HUBERTO ROHDEN
JESUS NAZARENO Como os evangelhos o descreveram e como minha alma o contempla UNIVERSALISMO
Índice Advertência Prefácio para a primeira edição Prefácio para a sétima edição JESUS NAZARENO Primeira Parte – Solidão e Trabalho João, o precursor Maria, a mãe Maria visita Isabel O profeta do deserto De Nazaré a Belém Nascimento de Jesus Os pastores Apresentação no templo O vidente Simeão Magos do Oriente Jesus fugitivo Regresso à pátria Entre os doutores Onde esteve Jesus dos doze aos trinta anos? Segunda Parte – Mestre e Médico O mergulho de Jesus Jesus tentado pelo diabo “Mestre, onde moras?” “Encontramos o Messias” As bodas de Caná Primeira purificação no templo “Renascer de água e espírito” O Precursor no cárcere “Agua viva” O filho do funcionário Jesus em Nazaré Expulsão de um demônio Cura da sogra de Pedro A pesca abundante Cura de um leproso O paralítico de corpo e alma
Vocação e banquete de Levi O esposo e os convivas O doente de 38 anos Cristo menor e igual ao Pai Através das searas O homem com a mão atrofiada O Sermão da Montanha O centurião de Cafarnaum O jovem de Naim A embaixada de João Batista Jesus elogia o Precursor Caprichos pueris Madalena Jesus aliado de Satanás A mãe e os “irmãos” de Jesus Parábolas de Jesus Erva daninha no trigal O grão de mostarda O fermento O tesouro oculto e a pérola preciosa A rede Tempestade no lago Os possessos de Gerasa A mulher hemorroíssa A filha de Jairo Os cegos de Cafarnaum Missão dos discípulos Morte de João Batista Primeira multiplicação dos pães Jesus caminha sobre as águas Cristo, o pão vivo Mandamentos divinos e tradições humanas A mulher cananéia O surdo-mudo O fermento dos fariseus A pedra da Igreja Jesus prediz sua paixão Transfiguração de Jesus O endemoninhado ao pé do Tabor Tristeza dos discípulos Jesus paga tributo Jesus propõe por modelo uma criança Ai do sedutor da inocência A festa dos Tabernáculos
Jesus vai à festa dos Tabernáculos Despedida da Galiléia, maldição das cidades impenitentes Repulsa por parte dos samaritanos Discípulos imperfeitos Missão e regresso dos discípulos O maior dos mandamentos. O bom samaritano Betânia Jesus na festa dos Tabernáculos Ultimo dia da festa dos Tabernáculos A adúltera A luz do mundo O cego de nascença O bom pastor A pérola das orações O amigo importuno O juiz iníquo O fariseu e o publicano Jesus acusado de aliado de Satanás O sinal de Jonas Questão de herança, cuidado com a cobiça A providência de Deus e a previdência dos homens Sempre alerta A espada e o fogo do Cristo Brado de alarde A figueira estéril A mulher encurvada Festa da Dedicação do Templo Retirada para Peréia Ameaças de Herodes. Ternura maternal de Jesus Cura de um hidrópico. Os primeiros lugares Caridade social desinteressada O grande banquete Parábola da torre e da empresa bélica A ovelha desgarrada e a dracma perdida O filho pródigo O rico gozador e o pobre Lázaro Os dois devedores Lázaro doente A ressurreição de Lázaro O ódio do Sinédrio Os dez leprosos O advento do reino de Deus A indissolubilidade do matrimônio Jesus e as crianças
O jovem rico Riqueza e pobreza Os trabalhadores da vinha A pretensão dos filhos de Zebedeu O cego à entrada de Jericó Zaqueu As dez minas O banquete em Betânia Jesus proclamado Messias Lágrimas no meio do triunfo Entrada em Jerusalém Maldição da figueira estéril Segunda purificação do templo Eficácia da fé Início das disputas no templo Parábola dos dois filhos Os vinhateiros perversos A veste nupcial A moeda do imposto Os escarnecedores da ressurreição O grande mandamento Parábola das virgens tolas e sábias Cristo, Filho e Senhor de Davi Gemidos de dor e brados de indignação Profecia sobre a destruição de Jerusalém Profecia sobre o fim do mundo O juízo final Preparativos para a celebração do cordeiro pascal O lava-pés Retirada do traidor A última ceia Perspectivas sinistras Perspectivas luminosas Promessa do Espírito Consolador A paz do Cristo O ódio do mundo Perseguições Conversão da tristeza em gozo Conclusão das exortações aos discípulos Oração crística de Jesus Terceira Parte – Dores e Glória Getsêmani Prisão de Jesus
A negação de Pedro Jesus diante do Sinédrio O fim do traidor Diante de Pilatos Jesus diante de Herodes Jesus ou Barrabás? Flagelação Coroação de espinhos Ecce Homo! Caminho do Calvário A crucificação A morte de Jesus A sepultura de Jesus Preocupação do Sinédrio Jesus redivivo As mulheres ao sepulcro Pedro e João ao sepulcro Jesus e Madalena O suborno dos guardas do sepulcro Caminho de Emaús Aparição aos discípulos reunidos Jesus e Tomé Aparição na praia de Genesaré Pedro e o pastor Missão mundial dos discípulos. Ascensão de Jesus Vem, Jesus Nazareno! Dados biográficos Relação de obras do Prof. Huberto Rohden
Advertência
A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento. Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a transição de uma existência para outra existência. O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é um criador de gado. Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se aniquila, tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas se escrevemos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa. Por isto, preferimos a verdade e a clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.
Prefácio para a primeira edição: retorno a Cristo e seu evangelho
Incide esta edição de Jesus Nazareno num período estranhamente caótico, no meio de um mundo convulsionado por uma espantosa babel de ideologias absurdas, cada uma das quais se exibindo como a infalível panacéia dos males que afligem a humanidade, como o elixir de uma harmonia universal. Os homens não querem conceder a sua cegueira. Não querem rezar o sincero “confiteor” das suas culpas. A salvação do mundo não está em códigos legislativos e tratados internacionais. Não está nas cátedras universitárias e nos institutos técnicos. Não está no passo cadenciado dos exércitos, nem no troar das artilharias. A única esperança de uma paz duradoura, a única garantia de uma sólida harmonia nacional e internacional está no sincero e decidido retorno da humanidade a Jesus Cristo e às máximas do seu Evangelho. Fora do Evangelho não há salvação! Mas ai de nós!... Jesus e a sua doutrina são um par de grandes incógnitas, não só para o mundo pagão, mas também para milhões de cristãos dos nossos dias... “No meio de vós está aquele a quem vós ignorais.” O “agnotós Theós”, que Paulo de Tarso encontrou nas ruas de Atenas, continua a sua incompreendida peregrinação pelo mundo que lhe adotou o nome, mas não o espírito... Nas minhas obras Paulo de Tarso, Agostinho, Em Espírito e Verdade, De Alma para Alma e em outros livros, frisei, às vezes com ferro em brasa, a urgente necessidade que temos de voltar a Cristo e, a exemplo dos grandes apóstolos dos primeiros séculos, recolocar a pessoa e o espírito do Divino Mestre bem no centro das nossas práticas religiosas e, mais ainda, da nossa vida cotidiana. Se a nossa vida espiritual se resumir em simples cerimônias litúrgicas e na repetição mecânica de fórmulas decoradas; se não personificarmos na nossa vida real o espírito do Cristo e estabelecermos uma perfeita harmonia entre o nosso credo e o decálogo, entre o dogma e a moral, entre a ascética do nosso
devocionário e a ética do nosso viver concreto e cotidiano – será Jesus Cristo para nós, cristãos, um Deus ignoto, e o seu Evangelho um simples título decorativo. Os adeptos de um cristianismo acomodatício, os amigos das atitudes indefinidas e penumbristas, bem sei, desamam esta linguagem e maldizem estas clarinadas de guerra, que os perturbam na suave modorra do seu pacifismo inoperante. Mas sei também que não faltam cristãos genuínos, espíritos retos, almas dinâmicas, verdadeiros paladinos da Igreja militante, que pelejam briosamente nas falanges dos voluntários do Cristo-Rei. Nos melhores- momentos da nossa existência, nas horas mais humanas e mais divinas da nossa vida, todos nós sentimos a nostalgia do Infinito e a saudade do Cristo do Evangelho, porque: – para a nossa inteligência é Cristo o sol da verdade; sem ele, tudo é noite e treva... – para a nossa vontade é Cristo o fundamento da moralidade; sem ele tudo é pecado e miséria... – para o nosso coração, é Cristo a fonte de toda a felicidade, na vida presente e futura; sem ele, tudo é desconsolo e desespero... Todo homem que chegou a conhecer e amar o Cristo real do Evangelho confessará, com um dos mais poderosos espíritos feridos pela inquietação religiosa e empolgados pelo mistério da eternidade: “Fizeste-nos para ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração até que descanse em ti” (Agostinho).
Prefácio para a sétima edição É este um dos meus livros mais antigos sobre o maior homem da história, livro agora completamente atualizado. Narra singelamente a vida de Jesus de Nazaré, segundo os quatro Evangelhos, sincronizados numa narrativa contínua e sem intermitência. Este livro não desce às profundezas filosóficas ou metafísicas sobre a pessoa e vida humana de Jesus; conta simplesmente a vida terrestre do carpinteiro de Nazaré, sob os auspícios do Cristo Cósmico. Na presente edição omitimos muitas das divagações subjetivas das edições anteriores, limitando-nos o mais possível aos fatos objetivos da história de Jesus. É um livro de fácil compreensão, próprio para ser lido em família ou em reuniões de meditação coletiva. O leitor que queira penetrar mais profundamente no espírito do Cristo fará bem em ler o meu livro Sabedoria das Parábolas, ou então os quatro volumes da Sabedoria do Evangelho, intitulados: 1 – Filosofia Cósmica do Evangelho; 2 – O Sermão da Montanha; 3 – Assim Dizia o Mestre; 4 – O Triunfo da Vida Sobre a Morte. Também o meu livro Que vos Parece do Cristo? toma uma perspectiva mais profunda e metafísica em face do Cristo Cósmico, que se revelou, aqui na terra, na pessoa de Jesus de Nazaré. Nessas obras considero que esse Cristo pré-histórico é chamado em grego o Lógos, em latim Verbo, designando a mais antiga e mais perfeita emanação individual da Divindade Universal. Ele é, segundo João, o “Unigênito do Pai”, e, segundo Paulo de Tarso, o “Primogênito de todas as creaturas”. Os filósofos gregos da antiguidade usavam a palavra lógos (derivada do verbo lógo, dizer) no sentido da manifestação da Divindade Transcendente em forma de Deus Imanente no mundo visível; ou seja, a manifestação do Invisível em forma visível. João, o discípulo amado, o místico, escreveu o quarto Evangelho, provavelmente em Éfeso, na Ásia Menor, usando também a palavra Lógos para o Cristo Cósmico, antes da sua encarnação na pessoa de Jesus de Nazaré.
A Vulgata Latina traduz Lógos por Verbo, no sentido da manifestação individual da Divindade Universal, concordando com as palavras de Paulo de Tarso, que chama o Cristo Cósmico o “Primogênito de todas as creaturas”, não das creaturas terrestres, mas das creaturas cósmicas. Esse Lógos, ou Verbo, é a mais antiga emanação individual da Divindade Universal, anterior à creação do mundo material. Este Cristo Cósmico se revestiu de natureza humana, “para entrar em sua glória”, como Jesus diz aos discípulos de Emaús, e assim, por meio da morte voluntária, no dizer de Paulo de Tarso, foi “superexaltado” e voltou ao mundo cósmico, maior do que quando desceu à terra. “Da sua plenitude”, diz João, “todos nós recebemos graça e mais graça”; a plenitude do Cristo Cósmico transbordou em beneficio da humanidade, segundo a abertura ou receptividade de cada homem. “Em Jesus”, diz Paulo, “habita corporalmente toda a plenitude de Deus.” O transbordamento dessa plenitude reverte em benefício da humanidade. Neste sentido é Jesus nosso redentor ou salvador. Esclarecemos também aos leitores que, através de todo este livro, conservamos a palavra “milagre” ou “prodígio”, quando nos referimos a certos atos de Jesus, não como fatos sobrenaturais contra ou além das leis naturais, mas como acontecimentos que ultrapassam o alcance da inteligência humana normal.
Primeira Parte
SOLIDÃO E TRABALHO
João, o precursor Antes de o sol nascer, mesmo de aparecerem os primeiros clarões da aurora, desponta a estrela d’alva, prenúncio do grande luzeiro. Mais de quatro séculos haviam expirado desde que emudecera o derradeiro vaticínio do último dos profetas da lei antiga. “Eis que envio o meu arauto ante a tua face”, dissera Malaquias, “a fim de preparar-te os caminhos. Uma voz clama no deserto: Preparai os caminhos do Senhor! Endireitai as suas veredas!” Refere-se esta palavra do último dos vates antigos à pessoa do precursor do Messias. Entrementes, continuava a negrejar a grande noite da humanidade e, após o vaticínio de Malaquias, parecia cerrar-se mais ainda a escuridão; tanto assim que, em todo esse longo período, nenhum vidente apareceu, nenhuma réstia de luz coou através dessa noite... Até que, finalmente, sobre as montanhas da Judéia, desponta a estrela matutina – João Batista, pródromo da “luz do mundo”. É ele o maior dos profetas. Já não vislumbra o Salvador em visões longínquas; vê-o diante de si, vivo e verdadeiro – assim como a estrela d’alva contempla o Sol e lhe reflete as irradiações antes que pupilas humanas o consigam enxergar. Prodígios acompanham a anunciação do Precursor; sinais estranhos assinalam-lhe a vida circundam-lhe a morte. Vivia então, nas montanhas da Judéia, o casal Zacarias e Isabel. Vergavam ao peso dos anos e, quiçá, mais ainda ao peso de uma cruz que tanto tinha de dolorosa como de humilhante: não tinham filho. Para o israelita era duplamente dura essa sorte, porque o excluía da possibilidade de entrar em contato com o futuro Messias mediante a linha genealógica. Pertencer ao número dos ascendentes do Salvador era o mais ardente anelo dos filhos de Abraão. A esterilidade afigurava-se ao hebreu um castigo de Deus, que parecia declarar o casal indigno de ver entre os seus descendentes aquele pelo qual suspiravam os povos.
Por entre as agruras desse pesar, tinham passado, os dois, os longos anos da sua existência, e já as neves da anciania anunciavam a última estação da vida. Zacarias era sacerdote. Nesta qualidade, tinha de desempenhar, de quando em quando, as funções litúrgicas no templo de Jerusalém. Desde os tempos de Davi, funcionavam no santuário nacional de Israel vinte e quatro turmas de serventuários do culto, tocando a cada qual uma semana de ministério sacerdotal. Competia-lhes alimentarem o fogo dos sacrifícios, oferecerem incensos e holocaustos, e cuidarem do grande candelabro de ouro e dos pães de proposição, que se achavam na parte do templo a que chamavam “santo” ou santuário. Determinava-se por sorte o trabalho que diariamente tocava a cada um dos sacerdotes. Oferecer o sacrifício de incenso era considerado especialmente honroso, e só se concedia uma vez por semana a cada sacerdote. O momento em que do altar do incenso subia aos ares a coluna de fumo era solenizado por toques festivos de trombetas, enquanto o povo, que nos átrios assistia ao sacrifício, se prostrava de face em terra. Terminado este ato de culto, lançava o sacerdote a bênção ao povo, e retiravase. Repetia-se esta cerimônia todos os dias, ao nascer e ao pôr-do-sol. *** Certo dia oferecia Zacarias o sacrifício matutino. Achava-se sozinho no santuário, deitando incenso sobre as brasas, nas caçarolas de ouro. Evolavamse lentamente ao céu as alvejantes fumarolas, e com elas subiam ao trono do Altíssimo as preces do sacerdote, que se quedava, imóvel, com os olhos fitos no altar. Eis senão quando aparece, à direita do altar, um vulto estranho!... Zacarias estremece, aterrado com a inesperada aparição. – Não temas, Zacarias – diz-lhe com voz calma o desconhecido –, foi atendida a tua oração; eis que tua esposa Isabel terá um filho, a quem porás o nome de João. Será grande aos olhos de Deus e repleto dum espírito santo desde o seio de sua mãe; converterá e fará voltar a Deus a muitos dos filhos de Israel. O ancião, percebendo tão singular notícia, reflete por uns momentos, e surgelhe na mente ligeira dúvida sobre a possibilidade de semelhante promessa. – Por que sinal conhecerei a verdade das tuas palavras? – perguntou à aparição. – Pois eu sou velho, e também minha mulher é avançada em anos.
Respondeu-lhe o misterioso alguém: – Eu sou Gabriel, que assisto ante o trono de Deus, e fui enviado para comunicar-te esta mensagem. Mas, como não deste fé às minhas palavras, serás mudo e incapaz de proferir palavra, até o dia em que tudo isto se realizará. O povo esperava da parte de fora, nos átrios do templo, estranhando a demora de Zacarias. Quando, finalmente, o sacerdote apareceu no topo da escada e não pôde formular as costumadas palavras de bênção, compreenderam todos que algo de extraordinário lhe sucedera. Estava mudo. Terminado o período do serviço litúrgico, regressou Zacarias para casa, em completa mudez. Deu a entender à esposa aflita, por meio de acenos, o que lhe acontecera no templo, bem como a jubilosa esperança que tinham de um herdeiro. E ambos louvaram a Deus, e agradeceram-lhe tão grande favor.
Maria visita Isabel Zacarias e Isabel residiam, provavelmente, na aldeia serrana que hoje se denomina “São João da Montanha”, situada em Ain-Karim, cerca de légua e meia para o oeste de Jerusalém. Diz o evangelista que a Virgem se dirigiu “pressurosa” às montanhas da Judéia; não ia como quem vai de passeio, mas, sim, impelida pelo espírito de Deus e pela amizade por sua parenta Isabel, que tanto necessitava dos serviços da jovem. Ia também no intuito de felicitar a anciã, pois o anjo lhe revelara que ela teria um filho. Isabel é a primeira a avistar, à porta do jardim, a jovem parenta de Nazaré; corre-lhe ao encontro, de braços abertos e exclama: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Em que mereci a graça de ser visitada pela mãe do meu Senhor?...” A estas palavras de Isabel, a nazarena ergue ao céu as mãos, e rompe neste inspirado hino de louvor: “Minha alma glorifica ao Senhor. E meu espírito exulta em Deus, meu Salvador. Lançou olhar benigno à sua humilde serva. Eis que desde agora me chamarão bem-aventurada todos os povos! Grandes maravilhas me fez o poderoso, santo é o seu nome! Vai de geração em geração a sua misericórdia sobre todos os que o temem! Manifesta o poder do seu braço. Aniquila os corações soberbos. Derriba do trono os poderosos e exalta os humildes. Sacia de bens os famintos e despede vazios os ricos. Acolheu a Israel, seu servo, lembrado da sua misericórdia para com Abraão e seus descendentes para sempre – conforme prometera a nossos pais”. ***
João Batista, nascituro, adivinha a presença do Messias, assim como o tenro germe no fundo da terra experimenta a proximidade do sol e começa a agitarse para ir ao encontro da luz. O Precursor já começa a desempenhar a sua missão: exulta de júbilo no seio materno, e em sua alma resplandece a luz da graça, antes mesmo que os seus olhos contemplem a “luz do mundo”. *** E Maria oferece-se como serva a Isabel e fica em sua casa três meses, prestando-lhe todos os serviços que uma simples empregada costuma prestar à sua patroa... As almas mesquinhas querem ser servidas – as almas grandes querem servir. Terminados três meses, e nascido o Precursor, despede-se Maria da família de Zacarias e Isabel, e regressa para Nazaré.
O profeta do deserto “Aproximou-se o tempo em que Isabel devia dar à luz; e deu à luz um filho. Ouviram os vizinhos e parentes que o Senhor lhe fizera mercê, e foram dar-lhe os parabéns. No oitavo dia foi o menino circuncidado.” Consistia a circuncisão numa cerimônia religiosa pela qual o recém-nascido filho varão era incorporado ao povo de Deus. Celebrava-se este ato, não no templo de Jerusalém, mas na sinagoga do lugar e, muitas vezes, em casa dos pais. Competia ao chefe da família circuncidar o filho, podendo, todavia, ser substituído pelo sacerdote, ou por outra pessoa. Por essa ocasião se impunha o nome à criança, como acontece no batismo cristão. Aos grandes luzeiros do seu reino o próprio Deus lhes impõe o nome. “Foram circuncidar o menino e queriam impor-lhe o nome de seu pai, Zacarias. Sua mãe, porém, protestou, dizendo: De modo algum! Mas há de chamar-se João.” Sabia, sem dúvida, pelo marido, que esta era a ordem do celeste mensageiro. Mas toda a gente discordava, dizendo: “Não há ninguém em tua parentela que tenha este nome”. E perguntaram ao pai como é que queria chamar o filho. Zacarias pediu uma tabuinha e escreveu estas palavras: “João – é seu nome”. É seu nome! Não sou eu que lho imponho; é o nome que ele recebeu de Deus. Admiraram-se todos. No mesmo instante, recuperou o ancião a fala e glorificou a Deus, rompendo neste hino de louvor: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu seu povo. Suscitou-nos um Salvador poderoso na família de seu servo Davi, assim como, há séculos, prometera por boca de seus santos profetas: para livrar-nos dos
nossos inimigos e das mãos de todos os que nos odeiam; para fazer misericórdia aos nossos pais e recordar-se da sua santa aliança, do juramento que fez a nosso pai, Abraão; para conceder-nos que, libertados das mãos dos nossos inimigos, o servíssemos sem temor, em santidade e justiça, todos os dias da nossa vida. E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo; irás ante a face do Senhor para preparar-lhe o caminho, e fazer o seu povo conhecer a salvação, que consiste na remissão dos pecados, graças à entranhável misericórdia de nosso Deus; pois que das alturas nos visitou o sol nascente; a fim de alumiar aos que jazem nas trevas sombrias da morte e dirigir os nossos passos a caminho da paz”. Quedaram-se os circunstantes, estupefatos, em face destes acontecimentos, e diziam uns aos outros: “Que será deste menino? Pois que está com ele a mão do Senhor!” E por todas as montanhas da Judéia divulgou-se a notícia deste fato. *** Por espaço de quase meio século, teve Moisés de preparar-se, na solidão do deserto, para conduzir o povo de Israel até às fronteiras de Canaã, a terra que fluía leite e mel. Nada diz o evangelista sobre a mocidade desse homem singular a não ser que “o menino crescia e se fortalecia no espírito, e habitava no deserto até o dia em que devia manifestar-se a Israel”. Vida estranha, essa do Precursor. Passa uns vinte anos na solidão das plagas inóspitas que se alargam, ermas e tristes, para as bandas do Mar Morto – regiões quase completamente despidas de vegetação, rasgadas de profundos precipícios, penhascos e cavernas, paradeiro favorito de solitários eremitas – gente estranha, como lhes chama o escritor romano Plínio –, homens que passam a existência sem dinheiro nem mulher, alheios à sociedade, só conversando com as palmeiras da solidão. Nessas silenciosas paragens viveu João os anos da mocidade, entregue à oração e à meditação das verdades eternas, a fim de se preparar para a sua grande missão de arauto do Messias.
De Nazaré a Belém É tradição antiga celebrar o nascimento de Jesus no dia 25 de dezembro, que, no hemisfério norte, é inverno; mas é provável que ele tenha nascido na primavera ou no verão, porque diz o Evangelho que os pastores guardavam os seus rebanhos no campo, o que não acontecia no inverno, quando os rebanhos se achavam nos estábulos. Pode Jesus ter nascido entre maio e julho, primavera ou verão na Palestina. O Império Romano celebrava, cada ano, as solenidades do Natalis lnvicti Solis (nascimento do sol invicto), entre 21 e 25 de dezembro, no chamado “Solstício de inverno”, quando o Sol se acha no ponto mais distante do hemisfério norte e principia a reaproximar-se da Terra, embora esse movimento seja da Terra, e não do Sol. E os cristãos desse tempo acompanhavam esse “regresso do Sol” com as solenidades da chegada da “luz do mundo”. Cerca de nove meses tinham decorrido desde aquele memorável dia em que o anjo do Senhor aparecera a Maria, em Nazaré. Mas não era em Nazaré da Galiléia que devia nascer Jesus. Quatro séculos havia que o profeta Miquéias designara como torrão natal do Messias uma modesta aldeia da Judéia, dizendo: “Tu, Belém de Éfrata, pequenina embora entre as cidades principais de Judá, verás surgir o chefe de Israel, cuja origem remonta aos dias da eternidade!” (Miquéias, 5,1). Estava nos desígnios da Providência que o filho de Davi nascesse na cidade real de Davi. *** Habitavam Maria e José nas montanhas de Nazaré: José a trabalhar na sua oficina de carpinteiro; Maria ocupada na lida doméstica. Eis senão quando, de improviso, se espalha a notícia de que o imperador romano ordenara um recenseamento para todo o império. Na província da Síria e nas terras da palestina estava a execução das ordens imperiais a cargo Sulpício Quirino (Cirino). À luz de documentos escavados das areias do Egito, e que remontam a esse mesmo período, sabemos que, na terra lendária dos faraós, se procedia a um recenseamento geral da população de 14 em 14 anos.
Não faltou entre os eruditos do nosso século quem estranhasse o fato de o evangelista indicar Quirino como encarregado desse trabalho na Judéia. E Herodes, que fazia? Não competia a ele?... Entretanto, possuímos documentos que dão plena razão ao evangelista. Herodes estava velho, e, nos últimos anos, devido a uma série de desmandos e atos de indisciplina, inspirava pouca confiança ao César de Roma. De resto, já era tempo de dar os primeiros passos para fazer da Judéia uma província romana propriamente dita. Por isso, era aconselhável que o recenseamento da população fosse feito por um emissário de Roma, como era o presidente da Síria. Grande foi o alvoroço que o decreto de Tibério César despertou no meio dos judeus. Fazia-lhes sentir dolorosamente a sua condição de povo tributário e dependente de uma nação estrangeira – eles, filhos do povo eleito, súditos de um imperador pagão?... Os mundanos receberam com pragas e imprecações o humilhante decreto; os patriotas exaltados rangiam os dentes e urdiam planos de vingança; as mulheres lamentavam o transtorno que a ordem de César causava ao sossego da família. Consoante o costume da época, devia cada cidadão dirigir-se à a terra natal de seus maiores, a fim de se arrolar nos registros públicos. Maria e José eram oriundos de Belém, descendentes da estirpe real de Davi; pelo que tinham de demandar à cidade do seu régio ascendente. *** O recenseamento!... Estupefata e surpresa, ouviu Maria esta notícia. Uma e muitas vezes, mormente naquelas últimas semanas, tinha ela lido e meditado a profecia de Miquéias, que dava Belém como cidade natal do Salvador, quando ela, que seria sua mãe, habitava em Nazaré. Até que, de improviso, se lhe desvenda o mistério! O imperador romano servia de instrumento nas mãos da Providência para realização dos seus planos! Ao cabo de poucos dias, fizeram-se de partida os dois peregrinos, Maria e José. Grupos de peregrinos passavam, montados em camelos, de carro ou a pé; barulhentos uns, taciturnos outros.
À noite, nos albergues onde pousavam numerosos peregrinos, era grande a algazarra e a animosidade. Discutiam, em termos exaltados, a arrogância do imperador de Roma. O casal de Nazaré, que, em vez de invocar as pragas de Yahweh sobre a cabeça de César Augusto, tirava tranquilamente do surrão os flexíveis bolos de farinha e os comia condimentados com água fresca, passava quase despercebido no meio do vozerio geral. De quando em quando, algum pegureiro improvisado em político de alto coturno desandava um olhar de desprezo e compaixão aos dois e dizia lá consigo: “Esta gentinha nem parece suspeitar da injúria que os Goim d’além-mar irrogam ao povo eleito dos filhos de Abraão...” Jerusalém!... Eis a maravilha do templo!... Os dois transpõem respeitosamente o limiar do templo e agradecem a Deus a proteção que lhes dispensou.
Nascimento de Jesus Seria ao declinar do quarto ou quinto dia da jornada quando Maria e José avistaram as primeiras casas de Belém. Belém fica a umas duas horas para o sul de Jerusalém, à beira da estrada que conduz a Hebron. A casaria derrama-se com pitoresca irregularidade sobre duas colinas separadas uma da outra por uma ligeira depressão de terreno. Em derredor das vivendas, vicejam abundantes olivais, vinhedos e figueiredos; e para além se desdobram as férteis campinas de Beth-Sahur, quase sempre pontuadas de grupos de ovelhas, ou rebanhos de cabras. Beth-Iehem quer dizer: casa do pão, ou seja, celeiro de trigo. E, de fato, eram vastos os trigais que cobriam essas zonas. Na rampa da colina ocidental abre-se uma caverna maior, a par de outras menores, com a entrada para a banda do leste. Nesse dia, os dois solitários viajores subiram à altura em que assenta a povoação; a jovem montada na paciente azêmola, o fiel esposo a pé, exausto de fadiga, com o rosto coberto de pó e os lábios a arderem de sede. Foram à procura de um albergue, de um galpão ou algum ranchinho à beira da estrada, onde passassem a noite. Baldados esforços. Por mais que José se esforçasse, por mais que batesse de porta em porta, por mais que suplicasse e fizesse ver a necessidade de descanso para sua esposa – não encontrou lugar nas hospedarias de Belém. “Vinha Jesus ao que era seu – e os seus não o receberam!” Belém regurgitava de forasteiros, atraídos pelo recenseamento; todas as estalagens abarrotadas de peregrinos; só mesmo a peso de ouro teria sido possível obter ainda algum agasalho; mas os dois viandantes de Nazaré eram pobres... *** Entrementes, acabava o crepúsculo vespertino de envolver em sombras as colinas e casas de Belém. Maria e José abandonaram a aldeia inóspita e foram em demanda de uma caverna espaçosa, de cuja existência sabia o carpinteiro.
Media uns 10 metros de fundo sobre 4 de largo e 3 de altura. Defronte dessa gruta tinham os pastores da vizinhança construído uma espécie de varanda ou rancho de palha. Pelas paredes internas corriam diversas manjedouras destinadas aos animais domésticos que se refugiavam na caverna em dias de chuva. Nesse abrigo recolheram-se, pois, Maria e José, arranjando-o do melhor modo possível, à luz de uma lanterna. Apagam-se, a pouco e pouco, as luzes de Belém. Tranquilas e serenas, cintilam as estrelas da meia-noite, contemplando a terra envolta em escuridão... José, depois de dispor as palhas secas da caverna para servirem de leito à esposa, retira-se e, de exausto, cai em sono profundo... *** O peregrino que hoje, quase 2.000 anos após aquela noite bendita, visita a gruta de Belém, encontra, erguido por cima da mesma, um templo magnífico. Debaixo do altar se acham suspensas inúmeras lâmpadas, sempre acesas, iluminando uma grande estrela de prata, embutida no pavimento de mármore. Em torno dessa estrela – símbolo da luz do mundo que despontou à meia-noite – fulgura a inscrição: Hic de Virgine Maria Jesus Christus natus est (Aqui nasceu, da Virgem Maria, Jesus Cristo).
Os pastores Para o leste de Belém, à distância de meia légua, desdobravam-se as verdejantes campinas de Beth-Sahur, palavra que significa aurora. É a mesma várzea histórica em que lourejavam, antigamente, os trigais de Booz e onde Rute andava respigando uns punhados de trigo deixado pelos ceifadores do abastado fazendeiro betleemita; é ainda a mesma planície em que, um milênio atrás, o intrépido pastorzinho, Davi, apascentara os rebanhos de seu pai, Jessé. Serena e bela corria a noite. Nas alturas do firmamento, cintilava um exército de estrelas iluminando suavemente os palácios dos ricos e os tugúrios dos pobres. Lá fora, nas extensas planuras de Beth-Sahur, viam-se diversos grupos de pastores sentados diante das suas barracas, ao redor do braseiro, ao passo que outros, mais além, tomavam conta dos rebanhos. Era meia-noite passada. Ao longe, por detrás de nodosos sicômoros vergados ao peso dos anos, começava o horizonte levantino a tingir-se de tênue alvor, enquanto a lua, no quarto minguante, difundia pela atmosfera uma claridade argêntea, envolvendo em mistérios a vastidão dos espaços noturnos... Os singelos pastores passavam as longas horas da vigília a contar histórias de outras eras e outras terras, quando não bordavam comentários mais ou menos exaltados em torno do recente decreto do César de Roma; um ou outro grupo falava das esperanças de Israel, suspirando pela vinda do Messias. De súbito, um dos guardas-noturnos solta uma exclamação de surpresa. Sobre uma das colinas de Belém, paira como uma neblina luminosa, que se move lentamente em direção aos acampamentos dos pastores. Todos se põem a observar, estupefatos, o estranho fenômeno. Os rebanhos agitam-se estremunhados; os cães levantam clamoroso latido; os pastores empunham as suas armas primitivas. Tão intenso se vai tornando o fulgor da misteriosa nuvem, que ilumina grande parte das capinas de BethSahur, parecendo até empalidecer o brilho das estrelas da noite. Por algum
tempo se quedam os pastores, imóveis, com a mão sobre os olhos, em ansiosa expectativa. Eis senão quando, se desentranha do centro do luminoso nevoeiro uma figura de indizível beleza – um anjo aureolado de luz. Os pastores, à vista dessa aparição, caem por terra, transidos de terror. Outros fogem, espavoridos... Que seria aquilo?... Um anjo do Senhor?... Deus mesmo?... Entrementes, acercara-se deles a luminosa aparição, dizendo-lhes: “Não temais! Eis que vos anuncio uma grande alegria, que caberá a todo o povo: hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é o Cristo, o Senhor. E isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em faixas e reclinado numa manjedoura”. Apenas acabou o anjo de falar, desfez-se a fúlgida nebulosa numa infinidade de espíritos celestes – seres de tão encantadora beleza como não pode idear a fantasia mais arrojada; dispuseram-se, em torno do primeiro anjo, formando uma imensa via-láctea entre o céu e a terra, e começaram a girar e a bailar com uma graça indizível, cantando: “Glória a Deus nas alturas!... E, na terra, paz aos homens da sua benevolência...”1 1. O texto conhecido “aos homens de boa vontade” não corresponde ao original grego, onde a “boa vontade” (ou benevolência) se refere a Deus.
Os acentos suaves dessas vozes ecoavam sobre os vargedos de Beth-Sahur e pelas montanhas da Judéia além. Os pastores mal acreditaram nos seus sentidos; parecia-lhes um sonho dourado; estavam como que inebriados de gozo e queriam habitar eternamente a luz daquela glória que os circundava. Pouco a pouco se foram os celestes cantores... Os pastores voltaram a si; esfregaram os olhos deslumbrados e entreolharamse, mudos de estupefação... “Vamos até Belém!”, exclamaram alguns, mais resolutos, “e vejamos o que aconteceu, o que acaba de nos anunciar o Senhor.” “Nasceu-vos hoje o Salvador do mundo”, disse o anjo. Que notícia estranha.
Encontrareis uma criança envolta em faixas e deitada numa manjedoura. – Não era assim que eles esperavam o advento do Messias; mas devia ser assim mesmo. Abandonaram os seus rebanhos e, à porfia, correram a Belém. Galgaram a pequena colina e enfrentaram a gruta tão sua conhecida. Pararam, indecisos, ante o insólito clarão que rompia do interior. Nisto aparece à entrada da caverna um homem de aspecto amável e, ouvindo a aparição que tiveram, convida-os a entrar. E os pastores, reverentes e receosos, penetram no interior da gruta. Aí encontram um menino, deitadinho sobre as palhas de uma manjedoura; ao pé dele, a jovem mãe. Depois voltaram aos seus rebanhos. Maria guardava no coração todos estes acontecimentos, meditando-os sem cessar.
Apresentação no templo Após o nascimento de Jesus, deteve-se a família ainda por algum tempo em Belém, se é que não tencionava estabelecer-se lá definitivamente. Belém era a terra natal de seus ascendentes; Belém acabava de se tornar o cenário do maior acontecimento da sua vida. No oitavo dia, foi o menino circuncidado, conforme preceituava a lei mosaica. Competia, geralmente, ao pai executar esta cerimônia. Nesta mesma ocasião, foi-lhe imposto o nome de Jesus, que significa: DeusSalvador, nome que o anjo revelara com antecipação a Maria. *** Quarenta dias depois do nascimento de Jesus, levaram-no os pais a Jerusalém. Mandava a lei de Moisés que a mulher, depois de dar à luz um filho, ficasse em casa 40 dias (60 dias, se era filha), não tocasse em objeto sagrado nem entrasse no templo de Deus. Fizeram-se, pois, de partida; Maria montada na jumentinha, com o filho ao colo; o esposo a pé, guiando cautelosamente a paciente azêmola. De Belém a Jerusalém, a viagem era de duas horas. Levava o caminho pela planície de Refais, por onde, séculos atrás, viera Abraão com seu filho Isaac para imolá-lo nas alturas de Moriá; o mesmo caminho a cuja beira Jacó descansara e onde sepultara, aflito, a sua saudosa Raquel; a mesma estrada que tinha visto os exércitos de Davi e as luxuosas carruagens de Salomão, quando visitava os jardins e parques de Etan. Por detrás de um cotovelo da estrada, aponta subitamente o lendário mausoléu de Raquel. Quanto não sofrera aquela mulher forte por causa de seu Benjamim, filho das suas dores e preço da sua vida!... Daí a pouco, teriam as filhas de Belém de chorar a morte violenta de muitos benjamins trucidados pelo ferro do ímpio Herodes. Do alto de um outeiro, os peregrinos espraiam o olhar pelas regiões circunvizinhas; contemplam as montanhas da Judéia; mais além, os desertos áridos de Moab; para o sul, alvejam as casinhas pitorescas de Belém; para o
norte, já se divisa a magnífica metrópole com a obra-prima do templo e os seus castelos a se desenharem o fundo escuro do Monte das Oliveiras. Mais além – o Gólgota!... Chegados à cidade, hospedam-se os peregrinos em casa de uma família conhecida. Na manhã seguinte, apresentam-se em trajos de festa, e, antes de se iniciarem no templo os sacrifícios matutinos, sobem ao monte Moriá e entram no santuário. Atravessam o “átrio dos pagãos”, ladrilhado de mosaicos, e, depois de cruzarem o átrio externo e subirem por uma escada de vinte degraus, transpõem a chamada “porta de Nicanor”, onde fazem alto; as mulheres não podiam entrar no átrio dos homens. Maria coloca-se no meio das demais mulheres que lá esperam a hora da purificação. Aparece um sacerdote em longa túnica branca, acompanhado de alguns levitas, e procede à cerimônia prescrita pela lei mosaica. Ao mesmo tempo, oferece José um par de pombos, que era a oferta tradicional que as famílias pobres faziam ao templo, por essa ocasião. Em lembrança da maravilhosa providência que Deus dispensara aos israelitas, naquela memorável noite, quando os primogênitos dos egípcios caíram vítimas do anjo exterminador, devia todo primogênito de Israel ser consagrado a Deus. José penetra, pois, no átrio dos sacerdotes, onde o serventuário do culto ergue o menino ao céu, oferecendo-o a Deus; depois do que o pai o resgata com o modesto estipêndio de cinco siclos. E o sacerdote devolve o menino, abençoando-o.
O vidente Simeão No átrio do templo, ao pé da “porta de Nicanor”, divisamos um ancião de aspecto venerando e longas barbas brancas a cair-lhe sobre o peito. A sua existência resume-se toda num anseio daquele por quem suspiravam os povos, havia dezenas de séculos. Quantas vezes, por entre o silêncio da noite, não erguera Simeão as mãos às alturas de Moriá, suplicando com lágrimas nos olhos: “Orvalhai, ó céus, o Justo! Nuvens, fazei-o descer em chuva benéfica! Abre-te, ó terra, e brota o Salvador!...” Fora esta a oração matutina da sua juventude, e era ainda esta a prece vespertina da sua extrema anciania. Tivera revelação divina de que não veria a morte sem que primeiro contemplasse o Redentor. Por isso, vivia Simeão a esperar, a esperar sempre, sempre... Eis senão quando, por uma voz íntima, reconhece no filho de Maria o alvo dos seus anseios! Aproxima-se e pede à jovem nazarena lhe entregue o filhinho. E Simeão, com o menino ao colo, os olhos voltados ao céu e o semblante cheio de luz, rompe num hino de jubilosa gratidão: “Agora, Senhor, despede em paz o teu servo, segundo a tua palavra; porque os meus olhos contemplaram o teu Salvador, que suscitaste ante a face de todos os povos – uma luz iluminadora para os gentios, uma glória para teu povo, Israel!” E, depois desta oração, o ancião se recolhe ao descanso eterno. Já não tem encantos o mundo para quem viu o Salvador do mundo! Já não tem delícias a vida para quem apertou ao coração aquele que é o caminho, a verdade e a vida! Contente e feliz, Simeão se despede da vida, assim como o dia se despede da noite, quando no horizonte começam a tremeluzir os primeiros sorrisos da aurora.
Em seguida, o ancião restitui a criança a sua mãe, dizendo com ares de mistério: “Eis que este menino é destinado a ser ocasião de ruína e de ressurreição para muitos em Israel – e será alvo de contradição!” Depois, cravando um olhar profético em Maria, acrescenta: “A tua alma, porém, será transpassada por uma espada, para que se manifestem os pensamentos que muitos ocultam em seu coração”... A jovem mãe estremece como que atingida pela lâmina fria de um punhal; uma visão de dores se lhe antolha. *** Entrementes, acudira também uma velhinha de quase um século de existência. Chamava-se Ana. A sua vida era um ato contínuo de oração. Ainda muito jovem, enviuvara; e desde então era Deus o seu único amor. Alquebrada, arrimada a tosco bordão, arrasta-se pelo átrio do templo, até a “Porta de Nicanor”; levanta os olhos enevoados... E, no mesmo instante, uma torrente de júbilo lhe inunda a alma. Era como quando o sol, momentos antes de submergir nas brumas crepusculares do horizonte, se reanima uma vez mais e derrama sobre a natureza exausta os últimos lampejos vespertinos. Ana reconhece que tem diante de si o Messias, o objeto de todas as suas meditações, de todos os suspiros da sua vida. Toma nas suas mãos trêmulas a mãozinha delicada de Jesus, aperta-a efusivamente aos lábios, e por momentos parece rejuvenescer-se-lhe o semblante esmaecido. Amor é juventude. Desfaleça embora o corpo, a alma que ama não conhece velhice nem decrepitude senil; quanto mais intenso o seu amor, mais radiante se torna a sua mocidade espiritual. E também ela, como Simeão, se recolhe ao derradeiro descanso, cheia de fé, de esperança e amor, porque vira o sol nascente nos olhos de Jesus Menino.
Magos do Oriente Silêncio e trevas envolvem as extensas planuras da Caldéia. No azul-negro do firmamento, cintilam miríades de astros. No meio das vastas estepes, se ergue uma espécie de atalaia de madeira. Em torno dela, se agrupam numerosas tendas e barracas de hordas nômades. Pelas campinas se lobrigam, disseminadas aqui e acolá, bandos de camelos e de ovelhas, uns a pastar tranquilamente, outros deitados na relva. No alto da torre, se vê um homem encostado ao largo peitoril, absorto na contemplação do céu estrelado. Baltasar lhe chamam os seus patrícios. A longa túnica branca, a cair-lhe até aos tornozelos, empresta um quê de venerando e fantástico ao noturno observador. De quando em quando, ergue as mãos ao céu, e os seus lábios parecem murmurar discretas preces. Estará esperando por algum sinal do céu? Depois de muito sondar e muito observar, senta-se num tamborete, toma nas mãos um pergaminho coberto de hieroglifos, e se abisma no estudo desse escrito. É um dos livros sacros que os hebreus lá deixaram, quando regressaram do cativeiro babilônico para as terras de Canaã (606- 536 a.C.). Fala de um luzeiro que despontará no céu como sinal do advento do Messias predito pelos profetas: “Uma estrela surgirá de Jacó, em Israel aparecerá um luzeiro”. Só Deus sabe quantas noites passou em claro, no seu observatório, o astrônomo, chefe daquela tribo de nômades! Quando apareceria o maravilhoso astro?... Alguns amigos seus, chefes de outras tribos, nutriam a mesma esperança. Uma voz íntima lhes falava na alma, animando-os a perseverarem nos seus anelos. Eram pagãos, todos eles; mas sabiam que o Messias não seria apenas Salvador de Israel, senão do mundo inteiro. É o que diziam os livros sagrados dos hebreus.
No meio das suas lucubrações levanta Baltasar os olhos e vê despontar no horizonte um fenômeno estranho. É uma estrela de intenso fulgor. Com uma exclamação de surpresa e de júbilo, saúda ele o suspirado sinal e, ainda na mesma noite, despacha mensageiros para os amigos, comunicandolhes a feliz descoberta, e convidando-os a virem juntamente com ele procurar o Salvador predito pelos profetas de Israel. Em seguida, escolhe os mais robustos dentre os seus camelos, os mais fiéis dentre os seus servos, enche os cofres de jóias e espera o dia. Muitos dos seus súditos, menos esclarecidos, meneiam a cabeça estranhando semelhante resolução. Empreender uma longa e penosa jornada, incerta, quase à toa, em busca de uma criança recém-nascida, que uns documentos antigos apelidam Messias – que idéia tão desatinada! Não seria melhor esperar aviso mais claro e explícito? O chefe da tribo, porém, não se deixa dissuadir do seu intento; uma voz íntima o impele irresistivelmente a seguir a estrela. No dia aprazado, encontram-se os três chefes, cada qual cercado de luxuosa comitiva. De onde vieram eles? Do Oriente, diz o evangelista. Talvez da Arábia, da Pérsia – não sabemos. Todos de comum acordo se põem a caminho, cheios de confiança e coragem. *** Sucedem-se dias e mais dias. E a caravana sempre no encalço do misterioso luzeiro. Oferecem aspecto pitoresco esses camelos, com luxuosos arreios de prata e pequenos guizos e chocalhos suspensos no pescoço. “Magos” é o nome que o historiador sacro dá a esses três homens. Assim se denominava então um casta científico-religiosa do Oriente. Refere Heródoto que existiam seis tribos de magos. Quando os persas conquistaram a Média, souberam os magos afirmar a sua influência e prestígio no novo reino. Adoravam o fogo, o ar, a terra e a água, os quatro elementos dos quais, segundo a filosofia antiga, se compõe o Universo. Para que os cadáveres dos defuntos não contaminassem esses elementos sagrados, eram os mesmos expostos em cima de torres, a fim de serem devorados pelos abutres. Eram as famosas “torres do silêncio”. Apresentavam na parte superior uma plataforma cortada de barras transversais, sobre as quais se colocavam os corpos.
Os magos da antiguidade usavam vestimentas talares, túnicas de cor branca e chapéu alto com abas caindo sobre os dois lados do rosto. Pretendiam ser mediadores entre os homens e as divindades; intervinham em todos os sacrifícios; interpretavam sonhos e agouros; diziam conhecer o futuro. Mais tarde, os gregos davam o nome de magos aos feiticeiros. Nos livros sacros do Novo Testamento encontramos alguns deles: Bar-jesu (At 13,6) e Simeão (At 8,9). Segundo a tradição cristã, chamavam-se os três magos do Evangelho: Baltasar, Melchior e Gaspar, encarnando cada um deles o tipo da sua nacionalidade e representando as raças de Sem, Cam e Jafé. Na sua expedição em demanda do Messias, não levavam armas. De manhã, aos primeiros albores do dia, entoavam hinos a Deus, com os olhos fitos na estrela, que parecia adivinhar-lhes os anseios do coração. Ao meio-dia, quando toda a atmosfera estuava em incêndios e o areal reverberava com vigor os raios solares, procurava a caravana algum oásis, alguma fonte de água, se tal delícia lhes deparava a sorte; apeavam-se então, tomavam a frugal refeição e descansavam umas horas à sombra das tamareiras e sicômoros do deserto. Mal, porém, a viração da tarde principiava a ciciar pelas flabelas das palmeiras, retomavam o caminho. Destarte, prosseguiam os três viajores do Oriente, em demanda do recémnascido rei dos judeus. Ao se aproximarem de Jerusalém, de súbito desaparece a estrela! Que fazer? Principiaram a tomar informações acerca do recém-nascido rei dos judeus. Mas os interpelados limitavam-se a arregalar os olhos e encolher os ombros, como quem não atinava com o sentido da pergunta. E mandaram a estranha caravana para Herodes. Os senhores da Judéia eram os romanos, e Herodes, o Grande, a governava sob os auspícios dos Césares. Encaminharam-se os fatigados viajores ao palácio do rei e solicitaram audiência. Herodes ouvindo do nascimento de um príncipe com o título de “rei dos judeus”, sentiu-se aterrado. Homem cruel, não sofria rival; quem caísse na suspeita de se arrogar direitos régios era eliminado pelo punhal ou pelo veneno. Herodes tinha assassinado algumas das suas mulheres, diversos filhos, seu sogro e bom número de fidalgos.
Se de terras longínquas vinham soberanos à procura de um príncipe judaico, não podia esse boato deixar de ter fundamento... Convocou, secretamente, os entendidos nas Escrituras Sagradas e perguntoulhes onde devia nascer o tal Messias, rei dos judeus, de que falavam os livros proféticos. Responderam eles: “Em Belém de Judá; pois assim está escrito pelo profeta Miquéias: E tu, Belém, na terra de Judá, não és de modo algum a menor entre as cidades principais de Judá; porque de ti surgirá o chefe que há de governar o meu povo, Israel”. Com efeito, assim escrevera, sete séculos antes, o inspirado vidente. Herodes não pensava senão num dominador político, que derrotasse os seus adversários e restabelecesse o reino de Davi e Salomão. E ele, Herodes? Ver-se-ia eclipsado, eliminado talvez no número dos vivos... Por isso: matar quanto antes o novo rei dos judeus! Entretanto, caráter perverso e hipócrita, mandou chamar, clandestinamente, os magos do Oriente e disse-lhes: “Ide e procurai com afã o menino, e, quando o houverdes encontrado, mandai-me recado para que também eu vá prestar-lhe as minhas homenagens”. Os reis, sem nada suspeitarem, partiram rumo ao sul em demanda de Belém, que dista de Jerusalém cerca de 12 quilômetros. Mal acabavam de transpor os muros da cidade, quando reapareceu a estrela guiadora, como se por eles houvesse esperado. Ao avistarem a estrela, sentiram a alma inundada de consolação; pois aquela luz lhes dizia que estavam no caminho verdadeiro. Foi-se a estrela movendo lentamente diante deles, até parar sobre Belém, rente à entrada de uma casinha modesta, à beira da povoação. Os três viajantes estranharam a pequenez da vivenda e entreolharam-se cheios de surpresa. Seria possível que o rei de Israel tivesse por palácio aquela choupana?... Entraram, encontraram a Jesus e logo se prostraram em terra, tocando o chão com a testa, à moda oriental, homenageando destarte o jovem príncipe. Em
seguida, abriram os seus cofres e ofereceram ao menino ouro, incenso e mirra – produtos das suas terras. Na noite que precedeu sua partida, apareceu-lhes em sonhos um anjo do Senhor e os advertiu de que não voltassem por Jerusalém, porque Herodes maquinava a morte do menino. Levantaram-se, pois, antes do clarear do dia e regressaram para seus países por outro caminho. A descrição acima corresponde à tradição popular. A Ciência, porém, fala de uma conjunção de certos planetas, que teria sido a tal estrela dos magos. É provável que não se tenha tratado de nenhuma estrela objetiva, mas da estrela subjetiva dos magos, que se reuniram por uma intuição interna. Isto também explica por que a estrela desapareceu, ao entrarem em Jerusalém, e reapareceu ao saírem. O ambiente espiritual de Jerusalém interferiu negativamente com a intuição dos magos, e esta interferência terminou quando deixaram esse ambiente negativo. Se se tratasse de uma estrela material objetiva, não seria admissível que ela se movesse na direção indicada, e desaparecesse e reaparecesse, como diz o Evangelho. De resto, o texto grego diz que os magos vieram da anatolé, isto é, da origem, o que pode indicar a intuição espiritual deles. Os magos devem ter aparecido em Belém cerca de dois anos depois do nascimento de Jesus, porque Herodes mandou matar todos os meninos abaixo de dois anos. Nesse tempo, a sagrada família já morava numa casinha em Belém, e não estava mais na caverna, como fazem crer os nossos presépios de fantasia popular.
Jesus fugitivo Mal tinham os reis do Oriente transposto as fronteiras da Judéia, quando um mensageiro celeste aparece a José em sonho e lhe diz: “Levanta-te! Toma o menino e sua mãe e foge para o Egito e fica lá até que eu te avise; porque Herodes procura o menino para matá-lo”. Levanta-se José prontamente, transmite a Maria a ordem, e, antes que despontasse o dia, já está a sagrada família fora de Belém, rumo ao Egito. De Gaza seguem caminho sudoeste, pelo alvejante areal. Mais e mais recua a vegetação palestinense, e diante deles alarga-se a monotonia do deserto arábico. Poucos dias ainda e os três atravessam o istmo de Suez, penetrando nas regiões do Baixo Egito. De vez em quando, deparava-lhes a sorte alguma caverna. Nela se recolhiam em noite inclemente, e adormeciam sobre as pedras duras. Estabeleceu-se o trio provavelmente nas proximidades da cidade de Heliópolis, onde existia um templo judaico. A permanência deles no Egito foi uma vida de desterro, de privações de toda sorte. Eram pobres. Quase nada tinham podido levar de Belém. José apressou-se a alugar uma modesta vivenda, nos arrabaldes da cidade, e começou a arranjá-la do melhor modo que as circunstâncias o permitiam. Madrugador por hábito, labutava o dia todo até altas horas da noite, a fim de ganhar o necessário para si e para a família. Carpinteiro de profissão, não tardou a transformar a casinha num lar doméstico, com os móveis mais necessários. As mãos hábeis de Maria cercaram a vivenda de uma horta e um jardinzinho. Quando não se achava ocupada nesses misteres, trabalhava ao pé do fogão, ou se sentava à roca, fiando e tecendo para a família. O Egito não deixava de ser para todo israelita uma terra santa. As venerandas tradições do povo eleito radicavam nesse solo, intimamente irmanadas com o país e a história dos faraós. Aí tinham vivido Jacó e Moisés. Em Heliópolis, centro sulino de Gessen, tinham-se os filhos de Jacó desenvolvido numa nação poderosa e florescente, mesmo sob o azorrague dos africanos.
Viviam eles em terra de exĂlio.
Regresso à pátria Não sabemos quanto tempo durou o exílio de Jesus no Egito. A visita dos magos do Oriente e a subsequente fuga dos três para terras longínquas ocorreram provavelmente no segundo ano da vida de Jesus. Certa noite, reapareceu o anjo do Senhor a José e ordenou-lhe que voltasse à sua terra, porque Herodes já não existia. Não tardaram os três a fazer-se de partida. Jesus, menino dos seus quatro a cinco anos, marchava ao lado de José, os pés calçados de sandálias, um chapeuzinho de folha de palmeira na cabeça, e uma bolsa de couro a tiracolo – primavera em flor todo ele! Maria, montada no fiel jumentinho, seguia atrás. O sol africano lhe havia amorenado a tez, fazendo-a parecer mais forte e vigorosa que dantes. Um frêmito de júbilo estremece a alma de Jesus, quando, por detrás dos amarelados cômoros de areia, emerge o Mar Mediterrâneo. Era bem penosa a jornada ao longo do litoral, rumo a Gaza, Azoto e Ascalon, teatro das proezas de Sansão. Após diversos dias, cruzam as várzeas de Saron. Daí dobraram para o leste, deixando à esquerda o Monte Carmelo, e atravessando o Vale de Esdrelon, até avistarem, ao longe, as montanhas da Judéia. Num dos albergues onde os três pernoitaram falava-se em política, e José ouviu que em vez do sanguinário Herodes, reinava na Judéia seu filho Arquelau, que acabava de regressar de Roma. Era homem cruel como fora seu pai. Pelo que o chefe da família achou mais prudente não voltar para Belém, que fica a pouca distância de Jerusalém. Declinaram, pois, para o norte, em direção à Samaria, e daí para a Galiléia, em cujo coração se oculta a aldeia serrana Nazaré. Aí, certamente, possuía a mãe de Jesus uma casinha, herança de seus pais.
Entre os doutores Pelos cumes das montanhas de Nazaré, ardiam numerosas fogueiras, prenúncios das solenidades pascais. O carpinteiro José pôs em ordem a sua modesta oficina e, em companhia de Maria e de Jesus, se fez de partida, rumo a Jerusalém, a fim de tomar parte nas cerimônias do culto. Acabava Jesus de completar doze anos e, filho obediente à lei, foi acompanhar, pela primeira vez, oficialmente, as festas da Páscoa. *** A jornada levava uns quatro a cinco dias. Desceram, pois, os peregrinos as rampas da serra de Nazaré e cruzaram a extensa planície de Esdrelon. Não tardaram a transpor a fronteira da Galiléia, penetrando nas terras dos samaritanos. Ao declinar do quarto dia, chegaram os peregrinos a Beroth, última pousada. Na manhã do quinto dia, subiram ao Monte Scopus, de onde avistaram a cidade, a magnificência do templo aureolado pelos fulgores do sol matutino. Fizeram alto os três viandantes. Nos dias seguintes, tomaram parte nas cerimônias religiosas. Na véspera da grande solenidade, eliminava-se das casas tudo que fosse fermentado; o pai de família imolava um cordeirinho no átrio dos sacerdotes; o sacerdote apanhava o sangue numa concha de ouro e o derramava sobre o altar, enquanto os cantores entoavam o grande “Hallel” ou aleluia, isto é, o Salmo 113: “No êxodo de Israel do Egito”, e ao mesmo tempo as trombetas vibravam em festivos clangores. Em seguida, o cordeiro esfolado era levado para casa e estendido num espeto e cruz. No dia imediato, compareciam todos os homens ao templo à hora do sacrifício solene, que consistia no oferecimento de diversos holocaustos e da vítima expiatória. Pela tarde, com a assistência do povo, cortava o sacerdote as
primeiras espigas de cevada, oferecendo-as a Deus como primícias da colheita. Depois da oblação das primícias era permitido aos peregrinos regressarem aos seus lares. *** Terminadas as funções litúrgicas, fizeram-se José e Maria de partida, rumo a Nazaré, ele com os homens, ela com as mulheres. Assim o pedia o costume. Jesus viria com os meninos. Ao anoitecer, iam encontrar-se num ponto marcado. A primeira pousada foi em Beroth, um dia de viagem da capital. Mas quem não aparecia era Jesus! Já entrara o sol, e as sombras da noite vinham desdobrando-se sobre a terra – de Jesus nem vestígio! Cresciam as inquietações de José e Maria. Correram todo o arraial dos peregrinos, perguntando, de barraca em barraca, descrevendo a figura de Jesus, o seu tamanho, o seu talhe, a tez do seu rosto, etc.; mas ninguém tinha notícias dele. Mal clareara o dia, e os pais já se achavam a caminho de Jerusalém. Onde estaria Jesus? Teria caído em mãos inimigas? Teria Arquelau, sucessor de Herodes, descoberto o segredo da fuga para o Egito? Teria reconhecido no menino o fugitivo de Belém?... Chegados à capital, deitaram a correr de casa em casa, perguntando a amigos e conhecidos. Tudo debalde! *** Entrementes, frequentava Jesus as reuniões dos doutores da lei, que se realizavam, geralmente, numa dependência do templo, situada na parte extrema do átrio exterior. Aí costumavam congregar-se os doutores das Escrituras para discutir o texto sacro e propor as suas dúvidas. Nesse recinto, penetrou o menino de Nazaré e, sem mais cerimônias, se sentou no meio dos doutores, como quem se acha em casa própria. A princípio, se trocaram olhares de estranheza e desaprovação; não era praxe que meninos de doze anos comparecessem a esse senado religioso. Mas, depois de algumas perguntas dirigidas a Jesus, e por ele respondidas, mudouse a situação: os venerandos doutores da lei quedaram-se maravilhados da sabedoria do desconhecido. E quão encantadora era a sua modéstia! Apesar do seu profundo saber, não se dava ares de sabido, conservando toda aquela
candura e simplicidade que formam o encanto da alma; perguntava aos mestres, pedindo-Ihes o parecer sobre este ou aquele salmo, sobre esta ou aquela profecia. Às vezes, dava-se por satisfeito com a resposta; não raro, porém, meneava a cabeça, com gesto de desaprovação. Tocava o auge a estupefação dos mestres de Israel quando o menino dava solução clara e concisa a problemas que, havia séculos, formavam ponto de controvérsia entre as escolas religiosas do país. Ao cair da tarde, retirava-se Jesus do templo e procurava abrigo e um pedaço de pão em casa de pessoa conhecida, quando não saía da cidade e pernoitava em alguma caverna próxima, matando a fome com o que o acaso lhe deparasse. De manhã, voltava ao templo, onde era esperado com ansiedade pelos doutores de Israel. Assim passaram-se dois dias. Na manhã do terceiro dia, ouviram José e Maria falar desse “menino-prodígio”, e logo concluíram: é nosso Jesus. E eis que o encontraram na escola do templo no meio dos doutores da lei! Jesus vê seus pais, mas não se perturba nem se lança aos braços de sua aflita mãe. Levanta-se tranquilamente e, muito calmo e sério, os espera. “Filho!”, exclama a mãe com dolorosa ternura, “por que nos fizeste isto? Eis que teu pai e eu te vínhamos procurando cheios de aflição!” Jesus percebe esta censura; mas dos lábios não lhe passa uma palavrinha de desculpa nem um pedido de perdão; nenhuma nuvem de tristeza lhe tolda a fronte, nem uma lágrima de comoção lhe cai dos olhos, nem um sorriso de alegre satisfação lhe contrai os lábios... E dos lábios lhe brotam: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que tenho de ocupar-me das coisas de meu Pai?...” Teu pai, diz Maria, referindo-se a José; mas Jesus responde com “meu Pai”, referindo-se a Deus. Aliás, através de todos os Evangelhos, Jesus nunca usou as palavras pai ou mãe referentes a seres humanos; para ele, pai é só Deus; Maria é “mulher”, ou “senhora”, mas nunca a chama mãe. Jesus se considera um ser estranho e alheio na terra e na humanidade, um peregrino do Infinito, mais solitário do que solidário.
Onde esteve Jesus dos doze aos trinta anos? Desse longo período da vida de Jesus – mais da metade da sua vida terrestre – nada referem os evangelistas. Lucas resume esses dezoito anos nas poucas palavras: “Subiu com seus pais a Nazaré e lhes estava sujeito; e foi crescendo em idade e estatura, em sabedoria e graça perante Deus e os homens”. Tem-se escrito vasta literatura sobre esse período misterioso de Jesus. Acham alguns que a hierarquia eclesiástica, depois de Constantino Magno, tenha suprimido a parte do Evangelho que se refere a esse tempo, a fim de abrir caminho para a consolidação do seu domínio. A opinião mais comum, porém, é que o jovem tenha demandado terras longínquas, o Egito ou a Índia, a fim de ser iniciado pelos grandes mestres espirituais que ali viviam ou haviam deixado escolas esotéricas. Outros se contentam com admitir uma estada entre os essênios, fraternidade ascéticomística de judeus, não longe do Mar Morto. O estranho é, entretanto, que os conterrâneos de Jesus nada saibam dessa suposta ausência dele. Quando, aos trinta anos, aparece em público, perguntam eles, cheios de surpresa: “Donde lhe vem essa sabedoria? Pois não é ele o filho do carpinteiro José? Não está entre nós a sua mãe, e não conhecemos nós seus irmãos e suas irmãs?” Se Jesus tivesse estado ausente tantos anos, não seria óbvio que seus conterrâneos mencionassem o fato? E que procurassem relacionar a sua sabedoria com essa longa ausência e possível permanência em outras partes do globo? Nada disto, porém, acontece. Tacitamente, os nazarenos supõem que Jesus não tenha estado ausente. De resto, que necessidade tinha ele de se sentar aos pés dos outros mestres humanos, ele que já aos doze anos possuía uma sabedoria espiritual maior que os teólogos da sinagoga e do templo, encanecidos nos estudos das revelações de Deus? Quatro historiadores contemporâneos, entre eles alguns conterrâneos de Jesus, nada sabem de uma ausência ou de viagens dele; nem mesmo Paulo
de Tarso, homem viajado, menciona tal fato. O próprio médico grego Lucas, que afirma no seu Evangelho que vai narrar a vida de Jesus em ordem cronológica e por informações diretas de testemunhas presenciais, nem ele sabe de uma ausência de Jesus adolescente. Ausência física não deve ter havido – mas certamente uma ausência metafísica. Se aos doze anos Jesus eclipsava a sabedoria dos sábios de Israel é provável que nos dezoito anos da sua vida anônima tenha feito viagens espirituais ao Infinito, viagens cósmicas ao “Reino dos Céus”, palavra central de todos os seus ensinamentos, durante a vida pública. Durante a sua vida, como refere o Evangelho repetidas vezes, Jesus se retirava para o cume dos montes ou para a solidão do ermo, a fim de estar a sós com o Pai dos céus, por vezes noites inteiras. Não terá o jovem feito o mesmo, em Nazaré? Não terá ele, após os labores diários na pequena carpintaria, demandado a solidão das montanhas que circundam Nazaré, abismando-se no mundo do “Pai dos céus” ou do “reino de Deus”? Ninguém pode, com tamanho amor e brilho, falar dessa realidade invisível sem que a tenha experimentado, longa e intensamente, em sua própria alma. É possível que Jesus tenha, por algum tempo, frequentado as reuniões dos essênios, cujos ensinamentos, porém, não atingem as nlturas que se revelam nas páginas dos Evangelhos. Não havia, para o jovem carpinteiro, mestre humano no mundo – havia, porém, o Mestre dos mestres, para além de todos os mundos conhecidos. E é provável que Jesus tenha recebido a sua sabedoria diretamente da sua experiência pessoal com Deus.
Segunda Parte
MESTRE E MÉDICO
O mergulho de Jesus Aos trinta anos, mais ou menos, Jesus emerge do seu longo anonimato e resolve iniciar a sua vida social, na Judéia e na Galiléia. Depois de dois ou três dias rumo ao sul atinge as ribanceiras do Jordão. Depois de sair do seio do lago de Genesaré, lança-se essa torrente para o sul, descrevendo um sem-número de sinuosidades, ora alargando o leito para a direita ou para a esquerda, ora recolhendo as águas entre estreitos paredões de rocha, até sumir-se nas profundezas do Mar Morto. Cerca de três léguas para o sul do lago de Genesaré, transpôs Jesus o rio sobre uma ponte de pedra e, acompanhando o curso das águas, prosseguiu na margem oriental, em demanda das regiões de Jericó. Nesse caminho, associou-se a outros peregrinos que, como ele, iam ter com o profeta do deserto, do qual todo o mundo falava. Ao declinar da tarde, atingiu o vale de Jericó, que representava naquele tempo uma das zonas mais belas da Palestina, célebre por seu bálsamo, afamada pelos rosais e palmares, que davam a essas regiões uns ares de paraíso. Na margem oposta, alvejam as casas de Gilgal e de Jericó, cidades opulentas, embaladas em bosques de luxuriante vegetação. Jesus fez alto no ponto em que o rio descreve uma grande volta para o leste. Era este o lugar em que o profeta do deserto mergulhava as multidões. De súbito, deparou-se a Jesus um espetáculo impressionante: na praia do rio, sobre uma plataforma de rocha, estava um homem na flor da idade, magro, pés descalços, vestido de hirsuta pele de camelo, que envolvia as formas esqueléticas, dos ombros até aos joelhos, e vinha presa ao corpo por uma cinta de couro. Era este o lugar em que o essênio João mergulhava os pecadores nas águas do Jordão, exortando-os à metanóia (transmentalização) ou conversão de uma vida de erros e pecado para uma vida de verdade e santidade. Fazendo João parte da fraternidade dos essênios, que praticava regularmente a cerimônia simbólica do mergulho (baptisma, em grego), e tendo também
Jesus convivido com os essênios, era natural que os dois continuassem a praticar, mais tarde, o rito do mergulho. Esse mergulho físico, ou batismo, não dava pureza espiritual, mas era um símbolo material exterior que lembrava um simbolizado espiritual interior, que João admitia como já realizado, ou então convidava os batizantes a realizá-lo. O mergulho era pois um símbolo exotérico de um simbolizado esotérico, confirmando o que já ocorrera com o iniciando. Desde os tempos dos grandes profetas do Antigo Testamento, não se vira fenômeno igual em Israel. Havia séculos que tinham emudecido os lábios do último dos mensageiros de Yahweh, Malaquias. A voz de João era forte, vibrante, dura mesmo; as suas palavras, breves e incisivas; os seus gestos, parcos e rápidos; toda a sua atitude incutia terror e confiança ao mesmo tempo. Duas grandes verdades proclamava o profeta às margens do Jordão: O machado está à raiz da árvore! Ai do homem que não abandonar os seus caminhos pecaminosos e produzir frutos de sincera conversão! Será cortado e lançado ao fogo! Preparai os caminhos do Senhor! Chegou o Messias, o Cristo prometido há séculos! Não sou eu mesmo, mas virá após mim, ele, que já antes de mim existia e ao qual nem sequer sou digno de desatar as correias do calçado; eu vos mergulho na água, o Messias, porém, vos há de mergulhar no Espírito Santo! Ao proferir estas últimas palavras, abalou-se profundamente o pregador; tremia-lhe a voz e as negras pupilas percorriam lentamente a multidão dos ouvintes, como que à procura de alguém. Entrementes, passava a certa distância o peregrino de Nazaré, silencioso, como se fosse um dos numerosos pecadores que vinham solicitar o mergulho de conversão. De repente, erguendo a mão, o profeta apontou para a pessoa que acabava de assomar à praia, bradando: – Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! No mesmo instante, todos os olhares se cravaram na pessoa de Jesus, enquanto o mergulhador continuava a declarar ao povo quem era o recémchegado. Indescritível foi o assombro que de todos se apoderou. A presença de Jesus e as palavras de João empolgaram a multidão e abalaram as consciências.
Soldados e coletores aproximaram-se da plataforma de pedra em que se achava o pregador, perguntando, contritos, o que deviam fazer para salvar-se. João dirigia uma palavra clara e concisa a cada um. Austero para consigo mesmo, era benigno para com os outros. O que lhes impunha era pouco, apenas o essencial; mas isto com grande veemência. Aos ricos e abastados exigia-lhes que repartissem com os pobres os meios de subsistência. Aos coletores proibia-os de exigirem mais do que a taxa prescrita. Aos soldados dava-lhes ordem severa de evitarem violências e de se contentarem com o seu soldo. A todos mandava que se convertessem sinceramente e, em sinal disto, se fizessem mergulhar; pois assim lhe ordenara Deus preparasse o advento do reino messiânico. Também se aproximaram dele alguns fariseus e uns saduceus; faltava-lhes a devida disposição interior; pelo que o austero pregador os increpou com veemência, desmascarando-os perante todo o povo com estas palavras: “Raças de serpentes! Quem vos disse que escaparíeis ao castigo de Deus, que vos ameaça? Produzi frutos de sincera conversão e não digais: Temos Abraão por pai. Pois digo-vos eu que destas pedras pode Deus suscitar filhos a Abraão! Já está o machado à raiz da árvore; toda árvore que não produzir fruto bom será cortada e lançada ao fogo”. A maior parte dos ouvintes obtemperava à voz do profeta. Numerosas pessoas, depondo parte do vestuário, desciam ao Jordão, onde o mergulhador as submergia na torrente, recomendando-lhes emenda séria da vida. Entre estes últimos achava-se Jesus. João hesitou em mergulhar Jesus, balbuciando, perplexo e confuso: – Como? Tu vens para ser mergulhado por mim?... Eu é que devia ser mergulhado por ti... Volveu-lhe Jesus um olhar significativo, dizendo: – Permite, por ora, que assim aconteça; convém cumprirmos tudo o que é justo. João compreendeu o sentido destas palavras, e cedeu à vontade de Jesus, o qual logo desceu às águas da torrente e recebeu o mergulho de conversão. Apenas acabava Jesus de subir do leito do rio e se pusera em oração, quando se fez ouvir nas alturas um como ribombar de trovão! Ao mesmo tempo, baixava do céu uma nuvem luminosa, despedindo para a terra jorros de luz, que envolviam nos seus fulgores as pessoas de Jesus e de João, aclarando a redondeza. Uma dessas esteiras de luz celeste desceu sobre a cabeça de Jesus, parecendo formar uma ponte entre o céu e a terra. E, no meio dessa
torrente, pairava o Espírito Santo em forma de pomba. Do interior da nuvem, partia uma voz, que ecoava pelas fraldas das montanhas além, dizendo: – Este é o meu Filho muito querido, no qual tenho posto a minha complacência! Fugiu, espavorida, a multidão; outros se lançavam por terra, como que fulminados pelo raio. Também o mergulhador caiu de joelhos. Só Jesus se conservou de pé, imóvel. Antes que o povo se refizesse do susto, retirou-se Jesus das margens do Jordão.
Jesus tentado pelo diabo Depois de mergulhado, passou Jesus para a margem esquerda do Jordão e, cruzando a florida planície de Jericó, tomou para o norte, em demanda do deserto de Judá. Quanto mais prosseguia, mais inóspita se ia tornando a região. Chegado ao coração do ermo, subiu a um monte rochoso e íngreme, que leva hoje o nome de Quarentena, ou “monte do diabo”. Vêm essas alturas rasgadas de cavernas, abertas pela natureza, ou por mão humana, e que serviam antigamente de asilo aos eremitas. Consta aquele monte de rochas calcárias, que apresentam aspecto triste e desolador: nenhuma árvore, nem um arbusto sequer ameniza aquela fatigante monotonia. Por todas as partes se escancaram negras quebradas e precipícios. É tradição antiquíssima que o profeta Elias viveu nessa lúgubre solidão, quando fugitivo das cóleras de Jezabel. Quem sabe se esses antros não ofereceram também guarida, por algum tempo, a João, o mergulhador?... Foi nesse mesmo deserto, por entre esses mesmos penhascos, que Jesus resolveu passar os quarenta dias que seguiram ao seu mergulho no Jordão. A caverna em que se diz ter habitado se acha na escabrosa ladeira oriental do monte. Por que esse longo retiro? Segundo cálculos humanos, não podia haver para o Nazareno momento mais propício do que este para inaugurar a sua missão entre o povo, que ouvira as palavras de João e presenciara os fenômenos às margens do Jordão; de um golpe teria ele conquistado todas as simpatias. Entretanto, em vez de principiar a sua atividade, entrega-se Jesus a uma vida de meditação; e diz o Evangelho que a isto foi impelido pelo espírito, isto é, por inspiração divina. Que fez Jesus durante esse período de silêncio? A sua ocupação principal consistia na meditação. Vivia em colóquio constante com o Pai celeste.
Acompanhava essa vida contemplativa um jejum ininterrupto; Jesus não comeu nem bebeu coisa alguma naqueles quarenta dias. *** Esta cena descrita pelos evangelistas é considerada tradicionalmente como um encontro físico, externo, de Jesus com Satanás. Entretanto, é possível que toda a tentação seja um episódio interno na pessoa de Jesus. Jesus chama Satanás a Pedro, quando este se opõe à idéia da morte voluntária do Mestre. E chama diabo a Judas, quando este não tinha fé nas palavras dele. Durante quarenta dias de silêncio e jejum estava o ego humano de Jesus eclipsado e fora de ação. Depois de terminado esse longo período houve uma reação subitânea do Jesus humano contra o Cristo divino; a natureza humana sugere a Jesus um plano de redenção compatível com o seu ego humano: conforto material, ambição social e domínio mundial, correspondendo às três fases da tentação, todas elas rebatidas vitoriosamente pelo Cristo divino. Diz o texto que Jesus foi conduzido ao deserto pelo espírito de Deus com o fim de ser tentado ou testado pelo “adversário” (em hebraico: satan; em grego: diábolos). Antes de iniciar a sua vida pública, Jesus se submete a esse teste dos dois pólos da sua natureza humano-divina, teste do qual o seu Cristo saiu plenamente vitorioso. Se admitirmos uma tentação no ambiente físico, externo, temos de aceitar que o diabo o tenha levado pelos ares, do deserto do Mar Morto a Jerusalém, cerca de quarenta quilômetros; e se assim fosse não teria alguém visto Jesus lá no pináculo do Templo? Teríamos de aceitar também que Jesus tivesse sido transportado pelo diabo a um monte elevado, que não existe na Judéia, mas tão-somente para o norte da Galiléia, fora da Palestina, centenas de quilômetros fora do deserto da tentação; e logo depois o diabo teria levado Jesus de volta ao deserto da Judéia. É mais provável que todo o episódio da tentação tenha ocorrido na alma de Jesus.
“Mestre, onde moras?” Era pelas quatro horas da tarde. Às margens do Jordão estava João Batista, cercado de seus discípulos e numerosa multidão de povo. Falavam, em termos concisos e vibrantes, do próximo advento do reino de Deus. De súbito, cala-se e crava o olhar num dos transeuntes. Silêncio profundo! Expectativa geral!... A alguma distância do rio passa um homem na sua plenitude física, mental e espiritual. Depois de observar, por algum tempo, o misterioso peregrino, ergue João a mão direita e, apontando para ele, exclama: – Eis aí o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! E, após um momento, acrescentou: – Este é o homem do qual eu dizia: após mim virá alguém que existia antes de mim; eu não o conhecia, mas vim para que ele fosse manifestado em Israel; e é por isto que eu realizo o mergulho na água; aquele que me enviou para fazer o mergulho na água me disse: sobre quem vires descer e permanecer o espírito sagrado, esse é o que mergulha no espírito sagrado; ora, eu vi o espírito sagrado descer do céu em forma de pomba e permanecer sobre Jesus; e dei o testemunho dizendo: Este é o Filho de Deus. *** Entre os que mais se comoveram com as palavras do Precursor havia dois discípulos dele, André e João. Resolveram aderir àquele homem a quem o mestre intitulava: Cordeiro de Deus. Quando, pois, no dia imediato, Jesus tornava a passar pela praia e João o indigitou novamente, animaram-se os dois a travar relação com ele. Foram, pois, André e João no encalço do Nazareno, que seguia ao longo da torrente.
Mas sentiam-se tomados de um acanhamento, que não lhes permitia se apresentassem ao grande profeta; André esperava que João dissesse a primeira palavra, e este esperava o mesmo de companheiro. Jesus, porém, que bem lhes conhecia as intenções, voltou-se para os dois, e cumprimentou-os. Mas nem com isto se lhes quebrou o enleio. Pelo que lhes perguntou: – Que procurais? Ao que um deles, ladeando a questão, respondeu: – Mestre, onde moras? – Vinde e vede – tornou-lhe o Senhor, convidando-os a uma visita à casa onde se achava hospedado. Foram. Pelo caminho, entreteve-se Jesus com os dois. – Somos galileus – replicou André, cobrando animo. – Meu amigo João é filho de Zebedeu, que tem pescaria no lago de Genesaré. Quanto a mim, chamo-me André; sou filho de Jonas e irmão de Simão. Falava André, de gênio expansivo, ao passo que João, de natural taciturno e sonhador, se limitava a acrescentar uma ou outra palavra, ou confirmar simplesmente a narração do companheiro. Em seguida, passou Jesus a discorrer sobre a pessoa de João, afirmando que era o maior dos profetas, incumbido de vaticinar o Messias. Entrementes, haviam os três viandantes chegado à casa onde Jesus se hospedava. Foi este o primeiro encontro e o primeiro colóquio que com Jesus tiveram André e João. Tão profunda foi a impressão, que para logo se tornaram discípulos do reino do Cristo.
“Encontramos o Messias” A felicidade é expansiva; o entusiasmo do interior tende a exteriorizar-se, a comunicar-se aos outros, assim como a luz e o calor se difundem irresistivelmente pelo ambiente. Contente de ter encontrado o Messias, apressou-se André a levar a alviçareira notícia a seu irmão Simão, o qual, provavelmente, se achava em companhia do mergulhador. – Encontramos o Messias! Simão percebeu estas palavras e ouviu a narração de André. Para um israelita de lei não podia haver notícia mais grata do que esta. Homem já de certa idade, casado, natural da cidade marítima de Betsaida, mantinha Pedro uma empresa de pescaria juntamente com Zebedeu e os filhos dele, Tiago e João. A história e a tradição no-lo dão como homem de brio e iniciativa, estatura meã, compleição robusta, olhar vivo e gênio resoluto. Assim que Jesus avistou a Simão, cravou nele um olhar, dizendo: – Tu és Simão, filho de Jonas; daqui por diante, o teu nome será Kepha. Na língua hebraica, ou melhor, no dialeto aramaico que Jesus falava, a palavra “Kepha” significa ao mesmo tempo “pedra”, de que se pode derivar Pedro. Entretanto, não era ainda definitiva a vocação desses primeiros discípulos. Permitiu-lhes Jesus que voltassem a ocupar-se dos seus afazeres mundanos; só mais tarde, depois de comprovada a sua constância e fidelidade, é que iriam ser admitidos inseparavelmente ao apostolado do Evangelho. *** No dia seguinte, partiu Jesus com destino à Galiléia. Pelo caminho, deparou-se-lhe um tal Filipe, conterrâneo de André e Simão. De natural tímido e reservado, porém muito dócil e de caráter maleável, bastou-lhe um simples “segue-me” – e Filipe se sentiu impelido a se tornar discípulo de Jesus. Pouco depois, toparam com Natanael, o qual, provavelmente, é idêntico ao apóstolo Bartolomeu. Era de Caná, da Galiléia, homem de bastante cultura,
reto, franco e sincero investigador da verdade. Nem lhe faltava certa veia humorística. Filipe tivera ocasião de lhe falar da pessoa do Messias, que acabava de aparecer, vindo de Nazaré. Natanael conhecia de perto esse modesto lugarejo da serra, pois fica a pouca distância de Caná; e sabia que, por via de regra, os nazarenos não primavam pela cultura e civilização, porém muito mais por seu espírito de bairrismo. Era Nazaré uma aldeia tão sem importância histórica, que nem uma única vez encontramos o nome no Antigo Testamento. Pelo que o interpelado observou, com um sorriso de ironia: – De Nazaré pode lá sair coisa que preste? – Vem ver! – tornou Filipe, com ares de triunfo. E Natanael seguiu o amigo, entre crente e cético. Quando Jesus avistou o recém-chegado, observou em voz alta, apontando para ele: – Eis aí um israelita de verdade, no qual não há falso! Admirado, perguntou-lhe Natanael: – De onde me conheces, Senhor? – Antes que Filipe te chamasse – volveu Jesus – te via eu, quando estavas debaixo da figueira. Acompanhou Jesus estas últimas palavras de um olhar tão significativo, que o cético, de relance, lhes compreendeu o sentido. Convenceu-se de que o Nazareno lhe conhecia os segredos de consciência e presenciara um episódio da sua vida particular, de que só Deus fora testemunha. Esta revelação subitânea abalou a alma de Natanael; sincero como era, reconheceu em Jesus o juiz das consciências, e exclamou: – Tu és o Messias! Tu és o Rei de Israel! E, sem mais, se declarou pronto a aderir ao profeta de Nazaré. E todos juntos prosseguiram viagem rumo à Galiléia.
As bodas de Caná Três dias depois dessas ocorrências, retirou-se Jesus das margens do Jordão, onde chamara os seus primeiros discípulos, atravessou a extensa planície de Esdrelon e chegou à cidade de Cafarnaum. Daí não tardou a dirigir-se para sudoeste e ficou em Caná. Era Caná uma modesta povoação situada à beira da estrada que de Cafarnaum conduz a Nazaré. Disseminavam-se, aqui e acolá, pelas dependências dos serros, grupos de casas, emolduradas no verde-claro painel de pomares e jardins. Para as bandas do oeste, corre uma fonte de três bicas, que é a única em toda a redondeza. É, pois, provável, que tenha sido ela que forneceu a água para o primeiro milagre de Jesus. No dia da sua chegada encontrou Jesus a cidadezinha em festivas galas. É que se celebrava o casamento de um jovem par muito estimado. Os nubentes, ao que parece, eram parentes de Maria, mãe de Jesus. Levou o Mestre consigo às bodas os seus novéis discípulos: André, Simão Pedro, João, Filipe e Natanael. As coisas começam bem – terá pensado, de si para si, um ou outro dos discípulos. – Logo ao terceiro dia do apostolado, uma festa nupcial! Isto aqui é outra coisa do que comer gafanhotos e mel silvestre como mestre João. A continuar nesse andar, será bem aprazível ser amigo do Nazareno... Uma festa nupcial durava ao menos três dias. Numa dessas manhãs, chegou Jesus com seus discípulos, não somente para atender ao amável convite dos nubentes, como ainda por motivo de ordem superior. Deu-se o caso desagradável de se esgotar a provisão de vinho no meio do banquete, fosse por descuido na encomenda, fosse pela circunstância de ter comparecido maior número de convivas do que se calculava. A mãe de Jesus, que servia a mesa dos homens, reparou logo no desapontamento dos criados e copeiros, que corriam à adega, e voltavam com
os jarros vazios; segredavam umas palavras rápidas ao ouvido do mestre-sala, que, por seu turno, encolhia os ombros. No momento propício, ao servir um prato, inclinou-se Maria ao ouvido de Jesus e disse-lhe a meia voz: – Não têm vinho... Respondeu-lhe Jesus, tranquilamente: – Senhora, que tem isto comigo e contigo? E acrescentou umas palavras que a nós parecem um tanto enigmáticas, dizendo: – Ainda não chegou a minha hora. Para a mãe de Jesus, porém, não foram nada enigmáticas essas palavras, nem viu nisto recusa alguma; entendeu que equivaliam a um atendimento ao seu pedido, por sinal que foi logo ter com os serventes e lhes recomendou obediência, dizendo: – Fazei tudo o que ele vos disser. Passados momentos, levantou-se Jesus da mesa e foi ter com os criados. – Enchei de água essas talhas – ordenou-lhes Jesus. Entreolharam-se os criados, sem saber o que pensar de semelhante ordem; lembrados, porém, da recomendação da amável senhora, obedeceram e dirigiram-se à fonte. Água é água – terão murmurado com seus botões alguns deles, enquanto enchiam a talha. – Mas o que a gente quer é vinho. Trabalharam e encheram seis grandes talhas de pedra, cada uma das quais comportava cerca de cem litros. Seiscentos litros d’água! Para que tanta? Não bastariam alguns litros?... Aproximou-se Jesus, estendeu as mãos sobre a água, ergueu os olhos ao céu, murmurou umas palavras e ordenou aos servos: – Tirai agora e levai ao mestre-sala. Que pasmo o dos criados! Já não era água, era vinho genuíno. O mestre-sala provou do vinho e, ignorando-lhe a procedência, foi ter com o esposo, preconizando a qualidade superior do precioso licor, e estranhando ao mesmo tempo que tivesse guardado até ao fim da festa aquela bebida.
O esposo provou do líquido e indagou da sua origem. Ninguém sabia dar explicação. Os criados asseveravam que só tinham deitado água nas talhas. Serviu-se em todas as o vinho, e todos beberam dele.
Primeira purificação no templo Aproximava-se a festa da Páscoa judaica. Estas solenidades nada tinham que ver com a nossa Páscoa cristã, que ainda não se dera. A Páscoa judaica (ou Pessach) era a comemoração anual da independência nacional de Israel, da sua saída da longa escravidão do Egito. No dia marcado, se dirigiu Jesus ao templo para assistir à imolação do cordeiro pascal. Na espaçosa galeria do templo se reuniu em torno dele grande número de povo. Muitos haviam ouvido a sua doutrina, na Galiléia. E o Mestre pôs-se a falar às multidões. Não tardou que se formassem dois partidos, pró e contra Jesus. Principalmente os sacerdotes, fariseus e doutores da lei se encheram de inveja, porque o rabi de Nazaré ensinava em público, sem haver, cursado as escolas deles, nem ter para isto requerido autorização ao Sinédrio. O povo, porém, o escutava com prazer e o aplaudia entusiasticamente, porque a sua palavra era poderosa. Certa manhã, chegou ao templo em companhia de seus discípulos, e encontrou o átrio invadido de vendilhões e cambistas. Avançou contra os profanadores e intimou-os a abandonarem o vestíbulo do santuário juntamente com as suas mercadorias. Não foi atendido. Os interessados opuseram-se-lhe tenazmente, perguntando com que direito se arvorava em polícia do templo, ele, o forasteiro, o galileu. Em face dessa resistência, lançou Jesus mão de uma corda, que encontrou no pavimento, dobrou-a em forma de azorrague, e bradou: – Fora com estas coisas; não façais da casa de meu Pai uma praça de mercado! *** Enquanto Jesus expulsava os vendilhões, os sacerdotes e chefes do templo reuniram-se em conciliábulo e deram largas aos seus sentimentos de ódio contra o Nazareno. Fez-nos passar vergonha diante do povo e dos forasteiros
– diziam entre si – arrogou-se direitos que não lhe competem... É um homem perigoso... Se lhe dermos liberdade, acabará por arruinar o prestígio e o crédito da nossa classe... Em seguida, instituíram uma comissão de sacerdotes e fariseus conspícuos, que, em nome do Sinédrio, fossem ter com Jesus e lhe perguntassem em face do povo quem o autorizara a proceder daquele modo; só um profeta enviado por Deus teria o direito de fazer o que ele fizera; que provasse com um milagre a sua missão divina, se é que se tinha em conta de embaixador de Deus. Jesus ouviu esse protesto e essa intimação e prometeu aos adversários, a seu tempo, provar-lhes com um milagre a sua missão superior. – Qual é esse milagre? – inquiriram eles. – Destruí este templo – replicou-lhes Jesus – e eu o reedificarei em três dias. Referia-se, diz o Evangelista, ao templo de seu corpo, indigitando sua pessoa. Queria dizer que, depois de arrasado pela morte violenta o santuário da sua humanidade – do qual aquele edifício material era protótipo –, ele o reconstruiria dentro de três dias, ressurgindo vivo do sepulcro; e que esta seria a prova das provas, o argumento da sua missão divina.
“Renascer de água e espírito” Achava-se o Mestre em Jerusalém, hospedado numa casinha modesta, nas alturas de Sião, pertencente, talvez, à família de Lázaro de Betânia, ou a algum dos discípulos. Numa dessas noites, quando tudo era paz e silêncio, e a lua no quarto minguante espargia dúbia claridade pelo espaço, passava pelas ruas de Jerusalém um homem de notável ilustração e prestígio, por nome Nicodemos. Era doutor da lei e membro do Sinédrio, Senado religioso de Israel. Vinha embuçado no seu manto de rabi, e deitava olhares desconfiados para a direita e para a esquerda, como se receasse ser visto por alguém. Nessa mesma noite estava Jesus sentado na varanda da vivenda, conversando com o discípulo João, que viera com ele da Galiléia e se hospedara na mesma casa. Nisto se perceberam pancadas discretas na porta da entrada. João levantouse, abriu a porta, e defrontou com o rabi Nicodemos. Introduziu-o na casa e apresentou-o ao Mestre. Sentaram-se os três na varanda, que dava sobre o jardim. E travou-se então entre Jesus e Nicodemos aquele memorável colóquio noturno sobre o reino de Deus, colóquio de que o quarto evangelista nos deixou breve compêndio; por sinal, ele mesmo assistiu, com interesse, àquela dissertação do Mestre, seguindo-a... – Mestre –, preludiou Nicodemos, dando a entender que vinha como discípulo e não como doutor da lei. – Mestre, sabemos que vieste da parte de Deus para ensinar; porque ninguém pode fazer os prodígios que tu fazes, a não ser que Deus esteja com ele. Nicodemos, como se vê, estava impressionado com o que Jesus fazia, os tais milagres, mas ignorava o mais importante, o que ele era. Então passa o Mestre a mostrar a seu novel discípulo que o principal não é fazer algo, mas ser alguém. – Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus.
Nascer de novo? Nicodemos logo pensa em reencarnação material e replica: – Como pode um homem velho nascer de novo? E, um tanto irônico, acrescenta: – Será que pode voltar ao ventre de sua mãe e nascer mais uma vez? Ao que Jesus responde solenemente: – Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo pelo espírito não pode ver o Reino de Deus; quem nasce da carne é carne, mas o que nasce do espírito é espírito; não te admires de eu te dizer: é necessário nascer de novo. E Jesus acrescentou: – Em verdade, em verdade te digo que não pode entrar no Reino de Deus quem não nascer de novo de água e espírito. De água e espírito? Aqui Jesus faz ver a Nicodemos que não é necessário renascer pela carne, nem é suficiente renascer só pelo espírito, mas é necessário nascer de novo de água e espírito, renascer também num corpo novo, não um material, mas um corpo imaterial, porque o homem completo não é espírito nem matéria, mas é espírito revestido de corpo, não mais de um corpo material como agora mas revestido de um corpo imaterial. Os livros sacros, tanto do Antigo como do Novo Testamento, se referem, repetidas vezes, a esse corpo imaterial. No primeiro verso do primeiro capítulo do Gênesis, Moisés diz: “No princípio, os Elohim crearam o céu e a terra, mas a terra era invisível”, como diz o texto grego. Não era ainda uma terra material como hoje, mas uma terra feita de pura energia (talvez astral), de energia ainda não congelada em matéria, como disse Einstein. Assim deve também o espírito do homem transformar o seu corpo material de hoje no corpo imaterial (astral?) mais perfeito, para poder nascer de novo “de água e espírito”. A palavra “água” é usada nos livros sacros para dizer pura energia. Jesus fala à samaritana de “água viva”, do corpo imaterial vivificado pelo espírito. Depois disto acrescentou Jesus umas comparações significativas, dizendo: – O sopro sopra onde quer; bem lhe ouves o ruído, mas não sabes donde vem e para onde vai. Assim também acontece a todo homem que renasce do espírito.
Nicodemos ouve, profundamente pensativo, estas palavras e murmura a meia voz: Como é isto possível?... E Jesus, com ares de censura, lhe responde: – Tu és o mestre de Israel e ignoras isto? E lhe faz ver incisivamente que ele não se baseia em crenças vagas e incertas, mas numa experiência imediata e evidente: – Nós dizemos o que sabemos e damos testemunho do que vimos... Depois, acrescenta: – Assim como Moisés, no deserto, ergueu às alturas a serpente, assim deve também ser erguido às alturas o Filho do Homem, para que todo aquele que tem fé nele tenha a vida eterna. A serpente rastejante, horizontal, mordia e matava os israelitas, mas a serpente verticalizada curava aqueles que para ela olhassem com fé, sintonizando a sua consciência com a consciência desse símbolo espiritual. A serpente mortífera é o corpo material do homem ainda não espiritualizado; a serpente vivificante é o corpo imaterial do homem espiritualizado; o corpo material é mortal, o corpo imaterial é imortal. Com estas palavras misteriosas simbolizou o Mestre a transformação do homem total (que os profetas chamam ressurreição do corpo), que queria entrar na vida eterna do reino dos céus. É o homem total que se deve transformar, e não apenas a sua alma; a alma espiritual deve também espiritualizar e imortalizar o corpo. Uns três anos depois, Nicodemos reaparece como decidido discípulo de Jesus embalsamando, juntamente com José de Arimatéia, o corpo de Jesus crucificado.
O Precursor no cárcere Reinava, nesse tempo, na Galiléia e Peréia, o tetrarca Herodes II, apelidado Antipas. Não herdara o gênio cruel e sanguinário de seu pai; mas era homem ambicioso e sensual. De caminho a Roma, aonde fora no intuito de solicitar aprovação do seu governo, caíra vítima das seduções de Herodias, mulher de Filipe, seu meioirmão. Após o seu regresso da metrópole do império, repudiou sua mulher legítima, filha do rei árabe Aretas, e levou para casa Herodias. Residia o príncipe, habitualmente, na opulenta cidade de Tiberíades, sobre a margem ocidental do lago de Genesaré. Cruzava naquele tempo as regiões do Jordão, João Batista, destinado a abrir caminho ao reino do Cristo e remover os obstáculos que embargassem a marcha do Evangelho. Um dos empecilhos era a vida escandalosa de Herodes. Resolveu, pois, o intrépido arauto de Deus desobstruir a passagem. Dirigiu-se ao palácio de Herodes e disse-lhe: – Não te é permitido possuir a mulher de teu irmão. De modo análogo se apresentara, outrora, o profeta Natan ao rei Davi, homicida e adúltero; e Davi reconhecera o seu crime. Não assim Herodes. Estimava o profeta às margens do Jordão. Instigado, porém, por Herodias e receando o prestígio de que o Batista gozava entre o povo, mandou prendê-lo e lançá-lo no cárcere. A fim de evitar uma insurreição popular por este ato de violência, fez transportar o importuno vingador da moralidade pública para o castelo de Maqueronte, à margem oriental do Mar Morto.
“Água viva” Achava-se Jesus na Peréia, quando lhe chegou a notícia da prisão do Precursor. Retirou-se então para a Galiléia, porque não era chegada ainda a sua hora, e não convinha acirrar com a sua presença os ódios dos seus inimigos. *** Atingia o sol o zênite, quando Jesus descia das montanhas da Judéia e, transpondo as fronteiras da Samaria, passou pelos vargedos de Siquém. Era um lugar histórico, esse. Aí levantara Abraão um altar a Yahweh; aí se achava o túmulo de José do Egito; aí residira o patriarca Jacó, abrindo o célebre poço que lhe perpetuava o nome. À beira deste poço sentou-se Jesus, exausto da longa jornada e coberto de pó. Os discípulos dirigiram-se à cidade próxima de Sicar, a fim de comprar mantimentos. Jesus deixou-se ficar sozinho à beira do poço de Jacó, sentado sobre o largo bocal. Parecia esperar alguém... Não tardou a aparecer uma mulher samaritana, com um jarro ao ombro. Viu o homem sentado; pelo trajo, devia ser um rabi judeu. A recém-chegada não lhe prestou atenção. Aproximou-se do poço para tirar água; depois, voltaria para a cidade e continuaria na sua vida de sempre. Eis senão quando o desconhecido lhe dirige a palavra, pedindo-lhe um gole d’água. A samaritana estranha o pedido; é a primeira vez que um judeu lhe pede um favor; pois os “ortodoxos” da Judéia não se davam com os “hereges” da Samaria; ne sequer os cumprimentavam, para não se “contaminarem”... – Como é que tu, um judeu, me pedes de beber, a mim, que sou samaritana? – pergunta ela, admirada. – Conhecerás tu o dom de Deus – replica Jesus, pausada e solenemente – e aquele que te pede: dá-me de beber, pedir-lhe-ias que te desse água?
Aludia Jesus às águas vivas da sua doutrina. – Senhor, não tens com que tirar, e o poço é fundo. De onde, pois, tirar essa água? Acaso és tu maior que nosso pai Jacó, que nos deu este poço? Prosseguiu Jesus a falar nas águas vivas com que vinha dessedentar a humanidade: – Todo aquele que bebe desta água tornará a ter sede; mas quem beber da água que eu lhe darei não terá mais sede eternamente. A água que eu lhe darei se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna. A samaritana, cada vez mais interessada, pede: – Senhor, dá-me dessa água, para que nunca mais tenha sede, nem mais precise vir cá tirar água. Inesperadamente, mas com determinada intenção, dá Jesus outra direção à conversa, dizendo à mulher: – Vai chamar teu marido. – Não tenho marido – responde ela. Com essa ordem, de chamar seu marido, reata Jesus, secretamente, o colóquio sobre a água viva que apaga a sede para sempre: a samaritana havia bebido das águas de amores profanos com seus cinco maridos e mais um amante, e quanto mais bebia mais sede tinha. – É verdade – replicou Jesus – quando dizes que não tens marido; cinco maridos tiveste, e o homem que tens agora nem é teu marido. Sumamente espantada, exclama a mulher: – Senhor, vejo que tu és um profeta! E logo desvia a conversa de um ponto tão ingrato para ela, e entra em terrenos de controvérsia religiosa, dizendo: – Nossos pais adoravam Deus neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar. Então, lhe dá Jesus um gole da água viva, dizendo enfaticamente: – Acredita-me, senhora; chegará a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis a Deus; mas chegará a hora, e já chegou, em que o adorareis em espírito e em verdade. São estes os adoradores que o Pai procura; Deus é espírito, e em espírito e verdade o devem adorar os que o adoram.
Tão abundante foi este gole de “água viva” que a samaritana bebeu, que ela exclamou: – Será que virá o Messias que é chamado o Ungido, e ele nos anunciará toda a verdade?... Respondeu-lhe explicitamente Jesus: – Sou eu mesmo, que te estou falando. Então a mulher abandonou o seu cântaro e foi correr toda a cidade, clamando: – Vinde e vede um homem que me disse tudo o que tenho feito. Não será ele o Cristo? Vieram muitos da cidade e foram ter com Jesus. Voltaram então os discípulos com mantimentos que tinham trazido da cidade, e insistiram com o Mestre que comesse. Ele, porém, respondeu: – Eu tenho um manjar, que vós não conheceis. E acrescentou: – O meu manjar é cumprir a vontade do Pai, que me enviou. Muitos samaritanos tiveram fé em Jesus e disseram à mulher: – Não é por causa das tuas palavras, mas porque nós mesmos o ouvimos e sabemos que este é o salvador do mundo.
O filho do funcionário Após uma permanência de dois dias em Sicar da Samaria, partiu Jesus rumo ao norte, em demanda da Galiléia. Dirigiu-se primeiramente a Caná, onde, no ano precedente, convertera água em vinho. Eis senão quando se lhe apresenta um funcionário real de Cafarnaum, provavelmente empregado de Herodes. Tinha em casa um filho gravemente enfermo. Desenganado pelos médicos, recorreu ao taumaturgo de Nazaré, que acabava de regressar à Galiléia. Chegou-se, pois, a Jesus e pediu-lhe que fosse a Cafarnaum salvar-lhe o filho. O Mestre replicou ao oficial em tom de censura: – Vós, quando não vedes milagres, não tendes fé. O homem, porém, não atendeu a essa repreensão. Continuou a insistir no mesmo pedido, como se nada percebera: – Vem, Senhor, antes que meu filho morra. Resolveu então Jesus, antes de dar saúde ao corpo do filho, curar a alma enferma do pai; exigiu-lhe uma prova real de fé, ordenando categoricamente: – Vai, que teu filho vive! O pai creu incondicionalmente nas palavras de Jesus, embora não lhe compreendesse o como; e regressou para casa, ansioso por ver o filho. Ao aproximar-se da casa correram-lhe ao encontro os criados com a alviçareira notícia de que seu filho estava de perfeita saúde. – A que hora começou a melhorar? – inquiriu, estupefato o pai. – Ontem, por volta de uma hora da tarde, a febre o deixou – responderam-lhe. Reconheceu o funcionário que era a mesma hora em que Jesus lhe dissera: “Vai, que teu filho vive”.
Jesus em Nazaré Num dia de sábado, entrou Jesus na sinagoga de Nazaré. Encheu-se o recinto. Subiu ao estrado dos mestres de Israel, enquanto um criado lhe entregava um rolo do profeta Isaías. Desdobrou, a esmo, o rolo sagrado e deu com as palavras seguintes: “Repousa sobre mim o espírito do Senhor; ungiu-me para anunciar a boa nova aos pobres; enviou-me para curar os corações contritos, para libertar os cativos, restituir aos cegos a luz dos olhos, proclamar aos oprimidos a redenção, apregoar o ano salutar do Senhor e o dia da retribuição” (Is 61,1ss). Enrolou o rolo, entregou-o ao criado, sentou-se e começou a discorrer sobre a passagem dizendo: – Hoje se cumpriu esta profecia que acabais de ouvir. E fez ver que era em sua própria pessoa que se realizara o vaticínio de Isaías. E tamanha era a sabedoria dos conceitos, tal a graça e a unção das suas palavras, que muitos dos ouvintes o aplaudiram, ufanos de contarem entre os seus conterrâneos um personagem tão inteligente e simpático. Outros, pelo contrário, tomados de inveja se sentiam eclipsados pelos fulgores do seu espírito. E diziam: “Não é esse o filho do carpinteiro José? Não conhecemos nós a Maria, sua mãe? A Tiago, José, Judas e Simão, seus irmãos?” Não ignorava Jesus a animosidade que contra ele nutriam muitos dos seus conterrâneos. Pelo que passou a instituir um exame de consciência dizendo: – Decerto, me direis: Médico, cura-te a ti mesmo; faze também aqui os milagres que, como ouvimos, fizeste em Cafarnaum. Quer dizer: Se és, de fato, o profeta de que fala Isaías, prova-o com os milagres a que ele alude; faze aqui o que fizeste alhures. Passou então Jesus a ilustrar o estado religioso dos seus conterrâneos, comparando-o com o dos israelitas nos tempos de Elias e de Eliseu, períodos
de decadência espiritual, quando os gentios prestavam mais ouvidos à palavra de Deus do que o povo escolhido: – Muitas viúvas havia em Israel, no tempo do profeta Elias – disse ele –, quando o céu estava cerrado por três anos e seis meses, e reinava grande fome em todo o país; mas a nenhuma delas foi enviado Elias, senão à viúva de Sarepta, forasteira, no país de Sidon. Os ouvintes estavam a par dos fatos; sabiam que Elias, no tempo do ímpio rei Acab e da rainha Jezabel, tivera de fugir para o deserto, onde era sustentado por um corvo. Depois, o enviara Deus à casa de uma viúva pagã em Sarepta, para que ela alimentasse o profeta. Dera, assim, preferência a uma mulher gentia às filhas de Israel, em vista da corrupção do povo eleito. Os nazarenos compreenderam a lição. Em toda a parte, até entre os pagãos ou semipagãos da Samaria, e nas regiões gentias de Tiro e Sidon, encontrara Jesus fé suficiente para semear os seus milagres – menos em Nazaré. Ouviram-se murmúrios, aqui e acolá, e protestos a meia voz. Jesus, porém, prosseguiu tranquilo e calmo: – Da mesma forma, eram muitos os leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu; mas nenhum deles saiu curado, senão somente Naaman, o sírio. Estas palavras caíram como brasas nos corações dos nazarenos! Queriam um Messias-taumaturgo, mas não um Messias-juiz que insistisse numa emenda da vida. Por isso, despeitados, levantaram grande celeuma na sinagoga, apoderaramse de Jesus, arrastaram-no fora e, colocando-o à beira de um despenhadeiro próximo, tentaram precipitá-lo. Jesus deixou-se levar sem resistência. De repente, voltou-se para os seus inimigos, fitou neles um olhar – e todos recuaram, como que fulminados pelo raio. Enquanto se quedavam estupefatos, ante o misterioso fulgor daqueles olhos, passou Jesus, silencioso e sério, pela turba e regressou para Nazaré. Talvez se tenha tornado invisível. Aí tinham os nazarenos o seu “milagre”...
Expulsão de um demônio Achava-se Jesus na sinagoga de Cafarnaum, falando ao povo. No meio do sermão e do silêncio geral, eis que, de súbito, rompe um grito estridente do seio da multidão! – Fora! Que temos nós contigo, Jesus de Nazaré... Vieste para nos perder?... Sei quem és: o Santo de Deus! É a primeira vez, durante a sua vida pública, que Jesus se vê face a face com esse mundo estranho em manifestação sensível. Consternação geral na sinagoga! É sempre terrífica a ingerência subitânea do mundo desconhecido no âmbito da esfera material da vida humana. Ordenou Jesus ao demônio: – Cala-te! E, instantaneamente, o espírito emudeceu como um cão reduzido ao silêncio pelo dono. Em seguida, ordenou ao espírito: – Sai deste homem! A esta ordem categórica, o misterioso alguém agitou violentamente a pobre vítima, atirou-a ao meio da sala e, dando um grito estridente, saiu do homem sem lhe fazer mal. Cheia de assombro se quedava a multidão, à vista de tão estupendo poder. Não desconheciam o poder sinistro dos demônios, mas ignoravam que o humilde Nazareno fosse mais poderoso que aqueles. *** Repetidas vezes, menciona o Evangelho que Jesus expulsou demônios de homens possessos. Em face da confusão geral, passamos a explanar o seguinte: 1. Demônio não é o diabo, também chamado Satanás (adversário).
Demônios são entidades da natureza, de corpo invisível, cuja evolução consciente é inferior à dos homens, e são por isto chamados habitantes dos “ínferos”, isto é, um nível inferior dos homens. Se os homens estão no nível mental, os demônios estão no mundo elemental. 2. Os demônios não são almas de seres humanos. Sendo o diabo, ou Satanás, uma criação do livre-arbítrio, Deus não expulsa do homem algo que ele (homem) criou pelo abuso do seu livre-arbítrio, que é sempre respeitado por Deus; somente o próprio homem pode expulsar o diabo que ele mesmo criou. Neste sentido, Jesus chama Pedro Satanás, revelando logo o que ele entende por Satanás: “o teu modo de pensar não é de Deus, mas do homem”, porque Pedro protestara à idéia da morte voluntária de Jesus. Mas não expulsou de seu discípulo esse Satanás; o próprio Pedro o expulsou, quando se converteu. Judas é chamado diabo (diábolos, palavra grega para adversário), e o Evangelista explica por que Judas é chamado diabo. 3. Sendo os demônios entidades de uma evolução infra-hominal, sentem eles a necessidade de se apoderarem das energias vitais do corpo humano, sobretudo do fosfato do cérebro, obsessionando assim certos homens. Os demônios não obsessionam o corpo humano por maldade moral, mas por motivos biológicos, nem prejudicam o homem, moral ou espiritualmente, mas apenas fisicamente. São uma espécie de vampiros do mundo infra-hominaI. 4. Nem uma única vez refere o Evangelho que Jesus tenha expulsado um diabo. Diabo, ou Satanás, é uma mentalidade criada por um ser mental (humano ou sobre-humano). 5. Os demônios são entidades objetivas e não apenas males subjetivos; do contrário, os demônios não poderiam sair do homem e apoderar-se de uma manada de porcos como refere o Evangelho. 6. Nunca nenhum dos demônios mencionados no Evangelho mostra ódio ou hostilidade a Deus ou às coisas espirituais; todos revelam grande respeito e admiração a Jesus, chamando-o “Filho de Deus”, ou “Santo de Deus”, “Filho do Altíssimo”, mas todos têm medo de Jesus e se sentem mal na presença dele – assim como um morcego ou uma coruja se sentem mal em plena luz solar. Sendo que o corpo de Jesus estava sempre envolto numa vibração ou aura de alta frequência, os demônios, de nível baixo, se sentem atormentados e bradam: “Que temos nós contigo?” ou “Vieste atormentar-nos antes do tempo?” “Não nos mandes para o abismo.”
7. Paulo de Tarso, na epístola aos Filipenses, diz que, em nome de Jesus, se dobram todos os joelhos, dos celestes, dos terrestres e dos infraterrestres (ínferos). O Credo Apostólico, que é do 2º século, diz: “Jesus foi crucificado, morto e sepultado e desceu aos ínferos”. Ultimamente, para evitar confusão entre inferno e ínferos, esta última palavra do credo foi substituída por “mansão dos mortos”, e assim a emenda saiu pior que o soneto, porque não existe nenhuma mansão dos mortos; as almas dos mortos vivem em algum espaço do Universo. 8. O homem de elevada evolução espiritual não corre perigo de ser obsessionado pelos demônios, que são do mundo elemental, de baixa evolução.
Cura da sogra de Pedro Saindo da sinagoga de Cafarnaum, entrou Jesus na casa de Simão Pedro, cuja sogra se achava de cama com febre. Dirigiu-se à casa da doente. Pedro introduziu-o no quarto da velhinha. O visitante tomou amigavelmente entre as suas mãos a mão da febricitante, e ordenou à febre que abandonasse aquele corpo – no mesmo instante voltou a saúde ao organismo desfalecido. E logo a recém-curada se levantou e começou a servir Jesus e seus discípulos.
A pesca abundante Continuava Jesus a residir em Cafarnaum. Frequentemente, porém, deixava o tumulto da cidade e percorria as planícies e as montanhas circunvizinhas, disseminando por toda a parte a boa nova da redenção. Às vezes também embarcava numa das canoas de pesca atracadas à praia, e passava para a banda oriental do lago de Genesaré. Desempenha esse lago um papel mui saliente na vida pública de Jesus. A sua forma é de um gracioso oval, ou de um cacho de uvas pendente, como alguém julga ter descoberto. Os filhos de Israel comparavam-nos a um kinnor, a uma harpa. As margens orientais têm a forma de um arco, caindo em barrancos abruptos e rudes escarpas. O litoral oposto desdobra-se numa sucessão de golfos, enseadas e praias sinuosas. Grande número de colinas e coxilhas de mediana altura, ora avançam até ao espelho das águas, ora recuam para o interior, formando pequenos promontórios, entre cujas fraldas se abrigam três planícies, cada qual mais bela e fecunda. A que fica no meio chama-se Genesar e deu o nome ao lago. Sobre a margem ocidental se erguiam, naquele tempo, quatro cidades de maior importância, a saber: Cafarnaum, Betsaida, Mágdala e Tiberíades. Betsaida, torrão natal de Tiago e João, como ainda de alguns outros discípulos, teve, provavelmente, a honra de ser o cenário do acontecimento seguinte. Pedro, Tiago e João tinham tarrafeado a noite toda, sem resultado. Estavam cansados do labor insano e numa disposição deprimente. Nisto aparece Jesus à beira do lago. Chegado à praia, viu-se apertado pelas turbas, que porfiavam vê-lo e ouvi-lo. E o Mestre, sempre fértil em expedientes práticos, embarca prontamente numa das canoas ou lanchas, que pertenciam a Simão Pedro. Acabara o velho pescador de voltar do labor noturno infrutífero e estava ocupado em lavar as redes, em companhia dos dois filhos de Zebedeu. Pediu-lhe Jesus que afastasse um pouco da margem a barca. Com prazer acedeu o discípulo ao pedido do Mestre e, enquanto a grande massa dos ouvintes se conservava em pé, na praia ou sentada nos rochedos e
anfractos dos barrancos e ribanceiras, começou o Mestre a doutriná-los de dentro da barca. Púlpito original, não menos prático que poético era esse galhardo batel a flutuar airosamente sobre as azuladas ondas do Genesaré, ao sopro fagueiro das auras matutinas! Lá na outra banda, o globo solar vinha emergindo gradualmente das brumas do horizonte, desenhando movediça coluna de fogo na superfície do lago. Propôs Jesus, talvez nesta ocasião, as parábolas do joio entre o trigo, da rede de pescar, e diversas outras. “O reino dos céus é semelhante a...” Assim costumava ele principiar cada uma das suas palestras. Falava, às vezes, uma, duas, três horas; mas ninguém se aborrecia, ninguém se cansava, ninguém se movia do lugar. Simão Pedro, sentado na popa da embarcação, com uma mão na barra do leme, escutava, absorto, aquelas doutrinas, comentando em silêncio, lá consigo mesmo, as palavras do Mestre. “O reino dos céus é semelhante a uma rede de pescador”... Lá no fundo da canoa jazia a velha tarrafa de Pedro, velha, mas ainda boa, depois de consertada. “É semelhante a uma rede que apanha toda sorte de peixes”... Menos mal, se assim fora... Toda sorte de peixes?... Que trabalho insano o da última noite!... E nada de peixe... Nem uma escama sequer!... De súbito, veio-lhe à mente o convite do Senhor e aquela palavra misteriosa: Daqui por diante o teu nome será Pedro... Estranho! Este nome encerrava algum mistério... Sim, era tão bom seguir a Jesus, trabalhar e sofrer com ele e ele... Segui-lo – para onde?... E a família?... E a casa?... E os negócios? Abandonar tudo isso?... E quem tomaria conta?... E, depois, percorrer aquelas terras todas, dia e noite, noite e dia, a evangelizar o povo, ele, o pescador Simão, filho de Jonas? Fazer-se de rabi, de mestre?... Explanar a lei e os profetas?... Interpretar as Escrituras?... E a capacidade para tanto? As parábolas que Jesus propunha ao povo eram belas e consoladoras; mas saberia ele, o pescador ignorante, falar assim ao povo?... E quem lhe daria forças para levar tão árdua missão até o fim da vida?...
Nisto rematou Jesus a sua alocução ao povo. Agradeceu a amabilidade do dono da barca e disse-lhe: – Faze-te ao largo. Pedro empunhou o remo e, com movimentos enérgicos, se fez de voga. Estava no seu elemento. Seguiram-no, em suas embarcações, Tiago e João, mais alguns outros. Depois de se verem a boa distância do litoral, disse Jesus a Simão Pedro e seus companheiros: – Lançai as vossas redes. – Senhor – replicou Pedro –, temos trabalhado a noite toda, sem nada apanhar. Na qualidade de velho pescador, traquejado na lida, sabia ele perfeitamente que aquela hora matutina era imprópria para a pescaria. Entretanto, para atender ao desejo do Mestre, acrescentou: – Contudo, sob tua palavra, lançarei a rede. Assim fez. Seguiram-se momentos de suspensão geral, de silenciosa expectativa. Não se ouvia senão o característico chape-chape das pequenas ondas a beijarem os flancos do bote. De repente, fortes sacudidelas na extremidade da rede. Pedro recolheu a tarrafa, cautelosamente, vagarosamente, com o coração aos saltos – e eis que ela vinha tão cheia, que o feliz pescador se viu obrigado a invocar o auxílio dos companheiros para evitar se rompessem as malhas da rede. Acudiram alvoroçados os filhos de Zebedeu e encheram os botes com a palpitante riqueza. Indescritível foi o assombro dos discípulos; nunca em dias de sua vida Ihes sucedera coisa igual. De relance, compreendeu Simão Pedro que este prodígio era a resposta às suas dúvidas e hesitações de havia pouco; compreendeu que tudo podia quando assistido por aquele que com a vocação ao apostolado dava também as forças necessárias para desempenhá-lo devidamente. Aterrado ante a majestade de Deus, e como que aniquilado em face da sua própria pequenez, prostrou-se Pedro aos pés de Jesus, balbuciando: – Retira-te de mim, Senhor, que sou um pecador!...
Jesus, porém, respondeu:
tomando-o
pela
mão, erguendo-o
amigavelmente,
lhe
– Não temas, Pedro: daqui por diante serás pescador de homens. O pescador da Galiléia adivinhou vagamente o sentido destas palavras, e sentiu a alma penetrada de uma coragem sobre-humana. Sem demora, abandonou tudo e foi em seguimento do Mestre. O mesmo fizeram Tiago e João.
Cura de um leproso Percorria Jesus as cidades e aldeias em derredor de Cafarnaum, anunciando a todos a boa nova do reino de Deus e curando os enfermos. Betsaida, torrão natal de Pedro, Tiago e João; Corozain, cidade tão opulenta quão impenitente; Mágdala, Caná, Naim, Nazaré, Tiberíades, cidade riquíssima e sede do rei Herodes – todas elas ouviram a palavra do Mestre. Certo dia, aproximava-se o Mestre de uma destas cidades quando subitamente veio correndo um homem coberto de lepra e lançou-lhe aos pés, exclamando: – Senhor! Se quiseres, podes tornar-me limpo. Estendeu Jesus a mão, tocou o enfermo e disse: – Eu quero: sê limpo. E no mesmo instante desapareceu a lepra. Era do número dessas ruínas humanas o desditoso israelita de que nos fala o Evangelho. A sua moléstia achava-se numa fase bem adiantada; pois estava “coberto de lepra” da cabeça aos pés. Ouvira, certamente, dos milagres do Nazareno por intermédio de algum companheiro de infortúnio que se lhe associara nos últimos tempos. A extrema miséria o impeliu a postergar a lei da separação; afoitamente se aproximou de Jesus, única esperança no seu desespero. Era grande a fé que tinha no poder do taumaturgo de Nazaré; “se quiseres podes tornar-me limpo”, diz ele; basta um simples ato da tua vontade; não tens necessidade de pedir a Deus que te conceda esse poder, como fez Moisés, quando queria curar sua irmã Myriam; tu és mais poderoso que todos os profetas. Será que o leproso reconhecia a divindade do Cristo? “Eu quero: sê limpo”, replicou Jesus, servindo-se das mesmas palavras da confiante súplica. Não recorre a outrem, não invoca poderes superiores, nem pede o concurso de seres misteriosos; não se diz possesso nem “atuado” dos mesmos; basta-lhe um simples: “eu quero!” proferido com a mais serena tranquilidade. Jesus lhe dá esta ordem:
– Não o digas a ninguém; mas vai mostrar-te ao sacerdote e oferece por tua purificação o sacrifício prescrito por Moisés, para que lhes sirva de testemunho. Consistia esta oferta num par de avezinhas e um cordeiro. Uma das aves era imolada em sacrifício, a outra, aspergida com o sangue da primeira, e posta em liberdade. Jesus insistiu na observância destas cerimônias para que os sacerdotes de Israel não tivessem motivo justo para o acoimarem de transgressor da lei; ao mesmo tempo lhes dava ensejo de verificarem com seus próprios olhos a realidade da cura e crerem na missão divina de seu autor. “Apesar disto, divulgou-se cada vez mais a notícia do fato”, porque o felizardo não cabia em si de contente e, impelido pelo sentimento de gratidão, foi espalhar por toda a redondeza a notícia do favor que acabava de receber das mãos do Nazareno. “Afluíram então grandes massas de povo para ouvirem a Jesus e serem curadas das suas enfermidades. Jesus, porém, retirou-se a um lugar deserto para orar.”
O paralítico de corpo e alma Certo dia, estava Jesus a ensinar numa casa em Cafarnaum. Desta feita, porém, não estavam aí a escutá-Io apenas só os bons galileus, senão também numerosos fariseus e doutores da lei, que tinham vindo de Jerusalém e de outras cidades, enviados pelo Sinédrio, a fim de observarem a conduta e criticarem as palavras do profeta de Nazaré. “Mas o poder do Senhor lá estava para curá-los.” Eis senão quando, no meio da pregação, se desenrola aos olhos de todos um espetáculo singular! Vem descendo lentamente do teto um leito suspenso em quatro cordas, e nesse leito jaz um paralítico. Foi geral a estupefação. Que sucedera? Enquanto Jesus ensinava no interior da casa, quatro homens tinham vindo com um paralítico numa padiola. Procuraram introduzi-lo na casa e colocá-lo aos pés do Mestre; mas não conseguiram romper caminho através da multidão compacta que se apinhava nas portas e janelas e enchia até a escada e o terreiro da casa. Recorreram então a um expediente original; subiram por uma escada exterior ao terraço do edifício, retiraram umas peças móveis e arriaram o enfermo rentinho aos pés de Jesus. Pois faziam consigo mesmos este cálculo; basta que o Nazareno veja o estado lamentável deste homem, para não deixá-lo sem recurso. E não se enganaram. À vista da fé que os animava, disse Jesus ao paralítico: – Tem confiança, meu filho! Teus pecados te são perdoados. Inesperadas caíram estas palavras no meio do povo em expectativa. Todos eles, galileus e judeus, esperavam algum prodígio, uma cura milagrosa – e eis que, em vez disto, Jesus fala em perdoar pecados! A petição do paralítico era: “livra-me do mal” e Jesus entende que é: “perdoame as minhas maldades”! Mas o olhar do Mestre enxergava não somente a moléstia corporal, via também a paralisia espiritual daquela alma. Resolveu, pois, curar-lhe primeiro a alma e depois o corpo.
Os escribas e fariseus, porém, quando ouviram as palavras: “os teus pecados te são perdoados”, escandalizaram-se e pensaram lá consigo: “Que está a dizer esse homem? Blasfema! Pois quem pode perdoar pecados senão Deus somente?”... Jesus, porém, conhecendo os pensamentos dos seus adversários, observoulhes tranquilamente: – Que estais aí a pensar mal em vossos corações?... Que é mais fácil dizer a este homem: “os teus pecados te são perdoados” ou “levanta-te, toma o teu leito e vai para casa”? Silêncio geral... Os fariseus viam-se em face de uma dessas perguntas a que era perigoso responder, como sabiam por experiência; não desconheciam a terrível dialética do Nazareno; mais de uma vez os tinha ele confundido com uma simples contra-pergunta, e eles não estavam com vontade de passar vergonha aos olhos dos pescadores da Galiléia. Por isso se conservaram calados, aguardando o resto da cena. Ergueu-se Jesus e cravou os olhos nos seus contraditores, dizendo: – Ora, haveis de ver que o Filho do Homem tem o poder de perdoar pecados sobre a terra. E disse ao paralítico: – Eu te ordeno, levanta-te! Toma o teu leito e vai para casa. Levantou-se o paralítico de um salto e, à vista de todos, carregou com o seu leito e foi para casa, glorificando a Deus em altas vozes. Pasmadas e estupefatas se entreolhavam as turbas e bendiziam a Deus, que tal poder concedera aos homens. Compreenderam que Jesus era algum enviado de Deus, munido de poderes sobre-humanos. Dissolveu-se com isto a reunião em casa de Pedro. Lá fora, porém, cercaram o homem que fora paralítico, fitando-o da cabeça aos pés, mal acreditando nos seus olhos. E, regressando para casa, comentavam o acontecimento, dizendo: – Vimos hoje coisas maravilhosas!... Os judeus de Jerusalém ainda lá se deixaram ficar, diante da casa, empenhados em calorosa discussão. Também eles tinham visto coisa maravilhosa, mau grado seu. Tinham visto um homem que, no entender deles,
se arrogava o poder divino de perdoar pecados; declararam-no blasfemo e réu de morte; ele, porém, lhes provou que de fato dispunha de virtudes divinas, curando instantaneamente um paralítico. O perdão dos pecados é um processo interior, invisível. Para convencer os fariseus da cura moral daquela alma, achou Jesus necessário realizar a cura física do corpo. Destarte, em vez de prender no laço preparado a Jesus, nele se prenderam os fariseus. Apanhou nas malhas da sua lógica a orgulhosa descrença dos seus inimigos. “O poder do Senhor lá estava para curá-los”...
Vocação e banquete de Levi Retirou-se Jesus da casa de Simão Pedro, em Cafarnaum, onde acabava de curar a alma e o corpo do paralítico, e encaminhou-se para a praia do lago. Daí seguiu, provavelmente, rumo ao norte até a estrada real que de Damasco levava a Accon, ao litoral do Mar Mediterrâneo. Era a grande estrada das caravanas do Oriente, a principal artéria comercial da Galiléia. À beira de Cafarnaum, topou com um posto aduaneiro, como os havia diversos nessa cidade fronteiriça. Os romanos, senhores da terra, fiscalizavam a importação e exportação de mercadorias, e tinham por toda a parte suas alfândegas. Eram em grande parte Judeus os funcionários subalternos das aduanas palestinenses. Publicum chamavam os romanos o tributo reclamado pelo governo do império, e publicanos eram os exatores encarregados de cobrar o imposto. Formavam os publicanos uma classe à parte, intermediária entre os patrícios e os plebeus. Encontravam-se entre eles pessoas de elevada posição social, como também outras de condição inferior, sem excetuar os próprios escravos; muitos deles, indivíduos gananciosos, cometiam clamorosas arbitrariedades e extorsões. Aos olhos dos judeus, passava o publicano por um traidor da pátria, pelo fato de colaborar com a dominação estrangeira e recordar a perda da independência nacional. O israelita ortodoxo evitava qualquer contato com esses “pecadores”. Entretanto, não faltavam entre os publicanos almas de escol, bem melhores que a fama da sua classe, por sinal que muitos deles aderiram a Jesus. Um destes era Levi, filho de Alfeu; levava o sobrenome Mateus, pelo qual o apresentam os demais evangelistas. Já ouvira, certamente, da doutrina de Jesus de Nazaré; não tivera ainda ensejo para travar relações pessoais com ele. Soou então para o publicano a hora da graça. Nesse mesmo dia em que Jesus deixava Cafarnaum, estava Levi sentado à mesa da repartição a contar o seu rico dinheiro e passar recibos aos negociantes, todo engolfado nos seus cálculos interesseiros – quando, de improviso, vê diante de si Jesus...
De relance, compreendeu o publicano o sentido daquele olhar silencioso do Nazareno. – Segue-me! – disse o Mestre. Levantou-se Levi e seguiu a Jesus... O que sucedeu a Levi, experimentaram-no, mais tarde, Saulo às portas de Damasco, Maria Madalena e outros. Diz o evangelista que Levi ofereceu a Jesus e seus discípulos um banquete em sua casa. Os publicanos atenderam prontamente ao convite de Levi e compareceram ao festim em grande número... Serviam-se esses banquetes, geralmente, na varanda da casa. Durante a refeição, passaram pelo caminho alguns dos fariseus e, vendo Jesus no meio daquela gente, escandalizaram-se, menearam a cabeça e deram largas aos seus sentimentos de despeito: – Esse homem senta-se à mesa em companhia de publicanos e pecadores, e come com eles. – E esse homem, ainda por cima, tem a pretensão de se arvorar em profeta e mestre de Israel... Ouviu Jesus as murmurações dos fariseus, e replicou-lhes tranquilamente: – Não necessitam de médico os que estão com saúde, mas, sim, os doentes. Será que os fariseus estavam com saúde?
O esposo e os convivas Ainda estava Jesus à mesa do banquete oferecido por Levi, e com ele os seus discípulos e numerosos publicanos. Acabava de reduzir ao silêncio os fariseus, fazendo-lhes ver que eram precisamente esses publicanos que mais necessitavam da presença do médico espiritual. Rebatidos esses murmuradores, logo se apresentaram outros. Reuniram-se então os discípulos de João e os dos fariseus, acercaram-se de Jesus e lhe disseram: – Por que é que os discípulos de João, bem como os dos fariseus, jejuam frequentemente e fazem muitas orações, ao passo que os teus comem e bebem? Replicou-lhes prontamente Jesus: – Quereis, porventura, obrigar ao jejum os amigos do esposo enquanto o esposo está com eles? Dias virão em que lhes será tirado o esposo, e então também eles hão de jejuar. Os anos que Jesus passa, visivelmente, com os homens são como que um banquete nupcial; não convém obrigar os convivas a jejuar. É melhor que se alegrem com o esposo, que recolham forças, alegria e entusiasmo para que, mais tarde, no meio das perseguições, não desanimem e desfaleçam. Por vezes, assume a poesia de Jesus cores pitorescas. Recorre a comparações tão vulgares, que nenhum poeta humano teria ousado invocar, com medo de passar por corriqueiro e trivial. Disse Jesus aos fariseus descontentes: – Ninguém põe remendo de pano novo em roupa velha; senão, o remendo arranca parte da roupa e fica maior o rasgão. Ninguém deita vinho novo em odres velhos; do contrário, o vinho novo rompe os odres, vaza o vinho e perdem-se os odres; não, o vinho novo deita-se em odres novos; assim se conservam um e outro. Nenhum homem habituado a beber vinho velho deseja logo beber vinho novo, porque diz: “O velho é melhor”. Com que mestria sabe Jesus propor a sua doutrina!
Recorre a coisas de cada dia para ilustrar uma verdade tão sublime como esta. Queria dizer aos murmuradores que não procurassem encerrar a boa nova do Evangelho nas normas antigas, que eles, os fariseus e os discípulos de João Batista, seguiam. Terminara a estreiteza do Antigo Testamento, e principiava a largueza da Nova Aliança. Os meus discípulos, diz ele, são roupa nova, vinho recente; ao passo que vós sois roupa velha, odres usados e meio rotos. Continuai, muito embora, a trilhar o vosso caminho e a vossa rotina, mas deixai também que os meus discípulos sigam o caminho que eu lhes tracei. Agora vos desagradam estes usos e costumes, como o vinho novo não apraz ao paladar afeito ao vinho velho. Mas virá o tempo em que este vinho novo do Evangelho será mais suave e eficaz do que todas as vossas cerimônias e tradições. O meu Evangelho é a religião da liberdade dos filhos de Deus, e não dos escravos da lei; o que vale é o espírito interior, e não os ritos externos; desde que os meus discípulos se achem compenetrados do meu espírito, não tardará esta alma a formar o corpo das praxes correspondentes; os ramos, as folhas, flores e frutos, todas as práticas do culto externo nascerão espontaneamente do princípio vital do culto interno que eu ensino aos meus. No dia de Pentecostes, e mais tarde, se manifestou, em todo o esplendor, a verdade destas palavras. Com esta parábola, tão singela, deu Jesus por terminada a discussão com o pedantismo rotineiro dos murmuradores, que se retiraram, silenciosos e confusos, em face da superioridade do rabi da Galiléia.
O doente de 38 anos Aproximava-se a festa da Páscoa judaica. Era, pois, em princípios da primavera, abril ou maio, do ano 32. Resolveu Jesus deixar a Galiléia e dirigir-se a Jerusalém, para tomar parte nas solenidades litúrgicas. Existia, então, na capital de Israel, o célebre “tanque das ovelhas”, que em hebraico se chamava Betsaida (ou Betesda), que quer dizer: casa da graça. Destinava-se essa piscina, provavelmente, à lavagem das ovelhas e dos cordeiros que iam ser imolados nos sacrifícios rituais. Hoje se eleva neste mesmo ponto a igreja de Sant’Ana. O “tanque das ovelhas” tinha a sua história. Estendia-se em derredor dele uma espécie de galeria, que tinha cinco pórticos, sempre repletos de doentes de todo gênero: cegos, surdos, mudos, coxos, aleijados, paralíticos, etc. Aguardavam eles o movimento das águas para se atirar à piscina. É que, de tempos em tempos, descia ao tanque um anjo do Senhor, provavelmente em forma invisível, e agitava a água; e quem primeiro descesse à piscina era curado, fosse qual fosse o seu mal. Corriam, pois, os ruidosos dias da Páscoa. Enquanto os outros riam e folgavam, continuavam os pobres enfermos a sofrer, a gemer à beira do “tanque das ovelhas”, esperando, esperando sempre... Não conheciam Páscoa... Quase ninguém prestava atenção a essas ruínas humanas. Achava-se entre aqueles numerosos enfermos um mais digno de compaixão. Havia 38 anos que esse homem estava doente, completamente paralisado; e só Deus sabe quanto tempo jazia aí à beira da piscina de Betsaida, sem conseguir reaver o uso normal dos membros; pois não podia mover-se sem o auxílio de outrem. Foi a este mais pobre dos pobres que Jesus tomou por alvo da sua caridade. Nem esperou que o infeliz lhe fizesse um pedido, mas perguntou-lhe espontaneamente: – Queres ser curado?
– Senhor – respondeu ele com tristeza –, não tenho homem algum que me desça ao tanque, quando se agita a água e, enquanto procuro descer, desce outro antes de mim. Disse-lhe Jesus: – Levanta-te, toma o teu leito e anda! No mesmo instante, sentiu-se o paralítico penetrado de força nova; levantou-se de um salto e – estava curado. Agarrou o seu pobre catre e pôs-se a andar. Jesus, porém, desaparecera no meio da multidão, de maneira que o felizardo nem teve ocasião de lhe agradecer. Deitou a correr pelas ruas da cidade como uma criança, com a sua esteira às costas, pulando e saltitando de satisfação, pela primeira vez depois de 38 anos de paralisia. Era a Páscoa judaica, aniversário da independência de Israel, nosso 7 de setembro. As ruas de Jerusalém fervilhavam de povo. De repente, a uma esquina, o recém-curado topou com um grupo de fariseus. Interpelaram bruscamente o recém-curado e lançaram-lhe em rosto o seu procedimento contrário à lei: – É sábado; não te é permitido carregar o teu leito. O homem curado respondeu com a lógica e o bom senso natural do povo: – Aquele homem que me restituiu a saúde ordenou-me que levasse o meu leito – como se dissesse: Se esse homem tem o poder de me curar, há de também ter o direito de permitir que eu carregue o meu catre em dia de sábado. Perguntaram-lhe os fariseus quem era o tal homem que se arrogava semelhantes direitos. Mas o interpelado não soube dar resposta; ignorava o nome de seu benfeitor; a cura fora obra de poucos momentos. Deixou os fariseus e entrou no templo para agradecer a Deus a recuperação da saúde. Eis senão quando se enfrenta com Jesus! Fitando-o atentamente, disse-lhe o Mestre: – Olha, não tornes a pecar, para que não te suceda coisa pior.
Imediatamente, foi o homem ter com os fariseus e contou-lhes que o seu benfeitor era Jesus de Nazaré. Com estas notícias, assanhou-se mais ainda o furor dos adversários. Quem não respeitava o sábado não podia ser de Deus – diziam entre si; logo, os milagres do Nazareno só podiam ser portentos de Satanás. Cegos que eram! A lei de Moisés proibia que, em dia de sábado se transportassem fardos com intenção de lucro; mas não era o caso em questão.
Cristo menor e igual ao Pai “Por esta razão perseguiam os judeus a Jesus” – isto é, pelo fato de ter curado em dia de sábado aquele doente de 38 anos, e de lhe ter ordenado carregar o seu leito, nesse mesmo dia. E que lhes responde Jesus? Bem pudera replicar-lhes que o seu procedimento não implicava em nenhuma violação do sábado, porquanto a lei de Moisés não proibia as obras de caridade, nem vedava o que fosse razoável e necessário. Mas o que os fariseus chamavam “observar sábado” era uma congérie de preceitos e tradições humanas, entremeadas de superstições e meticulosidades, que não ligavam à consciência de nenhuma pessoa sensata. Desta vez, porém, Jesus remonta às mais excelsas culminâncias da metafísica, que nem em 2.000 anos de cristianismo foram atingidas e compreendidas. Faz ver que “ele e o Pai são um; que o Pai está nele e ele está no Pai, mas que o Pai é maior do que ele”. Fez ver que ele é Deus, mas não é a Divindade que ele chama Pai. Deus, para ele, é uma emanação individual da Divindade Universal, mas não é a própria Divindade. Paulo de Tarso compreendeu isto quando escreveu que o Cristo é o “primogênito de todas as creaturas”, logo é creatura. Há quase vinte séculos que a cristandade se agita em controvérsias sobre a questão se o Cristo é Deus ou não, confundindo Deus com Divindade. Jesus faz ver aos seus adversários que ele, como a mais alta emanação individual (Deus) da Divindade não é escravo, mas Senhor do sábado, e não tem de obedecer a leis humanas. Em todo esse diálogo com seus ouvintes, afirma Jesus que o seu Cristo é Deus, mas que o Pai, que é a Divindade, é maior do que ele, o Cristo, a primeira e mais alta emanação individual da Divindade Universal. Entretanto, como os ouvintes não sabiam distinguir entre Deus e Divindade (Pai), compreendem mal as palavras de Jesus. Ele, porém, continua a afirmar que está na Divindade e a Divindade está nele, embora a Divindade seja maior do que ele. Acrescenta que a Divindade também está em todos os homens, e todos os homens estão na Divindade; por isto, todo homem é Deus, uma
emanação individual da Divindade, embora nenhum homem seja a própria Divindade Universal. Para ilustrar esta verdade, poderíamos fazer o seguinte paralelo. Um raio solar pode dizer: Eu e o Sol somos um; o Sol está em mim, e eu estou no Sol – mas o Sol é maior do que eu. Esta imanência de Deus nas creaturas é chamada “panenteísmo” (tudo em Deus), que não é “panteísmo” (tudo é Deus). A Divindade é a única Essência, que está imanente em todas as Existências. A Divindade é o Infinito, no qual estão todos os finitos, e o Infinito é imanente em qualquer finito, assim como a Essência única está em todas as Existências múltiplas.
Através das searas Acabava Jesus de regressar para a Galiléia, e retomou a sua vida no meio daquele povo simples e bem-intencionado, percorrendo as aldeias e os campos, para anunciar a todos a boa nova. Mas nem ali o deixaram os fariseus em paz; cercaram-no de uma teia de espiões e polícia secreta. Principalmente em dia de sábado, observavam cada um dos seus atos, analisavam-lhe cada uma das palavras, a ver se não transgredia alguma das suas tradições arbitrárias. Jesus observava a alma da lei mosaica. Aproximava-se o tempo da colheita. Nas vastas planícies da Galiléia, lourejavam ricas searas, ondulando ao sopro cálido das brisas estivais. A Galiléia era chamada, e com razão, o “celeiro da Palestina”. Certo dia, atravessava Jesus os trigais em companhia de seus discípulos. Era meio-dia passado, e nem o Mestre nem os discípulos haviam tido tempo e ocasião para tomar alimento: fora tanto o trabalho, desde a madrugada até aquela hora. Os apóstolos, porém, começaram a sentir cada vez mais o vácuo estomacal e, quando atravessavam um trigal, cujas espigas se dobravam sobre o estreito trilho que cortava o campo, aproveitaram o ensejo e arrancaram uns punhados de espigas, esfregando-as entre as mãos para lhes tirar a casca, e comendo os grãozinhos crus. Mas nem este pouco lhes concedia a miopia farisaica. – Por que fazeis o que não é permitido fazer em dia de sábado? – verberam logo os intolerantes, que, por acaso ou de indústria, seguiam o mesmo caminho. Não acusaram os discípulos de ladrões, porque a lei permitia que se colhessem as espigas que se dobrassem sobre o caminho, mas aquilo era evidentemente trabalho servil e, portanto, uma violação do descanso sabatino. Mas, antes que os apóstolos tivessem tempo para justificar o seu procedimento, acudiu Jesus e tomou a defesa de seus amigos.
– Nunca lestes – disse, argumentando com a lei de Moisés – o que fez Davi quando estavam com fome, ele e seus companheiros? Como entraram na casa de Deus, no templo do sumo sacerdote Abiatar, e comeram dos pães da proposição, tanto ele como seus companheiros, quando só aos sacerdotes era permitido comê-los? Calaram-se os fariseus. Não esperavam, decerto, por uma resposta tão pronta e irretorquível. Prosseguiu Jesus: – E não lestes que os próprios sacerdotes trabalham no templo, em dia de sábado, sem violar o sábado? Depois acrescentou, carregando nas palavras: – Ora, digo-vos eu que aqui está quem é mais que o sábado! Começaram então os fariseus a discorrer entre si sobre a santidade do sábado e o castigo ameaçado aos seus profanadores. Jesus, porém, lhes replicou: – O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado. Oxalá compreendêsseis o que quer dizer: Misericórdia é que eu quero, e não sacrifícios; então não haveríeis de condenar a inocentes. O Filho do homem é Senhor também do sábado. E com isto seguiu caminho em companhia de seus discípulos, deixando os fariseus com farta matéria para um profundo exame de consciência.
O homem com a mão atrofiada Era em outro sábado. Achava-se Jesus na sinagoga a ensinar. Eis senão quando, aparece à sua frente, no meio do recinto sagrado, um “homem que tinha uma das mãos atrofiada e seca”. Os fariseus, que, provavelmente, tinham chamado esse homem, lá estavam a observar Jesus para ver se curava o aleijado; pois, segundo a moral estreita deles, até um milagre e uma obra de caridade implicavam numa profanação do sábado. Jesus viu o homem com a mão atrofiada, mas, a princípio, não lhe deu atenção. Então lho apresentaram os fariseus e perguntaram sem mais rodeios: – É lícito curar em dia de sábado? Jesus, porém, conhecendo-lhes a hipocrisia e os intuitos perversos, não lhes respondeu, mas disse ao aleijado: – Vem cá e coloca-te no meio. O homem colocou-se no meio da sala, à vista de todos. Então disse Jesus aos seus ouvintes: – Também eu vos quero fazer uma pergunta: é lícito fazer bem ou mal em dia de sábado? Salvar uma vida ou deixá-la perecer? Silêncio em toda a linha. Ninguém se atreveu a responder. Prosseguiu Jesus: – Quem de vós, possuindo uma única ovelha, que lhe cai no fosso, em dia de sábado, não lançará logo mão e a puxará para fora? Ora, quanto mais vale um homem que uma ovelha! Logo, é permitido praticar o bem em dia de sábado. Em seguida, fitando com olhar inquisidor a cada um dos seus adversários que estavam à roda, disse ao homem com a mão atrofiada: – Estende a mão!
Estendeu-a – e ei-la sã como a outra! Os fariseus, porém, se encheram de cólera e, conspirando com os herodianos, procuraram oportunidade para matar Jesus.
O Sermão da Montanha O momento é solene. Dispõe-se o Mestre a proferir o maior e mais característico discurso da sua vida; o Sermão da Montanha é o Evangelho resumido, ou, antes, a alma do Evangelho, o mais autêntico compêndio da nova doutrina, a essência mesma do Cristianismo. O auditório compunha-se de representantes de diversos países e de todas as classes sociais; tinham afluído para assistir à promulgação da quintessência da nova aliança. Aureolado dos raios do sol matutino, sentou-se Jesus numa pedra da colina, nas rampas de Kurun Hattin. Ao pé dele, vem agrupar-se o “pequeno rebanho” dos apóstolos recém-eleitos, e os outros discípulos; mais além, pelas fraldas do outeiro, se acomoda a variegada multidão dos ouvintes, israelitas e gentios, ávidos por ouvirem as revelações que iam brotar dos lábios do profeta de Nazaré. “Bem-aventurados os pobres pelo espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os tristes, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sois vós quando vos injuriarem e perseguirem, e caluniosamente disserem de vós todo mal por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque grande é a vossa recompensa nos céus.” ***
Ainda soava pelos rochedos circunvizinhos o eco da palavra “bemaventurados” – quando dos lábios de Jesus rompeu outra palavra: “Ai de vós”! Dirige-se aos infelizes que procuram o céu na terra, à custa da verdade. “Ai de vós, que sois ricos, porque já tendes a vossa consolação! Ai de vós, que estais fartos, porque sofrereis fome! Ai de vós, que agora rides, porque haveis de gemer e chorar! Ai de vós, quando os homens vos louvarem, porque isto mesmo fizeram seus pais aos falsos profetas!...” Depois de se dirigir ao povo em geral, bons ou maus, voltou-se o Mestre para os discípulos agrupados em torno dele. – Vós sois o sal da terra. Mas, se o sal se desvirtuar, com que se lhe há de restituir a virtude? Já não terá préstimo para coisa alguma; é lançado à rua e pisado aos pés pela gente. Quantos e quão verdadeiros pontos de semelhança não poderíamos descobrir entre o sal e o apóstolo. O sal preserva da corrupção física – e o apóstolo é destinado a preservar os homens da corrupção, espiritual. O sal dá sabor às comidas – e o apóstolo deve ser como um tempero espiritual, deve penetrar de condimento sagrado as coisas profanas da terra. O sal tem aparência modesta, despretensiosa, incolor – e também a atividade do apóstolo deve ser silenciosa e modesta, sem aparato nem ostentação. É certo que, naquela mesma noite que se seguiu ao dia das bemaventuranças, Jesus explicou a seus discípulos o sentido mais profundo de cada uma dessas formosas alegorias. Continuou o Mestre a falar aos discípulos eleitos dizendo: – Vós sois a luz do mundo. Não pode ficar oculta uma cidade situada num monte. Nem se acende uma lâmpada para colocá-la debaixo do velador, mas, sim, sobre o candelabro para que alumie a todos os que estão na casa. Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está no céu. Após a ligeira digressão em favor dos seus discípulos – sal da terra e luz do mundo – torna Jesus a dirigir-se aos ouvintes em geral e expõe o corpo do seu discurso. Não veio, diz ele, para abolir a lei antiga, que Deus inspirara a Moisés; mas para levá-la à suprema e última perfeição. O Antigo Testamento era como que o germe da revelação divina – o Novo Testamento é a árvore na plenitude da
sua evolução e beleza; a lei antiga era a aurora – a lei evangélica é a flor em todo o esplendor das suas cores e na doce fragrância dos seus perfumes. – Não penseis que eu vim abolir a lei e os profetas; não, não os vim abolir, mas completar. Pois declaro-vos, em verdade, que antes de passarem o céu e a terra, não se tirará um jota1 nem um ápice da lei, enquanto não chegue tudo à perfeição. Quem, pois, solver um desses mandamentos, embora mínimo, e assim ensinar a gente, passará pelo ínfimo no reino dos céus; mas quem os realizar e assim ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus. Pois asseguro-vos que, se a vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus. 1. O jota é a letra mais pequenina do alfabeto hebraico, não passando de um traço semelhante ao nosso apóstrofe.
Depois destas declarações peremptórias, passa Jesus a traçar um paralelo entre a imperfeição da lei mosaica e a perfeição do Evangelho. Assim como o escultor, depois de desbastar o bloco de mármore, põe de parte o martelo e a talhadeira, e lança mão do cinzel, do buril e do esmeril, a fim de dar à obra a última perfeição e imprimir-lhe a feição característica do seu ideal – assim veio também o divino artista rematar a obra de Deus principiada no paraíso terrestre e continuada, através de séculos e milênios, até a plenitude dos tempos. Traçado este paralelo geral entre as duas leis, antiga e nova, principia Jesus a descer aos pormenores, evidenciando a superioridade do Evangelho sobre o código de Israel. *** “Tendes ouvido o que foi dito aos antigos: Não matarás! e: Quem matar será réu em juízo. Eu, porém, vos digo que todo aquele que se irar contra seu irmão será réu em juízo; e quem chamar a seu irmão ‘perverso’ será réu diante do conselho; e quem apelidar a seu irmão de ‘desgraçado’, será réu do fogo do inferno.” O Juízo era em Israel o tribunal que julgava as ofensas leves; o Conselho, ou Sinédrio, ocupava-se dos crimes de maior vulto; e o inferno é o sofrimento infligido pela má consciência do pecador. Prossegue Jesus, tirando as conclusões das premissas acima: – Se, portanto, estiveres ante o altar para apresentar a tua oferenda, e te lembrares que teu irmão tem queixa contra ti, deixa a tua oferenda ao pé do altar e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e depois vem oferecer o teu sacrifício.
Não hesites em fazer as pazes com teu adversário, enquanto estás em caminho com ele, para que não vá entregar-te ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial da justiça, e sejas lançado ao cárcere. Em verdade te digo que daí não sairás, enquanto não houveres pago o último centavo. “Ouviste o que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério! Eu, porém, vos digo que todo homem que lançar olhar cobiçoso a uma mulher, já em seu coração cometeu adultério com ela. Se o teu olho direito te for ocasião de pecado, arranca-o e lança-o de ti; porque melhor te é perecer um dos teus órgãos do que ser todo o teu corpo lançado ao inferno. E, se a tua mão direita te for ocasião de pecado, corta-a e lança-a de ti; porque melhor te é perecer um dos teus membros do que ir todo o teu corpo para o inferno. Ainda foi dito: Quem repudiar sua mulher passa-lhe carta de divórcio. Eu, porém, vos digo que todo homem que repudiar sua mulher – salvo em caso de adultério – a faz adulterar; e quem casar com a repudiada comete adultério.” *** “Ouviste o que foi dito aos antigos: Não jurarás falso! e: Cumprirás o que juraste ao Senhor! Eu, porém, vos digo que não jureis de forma alguma; nem pelo céu, porque é o trono de Deus; nem pela terra, porque é o escabelo dos teus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande rei; nem jurarás por tua cabeça, porque não és capaz de tornar branco nem preto um só cabelinho. Seja o vosso modo de falar um simples sim, um simples não; o que passa daí vem do mal.” *** “Tendes ouvido o que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo que não vos oponhais ao malévolo, mas antes, quando alguém te ferir na face direita, apresenta-lhe também a outra. Se alguém quiser pleitear contigo em juízo para tirar-te a túnica, cede-lhe também o manto. Se alguém te obrigar a acompanhá-lo por mil passos, vai com ele dois mil. Dá a quem te pede, nem voltes as costas a quem deseja que emprestes qualquer coisa.” *** “Tendes ouvido o que foi dito: Amarás a teu próximo e terás ódio a teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam, para que sejais filhos de vosso Pai
celeste, ele, que faz nascer seu sol sobre bons e maus e faz chover sobre justos e injustos. Pois, se amardes tão somente aos que vos amam, que prêmio mereceis? Não fazem isto também os coletores? E, se saudardes apenas vossos amigos, que fazeis nisto de especial? Porventura, não fazem isto também os gentios? Vós, porém, sede perfeitos, assim como é perfeito vosso Pai celeste.” *** “Cuidado que não pratiqueis as vossas boas obras diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles! Do contrário, não tereis merecimento aos olhos do vosso Pai celeste. Quando deres esmola, não te ponhas a fazer grande alarde, a exemplo do que fazem os hipócritas nas ruas, para serem elogiados pela gente. Em verdade vos digo que receberam a sua recompensa. Quando, pois, deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita, para que tua esmola fique às ocultas; e teu Pai, que vê o que é oculto, te há de recompensar.” *** “Quando orardes, não procedais como os hipócritas, que gostam de se exibir nas sinagogas e nas esquinas das ruas, fazendo oração a fim de serem vistos pela gente. Tu, porém, quando orares, entra no teu interior, e ora a teu Pai às ocultas; e teu Pai, que vê o que é oculto, te há de recompensar. Nem faleis muito quando orais, como fazem os gentios, que cuidam ser atendidos por causa do muito palavreado. Não os imiteis; porque vosso Pai sabe o que haveis mister, antes mesmo de lho pedirdes. Assim é que haveis de orar: Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha a nós o teu reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia nos dá hoje, perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores; e não nos deixes cair na tentação; mas livra-nos do mal. Amém. Se vós perdoardes aos homens as faltas deles, também vosso Pai celeste vos perdoará vossos débitos. Se, pelo contrário, vós não perdoardes aos homens, nem tampouco vosso Pai vos perdoará as vossas faltas.” *** “Quando jejuardes não andeis tristonhos, como os hipócritas, que desfiguram o rosto para fazer ver à gente que estão jejuando. Em verdade vos digo que receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando jejuares, unge a cabeça e lava o rosto, para que a gente não veja que estás jejuando, mas somente teu
Pai, presente ao oculto; e teu Pai, que vê o que é oculto, te há de recompensar.” *** “Não acumuleis para vós tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem os destroem, onde os ladrões penetram, os desenterram e os roubam. Acumulai para vós tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os destroem, onde os ladrões não penetram nem os desenterram, nem os roubam. Pois onde está o teu tesouro aí está também o teu coração. Teu olho é a luz do teu corpo; se o teu olho for simples, estará em luz todo o teu corpo. Se, porém, o teu olho for mau, estará em trevas todo o teu corpo. E se tua luz se tornar em trevas, quão grande serão essas trevas! Ninguém pode servir a dois senhores; ou aborrecerá a um e amará a outro; ou respeitará a este e desprezará aquele. Não podeis servir a Deus e às riquezas.” *** “Não julgueis, e não sereis julgados. Pois do mesmo modo que julgardes assim sereis julgados; e com a medida com que medirdes medir-vos-ão a vós. Por que vês o argueiro no olho de teu irmão, ao passo que não enxergas a trave em teu próprio olho? Ou, como podes dizer a teu irmão: Deixa-me tirar-te do olho o argueiro, quando tens uma trave no teu olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e depois verás como tirar o argueiro do olho do teu irmão. Não deis as coisas santas aos cães, nem lanceis as vossas pérolas aos porcos, para que não lhes metam as patas e, voltando-se, vos dilacerem.” *** “Dai, e dar-se-vos-á; derramar-vos-ão no seio uma boa medida, cheia, recalcada e acogulada; porque, com a mesma medida com que medirdes, medir-vos-ão.” *** "Pedi, e recebereis; procurai, e achareis; batei e abrir-se-vos-á. Pois todo o que pede recebe; quem procura acha; e a quem bate abrir-se-lhe-á. Haverá entre vós quem dê a seu filho uma pedra, quando esse lhe pede pão? Ou quem lhe dê uma serpente, quando lhe pede peixe? Ou um escorpião, quando lhe pede ovo? Se, pois, vós, apesar de maus, sabeis dar coisas boas a quem vos pede, quanto mais vosso Pai que está nos céus dará coisa boa a quem lha pedir! Tudo o que quereis que os homens vos façam fazei-o também a eles; pois é nisto que consistem a lei e os profetas.
Entrai pela porta estreita; pois larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição – e são muitos os que o trilham. Quão apertada é a porta e quão estreito o caminho que conduz à vida! – E são poucos os que acertam com ele. Cuidado com os falsos profetas que se vos apresentam em pele de ovelha, mas por dentro são lobos roubadores! Pelos seus frutos é que os conheceis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros? Ou figos dos abrolhos? Assim, toda árvore boa dá frutos bons, toda árvore má dá frutos maus. Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má pode produzir frutos bons. Toda árvore que não produzir frutos bons será cortada e lançada ao fogo. Pelos seus frutos, pois, é que os conhecereis.” *** Depois destas luminosas exposições sobre o espírito do seu Evangelho, levantou-se o Mestre. O povo estava arrebatado pela beleza e sublimidade da sua doutrina. Entreolhavam-se, estupefatos, e diziam: – Nunca ninguém falou como este homem! Era geral a admiração. Então fez Jesus sinal com a mão e numa peroração magistral concitou as turbas a não somente admirarem a sua doutrina, mas a traduzi-la na vida real e prática. – Por que me dizeis: Senhor! Senhor! e não fazeis o que vos digo? Nem todo aquele que me disser: Senhor! Senhor! entrará no reino dos céus; mas quem fizer a vontade de meu Pai celeste, esse, sim, entrará no reino dos céus. Muitos virão naquele dia dizer-me: Senhor! Senhor! porventura não profetizamos em teu nome e fizemos tantos milagres e expulsamos demônios em teu nome? Eu, porém, lhes direi: Não vos conheci jamais; apartai-vos de mim, malfeitores! Depois disto, revestiu o Mestre de uma maravilhosa alegoria o seu pensamento, dizendo: – Mostrar-vos-ei com quem se parece aquele que vem a mim, ouve as minhas palavras e as realiza. Parece-se com um homem sensato que edificou a sua casa sobre a rocha. Desabaram aguaceiros, transbordaram os rios, sopraram os vendavais, dando de rijo contra aquela casa, mas ela não caiu, porque estava construída sobre rocha. Quem, pelo contrário, ouve estas minhas palavras, mas não as realiza, parecese com um homem insensato que edificou a sua casa sobre a areia.
Desabaram aguaceiros, transbordaram os rios, sopraram os vendavais, dando de rijo contra aquela casa; e ela caiu, e foi grande a sua queda.
O centurião de Cafarnaum Terminado o seu grande sermão, desceu Jesus das alturas de Kurun Hattin, passou silencioso pelas multidões impressionadas – qual Moisés a descer o Sinai com a fronte aureolada de estranhos fulgores – e, a largos passos, fez-se rumo a Cafarnaum. Na guarnição romana desta cidade, encontrava-se um pobre escravo doente, prestes a morrer. O centurião era gentio, mas homem de sentimentos humanitários e muito afeiçoado à nação judaica. Partiram, pois, os emissários do comandante. Mas, em vez de solicitarem simplesmente a cura, rogaram a Jesus que fosse pessoalmente à casa do oficial romano, porque era homem de bem, amigo de Israel e benemérito da religião deles, por sinal que lhes edificara uma sinagoga a expensas próprias. Quando, um ano antes, se apresentou o funcionário real de Cafarnaum, Jesus não o acompanhou. Desta vez, porém, tratava-se de um pobre escravo; por isso o Mestre pôs-se logo a caminho dizendo aos embaixadores: – Eu mesmo irei e vou curá-lo. Quando Jesus já não vinha longe da guarnição romana, inteirou-se o centurião do fato, e sensibilizado com tamanha bondade, mandou-lhe dizer por meio de uns amigos: – Não te incomodes, Senhor, pois eu não sou digno que entres sob o meu teto. Por esta razão também não me julguei digno de vir à tua presença; mas fala ao Verbo, e meu servo será curado. Pois também eu, embora sujeito a outrem, tenho soldados às minhas ordens; e digo a um: vai acolá! e ele vai; e a outro: vem cá! e ele vem; e a meu criado: faze isto! e ele o faz. Ouvindo Jesus estas palavras, admirou-se e, voltando-se para os que o seguiam, disse: – Em verdade vos digo que não encontrei tão grande fé em Israel! Asseguro-vos que virão muitos do Oriente e do Ocidente (isto é, dos povos gentios) e tomarão lugar no reino de Deus com Abraão, Isaac e Jacó.
Depois, voltando-se para o centurião, disse: – Vai-te, e faça-se contigo conforme a tua fé. E na mesma hora o servo ficou curado. E, de volta para casa, os mensageiros encontraram com saúde o servo que estivera doente. *** A tradução geral das palavras do centurião romano é: “dize uma palavra”; mas tanto o texto grego como o latino permitem a nossa versão acima “fala ao Verbo” (dic Verbo), entendendo-se por Verbo o Cristo, como no Evangelho de João: “no princípio era o Verbo”. O centurião não acha necessidade que o Jesus humano vá fisicamente ver o doente; basta dirigir-se ao seu Verbo ou Cristo, a qualquer distância, e o doente será curado. Esta tradução é justificada em face da grande estupefação de Jesus: “não encontrei tão grande fé, nem em Israel”, como na alma desse pagão. Teria Jesus chamado “grande fé” se o centurião apenas falasse de uma “palavra” proferida por Jesus? O texto, grego e latino, diz “ao Verbo”, “à palavra”, e não “o Verbo”, “a palavra”, referindo-se, nos dativos, a uma pessoa viva, e não a uma vibração aérea inerte.
O jovem de Naim A essa grandiosa manifestação do poder divino do taumaturgo, seguiu-se uma cena tocante, em que o compassivo amigo dos aflitos revela toda a ternura do seu coração de homem, de pai, de consolador. Deixando Cafarnaum, tomou Jesus para sudoeste, fraldejando o Tabor, em demanda da planície de Esdrelon, até chegar a uma cidadezinha, por nome Naim, aninhada ao sopé do pequeno Hermon. Naim quer dizer “formosa” ou “risonha”. E bem cabia este nome àquela povoação da Galiléia. Mas, à hora em que Jesus chegou às portas de Naim, não era nada risonho o aspecto da cidade; pintou-se-lhe aos olhos um quadro doloroso; corriam muitas lágrimas, e ouviam-se magoados ais, que brotavam dos lábios de uma viúva desolada... É que levavam ao cemitério o cadáver de um jovem, filho único dessa senhora. Era numeroso o préstito fúnebre, porque se tratava de uma família distinta na cidade. Muitos uniam o seu pranto ao da pobre viúva. Nisto aparece Jesus com os seus discípulos – inesperado encontro entre a Vida e a Morte! Que acontecerá? Jesus, sempre sereno e calmo, dá ordem aos carregadores para depositarem no chão o féretro. Estava o corpo do defunto envolvido em faixas, e o rosto coberto com uma toalha; neste estado repousava o cadáver, de costas, sobre o féretro. Não se usava esquife. Um grupo de carpideiras acompanhava o cortejo, tangendo flautas e soluçando elegias, conforme o costume da época. Jesus estendeu a mão – e fez-se um grande silêncio. – Não chores – disse ele à mãe. Tocou com a mão no féretro, e disse alto: – Moço, eu te ordeno: levanta-te! Reviveu instantaneamente o defunto, sentou-se e correu os olhos em derredor. Jesus tomou-o pela mão e restitui-o à sua mãe.
“Todos se encheram de terror”, refere o evangelista. É que toda a intervenção de um poder estranho na esfera das coisas naturais faz estremecer o homem como um terremoto. E todos diziam: – Um grande profeta surgiu no meio de nós, e Deus visitou o seu povo.
A embaixada de João Batista Enquanto tudo isto se passava à luz da publicidade e todo o povo aplaudia o grande profeta de Nazaré, jazia o precursor do Messias na tétrica penumbra de uma cadeia subterrânea do castelo de Maqueronte, às margens do Mar Morto. Entretanto, não ficava sem notícias de Jesus. Herodes estimava a João Batista e permitia que os seus discípulos o visitassem no cárcere. Destarte, continuava ele a ser uma “voz a clamar no deserto” – deserto lúgubre da sua prisão; e continuava a “preparar os caminhos do Senhor” – ainda que para ele já não houvesse outro caminho senão o trilho estreito que desemboca na morte. A sua escola não se extinguiria com a extinção da sua liberdade – tamanha era a força do seu espírito. Depois de Jesus, era aquela solitária masmorra de Maqueronte o principal foco e centro da vida cristã nessa época. Uma só coisa contristava a alma do silencioso herói; eram os ciúmes e as rivalidades de alguns dos seus discípulos, que não acabavam de compreender que João era apenas o “engenheiro de Deus”, o arauto enviado para preparar os caminhos do Messias. “É necessário que Jesus cresça – e que eu desapareça!”, dissera ele, e nestas palavras vai todo o heroísmo do austero missionário às margens do Jordão. Repetidas vezes, encontramos os discípulos de João em conflito com os apóstolos de Jesus e até com o próprio Messias. Certa vez, perguntaram, descontentes, por que é que os discípulos do Nazareno não jejuavam como eles, os discípulos do Batista. Em outra ocasião referem ao mestre, muito contrariados: Eis aquele homem de quem deste testemunho às margens do Jordão – ei-lo a batizar! e todo o mundo vai atrás dele! Por mais que João lhes explicasse que assim é que devia ser, e que Jesus era, de fato, o Messias prometido na lei antiga, boa parte dos seus discípulos não tinha ainda chegado a convencer-se desta verdade; nem podia abandonar o “amigo do esposo”, a fim de seguir o próprio “esposo”, como tinham feito André e João Evangelista, antigos discípulos do mesmo Precursor.
Numa destas ocasiões, quando os discípulos de João vieram visitar o mestre no cárcere, e novamente discutiam estas idéias, resolveu o prisioneiro lançar mão de um expediente que acabasse de vez com todas as dúvidas e discussões. Chamou a si dois dos seus discípulos e mandou-os a Jesus para lhe fazerem esta pergunta: “És tu aquele que devia vir, ou devemos esperar por outro?” “Aquele que devia vir” era na língua do povo o nome do Messias, profetizado havia séculos como o salvador vindouro. Partiram, pois, os emissários e foram apresentar-se a Jesus, dizendo: – João Batista envia-nos à tua presença para perguntarmos se tu és aquele que devia vir, ou se devemos esperar outro. Jesus sabia perfeitamente que a dúvida não era do Precursor, que já no ano anterior fizera solene a pública profissão de fé, dizendo: “Eis aí o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” Nessa mesma ocasião, estava Jesus evangelizando as turbas, curando enfermos e expulsando espíritos malignos. Quando, pois, o interpelaram, respondeu-lhes: – Ide e contai a João o que vistes e ouvistes: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é pregado o Evangelho. É ditoso o homem que não se escandalizar de mim. Resposta magistral! Era precisamente isto que João queria que seus discípulos vissem e ouvissem. Era o mesmo que dizer-lhes: Ide e dizei ao vosso mestre que estou cumprindo o que o profeta Isaías predisse do Cristo, como não ignorais, a saber: “Naquele tempo, se hão de iluminar os olhos dos cegos, serão abertos os ouvidos dos surdos, o coxo saltará como um veado, soltar-seá a língua do mudo, e aos pobres será anunciado o Evangelho”.
Jesus elogia o Precursor Assim que se foram os discípulos de João Batista, entrou Jesus a tecer um panegírico do seu precursor. Realçou-lhe a firmeza do caráter e a austeridade de vida. Remontando ao tempo em que o silencioso eremita vivia na solidão do deserto, perguntou Jesus aos seus ouvintes: – Que saístes a ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? Do meio do auditório partiram negativas. Bem se lembrava o povo da intrepidez com que o vingador da moralidade pública lançara em rosto ao real libertino da Galiléia: “Não te é licito possuíres a mulher de teu irmão!” E sabiam todos que por causa desta corajosa franqueza jazia em ferros. O caráter de João era rijo como os cedros do Líbano, e não frágil como os canaviais do Jordão. Prosseguiu Jesus: – Que saístes, pois, a ver? Um homem em roupas delicadas? Novas vozes no auditório; risadas talvez; porque o pêlo hirsuto de camelo que o cobria não merecia, certamente, o nome de “roupa delicada”. Continuou Jesus, dizendo: – Com efeito, os que vestem roupas delicadas e vivem com luxo se encontram nos palácios dos reis. O “luxo” do Batista eram gafanhotos e mel silvestre, e o seu “palácio real” era o deserto inóspito da Judéia... – Que saístes, pois, a ver? – Um profeta! – exclamou alguém. – Um profeta? – respondeu Jesus. – Sim, digo-vos eu, e mais que profeta! Este é de quem está escrito: Eis que envio a preceder-te o meu arauto, a fim de preparar o meu caminho diante de ti. Declaro-vos que entre os filhos de mulher não há maior do que João Batista.
Caprichos pueris Ainda estava Jesus a falar de João Batista, quando viu entre os seus ouvintes diversos fariseus e doutores da lei, que trocavam olhares significativos, escarnecendo do Nazareno e da sua doutrina; porque, afinal de contas, os mestres de Israel eram eles, ao passo que o rabi da Galiléia não passava de um pobre carpinteiro, que não frequentara nenhuma das escolas em voga. Sabedor dos pensamentos deles, prosseguiu o Senhor: – Com que hei de comparar esta raça de gente? Com que se parecem eles? Parecem-se com crianças sentadas na praça a gritarem umas às outras: A flauta vos temos tocado – e não bailastes! Cânticos tristes tangemos – e não chorastes! Espírito observador, tinha Jesus presenciado muitas vezes os divertimentos da meninada palestinense; às vezes, organizavam, na praça pública, dois partidos e se entretinham com jogos e brinquedos. “Vamos brincar de baile”, propunham uns. “Não!”, replicavam outros, “é mais bonito brincar de enterro!” Mas, como nunca faltam crianças teimosas e cabeçudas, não chegavam a um acordo. Cada uma seguia as suas veleidades pessoais, cada uma achava insuperáveis os seus próprios caprichos. E por isso umas se queixavam das outras. É com tais crianças que o Mestre compara os seus adversários, descontentes com a austeridade do Precursor, e insatisfeitos com a vida normal do Nazareno. – Veio João Batista, que não comia nem bebia – e dissestes: Está possesso do demônio! Veio o Filho do Homem, que come e bebe – e dizeis: Eis aí um comilão e bebedor de vinho e amigo de publicanos e pescadores! A nós, filhos do século XX, fazem estas palavras lembrar a conhecida história “do velho, do rapaz e do burro”... Não é possível contentar a todos! Nem Jesus o conseguiu, ele, a infinita sabedoria.
Madalena Vivia em Mágdala uma jovem que os evangelistas apresentam como “pecadora possessa de sete demônios”. Hoje em dia, muitos a identificam com Maria de Betânia, irmã de Lázaro e Marta. Mas há entre Mágdala e Betânia uma distância de uns três dias de viagem; Mágdala fica na Galiléia (norte) e Betânia, na Judéia (sul). É mais provável que a famosa pecadora Madalena tenha sido outra Maria. Como Mágdala tinha uma guarnição romana, é possível que Maria se tenha entregue a uns desses garbosos e poderosos dominadores do Império Romano, que abrangia a Europa, a Ásia e a África. Mas, depois de assistir a um dos sermões de Jesus, abandonou a sua vida desregrada e esperava por uma oportunidade para testemunhar a sua gratidão ao Mestre, que a iniciara numa vida nova e feliz. E esse dia chegou. Quando Jesus estava em casa de Simão, Maria entrou silenciosa, sem dizer uma palavra, testemunhou com lágrimas e beijos seu amor e sua gratidão a seu Mestre e Salvador. Ajoelhou-se aos pés de Jesus e, em silêncio, os cobriu com abundantes lágrimas. Era fácil este ato, porque os judeus já haviam adotado o costume romano de reclinar numa espécie de sofá apoiando-se sobre o cotovelo esquerdo, e as mãos voltadas para fora. Nesta posição estava Jesus, quando Maria lhe lavou os pés com suas lágrimas e os beijou. Depois enxugou-lhe os pés com sua formosa cabeleira e os ungiu com uma essência preciosa que trouxera num recipiente de fino alabastro, deitando o resto do perfume sobre a cabeça de Jesus, que permitiu calmamente todas estas homenagens. O doutor da lei estava indignado com aquele hóspede que permitia aquela atitude da parte de uma pecadora conhecida como tal em toda a cidade. *** No meio dessa atmosfera carregada caíram subitamente as palavras serenas de Jesus: – Simão, tenho a dizer-te uma coisa.
O fariseu soltou um suspiro de alívio. Parecia que o Nazareno procurava prescindir da cena ingrata, e ignorar a pecadora ainda prostrada a seus pés. Também para Madalena era um alívio; enquanto Jesus se entretinha com o anfitrião, podia ela como que submergir nas sombras suaves de um caridoso esquecimento; e podia dar livre curso às suas lágrimas, sem se ver transpassada pelos olhos impertinentes dos censores. – Fala, Mestre – respondeu Simão. Começou Jesus a contar uma das suas parábolas, e parábola bem singela. – Certo credor – disse – tinha dois devedores. Um devia-lhe quinhentos denários, e outro cinquenta. Mas, não tendo eles com que pagar, perdoou-lhes a dívida a um e outro. Quem deles lhe terá maior amor? Coisa facílima! Pensou Simão consigo mesmo e, todo prazenteiro, respondeu resolutamente: – Aquele, julgo, a quem mais perdoou. – Julgaste bem – respondeu Jesus. Até aqui a parábola era inofensiva. E Simão não atinava ainda com o porquê da digressão. Menos ainda sabia que proferia sentença contra si mesmo. – Vês esta mulher? Se ele a via!... Era por demais visível, e visível demais tinha sido sempre nas ruas da cidade. Prosseguiu Jesus, em tom pausado e firme, assim como o divino juiz, no fim do mundo, quando ler os atos dos pecadores, do livro da vida eterna. – Entrei em tua casa – disse – e não me deste água para os pés; ela, porém, banhou-me os pés com as suas lágrimas e enxugou-os com seus cabelos. Não me deste o ósculo – ela, porém, não cessou de beijar-me os pés desde que entrou. Não me ungiste a cabeça com óleo – ela, porém, ungiu-me os pés com bálsamo. Por isso te digo que lhe são perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; ao passo que a quem pouco se perdoa pouco ama. Simão cuidou ver a casa desabar-lhe sobre a cabeça! Estava aniquilado!... Ele, que se julgava infinitamente superior àquela “pecadora” – ver-se subitamente nivelado com ela? Colocado até abaixo dela?... Madalena, a impura, é mais pura aos olhos de Jesus do que o puríssimo fariseu!... E por quê? Porque ela possui um grande amor, ao passo que Simão não tem quase amor algum. Verdade é que Madalena cometera pecados maiores que o fariseu; porque era uma jovem de paixões veementes, tinha um coração dotado de uma ilimitada energia afetiva, capaz de descer às tenebrosas profundezas do vício – mas
capaz também de ascender às excelsas culminâncias do amor e do heroísmo. Simão, pelo contrário, não era réu de grandes prevaricações, não por merecimento seu, mas pelo fato de ser uma alma vulgar, sem potencialidade; um homem medíocre, que não conhecia grandes precipícios, nem grandes alturas; era, por assim dizer, terra plana todo ele, ao passo que a alma de Madalena era uma região montanhosa, cheia de altos e baixos, cheia de sombras e de luzes; a vida de Simão era honestamente vulgar e indolentemente serena, era como um rio que se arrasta pesadamente por uma planície arenosa, sem quedas nem cachoeiras, sem riscos nem possibilidades para lances dramáticos – enquanto a vida da jovem de Mágdala se assemelhava a uma torrente caudalosa, que nascia em misteriosas alturas e se lançava, escachoante, monte abaixo, arrasando todos os diques – até se encontrar com o divino engenheiro de Nazaré, o qual, longe de lhe paralisar a irresistível veemência, lhe canalizou as forças vivas, transformando-as em maravilhas de ordem, harmonia e beleza!... Durante todo esse tempo, quedara-se Madalena imóvel, de olhos baixos e lábios trêmulos, a rezar um confiteor sem palavras, a cantar um salmo penitencial constante de lágrimas de contrição. Não podia e não queria retirarse daí, de aos pés do Mestre, sem ouvir dos lábios dele a palavra do perdão. Não conseguiu proferir uma só palavra, porque a dor suprema é muda como os tenebrosos abismos do oceano; o amor supremo é silencioso como os luminosos píncaros das montanhas. Mais eloquente que palavras, falava-lhe o pranto com que regava os pés do Bom Pastor. A alma de Madalena jazia despedaçada aos pés da divina Misericórdia, assim como sobre os tapetes da sala rolava aquele vaso de alabastro, quebrado, e ainda a rescender aromas suavíssimos... Voltou-se Jesus para a penitente e disse-lhe: – Os teus pecados te são perdoados; a tua fé te salvou – vai-te em paz! E entrou a paz naquela alma – a paz da consciência, depois de longos anos de tormentos e de remorsos!... Uma primavera de graça e de inefável felicidade inundou a alma da jovem. Madalena levanta-se e, silenciosa como viera, retira-se da sala do banquete. Nem uma palavra lhe ouvimos; apenas um olhar a Jesus – e desapareceu. Também Jesus se levantou. Por ora, nada mais “tinha que dizer” a Simão...
Jesus aliado de Satanás Dia a dia ia crescendo o prestígio de Jesus, de modo que os sacerdotes, escribas e doutores da lei se viam quase sem adeptos. Certo dia achava-se Jesus em Cafarnaum, talvez em casa de Simão Pedro. Era na hora da refeição. Mas ele não encontrou tempo para tomar um bocado de pão, porque o povo como que invadia a casa onde se achava, para ouvir-lhe a palavra e ver curados os seus doentes. Nisto apareceram à porta alguns dos seus parentes receosos de que acabasse mal aquele alvoroço popular, que não podia deixar de acirrar os ódios dos seus inimigos. Por isso, tentaram levá-lo consigo à força. – Enlouqueceu! – diziam alguns deles, ou porque assim pensassem ou porque tal pretextassem para prendê-lo. – Está possesso do demônio – exclamavam os escribas. – Tem aliança com Beelzebub, príncipe dos demônios!... É por virtude de Beelzebub que ele expele os demônios!... Beelzebub era o nome de uma divindade pagã; os judeus davam esta alcunha ao chefe dos espíritos malignos. A acusação era gravíssima: Jesus fez aliança secreta com o mais poderoso dos inimigos de Deus, a fim de expulsar os próprios demônios. Com calma e serenidade responde Jesus a essa invectiva blasfema, fazendo ver o ilogismo e o contra-senso de semelhante acusação: – Como pode Satanás expulsar Satanás? Um reino desunido em si mesmo não pode subsistir, e uma casa desunida em si mesma não pode ficar de pé. Se, pois, Satanás se rebelasse contra si mesmo, e consigo mesmo estivesse em conflito, como subsistiria o seu reino? Era intuitiva a lógica deste argumento, tão intuitiva e clara que nenhum dos adversários achou o que replicar. Prosseguiu Jesus, mostrando por uma comparação que ele é mais forte que Satanás, tanto assim que expulsava os demônios. Ninguém pode penetrar na casa do poderoso e tirar-lhe os utensílios sem que primeiro prenda o poderoso; só assim lhe pode saquear a casa.
Com esta comparação mostra Jesus que os demônios, entidades do mundo elemental, são armas e utensílios de Satanás, chefe do mundo mental revoltado contra Deus. Não identifica os demônios com diabos, como fazem muitos dos nossos teólogos e cristãos de hoje, mas considera os demônios como armas (panoplia) e utensílios (skene) de Satanás. Como Jesus fez ver em outra ocasião, destruindo as armas e utensílios de Satanás, Jesus enfraquecia o domínio dele.
A mãe e os “irmãos” de Jesus Enquanto Jesus falava a seus inimigos impenitentes, que o acoimavam de aliado de Beelzebub, continuavam a esperar, do lado de fora, os parentes dele, e não conseguiam chegar até onde ele estava, devido ao aperto da multidão. Entrementes, chegara também sua mãe, cheia de solicitude pela sorte do filho. Impossibilitados de romper caminho pela turba, mandaram dizer a Jesus que desejavam falar-lhe. – Quem é minha mãe? E quem são meus irmãos? E, olhando em derredor e estendendo a mão sobre os seus discípulos, disse: – Eis aqui minha mãe e meus irmãos! Pois todo aquele que cumpre a vontade de meu Pai celeste me é irmão, irmã e mãe. Quer Jesus dizer que os vínculos da afinidade espiritual e do amor estabelecem uma união mais íntima com ele do que os laços da carne e do sangue. E, quanto mais perfeito e generoso for o cumprimento da vontade do Pai celeste, tanto mais íntima será a nossa afinidade espiritual com Jesus.
Parábolas de Jesus3 As parábolas formam parte essencial da poesia do divino Mestre. As alegorias e símbolos são como pequeninas centelhas soltas de intensa labareda. As parábolas assemelham-se a outras tantas estrelas, astros que derramam jorros de luz através do universo do Nazareno. 3. No meu livro Sabedoria das Parábolas encontrará o leitor explicações mais completas.
Encontramos no Evangelho diversas categorias de parábolas. Uma classe tem por objeto a natureza e as vicissitudes do reino de Deus neste mundo – são as parábolas do semeador, da sementeira a crescer, da erva daninha entre o trigo, do grão de mostarda, do fermento, do tesouro oculto, da pérola preciosa e da rede de pescar. Outro grupo de parábolas gira em torno da oração e das suas propriedades – são as do fariseu e do publicano, do amigo importuno e do juiz iníquo. Uma terceira categoria ilustra magistralmente a miséria do pecador e as misericórdias do Pai celeste – são as parábolas da ovelha desgarrada, da dracma perdida e do filho pródigo. Um maravilhoso trio de parábolas tem por foco e centro a grande lei do amor – são as do rico gozador e do pobre Lázaro, a do bom samaritano e a dos dois devedores. Os símiles das dez virgens da veste nupcial e dos trabalhadores na vinha focalizam a natureza misteriosa da graça. Temos, finalmente, uma série de parábolas no Evangelho que condenam a impenitência de Israel; estão neste caso as das dez minas, dos vinhateiros perversos, do grande banquete e da figueira estéril.
O semeador Estava a findar o segundo ano da vida pública de Jesus. Expirava o inverno, e a primavera dispunha-se a celebrar a sua entrada nas terras da Palestina. Seria, pois, em março ou abril do ano 32. A vida de Jesus era a de um semeador. Tal era a vida do Nazareno. Desde Jerusalém até Cafarnaum; desde as margens do Jordão até as fraldas do Líbano; ora entre as classes cultas da Judéia, ora entre os pescadores rudes da Galiléia; hoje com os hereges da Samaria, amanhã com os pagãos da Siro-Fenícia – por toda a parte espargia ele a semente dourada do seu Evangelho redentor. Mas os terrenos – ai, quão diversos que eram! E o grãozinho de ótima qualidade, nem em todos os terrenos conseguiu deitar raízes e sazonar frutos. E começou Jesus a descrever a sorte de vicissitudes da palavra que espalhava nos corações dos homens, e que seus discípulos levariam até as mais longínquas plagas do Universo. Numa daquelas formosas manhãs da primavera dirigiu-se ele às margens do Genesaré, não longe de Betsaida. Vinha cercado de grande multidão de povo, ávido de ouvi-lo. Não encontrando lugar mais apropriado, foi conduzi-lo às praias do lago, subiu a uma embarcação, sentou-se e principiou a falar às turbas agrupadas nas sinuosidades do litoral, nas encostas das colinas e dos rochedos que se erguiam ao fundo. – Escutai! – disse o Mestre, fazendo um gesto amplo com a mão. Seguiu-se um grande silêncio. Nada mais se ouvia senão o suave murmúrio das ondas na arenosa praia. Então prosseguiu Jesus: – Eis que saiu um semeador a lançar a semente. E, ao semear, parte caiu à beira do caminho, e foi pisada aos pés, e comeram-na as aves do céu. Outra caiu em solo pedregoso; mas, depois de nascer, foi crestada pelo sol e secou por falta de umidade. Outra ainda caiu ao meio dos espinhos, e os espinhos cresceram à porfia, e sufocaram a semente, e ela não deu fruto. Outra, enfim,
caiu em terra boa, nasceu, cresceu e deu fruto, de trinta, de sessenta e de cem por um. Após breve pausa, exclamou o Mestre: – Quem tem ouvidos para ouvir, ouça! Calou-se, deixando o auditório imerso em cogitações. Cada qual repetia interiormente o que acabava de ouvir e alguns se puseram a procurar com os olhos a figura daquele semeador nos campos circunvizinhos. Quão vária era a sorte das diversas sementinhas. *** Pela tarde, quando Jesus se achava a sós com os seus, aproximaram-se dele alguns dos discípulos e, desejosos de conhecimento mais profundo, pediram ao Mestre que lhes explicasse o sentido da parábola da manhã. Jesus atendeu prontamente ao pedido e disse: – A vós é dado conhecer os mistérios do reino de Deus. Escutai, pois, o sentido da parábola do semeador. A semente simboliza a palavra de Deus. É o Filho do Homem que a lança à terra. Encontra-se à beira do caminho nos que ouvem a palavra do reino; mas logo vem o diabo e lha tira do coração, para que não tenham fé nem salvem. Acha-se em solo pedregoso nos que ouvem a palavra e a recebem com gosto; mas não tem raízes; crêem algum tempo, mas no dia da tentação desfalecem e, quando rompe uma perseguição por causa do Evangelho, logo se escandalizam e desertam. Caiu entre espinhos nos que ouvem a palavra; sobrevêm-lhes, porém, os cuidados mundanos, as riquezas falazes e os prazeres da vida, e sufocam a pregação, deixando-a sem fruto. Caiu em terra boa nos que ouvem a palavra, a guardam em bom e piedoso coração e produzem fruto pela perseverança, de trinta, sessenta e cem por um. *** “Ao campo, em manhã ridente, Dirigiu-se o semeador Caminhando indiferente, Pelos gramados em flor. Do saco que à mão levava Caíam-lhe os grãos à toa, Que ele nunca examinava Se a terra era má, nem boa. Ora em torrão pedregoso, Ora da estrada à beira,
Ora em silvedo espinhoso, Depois em fecunda leira. E seguiu e foi andando Pelos campos que encontrou, Sempre, sempre semeando, Té que o saco esvaziou. Que sucedeu? A semente Que entre pedras foi cair Nasceu, viveu curtamente e secou sem produzir. A que à beira dos caminhos Desamparada ficou Comeram-na os passarinhos, Nem ao menos germinou. Cresceu fraquinha, enfezada, A do meio do espinhal. Mas, das silvas apertada, Veio a morrer, afinal. Só a última, a ditosa, Que em bom terreno caiu, Vingou bela, vigorosa, E frutos bons produziu.”4 4. Amélia Rodrigues.
A sementeira a crescer Acabava Jesus de propor aos seus ouvintes a parábola do semeador, analisando a história exterior, e as mil e uma peripécias do seu Evangelho neste mundo. Faltava um ponto a ilustrar: a história interna dessa sementinha. Para mostrar a força íntima do grão, a misteriosa vitalidade da palavra de Deus, passou ele a falar ao povo e aos discípulos nestes termos: – O reino dos céus é semelhante a uma semente que um homem lança ao campo. Durma ou vigie, quer de noite, quer de dia, a semente germina e vai crescendo sem que ele saiba como; porque a terra por si mesma produz, primeiro o pé, depois as espigas e, por fim, o grão cheio na espiga. E, quando o fruto o permite, lhe mete a foice; porque é chegado o tempo da colheita. Comparação mais verdadeira não podia o divino Mestre encontrar para concretizar a evolução paulatina do reino de Deus. Contemplemos um grãozinho de trigo! Que coisa insignificante que é! Um pouco de substância branca, farinhenta, um germezinho minúsculo, e tudo isto envolto numa película delgada – nada mais! Nada mais?! Nada mais enxerga a vista humana! E venham os sábios do mundo todo, venham todos os lentes das Academias e Universidades, venham com todo o cabedal da sua ciência e com todo o arsenal dos seus instrumentos e aparelhos – não conseguirão descobrir nesse grãozinho outra coisa senão um pouco de farinha, um germe e uma película exterior. Mas será que nestas coisas consiste a essência daquela semente? Não! Isto é apenas o corpo, o esqueleto visível, mas não a alma do grão de trigo. É certo que ele tem uma alma – ou, se preferirem, um princípio vital – mas esse ser misterioso se subtrai a todas as nossas pesquisas e investigações. Pode a Ciência compor um grão de trigo perfeitamente igual ao que a Natureza produz; pode dispor todos os componentes materiais, com número, peso e medida, na mais rigorosa proporção – será sempre um cadáver de semente, e nunca uma sementinha viva e viável; falta-lhe nada menos que o principal: a alma, o princípio vital.
Deite-se a terra uma semente natural – eis que nasce a maravilha esmeraldina de uma planta, encerrando no seio a inexplicável propriedade de se reproduzir a si mesma. Deite-se à terra uma semente artificial – não tardará a apodrecer, sem deixar vestígio de si. Eis o que acontece com o reino de Deus – eis o que sucede com as criações humanas! O reino de Deus possui uma misteriosa força intrínseca, invisível, mas real. O olhar do homem nada disto compreende, porque lhe falta a visão espiritual. Em virtude daquela misteriosa vitalidade, o grãozinho germina, brota, cresce, floresce, frutifica e se reproduz, incessantemente, sem que necessária seja uma nova intervenção da parte do semeador; pois aqui atua uma virtude imanente e quase automática. O mesmo acontece com a semente evangélica, o reino de Deus na Terra: uma vez lançado no seio da humanidade, ele segue a sua marcha através dos séculos, expandindo a sua vitalidade intrínseca por toda a parte onde encontre terreno propício, algum coração humano que lhe ministre as seivas e os elementos necessários para poder germinar, crescer e produzir frutos. Basta que a vontade humana lhe ofereça um terreno favorável. *** O grãozinho que se deita à terra não tem haste, nem folhas, nem flores, nem frutos; mas todas essas maravilhas orgânicas se acham latentes, potencialmente inclusas, nessa sementinha. Brotam-lhe do seio com espontânea e irresistível necessidade. A planta perfeita, com todas as suas partes e os seus órgãos, não é uma falsificação da semente; é, sim, seu desenvolvimento natural. O reino de Deus em nossos dias tem aspecto algo diverso do que existia no tempo dos apóstolos e dos cristãos das catacumbas. Modificou-se, portanto, o Evangelho? Adulterou ele o seu caráter? Falsificou a sua natureza primitiva? Desenvolveu-se apenas, e nada mais. Desentranhou-se em formas visíveis o misterioso princípio vital, que desde o início se achava oculto em seu seio. Que diríamos de um grão de trigo que, depois de lançado à terra, continuasse invariável, sem ostentar uma folha, uma florzinha, uma espiga? Não seria indício de morte ou de enfermidade?
E que idéia formar de uma religião que não evoluísse, sem prejuízo da genuinidade do seu princípio vital? Religião morta, doentia, estagnada! A mensagem do Cristo será sempre a mesma em sua essência e natureza; a sua alma não conhece mudança; mas deve e há de necessariamente expandirse incessantemente até a consumação dos séculos. É esta a vontade do divino Semeador.
Erva daninha no trigal Pela primeira vez, recorre Jesus a sua imagem predileta, comparando o seu Evangelho, neste mundo, a um trigal. Mas por entre o trigal não tardam a introduzir-se outras ervas, que lhe roubam parte das seivas. Fato análogo se dá no reino de Deus, diz Jesus. – Acontece com o reino dos céus o que sucedeu a um homem que semeara boa semente no seu campo: enquanto a gente dormia, veio seu inimigo e semeou joio no meio do trigo, e foi-se embora. Quando, pois, cresceu a sementeira e deitou espigas, apareceu também o joio. Apresentaram-se então os servos do dono da casa e lhe disseram: Senhor, não semeaste, porventura, boa semente no teu campo? De onde lhe vem, pois, o joio? Foi meu inimigo que isto fez – respondeu o dono. Tornaram os servos: Queres que vamos arrancá-lo? Não – replicou ele – para que não aconteça que, arrancando o joio, arranqueis juntamente com ele também o trigo. Deixai crescer um e outro até a colheita, e no tempo da colheita direi aos meus ceifadores: Colhei o joio e ataio em molhos para queimar; o trigo, porém, recolhei-o nos meus celeiros. Melhor do que nós compreenderam os palestinenses o sentido e alcance desta parábola. O joio de que Jesus fala é uma erva daninha muito conhecida no Oriente. Antes de frutificar, se parece a tal ponto com o trigo, que é impossível distinguilo. Só mais tarde, quando espigado, é que se acentuam as diferenças entre as duas plantas; pois, enquanto o trigo produz umas espigas grandes e louras, situadas no ponto mais alto da haste, o joio dá umas espiguinhas miúdas, que assentam nos ângulos das folhas e contêm uns grãozinhos pretos ou cinzentos, que, ingeridos, causam vertigens ou uma espécie de intoxicação. Os semitas lhe chamam zizania; os latinos, lolium, o que deu joio, em nossa língua. Não é raro, no Oriente, vingar-se alguém de seu desafeto semeando-lhe bons punhados de cizânia no meio da lavoura. Nos autos criminais dos tribunais romanos encontramos mais de uma vez mencionado este delito. À noite, foram os discípulos ter com Jesus e lhe disseram: – Mestre, explica-nos esta parábola.
Respondeu-lhes Jesus: – Aquele que semeia a boa semente é o Filho do Homem. O campo é o mundo. A boa semente são os filhos do reino. O joio são os filhos do mal. O inimigo que o semeia é o diabo. A colheita é o fim do mundo. Os ceifadores são os anjos. Pois, assim como se recolhe o joio e se deita ao fogo para queimar, assim acontecerá também no fim do mundo: enviará o Filho do Homem os seus anjos, que recolherão do seu reino todos os escandalosos e todos os que praticam iniquidades, e os lançarão à fornalha de fogo. Ali haverá choro e ranger de dentes. Os justos, porém, brilharão como sóis no reino de seu Pai. *** Todos os homens, bons e maus, têm os mesmos direitos à sua evolução, determinada pela convicção ou livre-arbítrio. Mas nem todos têm o mesmo destino final: os bons entram na vida eterna, ao passo que os maus sucumbem à morte eterna. A morte eterna é a extinção da própria individualidade humana. Mas essa extinção é precedida por um período de grande sofrimento, que é temporário. Segundo as inexoráveis leis cósmicas, quem pode deve e quem pode e deve não faz, cria débito – e todo débito gera sofrimento. Nem a vida eterna nem a morte eterna, ou extinção, são creadas por Deus, mas são creação do próprio livre-arbítrio humano, como vem ilustrada pela parábola dos talentos, onde os dois primeiros servos entraram no gozo de seu Senhor; e o terceiro perdeu a própria individualidade humana. Esse destino final não coincide com os poucos decênios da vida terrestre, mas é o ponto final de todo o ciclo evolutivo da existência humana, que pode levar milhares ou milhões de anos ou séculos. O joio se separa do trigo, por sua própria evolução intrínseca, e não por alguma intenção extrínseca.
O grão de mostarda Fizera Jesus ver na parábola do semeador que apenas uma pequena parte da semente evangélica chegava a produzir fruto, ao passo que o resto pereceria infrutífero. Mostrara ainda, na parábola do joio entre o trigo, que até essa pequena percentagem que encontrara terreno propício tinha os seus inimigos, a cizânia, que tentava roubar-lhe a seiva da terra e a luz do céu. Certamente, não faltou entre os ouvintes, ou talvez entre os apóstolos, quem observasse com um suspiro de desânimo: Mestre, se tantos são os perigos e inimigos do reino de Deus, como se expandirá ele pelo mundo todo, como pretendes?... Bem lembrados estavam os ouvintes do que lhes dissera o profeta de Nazaré na parábola da sementeira a crescer, que era de uma inesgotável vitalidade intrínseca à semente do Evangelho, e que não necessitava de uma nova intervenção do divino Semeador. Mas, ainda que não perecesse de todo a sementeira do reino de Deus, chegaria ela jamais a abranger o mundo todo? E quantos séculos não levaria essa expansão mundial?... Resolveu o Mestre responder a essa interrogação tácita dos seus ouvintes, propondo a parábola do grão de mostarda. Se as três comparações tinham por cenário o campo amanhado pelo homem, esta, como também a seguinte, tem por teatro a horta e a casa, domínios da atividade feminina. Disse, pois, Jesus: – Com que coisa diremos se parece o reino dos céus? Ou sob que parábola o representaremos? Depois de assim aguçar a atenção do auditório, lança um olhar sobre a cerca da horta vizinha e vê um pé de mostarda. E logo, numa inspiração súbita, prossegue: – O reino dos céus é semelhante a um grão de mostarda que alguém tomou e semeou na sua horta. Quando semeado na terra, é ele o mais pequenino de
quantos grãos de semente existem; mas, depois de crescido, faz-se maior que todas as hortaliças, chegando a ser árvore, e criando ramos tão grandes que as aves do céu vêm pousar à sua sombra. Corria entre os hebreus o provérbio popular: Tão pequeno como um grão de mostarda. Jesus se adapta a este modo de falar, ainda que haja sementes mais pequenas que a mostarda. Entre as hortaliças de que trata a parábola, dificilmente se encontrará semente tão minúscula e que produza arbusto tão grande, que até merece o nome de árvore; pois, às margens do Jordão, a mostarda atinge três a quatro metros de altura, e até hoje os árabes falam em árvore de mostarda. Mas não somente em altura senão também em expansão e rapidez de crescimento leva de vencida a maior parte das suas congêneres; estende os seus frondosos ramos para todos os lados, convidando a passarinhada a descansar à sua sombra, beliscar as vagens e suspender os seus ninhos por entre verde folhagem. Assim, diz o Mestre, há de acontecer com o meu reino. Ainda agora é ele um grãozinho de mostarda; um punhado de homens, e nada mais. Mas a virtude que a semente evangélica encerra é grande e o terreno em que foi semeada é de uma extraordinária fertilidade. Por isso, há de em breve expandir os seus ramos, muito além das balizas desta pequena horta doméstica da Palestina, e abranger todos os países do mundo, convidando milhares e milhares de almas a descansar à sombra das suas frondes, comer dos seus frutos e aninhar-se por entre a viridente folhagem.
O fermento “O reino dos céus é semelhante ao fermento, que uma mulher toma e mistura com três medidas de farinha, até ficar levedada toda massa.” Vibram nesta pequena parábola reminiscências de Nazaré, daquela querida Nazaré em que Jesus passou a sua infância e mocidade. Quantas vezes não terá ele ajudado a Maria nas lides domésticas! Quantas vezes não terá assistido à manipulação da massa de farinha na tina de madeira! Via como a mãe deitava dois dedos de levedura na massa farinhenta, misturando-a e entregando-a depois à sua atividade automática. E, ao cabo de algumas horas, a tina estava muito mais cheia que a princípio – toda a massa fermentada! Sobre o fundo destas reminiscências borda o Mestre uma linda parábola. Mostra uma predileção em comparar o seu reino com as coisas mais humildes e insignificantes – humildes e frágeis na aparência, mas poderosas na realidade. Os profetas do Antigo Testamento se comprazem em comparar Yahweh e sua atividade no mundo com o ribombar do trovão, com a força irresistível do raio, com a veemência do mar, com a potência devoradora da chama, com o bramir do tufão, com a majestade régia do leão, com os vôos arrojados da águia, etc. A poesia de Jesus é outra. Compara a si mesmo com o bom pastor, com um pai extremoso, com um carinhoso médico ou enfermeiro, até mesmo com uma galinha-mãe a chamar para debaixo das asas a pipilante ninhada. Neste ambiente de suavidade – de fraqueza aparente e força real – se move a maior parte das alegorias que tece em torno do caráter de seu reino na terra. Quem de nós teria ousado traçar um paralelo entre o reino de Deus e um grão de mostarda? E até um punhado de fermento? “O reino dos céus é semelhante ao fermento, que uma mulher toma e mete em três medidas de farinha, até ficar levedada toda a massa.” Processo misterioso, esse da fermentação! Séculos decorreram sem que a ciência humana descobrisse a causa desse fenômeno. Só o especialismo do último século conseguiu averiguar que a fermentação é devida a umas criaturinhas microscópicas, chamadas fungos, que se multiplicam rapidamente por simples divisão, penetrando na massa e produzindo nela uma decomposição química; forma-se, destarte, grande quantidade de ácido
carbônico, que faz aumentar a massa até ao triplo do volume primitivo. A massa não fermentada é compacta e consistente, e dá um bolo mais ou menos insípido e indigesto; ao passo que a massa fermentada é toda porosa e fofa, e dá um pão saboroso e de fácil assimilação. E essa diferença tão notável provém de uma força oculta, invisível, que transforma toda a massa, por maior que ela seja; produz efeitos poderosos sem aparecer; o fenômeno é bem visível enquanto a causa continua latente e misteriosa. Pois, ainda que a Ciência nos diga e rediga que este processo consiste na atividade de pequenos fungos, nem por isso está solucionado o problema, e a fermentação continua a ser um enigma. Assim acontece também com o reino do Cristo. O Evangelho não é um engenhoso sistema filosófico, como o de Aristóteles ou de Platão; os seus arautos não são cintilantes oradores, como Demóstenes e Cícero; o poder natural do reino de Deus não se compara com o império dos Césares; a sua riqueza nada tem de comum com os tesouros de Alexandria; não dispõe de formidáveis legiões para enviá-las à conquista do mundo, com grande fragor e estardalhaço de armas. Não, Jesus dispõe apenas de uma dúzia de apóstolos, sem dinheiro nem prestígio social, sem preparo nem eloquência... Mas, que importa? A doutrina do Nazareno é um fermento, que irá penetrando, lenta, mas seguramente, toda a massa do império romano e o mundo inteiro; e todas as pessoas e todos os povos, que não opuserem resistência à ação da levedura evangélica, acabarão por se transformar em massa nova e pão saboroso. O que decide não é a quantidade, mas, sim, a qualidade.
O tesouro oculto e a pérola preciosa Depois de propor três parábolas dos domínios do homem do campo, duas do reino da mulher, passa Jesus a acrescentar mais um par de alegorias, que tem por fundo a vida comercial. Atende, assim, às exigências de todas as classes de ouvintes. O reino dos céus é semelhante a um grão de mostarda? A um fermento? Terão perguntado alguns dos ouvintes, meneando a cabeça. Mas que valor tem uma sementinha dessas? Ou um punhado de levedura?... Nestas comparações frisava o Mestre, de preferência, o poder intrínseco do Evangelho, e sua expansão mundial; mas não o seu grande valor. Passa, depois, a ilustrar o valor do reino de Deus, que, apesar de tão modesto ainda, é contudo merecedor de todos os esforços e dos maiores sacrifícios. Quem o conquista é homem feito e pode tranquilamente abrir mão de todos os bens terrenos; porque, possuindo em si o reino de Deus, possui muito mais do que o mundo todo lhe possa dar. Nada pode perder quem tudo possui em Deus. Disse, pois, Jesus: – O reino dos céus é semelhante a um tesouro oculto num campo: um homem encontra esse tesouro, e logo, cheio de alegria, vai vender tudo quanto possui e compra aquele campo. Ainda o reino dos céus é semelhante a um negociante que anda à cata de pérolas preciosas e, tendo encontrado uma pérola de grande valor, vai vender todos os seus haveres e compra essa pérola. É costume, desde tempos remotíssimos, enterrar, em período de guerras revoluções, dinheiro ou cofres cheios de ouro, no recanto mais escondido algum campo, para subtraí-los aos olhos dos ladrões. Perecendo o dono tesouro, ficava este depositado às vezes por séculos e séculos no fundo terra, até que algum felizardo o encontrasse.
ou de do da
A lei romana dispunha que um tesouro assim, sem dono conhecido, pertencesse ao dono do campo. Alguém o descobre e, sem mais, trata de adquirir por compra aquele campo, mesmo com a perda de um terreno muito melhor, porque sabe que o tesouro descoberto lhe compensará todos os prejuízos. ***
Era grande, no Oriente, o comércio de pérolas preciosas. Segundo o historiador romano, Plínio, na escala de valores vinha a pérola genuína logo após o diamante; segundo outros, era-lhe mesmo superior. A pérola, como é sabido, nasce nas profundezas do mar, na escuridão de uma concha. Os antigos pescavam-na principalmente no Golfo Pérsico e nas costas da Arábia, bem como nas vizinhanças da ilha de Ceilão, ou nos mares Vermelho e Índico. A sua exploração é uma empresa cheia de trabalhos e perigos. Mas quem tem a sorte de pescar uma pérola perfeita e de primeira qualidade torna-se um homem rico de um dia para outro. No tempo de Carlos V existia no tesouro nacional da Espanha uma pérola adquirida por uma soma que em nossa moeda equivaleria a milhões de reais. O Xá da Pérsia possuía uma pérola de um valor incalculável. A pérola mais preciosa tem cor branca, de brilho intenso. O feliz negociante que encontra uma preciosidade destas nas mãos dos pescadores vai para casa, vende toda a sua fortuna, e procura adquirir quanto antes este tesouro, com medo de que outro lho arrebate. *** Tesouro assim, pérola de tão subido valor, diz Jesus, é o reino de Deus. Todos os outros objetos têm valor apenas para alguns anos ou decênios, até a hora da morte; para além destas fronteiras não circulam valores materiais; ali o mais belo dos brilhantes, a mais perfeita das pérolas são coisas tão sem valor como uma folha seca que o vento leva, ou um caco de vidro colorido. Por isso, por mais pequenino que pareça o reino de Deus na terra, vale a pena sacrificar todas as riquezas do mundo, todas as honras e elogios dos homens, todos os prazeres da vida, a saúde e a própria vida, para conquistá-lo.
A rede Termina Jesus a primeira série das suas parábolas sobre o reino de Deus com um símile tirado da vida dos pescadores: Pedro, André, Tiago, João, Tomé, Natanael; também Filipe era natural da aldeia marítima de Betsaida e, por isso, exercia provavelmente a mesma profissão. Pão e peixe era o passadio dos galileus que habitavam nas vizinhanças do grande lago de Genesaré, tão rico em todo gênero de peixes. Achava-se Jesus, talvez, numa barca, sobre as águas do lago, quando propôs esta parábola. Os ouvintes agrupados pela praia escutavam, atentos e interessados: – O reino dos céus é semelhante a uma rede de pescar que se deita ao mar e que recolhe toda sorte de peixes. Quando cheia, puxam-na fora, e, sentandose na praia, os pescadores recolhem os peixes bons nos seus vasos, e lançam fora os maus. O mesmo sucederá no fim do mundo; sairão os anjos e separarão os maus do meio dos justos, lançando-os à fornalha de fogo; ali haverá choro e ranger de dentes. Mais de uma vez compara Jesus o ministério apostólico com a profissão de pescador. “Eu vos farei pescadores de homens”, diz ele a seus discípulos e, em particular, a Simão Pedro: “Não temas, que daqui por diante serás pescador de homens”. É, pois, de supor que, na presente parábola, sejam os apóstolos os que lançam a rede, a rede do Evangelho. O mar significa o mundo com todos os seus abismos e com todas as suas tempestades. Milhares de peixes se deixam prender pela rede evangélica; mas nem todos são discípulos genuínos. Assim como no meio daquele esplendido trigal havia muito joio, assim também se encontram na mesma rede numerosos peixes imprestáveis. A rede de que fala a parábola não é uma pequena tarrafa, dessas que uma pessoa maneja com facilidade; mas é uma rede de arrasto, rede que mede geralmente centenas de metros. Para deitá-la ao mar e para recolhê-la à praia são necessárias muitas pessoas; enquanto está dentro d’água ninguém sabe o que ela contém, só quando chega à praia é que aparece o conteúdo.
Tempestade no lago Depois de esclarecer a inteligência de seus ouvintes com a luminosa exposição da natureza e das vicissitudes do reino de Deus aqui no mundo, resolveu o Mestre fortalecer-lhes a vontade e encher-lhes de uma grande confiança o coração mediante uma série de prodígios. Jesus sentia-se fatigado. Mas as multidões alvoroçadas não lhe davam sossego; apertavam-se cada vez mais em torno do Mestre; este recorreu ao expediente de subir a uma das barcas de pescadores, que encontrou na praia. Por fim, despediu o povo e deu ordem aos discípulos para se fazerem de voga, rumo à banda oriental do lago de Genesaré. A hora não era favorável para esta travessia; todo pescador da Galiléia, atendendo à direção dos ventos, demandava de manhã à margem oriental e voltava de tarde. Mas a ordem de Jesus era lei para os apóstolos. Empunharam, pois, os remos e partiram, olhos fitos no horizonte setentrional, onde começavam a fuzilar relâmpagos. O lago de Genesaré fica mais de duzentos metros abaixo do nível do Mar Mediterrâneo. Em consequência disso, se esquentam as camadas inferiores da atmosfera, sobem, deslocam-se, e das alturas geladas do grande Hermon se precipitam as massas aéreas mais frias, sobre as planícies e as águas. Exausto de fadiga, retirou-se Jesus para a ré da embarcação, e adormeceu. Entremente, se esfuminhavam cada vez mais os contornos do litoral de Cafarnaum, desmaiando gradualmente, envoltos num mundo de vapores azulados suspensos nos ares, qual gaze levíssima. A breve trecho, não se distinguia mais nada senão as luzes mortiças da cidade. Nos alterosos penhascos da margem oposta também se tinham esvaído os derradeiros clarões do arrebol. Após uma boa hora de voga, estava o barco quase no meio do lago, a zona mais perigosa, porque mais exposta aos ventos. Ouviu-se então pelas bandas do nordeste o ronco longínquo de um trovão; e logo outro e mais outro ribombo a rolar, soturno e cavo, pela taciturna vastidão
do espaço. Quase ao mesmo tempo, uma rajada de vento se precipitou dos glaciares do Hermon sobre as águas mornas de Genesaré. Deslumbrantes coriscos rasgavam o firmamento noturno de lés a lés, e um insano vendaval começou a varrer as planuras de Genesaré, empolando em temerosos escarcéus as massas líquidas do lago, uivando pelos mastros da embarcação e jogando-a doidamente da popa à proa, da direita para a esquerda, qual casquinha de ovo. A intrépida maruja lutava com quantas forças tinha, bordejando com destreza, equilibrando a nau, aparando com o leme e a palamenta o sanhudo embate das vagas. Mas a tormenta redobrava de furor, de minuto a minuto. Ao sinistro clarão dos raios apareciam temerosos fantasmas, enormes montanhas líquidas coroadas de espumas avançavam contra a embarcação, levantavam-na sobre o vacilante dorso, e logo a deixavam tombar fragorosamente ao vale profundo das águas gorgolejantes. E antes que a barca pudesse reequilibrar-se do choque e alçar a proa, novo vagalhão desabava sobre o convés, varrendo tudo que não fosse firme, e enchendo d’água o bojo da lancha. Destarte foi o pesado batelão corcoveando e doidejando à mercê dos elementos em fúria, gemendo a cada investida; e mais de uma vez pareciam as pranchas desconjuntar-se e dar no sepulcro úmido do Genesaré. O próprio Simão Pedro, velho lobo do mar, afeito a todas as tormentas, estava desnorteado e não sabia mais que fazer. E o Mestre? Este dormia tranquilamente na popa da nau. Dormia a bom dormir. Parecia ignorar por completo o que se passava em torno dele... Por que abandonava ele assim os discípulos, que por ordem dele tinham empreendido a travessia? Ao terror que se apoderara dos apóstolos se associou ainda uma tal ou qual desconfiança, ao verem o Mestre dormindo. Tinham fé no poder dele; mas não o criam assaz poderoso para lhes valer naquele perigo, ele, submerso no sono. Depois de muito hesitar, vendo o perigo tocar o auge, um dos discípulos correu ao tombadilho, agarrou o Mestre por um braço, sacudiu-o fortemente e bradou em tom angustioso: – Mestre, não te importa que vamos a pique? Salva-nos, Senhor, que perecemos!... Jesus abriu os olhos, pôs-se de pé e disse aos apóstolos:
– Homens de pouca fé, por que temeis? Depois, em pé sobre a proa da barca, contemplou por um momento o temeroso espetáculo; estendeu a mão direita com um gesto autoritário e disse ao vento: – Cala-te! E disse ao mar: – Sossega! E eis que no mesmo instante amainou o vento e acalmaram as ondas, e fez-se uma grande bonança. Nem mais um sopro, nem mais uma vaga; silêncio nos ares, silêncio no mar; o lago dormia e as estrelas do céu se espelhavam na serena placidez da sua superfície... Todos se quedaram estupefatos e, transidos de terror, diziam uns aos outros: – Quem é este, que manda ao vento e ao mar, e eles lhe obedecem? O que encheu do mais vivo espanto e admiração os pescadores da Galiléia foi a calma repentina dos elementos revoltos; bem sabiam eles que as águas do lago, uma vez agitadas, não se acalmavam de um momento para outro; levavam longas horas, até finalmente voltarem ao equilíbrio normal das suas massas. E agora esta bonança subitânea!... Tornaram a empunhar os remos e chegaram ao país dos gerasenos.
Os possessos de Gerasa Depois de serenar a tempestade do lago de Genesaré, fez Jesus arpoar a barca, em linha reta, para o país dos gerasenos. Gerasa – hoje Kersa – era uma cidade situada numa planície estreita, entre a praia oriental do lago e as montanhas abruptas do litoral. Para o sul de Gerasa declina o terreno em rampa assaz pronunciada, indo morrer nas águas de Genesaré. Fazia parte da Decápole, isto é, do complexo das “dez cidades” que estavam sob o domínio direto do império romano. A sua população era quase integralmente gentia. É bem notável esta visita de Jesus às terras do paganismo, quando, por via de regra, se limitava a falar aos filhos de Israel. Justo era, entretanto, que também os pagãos recebessem algumas “migalhas” do lauto festim do Evangelho; mas tarde seriam eles os convivas principais. Mal havia Jesus saltado em terra com os seus apóstolos, quando se viram em face de um espetáculo mais terrível que os horrores da tempestade que acabavam de presenciar; já não eram os elementos desencadeados, era a tirania dos demônios a intervir nos destinos da vida humana. Jesus, porém, que se mostrara senhor da tormenta, havia também de revelar-se superior às potências maléficas. Da margem do lago, conduzia uma estrada larga para Gerasa; mas Jesus, mui de propósito, escolheu um trilho solitário pelas montanhas. Por quê? Talvez para se encontrar com aquelas vítimas do demônio. De um dos dois endemoninhados refere o evangelista o seguinte: “Estava possesso de um espírito impuro. Havia muito tempo que não vestia roupa, nem habitava em casa, mas vivia nos sepulcros”... Quer dizer, nas cavernas e espeluncas abertas nas dependências rochosas da montanha, que serviam para sepultura dos mortos. “Haviam-no já trazido preso, de pés e mãos, com grilhões e cadeias, mas ele rompia os liames, e era impelido pelo espírito maligno para o deserto. Ninguém o podia dominar. Passava dia e noite nos sepulcros ou nos montes, gritando e ferindo-se com pedras. Era tão perigoso que já ninguém ousava transitar por aquele caminho.” Quando avistou a Jesus, veio correndo e prostrou-se aos pés dele com um grito estridente:
– Que temos nós contigo, Jesus, filho do Altíssimo? Vieste para atormentar-nos antes do tempo? É que Jesus ia ordenando ao espírito impuro que saísse do homem; porque desde largo tempo o tinha em seu poder. Bradou então o espírito: – Conjuro-te por Deus que não me atormentes! – Qual é o teu nome? – perguntou Jesus. – Legião – respondeu ele –, porque somos muitos. É que tinham entrado numerosos demônios naquele homem. Ora, andava pastando por ali no monte uma manada de porcos. Começaram, pois, os espíritos a rogar a Jesus que não os expulsasse daquela região, nem os mandasse para o abismo, mas que lhes permitisse entrar nos porcos. – Ide! – disse-lhes Jesus. Eles, saindo do homem, entraram nos porcos. E logo toda a manada, que eram uns dois mil, se precipitou ladeira abaixo, para dentro do lago, onde se afogou. À vista disso, os pastores que os guardavam fugiram e, percorrendo a cidade, as povoações e os campos, contaram o que acabava de suceder. Saíram então os habitantes a ver o que acontecera, e foram ter com Jesus. E encontraram, sentado a seus pés, o homem do qual tinham saído os demônios, vestido e de perfeito juízo. E os que haviam presenciado o fato foram contar aos outros o que se tinha passado com o possesso, como ficara livre da legião, e a cena com os porcos. Então toda a população do país dos gerasenos rogou a Jesus que se retirasse do meio deles porque estavam possuídos de grande terror. Jesus embarcou, mas, no momento em que ele ia subir à barca, veio o homem do qual tinham saído os espíritos malignos e solicitou-lhe a permissão de ficar com ele. Jesus, porém, o despediu com estas palavras: – Volta para casa e conta aos teus que grandes coisas te fez o Senhor e como se compadeceu de ti. Foi-se ele e pôs-se a apregoar pela cidade em toda a Decápole o que lhe fizera Jesus. E toda a gente se encheu de pasmo.
*** É sempre terrífica a ingerência de potências invisíveis na esfera da ordem natural. Sumamente estranho é também o procedimento dos gerasenos. Vendo o seu extraordinário poder sobre os espíritos malignos, deviam tê-lo retido com empenho e hospedado com todo o carinho, para que lhe prodigalizasse ainda mais desses benefícios; porque, certamente, aqueles dois homens não eram os únicos endemoninhados; pois era terrível o domínio que esse mundo infrahumano exercia, e exerce ainda, sobre o mundo humano. Parece que toda aquela população estava, até certo ponto, sob a influência do mau espírito; os próprios demônios pedem a Jesus que não os expulse daquela região. Por isso não podiam os gerasenos deixar de se sentir mal na vizinhança de Jesus, e pediram-lhe encarecidamente que se retirasse do seu território. Em outros, talvez, predominasse o receio de verem repetida nas suas propriedades aquela catástrofe com os porcos, e preferiram perder a Jesus a sofrerem aquele prejuízo material. E Jesus embarcou. Parece que esta ligeira estada na margem oriental do lago não tinha outro fim senão o de curar esses pobres homens e patentear o seu poder sobre as potências dos abismos. Não consta que tenha ensinado nessa região pagã. Em todo o caso, lhes deixou um apóstolo na pessoa de um dos seus patrícios, e precisamente aquele que fora o mais infeliz de todos. Pode Deus suscitar das pedras filhos a Abraão – e dos endemoninhados pode fazer apóstolos do seu reino.
A mulher hemorroíssa Acabava Jesus de regressar de Gerasa, em companhia de seus discípulos. Saltaram em terra nas praias de Cafarnaum. Compacta multidão de povo aí se aglomerava, à espera do Mestre. Além da costumada avidez de ouvirem a palavra do Nazareno, impelia-os a curiosidade de saberem que fim haviam levado Jesus e os seus, naquela tormenta da noite anterior. Teriam perecido nas águas do Genesaré? Estariam salvos nas bandas d’além? Foi, pois, com vivo alvoroço e grande júbilo que viram chegar a Jesus, são e salvo, com todos os seus apóstolos. Estes últimos, mal se viram em terra firme, logo contaram ao povo as peripécias daquela noite de borrasca – bem como os horrores que tinham presenciado em Gerasa, e como o Mestre expelira do corpo daquele homem uma legião de demônios, que foram apoderar-se de uma manada de suínos. Nesse ambiente de sensacionais novidades caiu de improviso – como por ocasião do banquete de Levi – a nota dissonante da miopia espiritual de certos homens incapazes de andar senão sobre trilhos previamente alinhados. Alguns dos discípulos de João Batista, que tinham ouvido a doutrina, mas não assimilado o espírito do grande arauto do Cristo, exprimiam a sua estranheza ao verem que os apóstolos de Jesus não guardavam o jejum, naquele dia, quando eles jejuavam rigorosamente. Torna Jesus a dar-lhes a mesma resposta que já lhes dera em outra ocasião. Estava a falar ainda com os queixosos – quando um distinto cavalheiro de Cafarnaum abriu caminho pela multidão apinhada, prostrou-se aos pés de Jesus e disse com voz angustiosa: – Senhor! Minha filha está para morrer!... Mas vem, impõe-lhe a mão, e ela será salva... Chamava-se Jairo esse homem, e era chefe da sinagoga do lugar; sem dúvida, aquela mesma sinagoga que lhes mandara edificar o centurião romano, cujo servo fora, pouco antes, curado por Jesus. Por isso, é bem de crer que Jairo fosse amigo do centurião e tivesse notícia daquele prodígio, bem como do outro que Jesus operara, anteriormente, na pessoa do filho moribundo do funcionário real da mesma cidade. Era, pois, grande a confiança que o chefe da sinagoga tinha no poder e na bondade do profeta de Nazaré, embora a sua
fé não igualasse a do comandante da guarnição romana; julgava indispensável, para obter a cura de sua filha, a presença corporal de Jesus. E o Mestre condescende com a fé imperfeita do pedinte e, sem tardança, se põe a caminho. Enquanto Jesus ia subindo da praia para a cidade, atropelado pelas massas populares, procurou aproximar-se dele uma mulher que havia doze anos sofria de um fluxo de sangue. Refere o evangelista Marcos que a pobrezinha havia padecido muito da parte dos médicos, e que com eles dispendera toda a sua fortuna, sem encontrar melhoras, mas que até ficara pior do que a princípio. Lucas, que era médico, refere o mesmo, omitindo, porém, o último aditamento: que tinha piorado com o tratamento médico. Para que desprestigiar assim os seus colegas de profissão? Não ignorava a enferma os milagres que Jesus fizera em tantas pessoas. E dizia consigo mesma, cheia de fé e de confiança: Se eu conseguir tocar sequer numa das borlas do seu manto, serei curada. Levava Jesus sobre a túnica, consoante o costume judaico, um manto quadrangular com quatro borlas pendentes das pontas. Eram cor de jacinto essas borlas, tecidas de fios de lã ou de linho, e simbolizavam a perene recordação dos mandamentos de Deus. Vinham elas presas em cordões, a que os judeus chamavam gedilim; a borla mesma levava o nome de sisit, que quer dizer flor. Espreitava, pois, a hemorroíssa um momento azado para tocar com a mão numa dessas borlas do manto de Jesus, que flutuavam no ar enquanto ele caminhava. Não se atrevia a apresentar-se de frente, envergonhada, talvez, da sua moléstia, ou por motivos de timidez natural. Aproximou-se do taumaturgo por detrás e tocou rapidamente numa das borlas. E eis que no mesmo instante se sentiu penetrada de uma força estranha. Estava curada. Mas sua alegria foi algo turbada pelas palavras do Mestre, que parou, olhou em derredor e perguntou em tom severo: – Quem foi que me tocou? Todos negaram. Disse então Pedro, com aquela espontânea e rude franqueza que o caracterizava: – Ora, Mestre, as multidões te atropelam, e ainda perguntas quem te tocou?...
Jesus, porém, insistiu com o mesmo rigor, lançando olhares inquisitoriais em torno de si: – Alguém me tocou, porque saiu de mim uma força! Queria dizer: Alguém me tocou, não como me tocam os demais, mas de um modo especial, com a intenção de se aproveitar do meu poder. Bem sabia ele o que acontecera; mas procedeu deste modo por motivos especiais, como costumava fazer frequentemente. Vendo então a mulher que não podia ficar oculta e sentindo os olhos de Jesus fitos em si, apresentou-se cheia de medo, prostrou-se-lhe aos pés, confessando o que fizera e como ficara curada no mesmo instante. Desanuviou-se o semblante de Jesus e, benevolente, disse: – Tem confiança, minha filha! Tua fé te curou, vai-te em paz, e fica livre da tua enfermidade!... E desde então ficou curada a mulher. Diz uma antiquíssima tradição cristã que essa hemorroíssa se chamava Serápia, e que é idêntica àquela mulher que, mais tarde, a caminho do Calvário, ofereceu uma toalha a Jesus, na qual o divino mártir imprimiu seu rosto ensanguentado, restituindo-lhe esta primeira imagem do Ecce homo, e que, a partir daí, ficou Serápia com o sobrenome de Verônica, que quer dizer: verdadeira imagem.
A filha de Jairo Devia Jairo estar bem contrariado com todas essas demoras. O incidente com a hemorroíssa fizera Jesus perder bastante tempo, detendo-o em plena estrada. Mas o Mestre, mesmo nos casos mais urgentes, nunca dá sinal de pressa ou afobamento; sempre a mesma calma e serenidade, como quem se sente perfeitamente senhor da situação, e não precisa precipitar-se ao encontro do termo, porque está a cada instante no ponto final da jornada. Mas um pai de família, com uma filhinha moribunda em casa, dificilmente se podia conformar com essas delongas. E é certo que o chefe da sinagoga de Cafarnaum insistiu delicadamente com Jesus para que acelerasse a marcha, e volvia olhares de censura àquela mulher, que era a causa desse atraso; se andara doze anos com seu mal, por que não podia esperar mais uma hora? O caso dele era mais urgente – e, afinal de contas, ele, Jairo, era a primeira autoridade religiosa do lugar... E saber sua filha doente, às portas da morte – que ânsias, que angústias para a alma do pai! Enquanto Jesus ainda estava falando com a mulher que acabava de sarar, veio correndo um mensageiro da cidade e disse a Jairo: – Não incomodes mais o Mestre!... Tua filha acaba de morrer!... Jairo estremeceu, como se uma punhalada lhe varara o coração. Jesus percebeu a consternação dele, e disse-lhe em tom tranquilo e firme: – Não temas! É só teres fé, e tua filha será salva!... E logo tomou consigo a Pedro, Tiago e João, separou-se da multidão, e seguiu a Jairo. Quando chegaram à casa da falecida, encontraram um bando de gente em alarido, como sói acontecer em ocasiões dessas: cenas de desespero! Todo israelita, por mais pobre que fosse, contratava para as exéquias de uma pessoa da família ao menos dois flautistas e uma carpideira. Em casa de Jairo, homem conspícuo e chefe da sinagoga, não faltava, certamente, uma boa dúzia de carpideiras. Os músicos tangiam elegias fúnebres, as mulheres
choravam e lamentavam em altas vozes, torcendo as mãos e desgrenhando as cabeleiras. À vista desse espetáculo, disse Jesus: – Por que esse alvoroço e esse choro?... A menina não está morta, dorme apenas!... Riram-se e escarneceram dele, porque sabiam que ela estava morta. Jesus também o sabia, mas para o seu poder era tão fácil ressuscitar do sono da morte um defunto, como despertar do sono natural um adormecido qualquer. O mesmo dissera ele por ocasião da morte de Lázaro: Nosso amigo Lázaro dorme; mas eu vou despertá-lo do sono. E despertou-o. Em seguida, levando consigo os pais da menina e três apóstolos privilegiados, entrou no quarto da defunta, tomou-a pela mão e disse: – Talitha, cumi! – que quer dizer: Menina levanta-te! E no mesmo instante ela se levantou, e pôs-se a andar. Mandou Jesus que lhe dessem de comer. Encheram-se de pasmo indizível os pais, e todos os circunstantes se quedaram estupefatos em face de semelhante prodígio. E espalhou-se por todo o país a notícia deste acontecimento.
Os cegos de Cafarnaum Saindo da casa de Jairo viu-se Jesus rodeado instantaneamente de grande multidão, ávida por saber do ocorrido, e quando então viram a menina, rediviva e de perfeita saúde, assomando à janela ou no topo da escada, foi indescritível o pasmo dos espectadores. Jesus dirigiu-se a largos passos para a casa de Simão Pedro, à beira do lago, onde, parece, residia habitualmente. Pelo caminho, vieram atrás dele, às apalpadelas, dois cegos, que começaram a bradar em altas vozes: – Jesus, filho de Davi, tem piedade de nós! Tinham ouvido que passava Jesus de Nazaré, o grande profeta. “Filho de Davi” é o título oficial e clássico pelo qual o Antigo Testamento designa o Messias, que os profetas tinham vaticinado como sendo da estirpe real de Davi. É a primeira vez que nos Evangelhos aparece este nome – e vem dos lábios de homens cegos! Parece que os cegos viam melhor do que os que tinham dois olhos... Jesus segue o seu caminho, sem lhes prestar atenção. Assim ao menos parecia. Chegou à casa que demandava. Mas os cegos não o largaram. O tristíssimo estado em que viviam, sabe Deus havia quantos anos, tornava-os ousados e os impelia a recursos extremos. E, apesar das repetidas quedas, chegaram à casa de Simão Pedro, sempre aos gritos de: “Jesus, filho de Davi, tem piedade de nós! Tem piedade de nós!”... De nós... O infortúnio os fazia companheiros, e o seu angustioso brado é um doloroso protesto de solidariedade. A desgraça comum une os homens; cada um clama por todos, e todos por um: tem piedade de nós!... Sem pedir licença a ninguém, penetram afoitamente na casa em que Jesus acabava de entrar e, prostrando-se aos pés do taumaturgo, repetem o seu lancinante estribilho: “Jesus, tem piedade de nós!... Tem piedade de nós!”... Voltou-se o Mestre para eles e perguntou-lhes: – Tendes fé que eu vos possa fazer o que pedis?
– Temos fé, Senhor! – bradaram eles a uma voz, concordes na mesma dor, concordes na mesma fé. Em face dessa profissão de fé saída do abismo da miséria, não se conteve o coração de Jesus, rico para todos que o invocam. Colocou-lhes a mão sobre os olhos apagados, um por um, para lhes mostrar o muito que queria a cada um deles, e disse: – Faça-se convosco conforme a vossa fé! E logo se lhes abriram os olhos. Ordenou Jesus que a ninguém o dissessem – talvez para não acirrar demasiadamente o ódio dos seus adversários. Eles, porém, cheios de gratidão e entusiasmo, foram divulgando o acontecimento por toda aquela região.
Missão dos discípulos Pela segunda vez, foi Jesus visitar os seus conterrâneos de Nazaré, e pela segunda vez encontrou neles tão grande falta de fé, que não lhe foi possível operar aí muitos milagres, como diz o evangelista. Os nazarenos não crêem que Jesus seja mais do que eles; pois o conhecem desde pequeno como o filho do carpinteiro José, sem nenhum poder superior que manifestasse durante aqueles trinta anos! Retirou-se, pois, de Nazaré, não sem tristeza no coração, pois amava os seus conterrâneos, os companheiros da sua juventude; e pôs-se a percorrer, em companhia dos apóstolos, as cidades e povoações da Galiléia. Certo dia, viu-se ele rodeado de uma grande multidão de povo, e todos a olhálo, famintos e sequiosos, todos ávidos de ouvirem alguma notícia daquele misterioso reino de que sempre falava, e no qual cada um deles esperava entrar um dia. E Jesus, contemplando aquela ignorância, e aquele abandono espiritual em que jaziam os filhos de Israel, sentiu a alma confrangida de dor, porque “os via entregues à miséria e ao abandono, como ovelhas sem pastor”. Assim era aquele povo. Tinha, sim, os seus pastores, que todos os sábados, na sinagoga, lhe ofereciam repasto espiritual. Mas que tristes pastores eram eles, e que alimento apresentavam, por via de regra, àquele povo, que ansiava por uma coisa melhor!... Apascentavam mais a si mesmos do que ao rebanho, como diz Isaías. Em vez das grandes revelações de Deus, vinham com as suas mesquinhas tradições humanas. Até a idéia do Messias fora adulterada por esses pastores, de modo que Israel não reconheceu o seu Salvador, quando lhe apareceu. Tinham roubado a chave da ciência – eles mesmos não entravam no reino de Deus, nem deixavam entrar aos que o desejavam. Em face desse doloroso espetáculo, se voltou Jesus aos seus discípulos e lhes disse: – A messe é grande, sim; porém, os operários são poucos. Rogai, portanto, ao senhor da messe para que mande operários à sua seara. O “senhor da messe” era o Pai celeste; ele, Jesus, era, por assim dizer, o administrador da lavoura evangélica.
Em seguida, impelido pelo amor às almas e pelo desejo de salvá-las da ruína, convoca os doze discípulos, comunica-lhes os seus poderes, dá-lhes várias diretivas e os envia, dois a dois, pelo mundo afora, a fim de trabalharem como operários na seara das almas. E, para que pudessem desempenhar devidamente tão árdua missão, dá-lhes o Mestre as instruções seguintes: “Não tomeis rumo aos gentios, nem entreis nas cidades dos samaritanos; mas ide ante as ovelhas que se perderem da casa de Israel”. Mais tarde, a ordem seria esta: “Ide pelo mundo inteiro, pregai o Evangelho a todos os povos!” Mas não era prudente que, desde o início, os apóstolos enfrentassem com todo esse mundo de dificuldades, para não caírem vítimas do pessimismo. Por isso, para inaugurarem o seu apostolado, convinha que em primeiro lugar se dirigissem aos seus patrícios, aos israelitas, que com eles partilhavam a mesma fé num só Deus, e professavam as mesmas verdades reveladas. É a judiciosa pedagogia do Mestre. Qual o objeto da sua pregação? Deviam levar a Israel a mais consoladora das mensagens: “Ide e anunciai: Está próximo o reino dos céus!” E, para darem maior realce às suas palavras e exibirem as credenciais divinas da sua missão, deviam mostrar o poder que o Mestre lhes outorgara: “Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, tornai limpos os leprosos e expulsai os espíritos malignos”. Antes de tudo, porém, deviam pregar com o próprio exemplo. “De graça recebestes – de graça dai! Não leveis coisa alguma para a viagem, nem ouro, nem prata, nem dinheiro nas vossas cintas; não leveis bolsa nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão; porque o operário bem merece o seu sustento.” Quer dizer, tendes direito a receber o sustento material das mãos daqueles a quem dais o alimento espiritual. Se de graça dais os dons de Deus, é justo que de graça vos dê o povo os dons da terra para a vida. “Quando entrardes numa cidade ou aldeia, informai-vos quem há nela que seja digno; e aí ficai até seguirdes viagem. Entrai nessa casa e dizei: A paz seja com esta casa!” Também para o caso de não serem recebidos lhes dá o Mestre as competentes instruções: “Onde não vos quiserem receber, nem vos ouvirem, deixai essa casa ou essa cidade, e sacudi o pó dos vossos pés, em testemunho contra eles. Em verdade
vos digo que melhor sorte caberá, no dia do juízo, à terra de Sodoma do que a uma cidade assim!” Com isto despediu Jesus os seus discípulos, marcando-lhes o dia do regresso. E eles se puseram a caminho, animados de um jubiloso otimismo, uns para o norte, outros para o sul, quais para o leste, quais para o oeste. E verificaram que o poder do Mestre os acompanhava.
Morte de João Batista Enquanto os apóstolos empreendiam a sua primeira excursão evangélica, percorrendo as regiões da Galiléia, tombou a cabeça do maior dos profetas. Havia um ano, ou pouco mais, que o intrépido vingador da moralidade pública fora lançado em ferros por Herodes Antipas, a quem exprobara a sua união escandalosa com Herodias, mulher de seu irmão Filipe. Bem dissera Jesus que o seu precursor não era nenhum caniço agitado pelo vento. Não! Ele não se dobrava aos caprichos do rei; sucumbisse embora o corpo à violência, à força bruta, a alma resistiria invicta a todas as tempestades. Ele, o grande engenheiro de Deus, era enviado para preparar os caminhos do Messias, remover os obstáculos que impedissem a passagem. E que maior óbice havia a entravar a vitória do Evangelho da pureza do que o adúltero e incestuoso no trono da Galiléia? Àquela hora, jazia o grande herói nos escuros subterrâneos do castelo de Maqueronte, às margens solitárias do Mar Morto. Não se atrevera Herodes a matá-lo, porque o estimava como um profeta, e frequentes vezes o visitava e se entretinha com ele; e, toda vez que voltava de um desses colóquios singulares travados à penumbra do cárcere, diz o texto grego, se sentia grandemente perturbado. Pudera, não! E difícil matar a consciência, não se consegue nem mesmo à força de um dilúvio de pecados ou de um inferno de crimes. Como podia o escravo da luxúria permanecer tranquilo e sereno em face do herói da moralidade, cuja vida austera era, por si só, uma condenação do sibaritismo do tetrarca? Além dos motivos interiores, Herodes receava as iras do povo, que venerava o Batista como um profeta. À morte violenta de João, era de temer que o povo da Galiléia se aliasse a Aretas, rei dos Árabes e pai da legítima esposa repudiada pelo tetrarca adúltero. Herodias, ao invés, ardia por ver correr o sangue do importuno pregador da moralidade; receava por sua posição de rainha e favorita, e não via com bons olhos os frequentes colóquios do real amigo com o intransigente arauto da moralidade. A mulher, quando é má, é mais perversa do que o homem; porque a sua psicologia se move em campos extremos.
Até que, finalmente, soou a hora da vingança! Chegou o aniversário natalício de Herodes e o príncipe ofereceu um banquete aos grandes do seu reino. Compareceu às luxuosas salas do castelo grande número de oficiais do exército, e próceres ela Galiléia e Peréia. Serviram-se raras iguarias, corriam em profusão os vinhos capitosos de Chipre, levantavamse entusiásticos vivas e brindes, ressoavam risadas folgazãs pelo vasto recinto. Eis senão quando, pelo fim do banquete, aparece na sala uma mocinha gentil, e põe-se a executar, por entre as mesas, uma daquelas danças tão usadas em Roma e nos países orientais, em ocasiões festivas. Chama-se Salomé a bailarina, diz-nos a tradição, e era filha de Herodias com seu legítimo esposo, Filipe... O estratagema não era, decerto, improvisado, mas astutamente calculado pela rancorosa amante do príncipe. Conhecia-lhe os fracos; sabia que não resistiria à estonteante volúpia e aos bamboleios carnais da sedutora sereia seminua e fulgurante de jóias. E não falhou o cálculo. Tão encantado se sentiu Herodes com a graça e desenvoltura da jovem que, num acesso de leviandade, lhe disse: – Pede de mim o que quiseres, que te darei! E, como ela hesitasse, acrescentou: – Juro que te darei, ainda que seja metade do meu reino! A dançarina, em vez de formular o seu pedido, desapareceu da sala, foi ter com a mãe, referiu-lhe as palavras do rei, e perguntou: – Que pedirei? – A cabeça de João Batista! – respondeu a mãe, sem um momento de hesitação. Para o seu coração vingativo aquela cabeça decepada seria uma satisfação muito maior do que a posse de todos os reinos de Herodes; o seu reino era o ódio, a vingança... Pressurosa, Salomé lançou mão de uma bandeja, apresentou-se ao rei e disse: – Quero que me dês, agora mesmo, nesta bandeja, a cabeça de João Batista! O rei estremeceu. Não esperava por semelhante petição. Embora com o cérebro enevoado pelo vinho e os sentidos a arder de sensualidade, não deixou de perceber a atrocidade de semelhante desejo.
Alguns dos convivas apoiaram calorosamente a criminosa exigência da jovem. Por isso, não ousou Herodes dar ouvidos à voz da consciência. Chamou um dos guardas e ordenou que degolasse a João no cárcere e entregasse a cabeça a Salomé. E assim se fez. Voltou a mocinha à sala do banquete, levando nas mãos a bandeja com o troféu sinistro da vingança de uma mulher. Aquele sangue quente, aqueles olhos entreabertos, aqueles lábios descorados, aquela cabeleira desgrenhada – Deus do céu, que contraste com os prazeres e as orgias do festim!... A cabeça decepada de um mártir do dever, no meio daqueles escravos das paixões!... Salomé deu-se pressa a levar o sanguinolento espólio a sua mãe. Um prazer satânico estremeceu pelo corpo de Herodias; os seus olhos brilharam em chama sinistra, quando, finalmente, viu diante de si muda para sempre aquela boca, imóveis aqueles lábios que com tão duras verdades a tinham fulminado! Diz São Jerônimo que aquela mulher perversa, a exemplo do que fizera Fúlvia com a língua de Cícero, lançou mão de uma agulha e pôs-se a picar furiosamente a língua do profeta; porque ainda lhe soavam aos ouvidos aquelas palavras: “Não te é lícito possuir a mulher de teu irmão”. Já não era aquela língua que as proferia, mas era a consciência de Herodias que as repetia sem cessar: Não te é lícito... Não te é lícito... E o verme da má consciência não se mata nem à força de agulhadas, nem a golpe de espada. Ignoramos que fim levou a cabeça do Precursor; em que abismo a terá lançado aquela adúltera? Sabemos tão-somente que vieram os discípulos de João e sepultaram o corpo com todas as honras. Em seguida, foram dar parte do ocorrido a Jesus. *** E Jesus? Que faz? Deixa correr as coisas a bom correr. Não parece estranho que não se interesse pela sorte de seu precursor, de seu grande e abnegado amigo?... Nenhuma visita, nenhuma palavra de conforto, nenhum milagre para o libertar – quando qualquer mendigo da rua lhe merece um prodígio do seu poder, uma maravilha do seu querer!... Ressuscita da morte pessoas sem importância – e para João Batista nada, nada absolutamente!... Como se compreende isto? Não se compreende – admira-se! É que um herói como João não tinha disto necessidade; toda a sua consolação, todo o seu paraíso na terra estava em ter
preparado os caminhos do Senhor e em poder regar com o próprio sangue o caminho que o Messias não tardaria a ruborizar com o seu. Preparara os caminhos do Nazareno em vida, esse grande arauto de Deus – e mais ainda os preparou com a sua morte... Por isso, nenhuma queixa passa dos lábios do Precursor, nenhuma tristeza lhe invade a alma, nenhum ressentimento se aninha no seu coração. E Jesus, que de tudo sabia, parece indiferente à sorte de seu grande precursor, que ele denominou, um dia, o maior entre os “filhos de mulher”. Não o visita, não o preserva da morte. Inescrutáveis são os caminhos de Deus. No mundo presente, ninguém deve esperar o reequilíbrio da justiça. Se outra vida não houvesse, ninguém podia crer na justiça das leis eternas. João, porém, era um vidente cósmico; por isto não se queixa da aparente indiferença de Jesus, mas sofre em silêncio, na escura masmorra, até a morte violenta.
Primeira multiplicação dos pães Aproximava-se a Páscoa judaica do ano 32. Enquanto, às margens do Mar Morto, se desenrolava a cena de ódio e de sangue que fez tombar a cabeça do maior dos profetas, percorriam os apóstolos as terras da Galiléia, anunciando a boa nova da redenção, curando toda sorte de enfermidades e expulsando demônios. Depois do prazo marcado, regressaram para junto do Mestre e, cheios de júbilo e satisfação, contava cada um os seus feitos e os frutos que colhera nesta primeira missão. O que mais de tudo os impressionara eram os exorcismos, a expulsão dos maus espíritos; era só esconjurá-Ios em nome de Jesus de Nazaré, e logo eles fugiam como cães medrosos, abandonando os corpos das suas vítimas. No meio dessas alegrias, caiu como sombra lúgubre a notícia da morte violenta do Precursor. E Herodes, instigado por Herodias, armava ciladas também a Jesus; porque bem sabia que as idéias que o Batista nutrira, no tocante à vida do tetrarca e da sua amante, eram também as do Nazareno. Entretanto, o homem põe e Deus dispõe. Para Jesus, não era ainda chegada a hora. E, enquanto não chegasse essa hora, ninguém lhe podia fazer mal. Contudo, para não exasperar desnecessariamente a seus inimigos, lançou mão do expediente que a prudência lhe sugeria: retirou-se para uma região solitária. A causa principal deste seu passo eram os apóstolos. Vinham exaustos de fadiga. Tinham trabalhado muito, esses novéis missionários. Precisavam de descanso corporal e de recolhimento. Pelo que Jesus os convidou para passarem com ele à margem oriental do lago de Genesaré. Partiram. Fizeram a travessia do lago e procuraram uma região solitária que lhes permitisse o desejado descanso e recolhimento. Era bem acertada a escolha do lugar. A nordeste do lago, não longe da embocadura do Jordão, alvejava a cidadezinha de Betsaida Júlias. Mais para o leste, desdobra-se uma planície emoldurada por uma cadeia de montanhas. Vem esse vale banhado por quatro arroios e amenizado por bosques de oleandros, que, à guisa de verdejantes oásis, se disseminam, aqui e acolá, pelas extensas planuras.
Estava-se em princípios da primavera, e o verde-gaio das campinas contrastava agradavelmente com os tons mais cerrados das moitas e o variegado matiz dos jardins e pomares em flor. Para essa pitoresca solidão se encaminhou Jesus com os seus discípulos, deixando muito atrás de si as habitações humanas. E foram seguindo, seguindo, até se verem nas fraldas dos montes, embalados na quietude daquelas paragens desertas. Jesus, tão amigo dos homens, não era menos amigo da solidão. O povo, porém, não tardou a descobrir o paradeiro do Mestre e, sempre ávido de vê-lo e ouvi-lo, foi-lhe ao encalço. Acresceram ainda a essa torrente humana diversas caravanas de romeiros, que vinham de longe, pela estrada de Damasco-Cafamaum, com o fim de assistir às solenidades pascais em Jerusalém. Atraídos pelo que viam e ouviam, armaram as suas tendas nos descampados de Betsaida Júlias, e foram escutar a mensagem de Jesus. Outros, por seu turno, aproveitaram a oportunidade para levar à presença do taumaturgo os seus doentes, pedindo-lhe impusesse as mãos e os curasse. Assim foi que, em vez do suspirado recolhimento, se viram Jesus e os discípulos novamente em pleno tumulto da vida, e com um hospital improvisado em torno de si. E Jesus dirigiu-se às turbas e começou a falar-lhes do reino de Deus. A maior parte dos ouvintes tinha vindo de longe. As provisões de boca, que alguns levavam consigo, não passavam de umas broas de pão e umas tâmaras. Pelo que, ao cair da tarde, principiou o povo a indispor-se com o cansaço e o sentimento de fome. As crianças choravam e pediam pão. Além dos 5 mil homens que compunham o auditório, achavam-se presentes também numerosas mulheres e crianças. Não será exagero calcular o número de ouvintes em cerca de 10 mil pessoas. Com os amigos de Jesus, tinham acudido também muitos adversários dele: os fariseus e escribas, os sacerdotes e doutores da lei, que fiscalizavam e criticavam a pessoa e doutrina do rabi de Nazaré, e procuravam apanhá-lo em alguma palavra incauta. Não era pouco o trabalho dos discípulos empenhados em manter a disciplina no meio do povo. Não tinham mãos a medir com os pedidos e as reclamações.
Houve entre os discípulos quem aconselhasse o Mestre a que despedisse as multidões para que fossem procurar comida e pousada pelas casas mais próximas. – Dai-lhes vós de comer – respondeu-lhes Jesus. Os discípulos encolheram os ombros e deitaram ao Mestre uns olhares de quem não atina com o que se lhe diz. Filipe, um dos mais familiares de Jesus, inquiriu se era realmente desejo dele que os discípulos fossem comprar pão para todo aquele povo. Ao que Jesus ordenou que verificassem qual a quantidade de provisões de que dispunham. Foram verificar. Voltou André e cientificou ao Mestre que se encontrava ali um membro com cinco pães de cevada e dois peixes assados. E logo acrescentou, com um gesto de desânimo: – Mas que é isto para tanta gente? Voltou-se Jesus para Filipe, o qual, parece, estava quebrando a cabeça com a solução do difícil problema econômico, e perguntou-lhe: – Então, Filipe, onde é que vamos comprar pão? Filipe cravou no Mestre um olhar incrédulo e replicou hesitante: – Duzentos denários de pão não seriam suficientes para dar um bocado a cada um. Tal era a situação. Todos se achavam em apuros e insolúveis dificuldades, todos – menos Jesus, que se conservava tranquilo e calmo; sabia perfeitamente, desde o princípio, o que ia fazer; mas, para tornar mais patente e palpável o milagre, esmerou-se em frisar devidamente a situação precária e a absoluta falta de recursos naturais. Nisto, apresentou-se o menino com o cestinho de provisões. Jesus subiu até meia encosta de uma das colinas, e ordenou aos discípulos que fizessem o povo sentar-se na relva, em ranchos maiores e menores, os homens de um lado, as mulheres e crianças do outro. Sem tardança, foram os discípulos espalhar-se no meio da multidão, e com muito jeito e paciência organizaram os competentes grupos. Não era, decerto, a primeira vez que lidavam com o povo. Entrementes, vinha caindo a tarde. Ao oeste, por entre os azulados recortes da serrania, declinava lentamente o disco avermelhado do sol; e os seus últimos reflexos purpúreos bailavam, trêfegos, quais gotas de sangue, sobre o espelho
plácido do Genesaré. Pelos raros arbustos da vizinhança, ciciavam baixinho as brisas vespertinas, trazendo no hálito a fragrância de flores recémdesabrochadas... A planície de Betsaida Júlias fervilhava de peregrinos, ostentando uma pitoresca variedade de cores e de trajos, desde a blusa grosseira de pescador até as sedas finíssimas e as preciosas pérolas das abastadas proprietárias de Cafarnaum. Nisto tirou Jesus do cestinho de vime um dos pãezinhos de cevada, colocoulhe em cima uma posta de peixe, benzeu-os e entregou-os aos discípulos para que os distribuíssem ao povo. O mesmo fez com os outros pães e peixes. Os discípulos tomaram as provisões e, correndo à roda, de pessoa a pessoa, de rancho a rancho, foram servindo os alimentos – e eis que o pão e o peixe se lhes multiplicavam nas mãos, de um modo incompreensível. Por mais que distribuíssem, não acabavam nunca de esgotar a provisão. Era um milagre, esse, operado aos olhos de milhares de pessoas amigas e inimigas. Enquanto o povo satisfazia a fome e comentava, alvoroçado, o inaudito prodígio, conservava-se Jesus em pé, no alto de um outeiro próximo. Depois de todos fartos, levantaram-se e Jesus ordenou aos discípulos que recolhessem os sobejos do pão e do peixe, para que não fossem pisados. Coligiram, pois, os pedaços espalhados pela grama e encheram nada menos de doze cestos. Quer dizer que, depois de saciados aqueles milhares de homens, restou ao menos doze vezes mais do que existia a princípio. *** Costumamos dizer que Jesus multiplicou os poucos pães e peixes em milhares. Mas semelhante multiplicação só podia ser uma divisão; cada um dos milhares de homens só receberia uma migalha, e isso não explica como sobraram, depois, ainda doze cestos de fragmentos, mais do que havia no princípio. O que Jesus fez na verdade foi materializar a luz cósmica em forma de pão e de peixe. Sabemos hoje pela ciência atômica que toda a matéria é energia congelada, e a energia é luz condensada. Quem tem poder sobre as leis da natureza pode transformar a luz em qualquer matéria.
Na chamada multiplicação de pães e de peixes, transformou Jesus a luz cósmica do Universo em matéria de pão e de peixe. A ciência de hoje sabe que todas as matérias do Universo são luz invisível transformada em matéria visível. Uma creatura que possui esse poder pode materializar a luz, e pode também lucificar a matéria.
Jesus caminha sobre as águas Profunda foi a impressão que em todos produziu o estupendo prodígio da multiplicação dos pães. Milhares de homens, amigos e inimigos, o presenciaram, e ainda lá estavam eles na extensa planura de Betsaida Júlias, aos grupos, comentando o inédito acontecimento. De súbito, correu de boca em boca a palavra sensacional de que Jesus era; de fato, o grande profeta anunciado pelos videntes da lei antiga. E logo alguns dos mais ardorosos – e os galileus eram almas de fogo! – começaram a bradar: “Viva Jesus Nazareno! Viva o rei de Israel!” Qual fogo em rastilho, alastrou-se este grito pela multidão alvoroçada; e de repente todos a uma clamaram, em delírio de entusiasmo: “Viva Jesus, nosso rei! Viva o filho de Davi! Viva o rei de Israel!”... Também os discípulos tomaram parte na manifestação – e não foram os últimos! Cuidavam ver chegada finalmente a hora tão suspirada; estava para ser proclamado solenemente o reino messiânico, e eles seriam os primeiros ministros desse reino – assim o entendiam lá consigo os bons apóstolos. Filhos do seu tempo, imbuídos das idéias do seu povo, não podiam compreender que o reino de Cristo não fosse deste mundo. Só mais tarde se capacitariam do verdadeiro caráter do reino messiânico. Pedro, sem dúvida, andou de grupo em grupo, verdadeiro “chefe político”, atiçando o fogo do entusiasmo popular; e como lhe saltava o coração no peito de incontida satisfação, ao ver que nada menos de 5 mil homens válidos estavam decididos a levar o grande profeta em triunfo para Jerusalém, exaltá-lo no trono de Davi e proclamar a independência de Israel!... Entre as mulheres não era menor o alvoroço. Até as crianças se sentiam contagiadas do entusiasmo geral e começaram a cantar louvores ao Nazareno, como mais tarde, no Domingo de Ramos, cantariam os meninos de Jerusalém. E Jesus, que faz? Apenas viu crescer o entusiasmo popular, deu ordem categórica aos seus discípulos para embarcarem imediatamente, e passarem à margem ocidental do lago.
“Compeliu-os”, diz o Evangelista, por sinal que quase à força os obrigou a embarcarem; nem lhes permitiu que despedissem o povo; ele mesmo ia despedi-lo. Encaminharam-se, então, os discípulos à praia e embarcaram, muito a contragosto, é certo, mas obedientes como sempre. Sentaram-se nos bancos toscos da lancha, empunharam os remos – e ei-los novamente na faina prosaica de todo o dia e de todos os anos!... Lá se fora, como uma miragem do deserto, a visão poética do reino do Cristo!... Com um sentimento de acerba tristeza e dolorosa decepção, relancearam um derradeiro olhar saudoso para as planícies de Betsaida Júlias... Depois, deixaram a praia e se fizeram ao largo... Tristes perspectivas!... Os discípulos estavam cansados, cansados de corpo, depois de servirem umas 10 mil pessoas; e mais cansados ainda de alma... Vinha caindo a noite. O vento lhes era contrário... E o Mestre não vinha com eles... Estaria zangado?... Quem o podia compreender?... Não tinham eles agido com a melhor boa- fé?... Se queria estabelecer o seu reino, por que não aproveitou esta ocasião única?... Nunca mais voltaria hora tão propícia. Enquanto os discípulos deixavam a margem oriental do lago, despediu Jesus rapidamente o povo, ordenando-lhes que sem demora se retirassem e fossem para casa. Depois retirou-se e sozinho foi subindo às alturas de um monte próximo. Não havia mais nos seus olhos aquele fulgor de outrora... O seu semblante acusava uma vaga tristeza... parecia imerso em dolorosas cogitações... Chegado ao cume do monte, pôs-se em oração, os olhos fitos na vastidão do espaço, onde começavam a pestanejar as primeiras estrelas. A sua alma abismou-se no mar imenso da divindade... E, aos poucos, voltou o sossego, a paz, a harmonia ao seu coração... Jesus estava em casa... Já não balbuciava a linguagem primitiva dos homens; já não traduzia penosamente em parábolas, alegorias e símbolos os seus pensamentos e afetos – falava a linguagem do Pai celeste... Depois dos labores diurnos e das dissonâncias da sociedade, eram essas horas noturnas da solidão refrigério para a alma do Nazareno... Até pelas 3 horas da madrugada passou ele em colóquio com o Pai, nas alturas daquele monte. Depois, como que voltando a si das regiões do infinito, correu o olhar pelas bandas do oeste. Ao pálido clarão da lua, divisou uma embarcação que se achava no meio do lago. Eram os seus discípulos. Estavam em luta com forte vendaval. A travessia do Genesaré comportava, aliás, umas duas a três horas de voga. Em circunstâncias normais, já deviam os nautas ter arribado à margem oposta; mas, com aquele vento pela proa, mal tinham vencido meia
distância; 25 estádios, diz o historiador, quer dizer, cerca de légua e meia em 7 a 8 horas de labor insano! Ora, vendo Jesus o muito que os bons discípulos se afadigavam, teve pena deles. Tinham lá suas idéias mundanas sobre o reino de Deus, é verdade; mas eram bons e mostravam-se sempre obedientes e humildes – e Jesus lhes queria bem, muito bem. Resolveu consolá-los. Desceu, pois, do monte, dirigiu-se à praia e entrou afoitamente no lago. E começou a deslizar suavemente à flor d’água, rumo à embarcação. O corpo de Jesus, por via de regra, estava sujeito às leis comuns da natureza, mas ele tinha em si o poder de isentá-lo dessas leis, todas as vezes que o quisesse; pois o legislador é senhor das suas leis. Era um espetáculo ao mesmo tempo encantador e terrífico. As águas do Genesaré se achavam em forte agitação, revolvidas pelo vendaval; mas sob as plantas dos pés do taumaturgo se aplainava sucessivamente o movediço elemento, formando como uma esteira bonançosa, na qual se espelhava a figura invertida do luminoso vulto. Era um prelúdio da transfiguração no Tabor, uma ligeira antecipação das propriedades do corpo ressuscitado. Quando os discípulos avistaram por entre as brumas noturnas o estranho fenômeno, puseram-se a observá-lo cheios de curiosidade. Não tardou, porém, que essa curiosidade cedesse ao terror – a enigmática aparição avançava em linha reta sobre eles! Desataram a gritar de susto: – Um fantasma! Um fantasma! – Sou eu, não temais! Tende ânimo! – respondeu-lhes o misterioso alguém, e um pesadelo lhes caiu do coração: reconheceram-no pelo timbre da voz. – É o Mestre! – exclamaram todos com um suspiro de alívio. Não cabiam em si de admiração, ao verem o Mestre caminhar assim sobre as ondas revoltas, como se fora em terra firme. Simão Pedro, homem dinâmico, não se contentava com ver e olhar; era necessário agir. – Se és tu, Mestre – exclamou – manda que eu vá sobre as ondas até onde estás! – Vem! – disse Jesus, satisfeito com a confiança do discípulo. No mesmo instante, sem ponderar possíveis nem impossíveis, Pedro saltou da barca e – oh! prodígio! – as vagas o sustentavam no seu dorso espumejante, como se fossem de vidro sólido. Pedro caminhava sobre as águas!
Contentíssimo, dirigiu-se ao encontro de Jesus, não sem lançar um olhar significativo aos colegas, que o contemplavam, estupefatos, de dentro da barca. Enquanto assim caminhava, equilibrando-se valentemente e sorrindo cheio de satisfação, viu avançar sobre si um vagalhão enorme coroado de espuma – e teve um sentimento de incerteza; desprendeu o olhar da pessoa de Jesus e duvidou da possibilidade de sair incólume de tamanho perigo – e eis que no mesmo instante começou a afundar-se nas águas, até ao joelho... até ao peito!... – Salva-me, Mestre! – bradou o periclitante. Num ápice, estava Jesus ao pé dele, aferrou-o por um braço, colocou-o na superfície da água – e eis que novamente as ondas o sustentavam. Disse-lhe o Mestre em tom de censura: – Homem de pouca fé, por que duvidaste? E puseram-se os dois, Jesus e Pedro, a caminhar tranquilamente sobre as águas do Genesaré, o Mestre de mãos dadas com o discípulo. E foram em demanda da embarcação. Chegados a bordo, viram-se logo cercados da maruja estupefata, que se lançou aos pés do taumaturgo, exclamando: – Tu és, realmente, o Filho de Deus! Os próprios discípulos pasmaram-se dessa manifestação de poder sobre os elementos irracionais; pois – acrescenta Marcos – ainda não tinham compreendido aquilo dos pães, porque traziam os corações obcecados.
Cristo, o pão vivo Antes do clarear do dia, chegou Jesus com os seus discípulos à margem ocidental do lago Genesaré, e dirigiu-se para Cafarnaum. Entrementes, amanheciam as turbas, na banda oposta, onde Jesus tinha operado o milagre da multiplicação dos pães. A maior parte daqueles 5 mil homens, e, talvez, outras tantas mulheres e crianças, não tiveram tempo para regressar a seus lares, vendo-se obrigados a pernoitar nas vizinhanças. Logo de madrugada, foram em busca do profeta de Nazaré. Onde estaria ele? Tinham-no visto subir a um monte; não embarcara com os discípulos, e não havia por aí outra embarcação. Depois de muito procurar e indagar acabaram por se convencer de que Jesus partira para Cafarnaum. Contornaram, portanto, o lago pelo litoral do norte, enquanto outros se serviam das lanchas que, entrementes tinham chegado da cidade. Em Cafarnaum, encontraram a Jesus em plena atividade, e perguntaram-lhe, admirados: – Mestre, quando vieste aqui? Respondeu-lhes Jesus: – Em verdade, em verdade vos digo: andais à minha procura, não porque vistes milagres, mas porque comestes dos pães e ficastes fartos. Não vos afadigueis por um manjar perecedor; mas, sim, pelo manjar que permanece para a vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará; pois a ele é que o Pai acreditou. – Que nos cumpre fazer para praticarmos as obras de Deus? – perguntaram eles. Respondeu-lhes Jesus: – A vontade de Deus é que tenhais fé naquele que ele enviou. Tornaram-lhe os judeus:
– Que sinal nos dás, para que vejamos e possamos ter fé? Qual a tua obra? Nossos pais comeram o maná, no deserto, conforme está escrito: Do céu lhes deste pão para comer. Respondeu-lhes Jesus: – Em verdade, em verdade vos digo: não foi Moisés que vos deu o pão do céu; meu Pai é que vos dará o verdadeiro pão divino que desce do céu e que dá a vida ao mundo. A estas palavras os mais sinceros dentre os ouvintes responderam como, um dia, a Samaritana, no poço de Jacó: – Senhor, dá-nos sempre desse pão. Então disse Jesus: – Eu sou o pão da vida; quem vem a mim já não terá fome; e quem tiver fé em mim, jamais terá sede. Mas bem vos dizia eu que não tendes fé, ainda que me tenhais visto. Tudo quanto o Pai me dá vem a mim; e eu não repelirei a quem vier a mim; porque desci do céu, não para cumprir a minha vontade, mas, sim, a vontade daquele que me enviou. A vontade daquele que me enviou é esta: que eu não deixe perecer nada de quanto me confiou; mas que o ressuscite no último dia. Sim, a vontade de meu Pai é esta: que todo homem que vir o Filho e nele tiver fé, tenha a vida eterna – e eu o ressuscitarei no último dia. Murmuraram então os judeus contra ele, por ter dito: Eu sou o pão vivo que desceu do céu. E diziam: Porventura, não é este Jesus filho de José? E não lhe conhecemos nós o pai e a mãe? Como diz, pois: Eu desci do céu? Vendo Jesus que, apesar de tudo, os judeus se guiavam pelos sentidos, tornou a insistir na necessidade da fé, dizendo: – Ninguém pode vir a mim, se não for atraído pelo Pai que me enviou; e eu o ressuscitarei no último dia. Quem tem fé em mim tem a vida eterna. Eu sou o pão da vida. Vossos pais comeram o maná, no deserto; porém morreram. Mas este é o pão que desce do céu, para que quem dele comer não morra. Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo. Disputaram então entre si os judeus e disseram: Como pode este dar-nos a comer a sua carne? Replicou Jesus: – Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não lhe beberdes o sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no
último dia; porque a minha carne é verdadeiro manjar, e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue fica em mim e eu nele. Do mesmo modo o Pai me enviou, e como eu vivo pelo Pai, assim também viverá por mim quem me receber em alimento. Este é o pão que desceu do céu; e não como o maná, que vossos pais comeram, porém morreram. Quem comer este pão viverá eternamente. Disseram os ouvintes: – Dura é esta linguagem! Quem a pode ouvir? Disse Jesus: – Isto vos escandaliza? E se virdes o Filho do Homem subir aonde estava antes? O espírito é que vivifica; a carne de nada vale; as palavras que acabo de dizer-vos são espírito e são vida. Mas há entre vós alguns que não têm fé... “É que ele sabia desde o princípio”, diz o evangelista, “quem eram os sem-fé e quem havia de entregá-lo.” “A partir daí, muitos dos seus discípulos se retiraram, e não mais andavam com ele.” Perguntou Jesus aos doze: – Quereis também vós retirar-vos? A esta intimação categórica do divino Mestre, adiantou-se Simão Pedro, e disse: – Senhor, a quem havíamos de ir? Tu tens palavras de vida eterna; e nós cremos e sabemos que tu és o Cristo, o Filho de Deus! Em torno de Jesus estavam os discípulos, os varões da fé, os representantes do mundo espiritual. O Mestre corre um olhar perscrutador pela roda dos doze – e acaba por fitá-los na pessoa de Judas Iscariotes, dizendo: – Não vos escolhi eu a vós doze? E, no entanto, um de vós é um diabo!... “Referia-se Jesus a Judas Iscariotes; porque este o havia de entregar – ele, um dos doze.” *** Por meio de todas estas palavras sobre o “pão do céu” recorre Jesus a uma parábola de difícil interpretação. E quando os ouvintes julgavam que deviam comer a carne física de Jesus, respondeu-lhes ele que era sua carne em sentido metafísico, o seu Cristo:
“As palavras que vos digo são espírito e vida – a carne de nada vale”. Na última quinta-feira, na santa ceia, repete Jesus esta mesma parábola, que até hoje está sendo interpretada em sentido físico, como se o homem devesse comer a carne e beber o sangue de Jesus.
Mandamentos divinos e tradições humanas Em face das perseguições violentas que os fariseus lhe moviam, resolveu Jesus não subir a Jerusalém por ocasião da Páscoa que se aproximava. Não convinha mostrar-se publicamente no templo. Mas nem assim escapou às importunações deles. Tinham os seus emissários por toda a parte. Estava em plena florescência, no tempo de Jesus, o formalismo religioso do clero judaico; os fariseus, classe culta e religiosa, tinham chegado a tal extremo de pedantismo ascético-ritual, que contrastava flagrantemente com a encantadora simplicidade do Nazareno. Um dos pecados mais monstruosos que um homem podia cometer aos olhos de Jesus era a ostentação religiosa; alardear virtudes e boas obras; gloriar-se da sua piedade; fazer parada com jejuns, esmolas e obras de caridade – era isto, na linguagem de Jesus, o mesmo que ser sepulcro caiado. Certo dia, observaram os fariseus que os discípulos de Jesus se sentavam à mesa, sem terem previamente lavado as mãos. É que os fariseus, como os judeus em geral – refere o evangelista – não comem sem primeiro lavar as mãos, fiéis às tradições dos maiores. Quando vêm da praça não ousam tomar um bocado sem antes se lavar ou tomar banho. Da mesma forma, consoante as tradições, lavam os copos e as taças, as cadeiras e os reclinatórios. Observaram, então, os escribas e fariseus a Jesus: – Por que é que os teus discípulos transgridem as tradições dos antepassados, pois não lavam as mãos antes de comer?... Aí estava uma das maiores preocupações desses homens sem alma! “Coavam mosquitos – e engoliam camelos”... Em vez da resposta, fez-lhes o Mestre outra pergunta, bem mais momentosa: – E vós, por que transgredis os preceitos de Deus por amor às vossas tradições? Deus disse: Honrarás pai e mãe! e: Quem injuriar pai ou mãe será réu de morte! Vós, porém, dizeis: Quem oferece em sacrifício o que deveria a eles, está dispensado de honrar pai e mãe: Destarte, ab-rogais o mandamento
de Deus por amor à vossa tradição. Hipócritas! Bem profetizou de vós Isaías, dizendo: Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim; não tem valor a meus olhos o seu culto, porque o que ensinam são doutrinas e preceitos humanos. Aqueles homens e rabis de Israel guardavam meticulosamente as mil e uma tradições e praxes religiosas dos fundadores e mestres da sua seita; tinham acumulado em torno da lei mosaica um verdadeiro acervo de prescrições e proibições. O fariseu da gema receava menos cometer um homicídio do que omitir uma só dessas regras. No dia da morte de Jesus, Páscoa judaica, não ousam eles entrar no pretório de Pilatos, com medo de se “contaminarem” no ambiente pagão desse goim – mas não lhes causa escrúpulo algum condenarem à morte um homem justo. Não se arreceiam de comprar a consciência de Iscariotes com trinta moedas de prata – mas vêem pecado de sacrilégio em recolher ao cofre do templo o dinheiro que o traidor, desesperado, lhes lançou aos pés... Escandalizam-se grandemente de verem Jesus à mesa com publicanos e pecadores; e quando Simão, o fariseu, vê Madalena beijar os pés de Jesus, enche-se de indignação e desprezo, convencido de que aquela mulher é uma pecadora, e de que Jesus não é nenhum profeta – mas isto não os impede de negociarem com o adúltero Herodes Antipas sobre a condenação de Jesus... Apanharam em flagrante adultério uma mulher e estão resolvidos a apedrejá-la para fazer jus à lei de Moisés – mas não recuam diante do assassínio de Estevão, cujo único “crime” consistia em ser o chefe dos cristãos. É por causa dessa duplicidade de consciência que Jesus lhes lança a censura veemente de coarem mosquitos e engolirem camelos. A lei natural e divina prescreve que os filhos honrem seus pais e lhes acudam em suas necessidades temporais – mas o formalismo casuístico dos fariseus declarava que esta lei era suficientemente cumprida quando o filho dava uma oferta ao templo e fazia os pais participarem das bênçãos dos sacrifícios, sem se importar com as necessidades materiais dos progenitores – sacrificando, assim, uma lei natural e um mandamento divino a uma instituição puramente ritual. – Hipócritas! – lhes brada Jesus. E, convocando o povo, lhes diz: – Escutai e compreendei bem: o que entra pela boca não torna o homem impuro; mas sim o que sai da boca, isto é que torna o homem impuro. Ao que chegaram a Jesus os seus discípulos e lhe disseram: – Sabe que os fariseus se escandalizaram quando ouviram esta palavra?
Respondeu Jesus: – Toda planta que não for plantada por meu Pai celeste será exterminada! Deixai-os! São cegos e guias de cegos! Mas, quando um cego guia outro cego, ambos vêm a cair na cova. Mais tarde, em casa, disse Pedro a Jesus: – Explica-nos esta parábola, Mestre. Disse-lhes Jesus: – Também vós estais ainda sem compreensão?! Não compreendeis que tudo que entra pela boca vai para o estômago, e daí é lançado fora? Mas o que sai da boca vem do coração, e isto é que mancha o homem; porque do coração é que vêm os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, a luxúria, os furtos, os falsos testemunhos, as blasfêmias – e são estas coisas que mancham o homem. Mas isto de comer sem lavar as mãos não torna o homem impuro.
A mulher cananéia Na Judéia, estavam os inimigos à espreita de Jesus para o matar; na Galiléia, acabavam os fariseus de escandalizar-se grandemente com as palavras desassombradas do Nazareno, desmascarando-lhes a hipocrisia em face do povo. A atmosfera vinha prenhe de nuvens, que tanto mais sinistras e minazes se condensavam, quanto mais se avizinhava a terceira Páscoa da vida pública de Jesus. Mas ainda não era chegado o dia do sacrifício. Por isso, o Mestre não quis levar ao extremo a indignação dos seus adversários; teve por bem avisado retirar-se, por algum tempo, do meio deles e passar para território gentio. Deixou, então, a Galiléia e, tomando por Saphed, seguiu rumo noroeste, em direção às praias do Mar Mediterrâneo; transpôs as fronteiras palestinenses e internou-se em terras siro-fenícias, chamadas também Canaã. Era uma jornada de 4 a 5 dias. Queria que ninguém o soubesse, diz o evangelista; porque não ia em caráter oficial, em missão pública, senão apenas como hóspede e visitante fortuito. Não era chegado o tempo de pregar o Evangelho aos gentios. Mas nem assim pôde ficar oculta a sua passagem; porque uma mulher pagã, mal ouviu da presença do taumaturgo de Israel, seguiu no encalço dele, suplicando em altos brados: – Senhor, filho de Davi! Tem piedade de minha filha, que está muito atormentada por um espírito maligno. Jesus, porém, fez ouvidos de mercador e seguiu adiante. Nenhuma resposta, nenhum olhar. Mas a mulher não desanimou com este indiferentismo do rabi judeu. Continuou a pedir, a bradar, a suplicar, com essa tenacidade característica da mulher e da mãe. Estava firmemente resolvida a não deixar fugir aquela ocasião única, último raio de esperança de um coração atribulado. Redobrou de clamores,
interpelando, ora o Mestre, ora os discípulos, a tal ponto que estes últimos, aborrecidos com a importunação, disseram a Jesus: – Despacha-a, porque vem gritando atrás de nós! Não foi, decerto, por amor dela, mas por amor de si mesmos que os discípulos pediram ao Mestre “despachasse” aquela mulher. Tornou-lhes Jesus: – Não fui enviado senão às ovelhas que se perderam da casa de Israel. Revelam estas palavras um traço característico da vida de Jesus: a limitação territorial da sua atividade. A sua missão inicial consistia em evangelizar o povo de Israel, portador multissecular das promessas messiânicas; mais tarde, por intermédio de Israel, é que os povos gentios receberiam a boa nova da redenção e entrariam no reino de Deus. Restringe a sua atividade àquele reduzido círculo de ouvintes quando com muito maior brilho e eficácia podia pregar o Evangelho no areópago de Atenas, no “fórum” de Roma, no grande empório comercial de Alexandria, ou nos quartéis militares de Cartago; podia falar aos sábios e aos poderosos do mundo; podia percorrer povos e países, como mais tarde fizeram Paulo de Tarso, Francisco Xavier, Livingstone, e tantos outros pioneiros do Evangelho. Mas a vontade do Pai não era esta, e Jesus não queria um apostolado, por mais deslumbrante, que não fosse conforme à vontade de Deus. Daí a aparente indiferença que faz sentir à mulher pagã da Siro-Fenícia. Impôs silêncio ao próprio coração para não exorbitar do plano traçado pelo “Senhor da seara”. Nada disto, porém, foi capaz de quebrar a tenacidade da pobre mãe. Ela não pedia para si, pedia para uma infeliz creatura atormentada pelo demônio. Foi no encalço do Mestre um bom trecho da estrada, repetindo sempre as mesmas palavras repassadas de angustia: – Senhor, filho de Davi, tem piedade de minha filha!... Entrementes, chegaram a uma povoação. Jesus entrou numa casa. Os discípulos respiraram aliviados. Ao menos agora aquela mulher importuna desistiria dos seus clamores e deixaria o Mestre em paz. Mas assim não aconteceu. Ela também entrou na mesma casa, afoitamente, com a coragem que a angústia lhe inspirava. A dor não conhece convenções sociais: lançou-se aos pés de Jesus e bradou: – Ajuda-me, Senhor!
Mas o coração de Jesus parecia de pedra; não se rendeu à mais comovente das súplicas. Os próprios discípulos estranharam a insensibilidade do Mestre. E, como a mulher, prostrada diante dele, continuasse a clamar e a suplicar, romperam dos lábios de Jesus as palavras mais duras que já dirigiu a uma pobre alma – e alma feminina, e alma de mãe, no paradoxismo da dor e do desespero. – Não convém – disse em tom glacial – tirar o pão aos filhos e lançá-los aos cachorrinhos!... Tão cruel parecia-lhe a ele mesmo esta comparação, que não conseguiu proferir a palavra “cães”, mas disse “cachorrinhos”, porque não sugeria o coração usar daquela designação. Mas, mesmo assim, a sentença era dura, desumanamente dura. Os filhos da casa eram os israelitas; os cachorrinhos eram os gentios; o pão simboliza o favor que a cananéia vinha implorando com tanta insistência. A resposta era dura – porém mais dura e dolorosa ainda era a situação da suplicante. Não se deu por vencida, nem por ofendida. Só tinha no coração um sentimento, a dor de saber a sua filha cruelmente atormentada por um espírito, sabe Deus quantos anos! Tudo faria, tudo sofreria, contanto que sua filha fosse libertada daquele estado. E que faz essa mulher pagã ao ouvir as palavras de Jesus? Ao saber que ela não passava de um cachorrinho aos olhos dele, que faz ela? Tira daí mesmo um argumento em seu favor; responde com uma lógica admirável: – Decerto, Senhor; mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos filhos. Jesus está derrotado! Derrotado pelas suas próprias palavras! A mulher dá plena razão ao Nazareno: concede que ela não passa de um pobre cachorrinho debaixo da mesa; que não tem o direito de sentar-se à mesa do banquete e comer das iguarias de favores que, dia a dia, ele oferecia aos filhos de Israel; nem tanto pretende ela. Mas, uma vez que é cachorrinho, quer também gozar dos direito dos cachorrinhos de casa e comer das migalhas que caem da mesa dos filhos. E uma dessas migalhas ela está pedindo com tanta insistência, e até ali não lhe foi concedida – é tratada pior que um cachorrinho debaixo da mesa!... Em face de tamanha humildade e de uma fé tão invencível, se vê Jesus desarmado; dá-se por vencido, rende-se a uma mãe pagã e exclama: – Ó mulher! Grande é a tua fé! Faça-se contigo assim como pedes! Por causa desta palavra, vai-te, que o demônio abandonou tua filha!...
Chegando a casa, encontrou ela a filha estendida no leito, livre do espírito maligno. O que não conseguira a astúcia dos sacerdotes, escribas e fariseus, isto consegue o espírito de uma mulher, o amor de uma mãe: apanhar a Jesus numa das suas palavras! Conquistar-lhe o coração com a arma que ele próprio forjara!...
O surdo-mudo Breve foi a demora de Jesus nas regiões de Tiro e Sidon. Nem consta que tenha ali feito outro milagre, afora a expulsão do demônio da filha da Cananéia. Regressou, quase às ocultas, pelo território da Decápole, situado para as bandas orientais do Jordão. Em certa povoação, lhe apresentaram um homem surdo e mudo, rogando-lhe que sobre ele pusesse as mãos. Jesus o tomou à parte, para fora da turba, pôs-lhe os dedos nos ouvidos, tocou-lhe com saliva a língua, levantou os olhos ao céu, deu um suspiro e disse: Éphpheta, que quer dizer: abre-te! E no mesmo instante abriram-se-lhe os ouvidos e soltou-se-lhe a prisão da língua, e falava corretamente. Ordenou Jesus que a ninguém o dissessem. O povo, porém, se pôs a divulgar o acontecimento, de modo que todos pasmavam e diziam: Ele faz bem todas as coisas; faz ouvir os surdos e falar os mudos. Quando o homem, na sua ignorância, se vê subitamente em face de um fenômeno que ultrapassa a noção do âmbito das leis naturais, torna-se qual criança e começa a balbuciar palavras ingênuas e desajeitadas, como estas: Ele faz bem todas as coisas... Ou então: Ele não fala como os nossos escribas e sacerdotes... Ou ainda: Nunca homem algum falou como este!... Em nenhuma outra cura recorre Jesus a cerimônias tantas e tão complicadas como nesta. É certo que, para realizar o milagre, não tinha mister levar o homem fora da turba, nem lançar mão dos outros gestos narrados pelo evangelista. Entretanto, serviu-se de tudo isto para ensinamento dos que o viam e ouviam, e em proveito do próprio doente. Não é a linguagem de Jesus que vem repleta de simbolismos, senão também as suas ações. Muitos dos seus atos são parábolas e alegorias cristalizadas em forma visível e palpável. O homem não é puro espírito. Deseja perceber pelos sentidos corporais o que se passa nos recônditos da alma. Se Jesus tivesse proclamado o reino de Deus aos anjos do céu, certamente não o teria engastado nessa multiplicidade de cerimônias e ritos; teria apresentado a sua revelação despida de qualquer engaste material. Mas, como a religião cristã é destinada aos homens, deve ela corresponder à natureza humana, que é espiritual-material. A religião deve concordar com a natureza humana; deve ser um organismo harmônico
informado por um princípio vital que o anime e vivifique – um culto espiritualmaterial. Para o homem comum, uma religião puramente interna não seria um culto “em espírito e verdade”, como exige o divino Mestre, mas, quando muito, um culto em espírito. Por outro lado, uma religião puramente externa não seria um culto em espírito nem um culto em verdade. Uma religião interna-externa é um culto em espírito e verdade porque, dotada de alma e de corpo, corresponde ao composto humano; não é uma caricatura, mas um retrato fiel da nossa natureza espiritual-material.
O fermento dos fariseus Achava-se Jesus ao nordeste do lago de Genesaré, cercado de grande multidão de povo. Subiu a um monte e sentou-se para lhe falar do reino de Deus. Muitos, porém, compreendiam melhor a petição “o pão nosso de cada dia nos dá hoje”, ou esta outra: “livrai-nos do mal”, do que a súplica: “venha a nós o teu reino”. O reino da terra e o bem-estar corporal lhes pareciam coisas mais concretas do que a abstrata realidade do reino de Deus. Não tardou, pois, Jesus a ver-se cercado de numerosas pessoas que pediam alguma coisa para esta vida: doentes, cegos, surdos, mudos, coxos, aleijados, paralíticos – todos eles à espera da saúde corporal: “Livra-nos do mal”! Depois de ter dado alimento às almas famintas, e restituído a saúde aos corpos enfermos, resolveu Jesus beneficiar também os corpos daqueles que estavam com saúde e o tinham excitado. Pois havia três dias que ele se encontrava naquelas regiões e três dias havia que o povo lhe bebia dos lábios as palavras da vida eterna. Era tempo de receberem das suas mãos também o pão da vida temporal. Em seguida, despediu as turbas, embarcou com seus discípulos e foi em demanda para Betsaida, pátria de Simão Pedro, André e alguns outros discípulos. Nesta travessia, ocorreu um incidente que bem mostra o caráter simples dos discípulos, a morosidade da sua compreensão, a ingenuidade natural da sua alma, como também a grande vontade e paciência do divino pedagogo. Não tinham levado pão para a viagem. Teria sido fácil guardarem alguns daqueles fragmentos que recolheram, depois do milagre da multiplicação; mas, esquecidos e imprevidentes, nada tinham levado. Durante a travessia do lago, enquanto alguns dos discípulos manejavam os remos, ou deixavam correr a embarcação à mercê dos ventos propícios, sentou-se Jesus num barco no meio deles, e começou a falar-lhes da hipocrisia dos fariseus e a preveni-los das doutrinas perversas dos saduceus. É que, pouco antes de partirem, tinham eles travado uma discussão com aquelas seitas astutas e formalistas que ameaçavam corromper as massas populares, como já tinham adulterado as idéias sobre o Messias e seu reino. Por isso, lá
na sua linguagem alegórica, referindo-se a essas perigosas sugestões, dizia o Mestre: – Cuidado com o fermento dos fariseus e dos saduceus! Os bons discípulos, ouvindo a palavra “fermento”, lembraram-se de súbito que tinham esquecido de levar pão para a viagem, entreolharam-se surpresos, e começaram a dizer uns aos outros: – É porque não levamos pão... Alguns – quem sabe? –, cheios de apreensão, já previam que, chegados à terra, seriam obrigados a comprar pão em casa daquela gente perigosa, e não era impossível que fosse pão envenenado; e morreriam todos naquele mesmo dia, eles e o Mestre... Era por isso, certamente, que Jesus lhes falava, com tanta insistência, no fermento dos fariseus e saduceus... Assim pensavam ou discorriam entre si os valentes remadores, enquanto impeliam vigorosamente a lancha – quando de súbito os interrompeu o Mestre, dizendo: – Que estais aí a discorrer entre vós, por não terdes pão? Homens de pouca fé! Ainda estais sem juízo nem compreensão? Ainda tendes o coração cego? Tendes olhos e não vedes? Tendes ouvidos e não ouvis, nem guardais lembrança? Quando distribuí cinco pães a cinco mil homens, quantos cestos de sobejo recolhestes? – Doze – responderam eles, secamente. – E, quando distribuí sete pães a quatro mil homens, quantos cestos de pedaços recolhestes depois? – Sete – tornaram, com o mesmo laconismo. Queria Jesus fazer-lhes ver que nenhum motivo de inquietação havia por falta de pão; pois quem pode fazer prodígios tão grandes, não os poderia fazer menores, se necessário fosse? Depois lhes explicou o sentido da palavra “fermento”, que nada tinha que ver com o pão dos fariseus. – E não compreendeis que, quando vos digo “cuidado com o fermento dos fariseus e saduceus”, não quis referir-me ao pão? Então compreenderam eles, finalmente – acrescenta o evangelista Marcos –, que não lhes mandava se acautelassem do fermento do pão, mas, sim, da doutrina dos fariseus e saduceus.
A pedra da Igreja Principiara o terceiro e último ano da vida pública de Jesus. Terminara a derradeira Páscoa do Nazareno... A Páscoa seguinte assistiria à sua morte nas alturas do Gólgota. O último ano da vida de Jesus é um misto singular de sombras e de luzes. Cerram-se cada vez mais as nuvens sombrias das ameaças e perseguições de seus inimigos. O Mestre fala frequentes vezes na sua paixão e morte. Ia deixar o mundo, mas o seu Evangelho deveria prosseguir na sua marcha triunfal através da História. Certo dia, foi Jesus em demanda do extremo norte da Palestina, longe das grandes cidades e do tumulto da sociedade. Transpôs as fronteiras e internouse com os seus discípulos em território pagão, rumo ao grande Hermon, cujos píncaros continuavam listrados de glaciares e neves, mesmo em pleno estio. Quando Jesus se retirava para as regiões do paganismo, expirava em torno dele o tumulto popular e a lufa-lufa que o cercava dia noite, nas cidades e aldeias de Israel. Silêncio e solidão se alargavam em torno dele. Os fariseus evitavam meticulosamente as terras dos goim para não se “contaminarem”; e o povo simples raras vezes se distanciava tanto dos seus lares. Foi, portanto, a caravana apostólica subindo lentamente as rampas e encostas, guardas avançadas da grande serrania do norte, deixando muito longe, no fundo do vale, o lago plácido do Genesaré e as sinuosidades do Jordão. Mais e mais se avizinhavam as três cúpulas do Hermon, que se eleva acima do nível do mar a quase 2.800 metros. Djebel-el-Sheik lhe chamam os árabes de hoje, isto é, monte de cabelo branco. As águas das grandes geleiras se infiltram lentamente nas fendas do solo, reúnem-se em canais subterrâneos, e rebentam em fontes borbulhantes nas fraldas da montanha. Existem ao sopé da serrania três nascentes, parecendo corresponder às três pontas do Hermon. Próximo de uma dessas fontes de águas frescas, havia o tetrarca Filipe edificado uma cidade, à qual dera, por vaidade pessoal, o seu próprio nome e, por espírito de bajulação, acrescentara o nome dos chefes do império romano: Cesaréia de Filipe, ou seja, a cidade imperial de Filipe. Hoje se chama Banias. Herodes I, o Grande, pai de Filipe, levantara nesse sítio pitoresco um templo em honra do deus Pã.
Luxuriante vegetação caracterizava estas zonas banhadas pelas nascentes do Jordão. Ecoavam os ares do sonoro escachoar das águas a precipitar-se em vertiginosa carreira. Pelo caminho de Cesaréia de Filipe, Jesus não falou com os discípulos; mandou-os adiante, enquanto ele mesmo se deixou ficar atrás. Os discípulos, galileus e pescadores, pouco se davam do ambiente pagão que os cercava, ainda que a vista dos templos e ídolos de todo gênero não deixasse de os impressionar desagradavelmente, monoteístas que eram. Não faltavam, contudo, numerosas famílias judias disseminadas entre os pagãos nessas regiões. Aqueles treze homens certamente causaram reparo. Choviam observações de todos os lados: – Que gente é essa? – Pela cara, são judeus. – Que vem eles procurar aqui? –? – Parece que são pobres; nem cavalgadura têm... – Mas não parecem mendigos. De vez em quando, eram os discípulos interpelados por algum transeunte sobre a pessoa de seu Mestre, cuja fama penetrara até essas plagas. Destarte, chegaram eles a saber o que a gente dizia de Jesus: achavam uns que Jesus fosse João Batista redivivo; outros o identificavam com Elias; outros ainda o davam por Jeremias reencarnado, ou algum dos profetas antigos. Dissera o profeta Malaquias que, nos dias do Salvador, reapareceria Elias, o profeta mais popular de Israel, que fora arrebatado por Deus em corpo e alma. Numa palavra, todos os que tinham visto o Nazareno, ou ouvido dos seus feitos e da sua doutrina, estavam convencidos de que se tratava de homem extraordinário, de um ser dotado de poderes sobre-humanos. Às portas da cidade, tornou Jesus a reunir-se aos discípulos e, sem preâmbulos, lhes fez esta pergunta: – Quem diz a gente ser o Filho do Homem? Responderam eles:
Dizem uns que é João Batista; outros, Elias; ainda outros, Jeremias, ou algum dos profetas antigos que tenha ressuscitado. – E vós – perguntou-lhes ele –, quem dizeis que eu sou? Respondeu Simão Pedro: – Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo. A pergunta era dirigida a todos os discípulos, mas Simão Pedro, o homem da fé, o coração ardente e impetuoso, não pôde aguardar a resposta dos colegas; adianta-se, encara o Mestre e faz a sua profissão de fé: ele é “o Cristo”, isto é, o Ungido, o Messias, o Salvador prometido pelos profetas da lei antiga; é o “Filho de Deus vivo”, não algum filho de Deus adotivo. Conhecimento tão claro não podia provir das luzes humanas, mas era efeito de uma revelação sobrenatural, como Jesus afirma: – Bem-aventurado és tu, Simão Pedro! Porque não foi a carne e o sangue que to revelaram, mas, sim, meu Pai que está no céu. Há muitos séculos que estas palavras do Cristo estão suscitando controvérsias no seio do Cristianismo. Opinam alguns teólogos que a “pedra” seja Pedro. Acham outros que a “pedra” seja a confissão de Pedro; defendem outros ainda que a “pedra” designe o próprio Cristo. Em vez de tomarmos este ou aquele partido, preferimos reproduzir, no próprio texto original latino, as palavras de Agostinho, cuja catolicidade cristã ninguém ousará pôr em dúvida. Citaremos as palavras do insigne doutor da Igreja, segundo a edição clássica de Migne, Paris, 1877, vol. V, p. 479, sermão 76, edição feita sob os auspícios dos Padres Beneditinos. Diz, pois, Agostinho, no comentário às palavras de Cristo reproduzidas pelo Evangelista Mateus, 16, 13-18: “Quia tu dixisti mihi: Tu es Christus, Filius Dei vivi, et ego dico tibi: Tu es Petrus. Simon quippe antea vocabatur. Hoc autem ei nomen, ut Petrus appellaretur, a Domino impositum est. Et hoc in ea figura, ut significaret Ecclesiam. Quia idem Christus petra, Petrus populus christianus. Petra enim principale nomen est. Ideo Petrus a petra, non petra a Petro – quomodo non a Christiano, sed a Christo christianus vocatur. Tu es ergo, inquit, Petrus; et super hanc petram, quam confessus es; super hanc petram, quam cognovisti, dicens: Tu es Christus, Filius Dei vivi, aedificabo Ecclesiam meam (Mt 16,1318) – id est: Super me ipsum, Filium Dei vivi, aedificabo Ecclesiam meam. Super me aedificabo te, non me super te”. Em tradução vernácula: “Porque tu disseste: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo, também eu te digo: Tu és Pedro; pois antes se chamava Simão. Ora, este nome Pedro lhe foi
imposto pelo Senhor. E vai nisto uma figura, para que significasse a Igreja. Porquanto, a pedra é Cristo; Pedro é o povo cristão. Pois, pedra é nome principal. Tanto assim, que Pedro vem de pedra, e não pedra de Pedro – assim como Cristo não vem de cristão, mas cristão vem de Cristo. Diz, portanto: Tu és Pedro, e sobre esta pedra, que confessaste dizendo: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo, edificarei a minha igreja. Quer dizer: Sobre mim mesmo, o Filho de Deus vivo, edificarei a minha igreja. Sobre mim é que te edificarei, e não a mim sobre ti”. No citado sermão prossegue Agostinho dizendo: “Pois, quando os homens queriam edificar sobre os homens, diziam: Eu sou de Paulo, eu sou de Apolo, eu sou de Cefas – que é o mesmo que Pedro. Outros, porém, que não queriam edificar sobre Pedro, mas sobre a pedra, diziam: Eu sou de Cristo. Ora, quando o apóstolo viu que ele estava sendo eleito, e Cristo desprezado, disse: Porventura, está Cristo dividido? Acaso foi Paulo crucificado por vós? Ou fostes batizados em nome de Paulo? (1 Cor 1,12) Assim como não o foram em nome de Paulo, tampouco o foram em nome de Pedro, mas, sim, em nome de Cristo; para que Pedro fosse edificado sobre a pedra, e não a pedra sobre Pedro... Perguntou Jesus: Simão, filho de João, amas-me mais do que estes? Respondeu ele, dizendo: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: Apascenta os meus cordeiros... apascenta as minhas ovelhas. Na pessoa única de Pedro vinha figurada a unidade de todos os pastores, isto é, os bons, os que sabiam apascentar para Cristo as ovelhas de Cristo, e não para si mesmos. Será que Pedro mentiu? Será que mentiu ao dizer que amava ao Senhor? Não, ele falava verdade ao dizer isto, porque respondia o que via em seu coração... A pedra fizera a Pedro verdadeiro. A pedra, porém, era o Cristo (1Cor 10,4)”. Até aqui Agostinho era como porta-voz da doutrina quase geral naqueles tempos. É claro, à luz do texto do Evangelho, que Jesus não fundou sua igreja sobre a pessoa humana (carne e sangue) de Pedro, mas sobre a revelação divina que Pedro acabava de receber: essa revelação divina é que é chamada a “pedra” ou rocha da Igreja. Como pessoa, pode Pedro ter sucessores; mas a revelação divina não tem sucessores pessoais – ou melhor, todos os que professam a divindade do Cristo, dentro ou fora da hierarquia eclesiástica, são edificados sobre a pedra. Era esta a doutrina predominante nos primeiros séculos do Cristianismo; assim pensavam Pedro, Paulo, os outros discípulos, até o tempo de Agostinho, quinto século. Só mais tarde, com a sucessiva centralização da hierarquia eclesiástica
na metrópole do império romano, é que surgiu paulatinamente a doutrina de que Jesus nomeara a pessoa de Pedro fundamento da sua igreja, e que seus sucessores eclesiásticos herdavam esse poder. Esta doutrina visa a consolidação da hierarquia da igreja de Roma, mas não corresponde à verdade proclamada por Jesus.
Jesus prediz sua paixão Poucos dias haviam decorrido após a chegada de Jesus ao sopé do Hermon. Refere o evangelista: “Começou Jesus a declarar-lhes que era necessário que o Filho do Homem padecesse muito, fosse rejeitado e morto pelos anciãos, sumos sacerdotes e escribas; mas que ao terceiro dia havia de ressurgir. Falava disto com toda a clareza”. Foi como um eclipse solar em pleno meio-dia! A linguagem do Mestre era clara e não deixava margem a dúvidas; mas era dura... Os discípulos fixaram toda a atenção nas palavras lúgubres “padecer”, “morrer”, e nada viram dos fulgores que aureolavam a palavrinha “ressurgir”. Calaram-se, tristes, como que aniquilados. Não sabiam o que dizer ou pensar... Contradizerem ao Mestre?... Resignarem-se àquela triste situação?... Somente Pedro, que sempre trazia o coração à flor dos lábios, se animou a manifestar, desassombradamente, a sua estranheza e desaprovação, assim como, dias antes, fora o único a professar rasgadamente a sua fé e o seu amor pelo divino Mestre Jesus, que nos últimos dias lhe parecia vítima de negro pessimismo, de uma tal ou qual disposição derrotista a respeito do seu futuro. Tomou, então, à parte o Mestre, com ares de importância, e começou a fazerlhe recriminações, dizendo: – Deus te livre, Senhor! Tal coisa não há de suceder-te!... Jesus, porém, voltou o rosto, e disse a Pedro: – Retira-te de mim, Satanás, que me és pedra de tropeço! O teu modo de pensar não é de Deus, mas de homem!... Pedro estremeceu, fulminado. Os discípulos baixaram os olhos. A censura tocava a todos, porque as palavras do chefe eram o eco dos sentimentos de todos eles. Não se falou mais... Um silêncio pesado e triste envolveu a pequena caravana...
A pedagogia de Jesus ĂŠ assim mesmo: toda tecida de luzes e de sombras, toda bondade de pai e rigor de juiz...
Transfiguração de Jesus Estamos no verão do último ano da vida pública de Jesus. Vinha a caravana apostólica das bandas do norte, de Cesaréia de Filipe. Transcorrera uma semana após os momentosos acontecimentos acima referidos. De volta à Galiléia, tomou Jesus rumo do monte Tabor, que se ergue à beira da extensa planície de Esdrelon, umas duas léguas distante de Nazaré. Mede 600 metros de altura, e tem a forma de uma pirâmide achatada no vértice. O espírito religioso do povo lhe deu o nome de Tabor, que quer dizer altar. Era pela tarde daquele dia, quando atingiam as fraldas setentrionais do monte. Deviam estar exaustos de fadiga, tanto Jesus como seus discípulos, porque o trajeto Cesaréia-Tabor comporta nada menos de 20 léguas. Os discípulos, certamente, bem pouca vontade tinham de galgar o monte ainda naquela tarde. Pelo que Jesus lhes deu ordem de esperarem ao sopé até que ele voltasse, levando consigo apenas os três confidentes: Pedro, Tiago e João. Subiram, pois, esses quatro. O trilho, em ziguezague, levava através de colinas amenas e pitorescas esplanadas cobertas de abundante vegetação. Recolheu-se Jesus com os três numa ligeira depressão do terreno, ao pé de um rochedo. Tornou a falar-lhes no mistério da sua paixão e morte, como também na sua gloriosa ressurreição ao terceiro dia. A sua voz traduzia grande ardor e intimidade, e os seus olhos brilhavam num fulgor estranho. Por algum tempo, escutaram os discípulos, num misto de alegria e de dor. Depois, exaustos de fadiga, adormeceram, reclinados sobre os rochedos circunjacentes. De súbito, despertaram – e viram diante de si Jesus, em pé, com as mãos erguidas ao céu. Uma auréola de luz lhe cingia o semblante, clarão estranho que, aos poucos, se foi comunicando ao resto do corpo, envolvendo-o num nimbo de indizível fulgor. Começava a subir lentamente e, quanto mais subia, mais intenso se tornava o esplendor que irradiava de todo o seu ser. A
esplanada do Tabor nadava num mar de luzes... O corpo de Jesus parecia transparente... No momento em que a glória do transfigurado atingiu o auge, apareceram dentro da esfera luminosa dois homens de grande majestade. Eram Moisés e Elias. O Mestre começou a falar com eles sobre sua paixão e morte e o seu regresso ao Pai. Com viva admiração ouviram que o Filho do Homem devia ser suspenso na cruz, a exemplo do que Moisés fizera com a serpente no deserto. Tão intensa brilhava a alvura das vestimentas de Jesus que era impossível fitar nelas o olhar. O seu rosto coruscava como o sol do meio-dia; e uns como lampejos de luz branca e azulada fuzilavam pelas nuvens em torno dele; tudo parecia diáfano e transparente como cristal. Os três discípulos tentaram cravar os olhos em Jesus, mas caíram por terra, fulminados pela veemência dos fulgores. Pedro, inebriado de delícia, não pôde represar no íntimo a abundância dos seus sentimentos, e começou a balbuciar como um sonâmbulo: – Mestre... que bom que é... estarmos aqui! E, quando Moisés e Elias faziam menção de se retirar, sugeriu Pedro que ficassem, dizendo a Jesus: – Se quiseres, vamos armar aqui três tendas... Uma para ti... Outra para Moisés... E outra para Elias... É que não sabia o que dizia, acrescenta Marcos. Pois, para que aquelas tendas? Para Jesus, que pairava nos ares?... Para os dois profetas que havia séculos tinham deixado os tabernáculos da terra?... De si mesmo não se lembrou Pedro, nem dos dois companheiros; eram eles os únicos que necessitavam ainda de tendas. Estava extasiado de gozo; tinha a sensação de que aquelas glórias eram a suprema beatitude do paraíso, aquela que nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano, mas que Deus preparou àqueles que o amam... Nisto desapareceram Moisés e Elias. E eis que uma nuvem tecida de luz envolveu a pessoa do Mestre. Da nuvem se lançava às regiões etéreas uma deslumbrante esteira de claridade – ponte imensa entre o céu e a terra – e do interior da nuvem ecoou uma voz que dizia: – Este é meu filho muito querido, no qual pus a minha complacência – ouvi-o! Transidos de assombro e terror ante o misterioso fenômeno quedaram-se os discípulos como cadáveres. De repente, sentiram-se tocados por alguém. Voltaram a si e perceberam uma voz que lhes dizia suavemente:
– Não temais! Levantai-vos! Era a voz do Mestre. Ergueram-se, olharam para o alto, olharam em derredor – e nada mais viram senão a Jesus. Era tudo como dantes. Só nos olhos do Mestre havia ainda uns rebrilhos daquela luz divina... Com um misto de terror e admiração, contemplavam os três o semblante do Nazareno, e mal ousavam falar-lhe... Estavam com medo dele... Parecia um espírito de outros mundos... Silenciosos o seguiram, como quem vem de uma hora de adoração extática. *** Mal se listrava de tênue alvor o horizonte, quando Jesus convidou os três discípulos a descerem com ele do monte. Recomendou-lhes que não falassem do acontecimento até que ele houvesse ressuscitado da morte. Ressuscitar da morte? Que queria dizer isto?... Os três compreenderam as palavras, mas não lhe atingiram o alcance, e puseram-se a discorrer entre si o que significaria aquilo: ressuscitar da morte! Não podiam convencer-se de que um homem como Jesus, capaz de se revestir dos esplendores do céu, pudesse algum dia morrer. Desceram do Tabor ao nascer do sol. Mas as almas de Pedro, Tiago e João continuavam a viver nas luminosas alturas da transfiguração.
O endemoninhado ao pé do Tabor Enquanto Jesus e os três discípulos fruíam delícias celestes nas alturas do Tabor, desenrolava-se ao sopé do monte uma cena tétrica. Dir-se-ia que o espírito das trevas procurava vingar-se, na pessoa de um menino, da glória do Cristo e do solene testemunho que Deus lhe dava. De modo que os nove discípulos, que não tinham subido ao monte, presenciaram outra “transfiguração” – engendrada pelo demônio. Lá em cima, a humanidade do Cristo envolta em serena claridade – cá embaixo, uma multidão de gente em alarido, os discípulos desconcertados, um pai em desespero, e um jovem a estorcer-se de dor, nas garras de um inimigo invisível... Rafael soube frisar admiravelmente, no seu grandioso quadro, esses espantosos contrastes do céu e do abismo. Que sucedera? Rodeados da turba popular, viam-se os discípulos de Jesus empenhados em discussão com alguns dos escribas e fariseus. Tentaram os discípulos expulsar um demônio, e não o conseguiram, nem mesmo em nome de Jesus. Nisto aparece Jesus com os três, descendo do monte. Todo o povo se precipita ao encontro dele para saudá-lo e invocar o seu poder no meio daquela confusão babélica; a chegada de Jesus era como um íris de paz no meio da tempestade, e todos respiraram esperançados; a cena que tinham presenciado era por demais tenebrosa e terrífica... De repente, recuaram “cheios de pasmo e estupefação”, diz Marcos. Por quê? Certamente, porque o semblante de Jesus ainda espargia algo daquela luz misteriosa que, de noite, o envolvera. Avançou Jesus, silencioso, até ao meio da turba, que abriu caminho à sua passagem. E perguntou aos discípulos: – Que estais aí a discutir com eles? Em vez da resposta saiu do meio da multidão um homem, prostrou-se aos pés de Jesus e disse com voz angustiosa:
– Suplico-te, Mestre, que tenhas piedade de meu filho!... É o único que tenho!... Está possesso de um demônio mudo, e sofre grandes tormentos... Atira com ele para cá e para lá, fazendo-o espumar e soltar gritos... Só a custo o larga, deixando-o exausto... Pedi a teus discípulos que o expulsassem, mas eles não fora capazes... Anuviou-se o semblante de Jesus. E dos seus lábios romperam estas palavras estranhas: – Ó raça incrédula e perversa! Até quando estarei convosco? Até quando vos suportarei?... Das glórias do Tabor tombara ele quase nas fauces do inferno – e o seu coração devia estar cansado dos homens e enojado desta terra de misérias... Vibra nas palavras do Mestre um quê de acerba decepção, um nota de dolorosa nostalgia... Depois de uns momentos de reflexão, como que voltando a si e relembrandose da sua missão redentora, prossegue mais animado: – Traze cá teu filho!... Trouxeram-no. Apenas o menino viu Jesus, soltou um grito estridente. Enquanto o infeliz vinha chegando, o espírito o maltratava e agitava violentamente; o endemoninhado caiu por terra, revolvendo-se no chão e espumando. Perguntou Jesus ao pai: – Quanto tempo há que isto lhe acontece? – Desde pequeno – respondeu ele. – Muitas vezes dá com ele no fogo ou na água para o matar. – Acrescentou, suplicante: – Se tu puderes fazer alguma coisa, tem piedade de nós e ajuda-nos!... Lembrava-se o pobre pai dos vãos tentames dos discípulos, que tinham falhado. Tornou-lhe Jesus, num tom de voz dolente: – Como?... Se tu puderes fazer alguma coisa?... Se puderes... Tudo é possível a quem tem fé!. – Tenho fé! – exclamou o pai entre lágrimas. – Ajuda a minha falta de fé! Palavra estranha! Num fôlego, o homem se confessa homem de fé e sem fé. Sentia a fraqueza da sua fé ou fidelidade ao mundo divino.
A incapacidade dos discípulos quase que lhe roubara a confiança num poder superior ao do invisível algoz que atormentava o filho. Mas Deus pesa a boa intenção e aceita também o “desejo da fé” em vez da própria fé. Vendo Jesus que o povo se aglomerava cada vez mais numeroso, ameaçou ao espírito impuro, dizendo: – Espírito mudo e surdo, eu te ordeno, sai do menino e não tornes a entrar nele! E, por entre gritos e convulsões violentas, o espírito saiu dele. O menino jazia como morto, de modo que muitos diziam: – Morreu! Jesus, porém, tomou-o pela mão e levantou-o, e ele se pôs de pé. Estava de saúde desde essa hora. Pasmaram todos da grandeza de Deus. E Jesus se retirou daí com os seus discípulos. Estes, porém, não contentes com o simples fato, queriam saber por que razão não puderam eles expulsar aquele espírito. Quando Jesus entrou em casa perguntaram-lhe, confidencialmente: – Por que não o pudemos nós expulsar? Respondeu-lhes Jesus: – Porque a vossa fé é fraca. Esta espécie não se expulsa senão à força de oração e de jejum.
Tristeza dos discípulos Partiram daí (do monte Tabor) e foram percorrendo a Galiléia, Jesus queria que ninguém o soubesse. Estava todo o mundo maravilhado, refere Lucas, dos prodígios que Jesus fazia e encantado com a doutrina dele. No meio dessas apoteoses todas, torna ele a predizer a sua paixão e morte, como também a sua ressurreição, e com palavras tão claras que já ninguém podia deixar de as compreender. Disse então a seu discípulos: – Gravai bem no vosso coração estas palavras: o Filho do Homem vai ser entregue às mãos dos homens; hão de matá-lo; no terceiro dia, porém, ressurgirá. Palavras claríssimas. Entretanto, diz o evangelista: “Eles, porém, não atinaram com o sentido destas palavras; era para eles um mistério: mas tinham medo de interrogá-lo. E isto os enchia de profunda tristeza”. Já não se atreviam a lavrar protestos contra a idéia do sofrimento, sabiam que não era do agrado do Mestre; soava-lhes ainda aos ouvidos aquela repreensão veemente fulminada contra Simão Pedro, em Cesaréia de Filipe. Por outro lado, também não queriam aceitar simplesmente, no sentido literal dessas palavras, essa profecia dolorosa e lúgubre. Quem sabe se o Mestre falava da morte num sentido simbólico? Para a inteligência eram estas palavras claríssimas – para o coração eram obscuras, um verbum absconditum; custa à inteligência compreender o que a vontade não quer aceitar. Só se compreende integralmente o que se ama com ardor. Todas as verdades da vida prática são compreendidas em primeiro lugar pelo coração, e só depois pelo intelecto. Os discípulos não se animaram a pedir explicação daquele tenebroso mistério da cruz, porque bem sabiam que essa explicação só lhes aumentaria a tristeza, que já era tão grande... Sabiam, afinal de contas, o que o Mestre queria dizer com aquilo; mas não queriam que assim fosse. Por isso se calaram.
Mas, desde esse dia traziam o coração opresso de pesar, e só entre si comentavam, a meia voz, as palavras estranhas do Mestre. Começava, já agora, a cavar-se entre eles e Jesus aquele abismo de incompreensão e descompreensão, que chegaria ao máximo na sexta-feira da Páscoa judaica1. E assim, em triste silêncio, seguiram caminho rumo a Cafarnaum. 1. Páscoa (ou Phase) era, para o judeu, a saída da longa escravidão no Egito, o êxodo, ou independência nacional.
Jesus paga tributo Havia largo tempo que Jesus não aparecia em Cafarnaum. Por espaço de meses tinha andado a cruzar as terras da Galiléia, fazendo ainda uma ligeira digressão pelos países pagãos da Decápole. Regressou, finalmente, à “sua cidade”. Era lei que todo israelita, a principiar do vigésimo ano, pagasse, para a manutenção do templo e do culto, um tributo anual de meio siclo ou uma didracma. Cobrava-se esta contribuição, geralmente, no mês de Adar (março), pouco antes de principiarem as solenidades pascais, que ocorriam em Nisan (abril), primeiro mês do ano israelítico. Estavam isentos desta taxa os sacerdotes e, provavelmente também, os levitas, como ainda os rabinos e os doutores da lei. Não sabemos se Jesus costumava pagar esse imposto cultual. É possível que, dado o grande prestígio do Nazareno, não ousassem os cobradores aproximar-se dele. Mas, ou porque naquele ano se tornara quase estranho em Cafarnaum, ou porque os exatores fossem novos e desconhecidos, o fato é que lhe vieram solicitar a modesta contribuição; solicitaram-na, não a ele mesmo, mas a Simão Pedro, que lhes parecia o chefe da turma. Pediram com muita delicadeza, perguntando se o Mestre não pagava o tributo do templo. Nenhum dos evangelistas refere este episódio, à exceção de Mateus. Pois também ele tinha sido cobrador de impostos, outrora, não do templo, mas a serviço do governo romano; e assim se lhe gravou na memória este incidente. À entrada de Cafarnaum acercaram-se de Pedro os cobradores da didracma e lhe perguntaram: – Vosso Mestre não paga a didracma? – Paga, sim – respondeu Pedro. Mal entrara ele em casa, quando Jesus lhe atalhou a palavra, perguntando: – Que achas, Simão, de quem cobram os reis da terra imposto ou tributo: de seus filhos ou dos súditos?
– Dos súditos – respondeu Pedro. – Por conseguinte – acrescentou o Mestre –, estão isentos os filhos. Jesus, parece, quer corrigir suavemente o procedimento do discípulo, que com tanta afoiteza e convicção afirma que seu Mestre pagava as duas didracmas, quando na qualidade de Filho de Deus era senhor do templo, e não um serventuário do culto, nem um súdito da lei. Mas logo acrescentou: – Entretanto, não lhes demos motivo de tropeço. Vai ao lago, lança anzol e toma o primeiro peixe que apanhares, abre-lhe a boca, e nela encontrarás um estáter; com ele paga por mim e por ti. Um estáter eram duas didracmas. Não era muito. Mas nem esse pouco possuía Jesus; e Pedro participava da pobreza do Mestre. Por isso, o Senhor lhe fez a honra de o igualar a si mesmo, apelando para o seu poder em favor dos dois e mandando pagar por ambos ao mesmo tempo. A moeda achava-se na boca de um peixe, mas no bolso do Nazareno parece que nunca se encontrou um siclo sequer, nem jamais as suas mãos tocaram em dinheiro algum; quando, um dia, os fariseus propuseram a famosa questão do tributo romano, Jesus só “olhou” para a moeda ornada com a efígie de César, mas não a tomou em suas mãos.
Jesus propõe por modelo uma criança Depois do ligeiro incidente com os cobradores do tributo, e antes de entrarem na referida casa em Cafarnaum, suscitou-se entre os discípulos uma questão sobre quem deles seria o maior e mais digno no reino de Deus, a quem deles caberia o primeiro lugar ao lado do Mestre. Tinham reparado, naturalmente, na preferência que Jesus dava a Simão Pedro, pagando por ele o tributo e distinguindo-o em diversas ocasiões, embora não lhe poupasse dolorosas humilhações. Os outro discípulos, mundanos como eram, não reconheciam de bom grado a palma ao pescador da Galiléia, ou, se lha reconheciam, discutiam a questão sobre quem deles seria o primeiro depois de Pedro. Ambições humanas! O mesmo sentimento dominava os filhos de Zebedeu e Salomé, Tiago e João, que vieram um dia solicitar, por intermédio da mãe, os primeiros postos no reino messiânico, postos que eles concebiam lá a seu modo. Já nesse tempo, como se vê, as mulheres procuravam conseguir o que aos homens parecia difícil ou impossível. Dia a dia, aguardavam os discípulos a inauguração do reino de Deus, isto é, um reino temporal, político, em que Jesus fosse o rei, e eles os primeiros ministros. A caminho de Cafarnaum, travaram acalorada discussão sobre quem deles ocuparia a pasta de primeiro-ministro ou chanceler do novo reino, como diríamos em terminologia hodierna. Fazia qual valer os seus pretensos direitos. Não diz o Evangelho quais os títulos que os discípulos fizeram valer para sua suposta precedência. Mas é fácil imaginá-lo. Pedro terá invocado o fato de ser sempre nomeado em primeiro lugar, como chefe da turma. Tiago deve ter apelado para o seu parentesco, pois era primo de Jesus. João, se não era ainda o místico, terá lembrado que Jesus o chamava sempre o discípulo amado. Mateus deve ter dito que ele tinha sido um funcionário do Império Romano, como coletor de impostos em Cafarnaum. E assim por diante, numa discussão genuinamente humana, deploravelmente mundana. Faltava-lhes ainda, aos
bons discípulos, aquele poder do alto que, no dia de Pentecostes, os devia transformar definitivamente em verdadeiros arautos do reino de Deus. Chegaram à casa em que iam hospedar-se, uma casa de família onde não faltavam crianças. Ao pé da casa, os doze esperavam por Jesus, que tinha ficado para trás, sozinho, talvez entretido em colóquio com o Pai celeste, como costumava fazer, muitas vezes, nessas longas caminhadas. Reunindo-se aos discípulos, perguntou-lhes, de improviso, o Mestre: – De que vínheis falando pelo caminho? Calaram-se eles. A pergunta era delicada... Sentou-se Jesus na varanda da casa, mandou os discípulos agruparem-se em torno dele e disse-lhes: – Se alguém pretende ser grande, seja o servidor de todos. Em seguida, chamou um menino, colocou-o no meio deles e disse-lhes: – Em verdade vos digo, se não vos converterdes e vos tornardes como esta criança, não entrareis no reino dos céus. Mas quem se tornar humilde como esta criança, esse é o maior no reino de Deus. E acrescentou: – Os reis e príncipes deste mundo são chamados grandes, porque estão sentados no trono e são servidos por seus súditos. Entre vós, porém, não há de ser assim; aquele dentre vós que quiser ser grande, seja o servidor de todos. Deste modo, inverteu o Mestre toda a política mundana dos discípulos pela sabedoria do Evangelho; grandeza não é ser servido, grandeza é servir voluntariamente.
Ai do sedutor da inocência Enquanto Jesus dava estas instruções aos rudes pescadores da Galiléia, continuava a trazer abraçado o pequeno modelo vivo, o qual se sentia muito a gosto. Os olhos de Jesus descortinavam os véus do futuro, abrangiam os horizontes do Universo, e dos seus lábios romperam palavras, veementes, que repercutiram como trovão pelo círculo dos ouvintes: – Quem der incentivos de pecado a um desses pequeninos que têm fé em mim, melhor lhe fora que lhe suspendessem ao pescoço uma mó e o abismassem nas profundezas do mar. Ai do mundo por causa dos incentivos ao pecado! É inevitável que venham esses incentivos, mas ai do homem por quem vierem!... Vede que não desprezeis a nenhum desses pequeninos, pois eu vos digo que os seus anjos contemplam sem cessar a face de meu Pai celeste. Os discípulos entreolharam-se, aterrados, ante a veemência dessas palavras. O pequeno protegido arregalou os olhos e os fitou no semblante de seu protetor; não compreendia, certamente, o alcance daquela ameaça; mas sentia que Jesus dizia alguma coisa terrível e muito séria àquela gente grande. Bom seria que toda a cristandade desses quase dois mil anos tivesse ouvido essas palavras de Jesus, que proclamam que toda criança tem fé nele, isto é, está no reino dos céus – quando os nossos teólogos afirmam que toda criança é concebida e nasce pecado; “sai desta alma, Satanás”, diz o rito batismal, “e dá lugar ao Cristo”. E tentam com um copo de água, ou com um mergulho num piscina, expulsar o suposto diabo e introduzir o Cristo na alma humana. Em qualquer exame teológico dos nossos seminários seria Jesus reprovado.
A festa dos Tabernáculos Aproximava-se a mais popular, a mais poética e sugestiva das solenidades de Israel – a festa dos Tabernáculos. Ocorria esta solenidade no outono, no mês de Elul (setembro), quando já se consideravam terminados os principais trabalhos da lavoura, quando já as safras se achavam nos celeiros, e nos lagares correra o mosto das uvas. Encaminhavam-se então os filhos de Israel para a capital do país, em demanda do grandioso santuário nacional. Por espaço de quarenta longos anos, peregrinara o povo hebreu pelo deserto, rumo à terra da Promissão, habitando em tendas, ou à sombra de ranchos de ramagens improvisados à beira do caminho. E em grata recordação desse período histórico celebravam os hebreus, todos os anos, a festa das Tendas ou Tabernáculos. Tudo era vida e alegria nesses dias. Saqueavam as frondes das árvores, e com elas armavam pavilhões primitivos nos arredores de Jerusalém, neles habitando por espaço de oito dias. A temperatura outonal favorecia essa vida ao ar livre, à sombra de verde folhagem. Nesses dias, estavam desertas as casas; nem mesmo barracas de lona se viam; somente “pavilhões” de folhagem, pontuados das últimas flores da estação e, não raro, garridamente ornados de espigas, cachos de uvas e outros produtos agrícolas. Pela lei, só os homens tinham obrigação de viver nessas tendas; nelas também comiam e dormiam. Conta-se que ao rabi Gamaliel foram oferecidos duas tâmaras e um vaso de água em sua casa; mas ele mandou que os levassem para a tenda – tão escrupuloso era o mestre na observância da lei, durante a semana dos Tabernáculos. Talvez em nenhum outro período do ano se manifestasse tão claramente como neste a índole característica daquele povo. Nesses dias, se casavam, na mais encantadora harmonia, a religião e a poesia, os primores da terra e os esplendores do céu, o gosto estético do hebreu e o sentimento religioso do israelita, o impulso espontâneo das almas e as prescrições, litúrgicas da lei mosaica, a vibratibilidade psíquica desse povo nômade o sopro do seu misticismo.
A solenidade dos Tabernáculos era, ao mesmo tempo, a festa da colheita: uma imponente ação de graças pelos benefícios da safra, que a munificência divina lhes concedera, na Terra da Promissão, em que “corriam leite e mel”. Cinco dias antes do início dos festejos, celebrava-se a “Expiação”, dia de jejum, dia de sacrifícios, e de caráter profundamente significativo. O sumo sacerdote tomava dois carneiros ou bodes, e sacrificava um deles. Depois, colocava as mãos na própria cabeça e proferia determinadas fórmulas litúrgicas confessando os pecados do povo e suplicando perdão; em seguida, colocava as mãos sobre a cabeça do animal, simbolizando assim a transferência para o mesmo de todos os delitos de Israel. Logo, um dos levitas tangia o “bode expiatório” para o deserto até a beira de um precipício, distante 18 quilômetros de Jerusalém, no qual era abismado o animal. A alviçareira notícia da morte do “bode expiatório” chegava a Jerusalém em poucos momentos, transmitida por meio de bandeiras colocadas ao longo dos caminhos, em determinados intervalos. Imediatamente, se arriava a bandeira rubra plantada à entrada do templo, e hasteava-se a bandeira branca – cor da inocência e da alegria – por sinal que Deus perdoara os pecados a seu povo. Assim como o “bode expiatório” era despenhado no abismo e se esfacelava na queda, assim, dizia-se, aniquilava Deus as prevaricações de seu povo. Terminada a cerimônia da expiação, purificada a nação inteira por essa “absolvição geral”, principiavam as jubilosas solenidades dos Tabernáculos. Multiplicavam-se os holocaustos oferecidos no templo. A primeira noite representava o que havia de mais belo para os olhos e para a alma de um genuíno israelita. Enquanto de todos os terraços, das cimalhas das casas e dos peitoris das janelas ardiam milhares de lâmpadas, e de gigantescos candelabros se erguiam labaredas, cantava o coro dos levitas, do alto da escadaria semicircular de quinze degraus, os Salmos de Davi sobre as glórias e as liberalidades de Deus. Através da tépida escuridão da noite, debaixo de um céu pontuado de estrelas, bruxuleavam as chamas de uma infinidade de tochas. Era a procissão das luzes, que se volvia lentamente pelas ruas da cidade, na qual tomavam parte também os austeros escribas e doutores da lei. Recordava a nuvem luminosa que acompanhara os israelitas na sua marcha através do deserto. As trevas nadavam em luzes, o silêncio ressoava de hinos e cânticos!... A alma de Israel vibrava num acorde de júbilo e de gratidão!... Os dias imediatos eram consagrados ao sentimento de gratidão pelos benefícios recebidos; os últimos eram dias de petição para que Deus não deixasse de mandar, sobre a terra, as chuvas salutares e indispensáveis à prosperidade material.
Na manhã do último dia, durante o sacrifício, descia um sacerdote das alturas de Moriá, sobre o qual se achava construído o templo, e se dirigia à fonte de Siloé, que brotava ao sopé da colina, rompendo do interior do monte. Lá embaixo, era o sacerdote recebido pelos demais serventuários do culto e pelo povo, ao som de trombetas e de hinos. Hauria água da fonte com um vaso de ouro, tornava a subir em procissão e a derramava sobre o altar dos holocaustos, enquanto todos cantavam o Salmo 128: “Haurireis água com alegria das fontes do Salvador”. Rompia intenso o clangor das trombetas, e todo o povo se prostrava de face em terra. Em sete giros consecutivos, rodeavam os sacerdotes o altar dos holocaustos, agitando na mão direita o ramalhete da festa, composto de uma palma, dois ramos de salgueiro, três de mirta e um pequeno limão, chamado ethrog. Corria o provérbio: Quem não viu o júbilo de Siloé não viu júbilo. Deus e a pátria, a história e a natureza, a consciência da culpa e o desejo da expiação, o sentimento da própria mesquinhez e a fé na misericórdia divina, a gratidão e a esperança – de todos esses elementos tecia Israel o grandioso poema do seu ano litúrgico – a festa dos Tabernáculos.
Jesus vai à festa dos Tabernáculos Aproximavam-se, pois, essas sugestivas solenidades. Todas as estradas e trilhos fervilhavam de grupos de peregrinos. Os parentes de Jesus, imbuídos de idéias mundanas e de uma falsa concepção do reino messiânico, nutriam a esperança de que o famoso profeta aproveitaria o ensejo para se apresentar na capital e dar um passo decisivo. A ocasião não podia ser mais propícia para um formidável “golpe de Estado”. A alma popular era massa inflamável; bastava que um homem genial como o Nazareno lançasse a centelha viva do seu verbo eletrizante, que realizasse um dos seus estupendos prodígios – e Israel sacudiria o jugo estrangeiro e proclamaria a independência nacional... Por isso diziam os seus amigos: – Retira-te daqui e vai para a Judéia, para que também os teus discípulos vejam as obras que fazes; pois ninguém que deseja ser conhecido em público trabalha às ocultas. Uma vez que realizas tão grandes coisas, manifesta-te ao mundo! Assim falavam os seus irmãos, observa o evangelista, porque nem eles tinham fé em Jesus. Não formavam idéia exata da sua missão. Respondeu-lhes ele: – O meu tempo ainda não chegou. Para vós, sim, sempre é tempo oportuno; a vós não vos pode o mundo odiar; a mim, porém, me odeia, porque eu dou testemunho de que as suas obras são más. Subi vós à festa; eu não subo à festa, porque ainda não chegou o meu tempo. Assim lhes falou e ficou na Galiléia. As caravanas partiram. Mais tarde, também Jesus iria a Jerusalém, não em público, mas ocultamente. É o que ele queria dizer: que não ia como peregrino com a caravana, mas em caráter particular, para não causar reparo demasiado; pois não chegara ainda a hora da sua morte; numa outra solenidade, sim, iria publicamente a Jerusalém para ser crucificado. “Por ocasião das solenidades, os judeus procuravam a Jesus e diziam: Onde está ele? Muito se falava nele entre o povo. Ele é bom – diziam uns. Qual! –
tornavam outros – engana a gente! – Mas ninguém falava dele às claras, com medo dos judeus.” De modo que a festa dos Tabernáculos desse ano tinha as suas nuvens... Não reinava a mesma alegria expansiva e franca dos anos anteriores; uma tensão nervosa ocupava todos os espíritos... Que seria de Jesus?... Que aconteceria ao profeta de Nazaré?... A sanha dos seus inimigos não conhecia limites... Ansiosamente aguardavam a chegada do Nazareno...
Despedida da Galiléia, maldição das cidades impenitentes Pela última vez, lança Jesus um olhar sobre Cafarnaum e o lago de Genesaré – olhar cheio de dor, cheio de amor, de amor incompreendido!... Quase três anos havia ele trabalhado na Galiléia, e Cafarnaum tornara-se a “sua cidade”; o Genesaré era o lago de Jesus e dos discípulos, pois todos eles eram galileus à exceção de Iscariotes. E Jesus se despede... Seu grande e incompreendido amor lhe confrange o coração, faz-lhe brotar dos lábios palavras repassadas de saudades e de amargura... Não há no mundo martírio mais atroz do que um grande amor retribuído com indiferença, ou com desprezo... E coração do Nazareno sorveu até a lia o cálice desta amargura. Chegando ao alto de uma colina, relanceou um olhar para as regiões onde ficavam as cidades de Corozain e Betsaida, testemunhas de tantos prodígios e de tantas provas de amor – e testemunhas também de tanto desamor com que os seus habitantes haviam rejeitado o Evangelho do reino de Deus. Por isso, fulminou Jesus sobre as cidades impenitentes esta maldição: – Ai de ti, Corozain! Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e Sidon se tivessem operado os prodígios que em vós se operaram, desde há muito teriam feito penitência em cilício e cinzas! Mas eu vos digo que, no dia do juízo, terão Tiro e Sidon sentença mais benigna do que vós! Tiro e Sidon, cidades pagãs da Fenícia, no litoral do Mediterrâneo, não tinham recebido a abundância de graças que Jesus prodigalizara às cidades de Israel; por isso, é menos grave a incredulidade e impenitência desses gentios que a dos judeus. E, olhando para Cafarnaum, que jazia a seus pés ruidosa e profana, exclamou Jesus: – Ai de ti, Cafarnaum! Tu, que foste elevada até ao céu – até ao inferno serás abismada. Porque, se em Sodoma se tivessem feito os prodígios que em ti se fizeram, até ao presente subsistiria! Pois declaro-te que sentença mais benigna terá Sodoma, no dia do juízo, do que tu!
Sim, Cafarnaum fora elevada até ao céu, porque por espaço de longos anos residira nos seus muros aquele que é o centro e a essência do paraíso. A cidade de Sodoma era pecadora, mas Cafarnaum é tanto mais pecadora, quanto maior o número de graças que recebeu e não aproveitou. Depois desta maldição, voltou Jesus as costas a Corozain, Betsaida e Cafarnaum, e tomou rumo sul, ao encontro dos seus inimigos, ao encontro da morte...
Repulsa por parte dos samaritanos Atravessa Jesus com seus discípulos a terra de Samaria, para ir a Jerusalém, e tomar parte nos últimos dias da festa dos Tabernáculos. Era a sua última viagem para a capital. Deixara para sempre a sua querida Galiléia, pátria de quase todos os seus discípulos, cenário da sua mocidade e da maior parte da sua vida pública. Para lá não tornaria senão depois da ressurreição, e quase como espírito. Com a energia do herói que de olhar firme e passo seguro enfrenta a morte, vai Jesus ao encontro do seu trágico destino. Restavam-lhe ainda alguns meses de vida. Desde esse outono até a próxima primavera, o campo da sua atividade seria Jerusalém e arredores. Refere Lucas: “Quando se aproximavam os dias do seu passamento, encarou Jesus resolutamente a sua ida a Jerusalém, e despachou mensageiros adiante de si. Partiram e chegaram a uma povoação dos samaritanos para lhes preparar pousada. Mas não foram recebidos, porque iam rumo a Jerusalém”. *** Não havia para o samaritano espetáculo mais irritante do que ver os israelitas encaminharem-se para Jerusalém, pelo tempo das festividades religiosas. Os samaritanos, nessa época, já não possuíam templo, mas adoravam a Deus no monte Garizin; e exasperava-os o pensamento de que os judeus os considerassem hereges e se arrogassem o privilégio exclusivo do verdadeiro culto. Por isso, não quiseram dar pousada a Jesus e seus discípulos, sabendo que eles iam para as festas dos Tabernáculos. Em face dessa repulsa, indignaram-se os dois irmãos, Tiago e João, filhos de Zebedeu, e disseram a Jesus: – Senhor, queres que mandemos cair fogo do céu, para devorá-los? Jesus, porém, voltando-se para eles, observou: – Não sabeis que espírito vos anima! Pois o Filho do Homem não veio para perder os homens mas, sim, para salvá-los. E foram em demanda de outra povoação.
E Jesus pôs aos dois discípulos impetuosos o apelido jocoso de “filhos do trovão”. Pensavam e sentiam ainda como pensa e sente todo homem-ego, de acordo com os ditames da lei de talião: olho por olho, dente por dente. Somente quando o “homem mosaico” se transforma no “homem crístico”, é ele capaz de pensar e agir de outro modo. Mas essa transformação definitiva só aconteceu aos discípulos de Jesus na gloriosa manhã de Pentecostes, quando foram iluminados pelo Espírito da Verdade, após nove dias de silêncio e oração.
Discípulos imperfeitos Enquanto atravessavam as regiões setentrionais da Judéia em demanda de Jerusalém, começou Jesus a falar aos seus discípulos sobre a missão a que os ia enviar em breve. Toda vez que o divino Mestre toca neste assunto, a difusão e a vitória do reino de Deus, as suas palavras assumem extraordinário brilho e beleza; está mais do que nunca em “seu elemento”. Esse ardor místico se comunicava, não raro, aos que o escutavam, também a muitos daqueles que não eram ainda do número dos seus companheiros inseparáveis. Certo dia, nessa mesma viagem, apresentou-se a Jesus um dos escribas que o tinha ouvido falar, e exclamou entusiasticamente: – Mestre, seguir-te-ei aonde quer que fores! Esse homem parecia vivamente impressionado com o ideal apostólico. Cravou Jesus um olhar atento no semblante do jovem entusiasta, e disse tranquilamente, sopesando as palavras: – As raposas têm cavernas, e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça... Queria dizer: Meu amigo, se queres de fato ser meu discípulo e seguir-me aonde eu for, lembra-te de que terás de partilhar a minha sorte; terás de viver como eu vivo, desprendido de tudo e de todos, sem propriedade, sem casa, sem mesa, sem família nem lar; deves estar pronto a sacrificar tudo o que o homem pode possuir e gozar; terás de tornar-te mais pobre que as raposas do mato e as aves espaço... “O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça...” Ecoa nestas palavras o desapego do Nazareno, lembra a sua voluntária pobreza, a sua renúncia aos bens materiais da vida humana. Jesus não tem casa... Desde que deixou a carpintaria de Nazaré, é ele um nômade!... De dia, cruzando aldeias e descampados, sempre a espalhar a semente do Evangelho do reino de Deus, sempre a curar enfermidades, sempre a consolar os aflitos e sobrecarregados; de noite, em colóquio com o Pai celeste, na solidão do deserto e nas alturas das montanhas, ou fruindo umas horas de descanso, em casa alheia, ao pé de uma árvore ou à beira da estrada...
Tal é a vida do Nazareno. O seu vestuário é singelo; a sua mesa, incerta; não leva dinheiro no bolso; não conhece mão carinhosa que lhe enxugue o suor da fronte ou lhe componha a cabeleira em desalinho; não tem no mundo alma que o compreenda, que lhe faça companhia nos caminhos solitários do seu idealismo... Nasceu numa gruta – mas a gruta era de todos. Foi reclinado numa manjedoura – mas a manjedoura era dos pastores. Expirou numa cruz – mas a cruz não era dele. E ainda após o derradeiro suspiro não teve onde reclinar a cabeça – e a sua cabaça ficou suspensa no ar, entre o céu e a terra. Depois de morto, encontrou onde reclinar a cabeça – mas foi em sepulcro alheio. O próprio corpo exangue não lhe pertencia – era da autoridade pública, da qual o requereram os discípulos. Nem mesmo a sua alma lhe pertencia, era creatura de Deus e ele a entregou ao Pai celeste – “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito!” E o seu coração pertence a toda a humanidade... Parece que o escriba, em face de semelhante perspectiva, recuou aterrado e desistiu do seu propósito de seguir o Mestre aonde quer que fosse... Só uma alma muito rica pode aceitar tão grande pobreza... *** Foram seguindo viagem. Eis senão quando, um dos discípulos de Jesus, recebendo notícias do falecimento de seu pai, foi logo pedir licença ao Mestre para se retirar e assistir aos funerais do extinto, antes de empreender a excursão apostólica de que Jesus falara e que parecia ir longe. – Segue-me! – disse-lhe o Mestre. Mas o discípulo pediu com instância: – Permite-me que vá primeiro sepultar meu pai. Por mais natural e humanitário que parecesse este pedido, Jesus não lho concedeu; mas respondeu em tom enérgico: – Deixa que os mortos sepultem seus mortos! Tu, porém, vai e anuncia o reino de Deus! É como se dissesse: Deixa que os ainda espiritualmente mortos sepultem os fisicamente mortos. Os espiritualmente vivos não devem perder o seu tempo com isto. Tu recebeste uma vocação superior; deixa de parte toda e qualquer ocupação, ainda que boa e legítima, quando se trata dos supremos interesses do reino de Deus. ***
Depois de algum tempo, chegou a caravana apostólica a uma encruzilhada. Disse então um dos discípulos a Jesus: – Seguir-te-ei, Mestre, mas permite que vá primeiro a casa despedir-me da minha gente. Que coisa mais natural? A casa não ficava longe, e o futuro missionário, antes de empreender a sua missão, queria dar os adeuses à família e aos parentes. Mas teve de ouvir dos lábios do Mestre as palavras incisivas: – Quem empunha o arado e olha para trás não é idôneo para o reino de Deus. Fazem estas palavras suspeitar que não se tratava de uma simples despedida. O coração daquele discípulo, parece, estava dolorido de saudades de alguma pessoa querida que tinha entre seus parentes ou suas parentas; queria vê-la e falar-lhe ainda uma última vez. Jesus, porém, sabia que o coração tem razões de que a razão nada sabe, e que aquela despedida da sua “gente” podia vir a ser, para esse moço, a despedida do apostolado e do seu idealismo religioso. Jesus não admite para colaborador qualquer homem; é necessário que seja possuidor de predicados especiais, que tenha uma vontade firme e inquebrantável; a liberdade de espírito de se emancipar de toda a escravidão das creaturas, ainda a mais doce e querida, o heroísmo de renunciar de vez e para sempre a tudo que possa vir a paralisar-lhe os surtos da alma, ou desviarlhe as energias do coração. Quando o famoso aventureiro Fernando Cortez, em 1519, aportou às praias do México com algumas centenas de soldados, perguntou aos seus guerreiros se algum deles desejava regressar para casa, com medo das lutas que os esperavam em terras incógnitas e hostis; ninguém se apresentou. Então mandou o arrojado conquistador lançar fogo aos navios em que tinham vindo de Cuba, reduzindo-os a cinzas, a fim de cortar toda e qualquer esperança de regresso ou de fuga. Agora era vencer ou morrer! É o que Jesus exige aos seus discípulos; queimar os navios do mundo! Não pensar jamais em regresso nem deserção! A vida do apóstolo está definitiva e irrevogavelmente entregue à discrição do seu divino soberano. A divisa é: Vencer ou morrer! Quem empunha o arado e olha para trás não presta para o reino Deus!
Missão e regresso dos discípulos Enviou Jesus os discípulos, de dois a dois, pelas regiões circunvizinhas, a fim de anunciarem o reino de Deus. Partiram eles guiando-se pelas instruções do Mestre. No dia marcado voltaram para junto de Jesus. E logo, com uma familiaridade confidencial, se puseram a contar as aventuras e peripécias que tinham passado no ministério evangélico. Quanta coisa nova e interessante não lhes sucedera!... Horas e horas estiveram contando... Entretanto, o que acima de tudo impressionara a esses novéis missionários, o que os deixara assombrados e eclipsava todos os demais acontecimentos, era a atividade sinistra dos demônios, e era o soberano poder que eles, pobres pescadores e lavradores da Palestina, tinham sobre esses invisíveis inimigos. A ingerência do mundo dos espíritos no mundo da matéria é sempre motivo de sensação e terror. – Senhor – exclamaram os discípulos –, até os demônios nos estavam sujeitos, em teu nome! Sorriu Jesus e, tomando-os à parte, à sombra de uma árvore, mostrou-se vivamente interessado pela narração de cada um deles em particular. Depois que os discípulos esgotaram o assunto e as novidades, disse Jesus, quase em atitude de visionário: – Eu via Satanás cair do céu como um raio!...2 2. Para Jesus, Satan (diabo, belzebu) não é o demônio, que são entidades invisíveis da natureza. Satan, ou Satanás, segundo o Evangelho, é o “forte” ou chefe dos demônios, que são chamados “utensílios” e “armas” dele. Quando os discípulos de Jesus expulsaram os demônios, Satan se viu privado de seus utensílios e armas e perdeu o seu poder. Segundo Jesus, Satan ou o diabo é uma creação mental do homem antidivino. Neste sentido, Pedro, quando se opôs ao espírito de Jesus, é chamado Satan, palavra hebraica para adversário; e Judas, quando não tinha fé nas palavras do Mestre, é tachado de diabo, palavra grega para opositor. É quase geral, no Ocidente, a confusão entre diabo e demônio; Evangelho, porém, nenhuma vez identifica Satan ou o diabo com os demônios. Jesus nunca expulsou o diabo, mas expulsou muitos demônios. Aliás, Satan ou diabo nunca aparece no plural, como os demônios.
Tamanho era o poder que os discípulos exerciam sobre o mundo hostil, em nome de Jesus.
Em seguida, passando dos campos do apostolado social para o terreno da realização própria, faz ver aos novéis missionários que o dom dos milagres, que tanto os impressionara, ainda não dava, de per si, merecimento algum; mais sublime que esse poder era a vida íntima com Deus, que torna o homem participante da natureza divina. Neste sentido, acrescentou significativamente o Mestre: – Eis que vos dei poder de calcar serpentes e escorpiões, e poder sobre todas as potências adversas; coisa nenhuma vos fará mal. Entretanto, não seja esta a vossa alegria, que se vos sujeitem os espíritos; alegrai-vos antes porque os vossos nomes estão escritos nos céus. E, ao pensar na vida eterna e na glória do reino de seu Pai, sentiu-se Jesus tomado de um arroubo de amor e entusiasmo e, levantando as mãos e erguendo os olhos ao céu, exultou em espírito, exclamando: – Glorifico-te, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque ocultaste estas coisas aos dutos e aos eruditos e as revelaste aos simples. Sim, meu Pai, assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém senão o Pai sabe quem é o Filho; e ninguém sabe quem é o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar. E voltando-se para os seus discípulos, prorrompeu nestas palavras: – Ditosos os olhos que vêem o que vós vedes, pois eu vos declaro que muitos profetas e reis desejaram ver o que vós vedes, e não o viram; e ouvir o que vós ouvis, e não o ouviram. Depois, correndo o olhar pela roda dos circunstantes, e vendo aqueles homens cobertos de pó e fatigados do exaustivo labor, disse: – Vinde a mim, todos os que andais aflitos e sobrecarregados, e eu vos aliviarei! Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis descanso para as vossas almas. Pois o meu jugo é suave, e o meu peso é leve.
O maior dos samaritanos. O bom samaritano Depois do regresso dos discípulos da sua excursão missionária, prosseguiu Jesus caminho, rumo à metrópole. Mui de indústria, retardou a jornada para não alcançar a primeira parte da festa dos Tabernáculos, que durava uma semana; queria chegar só pelo fim das solenidades. Já não vinha longe de Jerusalém, quando se lhe apresentou um doutor da lei e lhe fez esta pergunta: – Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna? Respondeu-lhe Jesus tranquilamente: – Que está escrito na lei? Como é que lês? Tornou o doutor: – Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de toda a tua mente e com todas as tuas forças; e amarás o próximo como a ti mesmo. – Muito bem respondido – disse-lhe Jesus. – Faze isto, e terás a vida. O doutor da lei calou-se, um tanto perplexo. Pois, pela resposta que ele próprio dera, tão prontamente, bem se via que a pergunta nada tinha de singular e difícil; qualquer menino israelita saberia respondê-la, assim como as crianças do século XX; bem doutrinadas, sabem recitar, na pontinha da língua, os dez mandamentos da lei de Deus. Tratava-se de um dos textos sacros mais conhecidos e familiares do Pentateuco. Aquele diálogo tinha visos de lição de catecismo ou escola dominical; mas o doutor não era decerto nenhum aluno de escola, e, sim, um mestre em Israel. E de um homem tão instruído como ele se devia esperar, propriamente, algo de mais difícil e intrincado, alguma questão sutil, alguma das célebres controvérsias que entre si agitavam as famosas escolas de Hillel e Shammai, ou coisa análoga, mas não uma verdade palmar como esta, que os rabis de Israel até levavam escrita nos seus filactérios e a cada passo recitavam. Por isso, para não fazer má figura, procurou o doutor da lei uma saída mais honrosa; queria “justificar-se”, diz o evangelista, queria mostrar que não
perguntara sem razão; porquanto o caso tinha os seus quês, que o Nazareno, bisonho no programa das escolas em voga, talvez nem suspeitasse. Propôs, portanto, uma questão que lhe parecia bem mais complicada, dizendo com ares de entendido: – Mas, quem é meu próximo? Agora sim, pisava terreno firme; estava no seu elemento; porque esta pergunta dava margem a discussões e controvérsias sem fim. Ensinavam os rabinos da época que o nosso próximo eram os amigos, as pessoas da família e da parentela; outros homens, sobretudo os goim (gentios), estavam excluídos. Mas não concordavam entre si sobre o alcance da palavra “próximo”; pois o parentesco tem muitos graus, e a palavra “amigo” é elástica. Jesus, conhecendo as idéias e a deslealdade de seu interlocutor, condescende com a fraqueza dele; mas, em vez de se emaranhar nas teias de sutilezas e sofisticações em torno da palavra “próximo”, rasga uma perspectiva tão ampla como os horizontes da humanidade, passando ao doutor da lei uma lição de mestre sobre o verdadeiro amor ao próximo. – Descia um homem de Jerusalém a Jericó... Achava-se Jesus nos arredores da cidade. O caminho que daí levava a Jerusalém era “mal-assombrado”, não de fantasmas do outro mundo, mas de malfeitores deste mundo. Aquelas profundas quebradas, aquelas gargantas sinistras, aquelas cavernas escuras e aqueles desfiladeiros por entre penhascos formavam o valhacouto favorito dos salteadores e bandoleiros da Palestina; não passava ano sem que um ou outro viandante incauto caísse vítima dessas emboscadas. Prevaleceu-se o Mestre dessas circunstâncias para ilustrar uma das suas doutrinas. Disse, pois, Jesus ao doutor da lei e demais ouvintes: – Descia um homem de Jerusalém a Jericó e caiu nas mãos dos ladrões. Estes o despojaram, cobriram-no de feridas e, deixando-o meio morto, foram-se embora. Aconteceu descer pelo mesmo caminho um sacerdote; viu-o – e passou de largo. Igualmente, chegou ao lugar um levita; viu-o – e passou de largo. Chegou ao pé dele, também, um samaritano, que ia de viagem, viu-o – e moveu-se à compaixão; aproximou-se, deitou-lhe óleo e vinho nas chagas e ligou-as; em seguida, fê-lo montar no seu jumento, conduziu-o a uma hospedaria e teve cuidado dele. No dia seguinte, tirou dois denários e deu-os ao hospedeiro, dizendo: Tem cuidado dele, e o que gastares a mais, pagar-teei na volta.
Nesta altura, dirigiu-se Jesus ao doutor da lei, que o estava escutando, sem atinar com o porquê dessa história, e perguntou-lhe: – Qual desses três se houve como próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões? – Aquele que lhe fez misericórdia – respondeu prontamente o fariseu. Judeu que era, não se animava a dizer lhanamente: “o samaritano”; seria reconhecer a palma ao inimigo, ao “herege” da Samaria. Achou mais prudente e menos doloroso ladear a questão, recorrendo ao circunlóquio: “aquele que lhe fez misericórdia”. E, de súbito, qual punhalada no coração, tem de ouvir dos lábios do Nazareno esta intimação peremptória: – Vai e faze tu o mesmo! Horrível... Tomar por modelo o samaritano, o herege, o inimigo nacional; e não o sacerdote, nem o levita de Israel!... O doutor da lei retirou-se, mais douto do que viera – e menos orgulhoso... Sabia também de que modo se manifestava a verdadeira e genuína ética. A ética do segundo mandamento não é senão o transbordamento da mística do primeiro mandamento. Ninguém pode amar realmente seu irmão humano sem amar a seu Pai divino. A consciência mística da paternidade única de Deus se revela irresistivelmente na vivência ética da fraternidade universal dos homens.
Betânia Estava prestes a terminar a fatigante jornada que conduzia Jesus e os seus discípulos, desde as plagas setentrionais da Galiléia, através da Samaria, até o sul da Judéia. Aproximavam-se de Jerusalém a fim de tomar parte na festa dos Tabernáculos; já se achavam em Betânia, situada ao sopé do Monte das Oliveiras, meia hora para o leste da capital. Nessa pequena povoação moravam Lázaro e suas irmãs, Marta e Maria. Parece que eram órfãos e aí possuíam uma bela propriedade, com um prédio senhoril de família abastada. Muitas vezes, nas suas peregrinações, recolhiase Jesus a esse retiro convidativo, e sempre era saudado como hóspede e amigo querido. Betânia quer dizer “Casa da graça...” Silencioso idílio de paz no meio dos tumultos do mundo profano... Lázaro, o grande e devotado amigo de Jesus... Marta, tipo da mulher ativa, que não se sentia satisfeita enquanto não oferecesse ao amigo o melhor da sua casa, o refrigério mais confortável, o prato mais saboroso, o vinho mais puro. Maria, alma silenciosa e cismadora, tranquila como as águas profundas... Desta vez, parece, estava Lázaro ausente; o evangelista não lhe menciona a presença com uma só palavra. Achavam-se em casa apenas as duas irmãs, Marta e Maria; dedicadíssimas ao divino Mestre, ainda que de gênio e índole totalmente diversos. O amor de Marta, dona de casa, traduz-se numa atividade intensa para servir ao querido hóspede; o amor de Maria revela-se num enlevo contemplativo, que a mantém sentada aos pés do Mestre, bebendo cada uma daquelas palavras que lhe brotavam dos lábios, como centelhas de luz... Enquanto o divino Mestre, cercado dos discípulos e com Maria sentada a seus pés, falava do reino de Deus, Marta girava na lida afanosa, solícita, irrequieta, já na horta, já cozinha, já na dispensa; o trabalho era muito pouco e os hóspedes assaz numerosos.
Em dado momento, pára no limiar da porta da varanda, onde se achava Jesus com os seus ouvintes e, lançando um olhar significativo a Maria, diz ao Mestre: – Não te importa, Senhor, que minha irmã me deixe só com o serviço? Dizelhe, pois, que me ajude. Palavras enérgicas e delicadas ao mesmo tempo; não é ela, porém, que conseguirá tirar sua irmã de aos pés do Mestre – tentativa inútil! Só a uma ordem de Jesus deixará ela o seu lugar e trocará a vida contemplativa pela ativa. Mas Jesus não deu a ordem sugerida por Marta; antes, tranquilizou a consciência de Maria, justificou-lhe a conduta, e suavemente repreendeu a interpelante: – Marta, Marta, andas solícita e irrequieta com muitas coisas; entretanto, uma só coisa é necessária: Maria escolheu a parte boa, que não lhe será tirada. Estas palavras do Nazareno e essa mentalidade “mística” do seu ser dificilmente encontrarão admiradores entre os filhos legítimos do século XX; pois a “única coisa necessária” é trabalhar, trabalhar, trabalhar! Ganhar dinheiro, fazer negócios, bater recordes, sustentar a concorrência mundial, etc. Pudera, não! Quem considera definitiva a existência terrestre, e não a encara como uma simples fase preliminar, provisória e preparatória de outra existência, dará por errada e falha uma vida avessa à “física” do ego humano e voltada para a “metafísica” do Eu divino. Vigora e vigorará sempre o conflito entre os “filhos da luz” e os “filhos deste século”. O que Jesus censura em Marta não é o trabalho em si. O que ele repreende é a solicitude excessiva e o modo irrequieto que se revelam nos atos de Marta.
Jesus na festa dos Tabernáculos Achava-se Jerusalém engalanada – corriam as solenidades populares dos Tabernáculos; todas as praças sorriam, cobertas de tendas e ranchos de verde ramagem. Nas escadarias do templo fervilhava um incessante vaivém de devotos. Do altar dos holocaustos se erguia no ar, todos os dias, ao nascer e ao pôr-do-sol, uma espessa fumarola, que parecia penetrar a vastidão do firmamento outonal. Falava-se muito no profeta de Nazaré. Não viria à festa?... ele, homem tão religioso... Os inimigos de Jesus haviam expedido ordem para prendê-lo, logo que aparecesse. Jesus, porém, não aparecia. Veriam os fariseus burladas as suas esperanças?... Os personagens notáveis, os que sobressaem do meio da massa anônima dos vulgares e dos medíocres, costumam ser alvo de comentários dos mais desencontrados. Também em tomo de Jesus se teciam pareceres de todo gênero. – Ele é bom – diziam uns. – Qual! – contestavam outros – engana o povo. Entretanto, ninguém ousava falar às claras sobre Jesus, porque temiam os chefes da sinagoga. Passaram-se assim os primeiros dias da festa. Já andavam em meio as solenidades, quando Jesus subiu ao templo e pôs-se a ensinar. Como um relâmpago, correu pela cidade a notícia da chegada do Nazareno. Acudiram os curiosos para vê-lo, afluíram os devotos para ouvi-lo; acorreram os fariseus e os sacerdotes para espreitá-lo e criticar-lhe as palavras e ações. Iniciou, então, Jesus uma série de discussões em torno da sua missão divina. Dessas dissertações nos conservou o evangelista João um esboço incompleto, de modo que nem sempre é fácil seguir os vôos do espírito do Mestre. São fragmentos dispersos, apontamentos avulsos, apanhados a esmo ou
reproduzidos de memória. Mas, ainda assim, fazem transparecer a relevância do assunto e os fulgores do espírito de Jesus. Cheios de admiração, diziam os judeus: – Como conhece ele as Escrituras sem ter estudado? Percebeu Jesus o aparte, e tomou-o por ponto de partida para uma elucidação, dizendo: – Eu não tenho de mim mesmo a minha doutrina, mas, sim daquele que me enviou. Quem quiser cumprir a minha vontade conhecerá se a minha doutrina vem de Deus, ou se falo de mim mesmo. Quem fala de si mesmo procura a sua própria glória; mas quem procura a glória daquele que o enviou fala a verdade de quem o enviou, e nesse não há falsidade. Como se dissera: Estais admirados de eu conhecer as Escrituras, sem ter cursado as vossas aulas? Eu tenho uma escola que vós não conheceis; o meu conhecimento vem do meu Cristo divino, e não do meu Jesus humano; foi no seio do Cristo que bebi o que proponho. Se estivésseis dispostos a cumprir a vontade de Deus, compreenderíeis sem dificuldades o que estou dizendo e, se não o compreendeis, é por culpa vossa. Vós, quando ensinais, é por motivo de vanglória. Eu, porém, quando falo, é por amor à verdade. Interrompeu Jesus o seu discurso para curar um doente que lhe apresentaram. Mas era dia de sábado – e logo os judeus o acoimaram de profanador do descanso sabatino. Mas ele refutou com tanto vigor essa acusação, que alguns dos judeus, sobrevindo na ocasião, observaram: – Porventura, não é este a quem procuram matar? E ei-lo a falar em público, e ninguém o proíbe! Será que os chefes reconheceram de fato que ele é o Cristo? – Qual! – replicaram outros – nós sabemos de onde vem esse homem; mas, quando vier o Cristo, ninguém saberá de onde vem. Não era exata esta opinião; os profetas tinham dito claramente que o Messias nasceria em Belém de Judá. Mas era idéia corrente entre os judeus, baseados em interpretações falsas, que o Messias apareceria de improviso, sem que ninguém soubesse como nem de onde. O Nazareno, porém, era filho da Galiléia, diziam eles, e todos conheciam os pais e os parentes dele. Formaram-se dois partidos, pró e contra Cristo. Muitas pessoas do povo bemintencionadas criam nele e, a despeito das iras do Sinédrio, ousavam externar a sua opinião. – Quando vier o Cristo, fará prodígios maiores do que ele faz?
Palavras como estas não podiam deixar de acirrar os adversários do Nazareno. Compadecido da cegueira dos próceres, disse Jesus: – Ainda um pouco de tempo estarei convosco; e vou para quem me enviou. Haveis de procurar-me, mas não me encontrareis; porque, aonde eu vou, aí vós não podeis chegar. Observaram então os judeus: – Aonde pretende ir, que não possamos encontrá-lo? Será que demandará às regiões onde os filhos de Israel vivem dispersos entre os gentios? Assim terminou este dia... Cerravam-se cada vez mais os horizontes; mas a tempestade mortífera só devia desabar daí a meses, porque assim o queria Jesus.
Último dia da festa dos Tabernáculos Despontou o último dia da festa, o mais solene de todos. Veio também Jesus assistir às cerimônias litúrgicas, no meio do povo. Acompanhou a deslumbrante procissão que, do alto de Moriá, descia até a fonte de Siloé; viu como o sacerdote, por entre o clangor das trombetas e o júbilo do “grande Hallel”, colhia água em um vaso de ouro, tornava a subir a colina do templo e derramava o líquido, misturado com vinho, no altar dos holocaustos. Expirara a tocante cerimônia; acabavam de morrer, no santuário, os últimos ecos da grande exultação religiosa; ainda a multidão popular se quedava no átrio quando Jesus, do alto da escada semicircular de quinze degraus, bradou em altas vozes: – Quem tiver sede venha a mim e beba! Quem tiver fé em mim, brotar-lhe-ão do interior torrentes de águas vivas! Tão grande foi a impressão que no povo causaram estas palavras e a subsequente explanação do Mestre, que alguns exclamaram, cheios de entusiasmo: – Este é realmente o profeta! Outros, com mais precisão, diziam: – Este é o Cristo! Pelo meio do povo se esgueiravam os emissários do Sinédrio, que tinham ordem de prender o Nazareno e entregá-lo aos sacerdotes. Mas, quando o viram de perto, e quando lhe ouviram a doutrina, sentiram-se perplexos e não ousaram mover um dedo para o tocarem; quedaram-se, confusos, sem saber o que fazer. Terminadas as cerimônias e dissolvida a reunião, voltaram os mensageiros à presença dos pontífices – sem o Nazareno. – Por que não o trouxestes? – bradaram os sacerdotes. – Ora! – balbuciaram eles – nunca ninguém falou como esse homem! – Como?! – replicaram os sacerdotes, indignados – também vós vos deixastes seduzir? Há, porventura, entre os chefes ou fariseus quem nele creia?... É só essa plebe, que não conhece a lei!... Malditos sejam!...
Mas não era apenas a plebe ignorante que aplaudia Jesus, como os fariseus logo teriam ensejo de verificar. No próprio Sinédrio rompera a cisão; um dos seus membros mais conspícuos, Nicodemos, que outrora procurara Jesus, de noite, ousou observar desassombradamente: – Acaso a nossa lei condena um homem sem primeiro o ouvir e inquirir o que fez? A ponderação era sensata e oportuna. Mas... o coração tem razões de que a razão nada sabe!... Em vez de replicar com argumentos, responderam os fariseus com injúrias, exclamando: – És também tu galileu? Ser galileu era ser amigo do Nazareno. E, abandonando o caminho da verdade, recorreram a sofismas, acrescentando: – Examina as Escrituras, e verás que da Galiléia não vem profeta algum. Quem maior necessidade teria de examinar as Escrituras eram os fariseus, e não Nicodemos; porque em parte nenhuma afirma o Antigo Testamento que da Galiléia não vem profeta; pelo contrário, eram filhos da Galiléia os profetas Jonas e Naum, como também Débora. Aliás, Jesus não era natural da Galiléia, mas de Belém da Judéia – e também isto se dizia claramente nas Escrituras, no vaticínio de Miquéias. Mas é assim mesmo: onde começa a paixão, acaba a razão; quem procura fugir à luz da verdade, cai no abismo da incoerência... Parece que Nicodemos não era o único no Senado religioso de Israel a tomar partido em favor de Jesus, tanto assim que veio a se travar entre os sinedristas uma discussão acalorada sobre a pessoa e natureza do rabi de Nazaré. O resultado de todo esse tumulto apaixonado foi nulo, afirma o historiador evangélico. Dissolveu-se a assembléia sem nada ter positivado, e voltou cada um para sua casa.
A adúltera Estavam terminadas as ruidosas festividades dos Tabernáculos. Murcha pendia a ramaria dos ranchos, que cobria as praças da capital e as campinas dos arredores; por toda a parte, a folhagem seca a juncar os pavimentos – folhas de outono, significativo símbolo do povo de Israel, estranho presságio daquela cena que logo se ia desenrolar no átrio do templo. Naqueles tempos, como muitas vezes em nossos dias, as festas religiosas populares, a par de edificantes testemunhas de fé e piedade, eram também dias de lamentáveis desordens e, não raro, o diabo mais do que Deus colhia farta messe. Jesus conservava-se ainda em Jerusalém, ensinando diariamente no templo. Por mais numerosos que fossem os seus inimigos, ninguém lhe podia fazer mal antes de chegar a “sua hora”; e essa hora estava nas mãos do Cristo. Ao anoitecer, porém, saía invariavelmente da cidade, retirando-se para o Monte das Oliveiras, a fim de fruir algumas horas de repouso, talvez em casa de seus amigos de Betânia. Jerusalém era um campo de batalha semeado de espiões; e Jesus, apesar de sua confiança na Providência Divina, nunca deixava de parte os ditames da prudência humana. De manhã, bem cedo, reaparecia no templo e tornava a falar ao povo sobre o reino de Deus. Em um dia desses, quando Jesus se achava no chamado átrio do povo, acessível a todos os israelitas, homens e mulheres – eis que de súbito um grupo de fariseus abre caminho através da multidão, arrastando aos pés de Jesus uma jovem mulher apanhada em adultério. Era noiva, a infeliz. Em um dos tumultuosos divertimentos dos últimos dias da festa, caíra vítima da sedução de um homem que não era seu noivo. A lei de Moisés decretava a morte para a mulher casada que violasse a fidelidade conjugal, e a morte cruel de apedrejamento público para a noiva que se esquecesse da palavra empenhada. Para os israelitas, o noivado equivalia a um verdadeiro matrimônio, com a diferença de os cônjuges não viverem ainda debaixo do mesmo teto, nem usarem dos seus direitos recíprocos. Os fariseus tinham olhos de lince para os pecados do próximo...
A jovem, apreendida por eles, devia, pois, ser apedrejada. Disto nem duvidaram os acusadores; pois era lei, e os zeladores da lei eram eles. Mas queriam aproveitar o incidente para armar uma cilada ao profeta de Nazaré. A ocasião não podia ser mais propícia. Não faltavam testemunhas para presenciar a “derrota do Nazareno”. A trama estava muito bem urdida; o plano tinha requintes de astúcia e não podia falhar. – Mestre – dizem os fariseus, com fingida seriedade –, esta mulher acaba de ser apanhada em adultério. Ora, na lei, mandou-nos Moisés que apedrejássemos semelhantes mulheres. E tu, que dizes? Momentos de silêncio... Todos os olhares convergiam sobre a desditosa criatura; todos a condenavam; ninguém perguntava: onde está o cúmplice? Quem é o sedutor? Quem é o mais culpado?... Não, ela, a parte mais fraca, teve a desgraça de ser apanhada, ao passo que o outro, mais forte e mais astuto, conseguiu evadir-se sem ser reconhecido. Por isso, a perversidade do sedutor passa em silêncio, e a fragilidade da seduzida é assoalhada na praça da mais larga publicidade. A lei era só contra a mulher. E o rabi de Nazaré? Estaria ele pelos autos? Renunciaria à sua proverbial bondade e indulgência? Poderia ver o sangue da jovem vítima tingir o solo? Ou se atreveria a absolver a adúltera? A usar de misericórdia em um caso de tamanha gravidade? Teria a audácia de contradizer a lei de Moisés? Ele, que proclamava a cada passo que não viera para abolir a lei, mas sim para levá-la à perfeição?... Jesus parecia indeciso por alguns momentos. Inclinou-se, e traçou na areia do pavimento caracteres misteriosos. Que escrevera ele? O nome do cúmplice? Algum dentre os fariseus ou doutores da lei? Os adultérios secretos deles? Não sabemos – eles leram... Expectativa geral... Jesus, depois de escrever na areia, ergue-se, corre um olhar perscrutador pelos acusadores e diz tranquilamente: – Aquele dentre vós que não tem pecado atire-lhe a primeira pedra! Como um raio em céu sereno caiu esta palavra na consciência dos fariseus... Estremeceram... Por essa não esperavam eles... O Nazareno concorda em que a criminosa seja apedrejada, conforme a lei – mas por mãos impolutas. E onde estavam essas mãos bastante puras para lançarem a primeira pedra àquela mulher impura?
Os zeladores da lei entreolharam-se, mudos, perplexos; cada um esperava que o vizinho se abaixasse para levantar a primeira pedra. Mas ninguém se atrevia, ninguém queria ser o primeiro; todos tinham a sensação de que aqueles dois olhos devassavam os mistérios da consciência deles como tantas vezes dera a entender o Nazareno... Jesus, no meio daquela indecisão geral, tornou a traçar na areia sinais enigmáticos. Talvez os nomes dos pecadores. Os fariseus aproveitaram a oportunidade para se esgueirarem sorrateiramente, um após outro, a começar pelos mais velhos, provavelmente os que tinham na consciência mais pesada carga de pecados... Ficaram no meio do átrio só a mulher e Jesus – a miséria e a misericórdia... Se a adúltera tinha de esperar castigo, só o podia esperar da parte deste homem, porque só ele era sem pecado; estava aí quem tinha as mãos impolutas e lhe podia atirar a primeira pedra – primeira e última. Mas a suprema pureza não podia deixar de ser o supremo amor. Ergueu-se, pois, a divina misericórdia e perguntou à humana miséria: – Mulher, onde estão aqueles que te acusavam? Ninguém te condenou? – Ninguém, Senhor – respondeu ela levantando pela primeira vez o olhar perturbado. E, então, em vez do sibilar mortífero das pedras a derribarem por terra a pecadora, soa aos ouvidos da penitente a palavra do perdão e da vida: – Nem eu te condenarei; vai-te, e não tornes a pecar.
A luz do mundo Ainda se achava Jesus no templo, no “gazofilácio”, isto é, no pórtico do átrio do povo, onde estavam colocados os cofres para as ofertas destinadas ao culto. Ardia ali, desde o início da festa dos Tabernáculos, um dos grandes candelabros de quatro braços, em cada um dos quais cabiam cerca de trinta litros de azeite. Esses focos espargiam abundante claridade pelo vasto recinto. Simbolizavam aquela luz divina que Isaías divisara em profética visão, quando escrevia: “O povo que jazia nas trevas viu um luzeiro, e aos que habitavam nas regiões sombrias da morte apareceu-lhes uma grande luz”. Já não tinha razão de ser esse candelabro; era tempo de empalidecer a estrela noturna da lei antiga, porque despontava o astro diurno da nova aliança e traçava a sua trajetória pela Palestina. Israel, porém, dormia... dormia... dormia... – Eu sou a luz do mundo! Quem me segue não anda em trevas, mas tem a luz da vida. Jesus compara-se à luz, à claridade do cosmos!... Em outra ocasião dissera: Eu sou a ressurreição e a vida! – Dás testemunho de ti mesmo; é sem valor o teu testemunho! – bradaram alguns. Respondeu-lhes Jesus: – Ainda que eu dê testemunho de mim mesmo, tem valor o meu testemunho; porque sei de onde vim e para onde vou. Vós julgais segundo o exterior, eu não julgo a ninguém. Mas, ainda que julgasse, seria verídico o meu julgamento; porque não estou só; comigo está o Pai, que me enviou. Está escrito na vossa lei que o testemunho de dois homens tem força legal. Ora, sou eu que dou testemunho de mim, e dá testemunho de mim o Pai, que me enuviou. Inquiriram os fariseus: – Onde está teu pai? – Não me conheceis nem a mim nem a meu Pai. Se conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai. Eu partirei. Procurar-me-eis mas morrereis no vosso pecado. Aonde eu vou, lá não podeis ir vós. Observaram os judeus:
– Será que vai suicidar-se, uma vez que diz: Aonde eu vou, lá não podeis ir vós? Disse-lhes Jesus: – Vós sois cá de baixo, eu sou lá de cima; vós sois deste mundo; eu não sou deste mundo. Disse-vos que morrereis nos vossos pecados; sim, se não crerdes quem sou eu, morrereis nos vossos pecados. Perguntaram-lhe eles: – Pois, quem és tu? Tornou-lhes Jesus: – Por que, afinal, estou a falar-vos? Muitas coisas teria a dizer-vos ainda, e muita coisa a julgar, mas quem me enviou é verdadeiro, e eu não anuncio ao mundo senão o que ouvi dele. Não atinaram eles que lhes falava do Pai. Prosseguiu Jesus, aludindo à sua morte: – Quando tiverdes suspendido o Filho do Homem, conhecereis que sou eu, e nada faço de mim mesmo; mas digo o que o Pai me ensinou. Está comigo aquele que me enviou; não me deixa só, porque eu faço sempre o que é do seu agrado. Após estas palavras, muitos creram nele. Despontou-lhes na alma a “luz do mundo”.
O cego de nascença Toda a discussão que Jesus travara no templo com seus adversários girava em torno da verdade fundamental do Cristianismo: a realidade do seu Cristo divino. Acabava de afirmar com palavras esta verdade e dispunha-se a confirmá-la com uma obra prodigiosa. Os incrédulos daquele tempo (como os dos nossos dias) viviam a reclamar um sinal palpável, um prodígio de inegável verdade e realidade, um caso que se pudesse verificar com todo o rigor da crítica. E Jesus resolveu condescender com seus inimigos e colocar-lhes diante dos olhos um acontecimento deste caráter, para lhes tirar qualquer motivo de incredulidade. Ao sair do templo, deparou-se a Jesus um homem que era cego de nascença. Passava o dia sentado nas escadarias do templo, implorando a caridade dos transeuntes. Ao ouvir passar aquele grupo de homens, ergueu as órbitas sem luz em direção ao ruído de passos, e estendeu a mão para receber uma esmola com que prolongar a noite da sua triste existência. Jesus, porém, em vez de encarregar ao tesoureiro do colégio apostólico de lhe dar uma moeda, resolveu conceder-lhe o maior dos benefícios que o poder divino e a humana caridade podiam prestar a um pobre cego. Parou ao pé do infeliz, e logo os discípulos perguntaram: – Mestre, quem foi que pecou para esse homem nascer cego, ele ou seus pais? Os discípulos põem o Mestre em face de duas alternativas: ou esse homem que nasceu cego pecou antes de nascer, devendo, pois, ter preexistido ao seu nascimento terrestre, ou seus antepassados pecaram e ele lhes herdou o castigo do pecado. Com outras palavras: ou reencarnação ou pecado original. Jesus, porém, não aceita nem esta nem aquela alternativa. Responde calmamente: – Nem ele pecou nem seus pais pecaram para ele nascer cego; mas isto lhe aconteceu para que nele se manifestassem as obras de Deus.
As obras de Deus são a evolução espiritual desse homem. Os discípulos só conheciam sofrimento-débito, ao passo que o Mestre fala em sofrimentocrédito. O grande sofredor Jó não sofria por débitos, mas para acumular crédito. O próprio Jesus declara ao discípulos de Emaús que ele sofreu tudo aquilo “para assim entrar em sua glória”, isto é, pela plena auto-realização do seu Jesus humano, pelo poder do seu Cristo divino. Em seguida, diz o texto, Jesus cuspiu na terra, fez com a saliva um lodo, aplicou-o aos olhos do cego e disse-lhe: – Vai lavar-te no tanque de Siloé. Foi, lavou-se, e voltou curado. Disseram então os vizinhos que, anteriormente, o tinham visto a mendigar: – Não é este o homem que estava sentado à porta do templo, pedindo esmola? – Sim, é ele – concordaram alguns. – Não é – retrucaram outros –, mas é parecido com ele. O homem, porém, apressou-se a declarar: – Sim, sou eu mesmo. Ao que lhe perguntaram: – Como foi que se te abriram os olhos? Respondeu-lhes: – Aquele homem que se chama Jesus fez um lodo e aplicou-mo aos olhos e disse-me: Vai lavar-te no tanque de Siloé! Fui, lavei-me e vejo. – Onde está esse homem? – indagaram alguns. – Não sei – replicou o recém-curado. Então conduziram o homem que recuperara a vista à presença dos fariseus. Ora, era precisamente em dia de sábado que Jesus abrira os olhos ao cego de nascença. Os fariseus, por seu turno, renovaram o interrogatório para saber dos lábios do felizardo como recuperara a luz dos olhos. Respondeu-lhes: – Aquele homem aplicou-me lodo aos olhos; fui, lavei-me e vejo.
Até aqui o evangelista. Entra agora em cena a obstinação dos fariseus. O caso não admitia dúvidas. Era evidente que Jesus operara um grande prodígio. Aqueles espíritos enfatuados, porém, em vez de reconhecerem na pessoa do Nazareno um poder divino, replicaram: – Esse homem não é de Deus; pois não guarda o sábado. Era fútil a acusação, uma vez que não existia violação do descanso sabatino. Mas a descrença encontra sempre dificuldades onde não existem. Outros, mais sensatos, ponderavam: – Como pode um pecador fazer tais prodígios? Formaram-se dois partidos. Pelo que os fariseus foram de novo ter com o homem que era objeto dessa discussão, e lhe perguntaram: – E tu, que dizes de Jesus, pois que te abriu os olhos... – Que é um profeta! – exclamou ele. Ai está! O principal interessado, testemunha presencial do fato, declara que se trata de um prodígio sobre-humano, cujo autor é um profeta, um santo, um amigo especial de Deus. Que fazer, então? Lembram-se de pôr em dúvida a cegueira anterior do homem, não obstante a convicção em contrário da cidade em peso. O pobre homem nascera cego; não havia quem o ignorasse; desde largos anos, vivia da caridade pública, sentado à porta do templo, a esmolar – não importa! para a incredulidade ele não nasceu cego! Preferem negar a luz do sol a renunciar aos seus preconceitos!... Foram, pois, os fariseus chamar os pais do homem em questão e perguntaramlhes: – É este vosso filho, que dizeis ter nascido cego? Como é então que agora vê? Responderam os pais: – Sabemos que este é nosso filho e que nasceu cego; mas, como é que agora vê, não o sabemos, nem tampouco sabemos quem lhe abriu os olhos. Perguntai a ele mesmo, tem idade; que dê informações sobre si mesmo. Viam-se os inimigos de Jesus em grandes apuros. Tanto o homem como seus pais declaravam unanimemente que ele nascera cego, e cego fora até aquele dia. Por outro lado, não era possível negar que recuperara a vista por intermédio de Jesus.
E agora?... Que partido tomar?... Ficava-lhes ainda um derradeiro recurso, recurso de desesperados: negar o caráter divino do prodígio e atribuí-lo a uma intervenção diabólica, degradar o caso a um portento de Satanás e acoimar o seu autor de pecador e aliado do príncipe das trevas. Mandaram, pois, chamar novamente o homem que fora cego, submeteram-no a um segundo ou terceiro interrogatório; e disseram com ares de ardorosos zeladores da glória divina: – Dá glória a Deus! Nós sabemos que esse homem é pecador. A este exórdio irreverente tomou o agraciado a defesa de seu benfeitor, observando: – Se é um pecador, não sei; só o que sei é que eu estava cego e agora vejo. – Que foi que te fez? – perguntaram-lhes eles – como foi que te abriu os olhos? – Já vo-lo disse! – replicou o outro, contrariado. – E bem o ouvistes. Por que quereis ouvi-lo mais uma vez? E, com ares de mal disfarçada ironia, acrescentou: – Será que também vós quereis tornar-vos discípulos dele?... Ouvindo isto, injuriaram-no e disseram: – Sê tu discípulo dele! Nós somos discípulos de Moisés! Sabemos que Deus falou a Moisés; mas, quanto a esse tal, não sabemos donde vem. Retrucou o que fora cego: – Pois é bem estranho que não saibais de onde vem esse homem, quando me abriu os olhos! É sabido que Deus não atende aos pecadores; mas quem teme a Deus e lhe cumpre a vontade, a esse Deus o atende. Desde o princípio do mundo, não se ouviu dizer que alguém tivesse aberto os olhos a um cego de nascença! Se esse homem não fosse de Deus não poderia fazer coisa alguma. Era irretorquível o argumento, e os fariseus, mau grado seu, bem lhe sentiram a força. Mas, em vez de se darem por vencidos e crerem humildemente no poder do Nazareno, recorreram a um expediente a que soem recorrer todos os inimigos da Verdade, quando lhes faltam argumentos mais dignos: cobrirem de injúrias o arauto da Verdade, exclamando: – Nasceste todo em pecados – e pretendes dar-nos lições a nós?... E, como resposta última e definitiva à verdade incômoda, excomungaram o excego, expulsando-o da sinagoga.
Ouviu Jesus que tinham expulsado o confessor da fé e, encontrando-se com ele, perguntou-lhe: – Tens fé no Filho de Deus? Respondeu o homem: – Quem é, Senhor, para que possa ter fé nele? Tornou-lhe Jesus: – Estás a vê-lo; quem fala contigo, esse é que é! Prostrou-se ele aos pés de Jesus, exclamando: – Tenho fé, Senhor! Exclamou então Jesus em altas vozes: – Eu vim ao mundo para exercer juízo! Os cegos recuperarão a vista, e os que vêem se tornarão cegos! Tornaram-lhe os fariseus: – Será que também nós somos cegos? Replicou-lhes Jesus: – Se fôsseis cegos não teríeis pecado; entretanto, dizeis: nós vemos! – subsiste o vosso pecado! Quer dizer: Se fosse sem culpa pessoal a cegueira do vosso espírito, como a cegueira desse homem que acabo de curar, teria escusa a vossa incredulidade. Mas não é o que acontece: a vossa cegueira é culpável; sóis incrédulos, não por falta de motivos de credibilidade, mas por falta de boa vontade! Ha anos que os meus prodígios vos estão a provar a minha missão divina. Hoje, como naquele tempo, continua Jesus a ser condenado pelo orgulho dos espíritos impenitentes, através de todos os séculos e milênios da História.
O bom pastor Era ao cair da tarde. Os lavradores regressavam dos seus trabalhos, com as ferramentas aos ombros. Os pastores tangiam diante de si os rebanhos, pelas ruas da cidade, para dentro dos estábulos. Os remediados possuíam o seu aprisco próprio, ao passo que para os pobres existiam em cada cidade e aldeia diversos currais, destinados a abrigar em comum os rebanhos que voltavam das pastagens circunvizinhas. Uma cerca ou taipa fechava o vasto recinto e, ao pé da entrada, ficava de plantão o guarda. Tocava a cada guarda uma vigília, isto é, três horas noturnas. Ao romper do dia vinham os pastores, entravam no redil e chamavam as suas ovelhas pelo nome, ou por meio de assobio peculiar; e logo acudiam as ovelhas do respectivo rebanho e se agrupavam em torno de seu pastor, pois conheciam-lhe o timbre da voz. Punha-se, então, o pastor à testa do bando e conduzia-o para fora, aos ricos vargedos que se alargavam para as bandas de Beth-Sahur, ou às planícies de Esdrelon. De vez em quando, conseguia algum ladrão burlar a vigilância do guarda noturno do aprisco, pulava a cerca, arrebatava algum dos cordeirinhos e fugia despercebido. Quantas vezes não tinha Jesus presenciado estas cenas bucólicas na sua terra natal! E, como costumava tomar argumento das coisas concretas para elucidar verdades espirituais, em uma dessas tardes começou a tecer comentários sobre a sua missão de pastor de almas. Esboçando vivo contraste entre a dedicação do pastor e a perfídia do ladrão, dizia: – Em verdade, em verdade vos digo: quem não entra pela porta, mas sobe por outra parte, é ladrão e salteador; só quem entra pela porta do redil, este é o pastor das ovelhas. A este o porteiro lhe abre, e as ovelhas lhe compreendem a voz; e ele chama pelo nome as que são suas e as leva para fora. Depois de conduzir fora as suas ovelhas, vai adiante delas, e elas o seguem, porque lhe conhecem a voz. Ao estranho, porém, não o seguem, mas fogem dele, porque não conhecem a voz dos estranhos.
Depois de descrever esta cena real de cada dia, Jesus faz a sua aplicação espiritual, dizendo: – Eu sou a porta para as ovelhas. Todos os que vieram foram ladrões e salteadores; e as ovelhas não lhes prestaram ouvidos. Não queria Jesus condenar todos os pastores de Israel simplesmente, mas os chefes espirituais do seu tempo; pois tinha havido pastores e guias ótimos, como Moisés, Davi e os profetas da lei antiga. Mas, infelizmente, no tempo de Jesus, só possuía o rebanho “guias cegos” e “mercenários” interesseiros. E qual o pasto espiritual que ofereciam às pobres ovelhas? Não passava, muitas vezes, “da palha seca das suas tradições humanas”, questiúnculas estéreis e cavilações pedantescas em torno da letra da lei, ao passo que o espírito sucumbia asfixiado sob o peso das formalidades exteriores. Por isso, todas as vezes que Jesus via em derredor de si as multidões populares, confrangia-selhe o coração, “porque eram quais ovelhas sem pastor”. E prosseguiu, dizendo: – Eu sou a porta: quem entrar por mim se salvará; entrará e sairá e encontrará pasto. O ladrão não vem senão para matar e destroçar. Eu vim para que tenham a vida, e a tenham mais abundante. Eu sou o bom pastor. O bom pastor põe a sua vida a serviço das suas ovelhas. O mercenário, porém, que não é pastor e ao qual não pertencem as ovelhas, vê chegar o lobo, e foge; e o lobo dispersa e arrebata as ovelhas. O mercenário foge, porque é mercenário e não tem interesse pelas ovelhas. Eu sou o bom pastor. Eu conheço as minhas ovelhas, e as minhas ovelhas conhecem a mim, assim como me conhece meu Pai, e como eu conheço o Pai. Eu ponho a minha vida a serviço das minhas ovelhas. Tenho ainda outras ovelhas, que não são deste aprisco. Também a estas devo trazê-las; e ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor. Outros povos – talvez de outros mundos –, todos são ovelhas do Cristo. *** “Dar a sua vida” pode significar “morrer”; mas pode significar também, como se depreende do texto grego, “pôr a sua vida a serviço dos outros”. De fato, é maior prova de amor pôr toda a sua vida terrestre a serviço de seus semelhantes, do que morrer por eles de uma vez.
A pérola das orações Continuava Jesus a passar os dias em Jerusalém, e as noites em Betânia, na doce familiaridade da casa de Lázaro, Marta e Maria, quando não amanhecia no Monte das Oliveiras, em colóquio com o Pai celeste. Também durante o dia se retirava frequentes vezes do meio da sociedade, para entrar na atmosfera benéfica da oração. A sua alma respirava então aliviada, desopressa. O mundo profano era para Jesus um exílio; o mundo espiritual era a sua pátria. Certo dia, alguns dos discípulos se acercaram do Mestre, quando estava em oração, e tão enlevados ficaram, que lhe pediram: – Senhor, ensina-nos a orar, assim como João ensinou a seus discípulos: Respondeu-lhes Jesus: – Quando orardes, dizei: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha a nós o teu reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como nos céus; o pão nosso de cada dia nos dá hoje; perdoa-nos as nossas dívidas, assim como também nós perdoamos aos nossos devedores; e não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do mal. *** “Orar” quer dizer literalmente “abrir a boca” (do latim os, oris, boca). A verdadeira oração é uma atitude da alma, um abrimento do espírito humano rumo ao espírito divino. Por vezes, esta permanente atitude interior pode manifestar-se em transitórios atos exteriores; mas o principal é a atitude interna. Neste sentido, diz o Mestre: “Orai sempre, e nunca deixeis de orar”. Neste sentido diz ele: “Pedi e recebereis; procurai, e achareis; batei, e abrir-sevos-á”. A oração não tem por fim pedir algo a Deus, ou lembrar a Deus que nos falta isto ou aquilo, porquanto “vosso Pai celeste sabe que de tudo isto haveis mister”. A finalidade da oração é crear no homem um estado de receptividade própria em face de Deus, para que lhe possa acontecer o que lhe deve acontecer. A natureza extra-hominal está em permanente atitude de receptividade automática e inconsciente, e por isso não lhe falta nada. O homem, dotado de consciência e livre-arbítrio, deve crear em si, livre e conscientemente, essa atitude propícia de recebimento.
Para Jesus, o “Pai está em nós”, e o “reino de Deus está no homem”. A oração é um despertamento do Pai no homem, uma realização de Deus no homem, uma conscientização da presença de Deus no homem.
O amigo importuno Depois de mostrar aos seus discípulos o que deviam pedir a Deus nas suas orações, passou Jesus a concretizar, em diversas parábolas, o modo como se deve orar. As propriedades da oração são, antes de tudo: fé, confiança, humildade e uma grande perseverança. A humildade vem magnificamente ilustrada na história do fariseu e do publicano. Em torno das demais propriedades da prece, bordou o Nazareno duas parábolas que têm o seu quê de jocoso, e devem ter despertado certa hilaridade e bom humor no auditório. São as histórias do amigo importuno e do juiz iníquo. *** A vivenda de um pobre fellah (lavrador) da Palestina costumava ser, sobretudo nos primeiros dias após a colheita dos cereais, um labirinto de mil coisas e coisinhas atiradas desordenadamente à grande e talvez única sala da casa – talhas d’água, odres para o vinho novo, vasos para o azeite, vestidos e toalhas pendentes das paredes; a um canto da sala uma tina com a massa do pão para o dia seguinte, etc., etc. Ao cair da noite, desdobrava o fellah as esteiras, que durante o dia se achavam enroladas e encostadas às paredes; e sobre as mesmas se estendia, ao lado de seus filhos, para o descanso noturno. Eis senão quando, no melhor do sono, soam pancadas vigorosas na tosca porta de madeira! Ao mesmo tempo, percebe-se uma voz de fora. O fellah reconhece-a. É a do vizinho. – Ó de casa! – Quem é? – Sou eu, o Eliud! – Que deseja? – Amigo, faze o obséquio de me emprestar três pães.
– Como? A esta hora da noite?! – Sim; porque chegou à minha casa um amigo que estava de viagem, e eu não tenho o que servir-lhe. Momentos de silêncio: – Ora essa! – murmura o de dentro. – Deixa-me em paz. A porta está fechada, e meus filhos estão comigo na cama; não posso levantar-me e dar-te o que me pedes... Mas os ouvintes de Jesus já sabiam como ia terminar a história dos três pães à meia-noite; o de fora não estaria com vontade de render-se e deixar o amigo viajante diante da mesa vazia. Por isso, continuaria a bater, a insistir e a importunar o camarada de dentro – até que por fim de contas este se levantaria e lhe daria quanto quisesse, se não pelo fato de ser seu amigo, em todo o caso para se ver livre dele e da importunação. No meio do auditório, se declara grande hilaridade, rompem francas risadas e cruzam-se comentários chistosos. Jesus não se desgosta disto. Depois, tirando a moral da parábola prossegue, em tom sério e convicto: – Assim vos digo eu: “Pedi, e recebereis; procurais, e achareis; batei, e abrirse-vos-á. Sim, quem pede recebe; quem procura acha; a quem bate abrir-selhe-á”... Por fim, traçando um paralelo entre o pai humano e o Pai divino conclui: – Haverá entre vós um pai que dê a seu filho uma pedra, quando este lhe pede pão? Que lhe dê uma serpente, quando lhe pede peixe? Que lhe dê um escorpião, quando lhe pede um ovo? Se, pois, vós, apesar de maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai celeste dará o espírito santo aos que lhe pedirem! O homem é a imagem de Deus. E, se tanta bondade reveste essa imagem, qual não será a bondade e perfeição do original divino? Convém, portanto, termos ilimitada confiança e persevera, na liberalidade do Pai celeste.
O juiz iníquo Fez Jesus ver, em outra parábola, que importa orar sempre e não desfalecer. Disse: – Vivia em uma cidade um juiz, que não temia a Deus nem respeitava homem algum. Havia na mesma cidade uma viúva, que foi ter com ele e lhe disse: Reivindico os meus direitos contra meu adversário! Negou-se ele a atendê-la por algum tempo. No fim de contas, porém, disse consigo mesmo: “Verdade é que não temo a Deus nem respeito homem algum; mas essa viúva tanto me importuna, que lhe farei justiça, para que não acabe por vir cá meter-me as unhas na cara”. Era esse juiz déspota e tirano. Cônscio da sua superioridade, não tinha que dar satisfação nem a Deus nem aos homens. Desprezava a plebe, observando fielmente a máxima do poeta romano: Odi prolanum valgus et arceo – “odeio o vulgacho profano e dele me afasto”. Eis que lhe aparece a pobre viúva, defrandada nos seus bens por um homem sem justiça nem caridade. Com a saída da casa paterna ficara ela sem a proteção de pai e mãe, e com a morte do marido se via reduzida à completa falta de recursos. Mas essa mulher tinha as suas armas: tenacidade e perseverança sem limites. Todo o mundo temia o juiz – ela não! O medo nos outros, era audácia nessa mulher. Meses seguidos se dirigia a infeliz à casa do juiz; pedia, rogava, suplicava, e ele não a atendia. Ela, porém, não sabia o que fosse desânimo, e por vezes eram tão veementes as suas palavras, tão expressivos os seus gestos, que o juiz receava um encontro desagradável com aquela mulher tão persistente. Rendeu-se, finalmente. Remorsos de consciência não os conhecia – não era homem para semelhantes “fraquezas”; nem se comprometia com lei e justiça – pois a lei era ele mesmo; queria sossego... E deu ganho de causa à viúva importuna. Talvez um ou outro dos ouvintes de Jesus já se vira em situação análoga.
Enquanto eles, sorridentes, se entreolhavam e comentavam o “caso”, exclamou Jesus: – Escutai o que diz o juiz iníquo! E repetiu as palavras arrogantes do homem da lei: – “Verdade é que não temo a Deus, nem respeito homem algum; mas essa viúva tanto me importuna, que lhe farei justiça, para que não acabe por vir cá meter-me as unhas na cara.” Depois acrescentou, com dignidade: – E Deus não faria justiça a seus eleitos, quando dia e noite clamarem a ele? Deixá-los-ia esperar muito tempo? Digo-vos que bem depressa lhes fará justiça. Pois, se até um juiz injusto resolve fazer justiça a quem lhe pede com perseverança, como deixaria o Deus da justiça e do amor de atender às súplicas de seus filhos? E acrescentou Jesus, em tom dolente: – Entretanto, será que o Filho do Homem, quando vier, encontrará fé sobre a terra?... Sem uma fé viva não é possível uma confiança perfeita e uma perseverança sem desfalecimentos.
O fariseu e o publicano Israel continuava figueira estéril, a despeito de todas as solicitudes de Jesus. O povo eleito era suficiente a si mesmo; não sentia ainda bastante a necessidade de um redentor; ufanava-se das suas obras, do esplendor do seu culto, da magnificência do seu templo. Israel queria salvar-se à força de observâncias legais e não pelo amor de Deus revelado em ética humana. Por isso, os judeus desprezavam os samaritanos, os goim, os “publicanos” e “pecadores”. Deus, porém, resiste aos soberbos, mas dá a sua graça aos humildes. E, já que os fariseus não faziam exame de consciência, resolveu Jesus fazê-lo por eles para eles. Colocou-lhes diante dos olhos, como um espelho, uma parábola que, não obstante a sua concisão, é obra-prima de psicologia. Disse, então, Jesus: – Dois homens subiram ao templo para fazer oração: um era fariseu, o outro publicano. O fariseu, em pé, orava assim consigo mesmo: “Eu te dou graças, meu Deus, por não ser como o resto dos homens, ladrões, injustos, adúlteros, nem mesmo como esse publicano aí. Eu jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo dos meus haveres”. O publicano, porém, conservando-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu; mas batia no peito, dizendo: “Meus Deus, tem piedade de mim, pecador!” Digo-vos que este voltou para casa ajustado e não o outro. Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e todo aquele que se humilha será exaltado. E, assim, o perfil destes dois homens representa duas classes típicas tão antigas como a humanidade. Sobre o fundo negro dos pecados do próximo, lança o fariseu a luminosa imagem das suas extraordinárias virtudes e perfeições. O publicano, porém, nem ousa adiantar-se na consciência da sua indignidade; de olhos baixos, confuso, bate no peito como a exigir castigo de si mesmo e, com sincera humildade, diz e repete: “Meu Deus, tem piedade de mim, pecador”.
“E este”, diz Jesus, “voltou para casa ajustado com Deus, porque reconheceu e confessou as próprias culpas.”
Jesus acusado de aliado de Satanás Certo dia, apresentaram a Jesus um homem possesso de um espírito que lhe tolhia a fala. Expulsou Jesus o demônio, e no mesmo instante o homem começou a falar, com grande admiração do povo que estava derredor. Também presenciaram o prodígio alguns dos fariseus. Mas, em vez de se renderem à evidência e reconhecerem o poder de Jesus, replicaram com ares de intolerante desdém: – É por Belzebu, chefe dos demônios, que ele expulsa os demônios. Ia nestas palavras uma grande dose de insolência e pouca lógica. Jesus, ouvindo isto, respondeu: – Todo reino desunido em si mesmo esfacelar-se-á; nenhuma cidade, nenhuma casa desunida em si mesma, pode subsistir. Se, pois, Satanás expele a Satanás, está em desacordo consigo mesmo – e como pode então subsistir o seu reino? E, se é por Belzebu que eu expulso os demônios, por quem os expulsam então vossos filhos?... Por isso, serão eles vossos juízes! Se, porém, é pelo dedo de Deus que eu expulso os demônios, claro está que chegou a vós o reino de Deus. O argumento era sem réplica. Era ilógico e absurdo supor que Satanás guerreasse os seus auxiliares. É o que o Mestre faz ver aos seus insolentes opositores. Entretanto, do fato histórico da expulsão do demônio se seguia mais outra verdade, a saber, que quem expulsa é mais poderoso do que aquele que é expulso. Para ilustrar esta verdade, recorre Jesus à seguinte comparação: – Quando o poderoso bem armado guarda a sua casa, estão em segurança todos os seus utensílios. Mas se outro, mais poderoso, o atacar e derrotar, lhe tirará toda a armadura em que confiava, e repartirá os seus despojos. Quem não é por mim é contra mim; e quem não recolhe comigo, dispersa. Conclui Jesus essa discussão com os fariseus impenitentes e impertinentes, fazendo-lhes ver o grande perigo que correm de se tornarem presa dos
demônios, eles mesmos, que acoimavam o Messias de aliado de Belzebu. Assim lhes falou: – Quando o espírito impuro sai do homem, vagueia por lugares desertos em busca de repouso; mas não o encontra. Pelo que diz: “Voltarei para minha casa, de onde saí”. E, chegando, encontra-a varrida e ornada. Vai então e toma consigo mais sete espíritos, piores que ele e, entrando, se estabelecem nele; e vem o último estado deste homem a ser pior que o primeiro.
O sinal de Jonas Numerosos prodígios havia Jesus realizado aos olhos dos judeus, para provar a sua missão divina. Ainda assim, atrevem-se eles a exigir-lhe “sinal do céu”, como se para Jesus fosse mais difícil produzir um sinal mirífico nas alturas do céu do que nas profundezas da terra ou na amplidão do Universo! Respondeu-lhes o Mestre que haviam de ver, em breve, um sinal, uma prova de seu poder: a ressurreição da morte. – Raça perversa, essa raça – exclamou ele –; pedem um sinal!... Mas não lhes será dado outro sinal senão o sinal do profeta Jonas. Do mesmo modo que Jonas esteve três dias e três noites nas entranhas do monstro marinho, assim há de também o Filho do Homem ficar três dias e três noites nas entranhas da terra. E, assim como Jonas veio a ser um sinal para os ninivitas, assim também o será o Filho do Homem para esta raça. “Três dias e três noites”, ou, como diz o texto original, “três noites-dias”, significam três períodos de luz e treva, completos ou incompletos. Pois Jesus não esteve três dias e três noites no seio da terra. À vista da cegueira e incredulidade dos fariseus, acrescenta Jesus com veemência: – Os habitantes de Nínive hão de levantar-se contra esta raça, no dia do juízo, e condená-la, porque eles se converteram com a pregação de Jonas – e eis que aqui está quem é mais do que Jonas! – A rainha do Sul se há de levantar contra os homens desta raça no dia do juízo, e condená-los; porque ela acudiu das longínquas plagas da terra para ouvir a sabedoria de Salomão – e eis que aqui está quem é mais do que Salomão! E, frisando a causa dessa incredulidade, passa a comparar o espírito a uma luz destinada a iluminar todo o edifício do Eu espiritual, luz que o homem de má vontade coloca debaixo do velador das suas prevenções. – Ninguém acende uma luz – dizia ele – e a põe em lugar oculto, nem debaixo do velador, mas sim sobre o candelabro, para que os que entram em casa lhe vejam o fulgor. A luz do teu corpo é o teu olho; enquanto o teu olho for simples
estará em luz todo o teu corpo; mas, se o teu olho for mau, todo o teu corpo estará em trevas. Cuidado, portanto, que não se torne em trevas a luz que em ti está! Se essa luz se tornar em trevas, quão grande será essa escuridão! Mas, se todo o teu corpo for luminoso, sem nenhum ponto escuro, então, sim, estará tudo em plena luz, como quando o sol te ilumina com os seus fulgores. Aqui alude Jesus, parece, ao “terceiro olho” dos iniciados, que, quando despertado, lucifica toda a natureza humana.
Questão da herança, cuidado com a cobiça Contraste doloroso! Jesus fala do desapego dos bens materiais, da futilidade das riquezas da terra, e do valor imenso dos tesouros celestes – e esse homem, envolvido em um litígio com seu irmão por causa de uma herança, algum pedaço de terra ou uma casa, só pensa em conquistar os bens caducos da vida presente. Durante todo o sermão de Jesus, não pensara em outra coisa. Depois de lhe falharem os recursos judiciários, lembrou-se de apelar para o grande prestígio do profeta de Nazaré, no intuito de satisfazer a sua cobiça. Nada lhe importavam as verdades do reino de Deus; só o interessava o reino da terra; o seu Messias era o dinheiro, o seu Salvador era aquele que o ajudava a agarrar uns bons punhados de metal sonante!... Replicou-lhe Jesus: – Homem! Quem me constituiu juiz ou partidor sobre vós? Sabia Jesus que aquele grito representava a mentalidade de muitos dos seus ouvintes, mais afeiçoados aos bens da terra do que aos tesouros do céu. Por isso acrescentou: – Cuidado e cautela com toda a cobiça! Ainda que alguém viva na abundância, não é da sua fortuna que depende a vida. Depois desse exórdio, desenvolve o Mestre, em uma luminosa parábola, a idéia central da sua exortação, dizendo: – Um homem possuía um campo que lhe produzira fruto abundante. Ao que ele se pôs a pensar consigo mesmo: “Que farei? Não tenho onde recolher os meus frutos... Isto é que farei! Vou demolir os meus celeiros e construí-los maiores, para abrigar toda a colheita e os meus bens. Então direi à minha alma: Agora sim, minha alma, tens em depósito grande quantidade de bens para muitos anos! Descansa, come, bebe, regala-te!” Deus, porém, lhe disse: – Insensato! Ainda esta noite te hão de tirar a vida! E as coisa, que amontoaste, de quem serão? Depois, olhando em derredor, acrescentou, com insistência:
– Assim acontece àquele que acumula tesouros para si, mas não é rico aos olhos de Deus. Que terá pensado aquele homem que vinha pleitear questões de herança junto ao Mestre de Nazaré?...
A providência de Deus e a previdência dos homens Continuava a caravana apostólica a percorrer as terras da Palestina. Apreensivos e um tanto desalentados olhavam os discípulos para o futuro. Que fim levaria aquele interminável jornadear?... Que era o reino de Deus de que tantas vezes falava o Mestre?... Qual a posição deles neste reino?... E que seria das suas famílias, que tinham abandonado? Num daqueles dias, em plena viagem, sentou-se Jesus com seus companheiros à sombra de uma árvore... Por entre a verde ramaria, cantava um passarinho, ledo e despreocupado, como se fosse dono do mundo inteiro. Mais além, na várzea, meio à sombra meio ao sol, floriam uns lírios silvestres, cor de fogo. Reinava grande calmaria naquele dia de verão. Jesus entreouvia o murmúrio queixoso dos discípulos. Deixou-os falar a meia voz por algum tempo. Depois interveio e, em tom suave e firme, lhes disse: – Não vos dê cuidados a vida, o que haveis de comer; nem o corpo, o que haveis de vestir... Silêncio profundo... Então olhou Jesus para o emplumado cantorzinho da alegria, e prosseguiu: – Considerai as aves do céu! Não semeiam, nem ceifam, não têm nem despensa nem celeiros – Deus é que lhes dá de comer. Ora, não valeis vós muito mais que as aves? Quem de vós pode, com todos os seus cuidados, prolongar a sua vida por um palmo sequer? Se, pois, não sois capazes de coisa tão pequenina, por que vos dais cuidados do mais?... Envergonhados, os discípulos baixaram os olhos. Até uma avezinha do mato lhos devia servir de exemplo de fé e confiança na amorosa providência do Pai celeste!... Em seguida, apontando para uns lírios purpúreos, que banhavam-se à luz do sol, continuou:
– Olhai os lírios do campo, como crescem! Não trabalham nem fiam; e, no entanto, vos digo eu que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu jamais como um deles. Que são as mais perfeitas obras de arte fabricadas por mãos humanas, comparadas com as obras-primas da natureza, com as maravilhas do Creador? Os discípulos meditavam, em profundo recolhimento... E no meio deste grande silêncio lançou Jesus a conclusão final: – Se, portanto, Deus veste assim a erva que hoje está no campo, e amanhã será lançada ao forno, quanto mais fará a vós, homens de pouca fé! Não pergunteis, portanto, o que haveis de comer, o que haveis de beber, e o que haveis de vestir; nem vos inquieteis. Os mundanos é que se entregam a esses cuidados. Vosso Pai bem sabe que disto haveis mister. Procurai, pois, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua harmonia – e tudo aquilo vos será dado de acréscimo.
Sempre alerta Quanto mais se avizinhava o termo final da vida de Jesus, mais frequentes se tornavam as suas admoestações aos discípulos. Queria vê-los bem preparados para quando rompessem as grandes perseguições. Encarando aquele grupinho de gente simples do campo e do mar, destinado à conquista espiritual do mundo, disse-lhes o Mestre: – Não temais, pequenino rebanho, pois aprouve a vosso Pai dar-vos o reino! – Vendei os vossos haveres e dai esmola. Tratai de adquirir bolsas que não envelheçam, e um tesouro imperecível nos céus, que o ladrão não rouba nem a traça corrói; porque, onde está o vosso tesouro, aí está também o vosso coração. Depois, aludindo à brevidade da vida presente e ao próximo advento do Filho do Homem, recomendou-lhes que estivessem sempre alerta, quais servos vigilantes que, em plena noite, aguardam a chegada de seu senhor: – Andai com a cintura cingida – disse-lhes – e com lâmpadas acesas nas mãos. Sede como homens que estão à espera até que seu senhor volte da festa nupcial, para lhe abrirem a porta, logo que ele chegue e bata. Bem hajam esses servos a quem o senhor encontrar vigiando à sua chegada! Em verdade vos digo que se cingirá, os fará sentarem-se à mesa e, andando daqui e acolá, os servirá. Venha a segunda, venha a terceira vigília, se os encontrar assim – bem hajam esses servos!
A espada e o fogo do Cristo Pelo que tinham ouvido, bem podiam os discípulos concluir que seu Mestre não viera ao mundo para levar uma vida cômoda e regalada, mas que o seu destino era o de servir. E esta mesma sorte lhes caberia também a eles, se é que queriam ser dignos discípulos dele; pois, como dizia Jesus, o discípulo não está acima de seu mestre, nem o servo é mais que seu senhor. E, para lhes incutir esta idéia fundamental do seu Evangelho, o espírito de serviço voluntário, assim lhes falou Jesus: – Pensais que vim trazer paz à terra? Não, digo-vos eu, mas a separação! Daqui por diante, haverá discórdia entre cinco que se acharem na mesma casa; três contra dois, e dois contra três; pai contra filho, e filho contra pai, mãe contra filha, e filha contra mãe; sogra contra nora, e nora contra sogra. Há de o irmão entregar à morte o irmão, e o pai ao filho; há de o filho revoltar-se contra o pai e tirar-lhe a vida. Por causa de meu nome sereis odiados de todos. Mas quem perseverar até o fim, esse será salvo. Clarins de guerra!... Perspectivas de luta!... Auroras de sangue!... Mais tarde, em Jerusalém e Antioquia, no Coliseu de Roma e nas fogueiras de Alexandria, compreenderam os discípulos cabalmente esta advertência profética. Jesus, certamente, é o príncipe da paz, e nem a sua vida nem a sua doutrina desmentiram jamais o jubiloso hino entoado pelos mensageiros celestes sobre a gruta de Belém: “Paz na terra aos homens de boa vontade!” A saudação de Jesus é invariavelmente esta: “A paz seja convosco!” As instruções e diretivas que ele dá a seus missionários são a mesma recomendação: “Quando entrardes numa casa dizei em primeiro lugar: A paz seja com esta casa”. E, na hora fatídica do Getsêmani, quando Simão Pedro arrancou da espada, teve de ouvir dos lábios do Mestre a ordem categórica de embainhar a espada, porque o cordeiro de Deus queria ir ao matadouro, sem uma palavra de protesto, sem um gesto de defesa. Pouco antes da sua morte, deixou Jesus este testamento de paz e de alegria a seus discípulos: “Eu vos dou a paz; eu vos deixo a minha paz, para que a
minha alegria esteja em vós; e seja perfeita a vossa alegria, e nunca ninguém tire de vós a vossa alegria”. Sim, Jesus vinha trazer a paz ao mundo, mas não era amigo de uma “paz podre”, de uma paz covarde e cômoda, e sim da paz da consciência conquistada e mantida à custa de sacrifícios e renúncias. “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz; mas não a dou como o mundo a dá...” O homem que quiser seguir ao Cristo quase sempre terá de viver em pé de guerra com as potências deste mundo, mesmo portas adentro do lar e do templo. Os santos e mártires dos primeiros séculos viviam em luta pacífica com os imperadores romanos, e não raro com os próprios pais, irmãos e filhos. Para conservarem a paz com Deus e sua consciência é necessário sacrificar a paz com o mundo. É desta paz e desta guerra que Jesus fala. Viera ele à terra trazer o gládio cortante dos grandes heroísmos, espada flamejante do idealismo, o fogo divino do entusiasmo que, qual incêndio mundial, abrasasse os corações e envolvesse tudo nas suas labaredas. Neste sentido acrescentou o Mestre: – Eu vim para lançar o fogo à terra – e que quero eu senão que arda? Por isso, suspirava Jesus por ver chegada essa hora bendita do sacrifício final: – Tenho de submergir em um batismo – e como anseio por que ele se realize! No princípio da sua atividade apostólica, submergira nas águas do Jordão; no fim da sua vida, submergiria num dilúvio de sangue.
Brado de alarde Chegaram neste momento alguns com a notícia de que Pilatos derramara o sangue de uns galileus, no ato de sacrificarem. Os galileus eram de gênio vivo e fogoso. Por ocasião das grandes solenidades de Israel, manifestava-se não raro, em explosões de entusiasmo religiosonacional, a índole desse povo teocrático, que sentia ferver o ódio aos usurpadores de além-mar. Qual afronta perene e desafio ao patriotismo de Israel, lá estava encravada em um ângulo da muralha do templo a fortaleza romana, o ominioso “castelo Antônia”, com a guarnição militar dos Césares sempre pronta a acudir ao primeiro aceno do governador pagão, chamar à ordem os judeus, e fazer-lhes sentir que eram escravos de uma dominação estrangeira. Repetidas vezes mencionam os historiadores desordens e motins, por ocasião de grande afluência popular em Jerusalém. Em vista disso, costumavam os governadores romanos transferir a sua residência, nesses dias, de Cesaréia para Jerusalém, ocupando o palácio de Herodes, ou a referida fortaleza. Foi provavelmente por ocasião de uma dessas festas que Pilatos fez matar bom número de galileus desordeiros, no próprio templo, misturando o sangue deles com o sangue das vítimas que jaziam sobre o altar dos holocaustos. Não é crível que o governador os tratasse tão duramente se eles não tivessem provocado algum motim. É possível que Herodes Antipas se desgostasse do modo sumário por que foram mortos súditos seus, nesta ocasião; pois sabemos que os dois soberanos se desavieram e só se reconciliaram por ocasião do processo de Jesus, na sexta-feira daquela Páscoa. Deram, então, parte a Jesus desse acontecimento sensacional. O Nazareno não se impressionou, mas observou com a sua calma habitual: – Pensais vós que esses galileus eram pecadores maiores do que os demais galileus, por terem sofrido isto? De modo nenhum, vos digo eu. Mas, se vós não vos converterdes, perecereis também vós. O espírito de Jesus logo remontava às causas últimas e supremas dos acontecimentos; a morte corporal não representava para ele nenhum mal; mas, sim, a morte espiritual, o pecado; e desta morte podiam e deviam os homens precaver-se.
E logo passa a aludir a outro acontecimento trágico, conhecido de todos os seus ouvintes, dizendo: – E aquelas dezoito pessoas que pereceram no desabamento da torre de Siloé, cuidais vós que eram mais culpadas que os habitantes de Jerusalém? De modo nenhum, digo-vos eu. Mas, se não vos converterdes, perecereis também vós. Mas isso de conversão era palavra dura aos ouvidos dos judeus. Resolveu, então, Jesus, propor uma parábola incisiva sobre este assunto: a impenitência de Israel através dos séculos.
A figueira estéril Depois de longos anos de trabalho quase infrutífero, começou Jesus a pintar, em diversas parábolas, a esterilidade espiritual de Israel, comparando-a, certa vez, a uma figueira plantada no meio de uma vinha. Dizia o Mestre: – Um homem tinha uma figueira plantada no meio de uma vinha. Veio buscarlhe fruto, mas não o encontrou. Disse então ao jardineiro: Há três anos que venho procurando fruto nesta árvore e não o encontro. Corta-a, pois; para que ocupa ainda o terreno? Respondeu-lhe o jardineiro: – Senhor, deixa-a ainda este ano; vou cavar em derredor e deitar adubo, a ver se chega a frutificar; se não, corto-a depois. *** Nunca existiu no mundo um povo que tenha sido tão cumulado de favores como o de Israel. Séculos e milênios de milagres, profecias e revelações... Para que deixar ainda viver essa árvore? Rouba a seiva às videiras, e a ninguém é proveitosa. Melhor é cortá-la e lançá-la ao fogo. Não merece o lugar que ocupa... Já o dissera o austero pregador às margens do Jordão: “Produzi frutos de sincera conversão! Porque o machado já está à raiz das árvores. Toda árvore que não produzir fruto bom será cortada e lançada ao fogo!” Apareceu então um jardineiro de Nazaré e pediu ao dono do campo um prazo de paciência e misericórdia. E foi ele mesmo cavando o terreno daqueles corações. Rasgou-o com o arado férreo das suas ameaças: “Ai de vós, fariseus hipócritas! Não escapareis à ira de Deus.” Revolveu a terra com as mãos suaves do seu amor: “Vinde a mim todos os que andais aflitos e sobrecarregados, e eu vos aliviarei...”
Regou-o com as lágrimas dos seus olhos: “Jerusalém! Jerusalém! Quantas vezes tenho querido reunir os seus filhos assim como a ave recolhe debaixo das asas a sua ninhada; tu, porém, não quiseste”... E Jesus chorou sobre a cidade. Iluminou aquela figueira estéril com a luz da sua doutrina. “Eu sou a luz do mundo; quem me segue não anda em trevas.” Apesar de tudo isto, a figueira de Israel permaneceu estéril... Mistério da iniquidade humana. Quando o governador romano Pilatos quis soltar Jesus, declarando: “Eu sou inocente do sangue desse homem justo”, Israel, instigado por seus chefes espirituais, bradou: “O seu sangue venha sobre nós e sobre nossos filhos!” E há quase vinte séculos que se está realizando esta terrível automaldição. Não há maior perigo do que abusar dos benefícios de Deus. A Igreja cristã, em grande parte, não está repetindo a história funesta da Sinagoga de Israel? Não substituiu a nossa teologia os dois grandes mandamentos, da mística e da ética, em que se baseiam toda a lei e os profetas; não os substituiu a teologia por dogmas, sacramentos e ritualismos da sua invenção? Desde o quarto século foi a mensagem do Cristo substituída pela política da teologia sob os auspícios de Constantino Magno. Segundo as profecias dos videntes, será a figueira estéril cortada e lançada ao fogo, na plenitude dos tempos que parecem estar chegando.
A mulher encurvada Cruzava Jesus as cercanias de Jerusalém, espargindo o seu Evangelho. Nos dias de semana ensinava ao ar livre, à sombra de alguma árvore ou no topo de uma colina. Aos sábados, porém, aproveitando o concurso do povo ao recinto sagrado, doutrinava no templo ou na sinagoga do lugar onde casualmente se encontrasse. Subia ao estrado ou púlpito destinado aos doutores da lei, e ao lado dele tomava lugar o chefe da sinagoga, encarregado da disciplina no lugar sacro. Em um desses sábados estava Jesus a falar ao povo sobre o reino de Deus, quando viu diante de si uma mulher toda encurvada, com a cabeça inclinada para a terra. É que sofria de uma deformidade da espinha dorsal, que a impedia de aprumar o corpo. Havia dezoito anos que ela arrastava essa desdita, e ninguém lhe podia valer. Assim que Jesus a viu diante de si, a escutar-lhe atentamente a palavra, interrompeu o seu sermão e espontaneamente, sem que ninguém formulasse pedido, disse: – Mulher, estás livre da tua enfermidade! Impôs-lhe as mãos, e logo ela se aprumou e tornou-se de perfeita saúde, e começou a glorificar a Deus.
Festa da Dedicação do Templo Meados de dezembro, pleno inverno. Jerusalém dispunha-se a celebrar as festas da “Dedicação do Templo” ou, como lhe chamavam os helenistas, Encenia, que quer dizer estréia, renovação. Recordavam essas solenidades a purificação do santuário feito pelos intrépidos irmãos Macabeus, depois de profanado pelas abominações sacrílegas do rei Antíoco. Por esta ocasião, afluíam à metrópole grandes multidões. Pôs-se Jesus no “pórtico de Salomão”, vasta galeria de colunas de mármore branco, que corria pelo lado interno oriental da muralha do templo; levava o nome de Salomão porque fora, em parte, construída com materiais do antigo templo salomônico. Era um lugar muito apropriado, abrigado da chuva e dos ventos, e caprichosamente ladrilhado de grandes mosaicos. Ali se encontrava Jesus com seus discípulos, falando do reino de Deus. Não tardaram a aparecer alguns dos judeus para observá-lo e analisar as doutrinas que propunha. Animou-se um deles a dizer-lhe: – Até quando nos trazes na incerteza? Se tu és o Cristo, dize abertamente. Respondeu-lhes Jesus: – Bem vo-lo disse, mas não tendes fé. As obras que faço em nome do meu Pai é que dão testemunho de mim. Vós, porém, não tendes fé, porque não sois do número das minhas ovelhas. As minhas ovelhas prestam ouvido a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem; dou-lhes a vida eterna, e não se perderão eternamente, e ninguém as arrebata da minha mão. Meu Pai, que mas deu, é maior que todos, e ninguém as pode arrebatar das mãos de meu Pai. Eu e o Pai somos um. Tinham os judeus pedido uma resposta clara sobre a natureza de Jesus, e ele lha deu, insofismável: “Eu e o Pai somos um”. Os judeus não tenham idéia exata do Cristo cósmico; para eles só existia o Jesus humano, como até hoje acontece em muitas sociedades teológicas e espiritualistas. Evidentemente, a pessoa humana de Jesus não era Deus. O Cristo, porém, é a primeira e mais perfeita individuação da Divindade Universal,
que se pode chamar Deus: neste sentido Jesus chama “deuses” todos os homens, como emanações individuais da Divindade. Quem confunde Deus com Divindade e Jesus com o Cristo não pode compreender o Evangelho. Os ouvintes não compreenderam o sentido e alcance destas palavras; que Jesus afirmava o seu Cristo como Deus, o que era para eles uma blasfêmia, e a pena da blasfêmia, segundo a lei de Moisés, era a morte. Por isso, os judeus pegaram em pedras para o apedrejar. Disse-lhes Jesus calmamente: – Muitas boas obras vos tenho mostrado pela virtude de meu Pai; por qual dessas obras quereis apedrejar-me? Replicaram-lhe os judeus: – Não é por nenhuma boa obra que te apedrejamos, mas, sim, por causa da blasfêmia, porque tu, sendo homem, te fazes Deus. Esta mesma acusação lhe repetem os judeus naquela memorável sexta-feira, no pretório de Pilatos: “Nós temos uma lei, e segundo a lei ele deve morrer; porque se fez Filho de Deus”. De maneira que o motivo último e decisivo por que mataram Jesus foi a profissão do seu Cristo. Caifás, em plena sessão do Sinédrio, dirige ao acusado esta intimação solene: “Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deu bendito!” E Jesus responde de modo claro e conciso: “Sim, eu o sou”. E Caifás exclama: “Blasfemou! É réu de morte!” Respondeu Jesus aos judeus indignados: – Não está escrito na vossa lei: “Disse eu: Vós sois deuses”? Ora, se a Escritura chama deuses àqueles a quem foi dirigida a palavra de Deus – e não é possível abolir a Escritura –, acaso podeis afirmar que blasfema aquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo, por eu dizer: Eu sou Filho de Deus?
Retirada para Peréia Mais uma vez procuraram os judeus prender a Jesus – por ter afirmado ser Deus – “ele, porém, lhes fugiu das mãos”. Ninguém o podia prender sem que ele mesmo o quisesse e o permitisse. Entretanto, Jesus não despreza os recursos da prudência humana e, para não exasperar seus inimigos, antes que chegasse “a sua hora”, tornou a passar para além do Jordão, em demanda daquele sítio onde João havia administrado o batismo de conversão. E deixou-se ficar por algum tempo nessa região, mais tranquila, longe do foco das hostilidades. Denominava-se Peréia esse território, e estendia-se desde as margens do lago de Genesaré até o litoral do Mar Morto, ocupando toda a zona oriental d’além-Jordão. Era da jurisdição de Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia. Ainda estava bem viva na memória do povo a pregação de João Batista, que por ali andara como uma tempestade de Deus, falando em Jesus. Por isso, ao ouvir a palavra do Nazareno, dizia a gente da Peréia: – Verdade é que João não fez milagres, mas tudo que disse a respeito dele está se comprovando verdadeiro. *** Em uma dessas ocasiões, quando Jesus estava falando às turbas sobre o reino de Deus e o caminho que a ele conduz, acercou-se dele um homem com esta pergunta: – Senhor, são poucos os que se salvam? Pergunta infinitas vezes repetida, desde que a boa nova da Redenção soou pelas terras da Palestina. Mil vezes foi suscitada esta pergunta, tão momentosa quão ociosa: são poucos os que se salvam? O único homem que nos poderia dar resposta certa seria Jesus. Mas ele nunca respondeu a semelhante pergunta, do mesmo modo que não quis indicar o tempo do juízo final. Passa a questão de curiosidade intelectual para o terreno da ética prática.
– Esforçai-vos por entrar pela porta estreita; porque vos digo que muitos procurarão entrar e não o conseguirão. Uma vez que o dono da casa se tenha levantado e cerrado a porta, ficareis vós da parte de fora, batendo à porta e chamando: Senhor, abre-nos! Ele, porém, vos responderá: Não sei donde sois vós. Fazem estas palavras recordar aquelas outras sobre a porta estreita e o caminho apertado, como também a parábola das Dez Virgens. A resposta que Jesus dá à pergunta sobre o número dos que se salvam é indireta e condicional: salvam-se tantos quantos escolherem o caminho estreito do Evangelho e andarem com a lâmpada acesa – e perdem-se tantos quantos preferirem a estrada larga do mundo e estiverem imersos nas trevas. É esta a solução ética da questão sobre o pequeno ou grande número dos que se salvam. O número dos bem-aventurados e o número dos réprobos será determinado pela livre vontade do homem, que tem nas mãos as chaves do céu e do inferno; a graça de Deus não falta a ninguém; mas nem todos cooperam com a graça. Em seguida, aludindo à reprovação de Israel impenitente, e ao convite das nações, acrescentou Jesus: – Então começareis a dizer: “Nós comemos e bebemos em tua presença, e tu andaste ensinando em nossas ruas”. Ele, todavia, vos repetirá: “Não sei de onde sois vós; apartai-vos de mim, todos vós, que agis fora da lei”. Então haverá choro e ranger de dentes, quando virdes no reino de Deus a Abraão, Isaac e Jacó e todos os profetas, e vós expulsos. Virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, e sentar-se-ão à mesa no reino de Deus. E eis que haverá últimos que serão primeiros e primeiros que serão últimos! A salvação não depende de fatores externos. O fato de alguém ser parente de Jesus, conterrâneo ou contemporâneo dele não é garantia de salvação. Tudo depende da aceitação do Evangelho do reino e duma vida em harmonia com ele.
Ameaças de Herodes. Ternura maternal de Jesus Não viam os fariseus com bons olhos a atividade apostólica de Jesus nas regiões da Peréia, onde o povo simples do campo o escutava com avidez, e frustrava qualquer atentado contra ele. Os inimigos do Nazareno suspiravam pelo dia em que o pudessem prender clandestinamente em Jerusalém, sem alarmar o povo, sempre amigo dele, “essa plebe maldita que não conhece a lei”, como se dizia no Sinédrio. Foram, pois, ter com Jesus, mascarados como sempre, e lhe disseram com fingida solicitude: – Sai e retira-te daqui, porque Herodes te quer matar. Jesus ouve tranquilamente a ameaça; mas não se perturba; vai à morte, sim, mas vai quando ele quer, e não quando o querem os seus inimigos; a sua obra é obra de Deus, e não dos homens. Respondeu, então, aos fariseus: – Ide, e dizei a essa raposa: Eis que vou expulsando demônios e realizando curas, hoje e amanhã; no terceiro dia, porém, estarei no termo. Mas, hoje, amanhã e no dia seguinte tenho de caminhar; porque não convém que um profeta pereça fora de Jerusalém... Vibra nestas últimas palavras uma discreta ironia. Jerusalém gozará do triste privilégio de assassinar o Filho Unigênito de Deus, assim como assassinou os mensageiros de Deus, no Antigo Testamento. Por isso, independentemente das ameaças desse homem astuto que é Herodes, não tardará o Cordeiro de Deus a demandar a capital dos pais, para se apresentar no matadouro... De súbito, surge ao espírito profético de Jesus uma visão de horror. À vista da ingratidão da cidade e da catástrofe que esse crime atrairia sobre o povo de Israel, confrange-se-lhe dolorosamente a alma; lança ao espaço estas palavras de ternura maternal: – Jerusalém! Jerusalém! Que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados!... quantas vezes tenho querido reunir os teus filhos, assim como a galinha recolhe a sua ninhada debaixo das asas – tu, porém, não quiseste!
Quantas vezes, no remanso idílico de Nazaré, tinha o menino, o adolescente, observado o carinhoso afã que a galinha dedicava aos seus pintinhos!... Dia e noite. De súbito, acrescentou Jesus: – Declaro-vos que já não me vereis até que chegue o tempo em que direis: “Bendito seja o que vem em nome do Senhor!”
Cura de um hidrópico. Os primeiros lugares Certo dia, ainda na Peréia, foi Jesus convidado a um banquete por um dos fariseus do lugar. Era em dia de sábado. Ao entrar na sala, deparou-se-lhe um homem hidrópico. Esse encontro não parece ter sido simples coincidência, senão antes um estratagema dos seus inimigos; queriam ver se Jesus curava aquele infeliz em dia de sábado, profanando assim, lá no entender deles, o dia do descanso. Ao defrontar com o pobre enfermo e vendo convergidos sobre si todos os olhares, perguntou Jesus: – É lícito curar em dia de sábado, ou não? Silêncio em toda a linha!... Então tomou Jesus o homem, curou-o rapidamente e mandou-o embora. Mas o murmúrio à surdina e os olhares significativos, que muitos dos convivas trocavam entre si, davam a entender que reprovavam aquele “trabalho servil” com que o Nazareno acabava de profanar o dia do descanso. Pelo que Jesus, sabedor dos seus pensamentos, lhes disse: – Se a algum de vós cair no poço um burro ou um boi, não o tirará logo, mesmo em dia de sábado? Se é lícito – e quem ousaria negá-lo? – acudir a uma creatura irracional, em dia de sábado, por que seria pecado arrancar de uma longa enfermidade uma creatura racional? *** O incidente com o hidrópico parece ter retardado o banquete. Ainda estava Jesus no meio da sala, enquanto iam entrando, um após outro, os convivas. Não se tratava de pessoas de apurada educação, por sinal que cada qual procurava ocupar o melhor lugar; os lugares à cabeceira da mesa eram considerados lugares de honra. Talvez os desculpasse até certo ponto o desejo de verem e ouvirem melhor o célebre profeta de Nazaré, ao qual, naturalmente, seria designado um lugar à cabeceira. Os reclinatórios, que então se usavam em vez de assentos, não permitiam uma conversa desimpedida entre número maior de pessoas.
Jesus, contemplando o afã dos convivas, observou judiciosamente: – Quando fores convidado a algum banquete, não ocupes o primeiro lugar; porque pode ser que outro de mais consideração do que tu tenha sido convidado pelo dono da casa e, vindo ele, te diga: “Vai para o último lugar”. Não, quando fores convidado, vai tomar o último lugar. Se então vier aquele que te convidou e te disser: “Amigo, passa mais para cima” – será isto uma honra para ti aos olhos de todos os companheiros de mesa. Até aqui, parece o pensamento de Jesus restringir-se a uma simples questão de civilidade e bom-tom social. Mas, como em outras ocasiões, também desta vez termina o Mestre por lançar uma ponte do terreno natural para as regiões da ordem espiritual, concluindo: – Pois todo aquele que se exaltar será humilhado, e quem se humilhar será exaltado.
Caridade social desinteressada Estava, pois, Jesus à mesa em casa do fariseu. Mas não convinha que, enquanto se alimentava o corpo, ficasse o espírito em jejum. Por isso, tomando por ponto de partida o banquete e os convivas, entrou o Mestre a abordar em torno deste assunto a seguinte conversação: – Quando tiveres convivas à tua mesa, não sejam eles teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem os vizinhos ricos; para que não te convidem eles, por seu turno, e assim te paguem. Não, quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. Feliz de ti! Porque esses não têm com que te retribuir; mas terás a tua retribuição na ressurreição dos justos. Jesus não proíbe que se convidem amigos e pessoas abastadas; mas, se o luxo tem os seus direitos, por que não os teria também a indigência?
O grande banquete Ainda durante a refeição, começou Jesus a falar em parábolas, condimentando o alimento material com iguarias espirituais. E tão grande foi o esplendor dos seus pensamentos, que um dos convivas exclamou em altas vozes: – Feliz de quem se banquetear no reino de Deus! De relance, o espírito do Nazareno se apodera deste pensamento, e compara o reino de Deus, neste mundo, a um lauto banquete dizendo: – Um homem preparou um grande banquete e convidou muita gente. Chegada a hora do festim, enviou seu servo a dizer aos convidados: “Vinde, está tudo pronto!” Eles, porém, todos a uma voz, começaram a escusar-se. Disse o primeiro: “Comprei um quinta, e preciso ir vê-la; rogo-te me tenhas por escusado”. Outro disse: “Comprei cinco juntas de boi e vou experimentá-los; rogo-te me tenhas por escusado”. Um terceiro disse: “Casei-me, e por isso não posso ir”. Voltou o servo e referiu isto a seu senhor. Indignou-se o dono da casa, e ordenou a seu servo: – Sai depressa pelas ruas e becos da cidade, e conduze-me aqui os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos. – Senhor – disse o servo –, está feito como mandaste, e ainda há lugar. Disse o senhor ao servo: – Sai pelos caminhos e cercados, e obriga a gente a entrar, para que se encha a minha casa. Pois declaro-vos que nenhum daqueles homens que tinham sido convidados provará o meu banquete. Enviou, Jesus também, os seus servos e discípulos às almas simples e despretensiosas, pobres pelo espírito, aos mansos, aos que choravam, aos que tinham fome e sede da justiça, aos misericordiosos, aos puros de coração, aos pacificadores e aos perseguidos, convidou os “coletores e os pecadores”, chamou os que viviam aflitos e sobrecarregados, e eis que eles atenderam em grande número ao convite. ***
Nada mudou nestes quase dois mil anos; os homens profanos são os mesmos. Para que alguém aceite com gosto o banquete do mundo espiritual, deve ele ter uma profunda experiência de si mesmo; deve ser um “iniciado”, deve ter autoconhecimento – e quantos o têm?
Parábola da torre e da empresa bélica Terminara o banquete em casa do fariseu. Depois da refeição, parece, alguns dos ouvintes se declararam prontos para entrar no número dos discípulos do Cristo. De quantos heroísmos não se julga capaz o homem – quando nenhum inimigo se avista no horizonte... Jesus reconhece a boa vontade desses homens; mas logo lhes faz ver que o seu apostolado neste mundo não desliza por entre flores e salas de banquetes, mas é um campo de batalha cheio de sangue, é um caminho estreito cheio de espinhos. Passa o Mestre a ilustrar essa verdade por meio de duas comparações tiradas, uma, da vida dos arquitetos, a outra do ambiente militar. Disse Jesus aos que o seguiam: – Qual de vós, querendo construir uma torre, não fará primeiro, mui de assento, o orçamento, a ver se dispõe dos meios necessários para a obra? Senão, depois de lançar os fundamentos, lhe será impossível terminar a obra, e toda a gente que o vir zombará dele, dizendo: Este homem começou uma construção, e não a pôde levar a cabo. – Qual o rei que, indo empreender uma guerra contra outro rei, não calcula primeiro, mui de assento, se com dez mil homens pode sair a campo contra quem vem atacá-lo com vinte mil? No caso contrário, mandará uma embaixada enquanto o outro ainda está longe, solicitando convênios de paz. Do mesmo modo, não pode nenhum de vós ser meu discípulo, se não renunciar a tudo quanto possui. *** É deveras estranha essa filosofia do Mestre. Em vez de recomendar ao construtor da torre que arranje mais dinheiro para terminar a construção; em vez de recomendar ao general que duplique o número dos seus soldados para derrotar o inimigo – manda o Mestre “abandonar tudo que tem” a fim de sair vitorioso dos seus apuros. É pela sabedoria do “ser”, e não pela política do “ter”
que o discípulo do Cristo resolve os problemas da sua vida. Quanto maior for o seu “ser” e quanto menor o seu “ter”, tanto melhor.
A ovelha desgarrada e a dracma perdida – Qual de vós, possuindo cem ovelhas, e perdendo uma, não deixa as noventa e nove no deserto e vai no encalço da que se perdeu até a encontrar? E, tendo-a encontrado, põe-na aos ombros cheio de alegria e, de volta a casa, reúne os amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Congratulai-vos comigo, porque encontrei a ovelha que se perdera. Digo-vos que, do mesmo modo, haverá maior júbilo nos céus por um pecador que se converte do que por noventa e nove justos que não necessitam de conversão. Esta parábola era para os homens, os pastores. Acrescentou Jesus mais uma pequena comparação tirada dos domínios da mulher, da dona de casa: – Qual a mulher que, possuindo dez dracmas e perdendo uma, não acende a candeia, não varre a casa e procura com afinco até a encontrar? E, tendo-a encontrado, convoca as suas amigas e vizinhas, dizendo: Congratulai-vos comigo, porque encontrei a dracma que perdera. Deus não somente quer bem à humanidade em globo, mas a cada homem em particular; cada alma lhe merece tão vivo interesse, como se outras não existissem.
O filho pródigo Um homem tinha dois filhos. Disse o mais novo ao pai: – Pai, concede-me a parte da natureza que me convém. Ao que o pai repartiu a vida entre eles. Passados poucos dias, o filho mais moço juntou todos os seus haveres e partiu para uma terra longínqua. Aí esbanjou a sua fortuna em uma vida dissoluta. Depois de haver dissipado tudo, sobreveio uma grande fome àquele país, e ele começou a sofrer necessidade. Retirou-se então e pôs-se a serviço de um dos cidadãos da terra, o qual o mandou para os seus campos guardar os porcos. Ansiava ele por encher o estômago com as vagens que os porcos comiam; mas ninguém lhas dava. Então entrou em si e disse: “Quantos trabalhadores em casa de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui pereço de fome?! Levantar-me-ei e irei ter com meu pai, e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e diante de ti! Já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me tão somente como um dos teus trabalhadores”. Levantou-se e foi em busca de seu pai. O pai avistou-o de longe e, movido de compaixão, correu-lhe ao encontro, lançou-se-lhe ao pescoço e beijou-o. Disse-lhe o filho: “Pai, pequei contra o céu e diante de ti; não sou digno de ser chamado teu filho”. O pai, porém, ordenou a seus servos: “Depressa, trazei o mais precioso traje e vesti-o! Ponde-lhe um anel no dedo e sapatos nos pés. Buscai também o novilho gordo e carneai-o. Comamos e banqueteemo-nos porque este meu filho estava morto e ressuscitou; andava perdido e foi encontrado”. E começaram a banquetear-se. Entrementes, estava o filho mais velho no campo. Quando voltou e se aproximou da casa, ouviu música e danças. Chamou um dos criados e perguntou-lhe o que era aquilo. Respondeu-lhe ele: – Chegou teu irmão, e teu pai mandou carnear o novilho gordo, porque o recebeu são e salvo. Indignou-se ele e não quis entrar. Saiu então o pai e começou a insistir com ele. O filho, porém, respondeu: – Há tantos anos que te sirvo e nunca transgredi nenhum dos teus mandamentos; e jamais me deste um cabrito para
eu me banquetear com meus amigos. Mas, logo que chegou este teu filho, que dissipou os teus bens com meretrizes, mandaste-lhe carnear o novilho gordo. – Meu filho – tornou-lhe o pai –, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas não podíamos deixar de celebrar festa e banquete; porque este teu irmão estava morto, e reviveu; andava perdido, e foi encontrado. *** Nesta rainha das parábolas representa Jesus dois homens, ou melhor, duas humanidades: uma que passou pela evolução do ego mental e atingiu as alturas do Eu espiritual, e outra que estagnou no plano pré-evolutivo. A primeira humanidade é representada pelo filho mais novo, o filho pródigo; a segunda humanidade é simbolizada pelo filho mais velho, que não passou nem pelo ego nem chegou ao Eu. O filho pródigo passou pela “culpa feliz” e pelo “pecado necessário” de que fala o hino pascal do Exultat; chegou ao autoconhecimento e à auto-realização, e por isto o pai (Deus) lhe faz tamanha festa, que naturalmente não pode ser compreendida pelo homem que ainda não passou pelo autoconhecimento e pela auto-realização. Por isto, o filho não-realizado não chama o outro de “irmão”, porque não havia afinidade entre os dois. É natural que o pai (Deus) não dissuada o filho de iniciar a sua vida-ego; nem aparece em toda a história uma mãe. Esta explanação, porém, só é possível sobre o texto grego do primeiro século, e não sobre as traduções posteriores, que só vêem na parábola a misericórdia de Deus pelo pecador arrependido. A parábola do filho pródigo não é “moralizante”, mas profunda “metafísica”; não enfatiza a “moralidade do agir”, mas, sim, a “verdade do ser”, como aliás todas as parábolas do Evangelho.
O rico gozador e o pobre Lázaro Havia um homem rico, que se vestia de púrpura e linho finíssimo e se banqueteava esplendidamente, todos os dias. À sua porta jazia um mendigo, por nome Lázaro, coberto de úlceras. De bom grado se fartaria com as migalhas que caíam da mesa do rico; mas ninguém lhas dava. Ora, chegou a falecer o mendigo, e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado. No inferno ergueu os olhos, do meio dos tormentos, e avistou ao longe a Abraão, e Lázaro no seio dele. E pôs-se a clamar: “Pai Abraão, tem piedade de mim! E manda Lázaro molhar na água a ponta do dedo e refrescar-me a língua; porque sofro grandes tormentos nestas chamas”. Replicou-lhe Abraão: “Lembra-te, filho, de que passaste bem durante a vida, enquanto Lázaro passou mal. Agora está ele em consolações, e tu em tormentos. Além disto, medeia entre nós e vós um grande abismo, de modo que ninguém pode passar daqui para vós, nem daí para nós, ainda que quiséssemos”. Tornou aquele: “Rogo-te, pai, que o mandes à minha casa paterna; tenho cinco irmãos; que os previna para que não venham também eles parar neste lugar de tormentos”. Respondeu-lhe Abraão: “Eles têm Moisés e os profetas; que os ouçam”. “Não, pai Abraão”, replicou ele; “mas, se um dos defuntos for ter com eles, converter-se-ão.” Disse-lhe Abraão: “Se eles não dão ouvidos a Moisés e aos profetas, tampouco se converterão quando alguém ressuscitar dos mortos”. *** Nesta bela parábola, como acontece sempre nas do gênero doutrinário, muitas verdades aparecem em rajos metafóricos. Para exprimir que o condenado é privado até do mais insignificante alívio, diz Jesus, concreta e plasticamente, que não lhe foi concedida sequer uma gotinha d’água para refrescar a ponta da língua – a língua, o paladar, de que tanto abusara nos lautos banquetes, sem atender às necessidades dos indigentes. O abismo intransponível que medeia entre os de baixo e os de cima simboliza a distância enorme, infinita, que há entre os condenados e os bemaventurados; mas esse abismo é cavado pelo próprio pecador impenitente, como esse ricaço, que depois da morte continua impenitente.
Contém esta parábola terrível advertência para todo homem que, em vez de possuir as riquezas, é por elas possuído e escravizado; para o homem que se considera dono, e não apenas administrador temporário dos bens terrestres, que tem de repartir espontaneamente com seus irmãos indigentes. Bem poderiam encontrar, nesta parábola, elementos para idéias melhores os que acoimam o Nazareno de “comunista” e “inimigo” da propriedade particular. A doutrina do Cristo ocupa termo médio entre o comunismo extremo e o capitalismo exagerado. Este proclama o direito à “propriedade individual” e a sua “função individual”. Aquele só admite “propriedade social” com “função social”. O Evangelho, porém, defende o direito de “propriedade individual”, mas com caráter de “função social”.
Os dois devedores Acabava o Mestre de falar da correção fraterna e da necessidade de perdoarmos aos nossos semelhantes. Simão Pedro, gênio impetuoso e sempre pronto a avantajar-se aos outros, quis mostrar-se ótimo discípulo de tão grande mestre e, saindo da roda dos companheiros, perguntou, como num acesso de generosidade: – Senhor, quantas vezes tenho de perdoar a meu irmão que me ofender? Até sete vezes? Cuidava ele que isto fosse o máximo do heroísmo: perdoar sete vezes a seu ofensor! Respondeu-lhe tranquilamente Jesus: – Não sete vezes, mas setenta vezes sete. Traduzindo esta locução aramaica em nossa língua diríamos: Mil vezes deves perdoar, isto é, todas as vezes que teu ofensor te pedir sinceramente. E, para inculcar tão importante preceito, improvisou o espírito do Nazareno uma história dramática, ou, antes, uma tragédia, que tinha por cenário a vida comercial daquele tempo. Disse: – O reino dos céus é semelhante a um rei que quis tomar contas a seus servos. E, ao começar a tomada de contas, apresentaram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. Mas, como não tivesse com que pagar, ordenou seu senhor que o vendessem, ele, sua mulher e seus filhos, todos os seus haveres, e com isso saldassem a dívida. O servo, porém, lançou-se-lhe aos pés, suplicando: “Tem paciência comigo, que te pagarei tudo!” Compadecido do servo, o rei o pôs em liberdade e perdoou-lhe a dívida! Saindo fora, encontrou o servo um dos seus companheiros, que lhe devia cem denários. Agrediu-o e ameaçou estrangulálo, dizendo: paga o que me deves! “O companheiro prostou-se-lhe aos pés, suplicando: “Tem paciência comigo, que te pagarei tudo!” O outro, porém, não quis; mas foi-se e o mandou lançar ao cárcere até que houvesse pago a dívida. Contristaram-se profundamente os outros servos, que tinham presenciado o caso, e foram dar parte a seu senhor de tudo o que acabava de acontecer. Então o senhor o mandou vir à sua presença e assim lhe falou: “Servo mau! Perdoei-te toda a dívida, porque me pediste: não devias, portanto, também tu
ter compaixão de teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?” E, indignado, entregou-o aos carrascos, até que houvesse pago toda a dívida. – Assim vos há de tratar meu Pai – acrescentou Jesus, significativamente, olhando para Simão Pedro e para os demais – se do íntimo do coração não perdoardes uns aos outros.
Lázaro doente Era no mês de fevereiro do último ano da vida terrestre de Jesus. Estava para terminar a sua missão na Peréia. Enquanto o Mestre ia dando as suas últimas instruções àquela gente simples e reta d’além Jordão, chegou um homem, exausto de fadiga e coberto de pó, e a largos passos se aproximou do Mestre. Parecia trazer algum recado urgente. Vinha de Betânia, aldeia pouco distante de Jerusalém, situada nas fraldas do Monte das Oliveiras. Em dois dias de marcha vencera o trecho de estrada que conduz à Peréia. Transmitiu o seu recado, breve e conciso: – Senhor, eis que está enfermo aquele que amas. Fora enviado por Marta e Maria, para cientificar o divino Mestre da moléstia de Lázaro, irmão das duas. Cientificá-lo do fato – e nada mais. Nenhum pedido, nenhuma insistência! “Aquele que amas” – era argumento suficiente. Poderá, acaso, o amigo deixar sofrer a seu amigo querido? A solicitude pelo irmão exigia que mandassem recado; a delicadeza daquelas almas pedia uma respeitosa reticência. E Jesus, que faz? Manda dizer, tranquila e laconicamente, às irmãs: – Esta enfermidade não leva à morte, mas é pela glória de Deus, para que por ela seja glorificado o Filho de Deus. O mensageiro partiu, cheio de esperança, na certeza de que a moléstia de Lázaro não era mortal, pois o profeta de Nazaré o dissera, e sua palavra não falhava nunca. Jesus, porém, deixou-se ficar na Peréia ainda dois dias. No fim deste período disse a seus discípulos: – Voltemos para a Judéia!
Por estas palavras fatídicas já esperavam os discípulos desde o dia em que chegara o mensageiro de Betânia. Parecia haver passado o perigo – quando, de súbito, caiu no meio deles, como um raio do céu, a intimação: Voltemos para a Judéia! Já se tinham alegrado de o Mestre não atender à insinuação de Marta e Maria – e agora?... Aos olhos dos discípulos era uma aventura temerária apresentar-se Jesus na Judéia, onde os fariseus estavam à espreita dele para o prender. E eis que, de improviso, resolve Jesus entregar-se a seus mortais inimigos. – Mestre! – exclamaram, horrorizados, os discípulos – ainda há pouco queriam os judeus apedrejar-te, e vais lá outra vez? Respondeu-lhes Jesus em termos um tanto misteriosos, dizendo: – Não são doze as horas do dia? Quem caminha de dia não tropeça, porque vê a luz deste mundo; mas quem caminha de noite tropeça, porque lhe falta a luz. O “dia” era para Jesus o tempo da sua vida terrestre: a “noite” era a morte. Enquanto a luz serena do dia iluminava os caminhos que o Pai lhe marcara, nenhum perigo havia para o solitário viandante, nem escribas, nem fariseus, nem sacerdotes, nem doutores da lei, inimigo algum lhe podia fazer mal, porque o Pai não o permitia, e em face da onipotência divina toda a potência humana é impotência. Mais tarde, porém, o Pai permitiria que caíssem sobre Jesus as sombras crepusculares do sofrimento e a noite cerrada da morte. E já não vinha longe essa hora do declínio. Por isso disse Jesus: – Vamos a Jerusalém! E acrescentou: – Nosso amigo Lázaro dorme; mas eu vou despertá-lo do sono. Os discípulos tomaram estas palavras simbólicas em sentido literal e observaram com ingenuidade: – Senhor, se dorme, vai melhorando. Então lhes declarou Jesus, sem ambages: – Lázaro morreu. E eu folgo, por causa de vós, de não ter estado presente, para que tenhais fé. Com estas palavras alude discretamente à ressurreição que pretende fazer, a fim de confirmar na mente dos discípulos e do povo a fé na sua missão divina. E, começando a caminhar resolutamente, acrescentou: – Vamos vê-lo!
Entreolharam-se os discípulos, hesitantes e apreensivos. Rumo a Jerusalém?... Desafiar seus mortais inimigos? E foram seguindo o Mestre, com o coração acabrunhado – quando subitamente, em um como arranco de heroísmo, exclamou Tomé: – Vamos também e morramos com ele. Este brado de intrepidez sugestionou os outros. E seguiram a Jesus.
A ressurreição de Lázaro Ia, então, Jesus ao encontro da morte, calmo, resoluto e firme, assim como os heróis marcham em demanda do seu destino. Ao chegar a Betânia, distante de Jerusalém uns três quilômetros, já estava Lázaro com quatro dias de sepultura; morrera no mesmo dia em que o mensageiro de Marta e Maria transmitira a Jesus o recado e este lhe respondera que aquela enfermidade não levaria à morte. Demorou-se ainda tranquilamente dois dias na Peréia e, com mais outros tantos de viagem, acabava de chegar a Betânia. “Muitos judeus tinham vindo visitar Maria e Marta para as consolar da morte de seu irmão” – pois era uma família distinta e estimada de todos. Ninguém deixara de dar os pêsames às boas irmãs do extinto. Todos se mostravam amigos – só Jesus não atendera ao discreto apelo que lhe fora dirigido por aqueles corações dedicados e doloridos... Nem mesmo comparecera ao enterro do amigo... Tão dolorosa é, muitas vezes, a pedagogia de Deus com as almas que mais o amam... “Assim que Marta soube da chegada de Jesus, saiu-lhe ao encontro, enquanto Maria se conservava em casa.” Maria não sabia ainda da presença do Mestre; só Marta, dona de casa, recebera, quase em segredo, essa notícia. Na encruzilhada, à beira da povoação, encontrou-se Marta com Jesus, e ali se travou, entre o Mestre e a discípula, um dos mais memoráveis colóquios sobre o problema central da humanidade: a fé na vida após a morte. Marta, de luto, os olhos marejados de lágrimas, saúda respeitosamente o Mestre. Não lhe pergunta por que não viera visitar o amigo enfermo, mas não pode deixar de desafogar a sua dor nestas palavras: – Senhor, se estiveras aqui não teria morrido meu irmão... Depois de algum tempo, acrescentou: – Mas também agora sei que Deus te concederá tudo o que lhe pedires... Tremula nestas palavras uma tênue esperança, uma discreta insinuação daquilo que Marta tão ardentemente desejava: que o Mestre pedisse a Deus
algum... algum... alguma coisa que transformasse em luz as sombras que, havia quatro dias, envolviam a silenciosa casinha de Betânia. Respondeu-lhe Jesus: – Teu irmão ressurgirá. Jesus profere corajosamente aquela palavra que Marta não ousara pôr-lhe na boca: a palavrinha “ressurgirá”! Mas... esta palavra podia ter sentido duplo... e Marta desejaria tanto ter resposta clara e indubitável... Por isso, em vez de perguntar explicitamente o que lhe pedia o seu amor de irmã, responde a Jesus o que lhe ditava a sua reverente discrição. – Bem sei que ele ressurgirá na ressurreição do último dia... Jesus não lhe satisfaz a tácita pergunta. Em vez disso responde com uma frase evasiva: – Eu sou a ressurreição e a vida; quem tem fé em mim viverá, ainda que tenha morrido; e quem em vida tem fé em mim não morrerá eternamente. Era uma resposta clara à fé imperfeita que Marta externara a princípio, dizendo: “Sei que Deus te concederá tudo o que lhe pedires”. Depois desta explicação pergunta Jesus a Marta: – Tens fé nisto? – Sim, Senhor, eu tenho fé que tu és o Cristo, Filho de Deus vivo, que devia vir ao mundo. *** Passou-se todo este episódio à entrada da aldeia, em uma encruzilhada onde ainda hoje se vê uma pedra, ao pé da qual, segundo a tradição, se travou memorável diálogo entre Jesus e Marta. Não longe daí ficava o sepulcro de Lázaro. Mandou Jesus a Marta que chamasse sua irmã. E ela, pressurosa, foi ter com Maria, sentada em casa, no meio de pessoas amigas, e lhe disse baixinho ao ouvido: – Está aí o Mestre e te chama. Maria estremeceu; enxugou as lágrimas, levantou-se e foi com presteza ter com Jesus. Ah! Quanta falta lhe fizera o dileto amigo e consolador, nesses últimos dias de angústia e de luto! O Mestre me chama! – esta idéia deu asas aos pés de Maria.
Quando os judeus, que com ela estavam em casa a consolá-Ia, viram que Maria se levantava pressurosa e saía, cuidaram que fosse ao sepulcro chorar, e seguiram-na. Chegando onde estava Jesus e vendo-o, Maria prostrou-se-lhe aos pés e disse: “Senhor, se tivesses estado aqui, não teria morrido meu irmão...” Repete as mesmas palavras que Marta proferira; pois era este o estribilho que, dia e noite, tinham trocado entre si aquelas duas almas angustiadas: Se o Mestre estivesse aqui, não morreria nosso irmão... Não lho sofreria o bondoso coração... Tê-lo-ia curado, como curou tantos outros... Tão dolorosa e emocionante era a cena, que no meio daquele grande silêncio só se ouviam soluços e prantos... E Jesus, vendo-a em pranto, e em pranto também os judeus que a acompanhavam, sentiu-se profundamente abalado, e comovido perguntou: – Onde o colocaste? – Vem, Senhor – lhe disseram elas. “E Jesus rompeu em pranto”, diz o evangelista. Lágrimas sentidas que o amigo derrama sobre o túmulo recente do amigo. Disseram então os judeus: Vede como o amava! Alguns, porém, observaram: Não podia ele, que abriu os olhos ao cego de nascença, impedir que esse homem morresse? Chegados ao pé do túmulo, de novo se comoveu Jesus profundamente. O sepulcro era uma câmara talhada em rocha, no fundo da qual se achava a catacumba de Lázaro; pesada laje fechava a entrada do sepulcro. – Tirai a pedra – ordenou Jesus. – Senhor – acudiu Marta –, já cheira mal; está com quatro dias... Tornou-lhe Jesus: – Não te disse eu que verás a glória de Deus, se tiveres fé? Marta mandou abrir o túmulo. Horrorizados, recuaram todos... Lá no fundo jazia o cadáver, envolto em lençóis e com o rosto coberto com um sudário... O único que se conservou calmo e impassível foi Jesus. Em pé, à beira da câmara mortuária, contemplou uns instantes o interior do túmulo.
E então, no meio da expectativa geral, levantou Jesus os olhos ao céu, ergueu as mãos em atitude de súplica, e disse solenemente: – Meu Pai! Eu te dou graças porque me atendeste! Eu bem sabia que sempre me atendes; mas por causa do povo que está em derredor é que o disse para que tenham fé que tu me enviaste. Depois desta oração, tornou a cravar os olhos no cadáver e bradou: – Lázaro, vem para fora! “Saiu incontinenti o que estivera morto, trazendo os pés e as mãos ligados com ataduras, e o rosto envolto em um sudário.” Um frêmito de assombro estremeceu pelos espectadores. Estupefatos, de olhos arregalados, contemplavam aquele fenômeno que estava em pé no meio do sepulcro, sem poder sair, porque vinha envolto nos lençóis e faixas. Ordenou Jesus aos circunstantes: – Desenleai-o e deixai-o andar. E logo alguns prestaram ao redivivo este serviço, ajudando-o a desembaraçarse das mortalhas. Lázaro apareceu, sem um vestígio de moléstia, nem de decomposição. E Jesus o entregou a Marta e Maria. Irmão e irmãs se abraçaram. Prostraram-se aos pés de Jesus e convidaram-no a tomar parte no banquete que iam celebrar em Betânia, em regozijo da ressurreição de Lázaro. Tiraram o luto e se vestiram de festa. *** Enquanto Jesus, em Betânia, celebrava com seus amigos a solenidade da ressurreição e da vida, lá fora os seus inimigos maquinavam a morte dele.
O ódio do Sinédrio Estupendo tinha sido o prodígio que Jesus realizara em Betânia. Eclipsava todas as outras maravilhas do seu poder. Betânia ficava às portas de Jerusalém. Fariseus e doutores da lei tinham sido testemunhas oculares da ocorrência. Lázaro era homem muito conhecido e estimado. O defunto estivera enterrado quatro dias, com sinais evidentes de morte real; era evidente a ausência da alma naquele organismo. E Jesus, que fizera? Não tocara sequer no cadáver. Apenas uma ordem – e o defunto se levantara, redivivo! Todos podiam verificar o fato, à vontade; pois Lázaro vivia no meio deles. Naquelas primeiras semanas, quase que não se falava de outra coisa em Jerusalém e arredores, senão no inaudito acontecimento de Betânia; era o assunto obrigatório de todas as conversações. Depois de verem a Lázaro, vinham os curiosos ter com Jesus. Contemplavam com um misto de admiração e terror aquele homem de Nazaré, que dava ordens à própria morte, e a morte lhe obedecia... Nesses dias, granjeou Jesus numerosos discípulos e admiradores, como também grande número de inimigos e perseguidores. Onde o milagre acordou ecos mais lúgubres foi no interior do Sinédrio, Senado e Supremo Tribunal Religioso de Israel. Os sacerdotes viam no crescente prestígio do Nazareno uma ameaça e um perigo para a sua posição e influência. Reuniram-se, pois, em conselho e disseram, incertos e apreensivos: – Que faremos? Pois esse homem faz tantos milagres! Se o deixarmos nesse andar, acabarão todos por crer nele; e então virão os romanos tirar-nos a nossa terra e a nossa gente. Conclusão estranha! Que tinha que ver a política com os prodígios de Jesus? A que vem essa alusão ao dominador estrangeiro? É que os chefes de Israel raciocinavam, ou fingiam raciocinar, deste modo:
– Se esse Jesus de Nazaré continuar a fascinar o povo com os seus portentos, não tardaremos a presenciar um novo caso com esse impostor como já os tivemos na pessoa de Teudas e de Judas Galileu, que sublevaram o povo com os seus discursos e o seu prestígio; teremos revolução e desordem fronteiras adentro – e os romanos, sob pretexto de restabelecer o pouco de liberdade de que ainda gozamos, acabarão por nos escravizar completamente. Isto diziam eles à boca cheia; mas lá entre si discutiam outros motivos, ditados pela ambição e pelo amor-próprio. Seguiram-se longas e acaloradas discussões sobre o que convinha fazer. Nem todos os membros do Sinédrio eram do mesmo parecer. Nicodemos e José de Arimatéia eram amigos de Jesus, e o sisudo mestre Gamaliel, certamente, não optou por medidas violentas. Ao cabo de prolongados debates, como não houvesse possibilidade de chegar a um acordo, levantou-se o sumo sacerdote Caifás e, cheio de desdenhosa arrogância, disse: – Vós não sabeis coisa alguma! Nem considerais que mais vos convém morrer um homem pelo povo do que perecer toda a nação! O que Caifás queria dizer era ser preferível matar Jesus a expor ao perigo de uma sublevação e consequente extermínio todo o povo de Israel. As palavras de Caifás decidiram a questão; a maior parte do Sinédrio aderiu ao alvitre do sumo sacerdote, e decretaram a morte de Jesus. Procuravam, desde então, uma oportunidade para se apoderarem dele às ocultas e sem amotinar o povo, o qual, lá na retidão do seu bom senso natural, venerava a Jesus como um grande profeta.
Os dez leprosos Acabava o Supremo Tribunal Religioso de condenar Jesus à morte. Mas o homem põe e Deus dispõe! Nos planos de Deus faltavam ainda umas semanas – quase todo o mês de “Adar”, março – para se consumar o grande holocausto do Gólgota. Jesus sabia de tudo; mas não se perturbou com as tramas dos seus adversários; continuou a cruzar as terras da Palestina, espalhando a sua doutrina. Entretanto, para não acirrar desnecessariamente a cólera dos fariseus, retirouse de Jerusalém e dirigiu-se rumo norte até uma aldeia, por nome Efraim, não longe do deserto. Daí se encaminhou para a fronteira de Samaria, em companhia de seus discípulos, que respiraram aliviados, quando viram desaparecer ao longe os pináculos do templo e as montanhas da Judéia. Mas essa retirada e essa solidão não passavam da calma lúgubre que costuma preceder a tempestade. Depois de algum tempo, dispôs-se Jesus a regressar à Judéia. Ao entrar em certa aldeia, saíram-lhe ao encontro dez leprosos. Pararam ao longe e puseram-se a clamar em altas vozes: – Jesus, Mestre, tem piedade de nós! A lepra é uma das moléstias mais terríveis que há; faz apodrecer aos poucos os tecidos orgânicos, desfigura a pessoa e embota as faculdades mentais. Naquele tempo, eram os leprosos banidos da sociedade humana, em vista do caráter contagioso dessa moléstia; viviam na solidão dos desertos; tinham lugares determinados onde vinham procurar o alimento previamente colocado por almas piedosas; quando avistavam uma pessoa na vizinhança, tinham de bradar: impuro! impuro! a fim de a pôr de sobreaviso. Segundo a lei mosaica, passava o leproso, além de enfermo, também por legalmente impuro; era-lhe vedado pôr os pés em lugar sagrado ou tocar em qualquer objeto destinado ao culto divino. Levados pelo instinto de sociabilidade, e impelidos pela miséria comum, arrebanhavam-se os infelizes, formando grupos. Pelas fronteiras de Samaria vagueavam numerosos bandos dessas ruínas humanas. Os que por último se haviam associado à turma fatídica sabiam de Jesus de Nazaré, e contavam aos companheiros dos prodígios que ele
operava, curando doentes e ressuscitando mortos. Ah! Se conseguissem encontrar-se com o profeta de Nazaré!... Não ignoravam que ele costumava passar por aquele caminho, nas suas frequentes viagens de norte a sul. Puseram-se, portanto, à espreita. E a sorte lhes foi propícia. Não tardou que transitasse por ali o Nazareno acompanhado dos seus discípulos. Os leprosos, obedientes à lei, conservaram-se a respeitável distância e, depois de bradarem a sua triste senha “impuro! impuro!”, puseram-se a clamar: “Jesus, Mestre, tem piedade de nós!” Jesus parou e escutou por alguns momentos aquele concerto trágico de vozes rouquenhas, e contemplou os gestos convulsivos que aquelas mãos estropiadas executavam no ar, a fim de realçarem a veemência da súplica. Mas – coisa estranha! – em vez de proferir a palavra salvadora: “Eu quero, sede limpos!” ou esta outra: “Ide em paz, a vossa fé vos salvou!”, em vez disto, dálhes a ordem lacônica e fria: – Ide mostrar-vos aos sacerdotes. Calaram-se eles, e um sentimento de dolorosa decepção lhes invadiu a alma... Como? Retirarem-se da presença do Nazareno?... Leprosos como tinham vindo?... Perder essa ocasião única e tão ardentemente almejada?... E os sacerdotes?... Que podiam fazer os sacerdotes?... eles, inimigos declarados do Nazareno?... Entretanto, os leprosos obedeceram sem protesto à ordem do Mestre. E, pelo caminho, tornaram-se limpos. Não restava o menor vestígio da repelente moléstia. Jubilosos correram para Jerusalém, a fim de se apresentarem aos sacerdotes e tirarem o competente atestado de saúde. E os sacerdotes, mau grado seu, atestaram oficialmente que nada menos de dez leprosos incuráveis tinham sido curados pelo profeta de Nazaré. Positivamente, era tempo de acabar com esse taumaturgo!... Nove dos felizardos, no auge do júbilo, mal se viram em poder do atestado, apressaram-se a comunicar o feliz acontecimento às pessoas de sua família. E, lembrados do benefício, esqueceram-se do benfeitor. Apenas um dos dez, impelido pelo sentimento de gratidão, foi ter com Jesus e, prostrando-se-lhe aos pés, lhe agradeceu a cura... E este era samaritano.
Perguntou Jesus: “Não ficaram limpos os dez? E os nove onde estão? Não houve quem voltasse e desse glória a Deus senão só esse forasteiro?” Depois disse ao samaritano: – Levanta-te e vai, a tua fé te salvou. Levantou-se ele e voltou para casa, bendizendo a Deus e cantando os louvores de Jesus Nazareno.
O advento do reino de Deus Prosseguiu Jesus seu caminho, falando do reino de Deus. Perguntaram-lhe os fariseus quando viria esse reino. Respondeu-lhes Jesus: – O reino de Deus não vem com aparato exterior; nem se pode dizer: Ei-lo aqui! ou: Ei-lo acolá! porque o reino de Deus está dentro de vós. A idéia que todos, inclusive os discípulos, formavam do reino de Deus neste mundo era visceralmente errônea. Por mais que Jesus rebatesse as concepções mundanas do reino messiânico, os homens não acabavam de se desiludir, e continuavam a aguardar um domínio político, temporal, de grande expansão e prosperidade, como nos tempos de Davi e Salomão. Uma e muitas vezes inculca Jesus a idéia de que o reino de Deus consiste na realização integral do indivíduo; e isto não se faz com espalhafato e aparato exterior, senão por meio de uma profunda compreensão interior. O reino de Deus principia com autoconhecimento e culmina em auto-realização. Assim como o fermento penetra toda a massa, sem que ninguém possa ver nem apalpar essa misteriosa força transformadora; assim como o princípio vital de um grãozinho vivo atua ab intrinseco, fazendo crescer a planta, em um lento e progressivo aperfeiçoamento de cada uma das suas células, de cada um dos seus órgãos – assim acontece também com o reino messiânico, aqui no mundo: a sua atividade é toda de dentro para fora; a sua causa é invisível, mas os seus efeitos patenteiam-se aos olhos de todos. O reino de Deus está dentro de vós!
A indissolubilidade do matrimônio Naqueles dias, um homem conspícuo repudiou sua mulher, por motivo fútil, causando grande alvoroço e comentários. Logo se formaram partidos pró e contra ele. Floresciam então em Israel duas escolas teológicas – Hillel e Shammai –, que se digladiavam em acaloradas polêmicas e controvérsias casuísticas. Uma das questões mais debatidas era a do divórcio e suas causas legítimas. Não permitia a lei, explicitamente, o repúdio ou o divórcio; mas no tempo de Jesus era costume geral entre os judeus repudiarem as esposas. Ora, lembraram-se alguns dos fariseus, por ocasião daquele recente “escândalo conjugal”, de propor ao rabi de Nazaré o caso em questão. Era ótima ocasião para o porém em conflito, ou com a escola dos “rigoristas”, ou com a dos “Iaxistas”. Então se aproximaram de Jesus alguns dos fariseus e, no intuito de o porem à prova, perguntaram-lhe se era permitido ao homem repudiar sua mulher por qualquer motivo. Perguntou-lhes Jesus: “Que preceito vos deu Moisés?” Responderam eles: “Moisés permitiu dar carta de divórcio e repudiar a mulher”. Replicou-lhes Jesus: “Por causa da dureza dos vossos corações é que Moisés vos deu esta permissão. Mas não lestes que no princípio da creação, quando Deus fez os homens, os fez varão e mulher? E disse: Por isso deixará o varão pai e mãe para aderir à sua mulher, e se tornarão os dois uma só carne. Portanto, já não são dois, mas uma só carne. Ora, o que Deus uniu, não é permitido ao homem separá-lo”. Confusos e perplexos, entreolharam-se os partidários de Hillel e os discípulos de Shammai. Compreendiam que o Mestre de Nazaré não era nem desta nem daquela escola; tomava as águas mais de cima, onde ainda não as turvara a malícia humana; não se contentava com aparar um ou outro ramo doentio da árvore, mas levava o machado à raiz da planta envenenada; não condenava esta ou aquela orientação, mas rejeitava toda a mentalidade falsa de Israel, no tocante à família humana e sua dissolução.
Os consulentes tiveram de ouvir, para vergonha sua, que não existia motivo honesto que permitisse ao homem repudiar sua mulher, mas que a causa real era a “dureza do seu coração” e a adulteração da primitiva pureza da sociedade conjugal. Deus é amor. O que o verdadeiro amor uniu não o pode o homem separar; onde há amor não há divórcio.
Jesus e as crianças Certo dia, refere o Evangelho, após os labores diurnos, retirou-se Jesus do meio do povo. Apresentaram-lhe então umas crianças para que lhes impusesse as mãos e orasse sobre elas. Os discípulos, porém, increparam a gente. Os discípulos fizeram ver às mães que o Mestre estava cansado e não podia atender às crianças. Por via de regra, os grandes deste mundo, os que brilham nos pináculos da História e dirigem os destinos da humanidade, não têm tempo a perder com os pequeninos; cada minuto vale ouro. Jesus, porém, tem tempo de sobra para se entreter com crianças, brincar com elas, fazer-se pequeno com os pequenos, “perder o seu tempo”. – Deixai que venham a mim as crianças, e não lhas embargueis; porque de tais é o reino dos céus. Depois, abraçou-as, abençoou-as e, em seguida, partiu dali. É a única vez que o Evangelho menciona ter Jesus abraçado alguém. Toda criança é filha de Deus, e não do diabo. O Mestre ignora totalmente o tal “pecado original”.
O jovem rico Acabava o Mestre de abençoar as crianças. Quando se dispunha a sair – eis que acorre a ele um jovem distinto, prostra-se aos pés e exclama: – Bom Mestre, que bem devo praticar para alcançar a vida eterna? A julgar pela atitude, esse jovem se achava sob a impressão de algum grande acontecimento; talvez tivesse lutado consigo mesmo, até que de repente lhe despontara na alma uma grande luz; e ele, com o coração a transbordar de emoção, foi ter com o Mestre, encontrando-o justamente a ponto de deixar a casa. A resolução do moço parecia não admitir delongas. Não pede licença, não pergunta se a ocasião é propícia – precisa falar a Jesus com urgência!... Quedou-se Jesus, por uns instantes, com o olhar embebido no horizonte vespertino. Depois, voltando a fitar os olhos no jovem, ainda prostrado a seus pés, disse: – Se queres entrar na vida eterna, guarda os mandamentos. – Quais? – perguntou ele. Eram tantos os mandamentos que o jovem consulente conhecia, centenas de preceitos e tradições impostas pelos mestres de Israel! Não era possível guardá-los todos. E, afinal de contas, quem sabe se o grande Mestre não tinha mandamentos especiais, sublimidades místicas, doutrinas esotéricas... Respondeu-lhe Jesus: – Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não levantarás falso testemunho, honrarás pai e mãe, amarás o próximo como a ti mesmo... Grande decepção! Como? Era essa a decantada sabedoria do famoso profeta de Nazaré?... Coisa tão simples e corriqueira?... Coisa que qualquer criança de Israel sabia de cor, e que os rabinos levavam escrita nos seus filactérios?...
E ele, o jovem entusiasta, formava conceito tão elevado das revelações do Nazareno... Custara-lhe tanto resolver-se e dar este passo; pois as classes ocultas não eram lá muito amigas de Jesus, que vivia no meio de publicanos e pecadores, de crianças, pobres e doentes. Mas o interior não lhe dera tréguas, enquanto não consultara o grande Mestre. E agora?... Uma resposta tão sabida e quase banal... Parece que esse jovem ainda ignorava que a suprema sabedoria se revela, de preferência, na extrema simplicidade. Levantou-se, e disse num tom em que vibrava um quê de estranheza e decepção: – Tudo isto tenho observado desde pequeno. Falava a verdade. Tinha sido uma criança modelo, um menino exemplar; nem mesmo as tentações da mocidade tinham conseguido manchar-lhe a alma. E acrescentou ansioso: – Que me falta ainda? Jesus contemplou com amor esse jovem, diz o evangelista. No meio de grande silêncio e de uma ansiosa expectativa, disse Jesus: – Se queres ser perfeito, vai, vende todos os teus bens e dá-os aos pobres – e terás um tesouro nos céus; depois vem e segue-me. Qual raio em céu sereno, caiu esta intimação na alma do jovem... De repente, com um movimento brusco, voltou as costas a Jesus e, sem uma palavra de despedida, afastou-se a largos passos. Retirou-se o jovem, triste e pesaroso, porque era possuidor de muitos bens... Jesus seguiu-o com os olhos, taciturno, até perdê-lo de vista numa volta do caminho... Depois, como que voltando a si de regiões longínquas, deu um suspiro profundo e, olhando para os circunstantes, disse vagarosamente: – Como é difícil entrarem no reino de Deus os que possuem riquezas!
Riqueza e pobreza Depois da retirada do jovem rico, quedou-se Jesus ainda por algum tempo, como que absorto em dolorosas cogitações. Os discípulos estavam aterrados e comentavam entre si as palavras do Mestre. Aproximou-se deles Jesus e repetiu o mesmo pensamento: – Como é difícil, filhos meus, entrarem no reino de Deus os que põem a sua confiança nas riquezas!... Mais fácil é passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus!... “Os que põem a confiança no dinheiro”: estas palavras precisam bem a mentalidade de Jesus. O que impossibilita a entrada no reino de Deus não é a posse material, externa, de bens temporais; mas é o apego interno às riquezas. É possível que um milionário não ponha a sua confiança no dinheiro, que viva inteiramente livre e desapegado das suas posses; e é possível que um mendigo faça do dinheiro o seu ídolo, o seu Deus, o seu tudo. O que Jesus exige de todos os homens é a “pobreza pelo espírito”, a liberdade interior, o desapego da alma, a emancipação espiritual dos bens de fortuna. Quando os discípulos ouviram que mais difícil era entrar um rico no céu do que passar um camelo pelo fundo de uma agulha, ainda mais se aterraram e começaram a dizer uns aos outros: – Quem pode então salvar-se? – Para os homens é isto impossível – respondeu Jesus –, mas não para Deus; porque a Deus tudo é possível. Quer dizer: Deus pode fazer com que um escravo do dinheiro se converta num homem “pobre pelo espírito”, livre e desapegado dos bens caducos da terra. Mas, enquanto o homem continuar a “pôr a sua confiança nas riquezas” e fazer delas o seu ídolo, nem Deus o pode salvar; a boa vontade do homem é indispensável. Quando Simão Pedro ouviu estas palavras de Jesus, sentiu-se tomado de um sentimento de nobre orgulho, na consciência da sua liberdade interior e pobreza voluntária e, com o coração nos lábios, exclamou:
– Eis que nós deixamos tudo e te seguimos. Qual será, então, a nossa recompensa? Não era muito esse tudo que o pescador da Galiléia deixara: uma velha barca, umas redes rotas, alguns remos e pouco mais; mas, afinal de contas, era tudo; e para alguém muito pobre é mais difícil abandonar a sua querida choupana do que para o ricaço deixar os seus suntuosos palácios; e mais duro nos pode ser renunciar ao pouco que sonhávamos ganhar do que ao muito que possuíamos; porque muitas vezes a esperança do futuro é mais deliciosa do que o fausto do presente. Respondeu Jesus: – Em verdade vos digo que todo aquele que por causa de mim e do Evangelho deixar casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filho, ou campo – receberá, já nesta vida, não obstante perseguições, o cêntuplo e, no mundo futuro, terá a vida eterna.
Os trabalhadores da vinha O reino dos céus é semelhante a um pai de família que, de madrugada, saiu a contratar trabalhadores para a sua vinha. Ajustou com os trabalhadores o salário de um denário por dia, e mandou-os para a sua vinha. Pelas nove horas saiu outra vez, e viu outros na praça ociosos. Disse-lhes: “Ide também vós para a minha vinha, e dar-vos-ei o que for justo”. Foram. Por volta das doze e das três horas tornou a sair, e procedeu da mesma forma. Quando, pelas cinco horas, saiu novamente, encontrou outros que lá estavam, e disse-lhes: “Por que estais aqui o dia todo sem fazer nada?” Ao que eles lhe responderam: “É que ninguém nos assalariou”. Ordenou lhes ele: “Ide também vós para a minha vinha”. Ao anoitecer, disse o dono da vinha a seu feitor: “Vai chamar os trabalhadores e paga-lhes o salário, a começar pelos últimos até os primeiros”. Apresentaram-se, pois, os que tinham entrado pelas cinco horas; e recebeu cada qual um denário. Chegaram, porém, os que tinham sido os primeiros, e calculavam que iam receber mais; mas também estes não receberam senão um denário cada um. Aceitaram-no, porém murmuraram contra o pai de família, dizendo: “Esses últimos trabalharam apenas uma hora, e os igualaste a nós, que suportamos o peso e o calor do dia”. “Meu amigo”, respondeu ele a um da turma, “não te faço injustiça. Pois não ajustaste comigo um denário? Toma, pois, o que é teu e vai-te. Mas eu quero dar também aos últimos tanto quanto a ti. Ou não me será lícito dar aos meus bens o destino que quero? Será que o teu olhar é mau porque eu sou bom? Assim é que últimos serão primeiros, e primeiros serão últimos. Porque muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos.” O trabalho do homem nunca é causa daquilo que Deus lhe dá, mas simples condição; a causa é unicamente Deus. Nenhum homem tem direito, e Deus não tem obrigação alguma. É este o fim da parábola: mostrar a absoluta liberdade de Deus na distribuição dos seus dons gratuitos. Nenhum homem pode merecer o céu, porque não vigoram entre o homem e Deus relações de ordem jurídica. O que Deus dá é graça imerecida, que o homem não pode causar ou merecer.
A pretensão dos filhos de Zebedeu Abandonara Jesus a povoação de Efrém, situada à beira do planalto, rente ao deserto da Judéia, e descera para o vale do Jordão. Ia em demanda de Jerusalém, a fim de tomar parte nas solenidades pascais, que nesse ano incidiam na primeira semana do mês de Nisan (abril). “Seguia diante dos discípulos”, refere o evangelista. Como da outra vez, quando regressara da Peréia, estavam os doze aterrados com essa temeridade do Mestre. Ir ao encontro de seus mortais inimigos... Para dissipar toda e qualquer dúvida sobre as suas intenções e sobre os próximos acontecimentos, convocou Jesus os seus discípulos e falou-lhes com a maior franqueza e desassombro: – Eis que vamos subindo a Jerusalém, e cumprir-se-ão no Filho do Homem todas as coisas que foram escribas pelos profetas. Será entregue aos principais dos sacerdotes, aos escribas e anciãos, que hão de condená-lo à morte, entregá-lo aos gentios, escarnecê-lo, cuspir nele, açoitá-lo e matá-lo; no terceiro dia, porém, ressurgirá. Diversas vezes já tinha Jesus falado da sua morte. Desta vez, porém, o quadro saiu mais negro que nunca, em atenção às coisas horrorosas que iam preceder o seu fim trágico. Entretanto, por mais claras que em si mesmas fossem estas palavras, pareciam obscuras e misteriosas aos discípulos. Não era possível que o Mestre entendesse aquilo em sentido literal; devia ser alguma das suas costumadas alegorias ou comparações. Apresentou-se Salomé, ladeada dos seus filhos moços, Tiago e João, aproveitando um momento de folga, quando Jesus se achava sozinho, um tanto afastado dos seus discípulos; fez-lhe uma profunda reverência e, falando em seu nome e no dos requerentes, entrou com este exórdio: – Mestre, quiséramos que atendesses a um pedido que te vamos fazer. Perguntou-lhe Jesus: – Qual é o vosso pedido? Respondeu a consulente:
– Ordena que meus dois filhos, no reino da tua glória, se sentem um à direita, e outro à esquerda. Não era pouco o que Salomé pedia para seus filhos; nada menos que os postos de primeiro e segundo ministros do reino que ia fundar. Coração de mãe não conhece limites quando se trata do bem de seus filhos – e aqueles dois moços eram inegavelmente, a seus olhos, os dois homens mais competentes e como que talhados para ocupar as pastas de “Ministro do Exterior” e de “Ministro da Fazenda” no glorioso reino em perspectiva... Com admirável finura de tato e diplomacia feminina, diz a requerente: “Ordene, Mestre”... Pois quem manda és tu; tu somente, convencido da competência e capacidade destes dois candidatos, lavrarás o documento da sua nomeação; eu, tua serva Salomé, não faço coisa alguma. Ordena, pois, faze valer a tua vontade, divino ditador!... Não faz referência à pessoa de Simão Pedro, embora tivesse em mente esse perigoso rival de seus filhos; evita delicadamente aludir a um homem que ocupava lugar saliente nos planos do Nazareno. Que sentimentos terá essa pretensão provocado na alma de Jesus?... Que conceito formavam eles da natureza do reino de Deus?... Apresentaremse candidatos aos primeiros postos, agora que Jesus ia a Jerusalém e, humanamente falando, estava em vésperas do maior fracasso... Bem sabia Jesus que a petição não era somente da mãe, mas antes de tudo de Tiago e de João; por isso, dirigindo-se a esses lhes disse: – Não sabeis o que pedis. E, depois de ligeira pausa, acrescentou, acentuando as palavras: – Podeis beber o cálice que eu vou beber? E ser mergulhados como eu vou ser? – Podemos! – responderam os dois, pronta e resolutamente. Era, por assim dizer, a assinatura do seu requerimento. Os “filhos do trovão” não sabiam o que era medo... A essa resposta, valente e temerária, terá Jesus sorrido compassivamente, assim como um homem experimentado sorri da ingenuidade de um par de crianças inexperientes, que se declaram capazes de façanhas que ultrapassam as suas forças e excedem o alcance de sua compreensão. Estava Jesus para beber o cálice mais amargoso que já sorveram lábios humanos... Todas as angústias do Getsêmani, todos os horrores do pretório
iam penetrar as fibras do seu ser, assim como uma bebida venenosa ateia incêndios nas entranhas de quem a ingere... E os filhos de Zebedeu, sem refletir um instante, se declararam capazes para beber esse cálice... Os dois pretendentes aos primeiros cargos no “reino da glória” se sentem bastante corajosos para afundar nesse mar de dores e de opróbrios. “Não sabeis o que pedis”, dissera Jesus; e bem pudera acrescentar: “Não sabeis o que prometeis”. Depois lhes faz esta revelação: – Sim, bebereis o cálice que eu vou beber; fareis o mergulho que eu vou fazer; mas isto de vos conceder os lugares à minha direita e à minha esquerda não é comigo: compete àqueles a quem meu Pai os destinou. Quando os dez ouviram isto, indignaram-se contra Tiago e João. Logo se espalhou a notícia da pretensão dos dois irmãos, causando indignação no meio do colégio apostólico (dos discípulos); porquanto cada um se julgava com o direito de ocupar o primeiro lugar no reino messiânico, como já tinham dado a entender repetidas vezes. Não havia, propriamente, motivo para tamanha indignação; pois o Mestre nada prometera aos dois; mas – o coração tem razões de que a razão nada sabe... Pelo que Jesus os chamou a si e lhes disse: “Sabeis que os príncipes dos gentios dominam os seus súditos, e os grandes exercem poder sobre eles. Entre vós, porém, não há de ser assim, mas quem dentre vós quiser ser o primeiro seja o servidor de todos. Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas, sim, para servir e pôr a sua vida a serviço de muitos”.
O cego à entrada de Jericó Depois do incidente com os filhos de Zebedeu, foi a caravana seguindo viagem. Quando Jesus se aproximava de Jericó, achava-se um cego sentado à beira da estrada, pedindo esmola. Não era por acaso que o pobre homem lá estava; porque aquela estrada, uma das mais frequentadas, fervilhava de peregrinos com destino a Jerusalém, onde iam assistir às solenidades pascais. O mendigo de olhos apagados contava ganhar, nesses dias movimentados, uns bons punhados de siclos com que prolongar a sua existência triste. Ouvindo o tropel de gente que passava, perguntou o que era aquilo. Disseramlhe que vinha passando Jesus de Nazaré. Esse nome não lhe era desconhecido; mais de uma vez tinha ouvido falar nesse taumaturgo, que restituíra a luz dos olhos a diversos companheiros seus de infortúnio. E logo se pôs a clamar: – Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim! “Filho de Davi” era o título oficial do Messias prometido na lei antiga; pois, como homem, era Jesus descendente da estirpe davídica. Parece que este cego via mais claro que muitos dos judeus dotados de dois olhos. “Os que vinham à frente repreenderam-no, para que se calasse. Ele, porém, clamava cada vez mais: – Filho de Davi, tem piedade de mim!” Pensavam talvez os transeuntes que o cego quisesse pedir uma esmola a Jesus; e, de fato, esmola queria ele, mas uma esmola que valia mais que todos os tesouros do mundo. Então parou Jesus e mandou que o trouxessem. Tendo ele chegado, perguntou-lhe Jesus: – Que queres que eu te faça? – Senhor, que eu torne a ver! – respondeu ele. – Torna a ver! – disse Jesus. – A tua fé te curou.
E no mesmo instante ele via, e foi seguindo, glorificando a Deus. TambĂŠm todo o povo que isto presenciara louvava a Deus.
Zaqueu Seguido do cego recém-curado, de uma multidão de povo e de peregrinos, entrou Jesus em Jericó, delicioso oásis no meio daquelas plagas desertas, situado nos confins da Judéia e Peréia. Na qualidade do mais importante centro comercial de Israel, tinha Jericó uma alfândega movimentada que, nesse tempo, se achava arrendada pelos senhores de Roma a um judeu abastado por nome Zaqueu, homem de pequena estatura e de grande atividade. Era chefe de publicanos, publicanomor, cabendo-lhe portanto dobradamente o desprezo e o ódio com que seus patrícios ortodoxos mimoseavam essa classe de gente: “Publicano e pecador” – estava dito tudo... Mal soube Zaqueu que Jesus vinha entrando na cidade, abriu mão da sua papelada e correu à rua para vê-lo. Mas, como era de pequena estatura, não logrou o seu intento; só viu em derredor de si corpos humanos, que lhe tolhiam a perspectiva. Zaqueu, porém, era homem habituado a achar solução a todas as dificuldades. Resolutamente, o diretor da alfândega de Jericó correu para diante, onde existia uma figueira – e, lesto como um garoto, subiu pelo tronco da árvore e encarapitou-se num dos galhos aguardando o momento em que Jesus passasse ao pé do seu observatório improvisado. Sucedeu então o que Zaqueu não esperava. Quando Jesus chegou ao pé da árvore, parou, olhou para cima e, vendo o coletor, lhe disse: – Desce depressa, Zaqueu, porque hoje tenho de hospedar-me em tua casa. Como? Jesus o conhecia? Até lhe sabia o nome?... Desceu de um salto e convidou Jesus ao seu palacete. Indignaram-se os judeus com esse procedimento do Nazareno e murmuraram, despeitados: – Hospedou-se em casa de um pecador... Também Zaqueu tinha a intuição de que aquela casa não era o lugar mais apropriado para hospedar um profeta como Jesus. E fez o que no momento lhe foi possível para tornar a sua vivenda um pouco menos indigna; à entrada pôsse diante do Mestre e disse-lhe:
– Senhor, darei aos pobres metade da minha fortuna e, se defraudei alguém, restituirei o quádruplo. Palavras que, certamente, encheram de satisfação a não poucos dos presentes; pois o próprio chefe da aduana local reconhecia as suas injustiças, quando, por via de regra, protestava contra semelhante insinuação da parte de terceiros. Restituir quatro vezes mais era a pena que a lei romana e, em certos casos, também o código de Israel impunham aos ladrões arguidos de injustiças. Zaqueu é juiz e acusador de si próprio. Disse então Jesus: – Hoje entrou a salvação nesta casa, porque também ele é filho de Abraão. Pois o Filho do Homem veio para procurar e salvar o que se perdera.
As dez minas Achava-se Jesus em Jericó, hospedado em casa de Zaqueu. Mostrara-se o chefe de publicanos sinceramente arrependido das suas fraudes e resolvera começar vida nova. Ao que Jesus lhe dissera: “Hoje entrou a salvação nesta casa, porque também ele é filho de Abraão; pois o Filho do Homem veio para salvar o que se perdera”. E continuou a falar sobre o advento do reino de Deus. Alguns dos ouvintes, parece, sentiram-se possuídos de sentimentos aventureiros e belicosos, com a perspectiva de lutarem ao lado do Nazareno pela conquista do reino de Deus, reino que eles entendiam lá a seu modo. Resolveu Jesus deitar água na fervura, fazendo ver que cada um dos seus discípulos teria de passar por um período de prova e crise, antes de entrar no reino da glória. E, revestindo de trajos alegóricos o seu pensamento, propôs a seguinte parábola: – Um homem de nobre linhagem partiu para um país longínquo a fim de obter a dignidade real, e depois regressar. Mandou por isso vir à sua presença os seus dez servos e entregou-lhes dez minas1, dizendo-lhes: – Negociai com isto até que eu volte. 1. Mina se refere a uma moeda daquela época.
Os seus concidadãos, porém, odiavam-no e mandaram-lhe ao encalço uma embaixada com esta declaração: – Não queremos que este seja nosso rei! Ele, todavia, foi obter a dignidade real e regressou. E mandou chamar os servos aos quais entregara o dinheiro para saber que negócio fizera cada um. Todas as parábolas de Jesus são projetadas sobre um fundo histórico, geográfico ou etnológico. Era, portanto, vivo o interesse e grande a suspensão que reinava naquele auditório de Jericó. Todos ansiavam por saber qual a sorte do candidato e dos servos, e que destino estes tinham dado ao dinheiro – Jericó era a cidade do dinheiro, do comércio e dos bancos. Prosseguiu Jesus:
– Veio o primeiro servo e disse: – Senhor, a tua mina rendeu mais dez minas. – Muito bem, servo bom – respondeu-lhe ele –, porque foste fiel no pouco, serás senhor de dez cidades. Veio o segundo e disse: – Senhor, a tua mina rendeu cinco minas. Vê-se que esses servos têm modos e educação; não dizem: Eu ganhei dez, cinco minas, mas sim: A tua mina ganhou... Veio o terceiro e disse: – Eis aqui, Senhor, a tua mina! Guardei-a envolta no lenço; porque tinha medo de ti, que és homem severo; tiras o que não colocaste e colhes o que não semeaste. O Senhor lhe disse: – Com as tuas próprias palavras eu te condeno, servo mau! Sabias que sou homem severo, que tiro o que não coloquei, e colho o que não semeei; por que, então, não colocaste o meu dinheiro para render para que, ao voltar, o recebesse eu com juros? Em seguida, ordenou aos circunstantes: – Tirai-lhe a mina e entregai-a a quem tem as dez minas. Admirados, retrucaram os outros: – Mas, Senhor, ele já tem dez minas. O Senhor, porém, insistiu na sua ordem, dizendo: – Declaro-vos que a quem tem lhe será dado, e terá em abundância; mas a quem não tem ser-lhe-á tirado até aquilo que tem. Foi esta a primeira medida governamental do novo rei. E logo seguiu outra: “Quanto aos meus inimigos, que não me quiseram como rei, trazei-mos cá e matai-os ante os meus olhos!” O auditório estava aterrado. Aquele homem que se ausentou para um país longínquo era Jesus mesmo. Estava prestes a partir. Tinha dado as suas ordens. Mais tarde, voltaria. E ai daqueles que tivessem ficado ociosos e se lhe apresentassem de mãos vazias! Castigá-los-ia com penas terríveis. Ai também daqueles que se revoltassem contra o seu domínio e sua realeza! Alguns dos ouvintes entraram em si e fizeram silencioso exame de consciência... Outros se indignaram, protestaram contra a parábola e procuraram vingar-se...
O banquete em Betânia Sexta-feira de tarde chegou Jesus a Betânia, perto de Jerusalém. Restava-lhe ainda uma semana de vida mortal; ele o sabia: na próxima sexta-feira estaria pendente do patíbulo, nas alturas do Gólgota. Betânia fervilhava de peregrinos, que tinham vindo purificar-se por meio de diversas abluções e cerimônias, para poderem celebrar dignamente a Páscoa. Jesus foi convidado a jantar por um tal Simão, apelidado o Leproso. Talvez fosse um daqueles que Jesus curara ultimamente, da lepra, e ele, em sinal de gratidão, deu um banquete a seu benfeitor, a exemplo do que fizera Levi, quando fora chamado ao apostolado. Assim é que os três amigos de Jesus, Lázaro, Marta e Maria, tiveram de ceder essa honra ao vizinho Simão. Mas não lhes sofria o coração conservarem-se inativos. Marta ofereceu-se para servir à mesa em casa de Simão; Maria deliberava consigo mesma como dar ao amigo e mestre uma prova de sua grande dedicação; Lázaro fora convidado para tomar lugar à mesa, pois não convinha faltasse personagem tão especial, havia pouco ressuscitado da morte, e em torno do qual giravam todas as conversas. É certo que em Betânia se tinha notícia das palavras lúgubres que Jesus proferira em caminho, a respeito da sua morte iminente. O banquete era, pois, uma festa de despedida. Enquanto Jesus estava à mesa, fez Maria a sua despedida; foi buscar a casa um vaso de alabastro cheio de perfume de nardo genuíno; pesava quase uma libra, ou seja, 350 gramas. Entrou na sala, colocou-se ao lado do reclinatório de Jesus e começou a destilar-lhe cautelosamente sobre a cabeleira a preciosa essência. Na Palestina, e no Oriente em geral, o uso de unguentos e essências aromáticas não obedece a uma simples questão de luxo, nem a um exagerado culto de estética ou vaidade. A atmosfera palestinense vem geralmente impregnada de uma poeira sutil dissolvida das rochas caIcárias que formam grande parte das montanhas; a epiderme do viandante torna-se ressecada, recuperando a sua maciez e flexibilidade natural pela aplicação de um óleo ou unguento, o que representa um verdadeiro benefício para o peregrino exausto.
Ainda hoje, não é raro ver-se uma dona de casa repetir o gesto de Maria de Betânia, com algum hóspede de grande estima e consideração. O que havia de excepcional no ato de Maria era a circunstância de ela derramar sobre a cabeça do Mestre a preciosa essência, pura e sem mescla, em vez de diluir umas gotas em outra substância menos preciosa, como se costuma fazer. Era tão puro esse perfume como a sensibilidade do seu coração. E, se aquele frasco lhe custasse a fortuna toda, por muito bem empregada daria a discípula essa despesa. Quando Judas Iscariotes viu o que Maria estava fazendo, observou com aspereza: – Para que esse desperdício? Por que não se vendeu esse bálsamo por trezentos denários para dar aos pobres? Entretanto, o fato é que Jesus não considerou desperdício aqueles trezentos denários empregados em fins religiosos e místicos; nem consta até hoje que uma alma generosa com Deus e as coisas divinas possa ser mesquinha com as necessidades humanas. Quanto à intenção real desse ardoroso advogado da pobreza e paladino da caridade social, diz-nos o evangelista João: “Isto dizia Judas, não porque lhe interessassem os pobres, mas porque era ladrão, e, como levava a bolsa, surrupiava o que nela entrava”. Por isso, Iscariotes, já interiormente frio e sem fé, sentia como ofensa pessoal todo ato de amor que alguém prestasse ao Nazareno. Como da outra vez, assim também agora defende Jesus a sua generosa discípula, dizendo aos murmuradores, pois alguns outros discípulos faziam coro a Judas: – Deixai-a em paz! Por que molestais essa mulher? Praticou uma boa obra para comigo. Pobres sempre os tendes convosco, e podeis fazer-lhes bem quando quiserdes; a mim, porém, nem sempre me tendes. Ela, derramando sobre o meu corpo este bálsamo, preparou-me para a sepultura. Em verdade vos digo que, onde quer que for pregado este Evangelho, em todo o mundo, será contado também em sua memória o que ela fez.
Jesus proclamado Messias Betânia, a silenciosa Betânia, estava transformada num ruidoso centro de romaria. Milhares de peregrinos que vinham chegando a Jerusalém, a fim de assistir às solenidades pascais, dirigiam-se para a aldeia embalada nas fraldas do Monte das Oliveiras, para verem o célebre taumaturgo de Nazaré, como também para verem Lázaro, esse estranho fenômeno que voltara das regiões da morte. Mas o redivivo de Betânia nada revelou das coisas d’além... Durante o sábado não era permitido ao israelita empreender uma caminhada que durasse mais de 10 a 15 minutos, e Betânia ficava meia hora distante de Jerusalém. Mal, porém, expirou o dia do descanso litúrgico e amanheceu o primeiro dia da semana, viam-se muitos homens a caminho de Betânia. No primeiro dia da semana (domingo), despediu-se Jesus dos seus amigos de Betânia e pôs-se a caminho de Jerusalém. Chegado à pequena aldeia de Betfagé, parou por uns momentos e mandou dois dos seus discípulos diante de si com esta ordem: – Ide à aldeia que tendes à frente; à entrada da mesma encontrareis uma jumenta atada, e com ela um jumentinho também atado, no qual ainda ninguém montou. Soltai-os e trazei-mos cá. Se alguém vos perguntar por que os soltais, respondei-lhes que o Senhor necessita deles, e logo os devolverá. Os discípulos partiram e encontraram tudo exatamente como o Mestre havia dito. Trouxeram a jumenta com o seu jumentinho, e sobre este último lançaram os seus mantos e fizeram Jesus montar. Era a primeira vez em sua vida, parece, que Jesus se servia de uma cavalgadura; por via de regra, andava a pé. Mas este dia era de grande solenidade. Os discípulos impressionaram-se com esses preparativos e, sem dúvida, a mais de um deles se antolhava uma visão de glórias, aurora alviçareira do reino de Deus que tão ardentemente esperavam. Enquanto Jesus seguia viagem, montado no jumentinho, um delírio religioso nacional se apoderou das multidões; pareciam ter voltado os tempos mais gloriosos de Israel.
Todas as turbas e os discípulos começaram a louvar a Deus em altas vozes, por todos os prodígios que tinham visto, clamando: “Bendito seja o rei que vem em nome do Senhor! Paz na terra e glória nas alturas! Hosana ao filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor, o rei de Israel! Hosana nas alturas!” Uns estendiam os seus mantos pelo caminho, outros cortavam ramos de árvores e com eles juncavam a estrada. Quanto mais se aproximava da capital, mais se avolumava o préstito, engrossado pelos que vinham da cidade; e cada vez mais crescia o delírio das massas populares. A manifestação improvisada ia tomando proporções de uma verdadeira apoteose, uma marcha triunfal como não se vira igual desde os tempos de Davi e Salomão. À beira da estrada estavam os fariseus e seus adeptos, dizendo: – Estais vendo que nada adiantamos? Todo o mundo vai atrás dele!... E tinham trabalhado tanto, tanto... Tinham movido céus terra, tinham espalhado calúnias e mais calúnias para destruir o prestígio do Nazareno... E agora?... Estupefatos e indignados, contemplavam a grandiosa manifestação popular em homenagem àquele cuja morte estava decretada, cujo paradeiro devia ser denunciado por quem o soubesse, e cujos discípulos eram expulsos da sinagoga... Em outras ocasiões se subtrairá Jesus a semelhantes apoteoses; após a multiplicação dos pães, quando o povo queria levá-lo a Jerusalém e proclamálo rei de Israel, tinha dado ordem aos discípulos para embarcarem imediatamente, enquanto ele mesmo se encarregara de dispersar o povo, retirando-se depois às silenciosas alturas de uma montanha. Os fariseus sabiam disto e, nesse dia solene, pediram ao Mestre que proibisse tão ruidosa manifestação. – Mestre, chama à ordem os teus discípulos!... Com a mesma energia responde Jesus: – Asseguro-vos que, se estes calarem, clamarão as pedras!
Lágrimas no meio do triunfo Entrementes, havia a deslumbrante procissão chegado a um ponto do caminho onde, do alto de íngreme ladeira, abrangia o espectador um panorama esplêndido, tendo no primeiro plano a quebrada profunda do vale de Cedron e, mais além, o mar de casas coroado pelo templo. Vinham os peregrinos do leste e, como era precisamente de manhã, o sol dava em cheio sobre o frontispício do santuário, rodeado da extensa área chamada “átrio dos gentios”, caprichosamente ladrilhada de mosaicos versicolores; à entrada, ficava o “átrio do povo”, ou das mulheres; mais além, o “átrio dos sacerdotes”, com o “altar dos holocaustos”, depois, uns 50 metros acima do resto, o “santuário” e o “santíssimo”. Redobraram de intensidade os vivas e as ovações, quando surgiu aos olhos dos peregrinos a majestade do santuário nacional de Israel. Milhares de olhos brilhavam de júbilo – só dois olhos se encheram de lágrimas, lágrimas de dor incompreendida, porque de incompreendido amor... “E, quando Jesus se aproximou da cidade, rompeu em pranto”, diz Lucas. E disse Jesus: – Ah! se também tu conhecesses, ao menos neste dia, o que te poderia trazer a paz!... Mas está oculto a teus olhos... Porque virão dias sobre ti em que os teus inimigos te cercarão de trincheiras, te apertarão e angustiarão de todas as partes; derribarão a ti e a teus filhos que em ti estão, e não deixarão pedra sobre pedra – porque não reconheceste o tempo da tua visitação!... É esta a segunda vez que Jesus alude profeticamente à catástrofe de Jerusalém e ao extermínio de Israel, por não ter reconhecido o tempo da misericórdia divina, sobretudo aqueles três anos de graças extraordinárias. E Jesus rompeu em pranto... Um dia, chorou sobre o cadáver de Lázaro lágrimas de amizade. Agora, derrama lágrimas de solidariedade, lágrimas de pastor e de redentor quando vê desprezadas todas as suas solicitudes ao seu povo.
Entrada em Jerusalém Por um dos vastos portais da muralha do templo derramou-se aquela torrente humana para o interior da extensa área do átrio dos gentios, avançando até o átrio do povo e dos sacerdotes. Do interior da cidade e do santuário acudia gente e mais gente, perguntando cheios de curiosidade: – Quem é este? Quem é esse que está sendo assim ovacionado e aclamado como rei de Israel, como bendito do Senhor? Quem é o alvo dessa deslumbrante manifestação? Jesus era de todos conhecido, mas, como até aí nunca permitira que lhe fizessem semelhante demonstração de apreço, já nem parecia o mesmo Nazareno, manso e humilde de coração. Prontamente responderam os que vinham no cortejo: – Este é Jesus, o profeta! O Nazareno da Galiléia! Quem isto dizia eram, naturalmente, os galileus, cheios de orgulho provinciano por ter surgido no meio deles um vulto tão eminente. O termo natural dessa marcha triunfante era o templo. Ao transporem o limiar do santuário acalmou, da parte dos adultos, aquela tempestade de vivas e hosanas. As crianças, porém, não viam motivo para não continuarem a repetir no interior do templo as exclamações, e prosseguiram a cantar no mais alto diapasão das suas vozinhas: – Hosana ao Filho de Davi! Hosana!... Desde os bancos da escola, sabia cada hebreuzinho o Salmo 117: “Halleluia, Eloim!...”, salmo que o mestre ensaiava para a festa dos Tabernáculos e que os pequenos tinham cantado no templo e nas ruas de Jerusalém. A meninada sentia-se em pleno ambiente dessa solenidade; pois não andava toda a gente com ramos verdes nas mãos, como nos dias poéticos dos Tabernáculos? Por isso, continuaram os pequenos, mesmo no interior do templo, a agitar os seus ramalhetes, e, improvisando dois coros como na escola, continuaram a bradar: – Aleluia! Louvai ao Senhor, porque ele é bom. – Porque eterna é sua misericórdia!
– Diga Israel agora que o Senhor é bom, e eterna é a sua misericórdia” Diga agora a casa de Aarão que eterna é a sua misericórdia! ...............................................................................................................................
Os fariseus, indignados, mandaram calar aquelas vozes infantis. Mas debalde! Por fim, apelaram diretamente para Jesus, e em tom de severa intimação lhe disseram: – Não ouves o que estes estão dizendo? Respondeu-lhes tranquilamente Jesus: – Sim, estou ouvindo. E logo faz ver que até este incidente era profetizado nos livros sagrados que eles, os solícitos zeladores da lei, manuseavam dia e noite; pois, assim dizia o Salmo 8: “Dos lábios dos meninos e das crianças de peito fizeste brotar louvor sublime, a despeito dos teus adversários”. Sem mais uma palavra, deixou Jesus os seus contraditores. Ao anoitecer, retirou-se da cidade e dirigiu-se com os discípulos a Betânia, onde, nessa última semana, costumava passar a noite.
Maldição da figueira estéril Segunda-feira de manhã deixou Jesus Betânia e retomou o caminho de Jerusalém. Estava com fome. Certamente não se hospedara em casa de Lázaro, Marta e Maria; mas passara a noite em algum albergue. Nisto avistou ao longe, à beira da estrada, uma figueira frondosa. Encaminhouse para ela e pôs-se a esquadrinhar a exuberante folhagem, a ver se lhe encontrava algum fruto; mas não achou nenhum figo, nem maduro nem verde; porque, observa Marcos, não era tempo de figos. Era em abril, princípios da primavera. Então disse Jesus: – Nunca jamais alguém coma fruto de ti! Nunca nasça em ti coisa alguma! Os discípulos arregalaram os olhos e, cheios de admiração, viram que a árvore começava a murchar... É esta a segunda ou a terceira vez que Jesus compara Israel a uma figueira, e figueira infrutífera. Quase todas as doutrinas e parábolas que ele propõe, durante esta última semana da sua vida mortal, têm por fim mostrar a voluntária esterilidade espiritual do judaísmo. Aquela árvore, certamente, não tinha culpa de não haver produzido fruto, tanto que nem era tempo de figos; mas todo este episódio simboliza a história e o estado do povo de Israel; em uma realidade concreta, apresenta o Mestre o retrato daquela nação tão cheia de formalidades exteriores, e tão destituída dos frutos de verdadeira religiosidade. E, abandonando a figueira maldita à mercê da sua sorte, prosseguiram caminho, em demanda de Jerusalém.
Segunda purificação do templo Logo após o ato simbólico da maldição da figueira estéril, ofereceu-se aos olhos de Jesus a dolorosa confirmação desta parábola. Quando Jesus subiu às alturas de Sião e pôs pé no átrio dos gentios, que circundava o templo, viu-se subitamente em um mercado de gados e de frutas. Novilhos e ovelhas, pombas e cereais aí estavam à venda; e à entrada tinham os cambistas armado as suas mesas cobertas de moedas de toda espécie. Tudo isto era, até certo ponto, explicável; pois os israelitas necessitavam comprar animais e gêneros para as suas oferendas e os seus holocaustos, e os peregrinos de outras províncias tinham de trocar o seu dinheiro, para poderem pagar ao templo o tributo anual em “moeda sagrada”. Mas não havia, porventura, lugar suficiente do lado de fora do muro e nas praças da cidade? Por que cercar o santuário de Deus com os padrões de interesse e ganância? Confrangeu-se o coração de Jesus em face de semelhante profanação. Ignoramos se também desta vez lançou mão de um azorrague, como na primeira purificação; sabemos apenas que expulsou os vendilhões e lhes disse em tom severo: – Está escrito que a casa de meu Pai é casa de oração – e vós fizestes dela um covil de ladrões. Os escribas e sacerdotes rangiam os dentes, indignados e impacientes por encontrarem uma oportunidade para eliminar o Nazareno do número dos vivos. Mas temiam o povo, que admirava Jesus como um grande mensageiro de Deus. Ao anoitecer, tornou o Mestre a sair da cidade com os seus discípulos.
Eficácia da fé Quando, terça-feira, Jesus regressou à cidade, logo se lembraram os discípulos da figueira amaldiçoada. Correu à frente de todos Simão Pedro e, vendo-a seca, exclamou cheio de pasmo: – Olha, Mestre, como secou a figueira que amaldiçoaste! Também os outros discípulos se acercaram dela e, estupefatos, se entreolhavam, dizendo: – Como secou tão depressa!... Ao que Jesus repetiu o que já em outra ocasião lhes dissera sobre a eficácia da fé: – Tende fé em Deus! Em verdade vos digo que, se tiverdes fé e não vacilardes, não somente fareis o que sucedeu a esta figueira, mas, se disserdes a este monte: – Sai daqui, lança-te ao mar! Ele o fará. Pelo que vos digo: tudo o que pedirdes ao Pai, na oração e com fé, recebê-lo-eis. Mas, quando estiverdes em oração, perdoais, se tiverdes qualquer coisa contra alguém, para que também vosso Pai celeste vos perdoe os pecados. Porque, se perdoardes aos homens as suas faltas, também vosso Pai celeste vos perdoará os vossos pecados.
Início das disputas no templo Neste dia, já não apresentava o átrio dos gentios o vergonhoso espetáculo do dia anterior; os vendilhões e cambistas tinham se estabelecido em outra parte. Anás devia estar furioso, pois parece que era ele o mais culpado desses abusos e tinha no mercado os seus agentes. Na terça-feira, porém, estava tudo em ordem. Viam-se grupos de peregrinos espairecerem pela extensa área ladrilhada, ou nos pórticos; outros ajuntavamse em torno de alguns dos doutores da lei, que se achavam sentados sobre os seus tapetes quadrados, explicando textos sacros. Também Jesus andava pelo átrio dos gentios, e logo se viu cercado de numerosos ouvintes. No meio de uma dessas palestras, aproximou-se dele uma comissão composta de sacerdotes, escribas e anciãos e, com ares solenes e oficiais, perguntaram a Jesus: – Dize-nos, com que autoridade fazes estas coisas? Ou quem te deu o direito para procederes assim? Aludiam, evidentemente, à ocorrência do dia anterior, quando Jesus expulsara os profanadores do lugar santo. O Mestre não respondeu diretamente, mas fez-lhes uma contrapergunta, dizendo: – Também eu quero perguntar-vos uma coisa e, se me responderdes, também vos direi com que direito faço isto. Dizei-me: o batismo de João de onde era? Do céu, ou dos homens. Viram-se os interpelados em grandes apuros com essa pergunta inesperada. De acusadores tinham passado para acusados. E puseram-se a pensar entre si: “Se dissermos que era do céu, nos responderá: Por que, então, não lhe destes crédito? Se dissermos que era do homens, temos contra nós todo o povo e seremos apedrejados po ele; porque está convencido de que João era um profeta” Enfim, depois de muito pensar e refletir acharam mais prudente escolher uma evasiva e responderam a Jesus:
– Não sabemos. Enveredou o Mestre pelo mesmo caminho, e disse-lhes: – Tampouco vos direi eu com que direito faço isto. A embaixada quedou-se perplexa e confusa, por entre as risadas de todos os circunstantes.
Parábola dos dois filhos Enquanto os adversários de Jesus ainda estavam em torno dele, propôs-lhes o Mestre uma parábola destinada a mostrar que nada valem palavras e promessas, mas, sim, atos e realidades. Disse-lhes, pois: – Qual a vossa opinião? Um homem tinha dois filhos. Foi ter com o primeiro e disse-lhe: – Meu filho, vai hoje trabalhar na minha vinha. – Sim, Senhor! – respondeu ele. Mas não foi. Então foi ter com o outro e lhe falou do mesmo modo. – Não quero! – respondeu este; mas depois se arrependeu e foi. Qual dos dois cumpriu a vontade do pai? – O último – responderam eles. Disse-lhes Jesus: – Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes entrarão no reino dos céus antes que vós. João vos apontou o caminho verdadeiro; vós, porém, não lhes destes fé, ao passo que publicanos e meretrizes tiveram fé nas suas palavras. Vós o vistes, mas nem assim vos convertestes para lhe dardes fé. Aí tinham eles a resposta, dos lábios do Mestre, que ficaram devendo à pergunta sobre a autoridade do Precursor. Estes, os chefes de Israel, eram piores que publicanos e meretrizes. Com esta veemente censura despediu Jesus a comissão que lhe viera pedir satisfação dos seus atos.
Os vinhateiros perversos Nessa mesma ocasião, colocou Jesus diante dos olhos dos seus inimigos um espelho que lhes mostrava a sua perversidade. – Certo homem plantou uma vinha, cercou-a de uma sebe, cavou nela um lagar e levantou uma torre. Em seguida, arrendou-a a uns lavradores, e saiu a viajar. A seu tempo, enviou um servo aos lavradores, a fim de receber deles a porção dos frutos da vinha. Eles, porém, o prenderam, feriram e despediram de mãos vazias. Pela segunda vez lhes enviou outro servo. E maltrataram também a este, cobrindo-o de afrontas. Mandou-lhes ainda um terceiro. Mas a este até o mataram e lançaram fora. O mesmo fizeram ainda a muitos outros, que em parte feriram, em parte mataram. Ora, tinha ele um filho muito querido, o qual lhes mandou por último, dizendo consigo mesmo: – Não deixarão de respeitar meu filho, quando o virem. Os lavradores, porém, quando o avistaram, disseram: – Este é o herdeiro, vamos dar cabo dele, e será nossa a herança. Prenderam-no, pois, mataram-no e lançaram-no fora da vinha. A esta altura, abriu Jesus uma pausa e cravou os olhos em certa classe dos seus ouvintes que se achavam no templo. Repetidas vezes compara Deus, no Antigo Testamento, o povo de Israel com uma vinha plantada por ele mesmo em terreno fértil. A comparação era-lhes familiar. Os capitalistas de Jerusalém plantavam grandes vinhedos, arrendavam-nos aos viticultores, e ausentavam-se, passando longos anos em Damasco, Cairo ou Roma. Depois de três ou quatro anos, a vinha produzia. Regressava então o dono da vinha e mandava um criado para receber o quinhão das uvas que, segundo o contrato, lhe tocava. Mas, com tão longa ausência, os viticultores se esqueciam ou fingiam ter esquecido que a vinha não era propriedade deles; tratavam os servos do proprietário como intrusos e ladrões. Maltratavam a uns, matavam a outros. É fora de dúvida que, ao menos aqui, os fariseus atinaram com o sentido da parábola. Quantos profetas e mensageiros de Deus não tinham seus pais assassinado!... Por último, resolve o dono da vinha mandar o seu próprio filho.
Se os vinhateiros consideram intrusos aos servos, não é possível que tenham nessa conta o filho do proprietário; bem o conhecem e o enviado vinha com as credenciais do pai. Mas aqueles são de uma perversidade satânica. A resolução que tomam é digna deles e do seu passado: Este é o herdeiro; vamos dar cabo dele, e a vinha será nossa. Dito e feito. Matam o filho único do dono da vinha. Este último ato da sangrenta tragédia ia cumprir-se em breve – Jesus bem o sabia – e os vinhateiros perversos já estavam diante dele... Cravando os olhos nos fariseus, perguntou-lhes: – Que fará o dono da vinha a esses homens? Silêncio profundo... Ninguém gosta de lavrar a sentença da sua própria condenação... Respondeu-lhes Jesus: – Virá e dará cabo daqueles lavradores, e arrendará a sua vinha a outros. Os fariseus compreenderam tudo: o reino de Deus seria tirado a eles, indignos, e dado a outros, aos gentios... E exclamaram alvoroçados: – Tal não permita Deus! Lançando mão de outro símile, prosseguiu Jesus: – Que quer, pois, dizer o texto da Escritura: “A pedra que os arquitetos rejeitaram, essa se tornou pedra angular. Quem cair sobre essa pedra será espedaçado; aquele sobre quem ela cair ficará esmagado”? Alguns dos ouvintes olharam para os blocos de pedra que jaziam no átrio do templo, ao longo dos muros; pois até aquele ano se trabalhara na construção do edifício. Conheciam todos o Salmo 17, onde o Messias é chamado “pedra angular” do templo de Deus. E, ainda na mesma hora, procuraram os escribas e sacerdotes deitar as mãos a Jesus; porque tinham reparado que a parábola se referia a eles. Mas temiam o povo.
A veste nupcial Repetidas vezes comparava Jesus o reino de Deus a uma festa nupcial. A encarnação do Verbo são as núpcias espirituais do divino esposo com a natureza humana. Na Peréia fizera ver como os israelitas deixaram de comparecer ao lauto banquete do Evangelho, escusando-se e preferindo-lhe as suas ocupações mundanas e gozos sensuais – casa de campo, bois, mulheres, etc. Pela segunda vez recorre o divino Mestre ao mesmo símile, acrescentando-lhe, porém, elementos essencialmente novos. Achava-se, desta vez, no templo de Jerusalém, em discussão com os chefes do povo, que se obstinavam em não reconhecer o Messias e aceitar o seu convite. – O reino de Deus – disse ele – é semelhante a um rei que celebrava as núpcias de seu filho. Mandou os seus servos para chamar às núpcias os convidados. Eles, porém, não quiseram vir. Então mandou os servos com esta ordem: – Dizei aos convidados: – Eis que tenho pronto o meu banquete; mandei carnear os meus bois e animais cevados; está tudo pronto; vinde às núpcias. Eles, todavia, não ligaram importância, e foram-se embora, cada um para o seu negócio; os restantes prenderam os servos, maltrataram-no e os mataram. Indignou-se então o rei, mandou os seus exércitos, deu cabo daqueles assassinos e pôs fogo à sua cidade. Em seguida, disse aos servos: – Está pronto o banquete nupcial, mas os convidados não foram dignos dele. Ide, pois, pelas encruzilhadas e convidai às núpcias a quantos encontrardes. Saíram os servos estrada afora e reuniram todos os que encontraram, bons e maus. E encheu-se de convivas a sala do banquete. Até aqui o primeiro ato do drama, ou da tragédia. É uma profecia lúgubre sobre a história de Israel, nos próximos decênios. No ano 70 os generais romanos Tito e Vespasiano arrasaram a cidade dos rebeldes, Jerusalém, incendiaram o templo e trucidaram milhares de judeus. Em lugar dos israelitas renitentes, convidaria Deus os gentios. E eles aceitariam em grande número o convite e encheriam a sala nupcial. Mas nem todos os que se acham nesta sala têm a veste nupcial. “Nisto entrou o rei para ver os que estavam à mesa. E deparou-se-lhe um homem que não trajava veste nupcial. Amigo – disse-lhe –, como entraste aqui
não tendo veste nupcial? Aquele, porém, ficou calado. Ordenou então o rei aos servos: – Atai-o de mãos e pés e lançai-o às trevas de fora; ali haverá choro e ranger de dentes. Porque muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos.”
A moeda do imposto Positivamente, aquela última terça-feira da vida pública de Jesus ia se tornando para os fariseus um dia de derrotas, cada qual mais vergonhosa. Já não se atreviam a discutir com o Nazareno em campo raso, na certeza de que, no fim, lhes caberia farta messe de risos e escárnios. Resolveram, pois, mudar de tática e tratar o rabi de Nazaré com requintes de amabilidade. Nesse mesmo dia formaram os fariseus uma comissão especial composta de discípulos deles e de alguns herodianos, a fim de consultar a Jesus sobre um problema de candente atualidade e de caráter sumamente crítico: a questão do imposto. Eram bem heterogêneos os elementos que compunham a comissão: os fariseus representavam o partido nacional-religioso; ao passo que os herodianos perfilhavam as idéias do tetrarca da Galiléia e Peréia, pugnando por um soberano da dinastia de Herodes. Mas, ainda que inimigos entre si, harmonizavam em um ponto: no ódio ao Nazareno; uns e outros estavam convencidos de que era tempo para destruir definitivamente o prestígio daquele homem. Dignos comparsas de Pilatos e Herodes, que, na sexta-feira próxima, fariam as pazes cimentadas pelo sangue de Jesus... Aproximaram-se, então, do Mestre os emissários dos dois partidos e, depois de uma série de mesuras e reverências, apresentaram-se a ele como homens que vinham em causa própria, como espíritos retos que, em um mundo de mentira e bajulação, vinham procurar a pessoa do profeta de Nazaré como último refúgio e derradeira âncora de salvação. – Mestre – dizem eles –, nós sabemos que tu és amigo da verdade, que não fazes acepção de pessoas; que ensinas o caminho de Deus segundo a verdade. Magnífico, esse prelúdio. Depois dessas palavras untuosas vem repentinamente a pergunta clara e concisa: – Dize-nos: é lícito pagar imposto a César ou não? Temos de pagar ou não?
“É lícito”, diziam eles, como se tivessem consciência tão delicada e receassem cometer pecado. – Dize-nos: é lícito pagar imposto a César ou não? Se Jesus dissesse: “É lícito, deveis pagar”, seria por eles estigmatizado como inimigo do povo e traidor de Israel; pois a questão do imposto que os judeus pagavam ao dominador estrangeiro era uma das mais dolorosas chagas de que sangrava o organismo social de Israel. Se Jesus dissesse que não era lícito, nem havia obrigação de pagarem imposto a César – aí estavam os herodianos relacionados com o governador romano, que não perderiam a oportunidade para denunciar o Nazareno como subversivo. Os romanos, tão tolerantes em outros pontos, eram de uma intransigência férrea em matéria de imposto; e, tratando-se de um galileu, crescia de pronto a sua desconfiança, porque ainda estava na memória de todos a “greve tributária” que o famoso Judas Galileu organizara, não havia muito, contra a opressão dos poderosos de Roma. Os emissários dos dois partidos antegozavam a confusão do Nazareno em face do terrível dilema. Jesus, porém, sereno e calmo, disse: – Mostrai-me a moeda do imposto. Os olhos de Jesus pousaram na moeda de prata, mas os seus dedos não a tocaram. O chamado “denário do tributo” era uma moeda que ostentava no anverso a efígie do imperador reinante, ou de algum membro da família imperial; e no reverso uma figura simbólica. Os príncipes nativos da Palestina tinham o direito de cunhar moedas de cobre, com figuras de plantas e animais, ao passo que a cunhagem de moedas de ouro e de prata era direito privativo dos dominadores romanos. O imposto oficial só era pagável nesta moeda argêntea, chamada por isso “moeda do tributo”, como lembra expressamente Mateus, o ex-publicano, habituado a lidar, na coletoria, com esses valores oficiais. No tempo em que se deu este episódio, governava o império romano Tibério César. A moeda, que a comissão dos consulentes apresentou a Jesus e que os olhos dele contemplaram por uns momentos, levava num lado a imagem do dito soberano com a inscrição: TIBERIUS CAESAR AGUSTUS, DIVI AUGUSTI FILIUS (Tibério César Augusto, filho do divino Augusto). Do outro lado via-se a figura completa do soberano, sentado, e o título: PONTIFEX MAXIMUS (Pontífice Máximo). – De quem é esta imagem e a inscrição? – perguntou Jesus.
– De César – responderam eles, sem nada suspeitar. Tornou-lhes Jesus, no mesmo tom indiferente e calmo: – Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Os emissários quedaram-se perplexos, como crianças a quem um adulto arrancasse das mãos uma arma que vinham vibrar contra ele. Também, que haviam de replicar? Se eles mesmos tinham sacado da cinta aquela moeda, confessando com isto que, de fato, usavam dinheiro romano e assim se confessavam súditos de Tibério César – nada mais havia que decidir! A decisão que os consulentes pediam a Jesus já eles mesmos a tinham dado praticamente. Faltava só renderem também ao soberano dos céus o que de direito lhe competia. É o que lhes diz o Mestre, sem ser solicitado: a resposta era, portanto, mais cabal do que a pergunta. Que aconteceu depois desta cena? Diz o Evangelista: “Eles, quando ouviram isto, não sabiam que replicar, e admirados da resposta de Jesus calaram-se e foram embora”.
Os escarnecedores da ressurreição Parece que nesses últimos dias da sua vida mortal faz Jesus questão de desbaratar com o gládio do espírito, um após outro, todos os esquadrões dos seus adversários. E, para vergonha deles, todas essas derrotas se deram no próprio reduto do judaísmo, no templo de Jerusalém. Acabavam de bater em retirada os fariseus e herodianos – o partido nacionalreligioso e o partido nacional-romano. Era chegada a vez dos saduceus – partido filosófico-racionalista. Os saduceus, sequazes de um tal Sadoc, de que a história quase nada diz, recrutavam-se pela maior parte nas classes abastadas de Israel, homens ricos, que moravam em elegantes palacetes e eram amigos de uma boa mesa e de uma vida regalada. Tolerantes com as crenças dos outros, não tinham propriamente convicção pessoal sobre coisas que ultrapassavam o horizonte dos sentidos. A metafísica do espírito não era o seu lado forte; tanto mais a física da matéria. Admitiam, geralmente, os cinco livros de Moisés (Pentateuco); nivelavam, porém, o texto sacro com as obras clássicas dos escritores gregos e romanos, Homero e Virgílio; e, na sua erudita opinião, os volumes dos filósofos de Atenas encerravam não menor cabedal de verdades salutares do que os livros da Sabedoria ou dos Salmos. Segundo o testemunho dos Atos dos Apóstolos, dizem os saduceus “que não há ressurreição, nem anjo nem espírito”. Anás e Caifás eram saduceus, como eram saduceus os que gozavam de algum prestígio público sob o regime dos Césares; pois, com o seu dinheiro e a maleabilidade do seu caráter acomodatício, facilmente granjeavam as boas graças de Roma. Quando os saduceus presenciaram a derrota dos fariseus, em luta com Jesus, alegraram-se e resolveram mostrar a esses fanáticos das tradições religiosas que eles, o escol intelectual, social e financeiro de Israel, dispunham de argumentos mais sólidos para reduzir a silêncio o ousado Nazareno, que se atrevia a agredir os chefes espirituais do povo na própria acrópole da sabedoria religiosa. Puseram-se, então, a excogitar um plano de ofensiva contra Jesus. Coisa muito profunda não se podia, naturalmente, esperar desses materialistas superficiais; pois o amigo de banquetes e divertimentos fáceis dificilmente se
dará ao trabalho de descer às profundezas da filosofia ou subir às culminâncias da mística; prefere espairecer pelas largas avenidas das pilhérias baratas e das zombarias picantes. Desse embotamento da inteligência e dessa obtusidade do espírito, deram os saduceus prova cabal no “caso” que apresentaram à perspicácia do Nazareno. E prosseguem: – Moisés deixou-nos este preceito: Se morrer o irmão casado de alguém, e este não deixar filhos, case seu irmão com a mulher. Ora, havia entre nós sete irmãos. O primeiro casou, e morreu sem filhos. Casou também o segundo com a viúva, e morreu sem filhos. Casou depois com ela o terceiro. E assim sucessivamente todos os sete e morreram sem deixar filhos. Por fim, depois de todos eles, morreu também a mulher. A quem pertencerá essa mulher, na ressurreição – se é que há ressurreição –, pois que todos a tiveram por esposa? Dito isto, sorriam à socapa, cheios de malícia, deliciando-se secretamente com a idéia de verem o famoso profeta de Nazaré embaraçado. Pois que solução daria ele ao “caso” dos sete irmãos? A quem adjudicaria aquela mulher, no mundo futuro, cuja existência tão eloquentemente defendia? Ao primeiro? Ao último? Mas seria uma injustiça contra todos os outros! Dá-la-ia a todos ao mesmo tempo? Mas que seria da monogamia? Jesus ouve tranquilamente contar o “caso”, mas com grande desapontamento deles não entra no laço engenhosamente urdido por esses zombadores do mundo espiritual. Em vez de uma refutação, mostra Jesus aos seus adversários que toda a sua argumentação falha pela raiz, porque se baseia numa premissa falsa. Respondeu-lhes Jesus: – Estais em erro! Não conheceis nem a Escritura nem o poder de Deus! Prosseguiu o Mestre: – Pois na ressurreição dos mortos não se trata nem se dá em casamento; porque eles já não podem morrer, mas serão como os anjos do céu. Portanto, onde não há morte não é necessário que haja procriação de novos seres humanos, razão do matrimônio. Haviam os saduceus invocado a autoridade de Moisés para derrotar Jesus – e Jesus recorre a um livro do mesmo Moisés para provar contra os seus adversários a sobrevivência da alma. Disse-lhes:
– Mas que os mortos hajam de ressuscitar, indicou-o igualmente Moisés naquilo da sarça ardente, quando chamou ao Senhor: – Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó. Ora, Deus não é Deus dos mortos, mas sim dos vivos; porque para ele todos são vivos. Ressurreição quer dizer sobrevivência! Abraão, Isaac e Jacó eram falecidos e não se podia admitir que Deus fosse apenas Deus de cadáveres inertes; logo, aqueles patriarcas defuntos deviam viver ainda, nas regiões do mundo invisível. Destarte pulverizou Jesus os “argumentos” daqueles pretensos sábios. O evangelista remata o episódio com estas palavras: “Disseram então alguns dos escribas: – Bem respondido, Mestre! E, a partir daí, já não ousavam fazer-lhe perguntas”. O povo que o escutava se maravilhava da sua doutrina.
O grande mandamento Ainda naquele mesmo dia, após a derrota dos fariseus, herodianos e saduceus, apresentou-se a Jesus um escriba e doutor da lei. Parecia encantado com o vigor e a clareza da doutrina do Nazareno, e lhe fez esta pergunta sincera: – Qual é o grande mandamento da lei, o primeiro de todos? Com a mesma simplicidade e concisão respondeu o Mestre: – O primeiro de todos os mandamentos é este: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de toda a tua mente e com todas as tuas forças. Este é o grande mandamento e o primeiro de todos. E o segundo é semelhante a este: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Não há mandamentos maiores que estes. E nestes dois mandamentos se baseiam toda a lei e os profetas. Agradou-se o escriba da resposta sólida e diáfana, tão diferente das nebulosas cavilações dos fariseus, e disse a Jesus: – Perfeitamente, Mestre! É bem verdade o que acabas de dizer: que há um só Deus, e não há outro fora dele; amá-lo de todo o coração, de toda a alma, de toda a mente e com todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo – isto vale mais do que todos os holocaustos e todas as vítimas. Em face dessa resposta, que ele dera tão sensata, disse-lhe Jesus: – Não estás longe do reino de Deus.
Parábola das virgens tolas e sábias Disse Jesus: – O reino dos céus é semelhante a dez virgens que, empunhando as suas lâmpadas, saíram ao encontro do esposo. Delas, cinco eram tolas, e cinco sábias. As cinco tolas tomaram as suas lâmpadas, mas não levaram azeite consigo; ao passo que as sábias levaram azeite nas suas vasilhas juntamente com as lâmpadas. Ora, como o esposo tardasse a vir, ficaram todas com sono e adormeceram. À meia-noite, soou o grito: “Eis que vem o esposo; saí ao seu encontro!” “Então se levantaram todas aquelas virgens e aprontaram as suas lâmpadas.” As tolas pediram às sábias: – Dai-nos do vosso óleo, porque as nossas lâmpadas se apagam. Não é possível – responderam as sábias –; não chegaria para nós e para vós; ide antes aos vendedores, e comprai para vós. Enquanto iam comprar, chegou o esposo. As que estavam preparadas entraram com ele para as núpcias, e fechou-se a porta. Mais tarde chegaram as outras virgens e disseram: – Senhor, Senhor, abre-nos! Ele, porém, replicou: – Em verdade vos digo que não vos conheço. Ficai, pois, alerta, porque não sabeis nem o dia nem a hora!
Cristo, Filho e Senhor de Davi Despontara a quarta-feira daquela última semana. Continuavam a fluir, cada vez mais numerosos, os peregrinos das províncias para assistirem às solenidades pascais. Aproveitou Jesus a ocasião e o pouco tempo que ainda lhe restava para espalhar entre os intelectuais de Israel as centelhas do seu Evangelho. Repetidas vezes haviam-no interrogado os seus adversários, sem que Jesus lhes ficasse devendo uma só resposta. Neste dia resolveu tomar a ofensiva e colocar os seus interlocutores diante de uma pergunta a que os fariseus imbuídos de falsas idéias messiânicas não souberam responder, apesar de andarem, dia por dia, esmiuçando textos bíblicos. Aludindo às palavras do Salmo 119, fez-lhes Jesus esta pergunta: – Que vos parece do Cristo? De quem é filho? – De Davi – responderam eles, sem um momento de hesitação. Disse Jesus: – Como, pois, Davi em espírito lhe chama seu senhor, dizendo: – Diz o Senhor a meu senhor: – Senta-te à minha direita até que eu reduza os teus inimigos a escabelo dos teus pés. Se, pois, Davi lhe chama Senhor, como é que é seu filho? A resposta não era difícil, pois Jesus, como homem, era filho de Davi, e o Cristo divino era senhor de Davi. Os mestres de Israel, porém, tinham adulterado o conceito genuíno da messianidade e obliterado o seu caráter divino; só esperavam um soberano temporal que os viesse libertar da dependência política e esmagasse os seus inimigos. Os fariseus não souberam responder. Sem uma palavra, retiraram-se do campo da controvérsia – vencidos, porém não convencidos.
Gemidos de dor e brados de indignação Os chefes espirituais de Israel tinham-se declarado definitivamente contra Jesus. De condutores do povo tornaram-se sedutores. Viu-se Jesus em face desta alternativa: ou deixar perecer o povo ou desmascarar os seus chefes religiosos. Optou pela segunda: preferiu desmascarar os culpados impertinentes e prevenir o povo bem-intencionado. Bem sabia que com este brado assinava a sua sentença de morte; mas a verdade lhe valia mais que a vida. O que o Mestre dissera a princípio, no Sermão da Montanha, repete-o agora, acrescentando elementos novos. – Sobre a cátedra de Moisés estão sentados escribas e fariseus. Fazei e guardai tudo que vos disserem, porém não lhes imiteis as obras, porque eles falam, mas não as executam. Armam fardos insuportáveis e põem-nos aos ombros da gente; ao passo que eles mesmos nem com um dedo neles querem tocar. A imagem dos “fardos insuportáveis” é tipicamente oriental. Aí está um condutor de caravanas; prepara com as próprias mãos os fardos das suas mercadorias; é um nunca acabar; vai mais isto e mais aquilo; o fardo assume proporções cada vez maiores. Depois dá ordem aos seus escravos para o levantarem sobre as costas do camelo pacientemente deitado em terra. E ai do escravo que não consiga levantar o fardo! Estala-lhe nas costas nuas o látego cruel. Assim procedem os chefes espirituais de Israel com os seus subordinados; fazem da religião um cavalete de tortura, e da moral uma roda de suplício; o povo qual escravo destinado aos trabalhos mais pesados; o que os rabinos excogitarem de mais absurdo é veiculado ao meio das massas populares como lei de Deus – e ai de quem não o reconheça como ordem divina! Ah! é verdade, também eles fazem alguma coisa; é Jesus que o afirma: – Tudo o que fazem é para serem vistos da gente; por isso é que usam filactérios muito largos e borlas volumosas; gostam de ocupar lugar de honra nos banquetes e nas sinagogas; fazem questão de ser cumprimentados nas praças e chamados mestres.
Os filactérios eram umas membranas ou pergaminhos, nos quais se achavam escritas sentenças do livro da lei de Moisés e que se usavam suspensos na fronte ou enrolados nos braços. A caixinha usada na fronte tinha quatro compartimentos, em cada um dos quais se colocava uma tira com uma passagem da Sagrada Escritura. Os tópicos em questão eram os seguintes: Êxodo 13, 2-10, onde os hebreus são exortados e instruídos sobre o motivo e o modo de celebrarem a Páscoa, em recordação da saída do Egito; Êxodo 13, 11-17, que trata da consagração dos primogênitos; Deuteronômio 6, 4-9, que inculca o grande mandamento do amor de Deus; Deuteronômio 11, 13-27, onde Deus promete ricas bênçãos aos que observarem o grande mandamento, e ameaça com castigos aos que o desprezarem. Todo judeu piedoso trazia esses filactérios durante as horas da oração matutina, exceto nos sábados e dias festivos. Mandara Deus que os seus preceitos andassem sempre ante os olhos e nas mãos dos filhos de Israel, e os judeus, para não se esquecerem um só instante dessa ordem, executavam-na ao pé da letra, cumprindo assim o corpo, mas nem sempre o espírito da lei. Quando algum israelita fazia questão de passar por muito religioso e amigo da lei, aumentava as dimensões de sua caixinha de filactérios. As borlas, feitas de tecido cor de jacinto, guarneciam as quatro pontas do manto que os judeus usavam sobre a túnica. Também Jesus, acompanhando o uso geral, usava essas borlas, uma das quais foi tocada pela mulher hemorroíssa. Mas os judeus faziam com essas borlas o mesmo que faziam com os filactérios: avolumavam-nas desmesuradamente para assim simbolizarem a intensidade do seu espírito religioso. – Não queirais ser chamados mestres – advertiu-os Jesus –, porque um só é o vosso mestre, e todos vós sois irmãos. Nem queiras chamar pai a algum dentre vós sobre a terra; porque um só é vosso pai, o que está no céu. Nem tampouco vos intituleis guias, porque um só é o vosso guia: o Cristo. Quem for o maior dentre vós seja vosso servo; pois quem se exaltar será humilhado, e quem se humilhar será exaltado. É esta a primeira e única vez que Jesus se intitula explicitamente o “Cristo”, ou o “Messias”. *** Depois destas advertências preliminares, começa Jesus a desafogar a sua dor em sete brados cheios de veemência:
– Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que fechais o reino dos céus aos homens! Vós mesmos não entrais, nem deixais entrar os que querem entrar. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que devorais os haveres das viúvas, sob pretextos de recitardes longas orações! Tanto mais rigoroso será o juízo que tereis. – Ai de vós, escribas e fariseus, que correis terras e mares para ganhar um prosélito, e depois de ganho o tornais filho do inferno pior que vós! Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do funcho e do cominho, e menosprezais o que há de mais importante na lei: a justiça, a misericórdia, a felicidade. Isto se deve fazer, mas não omitir aquilo. Guias cegos que sois! Coais um mosquito e engolis um camelo. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que limpais o que está por fora do copo e do prato, e por dentro estais cheios de rapina e de voracidade! Fariseus cegos! Purificai primeiro o que está dentro do copo e do prato, para que também o que está fora fique limpo. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que sois semelhante a sepulcros caiados, que por fora se apresentam formosos, mas por dentro estão cheios de ossadas e de toda sorte de podridão! Assim é que também vós, no exterior, apareceis justos aos olhos da gente, quando no interior estais cheios de hipocrisia e maldade. Repentinamente transfere as suas imagens do presente para o futuro, predizendo os crimes que os fariseus cometeriam contra os arautos do Evangelho: – Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que levantais monumentos aos profetas e adornais os sepulcros dos justos e dizeis: Se nós tivéssemos vivido nos dias de nossos pais, não nos teríamos tornado réus do sangue dos profetas. Com isso dais testemunho a vós mesmos de que sois filho dos que mataram os profetas. Acabais de encher a medida de vossos pais! Raça de serpentes e víboras! Como escapareis à condenação do inferno? Por isso, eis que vos envio profetas, sábios e escribas! A uns deles haveis de matar e pregar na cruz, a outros haveis de açoitar nas vossas sinagogas e perseguir de cidade em cidade. Em seguida, levanta-se Jesus, sai do templo, pára no átrio defronte ao santuário, e lança sobre Jerusalém o último brado de amor e de angústia, exclamando: – Jerusalém! Jerusalém! Que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes tenho querido reunir os teus filhos, assim como a galinha recolhe debaixo das asas os seus pintinhos. Tu, porém, não quiseste!... Por isso, eis que será deixada deserta a vossa casa!... E digo-vos que daqui por diante já não me vereis até que digais: – Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor!...
Profecia sobre a destruição de Jerusalém Era pela tarde daquela mesma quarta-feira. No Ocidente, o sol demandava as serranias do litoral e as águas cerúleas do mediterrâneo, nadando em mares de ouro e de sangue... E os seus últimos raios se derramavam, suaves e cariciosos, sobre os alvejantes mármores do templo, e nimbavam fantasticamente o pórtico ocidental do átrio dos gentios, ruborizando-lhe as soberbas colunas de neve, e desenhando sombras compridas na vasta área ladrilhada de mosaicos de diversas cores. Nunca o santuário de Israel parecera tão divinamente belo como nessa hora em que o sol se despendia da terra e as penumbras crepusculares começavam a tecer os seus mistérios. “Não havia no templo um só ponto que não encantasse os olhos e a alma” – diz o historiador contemporâneo Flávio Josefo. – Ao amanhecer, ferido pelos raios solares, lançava esplendores tão intensos que obrigava o espectador a desviar os olhos, como se fosse o próprio fulgor do sol. Aos que vinham de fora, afigurava-se-lhes o complexo dos edifícios do templo como longínqua montanha de neve, porque tudo que não era ouro era mármore alvíssimo. Para além do monte Moriá, que formava a base do templo, apareciam, esfuminhadas por entre as cinzas do ocaso, as oliveiras do Getsêmani. Mais ao sueste, sobre o vale de Cedron, apontavam as montanhas de Moab, envoltas nos vapores exalados pelas águas pesadas do Mar Morto. Os discípulos, em pé, ao lado do templo, contemplavam o grandioso santuário nacional trabalhado em gigantescos blocos de mármore, cada um dos quais media 12 metros de comprimento, 6 ele largura e 4 de altura – blocos maiores que muita choupana de pescador da Galiléia; e, chamando a atenção do Mestre para tamanhas maravilhas, mais belas ainda por entre os aurirrubros clarões do poente, disseram, entre extasiados e reverentes: – Olha, Mestre, que pedras enormes e que construções! Respondeu-lhes Jesus: – Estais a contemplar essas construções? Pois eu vos digo que não ficará pedra sobre pedra – será tudo arrasado!...
Estupefatos, entreolharam-se os discípulos. O templo seria destruído?... E para sempre?... Não havia dor mais acerba para o coração de um israelita do que esta... Para os discípulos era o fim do mundo... Silenciosos e acabrunhados, seguiram ao lado de Jesus... Desceram para o vale de Cedron, e daí subiram, pelo lado oposto, ao Monte das Oliveiras. Ali chegados, sentou-se Jesus sobre uma pedra com o rosto voltado para o templo, como se lhe custasse separar-se dele, e apagar da imaginação os últimos vestígios do passado... Cada vez mais avançavam as sombras da noite, envolvendo numa teia de crepe o monte Moriá e desmaiando gradualmente a soberba magnificência do santuário de Israel... Por algum tempo permaneceram calados Jesus e seus discípulos. Indefinível nostalgia inspirava aquela hora vespertina... Todos os corações se sentiam opressos como que numa expectativa pressaga e lúgubre... Até que alguns dos discípulos, aproximando-se do Mestre e quebrando o silêncio, lhe perguntaram confidencialmente: – Dize-nos quando acontecerá isto? Começou então Jesus a dizer-lhes o que os esperava antes do extermínio da cidade de Jerusalém. – Ficai alerta! Que ninguém vos iluda! Muitos virão em meu nome e dirão: Eu sou o Cristo! E a muitos levarão a apostasia. Quando ouvirdes de guerras e boatos de guerras, não vos perturbeis. Sobrevirão todas estas coisas; mas ainda não é o fim. Levantar-se-á povo contra povo, e reino contra reino; haverá terremotos e fome, ora aqui, ora acolá. Mas estas coisas serão apenas os prenúncios da tribulação. Entretanto, não eram essas perturbações de ordem social que mais deviam temer os discípulos; provações mais dolorosas os aguardavam. – Cuidado convosco mesmos! – adverte-os Jesus. – Por minha causa vos hão de entregar aos tribunais, açoitar-vos nas sinagogas e levar-vos à presença de reis e governadores, em testemunho a eles. Mas primeiro será pregado o Evangelho a todos os povos. A estas palavras estremeceram os discípulos. Não temiam os elementos da natureza; sentiam-se seguros no meio de gente da sua classe; mas tinham medo dos homens.
Quando o Mestre viu o pavor estampado nos semblantes dos seus discípulos, procurou consolá-los, dizendo: – Quando vos levarem aos tribunais, não vos preocupeis com o que houverdes de dizer; mas dizei o que naquela hora vos for inspirado; porque não sois vós que falais, mas sim o espírito de meu Pai. Há de o irmão entregar à morte o irmão, e o pai ao filho, hão de os filhos revoltar-se contra os pais e tirar-lhes a vida. Por causa do meu nome sereis odiados de todos. Mas quem preservar até o fim será salvo. Tudo isto sucederia aos poucos. Primeiro seriam os discípulos dispersos, separados dos seus, e Jerusalém seria destruída. As palavras do Mestre não deixavam dúvida alguma. – Quando virdes reinar os horrores da desolação onde reinar não deviam – atenda a isto o leitor! –, então fuja para os montes quem estiver na Judéia; e quem se achar no terraço não desça ao interior da casa nem entre para buscar alguma coisa; e quem estiver no campo não volte para buscar o seu manto. – Ai das mulheres que, nesses dias, andarem grávidas, ou com filhinho ao peito! – Orai para que isto não aconteça em tempo de inverno. Começou o cerco de Jerusalém em abril do ano 70. As semanas precedentes assinalavam as “chuvas tardias”, que tornavam muitos caminhos intransitáveis. Nestas alturas interrompe Jesus a narração. Não descreve a destruição de Jerusalém. Por que não? Talvez porque, pouco antes, no mesmo lugar, a descrevera aos discípulos, e eles ainda guardavam bem viva na imaginação essa cena terrífica.
Profecia sobre o fim do mundo Logo após a alusão ao extermínio de Jerusalém passa Jesus a falar do fim do mundo. Servia aquele episódio de ilustração a este. Há uma ligação lógica entre as duas catástrofes: se Israel e o mundo em geral tivessem reconhecido o primeiro advento do Messias, não cairia sobre Jerusalém o flagelo, nem o segundo advento de Cristo reverteria às formas lúgubres que Jesus descreve. Para o espírito profético de Jesus, que abrangia de relance o presente, o passado e o futuro, não era tão grande como para nós a distância entre o primeiro e o segundo acontecimento. Às vezes, devido ao entrelaçamento das duas descrições, torna-se difícil ao leitor distinguir os elementos que se referem ao extermínio de Jerusalém daqueles que têm por objeto o cataclismo final. Mais uma vez aparecerão falsos profetas, procurando enganar os homens: – Quando então alguém vos disser: Eis o Cristo! Ei-lo acolá – não o acrediteis; porque aparecerão falsos Cristos e falsos profetas, que farão grandes sinais e prodígios, a ponto de enganarem até os escolhidos, se possível fosse. Eis que vos ponho de sobreaviso! Depois da tribulação daqueles dias escurecerá o sol, e a lua já não dará a sua claridade, e as estrelas cairão do céu, e serão abaladas as energias do firmamento. A vinda do Filho do Homem será tão manifesta e evidente a todo o mundo como a luz do relâmpago: – Assim como o relâmpago, que rompe no Oriente e fuzila até o Ocidente, assim há de ser também na vinda do Filho do Homem. Para ilustrar a doutrina, recorre Jesus a duas comparações, tiradas, uma do reino animal, outra do mundo vegetal: – Onde há carniça, aí se ajuntam as águias – quando a corrupção do gênero humano tiver atingido o auge, então virão as forças negativas consumir esse cadáver. – Aprendei isto por uma semelhança tirada da figueira: quando os seus ramos se vão enchendo de seivas e brotando folhas, sabeis que está próximo o verão.
Do mesmo modo, quando presenciardes tudo isso, sabereis que as coisas estĂŁo Ă porta.
O juízo final Quando Jesus começou a falar do juízo final, estava sentado no Monte das Oliveiras, no meio dos seus discípulos. Pedras calcárias, espalhadas aqui e acolá, brancas como ossadas de defuntos serviam-lhes de assento. No Ocidente acabavam de expirar as derradeiras cintilações do dia... Era noite... Mas não era escuro. A Páscoa judaica incidia na primeira lua cheia da primavera. Mal expirou no poente o ouro fulvo do rei do dia quando, no horizonte oposto, emerge a face pálida da rainha da noite, espargindo a sua prata líquida sobre a folhagem cinzenta das oliveiras do Getsêrnani, orlando discretamente os rochedos, projetando faixas negras por detrás dos troncos, e deslizando suavemente pelas faces e pelas roupas daqueles treze homens sentados na encosta do monte, silenciosos, absortos em profundo cismar... No meio desse ambiente noturno e enluarado, começou o Nazareno a descrever a cena mais grandiosa e terrífica que aguarda a humanidade – a sorte eterna dos bons e dos maus. Nunca talvez, em todo o decurso da sua vida mortal, proferiu Jesus palavras tão em contraste com as circunstâncias e o ambiente, como nessa noite de primavera. Mas esse contraste era mais aparente que real. As palavras do Mestre respiravam trevas noturnas e exalavam claridade lunar. Misterioso como os mistérios daquela noite era o colóquio do Nazareno com os seus doze confidentes, à sombra de oliveiras seculares. Quando os profetas da lei antiga descreviam o juízo final, apelavam para todos os recursos da fantasia, jogavam ao cenário todas as grandiosidades de estilo. Não é dessa natureza a linguagem de Jesus. Também ele, é verdade, desenrola um quadro de sublimidade épica; mas a sua dicção é suave e singela como o clarão argênteo da lua a infiltrar-se na tenebrosa vastidão do mundo, a penetrar nas fauces hiantes dos abismos... – Quando vier o Filho do Homem na sua majestade – disse ele – em companhia de todos os anjos, sentar-se-á no trono da sua glória. E reunir-se-
ão diante dele todos os povos: e ele os separará uns dos outros, assim como o pastor separa dos cabritos as ovelhas. Colocará à sua direita as ovelhas, e à esquerda os cabritos. Então dirá o rei aos que se acharem à sua direita: “Vinde, benditos de meu Pai! Tomai posse do reino que vos está preparado desde o princípio do mundo. Porque eu estava com fome, e me destes de comer; estava com sede, e me destes de beber; andava forasteiro, e me agasalhastes; estava nu, e me vestistes; estava doente, e me visitastes; estava preso, e me viestes ver”. Então perguntarão os justos: “Quando foi, Senhor, que te vimos com fome, e te demos de comer? Quando com sede, e te demos de beber? Quando te vimos forasteiro, e te demos agasalho? Quando nu, e te vestimos? Quando te vimos doente ou preso, e te fomos visitar?” Responder-lhes-á o rei: “Em verdade vos digo que o que fizestes a algum dos meus irmãos mais pequeninos, a mim é que o fizestes”. Em seguida, dirá aos que estiverem à sua esquerda: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado ao diabo e seus anjos! Porque eu estava com fome e não me destes de comer; estava com sede, e não me destes de beber; andava forasteiro e nu, e não me agasalhastes; estava doente e preso, e não me visitastes”. Perguntarão também estes: “Quando foi, Senhor, que te vimos com fome, ou com sede, ou forasteiro, ou nu, ou doente ou preso, e deixamos de acudir-te?” Ao que ele lhes responderá: “Em verdade vos digo que o que deixastes de fazer a algum destes mais pequeninos, a mim é que deixastes de o fazer”. E virão estes para o suplício eterno; os justos, porém, para a vida eterna. Silêncio... Silêncio profundo acolheu estas palavras de Jesus... Tão grande era a quietude daquela noite de primavera, por entre as oliveiras e as pedras do Getsêmani, que se julgava perceber o descrito caminhar da luz fosfórea sobre a relva macia que atapetava o solo, e em torno das rochas calcárias que alvejavam por entre a vegetação... Recordaram-se os discípulos da grande diferença que ia entre a descrição que os fariseus faziam do juízo universal e a do Mestre; aqueles só falavam no triunfo final de Israel e na derrota definitiva de todos os seus inimigos – ao passo que Jesus convidava à eterna recompensa todos os homens de boa vontade, judeus ou pagãos, e revelava o castigo inerente à atitude dos impenitentes. Só seriam salvos os filhos do amor – e só seriam condenados os filhos do desamor!
A salvação e a condenação não vinham de nenhum Deus de fora – mas do Deus ou do anti-Deus de dentro. As árvores do Getsêmani ouviram, nessa hora noturna, a mais grandiosa lição de auto-realização ou autodestruição que já se lecionou sobre a face da terra: a salvação do mundo pelo amor ou a perdição pelo desamor...
Preparativos para a celebração do cordeiro pascal Quinta- feira. Estava Jesus em Betânia, com os seus amigos, Lázaro, Marta e Maria. Devia ser pela manhã, quando alguns dos discípulos se dirigiram ao Mestre com esta pergunta: – Onde queres que preparemos o cordeiro pascal? Não vinha sem motivo esta pergunta, pois, segundo a lei, devia-se comer o cordeiro pascal dentro dos muros de Jerusalém. Mas essa cidade era para o Nazareno um campo de batalha semeado de inimigos traiçoeiros; de noite costumava ele retirar-se invariavelmente para Betânia. Nesta noite, porém, teria de ficar em Jerusalém, porque aquela cerimônia se celebrava depois do pôr-do-sol. Convinha, assim, que o próprio Mestre designasse o lugar para a solenidade. Respondeu-lhes Jesus: – Logo ao entrardes na cidade encontrareis um homem que leva um cântaro de água. Segui-o até a casa onde ele entrar e dizei ao dono: “O Mestre manda perguntar-te: Onde é a sala em que possa comer o cordeiro pascal com seus discípulos?” E ele vos mostrará uma sala espaçosa guarnecida de almofadas. Aí fazei os preparativos. A indicação era misteriosa, em harmonia com a disposição apreensiva dos discípulos. Não era coisa comum encontrar-se na rua um homem a carregar um cântaro de água; era tarefa das mulheres; os homens, quando levavam água, carregavam-na dentro de odres de pele de cabra. Pedro e João deixaram Betânia e foram em demanda da cidade. Ao transporem o portão da muralha, antes de enveredarem por uma das ruas estreitas de Jerusalém, viram um homem com um jarro de água. Foram-no seguindo até a casa onde entrou, e ali transmitiram ao dono o recado do Mestre, e logo ele os levou para o sobrado de um edifício, que provavelmente facultava acesso por uma escadaria externa, independente do compartimento térreo. Cedeu-lhes a sala para a celebração do cordeiro pascal. Devia esse
homem ser um dos discípulos de Jesus. Mandava a lei que, nesses dias, fossem cedidas aos peregrinos todas as localidades disponíveis para poderem cumprir a cerimônia comemorativa do êxodo do Egito, chamada phase ou páscoa. A sala indicada estava devidamente preparada; do teto pendia um lustre, por cima de uma mesa com os competentes reclinatórios almofadados. Pois, já nesse tempo, haviam os judeus adotado o costume romano de se reclinarem à mesa sobre uma espécie de divãs compridos cobertos de tapetes; apoiava-se o conviva sobre o braço esquerdo, com a cabeça voltada para a mesa. Para a cena do lava-pés é de importância ter presente esta atitude. Assim também se explica que Jesus, durante a ceia, pudesse falar em particular com um dos discípulos sem que os outros o percebessem. Foram, portanto, Pedro e João comprar um cordeirinho, se é que ainda não o possuíam, e mandaram-no matar no templo, consoante os dispositivos da lei. Adquiriram, além disto, “ervas amargas”, quer dizer, uma espécie de alface; prepararam o molho, feito de figos, tâmaras e uvas trituradas; aprontaram o pão ázimo, que vinha em forma de fatias delgadas ou bolos flexíveis. Nestas refeições rituais não se serviam os israelitas de talheres, mas comiam com os dedos. O cordeiro pascal, previamente esfolado, era assado inteiro num espeto, sobre brasas. Enquanto os dois discípulos preparavam tudo isto, despediu-se Jesus do carinhoso trio de seus dedicados amigos, Lázaro, Marta e Maria.
O lava-pés Ao reclinar-se à mesa da sala, para celebrar a ceia pascal, disse Jesus a seus discípulos: – Ansiosamente tenho desejado comer convosco este cordeiro pascal antes que eu padeça. Digo-vos que não mais o comerei até que tenha o seu cumprimento no reino de Deus. Ao dar-lhes o último copo de vinho com água, conforme o ritual, disse Jesus: – Tomai e reparti-o entre vós. Digo-vos que, a partir desta hora, não mais beberei do fruto da vida, até que venha o reino de Deus. No meio desta cerimônia ocorreu um fato que contrasta lamentavelmente com a solenidade da hora, e cai como uma nota dissonante no meio de toda essa sinfonia litúrgica. Suscitou-se entre os discípulos uma questão pueril, uma discussão sobre a precedência! Contendiam entre si sobre quem deles merecia o primeiro lugar no reino do Messias... Jesus ouvia tudo isto. Não disse palavra. Levantou-se do seu reclinatório, depôs o manto, foi buscar uma toalha, cingiu-a ao redor do corpo, pegou com a mão direita um jarro de água e com a esquerda uma bacia – estavam à mão esses objetos, pois serviam nas abluções rituais – e, aproximando-se dos discípulos litigantes, começou a deitar-lhes água sobre os pés e lavá-los dentro da bacia. Protestou Simão Pedro contra essa suposta humilhação de seu Mestre, retirou os pés, ergueu-se no seu reclinatório e, com enérgico gesto de repulsa, exclamou: – Senhor, tu me lavas os pés?! Respondeu-lhe Jesus tranquilamente: – O que eu faço, não o compreendes agora, compreendê-lo-ás, porém, mais tarde. Pedro, todavia, continuou na sua recusa, protestando: – Tu não me lavarás os pés eternamente.
Tornou-lhe Jesus em tom firme: – Se não te lavar, não terás parte comigo. Foi quanto bastou para que Pedro mudasse de atitude. Não ter parte com o Mestre era para o seu coração o maior dos castigos que podia imaginar; queria ter parte com Jesus, e muita, muitíssima. Por isso, estendeu as mãos a Jesus e disse-lhe: – Neste caso, Senhor, lava-me não somente os pés, mas também as mãos e a cabeça. Respondeu-lhe Jesus: – Quem tomou banho não necessita senão lavar os pés, e todo ele está limpo. E acrescentou Jesus, em tom misterioso e repassado de mágoa: – Vós estais limpos – mas nem todos... Ouviram os discípulos estas palavras e entreolharam-se, mas não sabiam de quem falava o Mestre. Enquanto ele prosseguia no seu trabalho, os discípulos sem dúvida observaram atentamente a ver se um deles se revelava como não sendo limpo. Nada perceberam. Também Judas Iscariotes, que não era limpo, permitiu que Jesus se debruçasse sobre seus pés, lavando-os enquanto a alma continuava manchada. Tornou Jesus a colocar no seu lugar a bacia e o jarro, desatou a toalha e, voltando para junto dos discípulos, disse-lhes: – Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem, porque eu o sou. Se, pois, eu vos lavei os pés, eu, vosso Senhor e Mestre, deveis também vós lavar-vos os pés uns aos outros. Em verdade, em verdade vos digo: não está o servo acima de seu senhor, nem o embaixador acima de quem o enviou. Felizes de vós se isto compreenderdes e o puserdes por obra! Nem de todos vós afirmo isto; sei a quem escolhi. Entretanto, força é que se cumpra a Escritura: Quem come comigo o pão levanta contra mim o calcanhar. Já agora, antes de suceder, vo-lo digo, para que, quando suceder, creiais que sou eu. Em verdade vos digo: – Quem recebe a mim recebe àquele que me enviou. A traição de Judas estava prevista no plano da Redenção; mas a presciência de Deus em nada diminui a culpabilidade do homem.
Jesus faz ver a seus discípulos que ele não é impelido para a morte por uma sinistra fatalidade, mas que a aceita por uma determinação livre da sua vontade.
Retirada do traidor Acabava Jesus de aludir à traição. A pessoa do traidor, porém, continuava oculta. Disse então Jesus: – Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me há de entregar... Estupefatos, entreolham-se os discípulos, levantam-se dos seus reclinatórios, rodeiam o Mestre e perguntam, um por um: – Sou eu, Mestre?... Em face da perspectiva da traição prestes a partir do meio deles, nenhum desses homens tem confiança em si mesmo; cada um desconfia de si próprio, descrê da sua lealdade, duvida da sua constância e julga-se capaz da maior das perfídias; pedem uma resposta a Jesus; não se sentem seguros contra a própria fraqueza, enquanto o Mestre não lhes diga quem é o traidor. Em vez de responder às perguntas ansiosas que se cruzam em torno dele, passa Jesus a caracterizar a perversidade do traidor, dizendo: – Um dos doze que comigo mete a mão no prato, esse é. O Filho do Homem vai ser atraiçoado, sim, como dele está escrito, mas ai do homem por quem for atraiçoado o Filho do Homem! Melhor fora a esse homem não ter nascido... Segue-se então um episódio, que só se compreende quando se tem em vista o modo como Jesus e os seus estavam reclinados à mesa. Não era possível que todos percebessem o que o Mestre dizia; só o entendiam os seus vizinhos mais próximos; é de supor que Pedro, João e Judas ocupassem os lugares mais próximos do Mestre. De João sabemos pelo Evangelho que está “reclinado ao peito de Jesus”, ocupando, provavelmente, o reclinatório que ficava defronte do Mestre, de maneira que, voltando-se para trás sobre o cotovelo esquerdo, ficava com a cabeça rente ao peito de Jesus. Do outro lado da mesa, defronte a Jesus, estava Judas. Diante de João achava-se Pedro. Este, voltando-se para trás, pediu a João que perguntasse a Jesus quem era o traidor. – Pergunta quem é esse de que fala.
Voltou João o rosto para trás e, a pouca distância do peito de Jesus, indagou a meia voz: – Quem é, Senhor? Respondeu Jesus baixinho, de modo que só o discípulo amado o podia ouvir: – Aquele a quem eu der o bocado embebido, é esse. E logo tomou um pedaço de pão, embebeu-o na pasta do charoset e deu-o a Iscariotes. Tomou Iscariotes o bocado das mãos de Jesus e perguntou ao mesmo tempo: – Sou eu, Senhor? – É como dizes – respondeu Jesus. E, assim que Judas tomou o bocado, acrescenta o evangelista, entrou nele Satanás. – O que pretendes fazer, faze-o quanto antes – disse Jesus. Os outros discípulos, ouvindo estas palavras do Mestre, cuidaram que o tivesse encarregado de comprar alguma coisa, ou de dar uma esmola aos pobres. “Era noite!”, termina o evangelista. Iscariotes internou-se nas trevas da noite – sua alma tateava na escuridão da culpa, e não tardaria a abismar-se na noite da pena...
A última ceia Depois do último cálice de vinho com água, prescrito pelo ritual da ceia pascal, era costume dos israelitas, após a celebração do cordeiro pascal, conservarem-se ainda reunidos em derredor da mesa. Referem os evangelistas: “Quando eles estavam à mesa, tomou Jesus o pão, partiu-o, benzeu-o e deu-o a seus discípulos, dizendo: Tomai e comei, isto é o meu corpo, que é entregue por vós. Da mesma forma, tomou o cálice, benzeuo e deu-o a seus discípulos, dizendo: Tomai e bebei dele todos, porque isto é o sangue do Novo Testamento, que será derramado por vós e pelos muitos, em remoção de erros. Fazei isto em memória de mim”. Esta passagem, a par da outra, “Tu és Pedro”, tem servido através dos séculos para consolidar o prestígio da classe sacerdotal. Segundo essa teologia, teria Jesus conferido a determinados homens o poder de transmudar pão e vinho no corpo e sangue de Jesus. Esta exegese teológica é extraordinariamente apta para aureolar de um halo de poderes divinos a classe sacerdotal, autora dessa doutrina, e tem sido amplamente explorada para esse fim. Na verdade, porém, este texto nada tem que ver com organização eclesiástica; o seu sentido real é puramente espiritual e místico. Jesus traça um paralelo entre o que acontece com o alimento material (pão e vinho) quando ingerido e assimilado pelo homem – e o alimento espiritual que ele estava oferecendo à humanidade, nesses dias. Assim como o alimento material, para ser vitalizado por nós, tem de ser primeiramente destruído (morto), e só depois disto ressurge em nossas veias como força vital – assim deve também a vida física de Jesus ser destruída a fim de poder ser assimilada pela alma, na forma visível do Cristo. Em ambos os casos – tanto no símbolo material como no símbolo espiritual – há uma espécie de morte e uma ressurreição. A chamada Eucaristia é, pois, uma parábola biológico-mística, que deve ser entendida neste sentido, isto é, espiritual e simbolicamente, segundo a advertência do Mestre: “O espírito é que dá vida, a carne de nada vale”. Em toda esta parábola simbólica, frisa Jesus que ele deve substituir os erros antigos de derramar o sangue físico de um cordeiro para anular pecados; este,
porém, é o sangue simbólico do Novo Testamento para remoção dos erros do Antigo Testamento; o amor espiritual substitui a morte material. Nenhum dos doze discípulos entendeu que comungava o corpo e o sangue real do Mestre – tanto assim que logo depois cometeram os maiores pecados; o suposto neo-comungante Judas consumou o plano da traição: Pedro negou o Mestre três vezes, jurando que não era discípulo dele; os restantes fugiram covardemente. Na última ceia, os discípulos receberam os símbolos materiais de Jesus, mas no Pentecostes comungaram o simbolizado espiritual, o próprio Cristo, e, repletos de heroísmo divino, o proclamaram ao mundo inteiro. Bem disse o Mestre: “As palavras que vos digo são espírito e vida, a carne de nada vale”. Depois da última ceia prosseguiu Jesus: – Um novo mandamento vos dou: “Que vos ameis uns aos outros, assim como vos tenho amado; por isso que há de o mundo conhecer que sois meus discípulos, em vos amardes uns aos outros”.
Perspectivas sinistras Depois da ceia, disse Jesus aos discípulos: – Quando vos enviei sem bolsa, sem alforje, nem calçado, faltou-vos alguma coisa? – Nada! – responderam eles. Prosseguiu o Mestre: – Agora, porém, quem tem uma bolsa, tome-a consigo; da mesma forma, quem possui um alforje; e quem não tem, venda o seu manto e compre uma espada. Porque vos digo que há de cumprir-se a palavra da Escritura: foi contado entre os malfeitores. Porquanto as coisas que me dizem respeito estão em vias de cumprimento. O que Jesus lhes dizia em sentido figurado, para os pôr de sobreaviso, tomaram-no os discípulos ao pé da letra, sobretudo aquilo da espada. Dois deles possuíam espada, Simão Pedro e outro. Até aí, parece, tinham levado ocultas essas armas; agora, subitamente, as sacam à luz, com certo orgulho, para mostrarem ao Mestre que não eram tão imprevidentes como ele supunha, e exclamaram satisfeitos: – Eis aqui duas espadas! Apesar da seriedade lúgubre do momento, passou pelo semblante de Jesus um ligeiro sorriso, sorriso de pena e de dó daquelas grandes crianças, que eram seus discípulos. E não vinha bem a propósito o título que lhes dera: “meus filhinhos”? Eram de uma ingenuidade enternecedora. Em face daquelas perspectivas sinistras e daquele mundo de inimigos de que o Mestre Ihes falara, estavam os discípulos resolvidos a defendê-lo, a ele e a si mesmos, à força de armas, e duas espadas eram sempre um começo auspicioso; se o Mestre julgasse necessário, comprariam mais algumas; pois tinham algum dinheiro em caixa. À observação, ingênua, com que os discípulos apresentaram aquelas duas lâminas, que reluziam minazes à luz do cenáculo, respondeu Jesus, talvez com um suspiro doloroso: – Basta!...
Perspectivas luminosas Continuavam os discípulos imersos em profunda tristeza. O Mestre ia deixá-Ios a sós no mundo. E o que os aguardava não era nada consolador... Jesus, porém, apontou-Ihes o termo final de todas as tribulações terrestres, dizendo: – Não se perturbe o vosso coração! Tendes fé em Deus, tendes fé também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, vo-lo dissera, porque vou preparar-vos um lugar. E, depois de ir e vos preparar um lugar, tornarei a vós e vos levarei comigo, para que vós estejais onde eu estou. Já sabeis aonde vou e também conheceis o caminho. Disse-lhe Tomé: – Senhor, não sabemos aonde vais; e como poderíamos saber o caminho? Respondeu-lhe Jesus: – Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim. Se conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai. E desde agora o conheceis e o vistes. Disse-lhe Filipe: – Senhor, mostra-nos o Pai, e basta-nos. Respondeu-Ihes Jesus: – Há tanto tempo que estou convosco, e não me conheceis? Filipe, quem vê a mim, vê também a meu Pai. Como dizes, pois: – Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai, e o Pai está em mim? As palavras que vos digo não as digo de mim mesmo; mas o que em mim está, este é que faz as obras. Crede que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim. E se não, credes em virtude das minhas obras. Em verdade, em verdade vos digo que quem tem fé em mim fará também as obras que eu faço, e fará maiores do que estas, porque eu vou para junto de meu Pai. E tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, eu o farei, para que seja glorificado o Pai no filho. Se me pedirdes alguma coisa em meu nome eu o farei.
Promessa do Espírito Consolador “Se me amais”, disse o Mestre, “guardareis os meus mandamentos. Rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que permaneça convosco eternamente; o Espírito da Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece, vós porém o conheceis, pois ficará convosco e habitará em vós. Não vos deixarei órfãos: tornarei a vós. Ainda um pouco de tempo, e o mundo já não me verá. Vós, porém, me vedes, porque eu vivo, e também vós vivereis. Naquele dia, sim, compreendereis que eu estou em meu Pai, que vós estais em mim e eu em vós. Quem tem os meus mandamentos e os guarda, esse é que me ama; mas quem me ama será amado por meu Pai, e também eu o amarei e me manifestarei a ele.” Perguntou-lhe então Judas, não o Iscariotes: – Como é isto Senhor? Como é que pretendes manifestar-te a nós e não ao mundo? Respondeu-lhe Jesus: – Quem me ama guardará a minha palavra; meu Pai o amará e viremos a ele e faremos nele habitação. Quem não me ama, não guarda as minhas palavras. A palavra que acabais de ouvir não é minha, mas a do Pai que me enviou. Isto vos digo enquanto estou convosco, mas o Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas, e vos lembrará tudo quanto vos tenho dito.
A paz do Cristo No meio das grandes tribulações que os esperavam, haviam os discípulos de gozar de profunda paz de consciência; as tempestades das dores e perseguições não conseguiriam agitar-lhes senão a superfície da vida, enquanto as profundezas da consciência descansariam em profunda serenidade. – Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz; não a dou como o mundo a dá. Não se perturbe nem se atemorize o vosso coração. Ouvistes que vos disse: Vou, e torno a vós. Se me amásseis, folgaríeis de que vou ter com o Pai, porque o Pai é maior que eu. Disse-vo-lo agora, antes de suceder, para que, depois de sucedido, tenhais fé. Já não falarei muito convosco; porque vem o dominador deste mundo. Sobre mim não tem poder algum; mas há de o mundo conhecer que amo o Pai e que faço assim como o Pai me ordenou. Levantai-vos. Vamos! Se os discípulos de Cristo são ramos do mesmo tronco, como o Mestre diz, são também irmãos entre si; e, como a sua seiva deriva de uma fonte única, devem também eles ser entre si um só coração e uma só alma. A caridade do próximo tem como base essencial o amor de Deus. É pelo amor do Pai que Jesus ama os homens, feitos à imagem e semelhança de Deus; pelo mesmo motivo devem os homens amar-se uns aos outros. – Assim como meu Pai me amou, assim vos tenho eu amado. Permanecei no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como eu também permaneço no amor do Pai, guardando-lhe os mandamentos. Disse-vos isto para que minha alegria esteja em vós e se torne perfeita a vossa alegria. Este é o meu mandamento: Amai-vos uns aos outros assim como eu vos tenho amado. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a própria vida por seus amigos. Vós sois meus amigos, se fizerdes o que vos mando. Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor; amigos é que vos chamei, porque vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai. Não fostes vós que me escolhestes, mas eu é que vos escolhi e encarreguei de irdes e produzirdes fruto: para que seja duradouro o vosso fruto. Então o pai vos concederá tudo o que pedirdes. Eu vos preceituo: amaivos uns aos outros.
O ódio do mundo Assim como o mundo profano ia perseguir o Redentor, assim votaria também ódio de morte aos remidos e, sobretudo, aos arautos da Redenção. Entretanto, diz o Mestre, é grande honra e motivo de íntima consolação ser odiado por causa dele. – Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro que a vós, me odiou a mim. Se vós fôsseis do mundo, amaria o mundo o que era seu; mas, como não sois do mundo – antes eu vos escolhi do mundo –, por isso é que o mundo vos odeia. Lembrai-vos da palavra que vos disse: Não está o servo acima de seu Senhor. Se, pois, me perseguiram a mim, também vos perseguirão a vós; e, se guardaram a minha palavra, guardarão também a vossa. Ora, tudo isto vos farão por causa do meu nome, porque não conhecem aquele que me enviou. Se eu não viera e Ihes falara, não teriam culpa; agora, porém, não têm desculpa do seu pecado. Quem me odeia a mim, odeia também a meu Pai. Não realizasse eu, no meio deles, obras que nenhum outro fez, estariam sem culpa; agora, porém, viram-nas e contudo me odeiam, a mim e ao Pai. Entretanto, convinha se cumprisse a palavra que está escrita em sua lei: Odiariam-me sem motivo. Quando vier o Consolador, que eu vos enviarei do Pai – o Espírito da Verdade que do Pai procede –, dará testemunho de mim; e também vós dareis testemunho, porque desde o princípio estais comigo.
Perseguições – Isto eu vos disse para que não vos escandalizeis. Expulsar-vos-ão das sinagogas, e chegará a hora em que todo homem que vos matar julgará prestar serviço a Deus. Isto vos farão porque não conhecem nem ao Pai nem a mim. Disse-vos estas coisas para que, quando chegar a hora, vos lembreis das minhas palavras. Não vo-las disse desde o princípio, porque ainda estava convosco. Agora, porém, vou ter com aquele que me enviou; e ninguém de vós me pergunta: Aonde vais? – de tão pesaroso que trazeis o coração pelo que vos disse. Entretanto, digo-vos a verdade: é-vos conveniente que eu vá, porque, se não for, não virá a vós o Consolador; mas, se for, vo-lo enviarei. E, quando vier, fará saber ao mundo o que é pecado, justiça e juízo – pecado, porque vou ter com o Pai, e já não me vereis; juízo, porque o príncipe deste mundo já está julgado. Ainda muitas coisas tenho a dizer-vos; mas não as podeis suportar agora. Quando, porém, vier aquele, o Espírito da Verdade, iniciar-vos-á em toda a verdade. Pois não falará por conta própria; mas dirá o que ouve, e o anunciará. Tudo o que o Pai tem é meu; por isso eu vos disse: Tomará do que é meu e volo anunciará.
Conversão da tristeza em gozo Não será eterna a separação entre Jesus e os seus discípulos; motivo de satisfação inefável. “Ainda um pouco de tempo, e já não me vereis; e mais um pouco de tempo, e tornareis a ver-me, porque vou para meu Pai.” Perguntaram entre si alguns dos discípulos: “Que quer dizer com estas palavras: Ainda um pouco de tempo e já não me vereis; e mais um pouco de tempo e tornareis a ver-me? E isto: Vou para meu Pai?” Diziam, então: “Que quer dizer com estas palavras: Ainda um pouco de tempo? Não sabemos o que ele quer dizer”. Reparou Jesus que queriam interrogá-lo, e disse-lhes: – Estais a perguntar uns aos outros por que é que vos disse: Ainda um pouco de tempo, e já não me vereis; e mais um pouco de tempo, e tornareis a verme? Em verdade, em verdade vos digo que havereis de chorar e gemer, ao passo que o mundo estará alegre; andareis tristes, sim, mas a vossa tristeza se converterá em alegria. Quando a mulher está para dar à luz entristece-se, porque chegou a sua hora; mas, depois de dar à luz um filho, já não se lembra das angústias, pela satisfação que sente de ter nascido ao mundo um homem. Assim também vós andais aflitos agora; mas tornarei a ver-vos e alegrar-se-á o vosso coração, e já ninguém vos tirará a vossa alegria. Naquele dia já não me perguntareis coisa alguma. “Em verdade, em verdade vos digo: Se pedirdes alguma coisa ao Pai em meu nome, vo-lo dará.”
Conclusão das exortações aos discípulos A oração deve constituir um vínculo contínuo e permanente entre Jesus e seus discípulos, durante o tempo da sua separação visível. – Naquele dia já não me perguntareis coisa alguma. Em verdade, em verdade vos digo: Se pedirdes alguma coisa ao Pai em meu nome, vo-lo dará. Até agora nada pedistes em meu nome. Pedi e recebereis – e será completa a vossa alegria. Disse-vos isto em parábolas; tempo virá em que já não vos falarei em parábolas, mas vos falarei abertamente de meu Pai. Naquele dia, sim, pedireis em meu nome, e digo-vos que já não terei de rogar ao Pai por vós. Porque o Pai vos ama, porque vós me amastes e crestes que saí de Deus. Sim, saí do Pai e vim ao mundo; deixo agora o mundo e torno para o Pai. Observaram então os discípulos: – Eis que agora falas claro e já não te serves de parábolas. Agora sabemos que sabes tudo e não necessitas das perguntas de ninguém. Por isso cremos que saíste de Deus. Respondeu-lhes Jesus: – Agora credes? Eis que vem a hora – e já chegou – em que vos espalhareis, cada qual para sua parte, deixando-me só. Mas eu não estou só, porque comigo está o Pai. Disse-vos isto para que tenhais a paz em mim. No mundo passareis tribulações; mas tendes confiança, que eu venci o mundo.
Oração crística de Jesus Terminadas as últimas instruções aos discípulos, levantou-se Jesus, ergueu os olhos aos céus, e dirigiu ao Pai celeste a sua oração crística, o seu hino de sumo sacerdote da humanidade, o seu canto de cisne, a oração mais solene e comovente que dos lábios do Nazareno colheu o evangelista do amor. Em pé, no cenáculo de Jerusalém, oferece Jesus ao Pai eterno a sua vida e missão redentora, pedindo-lhe que o glorifique, para que os fulgores dessa glória recaiam sobre o próprio autor de onde dimanam: – Pai, é chegada a hora!... Glorifica teu Filho, para que teu Filho te glorifique!... Deste-lhe poder sobre todos os homens, a fim de que dê a vida eterna a todos os que lhe confiaste. A vida eterna, porém, é esta: conhecerem-te a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus, o Cristo, que enviaste. Glorifiquei-te sobre a terra, levando a termo a obra que me confiaste. Glorifica-me, pois, agora contigo, Pai, com aquela glória que eu tinha em ti antes que houvesse mundo!... Tenho manifestado o teu nome aos homens que do mundo me deste. Eram teus, tu mos confiaste, e guardaram a tua palavra. Agora sabem eles que vem de ti tudo quanto me deste, porque lhes dei as palavras que tu me deras e aceitaram-nas e em verdade conheceram que saí de ti, e creram que tu me enviaste. Por eles é que rogo. Não rogo pelo mundo, mas pelos que me deste, porque são teus. Tudo o que é meu é teu e tudo o que é teu é meu. Neles é que sou glorificado. Já não fico no mundo – eles, porém, ficam no mundo – porque vou ter contigo. Pai santo, guarda em teu nome os que me deste, para que sejam um, assim como o somos nós. Enquanto estava com eles guardei em teu nome os que me deste; tenho-os amparado, e nenhum deles se perdeu, a não ser o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura. Agora, porém, vou para ti. Digo isto, enquanto estou no mundo, para que eles tenham em si mesmos a plenitude do meu gozo. Transmiti-lhes a tua palavra; mas o mundo lhes teve ódio, porque eles não são do mundo, assim como nem eu sou do mundo. Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do mal. Eles não são do mundo, assim como também eu não sou do mundo. Santifica-os para a verdade. A tua palavra é a verdade. Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. Por eles é que me santifico, para que sejam santificados na verdade. Mas não rogo somente por eles, senão também pelos que por sua palavra chegarem a crer em mim, para que sejam todos um, assim como tu, Pai, estás
em mim, e eu em ti – que assim também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste. Dei-lhes a glória que me deste, para que sejam um, assim como também nós somos um: eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitamente um, e para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, assim como me amaste a mim. Pai, quero que os que me deste estejam onde eu estou, para contemplarem a glória que me deste, pois que me amaste antes da creação do mundo. Pai justo, o mundo não te compreendeu; eu, porém, te compreendi, e também eles compreenderam que me enviaste. Manifestei-lhes o teu nome, continuarei a manifestá-lo para que o amor com que me tens amado esteja neles, e também eu esteja neles. *** Depois desta oração vespertina, já podia a noite desabar sobre a pessoa do Nazareno. E ela desabou, temerosa e lúgubre. E Jesus foi ao encontro dessa noite de mistérios e de dores, com o passo firme do herói que cumpre a sua missão, e não desvia um passo do caminho que a vontade divina lhe traçou.
Terceira Parte
DORES E GLÓRIA
Getsêmani No cenáculo de Jerusalém ardiam ainda as lâmpadas da ceia pascal, consumindo lentamente as últimas gotas de óleo. A sala, porém, estava deserta. Retirara-se Jesus com os seus discípulos em demanda do Monte das Oliveiras, onde tencionava passar a última noite da sua vida mortal. Não permitia a lei que o israelita ultrapassasse o perímetro urbano nessa noite sagrada; por isso não pernoitou Jesus com os seus devotados amigos de Betânia. Iscariotes não ignorava esse dispositivo legal, e sobre ele baseara o seu plano sinistro. Desceu, então, o pequeno grupo de notívagos a ladeira oriental do Monte Moriá, em cujo cimo se erguia o templo; cruzaram o vale Cedron e o arroio e encaminharam-se para a rampa oposta ensombrada de numerosas oliveiras... Iam quase em completo silêncio. Passaram ao pé dos mausoléus de Absalão e de Zacarias, que alvejavam ao clarão da lua cheia, que acabava de emergir das brumas do horizonte. Era primavera, princípios de abril. As noites eram ainda bastante frias. Havia naquela rampa uma granja, por nome Getsêmani, que quer dizer “horto de prensa de olivas”. À entrada desse bosque, disse Jesus aos seus discípulos: – Sentai-vos aqui, enquanto eu vou orar. Levou consigo para o interior apenas a Pedro, Tiago e João, os três confidentes íntimos que lhe tinham presenciado a glória no Tabor e iam nesta noite assistir à sua profunda humilhação. Entraram. Chegados ao meio do horto, sentaram-se os três sobre os blocos de pedras calcárias esparsas à sombra das oliveiras seculares. Parecia um pugilo de sonâmbulos... Os três não sabiam bem o que pensar daquela noite singular e daqueles ares de mistério do Mestre...
Reinava grande silêncio. Ergueu Jesus as mãos ao céu, enquanto os seus lábios tremiam e os olhos se arregalavam, numa expressão de terror. A sua face lívida parecia a de um defunto. Os três discípulos contemplavam, estupefatos, essa mudança do Mestre. Disse-lhes então Jesus num tom dolente e suave: – Minha alma está numa tristeza mortal. Ficai aqui e vigiai comigo... Distanciou-se deles uns cem passos, prostrou-se de face por terra e, tremendo em todo o corpo, soltava gemidos de angústia. Não se conhecia mais aquele homem intrépido e corajoso dos outros dias. O impávido herói, que marchava ao encontro da morte com passo firme e resoluto, jaz agora por terra como que aniquilado em face dos horrores de que, como sabia, estavam cheios aquela noite e o dia imediato. Era verdadeiro homem e não podia deixar de horrorizar-se ante o aspecto sinistro da morte – e morte crudelíssima em pleno vigor de seus 33 anos... Tão imensa era a angústia do seu coração, que dos lábios lhe rompeu este brado de socorro: – Meu Pai! Se é possível, passa de mim este cálice sem que eu o beba!... Perdem-se no vácuo os clamores do padecente. Nenhum coração lhe acolhe o grito de agonia... Branquejam ao luar as pedras de Getsêmani... Ciciam, ao perpassar das brisas noturnas, as folhas cinzentas das oliveiras... Chiam à surdina, pela grama do solo, as cigarras monótonas... Dormem ao pé das árvores os três discípulos que tinham sido convidados para passarem com o homem das dores... O próprio Pai celeste parece ter abandonado o seu Filho Unigênito; não lhe responde aos brados de angústia... E Jesus, depois de esperar inutilmente um eco à sua voz, acrescenta, resignado: – Não se faça a minha vontade, mas, sim, a tua. Depois deste primeiro ato do horroroso drama noturno, ergue-se e, como se tivesse medo de ficar sozinho naquela escuridão pressaga, foi ter com os seus discípulos, em busca de companhia e de lenitivo. Mas encontrou-os adormecidos. Era a reação natural do organismo; após umas horas de intensa emoção a natureza reclamava os seus direitos, os nervos exigiam repouso. Adormeceram.
Disse Jesus a Pedro e seus companheiros: – Como?... Estais a dormir? Não pudestes então vigiar comigo uma hora?... vigiai e orai para não cairdes em tentação!... É tão doloroso sermos abandonados dos nossos amigos na hora em que mais precisamos deles! Jesus sentiu o amargo dessa apatia e dessa incompreensão; mas, ainda assim, desculpou os discípulos, dizendo: – O espírito, sim, está pronto, mas a carne é fraca. Retirou-se pela segunda vez e tornou a prostrar-se de bruços, repetindo com maior insistência a mesma súplica. E o mesmo silêncio acolheu os brados da sua angústia. Não era possível que passasse dele o cálice do sofrimento e da morte. Era esta a vontade firme da natureza divina do Cristo, nem Jamais vacilou neste propósito; o que relutava era tão-somente a sua natureza humana, o sentimento natural de horror e aversão que todo homem normal experimenta em face de tão pavorosa perspectiva. Jesus era homem – homem humano e genuíno. Pela segunda vez foi procurar companhia e consolação com os seus amigos, e pela segunda vez voltou decepcionado: encontrou-os novamente submersos no sono. Então, desceu ao tenebroso abismo da agonia interior. Tamanha foi a angústia de sua alma, que o sangue confluiu para o interior do organismo, como que receoso de ser derramado naquela noite; o coração, num impulso veemente, repeliu a onda rubra para a periferia do corpo com tanta violência, que o sangue rebentou por todos os poros da epiderme, e começou a tingir as vestes do Nazareno e a correr sobre as folhas secas das oliveiras. Parecia chegada a última hora do solitário padecente do Getsêmani. Ecoou pelo silêncio do espaço noturno um grito doloroso: – Meu Pai!... Não é possível que passe de mim este cálice sem que eu o beba?... Enquanto os seus olhos arregalados interrogam a escuridão da noite e o seu peito arfa, prestes a estalar sob a veemência da agonia – eis que aparece por entre as sombras das oliveiras um mensageiro celeste, um anjo que conforta o divino mártir da solidão. Não lhe tira o cálice do sofrimento, mas dá-lhe de beber outro cálice, um misterioso antídoto da agonia. Jesus bebe o cálice da fortaleza e da esperança: queria realizar plenamente a sua natureza humana, sofrendo voluntariamente sob os auspícios do seu Cristo divino. E o coração de Jesus se acalma, e seus lábios sangrentos murmuram:
– Faça-se a tua vontade, meu Pai... Passou a crise. Desde esse momento, o Nazareno não mais vacila, não mais se queixa, não mais recua diante de sofrimento algum; aceita tudo, como se nada mais sentisse. Levantou-se da terra, foi ter com os seus discípulos e lhes disse em tom resoluto e enérgico: – Levantai-vos! Vamos! Eis que aí vem o meu traidor!
Prisão de Jesus Enquanto Jesus, às sombras do Getsêmani, lutava com os horrores da agonia, aproximava-se dele o traidor, à frente de uma quadrilha de soldados romanos, fariseus e servos do sumo sacerdote. Judas, na qualidade de amigo e confidente do Nazareno, conhecia-lhe os costumes, e sabia que ele ia passar aquela noite no Horto das Oliveiras. Resolveu, assim, executar nessa noite o seu atentado. Foi oferecer-se espontaneamente aos inimigos de Jesus e disse-lhes: – Que quereis dar-me para eu vo-lo entregar? Os sacerdotes prometem dar-lhe trinta moedas de prata: Judas aceita e fechase o negócio. Em vista deste oferecimento espontâneo do Iscariotes, resolveu o Sinédrio antecipar a prisão do odiado Nazareno, que fora marcada só para depois da páscoa judaica. A ocasião era propícia, e convinha não perder semelhante oportunidade. Reuniram, portanto, a sua gente, requisitando, além disto, um destacamento militar ao governador romano. Contavam, evidentemente, com uma forte oposição por parte dos discípulos do Nazareno. Era noite de luar. Mas à sombra das oliveiras do Getsêmani não era fácil distinguir um vulto do outro; as roupagens amplas e roçagantes usadas pelos palestinenses daquele tempo, e o pano que em pregas flutuantes caía da cabeça sobre as espáduas, e em parte sobre o rosto, não permitiam um reconhecimento rápido; e Jesus achava-se no meio dos seus discípulos. Por isso, tinha Judas combinado com os esbirros do Sinédrio esta senha: – Aquele a quem eu beijar, esse é: prendei-o e conduzi-o com cuidado. Achava-se ainda a quadrilha inimiga do lado de fora do muro, quando Judas, para não parecer caudilho dos esbirros, se adiantou a largos passos, aproximou-se de Jesus, cingiu-o nos braços e deu-lhe na face um beijo, dizendo: – Salve, Mestre!
Jesus contempla por uns momentos o semblante de Iscariotes; pela última vez se cruzam os olhos do Nazareno com os olhos do traidor; pela vez derradeira ecoa o timbre da sua voz aos ouvidos do traidor. – Amigo, a que vieste? Nenhuma resposta! Então, para mostrar a Judas que conhecia os seus planos e não fora colhido de surpresa, acrescentou Jesus: – Com um beijo entregas o Filho do Homem?!... A um sinal do traidor, avançou a quadrilha. Mas, antes de lançarem mão de Jesus, deviam convencer-se também eles de que o Nazareno se entregava livre e espontaneamente. Jesus faz questão de mostrar a todos os seus inimigos que vai morrer livremente. Perguntou, pois, aos inimigos: – A quem procurais? – A Jesus de Nazaré – responderam eles. – “Sou eu” – tornou Jesus. Eis que, no mesmo instante, todos recuaram e caíram de costas por terra. Repetiu Jesus a mesma pergunta e teve a mesma resposta. Então permitiu aos seus adversários que se levantassem. Parece que alguns dos recém-chegados estavam confusos e desnorteados com esse fenômeno estranho, e fizeram menção de prender alguns dos discípulos. Interveio, porém, Jesus com energia dizendo: – Já vos disse que sou eu; se, então, me procurais a mim, deixai em paz a esses! Os discípulos, porém, galileus fogosos e sempre dispostos a lutar, vendo que o caso se tomava sério, exclamaram: – Mestre, batemo-los à espada? Conforme menção anterior, possuíam eles duas espadas, sendo uma delas de Simão Pedro. Este, sem aguardar ordem do chefe, arrancou a espada e, vibrando-a contra o inimigo mais próximo, cortou-lhe uma orelha. Chamava-se Malco, e era servo do sumo sacerdote. Era, naturalmente, intenção do exaltado pescador galileu cortar-lhe mais, porém, no momento em que Pedro vibrava o
golpe, desviou Malco a cabeça para a esquerda, de maneira que escapou são e salvo, à exceção da orelha direita, que caiu por terra decepada. Jesus, sempre calmo e senhor da situação, atende mais ao ferido do que a si mesmo. Para evitar males maiores, deu ordem categórica a Pedro para embainhar a espada; pois, se ele quisesse defesa eficaz, disse, bem podia pedi-la ao Pai celeste, que lhe enviaria mais de doze legiões de anjos. Com esta indicação, manifesta Jesus mais uma vez a absoluta liberdade com que se entrega à morte; morre porque assim o seu Cristo o quer, mas não cai vítima de nenhuma prepotência humana; os esbirros que o prendem são simples instrumentos nas mãos de um poder superior. Depois disto, cuidou do servo ferido, e ei-lo curado no mesmo instante! Entrementes, haviam-se aproximado também os fariseus e sacerdotes, que até aí se tinham mantido a certa distância. Também eles deviam ouvir dos lábios de Jesus que ia ao encontro da morte porque ele o queria, e não porque eles o quisessem. Disse-lhes: – Como se fora a um ladrão, assim saístes a prender-me com espadas e varapaus; no entanto, dia a dia estava eu sentado no meio de vós no templo a ensinar, e não me prendestes. Mas tudo isto sucedeu para que se cumprissem as Escrituras e os profetas. Esta é a vossa hora e o poder das trevas! Dito isto, estendeu as mãos e deixou-se algemar tranquilamente. Vendo o Mestre preso, em poder dos seus inimigos, e proibida qualquer tentativa de defesa, os discípulos fugiram todos. Todos – menos um: o discípulo traidor.
A negação de Pedro Em Getsêmani, tinham todos os discípulos abandonado a Jesus e fugido. A Simão Pedro, porém, não lhe sofria o coração deixar o Mestre sozinho nas mãos dos inimigos. Por isso, foi seguindo-o de longe, de modo que não causasse reparo aos fariseus, mas não perdesse de vista a pessoa do Nazareno. Em sua alma tumultuavam os pensamentos mais desencontrados... Estava completamente desorientado... Onde ficara o poder do Mestre?... Por que se deixou prender?... E não tentaria romper os grilhões?... Pedro esperava a cada momento algum prodígio do poder do Nazareno. Chegou à casa de Anás e Caifás. O texto evangélico faz crer que as residências desses dois homens poderosos se achavam uma perto da outra, separadas apenas por um pátio interno, para o qual dava ingresso um portão da rua. Em princípios de abril torna-se, por vezes, sensível o frio palestinense. E era pouco depois da meia-noite. Por isso, tinham os soldados aceso um braseiro no pátio, e estavam em derredor, uns sentados, outros em pé, aquecendo-se. Pelo caminho, encontra-se Simão Pedro com um dos seus colegas, um discípulo de Jesus, cujo nome ignoramos. Teria sido João? O evangelista diz apenas que era “conhecido do pontífice”. Parece ter sido um homem de prestígio social em Jerusalém e que se dava com a família do sumo sacerdote. Este discípulo entrou no pátio interno. Mas, quando verificou que o companheiro ficara do lado de fora, tornou a sair, falou com a porteira e introduziu a Pedro. A empregada da casa, naturalmente, analisou com os olhos cheios de curiosidade a fisionomia do velho pescador da Galiléia. Nada disse, porém, em atenção àquele discípulo conhecido do pontífice. Simão Pedro, ansioso por ver que fim levaria o processo contra Jesus, achou que não podia fazer coisa melhor, para justificar a sua presença e disfarçar o seu interesse, do que fingir indiferença e associar-se aos soldados que se agrupavam em torno da fogueira acesa no pátio. O outro discípulo, parece, tornou a retirar-se do pátio, escapando assim à vergonha de assistir à cena que logo após se seguiu. A porteira da casa de Anás não tirava os olhos de cima de Pedro desde que ele pusera os pés no pátio. Mal se ausentara aquele outro discípulo, deixando o
pescador no meio dos soldados, animou-se ela a acercar-se do galileu, mediuo com um olhar inquisitorial, encarou-o e disse: – Acaso és também tu um dos discípulos daquele homem? Simão Pedro, perplexo e confuso, sem refletir um instante, respondeu afoitamente: – Não sou! Ela, porém, insistiu dizendo: – Sim, senhor! Tu também estavas com Jesus de Nazaré! Não fossem os soldados em derredor, que importariam a Pedro as palavras de uma mulher, de uma simples criada? Mas, como todos aqueles olhares convergissem sobre ele, persistiu Pedro na sua negação, dizendo: – Não conheço esse homem; nem sei o que estás dizendo!... Coisa tão pueril só profere quem não sabe o que diz, de tão perturbado: não sei o que estás dizendo... A situação tornava-se cada vez mais crítica. Pedro achou bem avisado retirar-se de ao pé da fogueira e dirigiu-se para o portão da rua, onde ficou por algum tempo na escuridão, sozinho consigo e com a sua consciência torturada. De repente, ouviu cantar um galo. Devia, pois, ser entre uma e duas horas da noite. Pedro estremeceu, lembrando-se de umas palavras misteriosas do Mestre. Depois de algum tempo voltou para junto da fogueira, na esperança de que agora o deixassem em paz. Enganou-se! Por entre os clarões bruxuleantes do fogo, outra criada reconheceu a fisionomia de Pedro e, impertinente como a primeira, encarou-o e disse aos soldados circunstantes: – Também este estava com Jesus de Nazaré. E logo a soldadesca apoiou, dizendo: – É verdade, também tu és um deles! Respondeu Pedro e jurou que não era discípulo de Jesus e que não sabia de quem se tratava; e, a fim de aparentar calma e indiferença, sentou-se ao braseiro e, estendendo as mãos, pôs-se a aquecer-se tranquilamente, como se “aquele homem” lhe fosse a coisa mais indiferente do mundo.
De repente, observou um dos soldados: – Sim, senhor, tu também és um deles! Pois és galileu; a tua própria maneira de falar te dá a conhecer! É que os galileus tinham o seu sotaque regional, o seu modo peculiar de se exprimir. Pedro sentia o solo fugir-lhe debaixo dos pés, quando interveio outro soldado, levando ao auge a sua perturbação. Era parente daquele MaIco a quem Pedro cortara a orelha no Getsêmani. Reconhecendo, ao clarão do braseiro, a fisionomia do galileu, exclamou: – Pois não te vi eu em companhia dele no horto?... O interpelado via-se já arrastado ao tribunal e condenado à morte. Fez uma tentativa extrema para fugir à morte, como ele entendia, e começou a jurar que não conhecia absolutamente aquele homem de Nazaré, e chamou sobre si a maldição do céu, se é que era do número dos discípulos dele. Fez-se um momento de silêncio. Nisto se ouviu, pela segunda vez, o canto noturno do galo. Enquanto lá fora, no pátio, se desenrolava esta cena, estava Jesus diante do Tribunal de Anás, sogro de Caifás e ex-pontífice, que interrogava o acusado a respeito da sua doutrina e dos seus discípulos. Que de louvável poderia Jesus dizer dos seus discípulos? Se todos o haviam abandonado covardemente?... Preferiu silenciar este ponto, limitando-se a frisar o caráter público e notório da sua doutrina; não era nenhum agitador, nenhum fundador de sociedade secreta: – Tenho ensinado em público – respondeu –, tenho falado no templo e na sinagoga onde se congregam todos os judeus, e nada disse às ocultas. Por que me interrogas? Interroga aos que me ouviram... Era sensata e reverente a resposta. Nenhum acusado tem obrigação de forjar armas contra si mesmo; as testemunhas é que devem depor contra ele. A estas palavras, um dos servos de Anás deu uma bofetada em Jesus, dizendo: – É assim que respondes ao pontífice? Volveu-lhe Jesus, com firmeza e calma: – Se falei mal, prova o mal; se falei bem, por que me feres?...
Terminado o interrogatório, foi Jesus conduzido pelo pátio interno que separava a residência de Anás da de Caifás. Ao passar rente à fogueira dos soldados cravou um olhar silencioso em Pedro; não disse nada – mas Pedro ouviu tudo, na sua consciência atormentada:.. Como?... não me conheces?... não disseste: tu és o Cristo, o filho de Deus vivo?... não disseste, há pouco, que estavas disposto a ir comigo ao cárcere e à morte?... Pedro compreendeu tudo... Saiu do pátio, internou-se na escuridão e chorou amargamente...
Jesus diante do Sinédrio Seria pelas três horas da noite quando Jesus foi conduzido da casa de Anás pelo pátio interno rumo a um cárcere, onde devia aguardar a sessão do tribunal em casa do sumo sacerdote Caifás. Bem de madrugada, reuniu-se o Conselho, ou Sinédrio, e Jesus foi introduzido na sala. Ao longo das paredes corriam filas de cadeiras para os membros do tribunal; de um lado, num ponto mais elevado, via-se o presidente Caifás sentado na sua cátedra. Jesus ficou em pé no meio da sala. Para salvar as aparências legais, procedeu o presidente à inquirição das testemunhas arroladas no processo improvisado contra o rabi de Nazaré. Apresentaram-se diversos homens e começaram a fazer carga a Jesus de alguns crimes de ordem religiosa, porque para o Sinédrio toda a questão se resumia nisto: o Nazareno afirma ser o Messias anunciado na lei antiga, o Filho de Deus. Mas não havia concordância entre os vários depoimentos; uns contradiziam aos outros: estes negavam o que aqueles afirmavam e, segundo a lei, não tinha valor o depoimento que não tivesse a seu favor ao menos duas testemunhas concordes. A situação do Sinédrio começava a tornar-se penosa; havia instaurado um processo; o réu aí estava, mas faltavam as testemunhas, e ninguém sabia ao certo qual era propriamente o delito do profeta de Nazaré. Por alguns momentos parecia dissipar-se essa pesada atmosfera de dúvida e indecisão, quando se apresentaram, em atitude firme e resoluta, duas testemunhas pedindo a palavra. Obtida a permissão de Caifás, disse o primeiro, apelando para conhecimento de ciência própria, e envolvendo no seu depoimento a responsabilidade do colega: – Nós mesmos ouvimos esse homem dizer: Destruirei este templo, obra de mãos humanas, e em três dias edificarei outro, que não será obra de mãos humanas. Mas nem as palavras, nem o sentido delas eram exatos. Quando, por ocasião da purificação do templo, Jesus proferira palavras análogas, não se referia ao templo de Jerusalém, como lembra expressamente o historiador, mas sim ao
templo vivo do seu corpo, quer seria demolido por mãos alheias e reedificado pelo poder do Cristo. Nem dissera “destruirei”, mas “destruí” este templo. Mal terminara a primeira testemunha de proferir esse depoimento, estigmatizando Jesus como inimigo do santuário nacional de Israel, quando interveio a segunda, protestando contra o colega, corrigindo e modificando o teor das palavras. Desvaneceu-se mais essa última esperança; depoimentos tão vagos e discordantes não tinham valor algum. Houve momentos de silêncio. O presidente estava inquieto e nervoso. Os sinedristas entreolhavam-se, indecisos. Entretanto Caifás não era homem para se deixar intimidar por tão pouco, e provou nesse dia que era provecto discípulo do velho e astuto Anás. Desceu da cátedra, colocou-se no centro da sala, diante de Jesus, e disse: – Não ouves o que esses depõem contra ti? Jesus, porém, permaneceu calado. Tinha dito tudo o que tinha a dizer. Então assumiu Caifás uma atitude teatral; em todo o esplendor do seu ornato pontifício, com voz majestosa e lenta, erguendo ao céu a mão direita, exclamou: – Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos diga se tu és o Cristo, o Filho de Deus bendito! Respondeu Jesus: – É como dizes: eu o sou! E, como que para tirar qualquer dúvida sobre a significação exata da expressão “Filho de Deus”, acrescenta Jesus: – Eu vos digo que mais tarde vereis o Filho do Homem sentado à direita de Deus todo-poderoso, vindo sobre as nuvens do céu. Era uma alusão à profecia de Daniel que deste modo descrevia a vinda do Cristo no fim do mundo para julgar os vivos e os mortos. Alguns dos membros do Sinédrio, como que incapazes de compreender semelhante afirmação, interpelaram Jesus, insistindo: – Logo, tu és o Filho de Deus? E tornou Jesus no mesmo tom firme e imperturbável: Eu o sou!
Caifás agarrou com ambas as mãos a costura da sua túnica à altura do peito – e soou pelo silêncio da sala o som agudo de um tecido violentamente rasgado! Rasgar a túnica era sinal de dor suprema, de um coração despedaçado de dor. – Que necessidade temos ainda de testemunhas – bradou com voz patética. – Vós mesmos acabais de ouvir a blasfêmia!... Que vos parece?... E todos, a uma só voz clamaram: – É réu de morte! É réu de morte! Tanto a teologia da sinagoga de Israel como a das igrejas cristãs parecem identificar “Deus” com “Divindade”. O Cristo nunca se identificou com a Divindade, que ele chama “Pai”, mas disse que era Deus, ou Filho de Deus, que designa uma emanação individual da Divindade Universal. “Eu e o Pai somos um – mas o Pai é maior do que eu.” O castigo da blasfêmia era a morte. Jesus é considerado blasfemo por se ter identificado com Deus. Mais tarde, diante de Pilatos, o Sinédrio torna a jogar com este argumento, dizendo: – Nós temos uma lei, e segundo a lei deve morrer, porque se fez Filho de Deus!
O fim do traidor Após a condenação tumultuosa por parte do Sinédrio, foi Jesus entregue à mercê dos caprichos da plebe culta e inculta. “Os homens que traziam preso Jesus faziam escárnio dele e maltratavam-no. Cuspiam-lhe na face, vendavam-lhe os olhos, davam-lhe no rosto e diziam: – Adivinha quem foi que te deu! E muitas outras afrontas lhe faziam.” Sabiam aqueles homens que o Nazareno tinha fama de taumaturgo e de profeta, e começaram a ludibriar esses seus dons, como se se tratasse de um vulgar prestidigitador. Entrementes, correra por todos os quadrantes da cidade a sensacional notícia de que Jesus estava preso e acabava de ser condenado pelo Sinédrio. Chegou também aos ouvidos de Judas Iscariotes – e o traidor estremeceu! Como se explica isso? Não contava Judas com esse desfecho? Estaria ele convencido de que o Mestre se libertaria dos grilhões e escaparia à morte por meio de um daqueles prodígios que todos lhe conheciam? E ele, o astucioso traidor, faria bom negócio ficando com as trinta moedas de prata?... O certo é que Judas sentiu repentinamente despertar a voz da consciência e a gravidade do passo que dera... Mas, em vez de ir a miséria ter com a misericórdia, dirigiu-se a outra miséria, procurou os cúmplices do seu pecado e diante deles fez confissão do seu delito, exclamando: – Pequei, entregando sangue inocente!... Por entre risadas de escárnio, responderam-lhe os sacerdotes e fariseus: – Que temos nós com isto? Lá contigo mesmo! É esta a lei fatídica do mal e a lógica do pecado: o pecador despreza o colega pecador; aceita a traição mas despreza o traidor; não há solidariedade entre os maus.
Quando Judas viu que já não tinha amigo no mundo – arrancou do bolso o dinheiro, arrojou-o para o interior do templo e, dirigindo-se à rampa do vale de Hirom , daí se precipitou ao abismo. Os chefes do templo, vendo as moedas de prata esparramadas pelo pavimento, disseram, entre si, como se fossem homens de consciência delicada: – Não é lícito deitá-Ias ao cofre do templo, porque é preço de sangue. É a lógica da hipocrisia! Condenar à morte um inocente não é pecado para esses sepulcros caiados, mas recolher ao cofre sagrado aquele dinheiro, isto sim seria sacrilégio. Que destino deram, então, àquele dinheiro? Compraram com ele um campo para servir de cemitério aos forasteiros e peregrinos que morressem em Jerusalém.
Diante de Pilatos A sentença condenatória do Sinédrio não tinha força legal antes de ser ratificada pelo representante do governo romano, que nesse tempo era Pôncio Pilatos. Convém conhecermos mais de perto sua vida, sua pessoa, e que papel tão importante desempenha no drama da morte de Jesus. Era Pilatos, provavelmente, oriundo de uma família de libertos, ou escravos alforriados por algum patrício romano. O certo é que o cargo de procurador de província não costumava ser exercido por pessoas da alta aristocracia no império dos Césares. A darmos crédito à tradição e ao Evangelho de Nicodemos, chamava-se sua mulher Cláudia Prócula. Seria ela descendente da célebre família Cláudia? Ou teria adotado apenas o sobrenome de seus senhores e patrões? O Evangelho de Mateus menciona apenas de passagem, e num incidente misterioso, a esposa de Pilatos, sem contudo lhe dizer o nome. Pôncio Pilatos exerceu o cargo de procurador (ou governador) da Judéia no período de 26 a 37 da nossa era, tendo por superior imediato o pró-pretor (ou presidente) da Síria. Desde o princípio do seu governo mostrou-se áspero e intolerante com os judeus. Quando os seus antecessores, por motivos de diplomacia e deferência com os sentimentos do povo teocrático, mandavam as tropas entrar em Jerusalém sem os distintivos do poder romano, desprezou Pilatos essas precauções – e um dia amanheceu a capital da Judéia com um destacamento de soldados que ostentavam as insígnias dos Césares e as águias argênteas de Roma! Indignados, enviariam os judeus uma delegação para Cesaréia, onde residia habitualmente o procurador romano, protestando contra semelhante injúria e exigindo a retirada das insígnias. Cinco dias deixou-os Pilatos clamar inutilmente; no sexto dia mandou dispersar os descontentes à força. Os judeus, porém, não se renderam, declarando que preferiam morrer a tolerar aquela violação da lei de Moisés, que não admitia ídolos na cidade santa. Pouco depois romperam novos tumultos em Jerusalém. É que Pilatos lançara mão do dinheiro sagrado do templo, chamado corban, empregando-o na construção de um aqueduto destinado a trazer água à capital das regiões do sul. Os judeus viam neste emprego do dinheiro sagrado para fins seculares
uma profanação sacrílega e, por ocasião de uma visita do governador a Jerusalém, cercaram o pretório com grande tumulto e vozerio. Pilatos mandou ao meio deles soldados disfarçados, que mataram diversos e dispersaram os restantes. O aqueduto foi terminado, mas a animosidade contra o representante de Roma crescia mais e mais. Um vestígio dessa crueldade de Pilatos ficou imortalizado nas páginas do Evangelho; refere o historiador que, certo dia, foram ter com Jesus alguns homens, contando-lhe que o governador trucidara diversos galileus por ocasião do sacrifício, misturando o sangue deles com o sangue das vítimas. Em outra ocasião, suspendeu o procurador no Castelo Antônia, rente ao templo, escudos votivos do Imperador de Roma. Reuniram-se então os próceres de Jerusalém, juntamente com os filhos de Herodes, e enviaram a Tibério César uma queixa contra o governador da Judéia. Tibério deu ordem para que fossem retirados os escudos do castelo e transferidos para o templo de Augusto, em Cesaréia. É fora de dúvida que a memória dessas e de outras ocorrências análogas repercute nas ameaças que os judeus fazem a Pilatos, no processo contra Jesus: “Se soltares esse homem, não és amigo de César!” – levaremos a Roma uma nova denúncia sobre as tuas arbitrariedades. Filosoficamente era Pilatos um agnóstico ou um céptico. Os seus estudos, certamente, não eram muitos, nem profundos; de uma coisa porém se convencera ele: que o homem não pode chegar a um conhecimento certo da verdade; que a verdade é uma coisa relativa que cada um concebe e enxerga conforme as suas disposições subjetivas; uma verdade objetiva e de valor imutável parecia impossível ao céptico de Roma; daí a observação que, com um gesto de pouco caso e desdenhosa sobranceria, faz a Jesus: “Que coisa é a verdade?”... Em dias de grande concurso popular, transferia o procurador a sua residência, da capital marítima de Cesaréia para Jerusalém, a fim de assegurar a ordem, pública. Ocupava geralmente o “Palácio de Mármore”, suntuoso edifício construído pelo grande mecenas Herodes I, com esplêndidas colunatas de mármore branco, estátuas gregas, arabescos de ouro, fontes e jardins e todo o conforto que a fortuna e arte podem proporcionar. Outras vezes, ficava o governador residindo no Castelo Antônia, baluarte encravado no ângulo noroeste da muralha do templo e dedicado a Marco Antônio4. Nessa fortaleza e atalaia se encontrava permanentemente uma guarnição romana, sempre alerta para restabelecer a ordem pública, quando perturbada nas ruas da cidade ou nos átrios do templo. 4. Castelo, em latim, é de gênero feminino: arx. Daí Arx Antonia, que em nossa língua passou a dar: Castelo Antônia.
A narração evangélica faz supor que, nos seguintes acontecimentos, Pilatos residisse no Castelo Antônia, que também se chamava Pretório. Compreendia este baluarte, além das plataformas e dos compartimentos superiores, um vasto terreiro ao ar livre, circundado de pórticos e pavimentado de ladrilhos de cor vermelha. Comunicava-se com as galerias do Pretório por meio de escadas de mármore. Segundo o Evangelho, tinha essa área o nome grego de Lithóstrotos, que quer dizer empedrado; ao passo que em hebraico se chamava Gábbota, que significa altura, por se achar elevada sobre o nível do solo. No centro da área estava uma tribuna móvel, denominada bema. Tal era o cenário em que se desenrolou o memorável drama da história da humanidade. Quanto a Pilatos, dizem documentos antigos que no ano 37, acusado de graves arbitrariedades cometidas na Samaria, foi banido pelo Imperador Romano para o sul da França, onde acabou suicida.
Jesus diante de Herodes Mal abrira Pilatos os portais do Pretório, apresentaram-se os sumos sacerdotes com Jesus. O governador da Judéia não podia ter deixado de ouvir falar nesse homem singular que, havia três anos, cruzava as terras da Palestina, causando sensação geral. Ainda naquela mesma noite, alguns dos soldados romanos que tinham estado no Getsêmani lhe haviam dado notícia da prisão do Nazareno. Era véspera da Páscoa judaica. Os judeus tinham-se purificado para as solenidades litúrgicas e não podiam entrar na residência de um “gor” (pagão) sem se “contaminarem” ou tornarem-se legalmente impuros. Por isso, pediram os sinedristas a Pilatos que viesse atendê-los fora do recinto do Pretório romano. Bastante enfadado e de mau humor, o romano, considerado impuro por aquela gente, dirigiu-se à entrada do Pretório e perguntou-lhes desabridamente: – Que acusação tendes contra esse homem? Exasperados, responderam os sacerdotes: – Se ele não fosse um malfeitor, não to entregaríamos! O pagão pareceu suspeitar de que se tratava apenas de questões de ordem religiosa. Por isso, disse-lhes em tom de pouco caso: – Pois tomai-o vós e julgai-o segundo a vossa lei. Só então saíram os acusadores com o verdadeiro motivo que os trazia à presença da autoridade romana: – A nós não nos é permitido matar alguém – responderam, mau grado seu, confessando a sua dependência do governo estrangeiro. E logo acodem com três acusações: – Encontramos este homem a amotinar o povo, a proibir de dar tributo a César, e a afirmar que ele é o Cristo, o rei. Revelam estas palavras toda a astúcia daquela gente. Na sessão do Sinédrio ninguém se lembrara de assacar ao Nazareno semelhantes crimes políticos;
tinham-no declarado réu de morte a título de blasfemo. Diante da autoridade civil, porém, em face do representante de César, vêm com acusações de caráter político-social. O governador refletiu por uns momentos. Depois, levando consigo a Jesus, retirou-se para o interior da sala do Pretório, a fim de conferenciar a sós com o acusado. Com a perspicácia característica do romano, apanha Pilatos, de relance, a alma da questão: as pretensas aspirações realistas de Jesus. Porque, se de fato andasse com idéias de realeza, seria lógico que procurasse sublevar o povo e abrisse uma campanha contra os exatores do tributo romano. O procurador de César deixou, pois, de parte, os dois primeiros capítulos da acusação e limitou-se a investigar o ponto principal: a realeza de Jesus. – És tu rei dos judeus? – perguntou-lhe, fitando-o atentamente. Perguntou Jesus: – É de ti mesmo que perguntas isto, ou foram outros que to disseram de mim? Pilatos sentiu-se um tanto ofendido com essa contrapergunta: o acusado parecia querer esquivar-se à resposta e ladear a questão. – Porventura sou eu algum judeu? – respondeu bruscamente; judeu, que se ocupasse com questiúnculas da lei mosaica? E acrescentou com toda a clareza e concisão: – Tua gente e os sacerdotes te entregaram às minhas mãos; que fizeste? Retorna Jesus à idéia da sua realeza e responde com calma e firmeza: – O meu reino não é deste mundo. Se deste mundo fosse o meu reino, os meus partidários, sem dúvida, pelejariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Entretanto, o meu reino não é daqui. O céptico de Roma ouve falar de um “reino que não é deste mundo”, e talvez lhe tenha acudido à mente o que referiam as fábulas da mitologia sobre reis e príncipes fantásticos. Sabia também que o Nazareno não permitira, na noite anterior, que os seus discípulos o defendessem à força de espada. Fosse como fosse, de uma coisa se convenceu Pilatos: que o tal reino ao qual se referia o acusado não punha em risco a soberania dos Césares; eram sonhos inofensivos e divagações metafísicas. Entretanto, para não deixar pairar a menor sombra sobre o caráter da pretensa realeza do Nazareno, insistiu, perguntando: – Logo, tu és rei? Respondeu-lhe Jesus:
– É como dizes; eu sou rei. Foi por isso que nasci e vim ao mundo, para dar testemunho à verdade. Todo aquele que é filho da verdade ouve a minha voz. Estas palavras ainda mais confirmavam em Pilatos a convicção de que a realeza do réu era coisa inócua; dizia-se ele rei da verdade, quando ninguém sabia que coisa era a verdade, e se tal coisa existia: Desde então considerou a Jesus como um filósofo que vivia nas regiões de um mundo ideal e nenhum perigo acarretava ao Império Romano. Ao ouvir duas vezes a palavrinha “verdade”, Pilatos esboçou um sorriso céptico e, encolhendo os ombros com desdém, observou: – Que coisa é a verdade?... E logo, sem aguardar a resposta à pergunta, tornou a sair do Pretório e disse aos sacerdotes e à multidão: – Não encontro culpa neste homem. Foi óleo no fogo! Como? O procurador não achava culpado aquele homem? E estava com vontade de soltá-lo? Nunca! Desabou então sobre a cabeça do Nazareno uma saraivada de acusações e impropérios. Enquanto lá fora, na rua, tumultuavam caoticamente os acusadores, impossibilitando ao juiz qualquer palavra serena, dirigiu-se este a Jesus e perguntou-lhe, com ligeira inflexão irônica na voz: – Não ouves de quanta coisa te fazem carga?... Jesus, porém, permaneceu calado. Pilatos não cabia em si de admiração. Aquela atitude do réu era-lhe inexplicável. Por via de regra, os acusados falavam muito, gesticulavam, protestavam inocência, revoltavam-se contra as acusações, rebatendo-as uma por uma, e mal davam ocasião ao juiz para fazer uma observação sensata. Este não. Ouvia com a maior calma do mundo todos os horrores e crimes que lhe imputavam. Não dava um sinal de contrariedade, não proferia uma palavra de protesto, não tentava sequer uma explicação, como se não fosse ele o alvo de todas essas acusações, mas algum homem a cem léguas de distância. Pilatos, de admirado que estivera a princípio, começava a sentir um secreto terror em face desse homem misterioso. Estava convencido da sua inocência, e resolvido a pô-lo em liberdade. Entrementes, lá do fundo estrugiam sem cessar as mesmas acusações: “Ele amotina o povo, desde a Galiléia até a Judéia!...”
Pilatos ouviu com mais atenção: desde a Galiléia?... Então esse homem era galileu? Informou-se a respeito e apurou que, de fato, assim era: Jesus era da jurisdição de Herodes. E uma idéia feliz passou pela mente do governador: remeteria o réu a Herodes, tetrarca da Galiléia, que, precisamente nesses dias, se achava em Jerusalém para assistir às solenidades pascais. Havia tempo que os dois soberanos viviam em discórdia. A ocasião era propícia para fazerem as pazes. Herodes se sentiria honrado com a atenção de Pilatos, e este se veria livre do processo, que tão ingrato lhe era. Havia anos que o tetrarca da Galiléia vivia em adultério com Herodias, sua cunhada, mulher de Filipe. O Precursor de Jesus caíra vítima das intrigas dessa mulher cruel e desse homem covarde. Jesus comparece ante Herodes. Herodes pertencia àquela categoria de homens que mais crêem nas palpáveis realidades da matéria do que na imponderável ideologia do espírito; homens que se timbram de espíritos emancipados e se riem da crença num mundo sobrenatural – mas nem por isso deixam de se interessar por toda espécie de ocultismo. Para Herodes não passava o Nazareno de um prestidigitador, um mago. Os prodígios que dele ouvira contar denotavam a existência de virtudes estranhas, e devia ser interessante assistir à exibição de uns fenômenos mágicos ou ocultistas. O tetrarca já prelibava a hora que lhe iam proporcionar as habilidades do famoso taumaturgo de Nazaré. Convocou, então, a gente da corte, a guarda real e, ladeado de Herodias e de Salomé, a graciosa bailarina, sentou-se no trono, na espaçosa sala de audiência, esperando pela chegada do Nazareno. O Nazareno apareceu cercado dos seus inimigos. Teve ordem de colocar-se no meio da sala, perto do rei, o qual, depois de algumas frases elogiosas, o convidou a exibir diante dele algum daqueles portentos sensacionais com que, havia três anos, deslumbrava todo o país. Possivelmente, mandou o tetrarca trazer um vaso com água, pedindo a Jesus que o convertesse em vinho. Jesus ouviu tudo – mas não respondeu uma só palavra... Imóvel como uma estátua, sereno e calmo, de olhos baixos e mãos algemadas, deixou desabar sobre si toda aquela verborréia do régio palrador.
Apesar de todos os recursos da sua dialética e da sua astúcia, não conseguiu aquela “raposa” arrancar uma sílaba dos lábios do Nazareno; não chegou a ver-lhe a cor dos olhos, não chegou a ouvir-lhe o timbre da voz... O Sermão da Montanha fora sublime – mais sublime, porém, era o sermão deste silêncio. Era a única resposta digna que a pureza podia dar à luxúria! Não é o mutismo da teimosia e do despeito, mas é o silêncio da verdade. Herodes, habituado a ver cumpridos todos os seus caprichos, estava indignado, não pôde gozar aquela hora que se lhe afigurava tão interessante e divertida; pela primeira vez um súdito seu se negava a servir de joguete às veleidades da sua majestade real. Que fazer? Fez o que se devia esperar: ridicularizou Jesus. Pilatos era um pagão ignorante, mas não propriamente um homem frívolo; votava profundo respeito a Jesus. Para Herodes, porém, o Nazareno não passa de um pobre idiota, mais digno do hospício que do patíbulo; nem mesmo sabe responder às perguntas que lhe são feitas; porta-se como um que não atina com o sentido das palavras. Resolveu, pois, o tetrarca dar expressão ao despeito que lhe fervia na alma: mandou buscar um farrapo branco e lançá-lo aos ombros do Nazareno. Naquele tempo, o pretendente a algum cargo público costumava vestir uma espécie de túnica branca e com ela se apresentava em público; era então “candidatos” (branqueado). Ora, sabendo Herodes que Jesus se intitulara rei, entendeu de fazer espírito e parodiar a candidatura dele; cobrindo-o com aquele manto branco e mandando-o pelas ruas da capital, por entre as gargalhadas da plebe, culta e inculta, e as valas do vulgacho sempre ávido de sensação. Em face da concorrência de milhares de peregrinos de fora, que vinham assistir às solenidades pascais, deve ter sido este o primeiro carnaval que se celebrou no mundo, tanto mais que incidiu na primeira sexta-feira santa e teve por organizadores um rei homicida, uma rainha adúltera e uma jovem dançarina da corte, cúmplice da morte de João. Assim se inaugurou dignamente essa série de cortejos carnavalescos que através dos séculos viriam tripudiar sobre a moral do Evangelho do Cristo. Voltou então Jesus ao Pretório romano. “E neste mesmo dia”, adverte o evangelista significativamente, “tornaram-se amigos Pilatos e Herodes, quando até aí tinham sido inimigos um do outro.”
Jesus ou Barrabás? Aproximava-se do Pretório romano o estranho “corso carnavalesco” patrocinado por Herodes. Figurava como “palhaço” Jesus, o taumaturgo de Nazaré. O tetrarca sabia retribuir gentilmente a atenção do governador e pagar obséquio com obséquio. Pilatos percebeu de longe a algazarra da plebe a arrastar pelas ruas da capital aquele homem singular. Via frustrado o seu plano. A velha “raposa” da Galiléia revelara-se mais astuta do que o procurador de Tibério César. Por bem ou por mal, teve o romano de continuar o ominoso processo contra o Nazareno, do qual se julgava livre. Inteirado do que se passava, e sabedor de que os sacerdotes e magistrados judeus não poriam pé na residência de um goim, para não se contaminarem, foi Pilatos atendê-los à entrada da extensa área do Lithóstrotos. Começou a falar-lhes em tom persuasivo e calmo, dizendo: – Apresentastes-me este homem como sendo amotinador do povo. Ora, submeti-o a um interrogatório em vossa presença e não encontrei fundamento em nenhuma das acusações que lhe fazeis, tampouco Herodes, por sinal que no-lo devolveu. Vede que nada se apurou contra ele que merecesse a morte. Mandá-lo-ei, pois, castigar e pôr em liberdade. Tal a linguagem serena e calma do romano. Entretanto, estas palavras encheram de furor os adversários do Nazareno. Estavam eles a protestar em altos clamores quando se aproxima, por uma das ruas laterais, um pelotão de homens que pareciam ter muita pressa. Dirigiramse a Pilatos e pediram-lhe que lhes soltasse um dos presos retidos nas cadeias públicas, conforme o costume vigente. Porque desde a libertação da escravidão do Egito, e em grata recordação das misericórdias de Deus, costumavam os judeus, em vésperas da Páscoa, pedir a liberdade para um dos criminosos encarcerados. A dominação romana respeitava essa praxe, e competia ao governador proceder às formalidades legais para restituir a liberdade ao escolhido do povo. Mal se apercebeu Pilatos da intenção dos recém-chegados, quando lhe passou pela mente uma idéia salvadora, como ele entendia. Antes que eles
designassem a pessoa do libertando, antecipou-lhes o governador a palavra e espontaneamente propôs um candidato da sua escolha pessoal – Jesus de Nazaré. Jazia naquele tempo, nos cárceres de Jerusalém, um famigerado malfeitor cuja vida era tão feia como o seu nome – Barrabás. Cometera crime de homicídio por ocasião de uma sedição, refere Marcos; era ladrão, acrescenta João; chefe de bandidos, completa Mateus. Convencido do ódio e da má-fé dos sacerdotes e magistrados, resolveu Pilatos apelar para o bom senso do povo, em cujo seio o Nazareno contava com numerosos amigos e adeptos, máxime entre os galileus. Perguntou-lhes, então: – Qual dos dois vós quereis que solte? Barrabás ou Jesus, que se chama o Cristo? Momento histórico! O representante oficial de Tibério César apela da sentença do Sinédrio para um júri do povo de Israel. Pró ou contra o Cristo? Institui um plebiscito público para saber quem deve ser liberto: Jesus ou Barrabás; o autor da vida ou o autor de muitas mortes; o santo ou o celerado; o benfeitor do povo ou o salteador da Judéia... Mas, antes que se resolvesse este primeiro caso, ocorre outro incidente, sumamente misterioso. Aparece diante de Pilatos um mensageiro enviado pela esposa do governador, com este recado urgente: – Nada tenhas que ver com esse justo, porque muito padeci hoje, em sonhos, por causa dele... Em sonhos?... vindouras?...
Alguma
visão?...
Um
pressentimento
de
ocorrências
Cláudia Prócula tinha ouvido, sem dúvida, da prisão do célebre rabi da Galiléia; sabia que seu marido pusera à disposição do Sinédrio um destacamento de soldados; nem ignorava que nessa manhã fatídica fora ele chamado muito cedo para processar aquele homem singular, de cuja fama andava cheio o país. É possível que algumas das discípulas do Mestre tenham dado notícias mais minuciosas à esposa do governador romano. E não teria ela ouvido do prodígio que o taumaturgo realizara na pessoa de um dos servos do centurião de Cafarnaum, oficial de Pilatos? O certo é que, com aquela intuição característica da alma feminina, Cláudia Prócula sentia ou adivinhava que não se tratava de um criminoso vulgar, e que seu esposo estava a pique de se envolver num delito monstruoso. Receia pela sorte do marido e inquieta-se pela pessoa do acusado. Não lhe era possível,
nessa ocasião, falar pessoalmente a Pilatos; o seu comparecimento ao Pretório só teria agravado a situação; nem podia chamar o marido para casa. Mandoulhe, pois, um recado urgente – um insistente brado de alarme, uma defesa discreta que a mulher pagã faz de um homem que os sacerdotes de Israel condenavam como blasfemo. Não sabemos qual a resposta que Pilatos deu à advertência da esposa solícita. O tempo urgia. O tumulto e o vozerio da praça não lhe permitiam uma reflexão serena e calma. – Fora com este! Solta-nos Barrabás! – tais eram os gritos que cruzavam de todos os lados. Falhara o apelo para o povo! O incidente com o recado de Cláudia Prócula dera tempo aos inimigos de Jesus para agitarem as massas populares, concitando-as a pedirem a liberdade para Barrabás e a morte para Jesus. Se mais numerosos tivessem sido, nessa hora matutina, os galileus, e menos avultado o número dos judeus, talvez prevalecesse o bom senso e a gratidão daqueles sobre o ódio e a paixão destes últimos. É próprio das multidões populares deixarem-se sugestionar pelas palavras corajosas e pela atitude decidida de um pugilo de homens audazes. Além disto, milhares de judeus dependiam das boas graças dos chefes da sinagoga, e receavam incompatibilizar-se com os mesmos. Entretanto, a razão mais profunda que converteu as hosanas do domingo no cruciato da sexta-feira foi a atitude inexplicável de Jesus. Como de um golpe parecia ele despojado dos seus poderes taumaturgos. Apático e sem uma tentativa de resistência, deixava-se arrastar de tribunal em tribunal; tolera que o injuriem, esbofeteiem e caluniem de todos os modos. A cada momento esperavam os bem-intencionados uma intervenção divina, algum milagre que de repente fulminasse os adversários do Nazareno. E nada disto aconteceu. Acabaram por convencer-se de que o Sinédrio tinha razão: Jesus não era o Messias prometido; os seus milagres não passavam de portentos mágicos. Deus mesmo o tinha abandonado às mãos dos seus inimigos... O povo é assim; não se guia tanto pelas razões e raciocínios como pela força da impressão momentânea e pela violência brutal dos fatos – e todos os fatos pareciam depor contra Jesus.
Pilatos, convencido da inocência de Jesus, tenta mais uma vez libertá-lo, apelando para a vontade do povo, em vez de obedecer ao imperativo da consciência e aos ditames da justiça: – Que farei, pois, de Jesus, que se chama o Cristo? – Crucificai-o! Crucificai-o! Pilatos, porém, não se rende. Torna a proclamar a inocência do Nazareno, perguntando ao povo: – Mas que mal fez ele? Como posso crucificar um inocente? Eles, em vez de responderem à pergunta, repetem a grita furiosa: – Crucifica-o! Crucifica-o!
Flagelação Pela quinta ou sexta vez declara o governador romano que não encontra culpa em Jesus de Nazaré e, renegando todos os ditames da lógica e da justiça, conclui: – Por isso, mandá-lo-ei açoitar e pôr em liberdade. Por isso? Por não encontrares nele culpa alguma, por isso o mandas açoitar? Que lógica é essa, Pilatos? Se ele é inocente, só poderás pô-lo em liberdade, mas não condenar a tão horroroso tormento. Protestam contra isto o bom senso, a tua consciência e as próprias leis do Império Romano! *** Três evangelistas referem a flagelação de Jesus: e todos eles com palavras brevíssimas; parecem querer fugir dessa cena de horror e ignomínia de seu senhor e mestre. Todos se contentam em mencionar o simples fato histórico, sem nada acrescentar da sua impressão subjetiva: “Então foi Jesus flagelado...” Em face da lei, só podia ser flagelado um escravo, e por crimes de desumana monstruosidade. Um homem desses, açoitado em praça pública, estava desmoralizado e moralmente morto para o resto da vida. Um cidadão romano não podia ser submetido a esse tormento degradante. Todos os historiadores, poetas e oradores contemporâneos são concordes em considerar a flagelação como um dos mais terríveis processos da justiça romana. Horácio chama-lhe “terribile flagellum”; Cícero, num dos seus discursos, descreve esse tormento infligido a alguns cidadãos romanos pela crueldade ferina de Verres. Também os judeus conheciam essa punição; mas a lei mosaica restringia a 40 os açoites; quem passasse daí incorria em pena gravíssima. Por isso, para maior segurança costumavam os judeus dar apenas 39 golpes. A lei romana não estatuía limite algum. Afirma Ulpiano que não era permitido condenar alguém à “morte por flagelação”. Entretanto, eram frequentes os casos em que a vítima sucumbia à horrorosa tortura, ao passo que outras morriam lentamente em consequência desse martírio e da perda de sangue.
Flagelava-se com vergas flexíveis ou correias de couro, com cordas entretecidas de fragmentos de ossos ou correntes de ferro guarnecidas de ganchinhos, rodízios e bolas de chumbo. Refere a testemunha ocular Flávio Josefo que esses instrumentos rasgavam as carnes da vítima a ponto de porem à mostra os ossos. Quem escapava vivo, escreve Filo, ficava reduzido a um aleijão para o resto da existência. Não é de supor que fosse mais benigna a pena infligida a Jesus, na praça do Pretório romano. Logo após a ordem de Pilatos: “I, lictor, collige manus virgis caedito!”, apoderou-se o lictor do condenado, atou-lhe as mãos a uma coluna baixa de modo a ficar com as costas recurvadas, e os soldados romanos, afeitos a todas as cruezas da guerra, empunharam açoites, vibrando-os sobre as carnes do Nazareno. Terminada a flagelação, estava o corpo de Jesus reduzido àquilo que Isaías divisou em profética visão: “Da planta até o vértice não havia um ponto intato – era o varão das dores”. Em seguida, a soldadesca romana desprendeu da coluna a vítima, a qual, provavelmente, tombou por terra sobre o pavimento ladrilhado; arrastou-se penosamente até ao pé da escada para apanhar uma peça do seu vestuário com que cobrisse a nudez... Os carrascos foram lavar as mãos ensanguentadas, descansando por alguns momentos da faina brutal, à espera das ordens de Pilatos.
Coroação de espinhos “Eu sou rei”, dissera Jesus. Não o ignoravam os soldados de Pilatos, embora não atingissem o sentido exato dessas palavras. Também, como teria um rude guerreiro compreendido o alcance transcendente da realeza do Cristo? “Eu sou rei; mas o meu reino não é deste mundo... Eu vim ao mundo para dar testemunho da verdade.” Só uma coisa lhes ficou na mente: que aquele homem andava com pruridos de realeza; era, portanto, um rebelde, um agitador contra o governo de Roma. Pilatos tardava no interior do Pretório. Era intuito dele satisfazer o povo com a flagelação do Nazareno, e pô-lo depois em liberdade. Os sacerdotes, magistrados e toda a multidão popular estavam à porta do Castelo Antônia, esperando o reaparecimento do governador, para levarem adiante o processo. Entenderam os soldados de encenar um drama digno dos seus autores. Improvisaram uma cena de aclamação real, como tinham presenciado na corte de Roma. Um trono, uma coroa, um cetro, um manto “purpúreo” – nada devia faltar; depois, as homenagens e saudações, etc. A pessoa do rei aí estava no meio deles; o próprio Nazareno se proclamara rei; eles, os soldados de Tibério César, só iam confirmar-lhe as palavras e aureolá-las das competentes solenidades. Fizeram sentar-se Jesus sobre uma pedra – era o trono real! Encontraram num rincão do castelo um farrapo escarlate, que em tempos antigos servira de manto a algum soldado da guarnição romana, e lançaram-no aos ombros do sentenciado – que esplêndida púrpura real! Por entre a lenha amontoada num ângulo da fortaleza encontraram gravetos ou baraços espinhosos, teceram deles uma espécie de coroa e a colocaram sobre a cabeça de Jesus – jamais um César do império tivera diadema tão original! No mesmo lugar descobriram também um pedaço de taquara, que puseram na mão algemada do réu, como cetro, e estava pronta a figura do rei! Em seguida, com fingida seriedade e ares grotescamente solenes, procederam à cerimonia da prestação de homenagens. Dobravam o joelho diante do rei entronizado e faziam-lhe profundas mesuras, dizendo:
– Ave, rex judueorum! – ou, talvez usando a língua grega muito em voga naquele tempo: – Chaire, ó basileus ton iudoion! (Salve, ó rei dos judeus.) Uma gargalhada acompanhava essa farsa tão magistralmente representada. Em espírito carnavalesco, como se vê, os soldados de Pilatos nada ficavam devendo ao rei Herodes... Uma idéia chama outra idéia. Reparou um dos soldados que a coroa de espinhos não estava bem firme à cabeça do “rei dos judeus” e, com a motivação de consolidar o reino messiânico, arrancou-lhe o cetro de taquara e com ele deu violentamente sobre a coroa, enterrando-a mais na cabeça. Novas gargalhadas de cinismo!... Bela figura de rei que se deixa ferir com o próprio cetro!... Herodes tinha carradas de razão, tratava-se de um pobre louco... Lembraram-se alguns soldados da praxe do beija-mão – e logo se aproximaram de Jesus e, em vez do ósculo reverente lhe deram bofetadas na face e lhe cuspiram no rosto, por entre observações cínicas de crueldade. Da parte de Jesus, nenhuma palavra, nenhum gesto de contrariedade, nenhum sinal de indignação. Essa serena superioridade da vítima exasperou ainda mais aqueles homens embrutecidos. Durante a flagelação revelara a mesma calma. Os outros sentenciados, horas antes do início da tortura costumavam gritar e convulsionar-se, para mover à compaixão os carrascos; este, porém, conservara-se perfeitamente tranquilo; nenhum pedido, nenhuma súplica a seus verdugos.
Ecce Homo! Após a flagelação e coroação de espinhos, foi Jesus conduzido por Pilatos à plataforma do Pretório e apresentado ao povo. Contava o governador com os sentimentos de piedade e comiseração do público em face de tão horroroso espetáculo: um homem seminu mal coberto com os farrapos de uma clâmide romana, as carnes abertas em chagas vivas, coberto de sangue da cabeça aos pés, com uma coroa de espinhos sobre a fronte, a face inchada, velada de sangue e de pó! Que era aquilo? Um homem? Não, uma ruína humana! Apareceu Pilatos no alto do Lithóstrotos e disse ao povo aglomerado na praça fronteira: – Eis que vo-lo trago fora para que conheçais que não encontro nele crime algum. E, apontando para Jesus, disse: – Ecce homo! – Eis o homem! O próprio governador, habituado a todas as crueldades, sentia-se comovido à vista daquela chaga viva. Esperava que os judeus se dessem por satisfeitos com essa horrenda punição. Que mal lhes podia fazer um homem reduzido a esse estado? Que prestígio social podia ter ainda na Judéia o Nazareno, depois de passar pela degradante tortura da flagelação? Se não sucumbisse fisicamente às consequências do horrível martírio, em todo o caso estava moralmente aniquilado. Falhou, porém, o cálculo de Pilatos, como tinham falhado todos os outros planos de libertação. Os sacerdotes e magistrados açularam o povo, e todos eles, em vez de compaixão, se encheram de indignação e clamaram: – Fora com ele! Crucifica-o! Contrariado, respondeu Pilatos em tom ríspido: – Tomai-o, pois, vós e crucificai-o! Responderam os judeus:
– Nós temos uma lei, e segundo a lei ele deve morrer, porque se fez filho de Deus! Com estas palavras voltam à primeira acusação, em torno da qual girara o processo diante do Sinédrio, o caráter messiânico de Jesus. Diante do tribunal de Pilatos, nada conseguiram com semelhante acusação; delito como esse não figurava no Código Penal do Império Romano. Por isso inventaram crimes de caráter político e social: ele amotina o povo, proíbe de pagar tributo a César e arvora-se em rei de Israel. Convencidos, porém, de que nada adiantavam essas acusações e que Pilatos percebera a inanidade desses agravos, retomaram o primeiro capítulo, mais próprio, aliás, para acender a indignação do povo, do que para impressionar o espírito do governador romano. De fato, o romano não se impressionou com semelhante acusação de caráter religioso e metafísico; impressionou-se, porém, o pagão. As palavras misteriosas “ele se fez filho de Deus” evocaram na mente confusa de Pilatos um mundo caótico de idéias e reminiscências mitológicas sobre deuses e semideuses que, como diziam histórias antigas, tinham descido do Olimpo e peregrinado pela terra; e todos os desprezadores dessas divindades disfarçadas haviam acabado na desgraça e no infortúnio. O desdenhoso cético de Roma, incrédulo da verdade, era bastante crédulo para crer nessas fábulas e crendices populares... Aterrado e mal seguro de si mesmo, Pilatos conduziu o acusado para o interior da sala de audiências, despediu os guardas e ficou sozinho com Jesus. Encarou-o atentamente e perguntou com voz hesitante e quase tímida: – De onde és tu?... Já sabia que Jesus era da Galiléia. Mas não lhe bastava esta informação, queria saber mais; as palavras dos sacerdotes “ele se fez filho de Deus” tinham tornado pensativo o pagão de Roma. Dissera-lhe Jesus, pouco antes, que o seu reino não era deste mundo; que ele viera ao mundo para dar testemunho à verdade... Qual, então, a sua verdadeira origem?... Jesus, porém, não deu resposta ao interpelante. Também, para que falar da sua origem eterna do seio do Pai? Que compreenderia o pobre gentio das excelsitudes do Verbo, que no princípio estava com Deus e que era Deus? Não o tinha Pilatos declarado inocente? E não era suficiente saber que não cometera crime algum digno de morte?... O romano ofendeu-se com o mutismo do Nazareno, e disse-lhe irritado:
– A mim não me respondes? Não sabes que eu tenho o poder de crucificar-te e o poder de libertar-te? Firme e conciso, quase geométrico, como o passo cadenciado das legiões dos Césares, soa o texto latino do direito romano: potestatem habeo crufigere te, et potestatem habeo dimittere te! Pilatos sente-se na plenitude dessa potestas, desse poder sobre a vida e a morte; a sorte do acusado está nas suas mãos. Jesus, porém, faz-lhe ver discretamente que não é ele a fonte suprema desse poder, nem mesmo o César de Roma, mas Deus, o Senhor do Universo. – Não terias poder algum sobre mim – lhe diz – se não te fora dado do alto... E, cheio de benignidade, acrescenta: – Por isso, maior culpa tem aquele que me entregou às tuas mãos... Tu és pecador – mais pecadora é a sinagoga. Assim fala o réu ao juiz. Esta resposta serena ainda mais impressionou a Pilatos. Diz o evangelista que a partir daí forcejava por libertar Jesus. Enquanto Pilatos deliberava sobre o modo como libertar aquele homem singular, prepararam os sacerdotes e magistrados o golpe decisivo, e, mal reapareceu, começaram a clamar: – Se soltares esse homem, não és amigo de César! Porque todo aquele que se faz rei vai de encontro a César! Golpe de mestre! O Sinédrio abre mão de todas as acusações políticas e religiosas contra Jesus, e volta-se diretamente contra a pessoa do juiz; ameaça levar para Roma uma denúncia contra ele que lhe faça perder as boas graças de Tibério César e o cargo de procurador da Judéia – e Pilatos sabia por experiência quanto valia uma denúncia dos seus inimigos coligados. “Amicus Caesaris” era um título muito apetecido; e ai do homem que se tornasse indigno dele! Que perdesse a confiança daquele homem poderoso sentado no trono imperial da urbs. Ao ouvir essa terrível ameaça, sentiu Pilatos quebrada toda a sua resistência, aniquiladas todas as suas forças; qual golpe de clava caíram aquelas palavras sobre o seu espírito frágil e indeciso... Era chegado o momento da decisão suprema!... O representante de Tibério César capitula ante a pertinácia da sinagoga e as veleidades de Israel!...
Nesta altura, modifica o evangelista João o seu estilo e começa a revestir a narração de um tom solene e grave, como quem preludia um momento épico da história do mundo. “Quando Pilatos ouviu estas palavras”, escreve, “conduziu Jesus para fora e sentou-se no tribunal, no lugar chamado Lithóstrotos, em hebraico Gábbuta. Era o dia de preparativos da Páscoa, por volta das doze horas, quando Pilatos disse aos judeus: – Eis o vosso rei!” Aí está a solene proclamação da realeza de Cristo efetuada pelo representante oficial do império romano. O momento é dramático!... O mundo suspende a respiração para ouvir a grande verdade!... Era, pois, necessário precisar o lugar e o tempo exato desse magno acontecimento, era mister indicar a hora em que ele se consumou; convinha imortalizar em duas línguas – na da filosofia e na da religião – o nome daquela nesga do globo onde se proclamou a soberania do Cristo – que, logo depois, seria condenado à morte!... É com pungente sarcasmo que Pilatos lança ao meio das massas estas palavras: – Eis o vosso rei! O romano, de caráter frágil, sabe ser de uma intransigência brutal quando se trata de fazer sentir àquele povo a superioridade de Roma. Mais tarde, instrumento inconsciente nas mãos da Providência, repete Pilatos a proclamação da realeza do Cristo, e desta vez em três línguas, colocando no alto da cruz o competente letreiro; a sinagoga protesta com veemência, mas a inscrição aí ficou, visível a todo o mundo. Lá do fundo da praça estruge a grita feroz: – Fora com ele! Crucifica-o! Replica Pilatos, com a mesma ironia mordaz: – Pois hei de crucificar o vosso rei? E eles: – Não temos outro rei senão César! Vai nestas palavras a apostasia oficial de Israel; rejeitaram pública e solenemente o Messias, declararam-se súditos do imperador de Roma. Alguns decênios depois, deviam eles sentir o que significa essa troca de Jesus por César!...
Pilatos manda vir um escravo com uma bacia e um jarro de água e lava as mãos diante do povo, dizendo: – Eu sou inocente do sangue deste justo! Vós lá vos avinde! Deste justo – é a última declaração da inocência de Jesus. Logo depois segue a sentença de condenação. O povo, cônscio da sua vitória, ébrio de ódio, rompe nesta maldição terrível: – O seu sangue venha sobre nós e sobre nossos filhos! E sobre eles e seus filhos veio o sangue do crucificado e quem o derramou sobre a cabeça de Israel foi César de Roma, cuja autoridade invocaram. E até o presente dia pesa sobre os filhos de Israel o sangue daquele justo... Pilatos chama um dos lictores, arranca do feixe cerrado uma das varas simbólicas, quebra-a contra o joelho e atira-a aos pés de Jesus, como que a dizer: – Eis aí a imagem da tua vida!... Quebrada como esta vara!... Proferida a sentença de morte, entregou o condenado aos soldados para ser crucificado.
Caminho do Calvário lbs ad crucem! Com esta fórmula condenatória rematou Pilatos o processo contra Jesus de Nazaré. E logo deu ordem ao lictor: – I, lictor, expedi crucem! – Vai, lictor, prepara a cruz! A crucificação era frequente naqueles tempos, de modo que não faltavam no Pretório romano cruzes de antemão preparadas para a execução desta pena. A darmos crédito aos historiadores antigos, era este gênero de suplício originário da Pérsia, de onde passou para a Grécia e, mais tarde, para Roma. Os judeus não o adotaram, nem aparece mencionado no Antigo Testamento. Entre os israelitas, a maneira mais comum de aplicar a pena de morte era o apedrejamento. No Império Romano só eram crucificados escravos ou pessoas de ínfima camada social, e apenas por crimes monstruosos. Só mais tarde, no período de decadência do império, foram crucificados também alguns cidadãos romanos. Estavam em uso quatro formas de cruz: a cruz simples, que não passava de um tronco vertical – em que se pregavam as mãos e os pés do condenado; a cruz commissa, em forma de T; a cruz immissa, na forma conhecida entre nós; e a cruz aspada, chamada vulgarmente cruz de Santo André. Também o processo da crucificação obedecia a modalidades diversas. Alguns criminosos eram fixados com cordas até a trave transversal da cruz previamente arvorada e pregados na mesma; outros, lançados de costas sobre a trave estendida no solo, e posteriormente alçados à altura do tronco; outros ainda eram cravados na cruz completamente armada e estendida ao solo, e depois levantada juntamente com o corpo da vítima. O sentenciado tinha de carregar pessoalmente a sua cruz; e levava-a, ou soltas as duas peças, ou já devidamente armadas. A cruz do Cristo media uns três metros de altura, de maneira que, depois de plantada no solo, deixava os pés do crucificado um bom pedaço acima do nível do chão.
Chefiado pelo centurião romano Longino, partiu, então, o sinistro cortejo da praça do Pretório em demanda de uma colina próxima às portas da cidade. Chamava-se Gólgota em aramaico, ou Gulgaleth em hebraico; os romanos apelidavam-na Calvária ou Calvarium, que significa caveira, ou crânio. Não é de supor que se tratasse de um cemitério, tampouco de um lugar de execução habitual dos criminosos, cujas ossadas aí ficassem insepultas; pois não se coadunava com a lei mosaica, nem se compreenderia como um homem da posição social de José de Arimatéia tivesse aí um jardim ou uma casa de campo. A colina levava este nome provavelmente em vista da forma característica da sua parte superior escalvada, que à primeira vista lembra um crânio humano. A distância que medeia entre o Pretório e o Gólgota orça por 600 a 700 metros. É a célebre via crucis, via-sacra, ou rua da Amargura. O caminho, partindo da fortaleza romana, desce por um ligeiro decline para o vale de Tyropaion, torna a subir por uma rampa não muito suave, passando pela Porta Judiciária, até chegar, já fora dos muros da cidade, ao Calvário. Era costume romano executar os criminosos perto das portas da cidade, para escarmento dos transeuntes. Juntamente com Jesus foram levados ao suplício dois malfeitores. O trajeto, embora pouco extenso, deve ter levado bastante tempo; pois, em vista das solenidades pascais, as ruas estreitas de Jerusalém regurgitavam de gente que, sobretudo nesta hora sensacional, se atropelavam caoticamente, dificultando a passagem aos sentenciados, que arrastavam os pesados instrumentos do seu suplício. Convém lembrar que não se tratava de ruas bem calçadas, como as das capitais modernas. Se a tradição cristã fala de três quedas sucessivas que Jesus teria levado nesse caminho, é isto bem possível; mesmo um homem forte e de corpo intato corria perigo de tropeços naquelas ruas acidentadas, ora em declive, ora em subida, e por entre os empurrões de milhares de transeuntes. Ao deixar a cidade, topou o cortejo com um grupo de pessoas que numa encruzilhada aguardavam a passagem do horroroso desfile escoltado por soldados romanos. Entre essas pessoas encontrava-se um homem robusto, natural de Cirene, na África, e que vinha de uma propriedade que possuía em Jerusalém. Era de origem judaica e chamava-se Simão. Tinha dois filhos, Alexandre e Rufo. Vendo o centurião romano que o Nazareno já não tinha forças para prosseguir e ameaçava cair novamente, dirigiu-se ao homem de Cirene e o obrigou a carregar a cruz no encalço de Jesus. Mais adiante, encontraram um grupo de mulheres de Jerusalém, que levantavam em altas vozes as dores do profeta de Nazaré. Voltou-se Jesus
para elas e recomendou-lhes que mais chorassem a causa desses sofrimentos do que o sofrimento em si mesmo; se tão terrível sofrimento era o da árvore verde (do justo), que seria da árvore seca (do pecador)? Impelidos pelos soldados foram os sentenciados seguindo até atingirem o topo do monte. Diante de cada um deles ia um pregoeiro sustentando numa haste um letreiro que indicava o crime do condenado. Quatro soldados escoltavam o sentenciado. O pregoeiro que seguia diante de Jesus ostentava uma tabuleta com estes dizeres exarados em latim, grego e hebraico: JESUS NAZARENO, REI DOS JUDEUS.
A crucificação Chegados ao alto do Calvário, os quatro soldados que conduziam Jesus lançaram por terra a cruz, arrancaram as vestes ao sentenciado, empunharam o martelo e os cravos e procederam sem demora à crucifixão. Era por volta do meio-dia. Algumas mulheres piedosas ainda tiveram tempo de oferecer a Jesus uma taça de narcótico amargoso, a fim de lhe diminuir a sensação da dor. Jesus provou da bebida para obsequiar as caridosas ofertantes; mas não a sorveu, porque queria morrer de espírito vigil e plenamente cônscio de si. Antigamente, o sumo das folhas de hissope entrava na preparação de narcóticos, que as piedosas mulheres propinam a Jesus. Esparsas no topo do monte jaziam diversas hastes de hissope desfolhadas, uma das quais é mencionada pelo evangelista. (Até nestes pormenores de caráter secundário revelam os evangelistas uma admirável verdade e autenticidade.) E logo os soldados estenderam Jesus de costas sobre o madeiro pregando-lhe uma das mãos, depois a outra e por último os pés. Para dar maior resistência, os romanos também passavam os cravos pelos pulsos, e pelas palmas. No caso que o tronco vertical da cruz já estivesse previamente arvorado, como foi descrito, puxavam para o alto, por meio de cordas, a barra horizontal, cravando-lhe depois no tronco os pés. Três ou quatro cravos sustentavam o peso daquele corpo em pleno vigor da virilidade. Ao mesmo tempo, outros soldados crucificaram os dois malfeitores. Foi mais fácil essa tarefa, porque os condenados se debatiam e convulsionavam, no paroxismo da dor e do desespero, amaldiçoando a si e a todo o mundo, clamando contra a injustiça de que eram vítimas. Depois de arvorada a cruz de Jesus, a multidão do povo, sempre ávida de sensação, pôs-se a contemplar o horroroso espetáculo. A certa distância estava a mãe de Jesus, um dos seus discípulos, Madalena e outras mulheres fiéis ao Nazareno. Segundo o costume da época, achava-se pregado sobre a cabeça de cada condenado um letreiro que indicava o motivo por que fora crucificado. Na
pessoa de Jesus não era fácil compendiar em poucas palavras esse motivo, porque as acusações tinham sido tantas e tão vagas, e o próprio juiz declarava repetidas vezes que não encontrava nele crime algum. Resolveu, pois, Pilatos tomar por motivo as palavras proferidas pelos judeus: Ele diz que é o Cristo, o Rei, e mandou colocar no topo da cruz a inscrição: “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”. Vinha o letreiro redigido nas três línguas principais do tempo: em latim, língua da maior potência política e militar do século; em grego, língua da filosofia e da arte; em hebraico, língua da religião judaica. Mal os fariseus deram pelo caráter ambíguo desse letreiro – pois eram mestres em descobrir erros de forma –, mandaram logo uma embaixada ao Pretório romano a fim de solicitar ao governador que modificasse a inscrição desta forma: – Eu sou o rei dos judeus. Não queriam passar pela vergonha de terem crucificado o seu rei. Pilatos, porém, estava farto das exigências e importunações daquela manhã e respondeu-lhes com energia e brevidade genuinamente romanas: “Quod scripsi scripsi! – o que escrevi escrito está!” E despachou a embaixada sem mais palavras. O letreiro aí ficou, proclamando ao mundo inteiro a messianidade e realeza do Cristo. O homem põe – e Deus dispõe!... *** Ao pé de cada uma das três cruzes, fora do círculo de sangue, estavam sentados quatro soldados encarregados de vigiar os sentenciados: pois a crucifixão era um ato oficial do poder romano e tinha de ser controlada pelos representantes da autoridade. Assim o pedia a lei dos Césares. Enquanto a embaixada judaica descia do monte para requerer a Pilatos a modificação do letreiro do Nazareno, dividiram os quatro soldados entre si os haveres da vítima; pois o condenado era despojado das suas vestes antes de ser suspenso na cruz. O pano que estamos habituados a ver cingindo a nudez de Jesus é, provavelmente, um presente da piedade cristã dos primeiros séculos: a rudeza da soldadesca não conhecia semelhantes delicadezas. Repartiam, assim, as diversas peças do vestuário de Jesus, que de direito lhes cabiam. Não era muita coisa: um par de sandálias, um pano que servira de turbante, uma cinta, um manto com quatro borlas nas pontas e a túnica. Dava justamente uma peça para cada um, além da túnica. Esta era sem costura e não convinha cortá-la em quatro partes.
O evangelista que refere este incidente assistiu, sem dúvida, à cena da distribuição do espólio do Mestre, tão concretas são as suas palavras; o leitor julga ver como os guerreiros romanos tomam nas mãos a túnica, puxando-a de cá para lá, examinando-a atentamente a ver se descobrem uma costura por onde abri-la. Mas não encontram, pois era uma peça inteiriça, inconsútil, tecida de alto a baixo. Tais eram também as túnicas dos sumos sacerdotes de Israel. E logo um dos soldados sacou do bolso uns dados e lançou sortes para decidir qual deles devia ficar com a túnica do Nazareno. Os dados faziam parte do inventário do soldado daquele tempo, assim como hoje em dia os cigarros e o jogo de cartas. Um dos soldados de Pilatos teve a sorte de levar para casa aquela túnica, tecida provavelmente pelas mãos hábeis da mãe de Jesus. Com que pena não terá ela visto desaparecer nas mãos do guerreiro gentio aquela veste de seu querido Jesus!... Se a pudesse levar como lembrança... vinha toda manchada de sangue... Assim é que, antes de expirar, já não possuía o Nazareno um fio de roupa – mais pobre que as aves do céu e os animais na terra. É possível, e mesmo provável, que as piedosas discípulas do crucificado, sobretudo Madalena, tenham comprado aos soldados as vestes de Jesus. *** E o divino padecente, vendo e ouvindo tudo isto, ergue ao céu os olhos ensanguentados e diz com voz suplicante: – Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem... Os que ouviram estas palavras do divino Mestre tomaram-nas por um sinal de fraqueza e escarneceram, dizendo: – Ajudou aos outros, e a si mesmo não se pode ajudar, ele, o Messias, o Rei de Israel. Desça agora da cruz, e creremos nele!... – Confiou em Deus! – acudiram outros. – Pois que agora venha salvá-lo, se é que lhe quer bem. Porque disse: – Eu sou o filho de Deus!... Passaram outros ao pé da cruz, postaram-se bem defronte, encararam o padecente e, com gestos provocantes, diziam: – Ah! És tu aquele que destrói o templo de Deus, e em três dias o reedifica? Os soldados romanos deram também a sua contribuição. Um “quaterno” militar, conforme exigia a lei romana, fazia guarda ao crucificado. Não se tinham ainda esquecido das pretensões realistas que os judeus atribuíam ao Nazareno, e era o que mais os exasperava, a eles, fiéis servidores de Tibério César e de Pôncio Pilatos. Escarnecendo de tal realeza, diziam:
– Se tu és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo!... Até os dois malfeitores, companheiros de suplício, não puderam abster-se de dizer: – Se tu és o Cristo, ajuda-te a ti mesmo e a nós também! Mais tarde, um dos dois, entrando em si e observando atentamente a atitude do Nazareno, sentiu-se impressionado. Aquele homem singular não se queixava das dores, não amaldiçoava os carrascos, não invocava sobre eles os raios dos céus, mas pedia a Deus que lhes perdoasse as maldades. Não, este homem não era criminoso vulgar: tinha um quê de misterioso, de solene, de divino quase... Ouvindo que seu colega continuava a insultar Jesus – talvez por ter com a sua condenação acelerado a execução deles, marcada para depois da Páscoa – disse aquele ladrão, iluminado por uma luz superior: – Como? Nem tu temes a Deus, quando sofres o mesmo suplício? Nós, é verdade, sofremos o que é justo, porque recebemos a paga das nossas obras; este, porém, não fez mal algum... Um homem ao menos existe nas alturas do Gólgota que, no meio daquela turbamulta de injuriadores, tem a coragem de proclamar, do alto do seu patíbulo, a inocência de Jesus – e este homem é um pobre ladrão ou, antes, um ex-ladrão, que padece contrito e resignado o seu horrível purgatório. As autoridades religiosas declaram Jesus culpado – pagãos e ladrões lhe proclamam a inocência... Depois de falar a seu colega de maldades, forceja o penitente por voltar a cabeça torturada e contemplar o semblante do crucificado inocente, e em tom de súplica lhe diz: – Jesus, lembra-te de mim quando entrares em teu reino!... É soberanamente bela esta prece do infeliz sentenciado. Raras vezes uma alma humana terá orado com disposição tão favorável para ser atendida como esse recém-convertido. Ainda não se extinguira na alma dele toda a centelha do bem. O que ele pede a seu companheiro de suplício não é muito; não é a libertação das suas dores, como a princípio pedira; pede tão-somente que se lembre dele quando entrar no seu reino; pois prevê que Jesus vai morrer antes dele; que se recorde que nas sangrentas alturas do Calvário pende ainda do patíbulo, a debater-se numa lenta agonia, um colega de crucifixão... Só uma lembrança... Um pouquinho de amor – amor que esse pobre homem talvez não gozara jamais no decurso da sua vida...
Quando entrares no teu reino – diz ele. Mas que reino ainda teria aquele homem que já nem possuía uma peça de roupa para cobrir a sua nudez? O ladrão penitente reconhece que com a morte principia para Jesus o seu verdadeiro triunfo... Jesus escuta a súplica de seu companheiro de martírio e, dirigindo-lhe um olhar através de um véu de sangue, responde-lhe: – Em verdade te digo: ainda hoje estarás comigo no paraíso... Palavras misteriosas!... Um moribundo promete a outro moribundo o paraíso!... Um sentenciado fala a outro sentenciado num reino eterno!... Bem sabia Jesus: antes que amanheça o novo dia, nós dois já não seremos do mundo dos vivos, mas havemos de nos reencontrar nas regiões do além... Assim é que, de cruz a cruz, por sobre as cabeças da multidão profana, se trava uma amizade dolente e sincera entre dois condenados à morte. Era pelo meio-dia quando Jesus foi crucificado. Pouco depois ocorreu um fenômeno estranho, terrífico: começou a desmaiar rapidamente a claridade do sol no zênite; uma penumbra lúgubre e angustiante alastrava pelos rochedos escalvados do Gólgota! ... Lá no fundo perdiam-se os contornos das casas da cidade... Em breve, uma verdadeira noite envolvia as terras da Judéia – noite em pleno meio-dia!... Em Belém, ao nascimento de Jesus, a noite ilumina-se de meridiana claridade – e no Calvário, à morte dele, o dia converte-se em noite. É sabido que a Páscoa judaica incidia na primeira lua cheia da primavera; e em fase de plenilúnio não pode ocorrer um eclipse solar natural por não se achar a lua entre o sol e a terra, mas precisamente oposta ao nosso planeta. Não se tratava, portanto, de um fato natural, mas de um fenômeno extraordinário. Judeus e pagãos entreolharam-se transidos de pavor, e muitos deles fugiram para a cidade.
A morte de Jesus Ao pé da cruz do Cristo estavam, entre outros, Maria, a mãe do crucificado, e João, o discípulo predileto. Dos discípulos foi ele o único que assistiu à agonia de Jesus. “O amor expele o temor”, escreve ele mais tarde. Parece que este discípulo era muito afeiçoado à mãe de Jesus, e esta amizade valeu-lhe a honra de ouvir as derradeiras palavras do Mestre e receber dos seus lábios um testamento precioso. Vendo Jesus sua mãe, teve pena dela, por vê-la sozinha e sem proteção no mundo: José morrera, havia anos, e Maria não tinha ninguém. Referindo-se a João, disse Jesus a sua mãe: – Mulher, eis aí teu filho! E, olhando para o discípulo, disse: – Eis aí tua mãe! A mãe e o discípulo – eram os únicos elos que ainda prendiam à terra o coração de Jesus. E ele se desfaz também desses tesouros... Já não tinha no mundo coisa nenhuma, nem pessoa alguma... Só lhe ficava Deus, o Pai celeste, o seu grande amor. Eis senão quando também Deus lhe é arrebatado!... Aconteceu neste momento o que nenhum homem acharia possível nem crível, se não viesse nas páginas sagradas do Evangelho. No meio daquela lúgubre escuridão, ergue Jesus os olhos ao céu, e pela vastidão do espaço noturno ecoa este brado de angústia: – Eli, Eli, lamma sabacthani?... meu Deus, meu Deus! Por que me desamparaste?... Que acontecera? A natureza humana de Jesus sentiu-se como abandonada por Deus. Antes dissera “Pai”, agora é só “Deus”, um Deus de tremenda majestade.
Os inimigos de Jesus exultaram de prazer e, mais seguros do que nunca, exclamaram: – Ouvistes? Confessou a sua culpa! Reconhece-se abandonado por Deus! E não tinha razão o Sinédrio ao declará-lo blasfemo? Jesus não responde. Quer morrer física e moralmente aniquilado aos olhos do mundo. Só uma consciência alicerçada em rochedos eternos pode dispensar os fundamentos da opinião humana. Alguns dos circunstantes, ouvindo duas vezes a palavra Eli5 (meu Deus), escarneceram de Jesus, dizendo: 5. Um evangelista escreve “Eli”, outro “Elói”; aquela é a forma hebraica, esta a aramaica de “meu Deus”, palavra derivada de “El” (Deus).
– Está clamando por Elias. Desde a ceia da quinta-feira havia Jesus passado sem alimento nem bebida alguma. As abundantes perdas de sangue tinham-lhe acendido nas carnes dilaceradas uma sede tão grande que a língua abrasava-lhe; e de súbito vibrou pelos ares este grito estridente: – Tenho sede! Nos campos de batalha, após uma peleja, só se ouve uma palavra: Água! Água!... Os soldados feridos e mutilados esquecem-se de todas as suas dores e só sentem a sede que os devora, em consequência da perda de sangue. Os guardas perceberam o grito de Jesus, e um deles correu a ensopar uma esponja num vaso de vinagre ou vinho azedo e, prendendo-a na ponta de uma cana de híssope, levou-a aos lábios do crucificado. Alguns, percebendo o brado de Jesus e recordando as palavras anteriores, disseram com ares de zombaria: – Deixem! Vamos ver se vem Elias tirá-lo da cruz! Não muito depois, disse Jesus: – Está consumado!... Consumada estava a sua tarefa terrestre; a cristificação do seu Jesus humano... Qual suave arrebol vespertino a rematar por um dia de ardor estival; qual longínquo tanger de sinos a preludiarem uma grande solenidade; qual retorno do filho ao pátrio lar após uma jornada penosa em terras estranhas – tais soavam estas palavras segredadas pela divina vítima: Está consumado!...
Finalmente, Jesus murmura: – Pai!... Em tuas mãos entrego o meu espírito!... E, inclinando a cabeça, expirou...
A sepultura de Jesus No mesmo instante em que Jesus inclinou a cabeça e expirou, realizaram-se fenômenos estranhos e terríficos. Escureceu o sol, estremeceu a terra, partiram-se os rochedos, abriram-se os sepulcros e muitos mortos saíram dos seus jazigos e foram a Jerusalém. No templo achava-se reunida compacta multidão de povo, rodeando o altar dos holocaustos, pois eram as vésperas do “grande Sábado” das solenidades pascais – eis senão quando, de inopino, percebe-se no fundo do santuário um som agudo e estridente! Os sacerdotes e o povo fogem espavoridos, procurando cada qual ganhar as portas do templo... Que acontecera? Mão invisível rasgara de alto a baixo o espesso véu que separava o santo do santíssimo. Era um tecido precioso e forte de jacinto, escarlate e púrpura. Indescritível foi o pânico que de todos se apoderou no meio desses fenômenos da natureza, e logo compreenderam que vigorava relação entre eles e a morte do Nazareno. Muitos reconheceram a clamorosa injustiça que os chefes de Israel acabavam de cometer contra o grande profeta. O céu e a terra, este mundo e o outro pareciam protestar contra semelhante crime e cobrir-se de luto à morte de Jesus. Terminara o Antigo Testamento. O centurião romano, incumbido da execução, ao presenciar esses temerosos acontecimentos, exclamou: – Em verdade, este homem era filho de Deus! E, no meio da atmosfera enlutada de trevas, erguia-se lúgubre a cruz do Calvário, vacilando lentamente e apontando o céu, qual enorme dedo negro, como se a bradar à humanidade, no eloquente mutismo do seu silêncio. *** Segundo as leis judaicas, respeitadas pelo governo romano, não podiam os corpos dos sentenciados ficar suspensos no patíbulo durante a grande solenidade pascal, que principiava com o pôr-do-sol da sexta-feira. De mais a mais, após os fenômenos angustiantes das últimas horas, tinham os chefes da sinagoga o mais vivo interesse em obliterar quanto antes todo e qualquer vestígio do crime que acabavam de perpetrar.
Enviaram, pois, uma embaixada ao Pretório romano e rogaram a Pilatos que mandasse retirar os corpos dos crucificados. Não raro continuavam os sentenciados suspensos, vivos, no pelourinho da ignomínia, dois ou três dias. Em atenção ao pedido, mandou o governador que se matassem os réus e se retirassem os corpos. Apareceram, então, alguns soldados com malhos pesados e quebraram as pernas e o tórax aos dois companheiros de Jesus. Quando, porém, examinaram o corpo do Nazareno, verificaram que este já estava morto; pelo que não lhe quebraram osso algum. Contudo, por motivo de maior segurança, um dos soldados assentou a ponta da lança no lado direito de Jesus e enterrou-a no tórax por entre as costelas, atravessando-o de lado a lado. O corpo não se moveu. Ao retirar a lança, fluiu sangue e água da chaga aberta. Quase ao mesmo tempo, foi um dos discípulos ocultos de Jesus, José de Arimatéia, ilustre senador de Israel, ter com Pilatos, e destemidamente requereu dele o corpo de Jesus. Receava que os judeus o lançassem a alguma vala comum, justamente com os corpos dos dois celerados. Pilatos logo cedeu o corpo ao senador, gratuitamente, o que nem sempre fazia aos outros pedintes, em ocasião análoga. Mas nesta hora devia o governador da Judéia achar-se numa disposição psíquica muito singular e dolente. A condenação de um homem reconhecidamente inocente; o recado urgente de sua esposa; as palavras misteriosas do Nazareno; os fenômenos estranhos da natureza – tudo isso abalara profundamente o espírito de Pilatos, evocando-lhe à mente as palavras do acusado: “Eu sou rei... mas o meu reino não é deste mundo... Eu vim ao mundo para dar testemunho da verdade”... Teria ele regressado àquele reino invisível?... Seria, de fato, algum deus, algum ser divino baixado à terra?... Esses sentimentos agitavam-se na alma vacilante do cético de Roma quando José de Arimatéia se apresentou com o seu pedido, talvez muito grato e desejado ao coração do governador; pois nunca deixara de alimentar pelo Nazareno uma inexplicável simpatia. O tempo urgia. O senador apressou-se a tornar ao Calvário para que a obra brutal dos soldados não frustrasse a intenção do discípulo. Outro amigo de Jesus, Nicodemos – o mesmo que, a princípio, lhe solicitara uma entrevista noturna e, mais tarde, o defendera no Sinédrio – quis prestar ao Mestre defunto um derradeiro serviço: comprou cem libras de essências odoríferas e um grande lençol de linho para embalsamar o corpo do Mestre. Desceram da cruz o corpo exangue, levaram-no e prepararam-no para a sepultura.
Como lhes restassem apenas poucas horas antes do pôr-do-sol, José de Arimatéia ofereceu o seu próprio sepulcro novo para jazigo do corpo de Jesus. Era costume dos orientais – que em parte perdura até hoje – mandarem preparar em vida o jazigo do seu cadáver; e, não raro, ligavam maior importância a essa moradia do corpo morto do que à casa do corpo vivo. O ilustre senador de Arimatéia havia mandado abrir em rocha o seu sepulcro. Achava-se este no meio de um jardim da sua propriedade, em uma esplanada do Gólgota, uns trinta metros distante do lugar da crucificação. Conservou-se em boa parte até nossos dias esse sepulcro; vê-se uma porta de 1 metro e 36 centímetros de altura por 66 centímetros de largura, porta que dá acesso a uma câmara interna de 2 metros e 7 centímetros de comprimento, sobre 95 centímetros de largura. Do lado direito deste recinto abre-se um nicho ou sarcófago bastante amplo para caber um corpo humano e que fica 65 centímetros acima do nível do solo da câmara. Foi ali que repousou o corpo do Senhor naqueles três dias. Hoje, falta a abóbada da câmara, bem como o vestíbulo que dava entrada à mesma. Embalsamaram rapidamente o corpo cobrindo-o todo com uma mescla de mirra e aloé, resinas aromáticas muito comuns no Oriente. Parte dessas substâncias era reduzida a pó, parte a líquido ou pasta gelatinosa. Embebiam umas tiras de pano nessas essências e enfaixavam membro por membro, a começar pelos pés, seguindo pelos braços e terminando pelo tronco, de modo que todo o corpo do defunto ficava estreitamente envolto em ataduras e faixas empastadas em goma odorífera. A julgar pelo texto evangélico, envolveram o corpo de Jesus assim enfaixado num grande lençol de linho oferecido por Nicodemos, cobrindo-lhe o rosto com um lenço ou sudário. O embalsamento usado pelos judeus não era geralmente tão perfeito como o dos egípcios, a ponto de evitar a decomposição do cadáver. Lázaro, apesar de embalsamado, estava em via de putrefação ao quarto dia após a morte, como lembra sua irmã Marta. Enquanto os homens trabalhavam afanosamente neste serviço de caridade, um grupo de discípulas do Nazareno, rodeando a mãe dele, achavam-se sentadas defronte do sepulcro, contemplando tudo isto. Não era costume entre os israelitas que as mulheres ajudassem a embalsamar o corpo de um homem. E elas, vendo o trabalho apressado e provisório dos homens, combinaram entre si que, na primeira oportunidade, completariam esse trabalho de caridade para o querido Mestre. Por isso, observaram atentamente tudo quanto os homens faziam e onde colocavam o corpo amortalhado.
Preocupação do Sinédrio Mal estava o corpo de Jesus fechado no túmulo de José de Arimatéia, na esplanada do Gólgota, quando os chefes de Israel se sentiram tomados de secretas apreensões. Os estranhos fenômenos das últimas horas, sem dúvida, haviam-lhes abalado o espírito; e alguns deles lembraram-se das palavras misteriosas do Nazareno: “No terceiro dia ressurgirei... Destruí este templo, e em três dias o reedificarei”... E eles, incrédulos, descobrem repentinamente o verdadeiro sentido destas palavras. Cheios de apreensões e receosos do poder de um defunto, foram ter com Pilatos e, muito submissos, assim iniciaram a sua bem calculada petição: – Senhor, veio-nos à lembrança que aquele embusteiro, quando vivo, afirmou: Depois de três dias ressurgirei... Veio-nos à lembrança! – como se só neste momento se recordassem da profecia do seu adversário!... E prosseguiram: – Manda, pois, guardar o sepulcro até o terceiro dia; do contrário, poderiam vir os seus discípulos roubar o corpo e dizer ao povo: Ressuscitou dos mortos! E assim viria o último embuste a ser pior que o primeiro. Lá se foram eles e deram ordem à guarda do templo para ficar vigilante ao pé do túmulo do Nazareno até o terceiro dia. Foram eles pessoalmente ao jardim de José de Arimatéia, à rampa do Calvário, e traçaram solenemente uma trama de fios sobre a lápide que fechava a boca do sepulcro, prendendo as extremidades com lacre e imprimindo nele o sigilo oficial do sumo sacerdote Caifás. Depois se retiraram para a cidade esses pigmeus, que com as suas teias de aranha cuidavam ter ligado a força imortal daquele gigante que disse: “A mim me foi dado todo o poder no céu e na terra...” Mas era necessário que assim acontecesse, que os homens se tornassem ridículos, para que mais resplandecesse o poder de Deus. Eram necessárias todas essas precauções por parte das autoridades civil e religiosa, para que não pairasse um vislumbre de dúvida sobre o acontecimento básico e a verdade fundamental do Cristo.
Jesus redivivo Enquanto os homens, cá na terra, se preocupavam com a sorte do corpo crucificado, descia a sua alma às misteriosas regiões dos “ínferos”, aos mundos infra-humanos, para levar também a esses seres a mensagem da redenção. Nada sabemos desses mundos, a que o Credo Apostólico se refere nas palavras “desceu aos infernos”. De súbito, um clarão intenso refulge pela mansão crepuscular desses seres – e do meio de uma nuvem luminosa se desentranha o vulto do Cristo. Uma exultação de júbilo ecoa pela vastidão dos “ínferos”. Passa-se na noite de sexta-feira para sábado. Correm em Jerusalém os festejos do “grande Sábado”... Expira a noite e vem amanhecendo o primeiro dia da semana... Muito antes do nascer do sol, o Nazareno sai do sepulcro, sem revolver a laje que obstruía a boca do mesmo, sem lesar os sigilos dos seus inimigos; silencioso como a luz solar a penetrar um cristal, assim atravessa o corpo redivivo as substâncias compactas da matéria, abandonando a câmara talhada na rocha viva. O corpo glorioso, sem deixar de ser verdadeiro corpo, adquire propriedades de espírito. No mesmo instante, baixa do céu um espírito angélico, revolve a pesada pedra da entrada do túmulo. Os soldados romanos sentem tremer a terra sob os pés. Tomados de terror, fogem. E, convencidos do fato da ressurreição, deitam a correr para a cidade, a fim de darem parte a seus superiores dos estranhos acontecimentos. Quis a divina Providência que fossem os soldados do império romano os primeiros arautos da ressurreição do Cristo, assim como o governador romano tinha sido o instrumento da sua morte.
As mulheres ao sepulcro Maria Madalena; Maria, mãe de Tiago Menor; Salomé, mãe de João Evangelista e de Tiago Maior; mais algumas outras discípulas do Nazareno, haviam esperado com viva impaciência o fim das solenidades pascais judaicas e o alvorecer do primeiro dia da semana para poderem visitar o sepulcro do Mestre e embalsamar-lhe devidamente o corpo. Embalsamar o corpo – por sinal que não criam na ressurreição. Não tinham fé na divindade do Cristo, mas votavam um amor imenso à fascinante humanidade do Nazareno. Não se aperceberam, certamente, do ilogismo dessas idéias paradoxais. Mas – o coração tem razões de que a razão nada sabe! O coração não pensa, não calcula, não raciocina – ama simplesmente, e muitas vezes possui o amor uma intuição mais segura da verdade das coisas que o intelecto com todo o arsenal dos seus argumentos. Só uma coisa sabiam elas: que o Nazareno – Deus ou homem, vivo ou morto – era uma personalidade extraordinária, digna de todo o amor e todo o entusiasmo dos seus corações. Saíram de casa antes do nascer do sol. Algumas delas já tinham comprado aromas na sexta-feira, antes do início do grande Sábado. As outras aproveitaram as primeiras horas do dia após a Páscoa para se proverem do necessário. Estava-se em princípios de abril. Neste mês, o sol nasce, na Palestina, por volta das seis horas. Ainda pairava nos ares o frescor agradável da madrugada primaveril. As ruas mostravam pouco movimento; as solenidades pascais haviam-se prolongado pela noite adentro, os habitantes de Jerusalém dormiam em suas casas e os peregrinos de fora em suas tendas. Os poucos seres vivos com que as mulheres toparam foram uns almocreves que tangiam diante de si os jumentos lerdos carregados de odres de pele de cabra, cheios de água; vinham das nascentes dos arredores transportando o precioso líquido para a metrópole, que quase sempre sofria penúria de água. De quando em quando, passava um grupo de mulheres equilibrando sobre a cabeça as suas cestas de verduras.
Já estavam abertos alguns armazéns de comestíveis, bem como uns bazares de jóias e perfumes, trazendo as mercadorias expostas à beira das ruas estreitas, segundo o costume dos orientais. Algumas das mulheres entraram em um desses bazares e compraram o necessário para o serviço de caridade que iam prestar ao corpo do Mestre. Madalena não se deteve em parte alguma. Já tinha providenciado com antecedência, levava consigo as essências mais finas que encontrara na cidade. Não lhe sofria a saudade ficar longe do Mestre por mais tempo. Três dias – já era demais. Jovem e forte, avantajou-se às companheiras a passo largo, em demanda da esplanada do Calvário. As mulheres, certamente, ignoravam a presença de uma guarda militar ao sepulcro; pois esta medida fora tomada posteriormente. Tampouco sabiam dos sigilos que garantiam a inviolabilidade do jazigo do crucificado. Só uma dificuldade as preocupara: a pedra enorme que fechava a boca do túmulo. Teriam elas forças suficientes para revolvê-la?... – Quem nos tirará a pedra do sepulcro? Quando Madalena chegou ao jardim de José de Arimatéia encontrou aberto o sepulcro. – Tiraram do sepulcro o Mestre, e não sabemos onde colocaram!... E pelo atalho mais curto voltou para o Gólgota. Eram tantas e tão labirínticas as ruas e vielas de Jerusalém que, provavelmente, Madalena, nas suas idas e vindas, não se encontrou com as outras mulheres, que, entrementes, tinham chegado ao sepulcro. É incrível a rapidez com que a antiga “estrela de Mágdala”, a formosa “pecadora pública”, gira entre o Calvário e a capital. Salomé e suas companheiras estacionaram ao pé da câmara de pedra, entreolhando-se, perplexas e mudas de estupefação, ao ver o jazigo aberto e vazio. Depois, depositando os seus vasos de aromas do lado de fora, adiantaram-se mais sepulcro adentro – e recuaram aterradas! À cabeceira e aos pés do sarcófago de rocha estava alguém, estavam dois vultos estranhos, vestidos de longas túnicas tão alvas como as neves do Líbano. Eis senão quando, um dos dois fenômenos em figura humana começa a falar às mulheres, dizendo-lhes com voz suave e cariciosa: – Não temais! Sei que procurais a Jesus, o crucificado; não está aqui; ressuscitou, como disse. Vinde e vede o lugar onde esteve colocado o Mestre.
Ide depressa e dizei a seus discípulos que ressuscitou dos mortos; irá diante de vós para a Galiléia; aí o vereis. Eis que vo-lo disse! Por mais alviçareira que fosse esta notícia; por mais calmo que fosse o tom em que eram proferidas estas palavras – as mulheres fugiram de medo e correram à cidade para dar parte aos discípulos. Não se tinham encontrado ainda com Madalena. Através da narração histórica e calma do evangelista percebe-se nitidamente uma vibração estranha: a veemente perturbação e perplexidade que, naquela manhã inolvidável, agitava o espírito dos discípulos do Nazareno.
Pedro e João ao sepulcro Pedro e João ouviram dos lábios de Madalena a primeira notícia das estranhas ocorrências no jardim de José de Arimatéia. Numa disposição de frio ceticismo receberam os dois discípulos o recado. Entreolharam-se numa interrogação tácita e, depois, resolveram fazer o que todo homem sensato teria feito em circunstâncias idênticas: verificar por si mesmos o estado das coisas. Foram, pois, em demanda do sepulcro. João, diz o historiador com muita graça e espírito de observação, corria mais rápido que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro; mas não entrou, deixando a dianteira ao mais velho. Entraram os dois e com toda a calma e objetividade verificaram o que havia: o sepulcro estava realmente vazio. E viram mais uma coisa, e coisa de grande importância: as mortalhas achavam-se cuidadosamente dobradas e colocadas num lugar determinado; o sudário, também dobrado, colocado à parte. Disto concluíram eles que o corpo não fora roubado; pois que ladrão se lembraria, na precipitação, de dobrar e pôr em boa ordem a mortalha e o sudário? Não arrebataria o corpo assim como o encontrasse, com todos os seus envoltórios?... Pensativos se retiraram do sepulcro os dois. E de leve, muito de leve, lhes vislumbra na alma, por entre os nevoeiros da dúvida e do luto, uma esperança... “No terceiro dia ressurgirei” – não dissera assim o Mestre? Regressaram os dois à cidade e foram procurar os companheiros dispersos. E se fosse verdade aquilo que o Mestre dissera tantas vezes?
Jesus e Madalena Os dois discípulos e as mulheres tinham-se retirado da esplanada do Gólgota. Ficara só Madalena. Sentou-se defronte ao sepulcro vazio e deu livre curso às suas lágrimas. Abandonou-se a esse estado psíquico característico da alma feminina: uma desolação imensa e uma infinita saudade... Para ela já não existia o mundo, desde que se eclipsara o sol da sua vida... Morrera a vida da sua alma... Já não valia a pena viver... Ah! Se ela pudesse exaurir gota a gota a íntima essência do seu ser!... Tombaria inerte sobre aqueles rochedos, exalaria a sua alma e, penetrando nas misteriosas regiões do além, iria em busca daquela outra alma que um dia animara o corpo de seu Mestre! E, agora, nem mesmo o saudoso invólucro daquela alma querida lhe haviam deixado... Já o sol se alteara sobre o horizonte e brincava, através das acácias do jardim, no interior da câmara mortuária... Nisto divisou Madalena, no fundo do túmulo, dois anjos. Um deles lhe perguntou: – Mulher, por que choras? Pergunta estranha! Como se neste dia se pudesse chorar por outro motivo que não aquele... Que seres seriam esses que não compreendiam o porquê da sua grande dor?... Madalena não se perturba com a presença dos anjos, como se haviam perturbado as outras mulheres; toda a sua alma estava como que concentrada num só ponto; não havia no céu nem na terra o que lhe merecesse o menor interesse; só ele, o Mestre, o seu querido Mestre... Que lhe importavam anjos, se não era o Nazareno?... Madalena só enxergava o mundo através das suas lágrimas. E, banhada em pranto, respondeu: – É que tiraram o meu Mestre, e não sei aonde o levaram... “Meu Mestre”... Vivo ou morto, é sempre seu Senhor e Mestre.
Não sei aonde o levaram! – Ah! Se ela soubesse ao menos o paradeiro do corpo! E pudesse ver ao menos o invólucro material daquele grande espírito!... Com este pensamento levanta-se, sai da câmara do sepulcro e põe-se a percorrer novamente o jardim, como já fizera repetidas vezes, à procura do corpo do Mestre. Nisso percebe passos; alguém se lhe aproximou por detrás. Devia ser o jardineiro. Ela, porém, não quer falar com homem algum, desde que não seja aquele homem de Nazaré. Ouve perto de si uma voz que repete a mesma pergunta dos anjos: – Mulher, por que choras? Que procuras? Ocorreu a Madalena a idéia de que o jardineiro de José de Arimatéia, farto de tantas invasões de judeus e romanos nos domínios a ele confiados, pudesse ter retirado o corpo do crucificado para pôr termo a essas correrias. Não faltavam encarregados subalternos que se davam ares de proprietários. Por isso, sem encarar diretamente o recém-chegado, lhe diz: – Se foste tu que o tiraste, dize-me onde o colocaste, que irei buscá-lo... A força do seu amor excedia, sem dúvida, o vigor dos seus músculos; e esse amor ia “buscar” aquele corpo, fosse qual fosse o seu peso... Se tu o tiraste! – De fato, era aquele mesmo homem que havia tirado o corpo do crucificado... Neste momento profere o desconhecido uma única palavra: – Maria! E no mesmo instante ela o reconhece pelo timbre da voz. – Rabbuni! – Meu querido mestre!... Foi a única palavra que a comoção lhe permitiu externar. E, prostrando-se em terra, abraçou-se com os pés de Jesus, beijando-os com grande ardor e efusão. Observou-lhe Jesus com suavidade: – Não me segures! Porque ainda não subi para meu Pai; mas vai ter com meus irmãos e dize-lhes que subirei para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus. Não era ainda chegado o tempo da união perpétua e indissolúvel; só depois da ascensão. Por ora, era ainda a vida ativa e apostólica; mais tarde poderia ela
“segurar” eternamente o seu querido Mestre, numa posse íntima e de infinita beatitude. Levanta-se Madalena, despede-se de Jesus, e com uma jubilosa Primavera a cantar-lhe no coração e a fulgurar-lhe nos olhos foi ter com os discípulos, pela segunda vez, para lhes contar o feliz encontro que acabara de ter com Jesus redivivo: – Eu vi o Mestre, e foi isto que me disse... E começou a contar. Eles, porém, os sisudos discípulos, menearam a cabeça e cheios de compaixão observaram: – Está delirando, esta mulher... Pobrezinha de Madalena, pensavam eles de si para si, sofreu demais; desde a quinta-feira não come nem dorme, passa a chorar dia e noite, e acabou doente e alucinada; toma por fatos reais e objetivos as criações subjetivas da sua imaginação exaltada, está variando em febre... Auto-sugestão, diriam os sábios racionalistas do século XX. Os discípulos, a bem dizer, não se mostraram nada mais crédulos do que os incrédulos dos nossos dias. Se mais tarde se convenceram da realidade histórica da ressurreição, foi só à força de provas e fatos absolutamente irrecusáveis. A Madalena, porém, cabe-lhe a honra suprema de ter sido a primeira mensageira da Páscoa.
O suborno dos guardas do sepulcro Os guardas do sepulcro, depois de fugirem espavoridos do jardim de José de Arimatéia, foram ter com os sumos sacerdotes e fariseus, narrando-lhes os estranhos fenômenos ocorridos em torno do jazigo do crucificado; terremoto, clarões, sepulcro aberto e vazio, figuras estranhas sobre a pedra revolvida... Um mudo desespero empolgou os inimigos do Cristo. Esse homem, ainda depois de morto, era um perigo. Bem lhes dizia a consciência que tudo aquilo não era senão o cumprimento das palavras do Nazareno: No terceiro dia ressurgirei. Mas os gritos da paixão fizeram calar as vozes da razão. Que fazer? Apagar quanto antes a perigosa centelha; não permitir que se alastrasse pela cidade tão ingrata notícia. Inculcaram, pois, aos guardas: – Ide e dizei assim: De noite, enquanto nós dormíamos, vieram os seus discípulos e roubaram o corpo. Ninguém afirmará que este expediente fosse lá um atestado brilhante do critério e da perspicácia dos seus inventores; mas, no meio daquela perplexidade geral, não lhes ocorreu outro menos absurdo. E assim é que com o fracasso da verdade fracassou também a lógica do Sinédrio... Conforme se depreende das palavras seguintes, os soldados romanos fizeram ver o perigo que para eles, os guardas, envolvia a divulgação de semelhante notícia; porque, na qualidade de sentinelas incumbidas de vigiar, não tinham licença para dormir – e Pilatos não era muito amigo de guardas dormentes... Tranquilizaram-nos, porém, os sacerdotes, dizendo: – Se isto chegar aos ouvidos do governador, não deixaremos de o apaziguar e advogar a vossa causa. A política, como se vê, foi desde o princípio um dos argumentos principais dos inimigos do Cristianismo. Os sacerdotes conheciam os “fracos” do governador...
Parece que ainda assim os guardas hesitaram, indecisos; afigurava-se-lhes por demais absurdo espalhar esse boato: Enquanto nós dormíamos vieram os seus discípulos e roubaram o corpo... Pois, se dormiam, não podiam ver chegar os discípulos; e se mesmo assim os tivessem visto, por que não impediram o roubo?... Três absurdos numa única frase!... Mas o que não valera o poder da política alcançou-o a força do dinheiro. Deram aos guardas uma grande soma de dinheiro, diz o historiador, para que divulgassem essa notícia. E eles venderam a inteligência pelo estômago! Com os bolsos a retinir de reluzentes, sentiram-se com suficiente coragem para sacrificar a verdade à mentira, e apregoar por toda parte que os discípulos tinham roubado o corpo do crucificado. A morte da humanidade de Jesus custara ao Sinédrio apenas trinta moedas de prata; mas a tentativa de assassinarem o Cristo saiu-lhes bem mais cara – e ainda assim foi tudo em pura perda: não lograram aniquilar a divindade do Cristo, e a humanidade de Jesus surgiu rediviva. As teorias e hipóteses da “explicação natural” que têm sido forjadas em torno da ressurreição, nestes dezenove séculos, mantêm-se todas ao mesmo nível da primeira: sofrem todas da mesma tara, laboram todas no mesmo “pecado original”, vivendo em pé de guerra com os ditames da lógica e as leis do bom senso. Não se prende um gigante com teias de aranha... Enquanto nós dormíamos...
Caminho de Emaús Deixou-nos o exímio narrador Lucas a descrição de um episódio ocorrido na tarde da primeira Páscoa cristã – descrição em que cada frase e cada palavra levam o cunho da mais concreta realidade, pela qual vibra toda uma escala de sentimentos genuinamente humanos. É a história dos discípulos de Emaús. É esta descrição uma das mais deliciosas que encontramos nos Evangelhos; verdadeira obra-prima de espontânea naturalidade, envolta no colorido característico de uma insofismável autenticidade. Quem nos deixou a primeira narração deste fato deve ter sido testemunha presencial das ocorrências. Escritor que tal cena inventasse seria maior que seu próprio herói. Emaús é uma pequena aldeia que fica ao oeste de Jerusalém, uns doze quilômetros, ou sejam, duas léguas de caminho. Páscoa, de tarde... Primavera em flor. Ia o sol declinando lentamente por detrás da serrania de Efraim, enviando os seus raios obliquamente através dos escuros ciprestes, que margeavam boa parte do caminho de Jerusalém a Emaús. A essa hora encontramos dois viandantes a palmilhar a estrada poeirenta. Vão solitários e acabrunhados e nada percebem das harmonias da natureza nem das belezas do declínio. Conversam a meia voz, como se receassem profanar melindroso mistério. Os seus diálogos vêm entrecortados de longas reticências e dolorosos suspiros... É que para esses dois caminheiros não despontara ainda o sol da Páscoa. Discípulos do Nazareno, tinham presenciado o drama sangrento da crucificação e morte dele, e suas almas gemiam ainda sob o peso da catástrofe do Gólgota... Três anos de doce ilusão, e agora essa inesperada desilusão dos seus sonhos!... Dia por dia, aguardavam eles a proclamação do reino de Deus – e, agora, este completo fracasso!... Com que santo entusiasmo haviam esses discípulos aplaudido os prodígios do grande Mestre, enlevados com a sua doutrina, encantados com a sua personalidade – e, agora, tudo acabado!...
Para que ficar ainda em Jerusalém? Por maior que fosse a perplexidade dos dois viajores, uma coisa era certa: Jesus não era o Messias prometido; era, portanto, inútil esperar ainda por seu reino. Não falara ele em ressurreição no terceiro dia? Mas esse terceiro dia estava prestes a findar – e nada de ressurreição... Enquanto os dois andavam palmilhando a estrada de Jerusalém a Emaús, relembrando os fatos, perceberam passos por detrás. Retardaram o passo a fim de deixar passar o viandante; devia ser um dos numerosos peregrinos que, nesse dia, após a Páscoa, deixavam a capital e iam em demanda dos seus lares. Queriam que o desconhecido seguisse caminho. Dor tão íntima como a deles não se comunica a qualquer estranho. Mas o recém-chegado também retardou o passo, emparelhou com os dois, saudou-os amigavelmente e, sem cerimônias, perguntou: – Que conversas são essas que entretendes um com o outro e por que andais tão tristes? Calaram-se eles. Que tinha esse estranho que ver com os seus dolorosos segredos? Como poderiam os dois discípulos comunicar a um transeunte qualquer o que lhes soluçava nas profundezas da alma dolente e chagada?... Até que, finalmente, um deles, por nome Cléofas, observou com um gesto de estranheza: – Como? És tu o único forasteiro em Jerusalém que ignoras o que se passou nestes dias? Pois não se falava de outra coisa, na capital, senão da morte trágica do profeta de Nazaré, que nas Páscoas anteriores formara o centro de todas as atenções. Os dois discípulos não compreendiam que de outra coisa pudesse alguém falar nesses dias e estranharam a pergunta do recém-chegado. – Que foi? – perguntou este, como quem ignora tudo. Então começaram os dois a expandir-se e desabafar os seus sentimentos, lançando em poucos traços a primeira biografia de Jesus. O que aí está no Evangelho de Lucas não passa de um complexo de frases soltas, de fragmentos e palavras mais ou menos concatenadas. Ora fala um, ora outro. Um homem profundamente emocionado não constrói frases, não cogita de gramática; fala em pequenos incisos, fragmentos e reticências. – Aquilo de Jesus de Nazaré – dizem eles. – Era um profeta poderoso... em palavras e obras, diante de Deus e de todo o povo...
Aquilo de Jesus de Nazaré... É lei psicológica que o homem, quando anda com a alma em chaga viva, evite formular vocábulos que lhe exacerbem as feridas; recorre a termos gerais ou discretos circunlóquios. Assim, em lugar da palavra “morte”, preferem os dois dizer veladamente “aquilo”?... – Mas os nossos magistrados e os sumos sacerdotes o entregaram à pena de morte e o crucificaram... Pausa... Cabisbaixos seguem o seu caminho... Era tão pesado o luto das suas almas... Até que um deles, quebrando o doloroso silêncio, prossegue: – Nós, porém, esperávamos que fosse ele o salvador de Israel... Pausa... O resto da frase perde-se em reticências que, de tão dolorosas, não convinha fossem vocalizadas... Alongam-se cada vez mais as sombras que as colunas esguias dos ciprestes projetam sobre o caminho. – De mais a mais – prosseguiu Cléofas – já é agora o terceiro dia depois que tudo aquilo aconteceu... É a segunda parte de uma frase, cuja primeira ficou apenas em pensamento, e seria esta: Prometera o Nazareno ressurgir ao terceiro dia; mas... Quando os nossos pensamentos são muito intensos e vibrantes, muitas vezes não os distinguimos das palavras; confundimos o verbo concebido com o verbo nascido – e falamos por elipses, reticências e meias-frases. Prosseguiu o outro discípulo, externando alguns fragmentos de pensamentos que lhe tumultuavam o espírito, dizendo: – Verdade é que algumas das mulheres do nosso meio nos aterraram... Tinham ido ver o sepulcro, muito de madrugada. Mas não encontraram o corpo... E voltaram com a notícia de terem tido uma visão de anjos, os quais lhes declararam que ele está vivo... Ao que alguns dos nossos foram ao sepulcro e encontraram as coisas como as mulheres tinha dito... Mas a ele mesmo não o viram... Aí está um compêndio biográfico de Jesus, tecido de meias-frases e de reticências, que fazem lembrar soluços e gotejar de lágrimas. Seguiram os três em silêncio por alguns momentos.
De súbito, parando no meio do caminho e encarando os seus companheiros, exclamou o desconhecido: – Oh! Homens sem critério, quão tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram!... Não era então necessário que o Cristo padecesse tudo aquilo para assim entrar em sua glória?... Os dois entreolharam-se e tinham a sensação de despertarem de um sonho doloroso. Mas não acabavam ainda de despertar; continuavam como num sonambulismo semiconsciente. Enquanto prosseguiam viagem começou o estranho a expor-lhes, um por um, a principar por Moisés, todos os textos sacros que falam do Messias. E, durante essa “conferência bíblica” do misterioso alguém, deflagrou cada vez mais intenso o amor dos dois, e também a fé e esperança começaram a reacender-se em suas almas. Afinal de contas, ainda não estava tudo perdido... O Nazareno – quem sabe? – podia ainda ser o Messias, o salvador de Israel!... Nisto chegaram numa bifurcação do caminho. O desconhecido fez menção de tomar pelo atalho que se apresentava. Os dois, porém, tanto insistiram fazendo ver o adiantado da hora, que ele, afinal de contas, aceitou o convite e os acompanhou a Emaús. Tornara-se-lhes um amigo querido, um grande consolador das suas almas acabrunhadas... Levariam boa parte da noite em grata palestra sobre o crucificado... Aquelas palavras iluminavam as trevas que desde a sexta-feira pesavam sobre os corações dos dois discípulos solitários... Chegaram. Sentaram-se à mesa e tomaram ligeira refeição. O hóspede tomou o pão, benzeu-o, partiu-o, distribuiu-o aos seus amigos. E eis que neste momento eles o reconheceram. – Era Jesus! E, no mesmo instante, desapareceu da vista deles... Mal desaparecera Jesus, quando os dois, despertando definitivamente do seu estranho sonambulismo, disseram entre si: – Não se nos abrasava o coração quando, pelo caminho, nos falava e nos explicava as escrituras? Ainda na mesma hora regressaram a Jerusalém.
Aí encontraram reunidos os doze discípulos e demais companheiros, que saudaram os dois com a alviçareira notícia: “O Mestre ressuscitou realmente e apareceu a Simão!” Então referiram os de Emaús o que lhes sucedera pelo caminho e como também eles tinham visto a Jesus redivivo. E foi imensa a alegria de parte a parte.
Aparição aos discípulos reunidos Ainda estavam os discípulos reunidos na mesma sala comentando os últimos acontecimentos e a aparição que Cléofas e seu companheiro acabavam de referir. Depois da entrada dos discípulos de Emaús, tinham tornado a fechar cuidadosamente as portas da casa, com medo dos judeus. Era ao cair da tarde. Acabavam de tomar a refeição vespertina e achavam-se agrupados em derredor das mesas – quando subitamente viram no meio da sala um vulto misterioso. Levantaram-se aterrados e recuaram, cuidando ver um espírito, um fantasma, como naquela noite, quando Jesus lhes aparecera caminhando sobre as ondas revoltas do Genesaré. Sim, um espírito!... Pois, como podia um corpo penetrar naquele recinto com todas as aberturas fechadas? Enquanto os discípulos, de olhos arregalados, contemplam o estranho fenômeno, este avança lentamente sobre eles e lhes diz em tom suave e tranquilizador: – A paz seja convosco! Salem aleikum! – a paz contigo! – É a bela e simpática saudação que ainda hoje se ouve nas ruas e nos campos da Palestina. Os discípulos perceberam a saudação pacífica, mas continuaram transidos do mesmo terror que, involuntariamente, infunde aos mortais a interferência de um fenômeno estranho na esfera da ordem natural. Disse-lhes então Jesus: – A que vem esse medo? E por que essas dúvidas nos vossos corações? Eles nada responderam. Prosseguiu a aparição: – Vede as minhas mãos e os meus pés; sou eu mesmo; apalpai e vede; um espírito não tem carne e osso como vedes que eu tenho... Entreolharam-se os discípulos, aproximaram-se de Jesus, e alguns deles se convenceram da realidade. Outros, porém, não podiam crer coisa tão incrível: o crucificado redivivo.
Perguntou-lhes Jesus: – Tendes aqui alguma coisa que se coma? Ofereceram-lhe uma posta de peixe e um favo de mel. Eram as sobras da frugal refeição. Jesus tomou do peixe e do mel que lhe ofereceram, comeu à vista deles e restituiu-lhes o resto. E os bons discípulos começam a apalpar as mãos do Nazareno, a princípio com reserva e timidez, depois com mais afoiteza e, por fim, rendem-se à evidência, exclamando cheios de jubilosa surpresa: É o mestre!... É ele mesmo!... Não compreendiam ainda que o corpo fluídico, sem deixar de ser verdadeiro corpo humano, se revestisse de propriedades que o isentavam das acanhadas leis da matéria. Pela segunda vez lhes disse Jesus: – A paz seja convosco! Colocou-se no meio dos seus e disse-lhes: – Assim como meu Pai me enviou, também eu vos envio. Depois destas palavras, soprou Jesus sobre os discípulos e disse-lhes: – Recebei o Espírito Santo: a quem vós perdoardes os pecados ser-lhe-ão perdoados, e a quem vós os retiverdes ser-lhe-ão retidos.
Jesus e Tomé Na Páscoa, de tarde, quando Jesus apareceu aos discípulos reunidos, Tomé não estava presente. Onde estava ele? Não sabemos. Tomé, parece, tinha um gênio pouco sociável, que o levava a separar-se da convivência dos companheiros. Alguns meses antes, na Peréia, quando Jesus se dispunha a ir para Jerusalém, ao encontro da morte, exclamou Tomé: Vamos também nós e morramos com ele! Terá sido simples heroísmo que inspirou essas palavras? Não vibra nelas um quê de derrotismo, que considera tudo perdido e se sujeita a um destino inevitável? Quando, depois da Páscoa, Tomé tornou a encontrar-se com os demais discípulos, foi recebido com esta exclamação de júbilo: – Vimos Jesus! Tomé sorriu com um sorriso cético e desdenhoso e, sem ligar a menor importância a tão sensacional notícia, respondeu: – Se eu não lhe vir nos punhos as marcas dos cravos, se não lhe introduzir a mão no lado não acreditarei! É próprio do cético estar firmemente convencido da verdade das suas idéias pessoais, e descrer das palavras dos outros; duvida de tudo, menos de si mesmo. E – coisa estranha! – o Nazareno aceita as condições e condescende com a teimosia do discípulo. Passados oito dias, achavam-se os discípulos outra vez portas adentro, e Tomé com eles. Eis senão quando entra Jesus, de portas fechadas, coloca-se no meio deles e lhes diz: – A paz seja convosco!
Desta vez não foi tão grande o terror dos discípulos; já estavam habituados a esse novo modo de vida do Mestre. Apenas um se conservou arredio, cheio de desconfiança. Era Tomé. Aproximou-se dele o ressuscitado e, sem mais preâmbulos, aludindo às palavras exigentes do cético disse: – Introduze teu dedo aqui e vê os meus pulsos; vem com tua mão e mete-a no meu lado, e não sejas descrente, mas crente. O discípulo incrédulo, vencido pela realidade, caiu de joelhos balbuciando: – Meu Senhor e meu Deus! Advertiu-lhe Jesus em tom suave e severo ao mesmo tempo: – Tens fé porque viste. Bem-aventurado os que não viram, e contudo têm fé. Tanto das palavras de Tomé como das de Jesus se depreende que a chaga do lado era da largura de uma mão, correspondente à lança do soldado romano. E nessa oitava da ressurreição também o discípulo descrente, tornado crente à luz meridiana da evidência, celebrou a sua Páscoa em companhia de Jesus redivivo e cantou o aleluia da paz e da felicidade.
Aparição na praia de Genesaré Depois das primeiras aparições em Jerusalém, haviam os discípulos, obedientes à ordem do Mestre, regressado à sua terra natal. Todos os discípulos, à exceção do infeliz Iscariotes, eram filhos da Galiléia. Havia três anos que tinham abandonado as suas barcas e redes de pescadores. Enquanto estava com eles o Mestre, nunca lhes faltara coisa alguma; procuravam em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça, e tudo o mais lhes era dado de acréscimo. Mas agora?... O mestre já não estava... Habitava em outros mundos, e só de vez em quando aparecia, e logo desaparecia de um modo inexplicável. Já não compartilhava propriamente a vida dos seus discípulos; e eles sentiam esse alheamento e esse abismo invisível que se abrira entre Jesus e eles... Estavam sós no mundo... Para ganharem o sustento necessário, retomaram a sua profissão de pescadores. Alugaram umas lanchas, uns remos, umas redes, e lá se foram mar afora!... Pareciam ter voltado os tempos de outrora. Mas quão grande era a diferença!... Uma estranha metamorfose se operara na alma daqueles homens. Pescavam, lançavam as suas tarrafas, afadigavam-se na faina – mas sentiam-se alheios a essa ocupação. O corpo lá estava – o espírito, porém, vagava longe, muito longe... Outrora, entregavam-se de corpo e alma às labutas da pesca, dias e noites a fio; viviam identificados com os seus labores. – Agora, só por necessidade recorriam a esses trabalhos. Estava deslocado o seu centro de gravitação. O homem, desde que descobre os mundos do espírito, já não pode viver satisfeito no mundo da matéria... Os discípulos tinham a impressão de terem dormido até o dia em que a voz do Nazareno os despertara do profundo letargo.
Outrora, quando saíam a pescar, conversavam, forjavam planos e arquitetavam castelos sobre o melhoramento econômico da sua condição. – Agora, o único tema das suas conversações era ele, só ele, sempre ele... Nesses três anos tinha a alma dos discípulos percorrido distâncias de infinita extensão... Tinham recebido algo do espírito de Jesus, e desde então sentiam dentro de si o anseio do infinito, o tormento de Deus, a nostalgia da eternidade... *** Certa tarde, disse Simão Pedro aos companheiros hospedados em sua casa: – Vou pescar. Responderam eles: – Vamos também nós contigo. Foram. Ocuparam uma barca, empunharam os remos e fizeram-se ao largo. Com que saudades não terão evocado as travessias do lago tantas vezes empreendidas em companhia do Mestre!... E agora, sozinhos, sem ele!... Cruzaram as águas, procuraram os lugares onde outrora tinham feito pescas, lançaram e recolheram as redes, vezes sem conta – e nada! Tudo em vão! A sorte era-lhes adversa. Ao clarear do dia foram em demanda da praia, com a barca tão vazia como à noite. Avistaram então o homem no litoral. – Filhinhos – disse ele –, não tendes nada que comer? – Nada – responderam eles. Pelo laconismo da resposta, já se via que não vinham bem-humorados. Caçador que nada acertou, pescador que nada apanhou, não estão para muita conversa. O da praia, porém, prosseguiu, imperturbável e amistoso, dizendo: – Lançai a rede à direita da barca, e apanhareis alguma coisa. O desconhecido parecia entendido em pescaria; a sua indicação vinha tão precisa e categórica... Lançaram, pois, a rede e manobraram com perícia de velhos profissionais. E logo sentiram palpitações promissoras nas cordas da tarrafa. Recolheram-na,
mas já não conseguiram puxá-la fora da água, de tão pesada que vinha de peixes. – É o Mestre – exclamou João, voltando-se para Pedro. Assim que Pedro ouviu dizer que era o Mestre, cobriu-se com a túnica e lançou-se ao mar. O conhecimento é de João, a ação é de Pedro. Este é sempre o mesmo caráter impetuoso, arrebatado, amigo das realizações imediatas. Podia ter remado em demanda da praia. Mas essa morosidade não se compadecia com o gênio dinâmico do fogoso galileu; nadar era melhor, porque chegaria mais depressa. Ainda assim, teve reflexão e delicadeza suficientes para não se apresentar ao Mestre totalmente nu. Os outros foram seguindo à força do remo, arrastando a rede de peixes, pois não conseguiam levantá-la fora da água, de tão cheia que estava. Quando abicaram à praia, viram um braseiro com um peixe em cima, e pão. Disse-lhes Jesus: – Trazei dos peixes que acabais de apanhar. Entrou Simão Pedro na barca e puxou para a terra a rede repleta de 153 peixes grandes. E, com serem tantos, não se rompeu a rede – acrescenta João Evangelista, maravilhado. Tão profunda foi a impressão deste prodígio que, quase centenário, ainda se recordava o discípulo predileto do número exato dos peixes – 153 –, e todos eles muito grandes – caso virgem nos anais da pescaria palestinense! – Vinde almoçar – disse Jesus amigavelmente, e começou a distribuir-lhes dos peixes e do pão. Os discípulos entreolhavam-se e contemplavam a Jesus com certa estranheza. Sabiam que era o Mestre mas... parecia não estar tão perto deles como outrora... Um quê de mistério envolvia a sua personalidade... Não era deste mundo... Era apenas um hóspede passageiro vindo de regiões longínquas cheias de enigmas...
Pedro e o pastor Depois do almoço na praia do Genesaré, ainda se conservavam os discípulos agrupados em torno do Mestre, ansiosos por ouvirem algumas palavras dos seus lábios. Então se dirigiu Jesus a Simão Pedro em particular, e perguntou-lhe: – Simão, filho de João, amas-me mais do que estes? Simão respondeu: – Mestre, tu sabes que te quero... Em outros tempos teria ele prorrompido em veementes protestos de amor, exclamando: – Sim, Mestre! Eu te amo mais que todos! – Assim como dissera na quinta-feira à noite. Ainda que todos se escandalizem de ti, eu nunca me escandalizarei! Estou pronto a ir contigo para o cárcere e para a morte! Entretanto, a escola da vida e a vergonhosa queda da sexta-feira tinham tornado cauteloso e humilde o fogoso galileu. Não ousou afirmar peremptoriamente que amava a Jesus; achou mais prudente apelar para a ciência do Mestre, dizendo: – Tu sabes que te quero... Nem diz “amo-te” mas simplesmente “quero-te”; como se receasse que a inconstância do seu caráter não correspondesse à gravidade da palavra “amar”, preferiu-lhe o termo singelo e afetuoso “querer”6. Muito menos ainda se atreve a estabelecer paralelo entre o seu amor e o dos seus colegas. 6. O texto grego distingue expressamente entre a palavra agapein (amar) e philein (querer). É de supor que também no aramaico Jesus e Pedro tenham empregado duas palavras correspondentes.
Respondeu-lhe o Mestre: – Apascenta os meus cordeiros. Pela segunda vez repete Jesus a mesma pergunta, e recebe de Simão a mesma resposta: – Mestre, tu sabes que te quero. E pela terceira vez insiste o Mestre na mesma pergunta, usando desta vez também a palavra “querer”, com que Pedro respondera invariavelmente: – Simão, filho de João, queres-me?
Quando o discípulo ouviu esta terceira pergunta, lembrou-se da sua tríplice negação, que também ocorrera ao pé de um braseiro, como estas três perguntas e estes três protestos de amor. E, meio hesitante, respondeu: – Mestre, tu sabes todas as coisas, sabes também que te quero... Então disse Jesus: – Pastoreia as minhas ovelhas. Apascentar os cordeiros e pastorear as ovelhas significa, na linguagem simbólica do Nazareno, governar e votar amorosa solicitude ao seu rebanho. *** Depois disto, começou Jesus a andar ao longo da praia do lago, em companhia de Pedro. E disse-lhe com ares de mistério e solenidade: – Em verdade, em verdade te digo: quando eras moço, tu mesmo te cingias e andavas onde querias, mas, quando fores velho, estenderás as mãos, e outro te cingirá e te levará para onde tu não queres. Com estas palavras aludia Jesus ao gênero de morte (crucifixão) que Pedro ia ter. Depois acrescentou: – Segue-me! Simão e João, filho de Zebedeu, tinham sido companheiros inseparáveis a vida inteira; parece até que existia entre Simão e a família de Zebedeu uma espécie de sociedade comercial de pesca – Simão, Zebedeu & Cia. Por isso, quando o velho galileu ouviu dos lábios de Jesus qual seria o gênero da sua morte, ardia de impaciência por saber da sorte final de seu companheiro e sócio João, e afoitamente interrogou o mestre: – E que será deste, Senhor? Não era costume de Jesus responder a perguntas de mera curiosidade. Quando os discípulos quiseram saber quando seria o fim do mundo, não tiveram resposta clara da parte do Mestre. Também desta vez ladeou Jesus a questão, dizendo a Pedro: – Se eu quero que ele fique até a minha volta, que tens tu com isto?... Quanto a ti – segue-me!
Missão mundial dos discípulos. Ascensão de Jesus Após a sua ressurreição, passou Jesus ainda quarenta dias aqui no mundo, aparecendo e desaparecendo, instruindo os seus sobre o seu reino a abrindolhes a compreensão das Escrituras. Nos campos da Palestina caíam, sob as foices dos ceifadores, as últimas espigas de trigo. Era pleno verão quando Jesus resolveu deixar a Galiléia e regressar para a Judéia. Nascera e morrera em terras de Judá, e ali é que poderia rematar a sua carreira. Pela última vez puxaram os discípulos à praia as suas toscas embarcações e suspenderam à parede da choupana as velhas redes de pescar. Depois desses quarenta dias que tinham sido uma espécie de férias, aproxima-se o tempo de intensa atividade apostólica. Em Jerusalém, já quase ninguém falava no ruidoso “caso de Jesus Nazareno”; outros acontecimentos prendiam a atenção do público. Pela última vez apareceu Jesus aos seus e disse-lhes: – Quando ainda estava convosco, disse-vos que importava se cumprisse tudo o que a meu respeito está escrito na lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos... E continuou, dizendo: – Em meu nome será pregada a conversão e a remissão dos pecados a todos os povos, a principiar por Jerusalém. Vós sois testemunhas de tudo isto. E eis que vos enviarei aquele que o Pai prometeu. Ficai na cidade até que sejais munidos do poder do alto. Na manhã do 40° dia encaminhou-se Jesus com os seus discípulos para o Horto das Oliveiras, tomando o mesmo caminho que trilhara naquela memorável quinta-feira, véspera da sua morte. Desceu a encosta pedregosa de Sião, cruzou o vale de Cedron, passou pelas rochas calcárias e pelas oliveiras cinzentas do Getsêmani. Viu o lugar onde sua alma se convulsionou em horrorosa agonia e seu corpo derramara suor de sangue...
Chegado ao topo do monte, reuniu em torno de si o pequeno rebanho dos seus amigos – os discípulos, sua mãe, Madalena, Salomé e outras – e dirigiu-lhes a palavra dizendo: – A mim me foi dado todo o poder no céu e na terra. Ide, pois, e fazei discípulos meus todos os povos, mergulhando em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo quanto eu vos tenho mandado. E eis que estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos. Depois destas palavras, ergueu Jesus as mãos ao céu e abençoou os seus. E, enquanto os abençoava, foi-se elevando lentamente, subindo, subindo, subindo... Sumiu a figura do Nazareno no meio de uma nuvem luminosa, mas os seus ainda lá estavam, no topo da colina, com os olhos fitos no céu – quando apareceram ao lado deles dois vultos e lhes disseram: – Homens da Galiléia! Que estais aqui a contemplar o céu? Este mesmo Jesus, que acaba de ser assumido ao céu, de lá voltará assim como o vistes subir. E eles, cheios de alegria, regressaram a Jerusalém, na certeza de que o Mestre, embora invisível, estava com eles até o fim dos seus dias, até a consumação dos séculos.
Vem, Jesus Nazareno! Há longos meses, meu querido Mestre, que venho seguindo a teu lado, pelas montanhas da Galiléia, pelas campinas da Samaria, pelas cidades da Judéia, pelas ruas de Jerusalém. No fim destas páginas, que vivi e sofri contigo e por ti, só me resta pedir-te perdão das inúmeras falhas e imperfeições de que elas vêm repletas, e rogarte que, com a tua divina sabedoria, supras a minha humana ignorância. Jesus Nazareno!... Estamos com saudades de ti... Já não podemos viver sem ti... A babel da sociedade moderna suspira pela paz das tuas palavras... As nossas saudades soluçam pungentes de dor e desventura... Estamos cansados dos nossos pecados... enjoados dos nossos vícios... nauseados das brilhantes futilidades do mundo... Volta a este mundo, ó Jesus Nazareno!... Volta, aureolado daquele encanto primaveril, daquele frescor juvenil, daquele fulgor estelar que, há vinte séculos, arrebataram o coração varonil de um Simão Pedro, enlevaram a alma contemplativa de um João Evangelista, o coração de Maria de Mágdala... Jesus Nazareno!... Torna a ser para os filhos do século XX o que foste para os cristãos das catacumbas, para os mártires do Coliseu, para os místicos do ermo. Jesus Nazareno!... A história destes vinte séculos é a continuação da tua peregrinação terrestre. Os homens maltratam-te... Esbofeteiam-te... Flagelamte em praça pública... Coroam-te de espinhos... Arrastam-te de tribunal a tribunal, da astúcia de Anás à insolência de Caifás, da covardia política de Pilatos à escandalosa luxúria de Herodes... Crucificam-te... Sepultam-te na indiferença e no esquecimento... Os lscariotes atraiçoam-te... Os Simão Pedro negam-te... Os fariseus insultam-te...
Os discípulos abandonam-te... *** Tu sabes, meu querido Rabi, quão difícil é descobrir através dos nevoeiros do presente século o FULGOR DOS TEUS OLHOS... Amesquinhada pela humana fraqueza, desmaiou a pulcritude do teu perfil... A simplicidade do teu Evangelho está reduzida a uma teia de exterioridades, a um labirinto de formalismos, em que o espírito se desnorteia e a alma agoniza asfixiada... Os homens procuram modelar à sua imagem e semelhança a divina epopéia do teu Evangelho... Os homens não querem subir às alturas – querem que tu desças às baixadas deles. O teu Evangelho foi substituído pelas teologias. A tua bandeira flutua sobre o quartel-general do anticristo. A imprensa, a literatura, o cinema, a televisão te reduziram a uma caricatura... *** Volta, pois, Jesus Nazareno! Volta a este mundo que só tu podes salvar... Encontrarás maior número de fariseus do que naquele tempo; não passarás três anos de vida pública sem seres crucificado; porque os teus lábios proferem verdades dolorosas, verdades contrárias aos ídolos do coração humano e aos fetiches proteiformes da sociedade; a suprema simplicidade do teu caráter nunca se aviltou a ponto de pactuar com a política penumbrista das atitudes covardes e das posições indefinidas – e os homens não te perdoarão jamais essa sinceridade... Por isso, meu Jesus, serás crucificado pelos fariseus do nosso século. Os judeus crucificaram uma vez o teu corpo – mas os cristãos crucificam o teu espírito há quase vinte séculos. Nós, porém, os teus discípulos, estaremos como guarda de honra ao pé da tua cruz e nos cobriremos com o manto sanguinolento dos teus opróbrios... O que importa, Senhor, é que venhas quanto antes para infundir vida nova a este organismo languescente e doente da sociedade moderna... É necessário que venhas reintegrar o teu Evangelho na suprema beleza daquela simplicidade com que brotou dos teus lábios divinos...
Vem, Jesus Nazareno!...
DADOS BIOGRÁFICOS
Huberto Rohden
Nasceu na antiga região de Tubarão, hoje São Ludgero, Santa Catarina, Brasil em 1893. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia e Teologia em universidades da Europa – Innsbruck (Áustria), Valkenburg (Holanda) e Nápoles (Itália). De regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor. Publicou mais de 65 obras sobre ciência, filosofia e religião, entre as quais várias foram traduzidas para outras línguas, inclusive para o esperanto; algumas existem em braile, para institutos de cegos. Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e dirigiu o movimento filosófico e espiritual Alvorada. De 1945 a 1946 teve uma bolsa de estudos para pesquisas científicas, na Universidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a
constituição do próprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática, Metafísica e Mística. Em 1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, de Washington, D.C., para reger as cátedras de Filosofia Universal e de Religiões Comparadas, cargo este que exerceu durante cinco anos. Durante a última Guerra Mundial foi convidado pelo Bureau of lnter-American Affairs, de Washington, para fazer parte do corpo de tradutores das notícias de guerra, do inglês para o português. Ainda na American University, de Washington, fundou o Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim de manter intercâmbio cultural entre o Brasil e os Estados Unidos. Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, o Golden Lotus Temple, onde foi iniciado em Kriya-yoga por Swami Premananda, diretor hindu desse ashram. Ao fim de sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado para fazer parte do corpo docente da nova International Christian University (ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e Religiões Comparadas; mas, por causa da guerra na Coréia, a universidade japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi nomeado professor de Filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não tomou posse. Em 1952, fundou em São Paulo a Instituição Cultural e Beneficente Alvorada, onde mantinha cursos permanentes em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia, sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho, e dirigia Casas de Retiro Espiritual (ashrams) em diversos estados do Brasil. Em 1969, Huberto Rohden empreendeu viagens de estudo e experiência espiritual pela Palestina, Egito, Índia e Nepal, realizando diversas conferências com grupos de iogues na Índia. Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer conferências sobre autoconhecimento e autorrealização. Em Lisboa fundou um setor do Centro de Autorrealização Alvorada. Nos últimos anos, Rohden residia na capital de São Paulo, onde permanecia alguns dias da semana escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos definitivos. Costumava passar três dias da semana no ashram, em contato com a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário-modelo. Quando estava na capital, Rohden frequentava periodicamente a editora responsável pela publicação de seus livros, dando-lhe orientação cultural e inspiração.
À zero hora do dia 8 de outubro de 1981, após longa internação em uma clínica naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu deste mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras em estado consciente foram: “Eu vim para servir à Humanidade”. Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo de fé e trabalho, somente comparados aos dos grandes homens do século XX. Huberto Rohden é o principal editando da Editora Martin Claret.
Relação de obras do Prof. Huberto Rohden Coleção Filosofia Universal O pensamento filosófico da Antiguidade A filosofia contemporânea O espírito da filosofia oriental
Coleção Filosofia do Evangelho Filosofia cósmica do Evangelho O Sermão da Montanha Assim dizia o Mestre O triunfo da vida sobre a morte O nosso Mestre
Coleção Filosofia da Vida De alma para alma Ídolos ou ideal? Escalando o Himalaia O caminho da felicidade Deus Em espírito e verdade Em comunhão com deus Cosmorama Por que sofremos Lúcifer e Lógos A grande libertação Bhagavad Gita (tradução) Setas para o infinito Entre dois mundos Minhas vivências na Palestina, Egito e Índia Filosofia da arte A arte de curar pelo espírito. Autor: Joel Goldsmith (tradução) Orientando “Que vos parece do Cristo?” Educação do homem integral Dias de grande paz (tradução)
O drama milenar do Cristo e do Anticristo Luzes e sombras da alvorada Roteiro cósmico A metafísica do cristianismo A voz do silêncio Tao Te Ching de Lao-tse (tradução) Sabedoria das parábolas O Quinto Evangelho segundo Tomé (tradução) A nova humanidade A mensagem viva do Cristo (Os quatro Evangelhos – tradução) Rumo à consciência cósmica O homem Estratégias de Lúcifer O homem e o Universo Imperativos da vida Profanos e iniciados Novo Testamento Lampejos evangélicos O Cristo cósmico e os essênios A experiência cósmica Panorama do cristianismo Problemas do espírito Novos rumos para a educação Cosmoterapia
Coleção Mistérios da Natureza Maravilhas do Universo Alegorias Ísis Por mundos ignotos
Coleção Biografias Paulo de Tarso Agostinho Por um ideal – 2 vols. autobiografia Mahatma Gandhi Jesus Nazareno Einstein – o enigma do Universo Pascal Myriam
Coleção Opúsculos Catecismo da filosofia Saúde e felicidade pela cosmo-meditação Assim dizia Mahatma Gandhi (100 pensamentos) Aconteceu entre 2000 e 3000 Ciência, milagre e oração são compatíveis? Autoiniciação e cosmo-meditação Filosofia univérsica – sua origem sua natureza e sua finalidade