLO

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

E

JOSIAS BERVANGER OSCAR | FOTOS

DE

TIAGO COELHO


@ ALTERADO @ pg_058a061_escafandrista.qxd

I

7/12/2005

13:35

magine-se morando num apartamento da Avenida Presidente Roosevelt, em São Leopoldo. Domingo, você acaba de acordar. Chega na sala de estar com o jornal debaixo do braço e constata uma erupção do esgoto do prédio sendo liberada ali mesmo. Primeiro é o cheiro, depois a água escura molhando suas meias. O que fazer? Gritar indignado algum palavrão? Claro! E depois? Para evitar uma tragédia maior, você liga para o 0800 do Serviço Municipal de Água e Esgotos (Semae). Após 20 minutos, a equipe do instalador hidráulico Gilson Policarpi, 34 anos, estaciona em frente ao prédio. Sua freqüência cardíaca diminui. Seus problemas acabaram. Ao contrário do que você possa pensar diante de uma situação dessas, trata-se de um dos problemas mais simples no cotidiano de Policarpi e sua equipe. Em cidades como São Leopoldo, há quilômetros de galerias. Sua manutenção exige profissionais aptos a percorrer um complexo sistema subterrâneo de canalizações, destinado a receber as águas pluviais e os detritos de uma

Page 59

cidade com mais de 180 mil habitantes, que trata apenas 20% de seu esgoto. A função de Policarpi e sua equipe é desobstruir os esgotos, limpar fossas, caixas de gordura e fazer a limpeza de prevenção nos esgotos. " Nós gostamos de trabalhar com isso. Nunca fazemos a mesma coisa. Hoje é uma caixa entupida, amanhã uma rede coletora. Por isso que eu trabalho na função há dez anos." A equipe da Divisão de Esgotos do Semae pode percorrer quadras debaixo dos pés da população para fazer a manutenção da estrutura. "São aproximados 67 quilômetros de redes subterrâneas. A galeria que começa na Avenida John Kennedy e termina na Avenida João Corrêa tem cinco quilômetro.", afirma o diretor do Serviço Municipal, Arnaldo Dutra. Os perigos variam desde doenças infecto-contagiosas a explosões geradas pelo acúmulo de gás metano, proveniente da fermentação de matéria orgânica. "Estamos periodicamente retirando areia, garrafas plásticas, pedaços de madeira e até raízes. Uma vez tivemos que entrar com

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|59|


@ ALTERADO @ pg_058a061_escafandrista.qxd

7/12/2005

13:35

Page 60

uma motosserra", lembra Policarpi. "Parece um astronauta, porque tem que estar todo coberto. Quando a gente sai alguém tem que ajudar a remover a roupa que está completamente suja", brinca o instalador hidráulico, Policarpi, que atualmente é chefe da Divisão de Esgostos do Semae. A equipe comandada por ele é unânime: a pior época do ano para executar o trabalho é o verão. Além da pesada indumentária, que inclui botas de borracha, luvas de PVC que cobrem todo o braço, os trabalhadores usam um macacão pantaneiro até a altura do peito, uma jaqueta de lona e uma máscara. "Quando tem limpeza de elevatória, que reúne o esgoto de todo um bairro para ser bombeado para a estação de tratamento, além da roupa de proteção, tu trabalha a oito metros da superfície. O ambiente é escuro e tu estás sempre suando. A gente geralmente faz o serviço de limpeza antes do almoço, porque depois é horrível. Não tem estômago que agüente, o odor é muito forte", afirma Policarpi. Acidentes não são muito freqüentes, mas acontecem. Um bico de mangueira de alta pressão já arrebentou e foi arremessada no peito de um trabalhador. Ele teve duas costelas quebradas e perfurou o pulmão. Ficou seis meses afastado da função. "O chefe de Divisão anterior, pegou lepitospirose. Nós cuidamos bastante. Tem que trabalhar com segurança, senão tá ferrado!", conta Policarpi. Mesmo cumprindo uma função essencial para o bem-estar da comunidade, ele admite experimentar uma certa humilhação em algumas situações. Quando o trabalho de desentupimento acontece nas vias centrais de São Leopoldo, é comum ouvir as pessoas reclamando: "Que nojo! O que estes caras estão fazendo no esgoto? Será que eles não têm vergonha?" O sentimento se agrava quando alguém pergunta no que ele trabalha: "A gente procura falar Divisão de Esgotos, mas não, é o ‘Gilson do Esgoto’. Até as telefonistas que atendem o 0800 já conhecem a gente. Ah, o ‘Gilson do Esgoto’, ou o ‘Manuel do Esgoto’. E fica meio xarope, a gente fica constrangido assim, sabe?”, desabafa. Mesmo assim, Policarpi valoriza o trabalho que faz. Questionado por seus colegas por que nunca trocou para a Divisão de Águas, ele é enfático: "A função deles é pior que a nossa. No inverno eles estão sempre molhados. E na minha equipe o ambiente é muito legal. É difícil sair de uma equipe na qual todos se dão bem”. Se existem pessoas que não dão valor ao trabalho do limpador de esgoto, há aquelas que valorizam. Geralmente elas se encontram em situações como a |60|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

do apartamento da Presidente Roosevelt. "Acho que é o nosso compromisso. A gente vai lá e desobstrui e fica bom. Eles agradecem. Tem o pessoal que colabora, tenta ajudar na solução do problema. Nos oferecem água . A maioria consegue ver que o trabalho é para o bem da comunidade", comemora. Para a mulher e os dois filhos de Policarpi, a maior preocupação é com a proteção dele. "As crianças brincam que o pai trabalha no esgoto. Mas sabem que é uma profissão importante" conta ele.

O esgoto na história Para a maioria das pessoas, a preocupação com a questão do esgoto é semelhante a do lixo. Ambos desaparecem e quase ninguém sabe o seu destino. A idéia de um sistema para remover os dejetos das habitações não surgiu como uma preocupação sanitária, mas religiosa. As pessoas queriam se apresentar mais puras e limpas diante de seus deuses, para não sofrerem o terrível castigo da doença. Escavações arqueológicas feitas em 1920 descobriram a presença de sistemas semelhantes desde o ano de 3000 aC., nas cidades de Mohenjodaro e Harappa no antigo Vale do Indo, região que hoje pertence ao Paquistão. Elas já possuíam ruas drenadas com esgotos canalizados em galerias subterrâneas. As residências também possuíam banheiros com esgotos canalizados. No ocidente, na Roma antiga, foi realizada uma obra intitulada Cloaca Máxima, destinada ao esgotamento subterrâneo de águas estagnadas do Capitólio até o rio Tibre, composta por uma galeria de 740m de extensão e diâmetro equivalente a 4,3m. Concluída no ano de 514 aC., o sistema ainda está em funcionamento nos dias atuais. Em 1854, diante da epidemia de cólera que assolava a Inglaterra, o médico John Snow demonstrou que o problema estava relacionado com a contaminação da água pelas fezes. A revelação fez despertar nos ingleses a necessidade de uma estrutura de saneamento básico nas cidades, que mais tarde eliminou completamente a doença. A solução dos ingleses se propagou rapidamente pelas principais cidades de todo o mundo. Numa época de intenso comércio marítimo, as tripulações dos navios passaram a ter o receio de aportarem em cidades sem saneamento, como medo de serem contaminados por doenças. No Brasil, foi essa preocupação que levou Dom Pedro II a determinar a construção dos primeiros sistemas de esgotos no Rio de Janeiro e São Paulo. O imperador não queria sofrer boicote do comércio marítimo internacional.


@ ALTERADO @ pg_058a061_escafandrista.qxd

7/12/2005

13:35

Page 61

| Dezembro de 2005 | Primeira ImpressĂŁo

|61|


@ ALTERADO @ pg_062a064_j quei.qxd

7/12/2005

13:39

Page 62

Foi dada a

partida


@ ALTERADO @ pg_062a064_j quei.qxd

7/12/2005

A paixão pelo cavalo faz o jóquei suportar uma rígida rotina de treinamento TEXTO E

DE

JULIANO KAUS ROSA

FELIPE BUENO DA ROSA

FOTOS

DE

CARLA STAHL

13:39

Page 63

O

cavalo só passa encilhado uma vez. Esse ditado não se aplica ao profissional que ganha a vida montado em um cavalo. Paixão não se explica, e, para muitos, o turfe é uma verdadeira paixão. O chamado esporte dos reis surgiu na Inglaterra por volta de 1600 justamente com a justificativa da paixão pelos cavalos. No Brasil, chegou com a vinda dos portugueses nos idos de 1820, copiando os modismos europeus. Desde então se popularizou. O que antes era apreciado só pela elite, hoje também é prezado por pessoas motivadas pela curiosidade e pela beleza dos animais. Paralelamente à história das corridas surgiu a a atividade do jóquei. Ele é peça fundamental em uma prova. Geralmente oriundo do interior e de classes menos abastadas, esse profissional já cresce habituado a rotina do hipódromo. Na maioria das vezes, são filhos, netos, netos que assumem o papel da tradição familiar e passam seus conhecimentos de geração para geração. Na esperança de atingir a realização profissional, os jóqueis vão às pistas ainda crianças em busca do sonho nem sempre alcançado. Além de competência e talento, este profissional precisa da ajuda do acaso e do animal que está montando. Carlos Alex Vigil, ou C.A Vigil, como é conhecido no meio turfístico, é um destes apaixonados. Ainda muito jovem, aos 14 anos, corria carreiras de cancha reta, que são as mais comuns no interior do Rio Grande do Sul. Filho de peão de rodeios e domador, sobrinho de tratador de cavalos e primo de jóquei, Vigil não fugiu a regra e sempre teve uma certeza a respeito de seu destino. De alguma forma, os cavalos fariam parte da sua vida. Em um mercado de trabalho tão disputado, onde poucos têm a sorte de despontar, a concorrência é a maior barreira. Mesmo assim, Vigil, ainda aprendiz, em 1995, ganhou o seu principal título: o Turfe Gaúcho, uma das principais provas do Rio Grande do Sul. Façanha que mais tarde, em 2005, conseguiria repetir . A difícil rotina, associada à pressão por bons resultados, faz com que um campeão tenha vida dura, mas estes sacrifícios são plenamente absorvidos quando cruza o disco final em primeiro lugar. Mesmo assim, o jóquei muitas vezes não é valorizado. Ao vencer uma corrida, os holofotes voltam-se para o animal, deixando em segundo plano as mãos que tão bem o conduziram à vitória. A disciplina de Vigil é constante. Ao acordar, diariamente às 5h30min da manhã, põe os cavalos na pista para exercitarem-se, tornando-se neste momento também um treinador. Seu envolvimento com os animais segue até o final do dia. No Brasil existem escolas para aprendizes e alguns hipódromos oferecem alimentação, uniformes, alojamentos onde os jovens devem ter entre 16 e 18 anos e peso menor de 47 kg. Depois de passar por uma série de testes, o jóquei é liberado para montar corridas oficiais na qualidade de aprendiz. Como em qualquer outra profissão, o jóquei também tem de superar algumas barreiras. A primeira delas é a genética. São as características e particularidades de cada um que fazem deste esporte um dos mais emocionantes. O peso médio dos atletas varia em média de 48 a 55 Kg. A altura normalmente não excede os | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|63|


@ ALTERADO @ pg_062a064_j quei.qxd

7/12/2005

13:39

Page 64

1m65cm, mas a astúcia e destreza que demonstram montando em um cavalo a mais de 50 km/h os tornam gigantes nas pistas. C.A. Vigil pesa 56 Kg e é considerado um jóquei pesado. Em guerra com a balança, tem a alimentação regrada e a sauna é recurso constante. Qualquer grama a menos pode ser decisiva. C. A. Vigil tem como ídolo o jóquei carioca Jorge Ricardo, o Ricardinho. Mesmo com a ausência de divulgação nos meios de comunicação e sendo o turfe um esporte relativamente pouco apreciado aqui no Brasil, Ricardinho, que começou a correr aos 15 anos, é o segundo jóquei com maior número de vitórias no mundo de todos os tempos. Ao total, Ricardinho tem mais de 9.000 vitórias. Está atrás do recorde mundial, que pertence ao já aposentado panamenho Laffit Pincay Jr, que tem 9.530. Ricardinho tem 43 anos, nasceu no Rio de Janeiro e mantém-se em excepcional forma física. Teoricamente, por seu peso e tamanho, as mulheres levariam vantagem sobre os homens montando cavalos, mas não é assim que funciona na prática. Proprietários, turfistas, treinadores, tratadores, jóqueis são em sua maioria do sexo masculino. No Brasil, poucas jovens se aventuram nesta profissão, porque a concorrência é grande e o preconceito maior ainda. Assim como os jóqueis masculinos, no entanto meninas também acompanham a trajetória de pais, irmãos, tios na lida com os cavalos. Desenvolvem o gosto pelo esporte e vislumbram uma maneira de exercer uma profissão associada à paixão.

|64|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

A gaúcha Susana Davis ingressou na carreira quase por acaso. Montava cavalos por hobbie e foi convidada para uma prova de amazonas realizada em Canoas, no ano de 1969. Montando o cavalo Navidad, ficou em segundo lugar. Se identificou com o esporte e tornou-se uma das melhores joquetas do Brasil. Sua maior barreira foi justamente o pioneirismo, por ser uma das primeiras mulheres no país a correr profissionalmente. Nem mesmo uma “rodada” em meio a 14 cavalos no hipódromo de Maroñas, no Uruguai, que a tirou das pistas por três meses, foi suficiente para desestimular esta profissional. Foi com muita dedicação e insistência que Susana conseguiu conquistar o respeito dos criadores para montar clássicos importantes. Sua trajetória é rica em vitórias no Brasil e fora dele. Na sua opinião, a força de vontade aliada ao dom faz a diferença. “É uma profissão bastante difícil, perigosa, e tu tens que ter algo a mais para superar essas dificuldades”, diz. A remuneração de um jóquei vai depender de um conjunto de fatores, entre eles, muito trabalho, genética, talento e um pouco de sorte. Segundo Susana, não é uma profissão das mais valorizadas, mas, se bem trabalhada, dá para sobreviver. Hoje Susana Davis é starter, uma espécie de árbitro das corridas que tem a atribuição de preparar e determinar a largada do páreo. É ela que dá a partida das corridas. Mais uma vez pioneira, é a primeira mulher nesta atividade. Além disso, dirige a escolinha para jóqueis do Jockey Club do Rio Grande do Sul destinada a meninos e meninas que tenham algum vínculo com cavalos. Passa os ensinamentos básicos e sua experiência. Prepara os alunos para que venham a ser profissionais bem sucedidos. Não há idade para encerrar a carreira. Sabe-se de jóqueis que correram até os 60 anos. “Isso varia de pessoa para pessoa e de acordo com o que acontece na vida de cada um. Cada jóqueI tem o seu limite”, explica Susana. Ela comenta que o turfe não está no seu melhor momento, pois jogos como loto, mega sena, bingos são mais acessíveis à população. “Se as pessoas soubessem como é bonito ir ao Jockey, participar, ver os animais, acho que iriam gostar e comparecer mais”, diz. A sucessão de êxitos em uma “carreira”, seja nas pistas ou na vida, depende acima de tudo do caráter. Satisfação pessoal é conseqüência para quem ama o que faz, e a profissão de jóquei é mais do que um modo de sobrevivência, é a esperança de fama e sucesso nas patas de um cavalo.


@ ALTERADO @ pg_065a067_locutor de aeroporto.qxd

7/12/2005

13:41

Page 65

“Infraero

informa...” A rotina das locutoras que orientam os passageiros no Salgado Filho TEXTO

DE

JULIANO RANGEL

E

RICARDO ECCEL | FOTOS

DE

RICARDO ECCEL

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|65|


@ ALTERADO @ pg_065a067_locutor de aeroporto.qxd

O

uve-se um ding dong. Logo após uma doce voz feminina anuncia: “A Infraero informa a chegada do vôo TAM 8021 procedente de Buenos Aires”. Todos que se encontram no saguão de embarque e desembarque ficam atentos, pois a partir destas informações eles embarcarão ou receberão seus amigos e familiares. Sempre antes desta voz ecoar pelos saguões do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, ocorre uma pequena movimentação na área restrita aos funcionários. Telefone tocando, planilhas sendo preenchidas, informações passadas para o computador e, na seqüência, sendo narradas com muita tranqüilidade pelo microfone para todo o Aeroporto. Esse processo é repetido dezenas de vezes diariamente na sala de locução do Aeroporto. Clediomar Inês de Lima, 36 anos, há seis como locutora do Aeroporto, viu sua vida mudar quando seu marido, que já trabalhava no local, deixou seu currículo para uma vaga na locução, pois algumas meninas estavam em férias. Ela conseguiu o emprego. E o que seria apenas temporário, tornou-se sua profissão. O começo foi marcado pelo nervosismo. ''Nos vôos internacionais precisamos falar em português, inglês e espanhol, mas eu não falo inglês. No primeiro mês o supervisor permitia usar uma ficha, mas depois era sem papel nem nada. Eu sentia um frio na barriga, mas como é uma frasiologia padrão, memorizamos'', comenta Clediomar. Ao todo são seis meninas trabalhando em escalas 24 horas, com horários diversificados todos os dias em uma sala com uma vista panorâmica da cidade de Porto Alegre. O trabalho exige cuidados especiais porque, além de anuciarem nos microfones todas as che|66|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

7/12/2005

13:41

Page 66

gadas e partidas, qualquer informação que aparece nos painéis são de responsabilidade delas. “As companhias nos ligam para dar horário de chegada e horário de partida. Assim que recebemos as informações, colocamos no sistema, ele vai para o painel. No momento que o avião pousa, nós colocamos no sistema e anunciamos a chegada. Depois a companhia solicita a primeira chamada. E no final a última chamada. Isso tudo gera um sistema de muita atenção'', contextualiza Clediomar. O trabalho do Sistema Informativo de Vôos (SIV) é feito em escalas, o que acarreta de algumas delas precisarem passar Natal e Ano Novo trabalhando no Aeroporto, como é o caso de Viviane Griep. “O visual que temos aqui de cima é lindo. Você acompanha toda a alegria das pessoas. E o fato de não estar com a família não é problema, pois comemoramos um dia antes ou depois. O amor por este trabalho é tão grande que supera a falta da família nestes momentos festivos”, emociona-se Viviane. O local onde inicia-se a locução é uma espécie de confessionário, é uma sala pequena em função da acústica do local, separada da Sala de Comando. As locutoras ficam de pé, apenas com um microfone de alta captação posicionado a sua frente. Em mãos, uma tabela com informações e uma frasiologia de todo o plano aéreo. Tendo a voz como principal instrumento de trabalho, elas recorrem a alguns cuidados básicos, como a ingestão diária de uma colher de mel, evitar a exposição a condicionadores de ar, nunca ingerir líquidos gelados e nunca forçar muito a garganta, pois caso sua voz esteja rouca ou afônica, por padrão elas não podem realizar a locução, assim pedindo

que uma outra colega a substitua. “Como a gente opera telefone, computador e som, nós nos revezamos. Eu já fiquei uma semana sem voz e continuei trabalhando, mas sem fazer a locução'', relembra Clediomar. O ambiente de trabalho reflete a relação entre elas. Durante o expediente conversam e brincam, mas tudo sem esquecer da responsabilidade. “Existe muito profissionalismo e amizade. As mais experientes sempre auxiliam as mais novas com dicas para melhorarem”, diz Daiane Regina Machado, a mais nova do grupo, com apenas cinco meses de casa. Em alguns momentos a descontração é tão grande que elas precisam parar, se concentrar e fazer a chamada. “Alguém pode ter contado uma piada e todas nós estarmos rindo, mas se precisamos fazer a locução, nos concentramos e realizamos a chamada. Saímos da piada vamos para a salinha do som e mantemos uma postura profissional”, salienta Viviane.

Compreensão da voz O fato das mulheres dominarem o setor de locução tem um fundamento psicológico, segundo uma pesquisa universitária, realizada na Inglaterra, os ouvidos do ser humano “ouvem” homens e mulheres de modo distinto. O cérebro humano usa áreas bastante distintas para processar as vozes de homens e de mulheres, indica o estudo. E isso pode ajudar a explicar, por exemplo, por que as pessoas que sofrem de alucinações nas quais “ouvem vozes” quase sempre têm a impressão de escutar vozes masculinas. Em um trabalho publicado pelo periódico científico “NeuroImage”, o pesquisador Michael Hunter e seus colegas da Univer-


@ ALTERADO @ pg_065a067_locutor de aeroporto.qxd

Clediomar: seis anos dedicados a informar os passageiros e visitantes do Aeroporto

sidade de Sheffield, examinaram o cérebro de 12 homens, que escutavam gravações de vozes masculinas e femininas, com máquinas de ressonância magnética. A equipe verificou que a voz feminina ativa principalmente a chamada região “auditória” do cérebro, enquanto a masculina estimula uma área conhecida como “olho da mente”. “A voz feminina é mais complexa do que a masculina, por causa de diferenças na forma e tamanho da laringe e das cordas vocais e também por possuir uma quantidade maior de melodia natural. Quando um homem ouve uma mulher, a região auditiva

7/12/2005

13:41

Page 67

processa esses sons para “ler” a voz. Quando ouve outro homem, ele compara a voz dele com a sua própria”, diz Hunter. “Isso explicaria por que as vozes femininas são consideradas mais claras — por serem processadas na região auditória, elas seriam decodificadas mais facilmente.”

Sonho de ser locutora O setor de Inspeção de Bagagens e Passageiros do Aeroporto Internacional Salgado Filho tem sua própria locutora: Sônia Mara Rosa Bispo. Um belo dia foi esquecido um celular na sala de Raio X da sala de embarque Sônia foi chamada para ir ao som para avisar o passageiro. Desde então não parou mais. “Após comentários dos meus colegas de trabalho sobre a minha voz, fui convidada para apresentar uma peça no final do ano passado no saguão do Aeroporto. Cheguei

em casa e escutei a música do Gonzaguinha, “Viver e não ter a vergonha de ser feliz”, e percebi que a letra era muito profunda. Montei uma peça em cima dela e me apresentei. Foi o momento mais emocionante da minha vida, pois o saguão estava lotado e era minha primeira apresentação”, emociona-se. Após o sucesso da apresentação, Sônia conseguiu passar na seleção para o coral da PUCRS. O seu maior objetivo no momento é trabalhar entre as locutoras do Salgado Filho: “Quando escutei pela primeira vez as meninas falando, eu pensei: ‘Meu Deus, será que algum dia eu vou conseguir falar nestes microfones’. E hoje em dia eu trabalho aqui. Mais um passinho eu estarei lá com a Clediomar e a Viviane. O Universo conspira a nosso favor a tudo que desejamos de bom ao próximo”, conclui Sônia, com o seu largo sorriso. | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|67|


@ ALTERADO @ pg_068a070_passeador de cachorro.qxd

7/12/2005

13:43

Page 68

Ossos

do ofício TEXTO

DE

CAROLINA ALVES

FOTOS

DE

RITA CORONEL

E

FERNANDA DIAS

O principal requisito para ser um passeador de cachorro é estabelecer um vínculo afetivo com os animais


@ ALTERADO @ pg_068a070_passeador de cachorro.qxd

U

ma pessoa anda pelas ruas com o punho fechado para segurar as guias. Anda a passos medidos por outros. Às vezes dezenas de cachorros a rodeiam. Por prazer, afeição, dinheiro ou simplesmente para passar o tempo, os conhecidos como passeadores de cachorro ajudam os animaizinhos a praticar exercícios de uma forma prazerosa. Essa profissão um tanto nova consiste em perambular diariamente com cães de portes variados, desde o Teckel, o popular salsicha, até os grandes Labradores. A atividade em questão vem sendo difundida em todo o mundo. Entre os hermanos argentinos é muito popular, principalmente no bairro Palermo e na Praça San Martin, localizados em Buenos Aires. Nesses locais, é comum encontrar uma pessoa com cerca de oito cães. No Brasil, o ofício ainda não é muito comum, mas alguns passeadores podem ser vistos com seus “clientes” pelas ruas e parques. Paula Magalhães, porto-alegrense de 26 anos, atua no ramo há quatro anos. Para ela, o serviço é um free-lance , enquanto não consegue trabalhar como comissária de bordo, sua área de formação. Janine Rosa, também porto-alegrense de 26 anos, passeia com cachorros por ser uma extensão de seu trabalho principal, o

7/12/2005

13:43

Page 69

adestramento de cães a domicílio, que realiza há cerca de seis anos. “Através do meu trabalho levo alívio aos donos dos cachorros. Tudo funciona como uma espécie de creche. As pessoas podem sair de casa para trabalhar e ficam tranqüilas, pois seus cães irão fazer a atividade física necessária diariamente”, afirma Janine. De acordo com as profissionais, o principal requesito para efetuar o trabalho com perfeição é o amor pelos animais. Janine diz que é impossível passar uma hora por dia com um cãozinho e não estabelecer um vínculo afetivo. No entanto, não é somente o lado sentimental que liga Janine e Paula aos bichinhos. Ser um passeador de cachorro significa, também, ganhar dinheiro dispensando uma pequena parcela do seu tempo a essa função. Em média, os passeios duram em torno de uma hora e podem render de cinco a sete reais, dependendo do percurso percorrido e do tamanho do animal. “Consigo tirar uma média de 300 a 400 reais por mês”, revela Paula. Nada mal para a realização de uma atividade relaxante e que auxilia no condicionamento físico. Janine informa que, por ser um serviço ainda pouco utilizado, é difícil viver somente desta renda, mas, apesar disso, considera uma boa fonte alternativa de ganho. A ocupação requer alguns cui-

dados, tanto com os animais quanto com os pedestres. Para que saia tudo de forma perfeita, o animal deve estar calmo e hidratado. As obrigações não param por aí: um bom passeador de cachorros carrega sempre consigo um saquinho plástico e, se possível, uma pá coletora, que pode ser facilmente adquirida em pet shops e supermercados. Outra alternativa é disponibilizar aos animais petiscos e brinquedos. Janine oferece uma dica bem interessante para o transporte dos pertences pessoais do passeador. “Para mim a pochete é indispensável, pois nela levo minha chave e celular, além de acomodar perfeitamente os sacos plásticos, que são fáceis de manusear e não ocupam espaço”, afirma. E dá um alerta. “Qualquer passeador que se preze deve carregar sempre consigo o número do telefone de contato do responsável pelo cão”. Nem sempre são os responsáveis pelo “pet” que entregam os animais ao passeador. É comum que estes profissionais possuam a chave da casa do cliente, assim como empregadas domésticas ou jardineiros que possuem o crédito das famílias. “Na maioria das vezes, os cães já passaram pelo nosso adestramento, o que resulta em uma relação de total confiança com seus donos”, explica Janine. Impensável até pouco tempo

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|69|


@ ALTERADO @ pg_068a070_passeador de cachorro.qxd

atrás, ao simples ato de passear com os cães pode-se associar uma passadinha na pet shop, na estética ou na clínica odontológica. Os chamados pet's de luxo, ou animais de estimação que possuem tantas regalias a ponto de serem tratados como humanos de uma classe social altíssima, têm à sua disposição uma infinidade de serviços proporcionados pelo dinheiro dos donos. Afinal, os cachorros emergentes e chiques têm acesso a plano de saúde, acupuntura, hidroginástica e serviços estéticos tais como hidratação e mechas nos pêlos, colocação e pintura das unhas, ofurô, além de babá e creche. Diversas lojas e profissionais estão, cada vez mais, especializando-se no atendimento desses “luxuosos” bichinhos. Segundo Janine, não há problema algum em deixar os cães, ao final do passeio, em pet shops que estejam no percurso. Mas nem tudo é maravilhoso na vida desses profissionais. A reação das pessoas varia de acordo com cada cão. “Quando se trata de cães de pequeno porte ou filhotes, não tem quem não pare para acariciar. O mesmo não acontece com os animais de portes médio e grande, pois a maioria atravessa a rua e fica te olhando com aquela cara. Se os cães são Pit Bulls, American Stoff, Rottweiler ou qualquer outra raça temida pela população, ouço todo tipo de desaforo, mas não dou bola”, afirma Janine. Já Paula diz ser comum ouvir a solicitação de colocação das fucinheiras nos animais. Se para a população em geral cães de grande porte, como os Labradores, podem representar uma ameaça, para Paula, uma em especial é motivo de orgulho. Mila, Labradora de cinco anos, número um no ranking brasileiro de cães caçadores de perdiz, é seu xodó. A passeadora informa que apesar

|70|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

7/12/2005

13:43

Page 70

de o animal passar um tempo fora, em razão das suas competições, sua relação com a cadela é excelente e de muita cumplicidade. Paula relata que um dos fatos hilários do seu ofício é o esforço que pratica para direcionar os animais durante a caminhada. Segundo Janine, os fatos que ainda a surpreendem durante os passeios têm relação direta com o relacionamento entre os cães e as pessoas. “Confusões acontecem principalmente quando estou com cães de grande porte ou que simplesmente não têm tolerância a outros animais. É sempre estressante saber que no meio do passeio posso dar de cara com um cão solto na rua pelo dono. Tenho que ter sangue frio, controlar o meu cão e solicitar ao dono que prenda seu animal”, conta. As pessoas ainda têm dificuldade de compreender que andar com seu cãozinho na guia é para o bem de todos e principalmente para a proteção do próprio mascote. Amor, confiança, carinho, paciência e calma são elementos que não podem faltar para um bom passeador de cachorro. E se você está precisando complementar o orçamento, essa é uma boa atividade, descontraída, que não requer prática, nem mesmo experiência, e acima de tudo é rentável. Então, patas pra que te quero!

Atividade em dobro: além de passear, Janine também trabalha com adestramento de cães


@ ALTERADO @ pg_071a072_recepicionista de motel.qxd

7/12/2005

13:46

Page 71

Prazer dos outros | Dezembro de 2005 | Primeira ImpressĂŁo

|71|


@ ALTERADO @ pg_071a072_recepicionista de motel.qxd

7/12/2005

13:46

Page 72

Discrição é chave para quem se propõe a trabalhar como recepcionista de motel, uma das atividades da hotelaria mais nova e em franca expansão TEXTO

DE

JORGE HENRIQUE DOS SANTOS

O

s motéis existem desde sempre nos Estados Unidos e são marca registrada em filmes do gênero road movie. No Brasil, o termo “motel” em nada lembra o sentido original. Ainda prevalece o que está construído no imaginário coletivo: prazer para quem freqüenta e lucro fácil para seus donos. Em qualquer cidade do país, há sempre um motel à mão. Nas grandes capitais, os estabelecimentos para o “prazer” possuem estrutura igual ou, muitas vezes, superior aos hotéis tidos como “cinco estrelas”. A relação pára por aí. Os grandes balcões são substituídos por pequenas janelas e pouca fala, nunca se sabe quem exatamente vai aparecer e com quem. Enquanto em um hotel as pessoas vão para passar uma ou mais diárias, no motel o objetivo é bem mais específico, o que acaba tornando diferente o trabalho do atendente O cliente que entra em hotel é mais restrito. Não tem aquela coisa de entrada e saída de mulheres, já que em motéis vêm casais, mas vêm garotas de programa também”, explica a recepcionista de uma casa de São Leopoldo. Alguns motéis levam a discrição tão a sério que os funcionários sequer têm contato visual com os clientes. Uma parede ou um vidro espelhado separa a recepção do carro e a negociação é fechada via interfone. “A gente atende aqui dentro para preservar quem vem aqui. No pátio, devemos aparecer o menos possível”, relata o recepcionista de um motel de Novo Hamburgo. Os funcionários e os clientes quase nunca dialogam face a face. O usuário simplesmente chega, pede um quarto por algumas horas e nem se |72|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

E

TOMAS BELLO | FOTO

dá conta de que está sendo atendido por alguém como em qualquer outro estabelecimento. Atrás do vidro espelhado está uma das profissões que mais cresce no país e já há uma preocupação dos cursos de graduação em Hotelaria sobre o assunto. Segundo José Carlos Volkmer, coordenador do curso de Tecnologia em Hotelaria da Universidade de Caxias do Sul (UCS), com sede em Canela, a graduação é abrangente. Apesar de não trazer nenhuma disciplina exclusiva para formar profissionais especializados em motéis, as aulas contemplam todos os ramos da hotelaria. Alguns alunos estão optando por este segmento. Como ocorre em qualquer profissão que está em processo de estabelecimento no mercado, para o recepcionista de motel ou qualquer profissional que nele trabalhe, o curso superior não é pré requisito. “Só pedem experiência”, revela uma funcionária de um motel de São Leopoldo. O Sindicato dos Hoteleiros de Porto Alegre informa que o piso salarial da categoria é de R$ 323,40 com uma carga horária de 44 horas semanais, válido para todos os funcionários do estabelecimento. Em São Leopoldo, o Sindicato local informa que o piso é um pouco mais baixo: R$ 301,20 pela mesma carga horária. Para um recepcionista de motel, a objetividade no atendimento é outra peculiaridade deste cargo. Os estabelecimentos têm como regra evitar ao máximo um contato direto do funcionário com o cliente, afinal, não são apenas casais que costumam freqüentálos. E mesmo se forem “casais”, não necessariamente serão homem e mulher. Que o digam os re-

DE

RITA CORONEL

cepcionistas que trabalham no turno da madrugada. As composições são variadas e infinitas: casal de homens, de mulheres; um trio, homem mulher homem ou mulher homem mulher. “A gente tem que procurar atender bem, sem preconceito”, afirma a atendente de São Leopoldo. Diante de cenas tão íntimas e curiosas, o sigilo quanto à identidade dos freqüentadores deve ser total. Pelo menos é assim que esperam os proprietários. A discrição, contudo, não é tão simples assim. Há situações que fogem ao controle de quem está dentro da cabine atendendo os freqüentadores, como em finais de semana, quando o movimento dobra. E a exposição de quem está à espera de um quarto é inevitável. Neste casos, o contato direto com o cliente se torna uma necessidade, e o jogo de cintura, uma ferramenta na abordagem. “A gente tem que ir lá fora para ir botando os carros em fila. Ver quem entrou primeiro e quem entrou depois. Senão, sai um e o outro entra, aí um reclama que chegou primeiro”, conta um funcionário de Novo Hamburgo. Os relatos de histórias neste caso são muitos. Há casais que, de tanto esperar no pátio ou na fila, acabam por economizar um pernoite. O carro passa a ser a mais rápida das saídas para o prazer. Para esta situação não há recepcionista de motel, curso superior em hotelaria ou sigilo profissional que dê conta. “O jeito é abrir o portão e liberar o casal”. * Os nomes dos motéis, bem como os de seus funcionários, foram preservados a pedido deles.


@ ALTERADO @ pg_073a076_futor logos.qxd

7/12/2005

13:49

Page 73

Futuro

do presente

Prever o que vai acontecer é, desde sempre, uma atividade instigante e lucrativa TEXTO

Q

DE

MELINA GONÇALVES

E

RENATA HOFMANN | FOTOS

uem não gostaria de desvendar os caminhos do futuro? Mesmo que a futurologia como profissão seja questionada, o crescente número destes profissionais no mercado só se deve há um fator: a ânsia cada vez maior de se descobrir o que o futuro nos reserva. A astróloga Amanda Costa, 45 anos, é profissional respeitada nacionalmente. Em seu escritório no Bairro Bonfim, Porto Alegre, ela conta um pouco de sua vida na diferente profissão que optou: a astrologia. O início na profissão foi de forma autodidata. “Eu li o primeiro livro aos 16 anos, aos 19 tive a oportunidade de estudar com a astróloga Emma de Mascheville, uma alemã que se radicou em Porto Alegre, uma das maiores autoridades mundiais em astrologia”, revela. Formada em letras, Amanda chegou a trabalhar na divulgação de obras da editora LP&M junto à escolas, mas a vocação para a interpretação dos astros já estava escrita nas estrelas. A astrologia começou a tomar maior espaço em suas atividades em 1995, quando confeccionou a agenda Aquários, com mensagens astrológicas e outras crônicas. Em 1997 ficou

DE

LEONARDO REMOR

conhecida nacionalmente através do site Terra, onde escreve uma coluna astrológica. Em 2000 foi convidada por Zero Hora para escrever uma coluna diária de horóscopos. Será que o meu signo tem a ver com o seu? “Todos os signos combinam”, responde Amanda. Algumas são mais combináveis, outras menos. De acordo com ela, cada pessoa tem um pouco dos 12 signos. “Além dos 12 signos agindo sobre nós, temos ainda sol, lua, e oito planetas”, complementa. A astrologia não se aprende apenas com a técnica. Amanda acredita nos cursos existentes no mercado, mas deixa claro que é preciso ter uma inclinação e uma abertura para o simbólico, uma percepção mais refinada. “Há uma afinidade entre os movimentos dos céus e o movimento dos homens”, diz. Para ela, Universo é uno e diverso. “Temos a diversidade dentro da unidade, nós fizemos parte de um mesmo cosmos”. Para Amanda a internet é um ótimo meio de consulta, mas não substitui o mapa astrológico feito com um profissional. “Em um site, as interpretações do mapa astrológico são padronizadas”, avisa. | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|73|


@ ALTERADO @ pg_073a076_futor logos.qxd

7/12/2005

13:49

Page 74

Quem acha que a astrologia pode prever acontecimentos pontuais, engana-se. Através do cálculo astrológico é possível prever com exatidão tendências, mas não fatos exatos. A astróloga explica que, por exemplo, é possível dizer que existe uma predisposição a acidente relacionado a máquinas e motores, mas afirmar que a pessoa vai ter um acidente de carro e que vai quebrar o braço é impossível. “Nunca previ com exatidão, mas identifiquei tendências. Quem identifica com exatidão são aqueles que possuem o dom da vidência, são os viajantes do tempo”. Amanda faz horóscopos diários 48 horas antes de serem publicados, montando tabelas e analisando a posição dos astros no céu daquele dia do ponto de vista de cada signo. “O ponto de partida da astrologia é a Astronomia e a Matemática”. Quanto à recepção do público, a astróloga diz que recebe muitas mensagens positivas, mas que também existem os “revoltados de plantão”, que se valem do anonimato da internet para criticar. Para ela, isso acontece devido à falta de conhecimento: “As pessoas falam de coisas que não sabem em qualquer área. Assim como tem gente que não viu o filme e não gostou ou leu a orelha do livro e acha que sabe tudo que está escrito”. Para quem diz que não crê nos astros, Amanda dá um recado: “Faça um mapa astral com um astrólogo, antes de criticar”. Para o futuro do país a astróloga faz suas previsões e diz que o Brasil passa por vários aspectos planetários bem difíceis relacionados a essa questão de trazer coisas à tona, assuntos relacionados a documentos, papéis, negócios e dinheiro. E afirma que isso ainda vai permanecer por um bom tempo, pois esta fase está apenas começando. “Acho que depois do porão ser limpo a gente tem uma perspectiva bem mais promissora”. A credibilidade da intérprete dos astros, como se define, é atestada pelos mapas astrais que já fez. Já traçou o mapa astral da filha da Xuxa, de Rubinho Barrichello, de Marilia Gabriela, entre outros. Em relação a outra forma de prever o futuro, como a cartomancia, ela diz que tudo depende do interprete. “O profissional tem que ter conhecimento do trabalho feito, dos símbolos e das cartas”. Outra nicho conhecido da futurologia é a cartomancia. Sílvia Teresinha Feldens sempre acreditou que prever é um dom que não se aprende em curso, nem em manual de instruções. “Não existe regra para lidar com o lado espiritual das pessoas”, defendese. Desde os nove anos Sílvia prevê o destino das pessoas através do baralho cigano: “Sempre tive fascínio pelas cartas, então, um dia

|74|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

comprei o baralho e passei a ver o futuro de parentes, amigos até que um dia minha casa estava cheia de gente que queria saber sobre seus futuros”. A cartomante conta que nunca quis nem precisou fazer publicidade de seu trabalho. “Com o tempo minha fama foi passando de boca em boca. Minha antiga chefe, com quem trabalhei por 20 anos no comércio, só soube um dia desses que as cartas eram meu ganha-pão”, conta Sílvia. Outro motivo de não divulgar seu trabalho é em consideração aos seus clientes. “Se eu colocasse uma placa em frente a minha casa muita gente não viria aqui, pois elas procuram discrição, não querem que os outros saibam que vieram à uma cartomante”, explica. De acordo com Sílvia, ser cartomante foi uma idéia que se materializou com o tempo: “Nunca escolhi ser orientadora espiritual. Minha espiritualidade sempre foi aflorada, mesmo que eu tivesse outra profissão não deixaria meu baralho, simplesmente porque não posso fingir que não sou sensitiva”, avalia. Antes de se sustentar com a futurologia, Sílvia trabalhou no comércio de roupas femininas por 20 anos. Depois da jornada de oito horas como vendedora, ela ia para casa para atender seus clientes, chegando a atender das 19h30min até às 2h. “Atendia todas as noites durante a semana e também aos sábados, domingos e feriados”. A princípio Sílvia não pretendia abandonar o comércio. “Chegou um ponto que o número de clientes aumentou tanto que decide me dedicar totalmente a orientação espiritual”, esclarece. A troca não foi difícil. “Sempre gostei de tudo que é diferente”. Sílvia diz que seu trabalho pode ser considerado diferente, mas é tão honesto quanto os outros. “Não acredito em 'trabalho' (nome dado aos ritos feitos em troca de favores de algum Santo ou orixá). Para mim isso virou comércio: tá cheio de cartomante charlatão e batuqueiro por aí”. Sílvia ainda provoca: “Se batuque resolvesse todos os problemas, os batuqueiros seriam os donos do mundo, e aí todos queriam ser batuqueiros”. Batuqueiro é a maneira como Sílvia chama a pessoa que faz trabalhos e simpatias em troca de desejos realizados. “Alguns deles chegam a ter a pretensão de dizer que tem o poder de matar, mas se eles têm o poder de matar, eles deveriam ter o poder de sobreviver, ou seja, ninguém morreria de doença nenhuma”, questiona. A cartomante afirma que ninguém tem o poder de alterar nenhum sentimento. “Ninguém bota ou tira o sentimento de alguém. Se você pede um trabalho para fazer alguém te amar, estará colocando seu


@ ALTERADO @ pg_073a076_futor logos.qxd

7/12/2005

13:49

Page 75

dinheiro fora”, diz enfática. Sílvia conta que o 'trabalho' consiste somente na força do pensamento, naquilo que as pessoas materializam. “Se tu tem medo de batuque e eu te disser que fiz um trabalho contra ti, amanhã tu vai acordar cheio de dor... é tudo psicológico. Nós somos o que pensamos”, garante. Segundo Sílvia, o verdadeiro futurólogo deve primeiro tentar resolver seus problemas e do seus próximos para depois ajudar aos outros: “Muitos cartomantes que não têm nem onde cair mortos, dizem que vivem assim porque tem o dom de ajudar os outros e não a si mesmos. Isso é mentira pura. Onde está escrito que deve ser assim?”. Para Sílvia, quem não tem forças pra se ajudar não pode ajudar ninguém. A astróloga Amanda Costa concorda com Sílvia: “Os charlatões da futurologia atrapalham bastante, mas não têm como monitorar. Há uma preocupação grande dos astrólogos, que estão se reunindo para formação de sindicatos e para regularização da profissão, mas ainda há muita controvérsia”, explica. Amanda diz que muitos fazem cursinhos básicos de três meses, ou até pela internet e já saem se dizendo astrólogos. “É preciso ter bom

senso porque o astrólogo é um interprete do céu”. A cartomante Sílvia também defende seu nicho, e avisa que sua metodologia é baseada na verdade, doa a quem doer. “Minha consulta funciona assim: o cliente chega aqui eu faço uma síntese, uma análise da vida da pessoa, para que ela conheça meu trabalho, não pergunto nada e também não omito nada. A partir daí a pessoa pode perguntar detalhes, então eu respondo exatamente o que quiserem saber”, descreve. Questionada se diria a um consulente sobre uma doença ou algo do tipo, a cartomante é concisa: “Um médico não pode omitir um diagnóstico, assim como não posso fingir não ver algo que vi”. Ela lembra de um caso curioso: “Certa vez um casal veio consultar e eu vi claramente que o homem mantinha um caso extraconjugal, como não podia falar claramente, disse a eles que se o relacionamento deles não mudasse imediatamente eles se separariam. Pelo olhar do homem, pude perceber que ele tinha entendido o recado”. Sílvia ainda conta que muitas vezes durante a consulta sente e percebe coisas que não estão nas cartas. “Quando isso acontece eu interrompo a consulta pra dizer o que senti”. Mesmo vivendo em uma atmosfera tão mística,

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|75|


@ ALTERADO @ pg_073a076_futor logos.qxd

7/12/2005

13:50

Page 76

Sílvia não se afastou da fé tradicional. Ela pertence à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, mas freqüenta pouco a igreja. “Detesto fanatismo. Pra mim não existe religião melhor ou pior”. Sílvia acha a Igreja Católica muito moralista e conceitua de ridícula a Igreja de Edir Macedo. “Falam mal dos cartomantes, mas vivem falando em diabo”. Sílvia acredita que o misticismo foi banalizado, por isso há tanto preconceito. “Para alguns é apenas uma maneira de ganhar dinheiro as custas da ingenuidade alheia”, lamenta. Mas segundo a futuróloga, isso não é regra apenas da futurologia. “Existem ótimos advogados e advogados de porta de cadeia, na minha profissão também é assim”, compara. Com o passar do tempo e o crescente aumento de futurólogos charlatões, Sílvia aperfeiçoou uma técnica para identifica-los. “Se você chegar em um cartomante e ele te perguntar por que você está ali, é só pra saber em que área da tua vida tu tem problema. Normalmente eles também pedem pra você abrir as cartas com a mão esquerda, ou direita pra saber se você é casado, ou não”, revela. De acordo com Sílvia, não há nenhum livro que dite regras referentes a isso, tudo são truques |76|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

para facilitar os acertos. Sílvia prefere não qualificar seu trabalho: “É difícil você avaliar seu próprio trabalho, mas estou satisfeita pelo número de clientes que tenho”. Sílvia chega a atender de 10 a 20 pessoas por dia, cobrando R$ 20 a consulta. Como toda cartomante que se preze Sílvia acredita no destino e crê que todos nasceram para serem felizes, contanto que se ajudem. “Se eu te disser que em breve tu pode arranjar um bom emprego, nada acontecerá se você ficar dentro de casa esperando que um empregador bata a sua porta”, avisa. Sobre o futuro ela é enfática: “Para mim, ele é o hoje. Se você viver preocupado com o que vai acontecer daqui há um mês você não vai viver o momento, você vai acabar trancando a sua vida”, avisa. A cartomante dá um conselho para aqueles que vivem em função do passado, ou se deixam levar por traumas. “Quem não esquece o passado acaba não vivendo o presente e não construindo nada para o futuro”. Sílvia é Orientadora Espiritual há 31 anos. “Tenho muito orgulho de fazer o que faço, pois faço o que faço por escolha”.


@ ALTERADO @ pg_077a081_sexadores.qxd

7/12/2005

13:52

Page 77

Entre plumas

e sexo

TEXTO

DE

NAIRÍCIA CABERLON

E

JOÃO VITOR SANTOS | FOTOS

Janete tem uma profissão rara no Brasil: ela é sexadora de perus

“P

ega assim, oh. Depois vira de cabeça para baixo. Com esses dedos tu seguras a cabeça e com os outros afasta as plumas. Depois, aperta aqui nesta região e ele coloca para fora. Daí é só olhar. É fêmea para um lado, macho para outro.” Sem uma breve explicação, as instruções dadas parecem muito mais o relato de alguma peripécia sexual. Pois não se engane. É somente uma trabalhadora explicando minuciosamente as técnicas usadas para o seu labor diário. Ela é uma mulher bonita, com uma pele morena e um sorriso radiante. Seus olhos delicadamente puxados dão o ar todo especial a um rosto que por vezes se inebria em meio à timidez. Ela é Maria Janete Lotherman. Uma catarinense de 31 anos, que acabou adotando a pequena cidade de Salvador do Sul, na serra gaúcha, com apenas nove mil habitantes, como seu lar.

DE

ZECA BRITO

Janete é uma profissional rara no Brasil. Quando explica detalhes de seu trabalho faz pairar uma nuvem que mistura dúvida e ironia no seu interlocutor. Por isso, quando quer evitar questionamentos, resume falando que trabalha na Doux Frangosul. As informações que Janete omite para evitar constrangimentos são relacionadas à atividade que exerce no incubatório de perus da Doux. Afinal, dizer que é uma sexadora não basta para quem sequer imagina o que possa ser essa profissão. De acordo com o Dicionário Aurélio, sexador é o “técnico que faz a identificação do sexo e a separação dos pintos de um dia de vida”. Só que, no caso de Janete, o trabalho é com perus. A questão que surge é: afinal, onde ficam os órgãos sexuais de perus e peruas? Pois aí é que está a exoticidade da profissão. Os órgãos ficam na região cloacal do animal. Para descobrir o sexo dos filhotes, Janete tem de virá-los de cabeça para baixo e segurar as patas e a cabeça com os dedos. Com a outra mão, ela aperta o abdômen, já bem próximo do ânus. Este movimento faz com que aflore o órgão sexual, como uma espécie de rosa que desabrocha. Só que a coisa não é tão fácil quanto parece. Além de toda a técnica que é preciso ter para botar “aquilo” para fora, é essencial o uso meticuloso de um dos | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|77|


@ ALTERADO @ pg_077a081_sexadores.qxd

7/12/2005

13:53

Page 78

sentidos: o olhar. Não pense que salta da região cloacal um pênis ou uma vagina. Os órgãos são muito pequenos e apenas alguns pontinhos brancos indicam a existência de testículos. Por isso os sexadores trabalham numa sala completamente escura. No espaço onde cada um ocupa nas bancadas, há uma lâmpada, que mais parece um abajur gigante, sobre suas cabeças. Essa luz auxilia na visualização propriamente dita. Acha que já se foram todos os detalhes escatológicos do trabalho de Janete? Bem, antes de virar o perusinho de bumbum para cima, é preciso fazer expelir o miconio. O nome é estranho, o aspecto mais ainda e a definição provoca risos. O miconio é o primeiro cocô do peru. Para ele fazer, basta comprimir seu abdome. Se o miconio não for expelido antes, o líquido pastoso pode voar no rosto do sexador. E isso é uma das coisas mais nojentas e ao mesmo tempo engraçadas que pode acontecer. “Lembro de um colega que não tinha apertado o peru suficiente. Quando ele foi sexar, bum! Veio tudo na cara dele”, conta Janete com um sorriso que, de tão largo, a faz fechar os olhos. Janete ri quando conta detalhes do seu trabalho. Mas o ofício é coisa muito séria. O chefe da divisão de perus da Doux, o veterinário Dimas Rotava, classifica o trabalho do sexador como fundamental. Para ele, essa é uma das etapas cruciais na produção de perus, que depende em muito da sensibilidade do profissional. “É um ofício que exige muita técnica, calma e concentração. A atividade é fundamental para o ganho em produtividade”, explica. Se o trabalho do sexador não existisse, só seria possível descobrir o sexo das aves quando já estivessem quase adultas. No incubatório de perus da Doux em Salvador do Sul, nascem diariamente cerca de 28 mil aves. Como em qualquer espécie, machos e fêmeas têm características e necessidades muito diferentes. Criar todos juntos representaria perda na produção. Isso porque machos poderiam ser abatidos antes do peso ideal e fêmeas muito depois do peso indicado. Com tantas aves juntas, seria difícil demais determinar o momento certo em que todo o lote deve ser abatido. Uma fêmea pode ir para o frigorífico com cerca de sete quilos. Já o macho, se for antes dos 14 quilos, representa perda. Criando-os separados, é possível fazer um controle ideal de desenvolvimento. Além disso, os machos, por serem muito maiores, poderiam machucar as fêmeas. Nem mesmo no frigorífico é viável mandar machos e fêmeas todos juntos. As máquinas que depenam os animaizinhos têm uma regulagem padrão para cada sexo. Como as aves comportam |78|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

diferentes tamanhos, se misturadas, os machos acabariam sendo estraçalhados. Por isso que a Doux usa a técnica de sexagem de perus. O lugar, que fica junto ao centro da cidade, não se parece em nada com uma grande chocadeira de ovos. A sensação que se tem é de estar numa estação espacial, com corredores extremamente limpos e brancos. O cheiro forte de produtos desinfetantes evidencia o cuidado para que não haja contaminação. Aliás, não é permitido a entrada no incubatório sem antes passar por um rigoroso sistema de higienização. Chuveiros, sabonetes e xampus anticépticos recepcionam visitantes e funcionários. As vestes pessoais são deixadas de lado, numa área denominada suja. Roupas novas e limpas são entregues. Até mesmo os objetos que são levados para dentro do incubatório passam por uma pulverização para que sejam eliminadas possíveis bactérias. Já completamente nu, é preciso entrar no box e caprichar no banho. E caprichar mesmo, com direito a escovinha nas unhas dos pés e das mãos, pêlos e cabelos muito bem esfregados e nariz devidamente assoado. O trabalho de sexador nesse lugar fantástico iniciou há cinco anos. No entanto, a história de Janete em Salvador do Sul começa muito antes. Ela chegou na cidade com 10 anos de idade. Ela conta que sua chegada foi traumática. Vinda da cidade de Barra do Guaraí, em Santa Catarina, Janete foi confrontada com uma cidade tipicamente rural. “Eu só chorava e queria ir embora. Tudo era muito diferente. Quase não tinha casas e era só mato”, recorda. A menina queria mais. Assim que completou 14 anos, conseguiu emprego numa fábrica de calçados. Apesar da independência conquistada pelo primeiro emprego, Janete ainda não estava feliz. O chão de uma fábrica não é feito para quem tem uma sensibilidade única como ela. “Não gostei mesmo do trabalho. O horário era muito puxado e tinha que ficar o dia inteiro nas máquinas.” A jovem decidiu seguir em frente. Aos 16 anos, deixou a fábrica e foi parar no incubatório de pintos da Doux, uma outra área da empresa, responsável pelos primeiros passos na produção de frango. Sem muita experiência e tendo cursado apenas o primeiro grau, acabou contratada para fazer serviços gerais. Porém, via na empresa a chance de crescer. Só que ainda não imaginava a virada que daria na sua vida profissional. Naquela época, a empresa não possuía ninguém capaz de realizar os trabalhos de sexagem de perus. Dependia dos serviços prestados pela Associação Brasileira de Sexagem. Ela congrega


@ ALTERADO @ pg_077a081_sexadores.qxd

7/12/2005

13:54

Page 79


@ ALTERADO @ pg_077a081_sexadores.qxd

7/12/2005

13:55

Page 80

cerca de 40 sexadores em todo o Brasil. Isso onerava demais os custos de produção da empresa, pois a maioria dos profissionais era trazida de fora do estado. Depois de avaliar os altos custos do translado dos sexadores, a Doux resolveu investir numa equipe própria. Valorizando a prata da casa, a empresa trouxe profissionais para treinarem funcionários que estivessem interessados em aprender o novo ofício. Novo e árido ofício, a começar pelo professor que, por ser japonês, mal conseguia se comunicar com os alunos. Segundo o veterinário Rotava, a técnica da sexagem foi desenvolvida pelos japoneses. Durante muitos anos eles a dominaram e não a passavam para ninguém. Aos poucos, este manuseio foi sendo difundindo. “Não é para qualquer um que ensinam. É preciso preencher todos os requisitos”, diz o veterinário. Requisitos que o professor não abria mão. Foram muitos os que queriam aprender a sexagem, uma vez que esta renderia um salário melhor, mas poucos passaram na seleção. O técnico agrícola Evandro Carlos dos Santos, hoje supervisor do incubatório de perus, foi um dos reprovados no teste. “Não |80|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

queria ser um sexador, mas para mim era importante conhecer a técnica até para ajudar os demais”, recorda. O motivo da reprovação de Santos: dedos muito grossos e mãos muito grandes. Assim, Santos só pôde conhecer detalhes da técnica anos depois. Tudo graças a ajuda dos colegas, como Janete, que lhe passaram os segredos. A chegada do professor japonês provocou curiosidade em Janete. Depois de espreitar muito, decidiu encarar o treinamento. Só que ela não imaginava que suas habilidades conquistariam a admiração do japonês tão rápido. Por estar em período de férias na empresa, ela teve menos de um mês para o treinamento. Logo, temia pelo resultado do teste. Nas aulas, identificando o sexo visualmente, ou seja, sem colocar a mão no peru, Janete teve quase 100% de acerto. O problema era quando tinha de apertar o bichinho. “Não conseguia passar dos 88%. Fui para o teste final com muito medo.” O professor, sempre de cara fechada, analisava cada movimento. Terminada a prova, a agonia até o japonês vir com o resultado. Depois do cafezinho para relaxar, veio a boa notícia. “Nem acreditei. Só pensava: consegui! Consegui!”


@ ALTERADO @ pg_077a081_sexadores.qxd

7/12/2005

13:55

Page 81

O esforço valeu. De lá para cá, Janete tem se mostrado uma das melhores do grupo de seis sexadores. Já superou até mesmo seu irmão que faz parte da equipe. “Mas não há competição. Somos todos muito unidos”, garante. A empresa admite 1,5% de erro. As marcas de Janete ficam entre 0,03% e 0,01% de erros. No mês passado, isso lhe rendeu um relógio como prêmio dado pela produtividade. Assim, com calma e precisão quase que cirúrgica, a mulher de sorriso doce leva sua vida identificando o sexo das aves. Não ganha um salário de ouro pelos cuidados com os filhotes de perus, mas os três salários mínimos mensais já lhe renderam uma bela casa lilás numa das zonas mais altas de Salvador do Sul. E ali, bem perto do céu, como costuma dizer, que divide as conquistas do trabalho diário com o marido e com as duas filhas. Uma de nove e outra de 13 anos. “Tem gente que acha estranho, pensa que é um trabalho sujo, mas eu não acho. Adoro o que faço e adoro trabalhar com animais.” A profissão não é mesmo muito conhecida. Apesar de a Doux ser uma das principais empresas da cidade, poucas pessoas sabem o que é sexagem. “Alguns sabem que se separa os machos das fê-

meas, mas poucos sabem como é feito”. Quando Janete conta detalhes do trabalho, a curiosidade das pessoas torna gigantesca. Nem dentro da própria casa Janete se escapa de mais e mais perguntas. Suas filhas querem saber cada detalhe. “Elas também querem muito conhecer o incubatório. Até penso em levar elas um dia. Hoje, por exemplo, quando disse que viriam me entrevistar, elas ficaram curiosas e vibrantes.” Janete entende o fascínio das filhas, mas quando questionada sobre a vontade de passar o ofício para elas, é enfática em afirmar que não gostaria. Como toda a mãe, quer que as meninas vão além. “Meu sonho é que sejam pediatras, como a mais velha diz querer ser. Nunca se sabe, mas o que escolherem eu vou apoiar. O que tiver de ser, será”, finaliza. Para a doce sexadora de olhos puxados, o mais importante é fazer o que se gosta. Conhecendo o trabalho de Janete é possível perceber que o ofício não é nada fácil. No entanto, o carinho que tem para com os animais e a vontade de crescer profissionalmente fazem com que ela vença qualquer dificuldade cotidiana. Para ela, essa é a receita para o sucesso profissional: amor e dedicação pelo que se faz, não importa qual seja o trabalho. | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|81|


OK [ok texto] [ok foto] pg_082a084_detetive.qxd

30/11/2005

10:42

Page 82

Com a boca

na botija

Muita gente gosta de fuxicar a vida dos outros, mas poucos podem ir tão a fundo quanto um detetive particular TEXTO DE

O

detetive Sherlock Holmes é um personagem que não envelhece. Desde o século XIX, a imagem deste inglês alto, magro, com nariz de águia povoa o imaginário de quem quer seguir a carreira desvendando mistérios, protegendo inocentes e capturando criminosos. Holmes, com sua indefectível lupa, possuía uma coleção de cachimbos e observava detalhes. Em cada caso, fazia brilhantes deduções lógicas que ainda hoje capturam a atenção de milhões de pessoas. Ninguém sabe ao certo se Sherlock Holmes e seu fiel assistente, o Dr. Watson, de fato existiram, mas segundo seu autor, Sir Arthur Conan Doyle, de 1881 a 1904, fizeram da Baker Street, 221 B, o cenário de grandes aventuras. É bem longe de Londres, na movimentada Avenida Getúlio Vargas, próxima ao Centro de Porto Alegre e bem diferente da cinzenta e charmosa Baker Street, que trabalha o detetive Ábacus. Em uma sala de um modesto apartamento, cercado por estátuas de índios xamãs e arco e flechas, o |82|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

SUSIÂNI SILVA

E

sujeito confiante e não menos misterioso que Holmes vive histórias dignas das imaginadas por Doyle. O ambiente reforça ainda mais essa idéia: móveis pesados e escuros, pouca luz, uma estante recheada de antigos livros de medicina legal são o plano de fundo para a atividade que exerce desde 1980, quando tinha 24 anos. Ábacus explica que a vontade de ser detetive surgiu quando era pequeno e participava de um grupo de escotismo fundado inicialmente pelo grande espião inglês Baden Powell, seu ídolo. Após abandonar o curso de administração, resolveu seguir a intuição e montou seu próprio escritório de investigação. Desde então, passou a se dedicar a investigar a vida das pessoas, realizando o sonho de criança, de quando lia as histórias de índios e escoteiros. A primeira tentativa foi através da realização de um curso para a formação de detetives por correspondência, por meio de apostilas. Como não aprovou o método, começou a estudar e ler muito sobre o ato de investi-

RICARDO SANDER |

FOTOS DE

ZECA BRITO

gar por conta própria. Foi nessa época que começou a aprender de verdade e por isso se considera um autodidata. Com o passar do tempo, formou a sua equipe e criou um curso para treinar seus funcionários. A profissão de detetive não é regulamentada no país. Atualmente Ábacus faz parte da Ordem dos Detetives profissionais do Brasil, da qual é o presidente. A organização possui 50 membros e se reúne para discutir questões da profissão. Os detetives particulares, ou detetives profissionais, não têm registro policial. Em alguns estados do Brasil, suas atividades profissionais ainda são desconhecidas das autoridades, salvo se tiver registro como agente de informação. A empresa Detetive Ábacus investiga de três a quatro casos por semana, sendo que o maior índice de casos ocorre na área de investigação matrimonial e de família. “Feliz ou infelizmente os homens são grandes traidores, e isso me garante um bom número de mulheres vindo me procurar”, comenta. A sua


OK [ok texto] [ok foto] pg_082a084_detetive.qxd

30/11/2005

10:43

Page 83

| Dezembro de 2005 | Primeira ImpressĂŁo

|83|


OK [ok texto] [ok foto] pg_082a084_detetive.qxd

primeira investigação foi um caso de adultério e até hoje este tipo de crime é o que mais lhe rende trabalho. O adultério corresponde a 50% dos casos investigados, e na maioria das vezes são as mulheres que procuram pelo serviço, correspondendo a cerca de 80% dos clientes. O detetive acha que este alto índice é explicado pela indiscrição dos maridos: “Homem não toma cuidado. A amante tem o telefone dele e liga no fim de semana. A mulher não. A mulher se cuida muito, por isso que se diz que o marido é sempre o último a saber”. A procura pelo serviço de um investigador profissional é determinada pela condição social. Geralmente o serviço não é barato. O valor do trabalho é definido a partir de uma consulta particular e varia de acordo com os riscos que o detetive irá enfrentar e o tempo que será gasto na investigação, podendo chegar a R$ 15 mil. Nos casos sem riscos e dificuldades, Ábacus designa os seus funcionários para fazer o serviço, mas, quando a investigação é mais perigosa e com maior dificuldade, ele mesmo trabalha. “Normalmente, quando trabalho sozinho, resolvo o caso em uma semana”, frisa. As provas mais solicitadas pelos clientes são fotografias e filmagens, pois são juridicamente |84|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

30/11/2005

10:43

Page 84

aceitas. “Acompanho toda a vida de uma pessoa sem ser percebido. Deixo que me vejam.” Para isso, não usa disfarces, apenas age da maneira mais natural possível, para não ser descoberto. “O disfarce mal feito é o pior inimigo de quem investiga.” Lidar com o sentimento das pessoas é muito complicado, segundo o detetive. “Quando se trata de sentimento, tenho que ser prático e objetivo, sem me envolver. É necessário conversar bastante com quem procura o serviço.” Em um dos casos, Ábacus precisou convencer o seu cliente de que ele não era traído por sua amante, investigada durante cinco anos pelo detetive. Não se pode deixar envolver-se pela situação e muitas vezes é preciso fazer papel de psicólogo. “As reações são as mais diversas. Tem gente que chora, tem gente que não faz nada. E os que mais me preocupam são os que não dizem nada.” Para a psicóloga Sílvia Benetti, professora da Unisinos, as pessoas que procuram investigar a vida dos parceiros através do serviço de um detetive vivem em busca de um estabelecimento de confiança. São indivíduos que não confiam no relacionamento, mas não têm coragem de sozinhas enfrentar o problema da traição. Lidan-

do com este tipo de situação, o investigador também estaria saciando uma motivação sua: a curiosidade. Da mesma forma que os cientistas buscam descobrir novas fórmulas através da pesquisa, os detetives — seguindo os passos de Sherlock Holmes — buscam através de provas e da lógica enfrentar os problemas do sofrimento humano. Sobre casamento, Ábacus é enfático: “Já vi e ouvi demais para me casar”. No começo de sua carreira, até investigou casos de suas namoradas, mas hoje em dia é mais tranqüilo quanto a isto. Ele aceita a traição como uma coisa que pode acontecer a qualquer um e considera parte natural do comportamento do ser humano. Mas deixa um conselho para as mulheres: “A mulher deve fazer na cama tudo que as outras fazem e mais um pouco. Deve ser amiga e companheira e até um pouco mãe, porque os homens gostam de ser mimados”. Ábacus se considera totalmente realizado e encara a sua profissão como um jogo. “É a minha inteligência contra uma pessoa que não sabe que eu estou ali.” Credita o seu sucesso à sua autoconfiança. É ele quem faz a própria propaganda e garante que, quem acredita ser o melhor acaba sendo.


[ok texto] pg_085a087_circo.qxd

30/11/2005

21:16

Page 85

Altos e baixos


[ok texto] pg_085a087_circo.qxd

30/11/2005

21:16

Page 86

Encantado, o respeitável público, muitas vezes, não se dá conta de que o espetáculo do circo é feito por pessoas, como Michele, que enfrentam uma verdadeira batalha diária para divertir os outros TEXTO

DE

POLLYANE SILVA FOTOS

“T

udo começa como uma brincadeira, e você acaba gostando.” Assim a trapezista Michele Aparecida Robattini Venegas, 18 anos, descreve seu início na atividade circense. Inserida numa família tradicionalmente de trapezistas, a menina integra a quinta geração circense por parte de pai e a sexta pelo lado da mãe. O dia está nublado em São Leopoldo — parada provisória da família por duas semanas. O primeiro espetáculo do dia está marcado para as 16h. A trapezista de longos cabelos negros senta-se na varanda do maior trailler do acampamento do circo. Deixando à mostra as listras de sua meia três quartos, num cruzar de pernas, Michele conta sobre sua vida itinerante. O destino é sempre incerto. “Geralmente sabemos qual é a próxima cidade só com uma semana de antecedência.” E o tempo que ficam em cada lugar também é variável. “Depende... Nas cidades do interior são duas ou três semanas, conforme o público, mas nas capitais, dois ou três meses.” O circo já os levou ao Equador, México, Uruguai, Argentina e a todos os estados brasileiros. Recordações de inúmeras cidades, que conheciam entre um espetáculo e outro. Mas foram as praias que ganharam o coração da garota. “Se eu tivesse que parar, escolheria o Rio de Janeiro ou o Nordeste.” O brinco em forma de margarida acompanha o balanço que o corpo de Michele faz enquanto resgata

|86|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

DE

E

CARMEN MARANGONI

CÂNDIDA LUCCA

suas lembranças. Em poucos meses, a família Robattini percorreu de norte a sul do País. Em abril estavam em Maringá (Paraná), quando seguiram a Recife (Pernambuco), Caruaru (Pernambuco), João Pessoa (Paraíba), Natal (Rio Grande do Norte), Moçoró (Rio Grande do Norte), Fortaleza (Ceará), Florianópolis (Santa Catarina), Porto Alegre (Rio Grande do Sul) e São Leopoldo (Rio Grande do Sul). “É complicado, mas essa é a vida que a gente tem. E eu gosto.” No incansável roteiro brasileiro, cinco diferentes cidades marcaram a história da família. Michele nasceu na cidade de Mauá, em São Paulo. O irmão Michel Venegas Filho, 14 anos, em Campo Grande, Mato Grosso, e a irmã Melissa Aparecida Robattini Venegas, 11 anos, em Santos, litoral paulista. Michel Venegas, 36 anos, o pai, é de Limeira, interior de São Paulo. E a mãe, Lilian Robattini Venegas, 35 anos, nasceu em Cajazeiros, na Paraíba. Tantas idas e vindas, chegadas e despedidas, já fizeram bater em Michele uma grande vontade de parar. “Quando eu tinha 13 anos, morávamos em Niterói (Rio de Janeiro) e o circo ficou lá por seis meses. Fizemos tantas amizades que não deu vontade de ir embora.” A tecnologia ajuda a manter os muitos amigos que conquista em cada lugar por onde passa. Orkut, Messenger e e-mails são suas armas na luta contra a saudade. Quando questionada sobre onde estariam seus melhores amigos, o olhar vai longe, e volta lacrimejado, como se tivesse alcançado

as recordações. “Estão espalhados por aí... Espalhados pelo mundo”, é a resposta que segue após um largo e belo sorriso. Com visíveis sinais de uma jovem entre a adolescência e a vida adulta, Michele mantém o sorriso, agora saudoso, enquanto relata que é difícil se relacionar com alguém que não seja do meio circense, os tais “meninos de cidade”. A recordação de um amor em especial, que hoje vive em um circo na cidade de Teresina (Piauí), também fez bater forte o coração da menina que, se pudesse escolher, não teria se despedido. “Namoramos por oito meses. E quando saímos do circo de lá, tivemos que terminar, porque essa vida andante exige muita confiança e ele é ciumento.” E as lágrimas ainda teimam em iluminar seus olhos. Os estudos exigem grande dedicação. Geralmente, procuram a escola mais próxima do circo para freqüentar, mesmo que seja apenas por um mês ou o tempo que o circo permaneça na cidade. Então, um ônibus com todos os estudantes percorre o caminho do conhecimento. “Temos que nos esforçar mais e estudar por conta própria, na biblioteca ou pesquisando na internet. Eu, graças a Deus, nunca reprovei. Fiz vestibular no Ceará e passei, mas faculdade é algo mais para frente. Por enquanto, minha opção é o circo.” Na tentativa de unir ambas as paixões, Michele pensa num curso que poderia mantê-la na vida circense, como Administração ou Marketing, mas não esconde seu fascí-


[ok texto] pg_085a087_circo.qxd

30/11/2005

nio pelo Jornalismo. “Eu vou fazer. Se der certo, fico, se não, tenho o circo de novo. Enquanto você é novo dá para trabalhar, mas vai chegar uma idade que o corpo não vai mais agüentar, e vou fazer o quê?” Na busca pelo aperfeiçoamento das apresentações, os treinos acontecem todos os dias, quando são estipuladas duas horas para cada artista. “Ensaiamos bastante, para melhorar, porque acho que você sempre tem que aprender mais. Mas é só trabalhando que você perde o medo e ganha confiança.” Essa verdadeira “vida de atleta”, porém, exige comportamentos disciplinados, também, principalmente no que se refere à alimentação. Michele precisa conter seu desejo pelo chocolate, mas a preparação mental também conta muito. “Estando bem no lugar onde você vive, você está bem para trabalhar. E a mente tem que estar descansada, senão a gente não agüenta.” As crianças começam bem cedo. Os chamados “professores”, que na verdade são pessoas que simplesmente gostam de ensinar, mostram os números básicos, para que, depois, cada um decida o que vai fazer. “Os filhos podem seguir uma carreira diferente do pai, mas é difícil isso acontecer.” Machucar-se é perigo constante e tudo é regido pela confiança. “Não depende só da gente, mas de todos os que ajudam a montar e travar o aparelho. Tudo é um trabalho em equipe. Se um não fizer direito, o aparelho fica frouxo e coloca a gente e o público em risco.” Todos os artistas são contratados, como numa empresa normal. Ganham um salário semanal, independentemente da arrecadação do circo. Contudo, o sentimento que une as mais de 150 pessoas envolvidas nos espetáculos é o de uma grande família. “Tem que ser assim, né? Porque vivemos num mundo que é só nosso.” O pai, Michel Venegas, é o grande fio condutor da família, que protege a todos nessa profissão iminente a riscos. “Meu pai revisa os aparelhos

21:16

Page 87

todos os dias.” Também é ele quem segura as cordas do aparelho de Michele, em seu número solo. Na apresentação da família, antes de se acomodar em seu lugar, Venegas ajusta as cordas de Michelzinho, como é conhecido o filho do meio. Para o menino, a deficiência auditiva nunca foi um obstáculo em sua paixão pelo circo. No tom de “mexe comigo, mas não mexe com o meu irmão”, Michele derrete-se de amor pelo grande astro da família. “É ele quem comanda a gente lá em cima. Ele dá o tempo de tudo. É o melhor e o mais esperto de todos. Já nasceu com o dom. Entramos no picadeiro de máscaras, mas é fácil reconhecer meu irmão, porque ele é o melhor.” E ele é, realmente, o mais belo nas acrobacias. Sobe, desce e gira com a experiência de quem estreou aos 5 anos de idade. Michele estreou aos 12 anos. A caçula Melissa concentra-se apenas nos treinos, por enquanto. “A gente só estréia quando acha que está realmente pronto, porque não adianta se arriscar”, explica a irmã mais velha. Lilian é a mãe zelosa. Preocupada sempre em deixar a “casa” da família em ordem, mantém o trailler brilhando e com cheirinho de limpeza. Minutos antes de entrar no palco, veste a roupa, se maquia e a fragilidade dá lugar a uma trapezista imponente e de movimentos precisos. Antes de entrar no picadeiro, Michele precisa passar por um ritual. Devota de Nossa Senhora Aparecida, a menina não consegue iniciar o trabalho sem tocar na imagem da santa, localizada atrás do palco, e rezar um pouco. “Se não faço isso, parece que não consigo trabalhar em paz.” Na saída, repete os gestos, em agradecimento. Em poucos minutos, a família Robattini sobe às alturas. Os quatro lá, impávidos. Irretocáveis. As mãos de Michele são as primeiras a desprenderem-se da corda, e o seu corpo cai em movimentos coordenados. Força, dedicação, coragem e ousadia pode-

riam descrever o número dos trapezistas. Porém, o público que observa a beleza e a grandiosidade dos artistas, que se apresentam com largos sorrisos, não tem idéia do que se passa por trás da grande lona. O cansaço em dias de muito espetáculo, no entanto, pode ser visível. Aos sábados são três apresentações e, domingos e feriados, quatro. Na terceira sessão, o corpo atinge seu limite. O semblante está diferente, apesar dos movimentos serem os mesmos. “É difícil. Dóem as costas, os braços, as mãos ficam em carne viva, às vezes. Mas nem nessas horas dá vontade de parar, porque olhar para o público recompensa.” Enquanto passa cola bastão nos cílios postiços que serão usados em algumas horas, Michele observa, da janela do trailler, a movimentação na entrada do circo e lamenta o reduzido número de pessoas. Depois que os animais foram proibidos de trabalhar, o público diminuiu consideravelmente. “Mas os artistas foram mais valorizados, porque agora, as pessoas vem apenas para nos ver.” Larga os cílios sobre a mesa e, com um olhar melancólico, desabafa: “Quando tem pouquinha gente nem dá vontade de trabalhar. Faço o que tem que fazer, mas não com o mesmo ânimo. Nem botamos as melhores roupas. Só tem empolgação quando o picadeiro está cheio.” E, confiante, torce, olhando mais uma vez para o lado de fora. “Mas vai ter gente, se Deus quiser.” Entre um traço e outro da forte maquiagem que desenha sobre o rosto, Michele avalia a redução de público ao longo dos anos. “Antigamente, as pessoas eram mais animadas e achavam graça em qualquer coisa. Hoje, elas não se enganam mais, principalmente por causa da tevê. Temos que ensaiar muito para impressionar.” Ainda que com pouca gente para assistir, a artista acredita que o circo irá persistir por muitas gerações. “Enquanto existir uma criança no mundo, o circo não vai morrer nunca.” | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|87|


pg_088a090_terapia animal.qxd

7/12/2005

08:34

Page 88

VeterinĂĄria |88|

Primeira ImpressĂŁo | Dezembro de 2005 |

Zen


pg_088a090_terapia animal.qxd

7/12/2005

08:35

Page 89

Não é só gente que precisa de tratamento homeopático. A Medicina Veterinária avança no uso dessa terapia e obtém resultados promissores TEXTO

DE

DANIEL LESSA, DANIELA HECK

FOTOS

DE

CARLA STAHL

E

TATIANA FACHEL

N

a parede do consultório, o quadro com a cadela boxer de nome Clio, e abaixo deste, uma dedicatória dos donos em agradecimento à médica veterinária Maria de Lourdes. Ela relata o benefício da homeopatia na vida de Clio, que sofria de câncer no fígado. Na fase terminal, ela não comia, não brincava e carregava nos olhos a tristeza de quem sabia que as coisas não iam bem. Diante da dor de vê-la neste estado, a família resolveu aventurar-se na homeopatia veterinária, mas o caso estava perdido. No entanto, a terapia possibilitou que os últimos meses fossem menos dolorosos. Ela teve uma melhora fantástica, brincava e até voltou a comer, no entanto, a morte foi inevitável. Maria de Lourdes, formada na Faculdade de Veterinária da Universidade de Lourenço Marques, Moçambique, em 1972, foi professora de medicina veterinária na UFRGS e trabalha há 24 anos com homeopatia. Ele explica que doenças como câncer e tumores são de difícil cura após a doença estar em estágio avançado. A homeopatia já curou inúmeros casos de cinomose e gastroenterite, e fez desaparecer, naturalmente, alguns tumores mamários. A cura do câncer ainda é, no entanto, um desafio. A cura de casos graves, com riscos quase inexistentes, ultrapassou a expectativa da Medicina “humana”, e hoje conquista espaço nas clínicas veterinárias. As substâncias homeopáticas utilizadas em animais são as mesmas aplicadas nas pessoas e têm igual objetivo: estimular o organismo a usar seus recursos buscando a harmonia dos órgãos. Os efeitos são provenientes da energia oriunda de componentes vegetais, animais e minerais. As fórmulas não contêm nenhum tipo de produto químico, o que proporciona um tratamento livre de agressões ao organismo e até ao meio ambiente. Por outro lado, muitos alopatas creditam as melhoras com o uso da homeopatia ao “efeito de placebo”, obtido quando se ministra aos pacientes pílulas sem remédio, geralmente usado em estudo. Já os homeopatas rebatem tais afirmações. Como podemos explicar as melhoras em um animal que nem ao mesmo está ciente do tratamento a que está sendo submetido? Não é à toa que a procura por este tipo de medicina vem despertando interesse nas pessoas que se preocupam com a qualidade de vida de seus animais. Os motivos vão desde experiências bem suce| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|89|


pg_088a090_terapia animal.qxd

7/12/2005

08:35

Page 90

didas com a homeopatia no próprio dono, até o uso do tratamento como último recurso para salvar a vida do animal. O que poucas pessoas sabem é que o tratamento não serve apenas para curar, mas, principalmente, como forma de prevenção de possíveis doenças que possam vir a desenvolver. Segundo dados da Associação Médico Veterinária Homeopática Brasileira (AMVHB), existem mais de 400 veterinários homeopatas no país, Elias Carlos Zoby, presidente da AMVHB, especialista em homeopatia veterinária, explica que a AMVHB tem representantes em quase todos os estados e é o único órgão habilitado pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária a conceder títulos de especialista em Homeopatia Veterinária. Na Veterinária, como na medicina humana, o profissional inscrito no Conselho Regional pode atuar em qualquer área da profissão. “Entretanto, ele só pode proclamar-se especialista se for titulado por uma entidade reconhecida pelo Conselho Federal respectivo” frisa Zoby. A AMVHB tem hoje 419 cadastrados, destes, somente 11 têm a titulação de Especialista em Homeopatia Veterinária. A primeira consulta geralmente exige paciência e dedicação do dono, pois o veterinário faz uma análise de todos os aspectos da vida do animal: seu desenvolvimento, possíveis alterações orgânicas, ambiente onde vive, comportamento até o relacionamento com os donos, outras pessoas e animais. Essas informações são fundamentais, “não se trata apenas de uma parte do ser, mas sim do todo”, ensina Maria de Lourdes. Somente após essa análise, o médico poderá fazer um diagnóstico. A médica veterinária explica que, assim como o homem, os animais também passam por traumas que moldam suas características. O desmame, por exemplo, é uma fase muito difícil para os mamíferos. É nesse momento que ele lida, pela primeira vez, com o sentimento de perda, de vazio e de insegurança. A convivência com outros animais em canis é outro fator que interfere na construção da personalidade. Todos esses aspectos são responsáveis pelos distúrbios comportamentais e possíveis doenças físicas. Por estes aspectos, a médica Maria de Lourdes salienta que a aproximação e o contato do dono com o animal são fundamentais. Quando a homeopatia é feita desde cedo, o animal adquire mais equilíbrio, pois o tratamento trabalha todos os traumas que o paciente possa passar, como o desmame, a ruptura dentária, que costuma ser dolorida, e uma possível mudança de residência, dentre outras situações.

|90|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

A homeopatia veterinária não é exclusividade dos cães e gatos, ela também trata outras espécies. As aves não são frágeis como muitos pensam, elas chegam a viver de 80 a 100 anos. Em contrapartida, quando doentes, têm de ser levadas a um veterinário, pois desenvolvem a doença muito rapidamente e, por isso, têm uma piora clínica e, em seguida, a morte. Laura Tobino é pioneira na homeopatia com aves no Brasil. Como ela existem apenas mais três veterinários no país. Formada pela UFRGS, a co-fundadora do Sindicato dos Veterinários Homeopatas do RS também atende como voluntária na Liga Homeopática do Rio Grande do Sul. O trabalho executado na Liga não tem cunho lucrativo, é cobrado apenas um valor simbólico. Esse trabalho voluntário também é direcionado para cães e gatos, pela médica Maria de Lourdes e para pessoas interessadas na medicina alternativa. As aves necessitam de muitos cuidados, assim como cães e gatos, mas diferente destes, as reações e distúrbios emocionais são muito mais intensos. Dependendo do grau de depressão que uma ave atinge, ela pode ir desde o canibalismo até crises de auto-mutilação e, com isso, ao suicídio.”O trabalho do veterinário homeopata é educar e ensinar o dono sobre os hábitos do animal, explicando sobre a alimentação adequada até o local onde deixar as gaiolas para que ele não seja exposto a corrente de ar e, com isso, não venha a ficar gripado”, explica Laura Tobino. Com a descrença e a falta de informações sobre os tratamentos, as dúvidas são uma barreira que constantemente deve ser transposta pelo profissional que adere à homeopatia. As mais comuns dizem respeito ao tempo de tratamento, que muitos acham longo, e em como fazer os animais tomarem as fórmulas. As respostas são simples e práticas. Quanto ao tempo de tratamento, tudo depende do diagnóstico certo e as melhoras tendem a aparecer rapidamente. Quanto à administração do medicamento, é bem simples: ele deve ser misturado à água que o pássaro toma. Se o bichinho não gostar, simplesmente deixe a água com a mistura na gaiola, mais cedo ou mais, tarde a ave terá sede e, com isso, tomará a medicação. A homeopatia vem crescendo muito no ramo da Medicina Veterinária e, ao contrário do que muitos pensam, esta terapia que, às vezes, parece mística e sem fundamentos científicos, se mostra fruto de uma análise de física quântica e traz resultados reais e até mesmo melhores do que os tradicionais tratamentos alopáticos.


@@ ALTERADO @ pg_091a094_artistas de rua.qxd

7/12/2005

17:22

Page 91

Cenário urbano

TEXTO

DE

JULIO OLIVEIRA, LUCIANE DA COSTA SANTOS FOTOS DE DENISE SILVEIRA

E

TIAGO NUÑEZ

Os artistas de rua percorrem um caminho de dúvidas até aceitar sua verdadeira aptidão profissional

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|91|


@@ ALTERADO @ pg_091a094_artistas de rua.qxd

V

7/12/2005

17:23

Page 92

iver é uma arte. Muitas pessoas levam esta frase como filosofia de vida. Para elas a profissão escolhida é um caminho independente de mercado de trabalho, realização financeira e sucesso profissional. A profissão de artista de rua é sempre determinada pela vocação pessoal. Mesmo assim, muitos artistas percorrem um caminho de dúvidas até aceitar sua verdadeira aptidão profissional. A grande maioria já exerceu outras profissões que, mesmo tomando grande parte do tempo, não foi capaz de destruir a paixão pelo trabalho artístico. O dilema só foi finalmente sanado quando descobriram que não podiam contrariar seus destinos. Os problemas enfrentados diariamente por qualquer trabalhador, de qualquer profissão, são inúmeros e, quando esta realidade se insere no cotidiano do artista de rua, mais estranhas e imprevisíveis são as situações que podem ocorrer. Chuva, frio, sol forte atrapalham muitas profissões, mas no caso destes trabalhadores, fa|92|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

tores como esses são determinantes. Nas praças, parques e ruas movimentadas do centro das cidades, que são os lugares onde eles mais costumam atuar, esses artistas do povo conhecem bem o que é ser reconhecido e admirado pelas pessoas que sempre param para curtir o espetáculo, contribuir financeiramente ou bater um papo. Mas a indiferença dos que transitam pelas ruas das grandes cidades também está presente no cotidiano desses homens idealistas. Porém isso não parece afetálos, já que não é apenas para isso que eles estão lá. O principal motivo que invariavelmente os leva por esse caminho é o da necessidade de se sentirem em paz com suas reais vocações. O pernambucano Feliciano Falcão, 50 anos, mais conhecido como “homem do gato”, é um desses artistas. Formado em teatro no Rio de Janeiro, teve inúmeras profissões antes de decidir-se pela carreira artística. Há 30 anos abandonou a vida de carteira assinada e passou a se dedicar exclusivamente ao seu personagem. “Eu


@@ ALTERADO @ pg_091a094_artistas de rua.qxd

7/12/2005

17:23

não gostava muito do que fazia. Cheguei a ter um cargo de chefia e um bom salário. Mas decidi largar tudo e ir para as ruas trabalhar minha veia de ator. Meu chefe na época disse que eu estava ficando louco. Anos mais tarde ele me encontrou e assistiu meu espetáculo. Quando acabei, veio me dizer que eu estava certo. Eu havia nascido para aquilo”, relembra Feliciano. Seu show basicamente tem dois momentos. No primeiro, mais livre, o artista intercepta as pessoas que estão passando e, no improviso, brinca com elas, tentando conquistá-las. Num segundo momento, após a roda estar formada, a apresentação do espetáculo tem início. Sempre muito teatral e circense, Falcão consegue inúmeras risadas dos espectadores com a encenação de um homem que estaria batendo com um pau em um gato dentro de um saco. Na verdade, o gato é um pedaço de pano preto, mas com a utilização de um apito feito de bambu, que ele mesmo fabrica e vende, Feliciano reproduz os grunidos de um gato e deixa a apresen-

Page 93

tação tão convincente que algumas pessoas realmente acreditam tratar-se um animal. Feliciano diz já ter tido alguns problemas com essa situação. “A primeira vez que fui para a Rua da Praia, subi numa árvore e fui preso na mesma hora. O policial achou que eu tava matando um gato. Daí eu cheguei na delegacia e mostrei que era tudo uma grande brincadeira, que eu era um ator que estava querendo fazer sucesso. E o delegado deu boas risadas e me liberou”, lembra o artista, que, nos último cinco anos, passou a ser solicitado também para animar eventos e dar palestras, gerando-lhe uma renda adicional. Outro artista que também largou tudo para viver apenas do que gosta de fazer é o argentino Oscar Fernandes, de 47 anos. Nascido, mais precisamente, na região da Patagônia, seu Oscar, como é chamado, vive da arte há 12 anos e há nove está na cidade de Porto Alegre. Antes de aceitar sua verdadeira vocação, a pintura, trabalhou na área contábil e, paralelo a isso, sempre teve gosto pela arte. Pintava desde pequeno, até que um italiano que vivia viajando pelo mundo lhe mostrou uma revista com algo que se fazia na Espanha. “Era um artista que trabalhava desenhando no asfalto. Lá na Europa é comum que os artistas se mostrem assim. Os estudantes de belas artes trabalham muito na rua”, conta Oscar, que faz pintura no asfalto com giz. O trabalho, que aqui no Brasil parece não ser muito valorizado, na Europa é usado como atrativo turístico, o que incentivou ainda mais Oscar Fernandes. “Quando vi que pessoas ganhavam bem com isso resolvi seguir a história de pintar. Sempre gostei mais de pintar do que andar com calculadora”, relata. Segundo o pintor, a falta de incentivo por parte do governo em relação à cultura é que faz com que poucas pessoas se interessem e pratiquem esse tipo de trabalho. Em média, o pintor leva de cinco a seis horas para concluir um trabalho no asfalto. Geralmente, utiliza temas religiosos por serem mais populares. Oscar já foi casado e tem uma filha. Hoje em dia vive sozinho, mas não teme a solidão. Segundo ele, o artista precisa de um espaço só dele. João Costa, 65 anos, mais conhecido como Zé da Folha, por tocar músicas ao violão acompanhado por uma folha de jambolão na boca, é figura certa nos domingos de sol do brique da redenção em Porto Alegre. Há 50 anos, largou o trabalho na roça para pegar a estrada e seguir seu caminho de músico. Nascido em São Valentim, interior do Rio Grande do Sul, onde a economia é baseada na agricultura, João deu início à carreira de artista com 10 anos de idade. “Eu comecei a tocar com aqueles pentinhos de macaco que dá no meio do mato. Lixava, botava na boca e tocava”, lembra. O gosto pela arte foi crescendo, e a cidade de São Valentim ficou pequena para o artista, que já esteve em países como Argentina e Uruguai. O amor | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|93|


@@ ALTERADO @ pg_091a094_artistas de rua.qxd

7/12/2005

17:23

Page 94

pela arte não permitiu que constituísse família. Zé da Folha mora sozinho. “Fui casado uma vez, mas não é bem casado. Fui amontoado. Não tenho filho”, comenta. Apesar das dificuldades do dia-a-dia, que são muitas, a começar pelo pouco que ganha, o artista afirma que gosta do que faz. Além de se apresentar nas ruas, Zé é contra-baixista da banda Bombachudos e, em dias de chuva, para garantir o sustento, toca em bares na noite porto-alegrense. Roberto Paulo de Oliveira, 25 anos, é outro desses artistas que prende a atenção de quem passa pelas ruas da capital gaúcha. Há 13 trabalha como estátua viva. Mas sua história é um pouco diferente das dos demais. Já que seu ofício surgiu devido à necessidade de sobrevivência. “Já morei muito na rua. Nesse tempo, virei artista de rua”, conta Paulo, que sofreu maus tratos na infância e por isso saiu de casa. Seu personagem “homem estátua”, com o passar do tempo, foi sendo aperfeiçoado com o acréscimo de movimentos de robótica, que para ele valoriza e personaliza o trabalho. “Eu aprendi coisas de malabarista e também sou dançarino profissional, o que me ajudou a aperfeiçoar a minha arte”, explica. Prata, como gosta de ser chamado por usar maquiagem prateada em todo o corpo, diz ter problemas com es|94|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

sa pintura. Segundo ele, a tinta resseca e prejudica a pele. Relata gostar do trabalho, mas salienta que o faz mais por ser uma necessidade, já que tem família e corre atrás do sustento. Além de dominar seu ofício, o artista de rua precisa também lidar com situações corriqueiras na atual sociedade, como o assalto. Oscar Fernandes disse já ter sido assaltado enquanto saía de um dia de trabalho. “Eles me seguiram e, quando viram que estávamos em um lugar mais deserto, me abordaram com uma faca. E eu não pude fazer nada. Eles estavam com uma faca e eu com uma caixa de giz.” A partir desse dia, passou a se vestir mais humilde durante seus dias de trabalho. A história do artista de rua é como o próprio teatro, algumas vezes triste, outras vezes feliz. A felicidade está na realização profissional desses atores-trabalhadores. Não é fácil sobreviver desse trabalho, que é também um destino para quem ama a sua arte. Feliciano Falcão, Oscar Fernandes, João Costa e Roberto Paulo de Oliveira são exemplos de pessoas que lutaram por sua existência plena. Se eles não levam uma vida muito folgada financeiramente, com certeza eles descobriram muito sobre seguir sua intuições e são hoje profissionais realizados.


pg_095a097_operador de empilhadeira.qxd

7/12/2005

09:57

Page 95

Carga

pesada

D

entro de um grande depósito de uma rede de supermercados, em São Leopoldo, onde Luiz Fernando Karwinski, 38 anos, trabalha, há grandes prateleiras com sacos de cereais, caixas de enlatados e garrafas de refrigerante. Tudo empilhado em quase dez metros de altura. Ali, os alimentos são carregados de caminhões fornecedores para o estoque e do estoque para os caminhões. Os veículos saem dali para abastecer as filiais da rede. Nos corredores, entre as prateleiras, muito cuidado, afinal, o barulho e os faróis indicam que há uma máquina carregando os alimentos de um local para o outro. É a empilhadeira. Luiz Fernando, que vai para o trabalho de bicicleta, opera diariamente a empilhadeira de quase três mil toneladas, durante um turno inteiro. Ele é casado e tem quatro filhos, sendo um adotivo. Foi segurança, soldador, entre outras funções, mas a que ele realmente se identificou e gosta é a de operador. Há seis anos formado pelo Senai, atua há seis me-

Operar empilhadeira por entre grandes prateleiras de fábricas parece fácil. Só parece. São necessários conhecimentos de segurança e da própria máquina TEXTO FOTO

DE

DE

GIOVANA PEREIRA

E

MARCELO VICENTE

ANNA CAROLINA

ses na rede de supermercado. Seu próximo passo é solicitar à empresa que assine a carteira de trabalho como Operador de Empilhadeira. É muito serviço. Trabalha de domingo a quintafeira. Folga sexta-feira e sábado. Ele sabe operar empilhadeiras a gás ou elétrica. O operador, segundo ele, deve ter muito cuidado com a máquina. Luiz Fernando viu colegas perder quilos de alimentos por causa de sacos de cereais derrubados no chão por falta de atenção. Outro cuidado é com as pessoas

que trafegam no depósito. Ele tem que andar de ré para enxergar para onde está indo, pois a carga fica na frente da empilhadeira. É como se andasse de carro com o capô aberto. A empilhadeira dele tem capacidade de carregar 75 fardos com oito garrafas de refrigerante de dois litros, o que dá aproximadamente 1.600 quilos. Com o movimento contínuo e manobras rápidas, além de eventuais irregularidades no piso, os acidentes podem ser freqüentes. Volnei Alves da Silva, 34 anos,

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|95|


pg_095a097_operador de empilhadeira.qxd

7/12/2005

09:57

trabalha das 7h às 17h numa indústria metalúrgica. Antes de ligar a empilhadeira, faz uma checagem na máquina e só depois começa a trabalhar. “É como dirigir um automóvel, é preciso muito cuidado e concentração. A má utilização do veículo pode ocasionar a queda do material que está sendo transportado”, relata o funcionário, que também é motorista de caminhão. Para manter a segurança, é sempre bom verificar se as sinalizações da empilhadeira estão em ordem. O operador deve ter um cuidado especial tanto com a máquina quanto com o ambiente onde esta trafega. Além de Volnei, a empresa conta com outros oito operadores, que juntos transportam 100 mil quilos de carga de aço e ferro por dia. Formado pelo Senai, atua há doze anos no ramo. O que fez Volnei se interessar pela profissão foi a oportunidade que uma empresa lhe ofereceu. “Eu já trabalhava em metalurgia e estavam precisando de alguém para operar a empilhadeira. Então me candidatei e fui encaminhado para fazer um curso de capacitação”, relata. O curso ajudou igualmente seu colega Josemar Rodrigues Dias, de 22 anos, a conseguir seu primeiro emprego. “Fiz um curso oferecido pela própria empresa, que buscava fechar o quadro de operadores e consegui a vaga”, destaca Josemar. O mercado para operadores de empilhadeira está em expansão, pois a especialização na área é novidade. A unidade do Sine de São Leopoldo, por exemplo, oferece, em média, quatro vagas por mês para profissionais do ramo. Número ainda pequeno, se considerarmos que pelo menos 25 operadores batem na porta do Sine procurando emprego mensalmente nesta função. “As exigências para este mercado são, basicamente, experiência mínima de 12 meses, carteira de habilitação e curso profissionalizante”, informa a coordenadora da entidade Edialeda Stimamiglio. As vagas não são fáceis de serem preenchidas, por-

|96|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

Page 96

que os empregadores são muito exigentes. Geralmente no recrutamento, as empresas buscam seis candidatos para disputar uma vaga; depois marcam a entrevista pessoal e a prática de campo, onde se verifica a experiência dos candidatos. Como na maioria das profissões, o tabu da idade é levado em conta. As empresas exigem que o candidato tenha, no máximo, 40 anos. A versatilidade é um dos pré-requisitos. Mesmo sendo contratado, o profissional precisa estar disposto a realizar outras atividades. Seguidamente, quando não há serviço na empilhadeira, os operadores são remanejados para outros setores da empresa, para ajudar na produção. De acordo com o professor João de Deus dos Santos Gomes, cada vez mais há a exigência do curso para praticar a função. O operador de empilhadeira deve ter a carteira tipo “C”, de acordo com o Código Nacional de Trânsito, artigo 144. A empilhadeira tem mais de 3,5 toneladas, assim é considerada do porte de um caminhão e anda numa velocidade de 8km/h a 15km/h. João de Deus Gomes começou a trabalhar como operador em 1961. Esteve 12 anos na função, se especializou com cursos e, atualmente, dá aulas em todo o estado. Ele acredita que o mercado é bom, pois poucas pessoas estão habilitadas para a função. “A empilhadeira é muito perigosa”, alerta o professor. Os profissionais devem cuidar muito da segurança de si mesmos e dos outros, salienta. Como no trânsito o pedestre tem sempre a preferência. Esta é uma regra que deve sempre ser seguida, seja na rua ou dentro de uma empresa. O Senai de São Leopoldo forma 200 novos operadores de empilhadeira. Muitos deles esperam que esta especialização dê resultado, ou seja, emprego garantido ou aumento de salário. Em tempo de índices altos de desemprego, uma especialização faz a diferença. “O curso é maravilhoso”, testemunha Evandro Peixoto, de


pg_095a097_operador de empilhadeira.qxd

7/12/2005

29 anos, cheio de esperanças de oferecer uma vida melhor para sua esposa e seu filho de seis anos. Ele atua há seis meses como operador, mas não é habilitado. A empresa onde trabalha pediu para que fizesse o curso, pois assim poderia melhorar o salário. “Os auxiliares de produção ganham R$ 1,89 a hora e operador ganha R$ 2,94”, conta o rapaz, que mora no bairro Campina, em São Leopoldo, e trabalha num supermer-

09:57

Page 97

cado da região. Outro interessado em seguir carreira é Derli de Andrade, 27 anos. Trabalhando atualmente numa fábrica de ração animal como auxiliar de recebimento, ele procurou o curso de Operador de Empilhadeira: “Um dia surgiu uma oportunidade de dirigir a empilhadeira uns 30 metros e gostei”, recorda. Ele espera se dar bem: “Quero seguir carreira como operador”, afirma Darli, que é casado e tem uma filha.

Atenção: Luiz Fernando Karwinski opera uma empilhadeira com capacidade de carregar 1.600 quilos

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|97|


pg_098a099_vendedor ambulante.qxd

7/12/2005

09:12

Page 98

Negócio de rua Persistência, dedicação e ambição fazem parte da vida de um vendedor ambulante TEXTO FOTO

DE

DE

KARINA GEYGER

E

MICHELE MACHADO

PABLO ESCAJEDO

C

omo toda profissão comercial, o vendedor ambulante luta diariamente para manter as vendas e o bom humor e ainda atrair clientela. No Brasil, o trabalho informal como é conhecido hoje existe desde o Século XX. A população negra, após a abolição da escravatura, não encontrando empregos na emergente industrialização e convivendo com a falta de qualificação de mão de obra, passou a vender nas ruas, em pontos de concentração de pessoas, produtos de fabricação e criação caseira. Os principais produtos vendidos eram doces, salgados, bijuterias, utensílios domésticos, roupas e também produtos oriundos de pequenas criações e plantações familiares, como carne de porco, frangos, ovos, legumes, frutas e verduras. A crise sócio-econômica originou uma nova categoria de trabalhadores: os camelôs, ou vendedores ambulantes. Eles não têm carteira de trabalho assinada e tentam driblar, de forma criativa, o desemprego. Dezenas de barracas, vendendo os mais diversos tipos de produtos, foram instaladas nas praças, ruas e viadutos das cidades. A preocupação com os vendedores ambulantes nas cidades reflete parte das questões referentes à economia informal, que gera renda, mas não paga impostos. Recente levantamento feito pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostra o brasileiro satisfeito em trabalhar sem patrão e sem carteira assinada. No total, somam 38,6% dos trabalhadores. Dados do Ministério do Trabalho mostram que em 1995 havia 2,1 milhões de trabalhadores autônomos ou sem carteira assinada só na região metropolitana de São Paulo. Salete Rodrigues, 34 anos, é um exemplo de garra, perseverança e alegria. Apesar da timidez, quando está no seu posto de trabalho é só alegria. Na rua Dr. Flores, no centro de Porto Alegre, ela fala, grita e motiva suas colegas. Vendendo linge-

|98|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

ries, sustenta sua filha de 11 anos e ainda mantém sempre suas unhas e cabelos arrumados. “Acima de tudo sou mulher.” Salete se considera a mais elegante de todas as colegas. Vaidosa, está sempre pronta para arregaçar as mangas e iniciar uma nova jornada de trabalho. “Com certeza atendo muitas senhoras de 50 e 60 anos, mas para mim o que mais me atrai é ter a oportunidade de conhecer todas elas, pois lingerie é muito pessoal e aí conheço um pouquinho de cada uma. Já conquistei grandes amigas aqui onde trabalho.” Quando está na calçada segurando um manequim com os modelos que dispõe, ela chama as pessoas e mostra seus produtos prontamente. A partir daí o negócio pode ser rápido ou prolongado, pois a negociação é única para cada cliente. Salete considera que a liberdade que tem para negociar não tem preço, cada cliente pode fazer sua proposta. “Tenho que ter lucro, mas não deixarei de vender por 50 centavos de desconto”. Já a jovem Glacinara Souza, solteira e com 27 anos, mantém sua casa na Restinga com a venda de cintos. Primeiramente nem ela acreditava que poderia dar certo, mas com o passar dos dias e com o planejamento de suas vendas, hoje considera ter conquistado seu lugar ao sol. Não trabalha em uma rua somente. Alguns dias fica no centro de Porto Alegre, na rua dos Andradas, em outros, circula pela Zona Sul da capital. Ela vende em média 30 cintos por mês e, em épocas especiais, como Dia dos Pais e Natal, pode dobrar esse número. Não tem uma renda que considera ser a ideal para aproveitar e conquistar tudo o que sonha, mas tem certeza que, se depender dela, motivação para vender seus produtos e qualidade no atendimento nunca faltarão. Glacinara e Salete são exemplos de algumas funções e atividades criativas que são encontradas pelos trabalhadores para manter sua sobrevivência. O mais importante é que, entre as pessoas que trabalham como vendedores ambulantes, a luta é constante e a ambição move cada um para a busca de sua sobrevivência e bem estar. O agricultor Anarolino Souza da Rosa também teve seus altos e baixos até conseguir driblar o desemprego. Há 25 anos, Anarolino saía de sua cidade natal, Tenente Portela, em busca de um sonho: ter seu próprio negócio. No início acreditou que pudesse ser seu patrão, mas as coisas já indicavam o caminho a seguir.


pg_098a099_vendedor ambulante.qxd

7/12/2005

09:12

Page 99

A lavoura era seu ofício, mas ele queria mais. Obstinado, deixou o interior com a mulher e filhos e foi morar em Canoas, na grande Porto Alegre. Não foi fácil. Tendo concluído apenas a primeira série do ensino fundamental, ele não conseguiu montar um negócio próprio. Precisava sustentar a família. Foi assim que começou a trabalhar com a carpintaria, buscando nas obras civis seu ganha pão. O trabalho era exaustivo e os lucros incertos. Quando a obra ia bem, tinha serviço, do contrário, era dispensado e, no final do mês, o salário era pouco. Seu sonho de liberdade e autonomia parecia estar cada vez mais longe. Decidido a mudar os rumos dessa história, economizou, comprou uma carrocinha de algodão doce e pipocas. Deixou de ser carpinteiro e foi vender em um ponto fixo da cidade. As coisas começaram a funcionar, e Anarolino percebeu que ali estava sua verdadeira vocação. Ele descobriu em Porto Alegre um lugar que vendia máquinas para fabricação de churros e resolveu apostar nisto. Estava nascendo o Churros Tribom e com ele a realização de um sonho. No início Anarolino vendia o produto em lugares determinados, mas percebeu que, para ser vantajoso, deveria buscar a diversidade e visitar as ruas de seu bairro com sua carrocinha.Todos os dias, com chuva ou sol, inverno ou verão, percorria determinados pontos e ia conquistando a simpatia e aceitação de um público, desde crianças até a terceira idade. A propaganda boca-a-boca foi a melhor solução

para aumentar o negócio. Criou seus cinco filhos vendendo churros, ofereceu a eles o que a vida não pôde lhe dar: o estudo para que tivessem uma chance em um mercado cada vez mais competitivo. Sempre teve o apoio da esposa, mesmo quando as coisas não iam tão bem assim. Os lucros nem sempre eram garantidos, pois em muitos momentos as vendas eram insuficientes até para repor a matéria prima. Mesmo assim, ele estava realizado e sentia que esta era sua profissão. Nela não existia dia ruim. Fez a promessa de que, enquanto estivesse com saúde, iria trabalhar. Os negócios melhoraram e a carrocinha foi substituída pelo carro do churros. Hoje, 23 anos depois, Anarolino está satisfeito com seu emprego e sua vida. Afirma que não gostaria de trabalhar em outra coisa e que seu maior prazer é atender bem uma vasta clientela que lhe permite atividade seis dias por semana com uma folga que ele mesmo determina. Os filhos estão casados e três deles seguiram a profissão do pai, vendem churros em outras cidades do Vale dos Sinos, como Novo Hamburgo e Campo Bom. A propaganda é feita através do próprio veículo, que possui um jingle bastante conhecido na região. Anarolino é hoje um senhor tranqüilo e realizado no que faz. Sua maior alegria é ver a satisfação dos clientes e as grandes amizades que fez ao longo destes anos em uma profissão livre. Para ele, a liberdade faz toda a diferença.


pg_100a103_bruxas.qxd

|100|

7/12/2005

09:51

Page 100

Primeira ImpressĂŁo | Dezembro de 2005 |


pg_100a103_bruxas.qxd

7/12/2005

09:51

Page 101

Profissões

encantadas Apesar de historicamente serem acompanhados por uma imagem demoníaca, pais-de-santo e bruxas encaram seus ofícios com profissionalismo e seriedade TEXTO

I

DE

BEATRIZ VALLE

E

DANUSA ETCHEVERRIA | FOTOS

ndependente da convicção religiosa de cada um, os rituais são fundamentais para a manutenção da fé. O padre Pedro Ivo Follman explica que em todas as religiões existem rituais e símbolos. “O rito, dentro das religiões, pretende expressar a fé coletivamente”, conta. “Alguns rituais parecem mais agressivos aos nossos olhos por não fazerem parte da nossa cultura. Temos medo daquilo que não conhecemos”, pondera. Segundo Follman, a Igreja Católica foi uma das responsáveis pela criação da imagem negativa em torno de bruxas e orixás no passado. O medo e o preconceito ainda existem porque não há apresentação aos ritos das demais religiões ou seitas, uma vez que o catolicismo não dá espaço para outras crenças. Hoje, com a democratização da cultura e da multiplicação

DE

TIAGO COELHO

de crenças, informações sobre religiões e seitas podem ser acessadas até mesmo através da internet. Sobre a cobrança das consultas por parte desses profissionais da fé, Ivo Follmann acredita que é justo pagar por um serviço prestado, desde que se tenha certeza da veracidade do fornecedor. Os rituais são caros, envolvem investimentos dos místicos e precisam ser cobrados para dar continuidade ao seu ofício. Mãe Andréia de Iemanjá trabalha no Ilê Oxum Docô, no bairro Partenon, em Porto Alegre. Com muita serenidade, busca elementos para explicar sua atividade e deixa evidente sua satisfação pelo trabalho que realiza: “Eu amo o que eu faço e amo a minha religião”, conta. Andréia ensina como são definidos os valores dos trabalhos

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|101|


pg_100a103_bruxas.qxd

7/12/2005

09:51

Page 102

realizados pelos pais e mães-desanto. Os preços são definidos baseados em dois critérios: quando se faz religião, como em casos de auxílio espiritual a tratamentos médicos, ou quando se vende o axé, no caso de intenções fúteis dos consulentes. O Código Brasileiro de Ocupação considera os pais-de-santo como ministros religiosos. No Ilê, pais, mães e filhos-de-santo orientam as pessoas que os procuram, através dos búzios ou cartas. Em um Ilê urbano, uma casa, pode-se conhecer o trabalho e os rituais do Batuque, religião de origem africana, baseada na oralidade, cuja crença chegou ao Brasil com os escravos. Para o Batuque, Olorum, o criador, conta com os 12 orixás para ajudar a governar o mundo e orientar as pessoas. De Bará a Oxalá, cada uma das entidades tem suas próprias funções, representações, rituais e significados. O Batuque, através dos pais e mães-de-santo, tem por finalidade fazer bem ao espírito e à sociedade, segundo Andréia de Iemanjá. Com uma peneira de búzios sobre a mesa e uma imagem de Iemanjá, orixá dona dos mares e do pensamento, Andréia mostra guias, colares feitos de miçanga com a cor de cada entidade. O consultório é bem iluminado, com paredes pintadas de cor clara, quadros e poltronas. Na confortável sala, Andréia de Iemanjá explica a origem de símbolos de sua religião, o significado de alguns dos muitos rituais de sua religião e suas vivencias enquanto mãe-de-santo. |102|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

O sangue dos animais mortos para os rituais do Batuque é acondicionado em recipientes consagrados e usado em diversas obrigações, como são chamados os rituais no Ilê. Serve para simbolizar a força vital do universo. As danças representam os ofícios de cada orixá. Durante a dança os filhos-de-santo rezam e fazem pedidos às entidades. As comidas oferecidas aos orixás procuram a tranqüilidade e não são preparadas com condimentos fortes. Por esse motivo, os doces e as frutas estão tão presentes nos rituais das religiões de origem africana. Denise Cademartori, administradora, 50 anos, mãe de três filhos, e bruxa, diz que atua no mundo visando o equilíbrio do seu semelhante. Em uma sala comercial no Centro de Canoas, é possível encontrar serviços como numerologia pelo tarô e astrologia Cármica, a um custo de 8 reais a consulta de 15 minutos, Denise também se dedica a ministrar cursos sobre a magia Wicca, uma tradição Celta. Seus clientes são, na maioria, mulheres. Senhoras, jovens, casadas, solteiras, desquitadas, desempregadas; todas com alguma inquietação particular, porém duas em comum: amor e dinheiro. “Tenho clientes que chegam aqui desesperadas, procurando respostas, ajuda; quando consigo fazer com que elas saiam daqui com uma expressão de alívio me sinto realizada”, conta a feiticeira, que lembra também que há algumas clientes que não acreditam em suas previsões, e


pg_100a103_bruxas.qxd

7/12/2005

09:51

Page 103

saem dizendo que estas jamais poderão acontecer, mas sempre acabam voltando para dizer que ela estava certa. Seu consultório conta com três salas. Uma de recepção, outra de espera e a principal, onde Denise tem seu quadro branco para fazer seus rabiscos e contas, sua mesa com uma toalha roxa, seus três baralhos e sua estante repleta de vidros de café e maionese com ervas. São chás especiais para fazer encantamentos — totalmente gratuitos. Ela atende de segunda a sexta-feira, das 10h30min as 20h. As amigas mais próximas são recebidas em sua casa, onde começou seu consultório místico, em 1997. “O ritual é uma forma de entrar em contato com outro mundo”, ensina. Denise nasceu em Livramento, fronteira oeste do estado, e foi morar em Porto Alegre aos 10 anos. Única menina dos quatro irmãos, desde cedo já se interessava pela magia. Em 1974 formou-se em Administração de Empresas, pela PUCRS. Casou-se e ajudou o marido na venda de autopeças. Ganhou muito dinheiro. Em 1977, quando nasceu o seu primeiro filho, ela já havia começado seus estudos sobre Astrologia e Astrodinâmica; desde então não parou mais de estudar e investir em materiais e cursos de especialização na área. Foi bem sucedida no ramo de vendas, mas seu casamento acabou, e ela teve que eleger um novo caminho para sobreviver e criar os filhos. Com o final de seu casamento, Denise entrou de vez no mundo da magia, e fez disso

um rentável negócio. Formou-se em Cosmobiologia — ciência que estuda a influência dos planetas da vida das pessoas — pela Grande Fraternidade Universal (GFU-POA) e foi titulada pela Golden Down — Ordem da Aurora Dourada (Congregação Européia 1888) — como bruxa, sacerdotisa e feiticeira. Ela traçou uma carreira de muito estudo e pesquisa e, atualmente, com o trabalho que realiza, tem uma renda mensal de 3 mil e 500 reais e mantém uma casa com os três filhos. “Considero-me uma privilegiada por amar o que faço e poder me sustentar com isto”, enfatiza. Ela explica que seu trabalho baseia-se na análise completa de dados do cliente (data e hora do nascimento) e de toda uma simbologia existente nessas informações. “Não faço adivinhações, não tenho vidência alguma”, afirma. A bruxa é pioneira no estado em ministrar cursos sobre a magia Wicca, uma tradição Celta. O curso se divide em três módulos com o custo de 90 reais cada unidade e tem a duração de um mês e meio. “A magia é para todos, mas nem todos são para a magia”, destaca Denise, que após dar as aulas para seus aprendizes, os convida a participar de seu grupo de feiticeiros — Coven. O grupo pode ter no máximo 13 pessoas e estas têm que se reunir pelo menos em oito datas sagradas. Depois de um ano e um dia de práticas, o aluno faz um retiro para avaliar sua real aptidão para a tradicional magia Celta. | Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|103|


pg_104a108_morte.qxd

7/12/2005

09:32

Page 104

A serviรงo da

morte


pg_104a108_morte.qxd

7/12/2005

09:32

Page 105


pg_104a108_morte.qxd

7/12/2005

09:32

Page 106

O fim da vida é visto com medo por todos, mas, para alguns profissionais, ela representa apenas o começo de um importante e delicado trabalho TEXTO

DE

MARY SILVA FOTOS

A

DE

s lágrimas já haviam parado de escorrer. Indiferente ao dia de sol, a sala insistia em permanecer em um breu, talvez reflexo daquela tristeza que o momento impunha. Os questionamentos eram muitos. Mesmo tendo consciência da finitude da vida, a morte continuava alvo de infindáveis dúvidas. O luto, junto com a dor, trazia o choro. Mas, quando a morte é diária, é preciso despir-se desta carga de existência e encará-la, sem mais delongas. Era muito jovem para morrer. Toda a juventude fora escondida pela violência do acidente. “Até hoje não houve nenhum caso em que nós não conseguimos recuperar a aparência da pessoa”, garante Günter Kannenberg, um antigo enfermeiro, que há três anos se dedica à preparação de corpos. O desejo por um emprego que lhe trouxesse satisfação o encaminhou para o ramo mortuário. O jovem de 27 anos, de corpo robusto, tem em seu dia-adia a missão de transformar e preparar corpos para funerais. A média, segundo ele, é de 90 serviços por mês na funerária onde trabalha. Desse total, 14 são submetidos ao processo de tanatopraxia, que assegura maior durabilidade e melhores condições ao cadáver. A técnica consiste em abrir um pequeno corte na altura da virilha, procurar a artéria e a veia

|106|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

E

THAIS ZANCHETTIN

RAFAEL RECH

femurais, introduzir o equipamento que bombeia um líquido que, além de expurgar o sangue, promove a conservação do corpo por longo tempo. Agora, olhando o jovem rapaz descansando serenamente no caixão, fica difícil acreditar que aquele corpo, há poucas horas, estava confuso entre ferragens e sangue. Variados são os recursos utilizados para maquiar e até mesmo reconstituir o rosto de pessoas mortas. Günter conhece todos e se sente reconhecido por seu trabalho. “É gratificante, pois a família vê o corpo deformado, muitas vezes, e vem perguntar como conseguimos aquele resultado. As pessoas chegam até a me abraçar”, relembra. O mesmo sentimento de estima pelo trabalho envolve Vanessa Appel da Rocha, 24 anos. Há apenas dois meses, ela, farmacêutica por formação, trabalha como técnica em Banco de Olhos. O resultado obtido, de pelo menos dois beneficiários por doação, compensa o método da enucleação, um tanto quando desagradável — abrir pálpebras, cortar as aderências, retirar o globo ocular, preencher o local com torunga de gaze e colar as pálpebras. Depois disso é só retornar para o laboratório e retirar as córneas que serão encaminhadas para doação. Os olhos, antes tão vivos, já não mais existem.


pg_104a108_morte.qxd

7/12/2005

09:32

Page 107

Agora iluminam outros caminhos. “Mas o que, enfim, mesmo restará?”. Chegara o momento, talvez o mais difícil desta jornada. A hora em que a terra enterra, o calor consome. Nos 23 anos de profissão de Rubem Back, ele já viu inúmeros enterros e presenciou outra série de cremações. A diferença entre ambos, para ele, é apenas questão de tempo. “Enquanto no sepultamento leva três anos para acontecer a transformação, na cremação o processo dura cerca de três horas”, conta. Ele foi um dos primeiros operadores de forno crematório do Rio Grande do Sul e hoje, devidamente habilitado para este fim, ensina novos profissionais. Muito mito ainda circunda a cremação. Rubem explica com precisão e detalhamento. Ao contrário do que a maioria pensa, não há fogo envolvido no processo. Terminada a despedida, o corpo é transportado para um outro local onde um forno, importado dos Estados Unidos, há meia hora já está em processo de aquecimento. A temperatura inicial é de 600 graus. Atingido este patamar, o corpo é colocado no forno, juntamente com o caixão (da mesma forma como saiu do velório). Depois de aproximadamente três horas, a uma temperatura de 900 graus, os restos — formados basicamente por ossos calcinados — são submetidos a uma hora de ventilação para posterior retirada. “Terminada a cremação, restam apenas os ossos e algumas impurezas, como pregos e outros metais do caixão. É passado um imã para retirá-los”, explica. Rubem salienta que as cinzas nada mais são do que ossos calcinados, depois de passarem por um processador que tritura os restos. As demais partes do corpo, bem como roupas e o caixão, são consumidas pelo calor. A aparente simplicidade compreende uma realidade bem mais complexa. Os vidros e alças do ataúde devem ser retiradas pelo operador. Há normas legais que preci-

sam ser seguidas. O corpo só pode ser cremado se não for decorrente de morte criminosa e 24 horas após o óbito. Caso o tempo de velório seja inferior ao mínimo exigido, o corpo aguarda dentro de uma câmera fria. O envolvimento, que até então parecia ser pequeno, acaba se atenuando e algumas relações se confundindo. “Eu posso estar hoje mais preparado, mais frio, mas não que eu não tenha emoções. Neste trabalho, nós temos que ficar do lado de fora, mas não indiferentes com a dor”, revela Rubem. Esta separação nem sempre é fácil, pois o objeto de trabalho é um semelhante seu, morto, mas ainda assim, um ser humano. Rubem, Vanessa e Günter afirmam não serem totalmente indiferentes aos mortos. Contudo, alertam para a necessidade de haver uma distinção entre o trabalho e vida particular. “Tem que saber separar bem. Aqui é o serviço, quando eu saio, deixo tudo aqui”, informa Gunter. Rubem é mais conciso: “Eu preciso fazer essa separação, porque se não a fizesse, não teria como trabalhar com isso”. No começo, as relações são mais difíceis e a linha entre profissão e vida pessoal ainda é tênue. “O nível de experiência do profissional está relacionado com isto. As pessoas que têm mais tempo de experiência lidam melhor com as situações”, esclarece a psicóloga Patrícia Chem. Talvez isso explique o porquê de Vanessa, há pouco tempo no cargo, ainda impressionar-se com o seu diaa-dia no Banco de Olhos. “Não vejo simplesmente um corpo. Quando eu termino a enucleação, até faço um carinho. Parece que a pessoa está ali ainda”, desabafa. Alguns profissionais, protegidos por escudos criados com anos de experiência, parecem tratar a morte de uma maneira fria e banal. “Chamamos esta negação de defesas a serviço do ego. Mas será que é viável não

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|107|


pg_104a108_morte.qxd

7/12/2005

09:32

Page 108

Coragem: Günter, Vanessa e Rubem enfrentam seus medos para conviver com a profissão que escolheram

sofrer, não se envolver com nada, não pensar?”, alerta Patrícia. As perguntas ficam em aberto, mas o serviço precisa ser feito. “Eu sempre digo que o meu trabalho é abençoado, porque poucas pessoas conseguem fazer. É muita coisa que tu vês todos os dias. São sentimentos das pessoas. Se tu não gostas, tu não segues na área”, estabelece Günter. |108|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

Agora, todos se foram, inclusive ele. A dor e o luto ficam mais um pouco. É difícil, quase impossível pensar neste momento de tristeza. Quantas pessoas resguardam-se destes sentimentos, não por não os sentir, mas para conseguir realizar suas tarefas e permitir este adeus. Porque alguém tem que fazê-las.


pg_109a111_alpinismo.qxd

7/12/2005

10:10

Page 109

Pelas paredes TEXTO

F

DE

JÚLIA COLVARA

ísico esguio, estatura média, calça de moletom, tênis e casaco de alpinista, ali estava Elton Fagundes, montanhista e homem de negócios. Além de ser esportista radical e empresário, ele também ministra cursos de técnicas de alpinismo industrial. As únicas pessoas da família que acreditaram e apoiaram Elton foram a sobrinha e a irmã. Pioneiro em alpinismo industrial no Rio Grande do Sul, Fagundes presta assessoria atendendo empresas e executando operações de resgate. Essa profissão relativamente recente no Brasil, reconhecida há cinco anos, substitui os tradicionais andaimes, balancins ou outros procedimentos. A palavra montanhismo é designada, no Brasil, para compreender o esporte radical que os demais países chamam de alpinismo, relativo a alpes. A primeira expressão, derivada do vocábulo montanha, parece, de fato, mais adequada por aqui. Mas há algo de inovador nessa prática: ela deixou de ser apenas uma aventura desafiadora da natureza, para entranhar nos cenários urbanos. O alpinismo industrial, que se expressa nos moldes dos países dos alpes, surgiu a partir das técnicas da escalada tradicional e executa as mais diversas modalidades de trabalhos em altura. As motivações que levam uma pessoa a praticar um esporte radical, ou mesmo profissionalizar-se através do alpinismo industrial, podem ser diferentes, mas estão associadas ao prazer. A psicóloga, de Novo Hamburgo, Maria Lúcia Fortes Moreira, 54 anos, explica que de um lado existem aqueles que têm medo, mas querem do-

E

MARCELA BROWN

Alpinista e empresário, Elton Fagundes desafia o perigo das alturas e dos negócios miná-lo, desafiá-lo. Essas pessoas enfrentam uma briga interna de passar por uma situação de risco para vencer o medo. Por outro lado, também existem aqueles que têm prazer em assumir o risco e não querem superar o temor, pelo contrário, querem se colocar dentro dele. “Mas é impossível controlar totalmente o medo. O que vai diferenciar a motivação de viver perigosamente vai ser a quantidade de pulsão de morte e pulsão de vida que uma determinada pessoa tem”, afirma a psicóloga. Segundo ela, todos nós temos internamente um jogo dual de pulsão, que é a pulsão de vida e a pulsão de morte. O que vai definir o impulso de lidar com as variáveis do risco vai ser a quantidade de cada pulsão que o indivíduo tem dentro de si. Quando uma pulsão de morte é maior que a de vida, o prazer estará fortemente ligado a dor. Na situação contrária, em que prevalece a pulsão de vida, o prazer está mais ligado à proteção, ao desafio de evitar e superar a morte, o perigo. Maria Lúcia acredita que, no caso do alpinismo industrial, o risco pode ser mais calcu-

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|109|


7/12/2005

10:10

Page 110

STONEHENGE MOUNTAIN / ARQUIVO

pg_109a111_alpinismo.qxd

|110|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |


pg_109a111_alpinismo.qxd

7/12/2005

10:10

Page 111

lado, mais previsível. “Porém, é preciso ter o cuidado de não criar a ilusão de que é mais protegido. É preciso ter cuidado para não negar o perigo”, adverte. Elton conta que alguns equipamentos utilizados nessa prática, até hoje quase desconhecida pela sociedade, são oriundos do montanhismo, porém mais robustos, para suportar cargas maiores. Essa é uma das características que diferencia o alpinismo industrial do montanhismo. Para escalar construções urbanas altas é utilizada uma cadeirinha específica, maior, mais durável e mais pesada que a tradicional, mais leve e esportiva. Conhecedor do assunto, Elton menciona exemplos de práticas de alpinismo industrial, serviços que podem ser feitos ou assessorados pela sua empresa: “Poda de árvores, troca de lâmpadas, colocação de painéis, troca de telhados, lavagem de fachadas, pinturas industriais, ou seja, qualquer trabalho que necessite ser realizado em altura”. Ele também explica que uma das vantagens de aderir a esse sistema é o fato de não se gastar dinheiro com andaimes, expondo mais pessoas ao risco, contratando-se um trabalho mais eficiente e seguro. Apesar de trabalhar nas alturas, o empresário mantém os pés no chão: sabe das limitações e dos riscos inerentes à profissão que escolheu. Ainda que seja um profissional apaixonado, sabe que nem tudo são flores no alpinismo industrial. Ele conta que a profissão corre o risco de banalizar, à medida que praticantes de montanhismo, escalada, rapel e outros esportes radicais passaram a se considerar alpinistas industriais, provocando diversos acidentes de trabalho. Embora seja mais prático, rápido (os aparelhos utilizados oferecem maior agilidade nos movimentos), barato e seguro em relação à prática tradicional, o fato é que as duas modalidades possuem prós e contras. Elton também explica que, ainda que seja uma atividade profissional distinta das demais, o alpinismo industrial está “na moda”, levando qualquer esportista radical a sentirse apto a trabalhar com isso, ou ministrar cursos. Os acidentes ocasionados por esta banalização acabam desacreditando tanto o esporte quanto a profissão, podendo vir a marginalizar o mercado do alpinismo industrial. “A maioria dos acidentes acontece porque a pessoa não sabe manipular os equipamentos, compra o material errado, ou não segue procedimentos adequados”, explica. Consciente, Elton faz jus à responsabilidade que carrega consigo, começando pela escolha de seus funcionários: “Não quero uma pessoa que simplesmente não tenha medo de altura, que apenas saiba praticar rapel. Quero uma pessoa com perfil ideal, que siga os procedimentos, trabalhando dentro das normas. Só um operário não me serve, o alpinismo industrial não é uma brincadeira”, reitera. Ao contrário das demais empresas que atuam nessa

modalidade, ele prima pela qualidade, enfatizando o trabalho de resgate, que consiste em prestar assessoria na prática de alpinismo industrial, constituindo um trabalho a parte. Seus funcionários recebem média de cinco anos de treinamento. Ainda não há sindicato específico da profissão, mas há uma tentativa de criar uma associação de alpinistas industriais, efervescendo esta discussão no Brasil. Algumas empresas, como a Petrobrás, adotam regulamentos internos na sua plataforma. As leis trabalhistas dos alpinistas industriais também não são específicas. Assim, o profissional é protegido pelos padrões de segurança adotados pela NR-18, que é uma legislação geral estabelecida especialmente para trabalhos em altura. Montanhista há dez anos, alpinista industrial há quatro, Elton confessa que sua verdadeira paixão é a primeira. Prefere a natureza à cidade, as montanhas aos prédios. Mas, afinal de contas, o que oferece mais perigo? A pergunta se referia às atividades de montanhista e alpinista industrial, mas é o empresário bem-sucedido que responde: “A arte de fazer negócio, a arte de correr atrás do negócio, a pressão de ter que concorrer com outras prestações de serviços, ainda que inferiores, também são focos de perigo. No fundo, ser empresário é quase tão emocionante quanto ser montanhista”, diz Elton. Concentrado, ele também opina quanto às diferenças ente esporte e profissão radical: “É mais perigoso praticar na cidade, que oferece mais imprevistos. O montanhismo é mais independente, lida apenas com as forças da natureza”. Ele ainda afirma que os principais requisitos para execução de trabalhos em altura com a técnica do alpinismo industrial são maturidade, disciplina, treinamento adequado e profissionalização. O profissional mais velho no ramo é o senhor Edgar Kitmann, 72 anos. “Ele não vive mais disso, mas ainda pratica. Não é preciso ser velho, novo, magro ou gordo, alto, baixo. É preciso ter boa forma física, resistência e responsabilidade”, conta Elton. O alpinismo industrial é a profissão que Elton escolheu para que pudesse praticar o que mais gosta de fazer. “A escalada é tudo na minha vida: lazer e negócio.” Elton estava numa pequena peça do seu apartamento, com características antigas e localizado no centro de Porto Alegre. A janela logo foi aberta, iluminando quadros com várias anotações e números de telefones. Havia também um balcão com diversos papéis e catálogos e ainda uma estante cheia de livros sobre esportes nas alturas e segurança no trabalho. Este local é a casa do alpinista e também o escritório de sua empresa. Sentou-se em um banquinho de tecido claro e ficou durante toda entrevista com o gravador na mão, atento. Quando se conjuga trabalho e paixão com tanta harmonia, nada mais coerente do que morar num “escritórioapartamento”. E do que falar sobre a profissão com o brilho nos olhos que uma boa aventura provoca.

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|111|


[ok texto] pg_112a114_professor de cego.qxd

30/11/2005

19:31

Page 112


[ok texto] pg_112a114_professor de cego.qxd

30/11/2005

19:31

Page 113

Outros

sentidos

E

nfrentar a pressa do trânsito, ônibus lotados e os mais diversos obstáculos nos passeios públicos já é difícil para quem pode se valer dos cinco sentidos. Para os deficientes visuais, é um desafio. No Brasil, eles são cerca de 500 mil. Apesar disso, a cidadania ainda é uma conquista distante de sua realidade. É fácil perceber a dimensão do problema quando se constata que, em todo o território nacional, ainda não há curso superior que ofereça habilitação específica para trabalhar com deficiência visual. No entanto, esta carência de formação é suprida na convivência diária em sala de aula. Professores cegos com alunos cegos ou docentes videntes com alunos deficientes visuais integram o cotidiano de centenas de escolas. A formação é quase autônoma. O diferencial no desempenho é a dedicação e a força de vontade para interagir na construção de um mundo e de idéias onde o ver não existe. Formação em que José, Juliano, Arlete e Cledi são verdadeiramente mestres e se realizam pessoal e profissionalmente. José Antônio Guimarães, de 42 anos, é cego desde os 14. Dotado

Dedicação e força de vontade fazem parte da vida de quem ensina os deficientes visuais TEXTO

DE

JULIANA INÊS CASA,

MÁRCIO REINHEIMER

E

MOISES GIACOMO CAMPEOL FOTO

DE

DENISE SILVEIRA

de uma inteligência aguçada, ele foi além e hoje dá aulas de informática para crianças e jovens que, como ele, não vêem se o céu está nublado ou se o sol ilumina as ruas e os prédios. Não ficar confinado à escuridão também é o objetivo do futuro jornalista Juliano Machado dos Santos, 23 anos, cuja história de vida se assemelha a de José Antônio. Os dois não se conhecem, mas têm características muito próximas. São naturais

de Caxias do Sul, cegos, portadores de Glaucoma congênito e desenvolvem a mesma atividade: são professores de Informática. Ambos nasceram com baixa visão e a perda definitiva veio mais tarde, aos 10 anos para Juliano e aos 14 para José Antônio, cuja deficiência foi diagnosticada somente aos 13 anos. Teve, então, o olho esquerdo substituído por uma prótese com função apenas estética. Aos 14, não enxergava do direito também. Ele já havia estudado por dois anos e era semi-alfabetizado. A doença interrompeu o ciclo de aprendizagem. "Não existiam recursos naquela época”, lamenta. Superprotegido pela família, José Antônio não lembra de ter vivido grande revolta com a perda da visão, mas se sentia inútil por não poder brincar como os colegas e ir à escola. Os amigos desapareceram. Aos 15 anos, entretanto, ele despertou. “Me dei conta de que era cego, mas não inválido. Descobri que tinha perdido a visão, mas que os outros sentidos continuavam funcionando e que poderiam me ajudar a superar a cegueira”, recorda. Também Juliano lembra de algumas situações quando a perda da visão foi total. “Mudou a minha for-

| Dezembro de 2005 | Primeira Impressão

|113|


[ok texto] pg_112a114_professor de cego.qxd

30/11/2005

ma de interagir com o mundo”, conta. O estudante de Jornalismo lembra de dificuldades como andar pelas ruas, de bicicleta e ir à escola, mas já era alfabetizado em Braile, o que facilitou sua adaptação. Contrariando a família, que preferia tê-lo em Caxias para protegêlo, José Antônio resolveu ir para Porto Alegre, onde se matriculou como interno no Colégio Santa Luzia. Aprendeu a linguagem Braile e a conviver com a deficiência. Daquela época, restam lembranças marcantes, com a do dia em que um professor viu que ele tinha levado, em sua bagagem, um espelho. “É interessante como a gente repete as atitudes e não se dá conta. Ele pegou o espelho e disse que eu não precisava dele, que era inútil para mim”, lembra. Com a ajuda de amigos, José Antônio conseguiu seu primeiro emprego, de rádio-controle. A atividade, semelhante a um serviço de clipping, consistia em escutar o rádio e anotar os comerciais. Em 1982, começou a trabalhar no Diário Oficial do Estado. Dois anos mais tarde, deixou a capital e optou pela aposentadoria. A descoberta do mundo dos chips não foi obra do acaso na vida de José Antônio Guimarães. Foi uma opção consciente, de alguém que não deseja ficar parado no tempo e está sempre em busca de novos conhecimentos. “Eu ouvia todo mundo falar em Informática, em computadores e percebi que o mundo caminhava na direção da automação. Pensei: tenho que aprender”, revela. Nesta época, José Antônio já estava integrado à Associação Brasileira de Deficientes Visuais, com sede em São Leopoldo. Adquiriu um computador de um amigo. “Eu não sabia nem o que era porque, quando eu fiquei cego, lá em Caxias, nunca tinha visto um computador. Comprei parceladamente e comecei a mexer. Aí fiz cursos básicos de Word, de operador de sistemas e de manutenção”, informa. Iniciou como professor na Escola Ilha |114|

Primeira Impressão | Dezembro de 2005 |

19:31

Page 114

Moreira, de São Leopoldo, onde está até hoje. “Senti a necessidade de repassar o que eu sei para que os outros possam viver melhor também”, ensina. Hoje, ele atua voluntariamente na Escola Estadual Delfina Dias Ferraz, de Montenegro. Em 1829, quando o educador francês Louis Braille criou o código em alto relevo que permite aos cegos ler, certamente não imaginava que alguém inventaria uma máquina que lesse para os cegos. Pois essa é a função de diversos programas de computadores como o DOS VOX. Desenvolvido pela Universidade do Rio de Janeiro, opera por comando de voz. Combinada com engenhosos leitores de tela, a tecnologia permite que também os cegos viajem nas infovias e se apropriem de todo o conhecimento nelas contido. A invenção da Linguagem Braille foi uma revolução na comunicação para os cegos. Entretanto, é muito difícil encontrar livros neste formato e os que existem são muito caros. Isso sempre afastou o cego do conhecimento. “Com o computador, sabendo operar a máquina, é possível fazer a inclusão que sempre sonhamos e que era impossível antes”, compara José Antônio. Para ele, a dificuldade não é dominar o teclado. “O cego tropeça no mesmo desafio dos demais que, basicamente, é aprender Informática. Depois que sabe como funciona, serve-se dela como qualquer outro”, assegura. Hoje, por exemplo, a tecnologia permite que se escaneie um livro, que pode ser submetido a um programa de leitura de tela. “O programa lê o livro para o deficiente e permite que ele se informe e aprenda. Antes, tirando as raras publicações que existiam em Braille, esse conhecimento só chegava até nós se houvesse alguém disposto e com tempo para ler para nós”, afirma Luís Antônio. O desafio de ensinar pessoas cegas não motiva apenas os deficientes. Gente com visão normal também está

preocupada em lhes garantir uma vida melhor. Esse é o princípio da APADEV, Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Visuais, uma entidade criada na cidade de Caxias. A pedagoga Cledi Batista Fávero fez desse desafio um ideal de vida. Hoje, ela é a responsável pela triagem das crianças e dos adolescentes que chegam até a APADEV. Seu trabalho consiste em verificar o nível de dificuldade de cada deficiente e indicar a ferramenta mais adequada para minimizá-la. No arsenal contra a cegueira, a entidade possui óculos, equipamentos que ampliam as letras, lentes e telescópios. “Trabalhamos no sentido de fornecer, a cada um, o recurso de que necessita para viver melhor”, explica a pedagoga, lembrando que a Subvisão é muito mais comum do que a cegueira. Segundo ela, pelo menos 70% das pessoas possuem algum déficit visual. Arlete Agenta Fioravante, 50 anos, trabalha com Orientação e Mobilidade desde 1984. É formada em Pedagogia, com especialização em deficiência mental, já que não há formação específica para a área da deficiência visual. Sua atuação consiste em ensinar um conjunto de técnicas utilizando bengala, o que torna o deficiente visual independente e seguro na locomoção. “A identificação do cego é a bengala e, para muitos, isso é difícil”. A professora aponta como dificuldade a aceitação do instrumento. “Com o aluno deficiente visual, me senti muito mais professora, com uma melhor preparação, melhores condições para desenvolver minhas atividades e oferecendo um atendimento individual”, comenta a educadora. “O melhor disso é perceber que a orientação e a mobilidade trazem a melhora da auto-estima, autoconfiança e tudo fica melhor. Eles vêem mais possibilidades para a vida”.


OK [ok texto] [ok foto] pg_115_anœncio 2.qxd

1/12/2005

15:50

Page 1


OK [ok texto] [ok foto] pg_116_anœncio 3.qxd

1/12/2005

15:56

Page 1


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.