Revista Prâksis - Agosto de 2013

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Associação Pró-Ensino Superior em Novo Hamburgo - ASPEUR Universidade Feevale

Prâksis Revista do ICHLA Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes —ICHLA—

Ano X - Volume 2 - Agosto de 2013

Editora Feevale | 2013 |


Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes

PRESIDENTE DA ASPEUR Luiz Ricardo Bohrer REITOR DA UNIVERSIDADE FEEVALE Ramon Fernando da Cunha

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PRÓ-REITOR DE PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO Alexandre Zeni PRÓ-REITOR DE PESQUISA E INOVAÇÃO João Alcione Sganderla Figueiredo PRÓ-REITORA DE EXTENSÃO E ASSUNTOS COMUNITÁRIOS Gladis Luisa Baptista DIRETORA DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES Cristina Ennes da Silva COORDENAÇÃO EDITORIAL Inajara Vargas Ramos EDITORA FEEVALE Celso Eduardo Stark Daiane Thomé Scariot Graziele Borguetto Souza Adriana Christ Kuczynski CONTATOS REVISTA PRÂKSIS ISSN: 1807-1112 Homepage: www.feevale.br E-mail: revistadoichla@feevale.br ERS 239, 2755 - CEP: 93352-000 Novo Hamburgo/RS - Fone: 51 3586-8819

- CAPA E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Graziele Borguetto Souza - REVISÃO TEXTUAL Valéria Koch Barbosa - REALIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes - ICHLA - TIRAGEM 400 exemplares, Gráfica Impressul - Jaraguá do Sul/SC - INDEXAÇÃO ICAP - Indexação Compartilhada de Artigos de Periódicos (Disponível em: <http://www.pergamum.pucpr.br/icap/ index.php>); LATINDEX (Disponível em: <http://www.latindex.unam. mx/>); Qualis - CAPES (Disponível em: <http://qualis.capes.gov.br/ webqualis>).

Classificação

- EDITOR CHEFE Márcia Blanco Cardoso - COMISSÃO EXECUTIVA Cristina Ennes da Silva Márcia Blanco Cardoso Valéria Koch Barbosa - CONSELHO EDITORIAL Alfredo Veiga-Neto (UFRGS) Antonio Novoa (Univ. de Lisboa) Juracy Assmann Saraiva (Universidade Feevale) Lisiane Machado de Oliveira Menegotto (Universidade Feevale) Luciana Néri Martins (Universidade Feevale) Magali Mendes de Menezes (UFRGS) Marisa Vorraber Costa (UFRGS) Mauro Augusto Burkert del Pino (UFPel) Nélio Vieira de Melo (UFPE)

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EX PED I ENTE

PRÓ-REITORA DE ENSINO Inajara Vargas Ramos

- PARECERISTAS Caroline Bertani da Silva Cleidi Blos Dresch Dalila Backes Fernando Frederico Bernardes Cláudia Schemes Jozilda Fogaça Lima Lisiane de Oliveira Menegotto Lovani Volmer Luis Henrique Rauber Luiz Antonio Maroneze Mara Evaniza Weinreb Márcia Blanco Cardoso Micheline Neumann Valéria Zanetti Ney

Qualis (CAPES)

Estrato

Área de Avaliação

B2

PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL / DEMOGRAFIA

B3

LETRAS / LINGUÍSTICA

B3

INTERDISCIPLINAR

B4

EDUCAÇÃO

B5

HISTÓRIA

B5

ARTES / MÚSICA

B5

CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS I

B5

SERVIÇO SOCIAL

B5

SOCIOLOGIA

B5

PSICOLOGIA

B5

FILOSOFIA/TEOLOGIA: subcomissão TEOLOGIA


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SUMÁRIO

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EDITORIAL

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Apresentação

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PAULO FREIRE: UM REFERENCIAL PARA A CULTURA DE PAZ Marcio Adriano Cardoso Karine Quadros da Silva

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SOCIABILIDADE PRESENTE NA EAD: A ESCRITA COLETIVA E COLABORATIVA EM UM CURSO DE FORMAÇÃO DOCENTE Paulo Roberto Pasqualotti Marja Leão Braccini

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ENTRE CONVERSAS, LINHAS E AGULHAS... E ARTETERAPIA Braulio Pedroso Fonseca

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EDUCAÇÃO INFANTIL E ENSINO FUNDAMENTAL: ARTICULAÇÃO NECESSÁRIA Andrea Antinolfi Pereira Dalila Inês Maldaner Backes

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DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PRÁTICA DE QUALIDADE EM UMA INSTITUIÇÃO REFERÊNCIA Roberta Wartha Denise Arina Francisco

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PRODUÇÕES ARTÍSTICAS E IDEOLOGIA: AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NAS AULAS DE ARTE, CONCEITO E RELAÇÕES Jéferson Luis de Azeredo Makeila Alves Piazza

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A FORMAÇÃO AMBIENTAL NOS CURSOS DE LICENCIATURA: ENTRE A TRADIÇÃO E A INOVAÇÃO Elisabeth Christmann Ramos

73

APRENDENDO INGLÊS COM PINGUINS O DESENVOLVIMENTO LINGUÍSTICO ATRAVÉS DO JOGO ELETRÔNICO CLUB PENGUIN Conie Smolinski

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MODERNIDADE E FUTEBOL: A EXPERIÊNCIA DO FOOTBALL CLUB ESPERANÇA DE NOVO HAMBURGO: 19001950 Vinícius Moser

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GLEE NA ERA DA CONVERGÊNCIA: MEMÓRIA, INTERATIVIDADE E HIPERTEXTUALIDADE Aline Streck Donato

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A CRÍTICA SOCIAL MACHADIANA INSCRITA EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS E MEMORIAL DE AIRES Simone Maria dos Santos Cunha Juracy Assmann Saraiva Cléber Cristiano Prodanov

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FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES EM AMBIENTE VIRTUAL DE APRENDIZAGEM: POSSIBILIDADES DE AÇÃO E REFLEXÃO PARA A PRÁTICA INCLUSIVA Sandra Maria Koch Patrícia Brandalise Scherer Bassani

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NORMAS GERAIS DE PUBLICAÇÃO


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Editorial

O Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Feevale apresenta, à comunidade científica, a décima nona edição da Revista Prâksis. Nesse segundo volume de 2013, a temática escolhida foi “Escola: espaço de sociabilidade e cultura de paz”, que também foi o tema geral do XIII Seminário Internacional de Educação promovido pelo Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes em agosto de 2012. A Revista Prâksis tem um caráter multidisciplinar e seu principal objetivo é fomentar as discussões acadêmicas, através da apresentação de pesquisas concluídas ou em andamento e que possibilitam inúmeras reflexões a respeito de temas complexos e abrangentes. Na presente edição, os doze artigos selecionados constituem um olhar multifacetado sobre a temática proposta e que contribuirão para a produção de conhecimento na áreas das Ciências Humanas, Letras e Artes. No primeiro artigo, intitulado “Paulo Freire: um referencial para a cultura de paz”, o autor Márcio Adriano Cardoso enfatiza a importância desse educador para a atualidade, na construção de uma cultura de paz. No artigo “Sociabilidade presente na EAD: a escrita coletiva e colaborativa em um curso de formação docente”, os autores Paulo Pasqualotti e Marja Leão Braccini apresentam uma experiência de atividade colaborativa e as interações possíveis num curso que faz parte do Programa de Formação Docente para Tecnologias Educacionais da Universidade Feevale. Já o artigo de Bráulio Pedroso Fonseca, intitulado “Entre conversas, linhas e agulhas...e arteterapia”, apresenta a prática

realizada pelo autor da utilização da Arteterapia no processo de construção de autoestima e socialização de jovens que sofreram abusos sexuais. O quarto artigo, intitulado “Educação Infantil e Ensino Fundamental: articulação necessária”, de Andrea A. Pereira e Dalila I. M. Backes, apresenta uma reflexão sobre o processo de transição entre uma etapa e outra de escolaridade e a sua importância para a aprendizagem e a caminhada dos alunos em toda a Educação Básica. A questão da Educação Infantil continua presente no artigo “Docência na Educação Infantil: prática de qualidade em uma instituição referência”, das autoras Roberta Wartha e Denise Arina Francisco, e apresenta uma análise de práticas realizadas por uma escola do município de Farroupilha-RS. Os artigos seguintes dessa edição voltam-se para a apresentação e q análise de práticas pedagógicas em diferentes áreas do conhecimento. São eles: “Produções artísticas e ideologia: as histórias em quadrinhos nas aulas de arte, conceito e relações”, de Jéferson Luis de Azeredo e Makeila Alves Piazza, “A formação ambiental nos cursos de Licenciatura: entre a tradição e a inovação”, de Elisabeth Christmann Ramos, e “Aprendendo Inglês com pinguins: o desenvolvimento linguístico através do Jogo Eletrônico Club Penguin”, de Conie Smolinski. O artigo seguinte, de Vinicius Moser, “Modernidade e futebol: a experiência do Football Club Esperança de Novo Hamburgo: 19001950” é de tema livre e discute o papel de um clube de futebol como espaço de sociabilidade e concretização da modernidade. Os três últimos artigos foram escolhidos como destaques, na área de Ciências Humanas,

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Letras e Artes, no Seminário de Pós-Graduação da Universidade Feevale, em 2012. São eles: “Glee na era da convergência: memória, interatividade e hipertextualidade”, de Aline Streck Donato; “A crítica social machadiana inscrita em Memórias Póstumas de Brás Cubas E Memorial de Aires”, dos autores Simone Maria dos Santos Cunha, Juracy Assmann Saraiva e Cléber Cristiano Prodanov, e “Formação Continuada de Professores em Ambiente Virtual de Aprendizagem: Possibilidades

de Ação e Reflexão para a Prática Inclusiva”, das autoras Sandra Maria Koch e Patrícia Brandalise Scherer Bassani. Por fim, esperamos que esta edição possa contribuir de forma efetiva para a divulgação da produção acadêmica na área de Ciências Humanas, Letras e Artes, fomentando novas perspectivas e reflexões sobre os temas aqui apresentados. Boa leitura e até a próxima edição. Prof.ª Me. Márcia Blanco Cardoso Editora Chefe Coordenadora do curso de História

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Apresentação

Escola: espaço de sociabilidade e de cultura de paz A contemporaneidade apresenta-nos inúmeros aspectos preocupantes no que diz respeito às violações de direitos humanos, tanto em relação aos direitos civis e políticos quanto aos econômicos, sociais, culturais e ambientais. O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) destaca que, mesmo em sociedades consideradas historicamente mais tolerantes, têm-se observado a generalização dos conflitos, o crescimento da intolerância étnico-racial, religiosa, cultural, geracional, territorial, físico-individual, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política, dentre outras, o que exige da escola uma postura para além do conhecimento. O PNEDH considera, ainda, a educação um direito em si mesmo e um meio indispensável para o acesso a outros direitos. “A educação ganha, portanto, mais importância quando direcionada ao pleno desenvolvimento humano e às suas potencialidades, valorizando o respeito aos grupos socialmente excluídos” (PNEDH, 2010). Reconhecendo, pois, que a escola, como espaço de sociabilidade, é um lugar onde a violência circula, mas, por outro lado, tem o potencial, via educação, de transformar esse cenário, o Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes – ICHLA – da Universidade Feevale realizou, em 2012, o seu XIII Seminário Internacional de Educação e propôs a reflexão sobre a escola como espaço de sociabilidade potencial de transformação do cenário de violência presente na sociedade atual. O evento discutiu perspectivas de ressignificação da escola e da educação, visando, por meio da cultura de paz, a

construir propostas de prevenção e de formação de cidadania, numa perspectiva interdisciplinar. Quando ouvimos o que os alunos da Escola de Educação Básica Feevale – Escola de Aplicação pensam acerca de sua escola, temos a certeza de que estamos contribuindo para uma ressignificação da escola e da educação, construindo propostas de prevenção e de formação de cidadania: “Maior aproximação com os professores, o que facilita o entendimento das matérias”; “O jeito de sermos tratados, somos responsáveis pelos nossos atos”; “Escola mais humana”; “Aqui, há pessoas diferentes, que são respeitadas na sua individualidade”; “Há uma escuta para cada um”; “Muito diálogo com os alunos”; “Respeito pelos alunos”; “Maior autonomia”. Destacamos, ainda, que o professor, nesse contexto, é muito mais que um “transmissor” de conteúdos, é corresponsável no processo de ensino-aprendizagem, o que lhe permite delinear caminhos diversos em seu fazer docente, muito além de apostilas, do predeterminado, do já construído... E, no final das contas, quem ganha com isso tudo é o aluno, que constrói suas aprendizagens para além dos muros da escola... Assim, acreditamos que a escola, a partir de pequenas ações, pode fazer da sociabilidade um objetivo na formação das crianças e dos jovens, na busca efetiva de uma cidadania plena para a construção de conhecimentos, o desenvolvimento de valores, atitudes e comportamentos. Prof.ª Me. Lovani Volmer Diretora Pedagógica da Escola de Educação Básica Feevale - Escola de Aplicação 7


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PAULO FREIRE: UM REFERENCIAL PARA A CULTURA DE PAZ

Marcio Adriano Cardoso1 Karine Quadros da Silva2 Resumo O presente artigo busca enfatizar a importância e a atualidade de Paulo Freire como referencial fundamental para a construção de uma educação para a cultura de paz. Ao defender a educação baseada na conscientização, na colaboração, na participação e na responsabilidade social e política dos sujeitos envolvidos, Paulo Freire renega a visão tradicional de paz, ligada à manutenção da ordem e da tranquilidade, e insere a possibilidade da paz no campo da ação e do diálogo. É operando a palavra que nos tornamos sujeitos e, como tais, capazes de ler e escrever a história. Ao dizer a sua palavra, o sujeito cria/recria o mundo e, ao fazê-lo, cria/recria a si mesmo, num processo contínuo e infindável de autoconstrução e desconstrução. É nesse processo que acontece a emancipação. Freire nos ensina que o construir-se, o biografar-se, o existenciar-se só é possível através da autonomia e de uma relação ética com o outro. A paz não é construção individual ou isolada, mas tarefa coletiva e comunitária. Palavras-chave: Paz. Educação para a paz. Paulo Freire. Abstract This article seeks to emphasize the importance and relevance of Paulo Freire as a fundamental reference for the construction of an education for a culture of peace. In defending the education based on awareness, collaboration, and participation in social and political responsibility of those involved, Paulo Freire denies the traditional view of peace linked to maintenance of order and tranquility, and inserts the possibility of peace in the field of action and dialogue. It is by operating the speech that we become subjects and, as such, able to read and write the story. Through his word, the subject creates / recreates the world, and, in doing so, creates / recreates himself in a continuous process of unending self-construction and deconstruction. It is through the use of the speech, the dialogue that happens emancipation. Freire teaches us that the one’s building , biography and existence is possible only through autonomy and an ethical relationship with the other. Peace is not built individually or isolated, but a collective and communal task. Keywords: Peace. Peace education. Paulo Freire.

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Filósofo, psicólogo. Mestre em Educação pela UNISINOS – marcioacpoa@hotmail.com   Professora da Rede Municipal de Porto Alegre – karinequadros@yahoo.com 9


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1 Introdução Apesar de no Brasil a Educação para a Paz e as discussões em torno de uma cultura de paz serem conteúdos relativamente novos e poucas pesquisas sobre esse assunto tenham sido produzidas, encontramos aqui um dos mais importantes referenciais contemporâneos sobre essa temática: Paulo Freire. Como sabemos, Freire, nascido no Brasil em 1921, fez grandes contribuições teóricas que impactaram fortemente a educação e, de modo especial, a educação popular. Freire propôs uma educação popular baseada na conscientização, na colaboração, na participação e na responsabilidade social e política dos sujeitos envolvidos. Freire (1996) insere a educação no âmbito ético e político, retirando sua suposta “neutralidade” perante a História. Assim, educar é conscientizar para que o sujeito assuma seu papel na mudança social. Educar é ajudar o educando a dizer sua palavra, colocarse como protagonista do mundo e da história. Retirando o sujeito da inércia, da passividade, Freire afirma peremptoriamente que educar é empoderar as pessoas, emancipando-as. [...] o mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História, mas sou sujeito igualmente, no mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar, mas para mudar. (FREIRE, 1986, p. 76-77)

2 A emancipação através da palavra Paulo Freire, na Pedagogia do Oprimido (1986) e na Pedagogia da Esperança (1992), mostra-nos o grande poder da palavra. É operando a palavra que nos tornamos sujeitos e, como tais, capazes de ler e escrever a história. Ao dizer a sua palavra, o sujeito cria/recria o mundo e, ao fazê-lo, cria/recria a si mesmo, num processo contínuo e infindável de autoconstrução e desconstrução. É nesse processo que acontece a emancipação. Freire nos ensina que o construir-se, o biografar-se, o existenciar-se só é possível através da autonomia e de uma relação 10

ética com o outro. Ao falar sobre libertação, ele afirma: ou ela é um processo coletivo, ou não será verdadeiramente autêntica. O dialogo só é possível entre iguais. Talvez por isso, Freire alicerce a possibilidade do diálogo autêntico na premissa da existência de um horizonte ético, que trate o outro em sua alteridade, não coisificando-o, como faz a maior parte do discurso escolar: Como posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se a vejo sempre no outro, nunca em mim? Como posso dialogar, se me admito como um homem diferente, virtuoso por herança, diante dos outros, meros ‘isto’, em quem não reconheço outros eu? Como posso dialogar, se me sinto participante de um gueto de homens puros, donos da verdade e do saber, para quem todos os que estão fora são ‘essa gente’, ou são ‘nativos inferiores’? Como posso dialogar se parto de que a pronúncia do mundo é tarefa de homens seletos e que a presença das massas na história é sina de sua deterioração que devo evitar? Como posso dialogar, se me fecho à contribuição dos outros, que jamais reconheço, e até me sinto ofendido com ela? Como posso dialogar se temo a superação e se, só em pensar nela, sofro e definho? A autossuficiência é incompatível com o diálogo. (FREIRE, 1986, p. 80)

Paulo Freire afirma que nossa humanidade se constrói pela palavra. Ele coloca homens e mulheres como protagonistas na construção de suas próprias histórias. Sujeitos autores, capazes de dizer o seu mundo e, dizendo-o, reconstruí-lo. Ele, de modo exímio, nos apresenta a principal ferramenta dessa construção: o diálogo. É pela educação dialógica que o sujeito se empodera ao dizer a sua palavra. Lembramos que a palavra aqui é entendida como ação. Ação que humaniza, que problematiza, que reflete, que cria e recria o mundo e a si mesmo. A emancipação, ou humanização, como conceitua Freire (1986), não acontece na consciência, mas no diálogo. É no diálogo, no encontro entre iguais que se problematiza o mundo, que a consciência se constrói. O diálogo é a essência da emancipação humana, é sempre uma relação de iguais midiatizados pelo mundo. Mas, se dizer


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a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais. (FREIRE, 1986, p.78)

Outra colaboração importante deixada por Freire é sua forte e contundente crítica à educação bancária, que silencia e, assim, anula o educando. Para o autor, a educação bancária está a serviço da opressão, da cultura do silêncio. Na concepção ‘bancária’ que estamos criticando, para a qual a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica nem pode verificar-se esta superação. Pelo contrário, refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da ‘cultura do silêncio’, a ‘educação bancária’ mantém e estimula a contradição. (FREIRE, 1986, p.59)

Ao ser a única a proferir o discurso, a escola retira do educando a sua palavra. Ao fazer isso, o discurso escolar torna-se a palavra oficial e acaba por inculcar no educando uma visão de mundo, de sociedade e de homem. É o relato de uma história única repetida inúmeras vezes. Para aqueles que não acatam os discursos escolares, uma única opção: a exclusão como não apto, como incapaz, sem ‘forma-ação’. Para “ser alguém na vida”, nossos educandos silenciam, acatam, aceitam. Essa é a postura da anulação. “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na açãoreflexão” (FREIRE, 1986, p. 78). Quebrar o silêncio é se firmar e afirmar diante do mundo e da história. [...] o tempo sem limites de que precisava para amainar a necessidade de dizer a sua palavra. Era como se, de repente, rompendo com a ‘cultura do silêncio’, descobrissem que não apenas podiam falar, mas, também, que seu discurso crítico sobre o mundo, seu mundo, era uma forma de refazê-lo. (FREIRE, 1992, p. 40)

Dizer sua palavra não é, na teoria freiriana, um ato isolado ou individual, mas um processo coletivo que exige o reconhecimento do outro. Não existe diálogo na solidão ou no individualismo.

Não existe diálogo sem um outrem que também seja apto para o diálogo. É um processo que se dá no reconhecimento das diferenças, da alteridade. Inclusive entre educadores e educandos. O diálogo não nivela, não reduz um ao outro. [...] implica, ao contrário, um respeito fundamental dos sujeitos nele engajados, que o autoritarismo rompe ou não permite que se constitua. Não há diálogo, no espontaneísmo, como no todo-poderosismo do professor ou da professora. A relação dialógica, porém, não anula, como às vezes se pensa, a possibilidade do ato de ensinar. Pelo contrário, ela funda este ato, que se completa e se sela no outro, o de aprender [...]. (FREIRE, 1992, p. 118)

Em Educação para a Paz, o pressuposto da dialogicidade é fundamental, assim como a consciência do inacabamento e, com isso, a história aberta para construção, argumentos presentes na teoria freiriana. Nessa aproximação, encontramos aspectos muito especiais da história de Paulo Freire que reforçam a relevância dele como um Educador para a Paz, assim como afirma Ana Maria Freire. Não foi por acaso, nem por motivos outros, que Paulo foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz, em 1993. Foi por esta sua postura de coerência impregnada de generosidade, mansidão e respeito diante das diferenças étnicas, religiosas, políticas; por sua tolerância autêntica diante das diversidades de posturas e leituras de mundos culturais dos homens e mulheres no mundo; por seu comportamento de cuidado ético com as vidas; por sua luta incessante pela Paz através da sua compreensão de educação para a autonomia e libertação (FREIRE, 2006, p. 388).

A pedagogia freireana traz aspectos necessários entre utopia e possibilidades concretas, na medida em que coloca homens e mulheres como protagonistas na construção de suas próprias histórias e, assim, da história coletiva. Isso nos faz acreditar que uma Cultura de Paz e, ainda, uma Educação para a Paz sejam questões viáveis de construção no cotidiano e nos processos educacionais. Como afirma Ana Maria Freire: 11


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[...] para Paulo a Paz não é um dado dado, um fato intrinsecamente humano comum a todos os povos, de quaisquer culturas. Precisamos desde a mais tenra idade formar as crianças na ‘Cultura da Paz’, que necessita desvelar e não esconder, com criticidade ética, as práticas sociais injustas, incentivando a colaboração, a tolerância com o diferente, o espírito de justiça e da solidariedade (FREIRE 2006, p. 391).

Freire leva-nos a compreender que a paz não é uma condição natural, assim como não é a violência, ambas são processuais e construídas. Sendo assim, parece aceitável que se explicite um corpo de conhecimento que pense a paz, na educação e na formação de professores, como um conjunto de saberes, práticas e experiências passíveis de reflexão, análise e sistematização. Saberes e práticas que nos auxiliam a desvelar o mundo. Não foi por acaso que Paulo Freire ganhou, em 1986, o prêmio da UNESCO de Educador para a Paz. No seu discurso de agradecimento, deixou-nos a síntese do que ele entende por educar para a paz: De anônimas gentes, sofridas gentes, exploradas gentes aprendi, sobretudo, que a Paz é fundamental, indispensável, mas que a Paz implica lutar por ela. A Paz se cria, se constrói na e pela superação de realidades sociais perversas. A Paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça social. Por isso, não creio em nenhum esforço chamado de educação para a Paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças, o torna opaco e tenda a miopizar as suas vítimas (FREIRE, 2006, p. 388).

Essa afirmação de Paulo Freire nos ajuda a perceber que um trabalho na área da construção de uma cultura de paz não deve se limitar a abordagens reducionistas de qualquer ordem, seja ao considerar a discussão sobre valores como ingênuas, ou ao se normatizar excessivamente a discussão em temas fechados como olhar apenas estatisticamente para violência, bullying, agressões, incivilidades, ou qualquer outra problemática, sem considerar contextos sociais e culturais. 3 O conceito de Paz em Paulo Freire Ao enquadrar a possibilidade da paz no âmbito político e relacional, Freire quebra a

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visão tradicional de paz e consolida uma nossa perspectiva para essa temática. Os teóricos e estudiosos da educação para a paz chamam essa perspectiva de paz positiva. Xesús Jares (2002) classifica como paz tradicional toda abordagem que restringe o conceito de paz a um estado de harmonia, de serenidade ou de ausência do conflito. Segundo o autor, tal concepção empobrece o conceito de paz, pois restringe seu sentido a uma passividade, sem dinamismo próprio e “criada antes como consequência de fatores externos a ela” (Jares, 2002, p. 123). Além disso, tal concepção nega o conflito como fator inerente do convívio humano. Querer criar um ambiente sem conflitos acaba por delegar à Paz um sentido metafísico, quase que impossível de ser atingida, tarefa de anjos e querubins. Segundo Guimarães (2005) e Jares (2002), essa visão do conceito de paz é a mais presente no senso comum, o que explica a dificuldade de entender a paz como algo mais concreto e possível de ser realizado. Como dedução do que foi dito, a negação e a passividade dessa acepção vão determinar uma dificuldade no momento de concretizar o que é a paz. O conceito de paz positiva foi criado por Galtung no célebre editorial de abertura do primeiro volume da revista Journal of Peace Research, em 1964. A paz positiva é entendida de modo muito mais amplo que simples aversão ou ausência de guerras e violências diretas. Mais do que isso, a paz está ameaçada “sempre que os seres humanos estão de tal forma influenciados que suas realizações afetivas, somáticas e mentais ficam abaixo de suas realizações potenciais” (GAULTUNG, 1985 apud JARES, 2002, p. 127). A abordagem tradicional de paz, ou paz negativa, ao negar a violência estrutural, acaba servindo como paliativo, pois atua apenas na superfície dos problemas, não desenvolvimento uma reflexão crítica e emancipadora sobre suas causas. Para Galtung, a violência estrutural [...] está edificada dentro da estrutura e se manifesta como um poder desigual e, consequentemente, como oportunidades de vida distintas. Os recursos são distribuídos de forma desigual, como ocorre quando a distribuição de renda é muito distorcida ou quando a alfabetização/


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educação é distribuída de forma desigual, ou quando os serviços médicos existentes em determinada zonas são apenas para certos grupos, etc. Acima de tudo, quando o poder de decisão acerca da distribuição dos recursos está distribuído de forma desigual. (GALTUNG, 1985, p. 134)

Nesse sentido, a paz, no seu caráter positivo, assemelha-se à justiça social e que, portanto, parafraseando Galtung, chamar de paz uma situação em que imperam a pobreza, a repressão e a alienação é uma paródia do conceito de paz (GALTUNG, 1985). Freire referia-se a algo parecido ao afirmar que não acreditava em nenhuma educação para a paz que miopiza seus sujeitos encobrindo o mundo das injustiças e explorações. Para Freire, a paz não é apenas a ausência de estruturas e relações não desejadas, mas é essencialmente a presença de condições e estruturas desejadas, tais como democracia, justiça, direitos humanos, diálogo e, por isso, para haver paz, precisamos lutar por ela. Segundo Alicia Cabezudo e Magnus Haavelsruf (PELIZZOLI, 2010), é possível considerar a paz como estrutura e como processo. Uma estrutura de paz é aquela em que há institucionalizados valores de paz, isto é, ausência de violências e presença de justiça social, participação e diversidade. Ao mesmo tempo, a paz é processo, no sentido de que é sempre um projeto que precisa estar em constante atualização e recombinação. Dessa forma é que o diálogo assume lugar fundamental como possibilidade de relação entre os sujeitos envolvidos, como afirma Paulo Freire (1986). A paz nega radicalmente as violências, não os conflitos que fazem parte da vida humana (JARES, 2002; GUIMARÃES, 2005). Sendo assim, é no diálogo que a paz se constrói. Aqui percebemos a riqueza de possibilidades ainda tão pouco exploradas que a teoria freireana tem a contribuir na construção de uma educação para a cultura de paz. Freire afirma a necessidade de compreendermos a Paz a partir de uma perspectiva crítica e relacional. Não estamos falando de paz como sistema harmonioso em que os indivíduos se “ajustam” à ordem estabelecida, ou, pior ainda, lugares onde não existam conflitos, tensões de nenhuma ordem, onde todos vivam passivamente e uma inércia

infértil, uma “pazmacera”. Pelo contrário, a paz é entendida, dentro da teoria freiriana, como forma de convivência respeitosa entre os diferentes que optam por usar o diálogo como forma de se emanciparem e, empoderados, portadores da palavra que não apenas descreve mundo, mas o cria e recria, estão aptos a, como iguais, de resolverem seus conflitos. Portanto, educar para a paz é educar para a luta contra todas as formas de injustiças e aviltamentos. É uma paz que quebra o silêncio infértil, que dança dialeticamente entre a ordem e o caos em busca de novas estruturas mais justas e iguais, em que imperam os valores de uma nova cultura, a cultura da paz. Além disso, falar em educação para a Paz é falar de uma educação para vivência plena da cidadania, aqui incluída a luta contra todas as formas de desrespeito a direitos fundamentais de mulheres e homens. Nessa perspectiva, a própria paz é promotora de conflitos e desordens. Paz, para Paulo Freire, é empoderamento e só pode ser percebida no campo das relações sociais. Educar para Paz é educar para a vivência de um conjunto de valores que incluem justiça, respeito, diálogo, solidariedade, fraternidade, entre outros. REFERÊNCIAS FREIRE, Ana Maria. Educação para a paz segundo Paulo Freire. Revista Educação. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: PUC/RS, ano XXIX, n. 2, p. 387-393, mai./ago. 2006. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra S/A, 1986. ______. Pedagogia da esperança, um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. GALTUNG, Johan. Twenty-Five Years of Peace Research: Ten Challenges and Some Responses. Journal of Peace Research 22(2):141–158, 1985. GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Educação para a paz: sentidos e dilemas. Caxias do Sul, RS: Educs, 2005.

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GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Um novo mundo é possível. Porto Alegre, RS: Sinodal, 2004. JARES, Xesús R. Educação para a paz: sua teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 2002.

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MALDONADO, Maria Tereza. Os construtores da paz: caminhos de prevenção da violência. São Paulo: Moderna, 1997. PELIZZOLI, Marcelo Luiz. (Org.). Cultura de Paz: restauração e direitos. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010.


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SOCIABILIDADE PRESENTE NA EAD: A ESCRITA COLETIVA E COLABORATIVA EM UM CURSO DE FORMAÇÃO DOCENTE

Paulo Roberto Pasqualotti1 Marja Leão Braccini2 RESUMO Este artigo apresenta um relato de experiência de um Curso de Formação Docente para Educação a Distância – EaD, em que as discussões e as construções ocorreram a partir da escrita coletiva e colaborativa suportada pelas tecnologias. O principal objetivo deste trabalho é apresentar os aspectos sociais que envolveram as interações ocorridas na virtualidade do curso e, dessa forma, contribuir para uma reflexão sobre as possibilidades e oportunidades de sociabilidade que são viabilizadas a partir desse espaço não presencial, denominado de Ciberespaço, e a rede de conexões que envolveu os participantes do curso no desempenho de seus papéis, criando as condições para o desenvolvimento de uma Cibercultura em torno dessa comunidade virtual de aprendizagem. Palavras-chave: Escrita coletiva. Diálogo. Comunidades de aprendizagem virtual. Educação a distância. ABSTRACT This article presents an experience report of a Teacher Training Course for Distance Education where discussions occurred based the collective and collaborative writing supported by technologies. The main objective of this paper is to present the social aspects involving the interactions occurring in the virtual course and to conduce to a thinking about possibilities and opportunities that are made possible around this not presencial space called Cyberspace and the network of connections that involved all participants in the performance of their roles, creating conditions for the development of a Cyberculture around this virtual learning community. Keywords: Collaborative writing. Dialog. Virtual learning community. Virtual education.

Mestre em Computação Aplicada e Graduado em Ciência da Computação. Professor e integrante do Núcleo de Pedagogia Universitária da Universidade Feevale (ppasqualotti@feevale.br). 2   Mestre em Educação e Pedagoga. Especialista em Assuntos Educacionais integrante do Núcleo de Pedagogia Universitária da Universidade Feevale e Professora de Séries Iniciais no Município de São Leopoldo/RS (marja@feevale.br). 1

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1 Introdução O presente artigo apresenta um relato de experiência de um curso de Formação Docente para EaD na Universidade Feevale/RS. Esse curso é integrante do Programa de Formação Docente para Tecnologias Educacionais e foi desenvolvido e oferecido como uma oportunidade para a capacitação docente nos principais aspectos envolvendo a Educação a Distância. Na edição em questão, o curso teve 32 inscritos, professores da própria instituição e outras localizadas na região metropolitana, na sua maioria, professores de diversos níveis de ensino, em especial, da graduação. Uma das propostas desse curso é discutir e viver a experiência da EaD a partir de atividades propostas de construção coletiva e colaborativa de textos, ideias e diálogos, trabalhados e desenvolvidos em ferramentas interativas disponíveis no Ambiente Virtual de Aprendizagem. Neste relato, são destacadas a Wiki e o fórum. Além disso, foi utilizado o recurso Docs do Google3 como forma de estender e ampliar as possibilidades de abrangência dessas atividades para além do ambiente de aprendizagem, utilizando espaços disponíveis na internet como oportunidades para essa socialização. 2 Dos espaços físicos da sala de aula à virtualidade [...] a sociabilidade que ocorre por meio das redes digitais de informação e comunicação exige de seus participantes uma imersão tanto intelectual quanto prática para acompanhar a aceleração tecnológica, o uso de diferentes aparatos de informática e telecomunicação, o domínio de uma linguagem especialmente construída (a hipermídia) e a lógica da não linearidade e da bidirecionalidade dos fluxos comunicacionais. (CORREA, 2009, p. 47).

O ciberespaço não é apenas um espaço tecnológico que assegura a transmissão passiva do saber. A postura em disseminar conhecimento (demonstrar, exteriorizar, disseminar na rede) dá lugar à construção da autonomia e busca de saber ser e saber fazer do aluno e este assumindo o papel 3

Disponível em: http://docs.google.com.

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de agente ativo de sua própria aprendizagem na busca pela sua autonomia. Ao concordar com Alava (2002, p. 14), ao afirmar que “a emergência de novos dispositivos de formação abertos tende a colocar em pauta as ideias de trabalho colaborativo, autonomia dos estudantes e métodos ativos”, surgem, ao mesmo tempo, indagações sobre os cenários presentes na virtualidade envolvendo os espaços sociais: o que é o ciberespaço? Quais são suas partes e o que compõe o seu todo? Pode-se afirmar que é um espaço social em que as pessoas se comunicam, constroem dizeres e saberes, participam e interagem, colaboram e criam relações e vínculos a partir de objetivos comuns. A tecnologia surge como um propulsor dessa comunidade, permitindo que essas relações sejam mediatizadas pelas ferramentas e pelos recursos de comunicação. O espaço virtual é democrático, a interação é aberta, mas as relações mediam essa liberdade e permeiam as possibilidades em nome do bem comum. Os indivíduos integram esse mundo virtual e em rede com objetivos comuns, de participar, colaborar e interagir em torno de uma necessidade de apropriação tecnológica, mas, além disso, de serem sujeitos atuantes e autônomos nessa caminhada. Colaborar para a comunidade não significa necessariamente fazer parte dela, pois exige também as ações socializadoras de comunicar, interagir, participar e fazer-se presente, mesmo no virtual, agregando e somando ideias e habilidades. É esse caminho que possibilita uma consciência coletiva bem interessante, sincronizando pensamentos e ideias, mesmo que às vezes discordantes, pois discordar é necessário na construção do diálogo, assim como colaborar e participar é fundamental para a manutenção da reciprocidade interativa. Sendo o Ciberespaço uma proposta democrática e libertadora dos limites de tempo e espaço físico, é possível que ele, em contrapartida, imponha regras e exigências de aceitação social na rede, a fim de atender aos requisitos de habilidades ou de comportamento esperados pelos participantes. O sujeito em rede é livre para integrar e participar das mediações e autônomo na construção de seu conhecimento, mas, ao fazer parte da comunidade, esta não passará a exigir dele que assuma seu papel diante da coletividade?


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Transportando essa questão para a sala de aula, é preciso pensar sobre até onde as tecnologias que virtualizam as relações permitem que essa integração viabilize o surgimento de uma comunidade de aprendizagem. Estamos falando de comunicação e de relações sociais em rede, dessa forma, é possível perceber a conexão e as relações entre a técnica (computador, software, internet, redes sociais, etc.) e a pedagogia (aprendizagem, conhecimento, autonomia)? Ao pensar sobre isso, Levy (1999) apresenta sua ideia e percepção das mudanças necessárias nos sistemas de educação e formação ao contemplar a EaD como o encontro entre a técnica e o saber. A técnica contemplada nos aparatos tecnológicos e no atendimento de requisitos de funcionamento desses espaços de encontro na/para uma cibercultura. Quanto aos saberes, referem-se às novas possibilidades para o ensinar, para o fazer pedagógico, contemplando a individualidade, ao mesmo tempo em que atende, incentiva e possibilita a aprendizagem em rede, voltada para a construção e a consolidação das comunidades virtuais de aprendizagem. Ou seja, ao propor os ambientes de aprendizagem como pontos de interação e comunicação, atendendo à técnica, é preciso dispor e dotar esses mesmos ambientes de recursos e ferramentas que permitam contemplar os requisitos de construção de conhecimento, aprendizagens, interações, escrita coletiva e colaborativa, sistemas e processos avaliativos, entre outros. Esse espaço marcado pela virtualidade contém essas técnicas, recursos e dispositivos que permitem e viabilizam a interação social entre os indivíduos posicionados em rede, assim como integram e suportam as comunidades virtuais em torno da comunicação, do diálogo e do feedback reflexivo, que representam uma reação de outro indivíduo, mas, ao mesmo tempo, remetem o sujeito a pensar e repensar a sua prática como participante de uma comunidade. Assim, percebe-se a tecnologia e seus aparatos digitais e periféricos como parte fundamental de uma sociedade que caminha pela grande rede, tecendo e criando novos nós e conexões, dando forma e plasticidade à cibercultura, ou ao que se convém denominar de uma nova escrita da história da humanidade, agora não em paredes de cavernas,

em papiros e cerâmicas, ou em prensas e papéis, mas no mundo virtual e tecnológico, armazenado nos bits da comunicação e livres das barreiras do tempo e do espaço onde ocorrem ou deveriam ocorrer. Dentre todos os aspectos envolvendo a interação, é fundamental identificar e priorizar aqueles que possibilitam essa troca social entre os participantes, ou na denominação de Primo (2007), entre os interagentes, estes percebidos como sendo os participantes da interação. E essa interação entre os sujeitos permite estabelecer uma relação social para além do viés tecnicista, na busca por um olhar amplo e profundo que permeia e prioriza os contextos, os objetivos sociais e os resultados advindos dessa relação. 3 Cibercultura e Comunidade de Aprendizagem Virtual A cibercultura apresenta-se como uma interligação dos espaços virtuais formados pelas técnicas que viabilizam e dão suporte às relações e às interações entre os indivíduos, as redes de significado que surgem dessa troca social de saberes, experiências, história e conhecimento. Disso tudo surgem as conexões e os nós dessa grande rede formada por pessoas e grupos afins. Na cibercultura, trafegam e navegam diálogos e ideias, contextos e cenários, tão dinâmicos e mutáveis que tornam difícil qualquer tentativa de representação dessa estrutura social que existe na virtualidade. Essa plasticidade e a capacidade de multiplicação dos nós dessa rede é que imperam nos contextos escolares e que, de certa forma, conduzem e obrigam educadores e pensadores do plano pedagógico a integrar as tecnologias ao cotidiano escolar, inserindo-as na sala de aula como aliadas na construção do conhecimento. Para Lemos (2007, p. 128), ciberespaço é “um espaço transacional, onde o corpo é suspenso pela abolição do espaço e pelas personas que entrem em jogo nos mais diversos meios de socialização... é um não lugar, uma u-topia onde devemos repensar a significação sensória de nossa civilização baseados em informações digitais, coletivas e imediatas”. Nesse espaço, criam-se as redes de interação e os grupos de afinidades emergem num jogo social de ideias, diálogos, construções e encontros. Todos esses movimentos de significados geram,

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Figura1 - Mapa conceitual de uma comunidade de aprendizagem on-line

dão vida e integram a cibercultura, um conceito amplo de sentido e profundamente fortalecido pela tecnicidade das redes virtuais. Assim, as redes e suas conexões, os grupos e indivíduos que os integram, as ações, a agregação em torno de interesses de aprendizagens comuns, independentes de fronteiras ou demarcações territoriais fixas (LEMOS, 2007), a tudo isso chamamos de Comunidades Virtuais de Aprendizagem. Essa comunidade é formada de indivíduos cujos objetivos, de alguma forma, convergem para um mesmo propósito e são inerentes aos aspectos sociais que emergem da e para a comunidade. Pessoas reúnem-se em torno daquilo que lhes dá significado, seja relevante e que enriquece, de alguma forma, seus laços sociais e suas relações com o ambiente externo. Entre esses, o ato comunicativo pode ser considerado o mais importante dessa ação integradora presente na relação entre os sujeitos. Nessa direção, essa comunidade, quando formada e solidificada em torno de relações sociais comuns e objetivos convergentes, incentiva o diálogo e as discussões livres de inibidores e limitadores, permitindo a exposição de argumentos e ideias a partir da sinceridade de ambas as partes (CASTELLS, 1999). 18

Esse cenário tecnológico de relações virtuais exige dos participantes a apropriação das tecnologias de EaD na sua prática educacional e uma nova postura pedagógica, assumindo diferentes formas de ensinar e aprender. A figura 14, apresenta um modelo organizado e apresentado na forma de um mapa conceitual, em que são apresentados alguns dos principais conceitos envolvidos na interação, na socialização e na construção do conhecimento de uma forma coletiva e fundamentada em uma comunidade de aprendizagem virtual. O mapa conceitual representa uma estrutura de conceitos que envolvem alguns aspectos, sem excluir outros, indicando os nós formadores dessa rede social que é a comunidade de aprendizagem. A construção de conhecimento, a troca informacional, mas, acima de tudo, a solidificação das relações sociais entre os indivíduos dessa coletividade dão a ela a solidez e a oportunidade de criar os significados que dão suporte à participação de cada um no desempenho de seus respectivos papéis.  O mapa conceitual da figura 1 é parte integrante do material do programa de formação docente da Universidade Feevale, cuja autoria é da equipe pedagógica do EaD da instituição. 4


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4 A escrita coletiva como espaço de socialização: a reflexão sobre a experiência Como explicitado anteriormente, este é um relato reflexivo de um curso de Formação docente para EaD, cujo principal objetivo é proporcionar experiência e formação para atuar na docência em cursos a distância, fomentando a reflexão a respeito da EaD como modalidade de educação de qualidade e dos fundamentos teórico-práticos e metodológicos em EaD. Idealizado e conduzido por professores da Universidade Feevale, o curso é totalmente a distância num total de 40h distribuídas em cinco semanas, tendo os seguintes conteúdos principais: (1) EaD: panorama e legislação atual; (2) Atores em EaD: competências e habilidades; (3) Teorias de ensino-aprendizagem para atuação em EaD; (4) Comunidades e modelos de aprendizagem em EaD; (5) Avaliação em EaD: paradigmas e formatos. Adotamos uma estratégia pedagógica que consideramos adequada e interessante de trabalharmos no curso: a escrita coletiva e colaborativa em uma ferramenta denominada Wiki. A proposta é potencializar um espaço de sociabilidade valorizando os conhecimentos dos alunos, muitos deles atuando como professores e com experiência docente, a capacidade de reflexão coletiva e a prática do trabalho colaborativo, cuja relação se fundamenta em regras de escrita coletiva apresentada e sugerida ao grupo como balizadores dessa ação social. Destacamos ainda a importância que dá Freire ao coletivo nesse processo de reflexão e capacitação docente. O grupo possibilita a troca de experiências e ajuda mútua. É preciso enfatizar o aspecto coletivo de todo este processo (reflexão sobre a prática – crítica). O objetivo central é que o professor seja competente para agir criticamente em seu cotidiano. Tal competência se constrói num processo coletivo, no qual tanto o crescimento individual, quanto o coletivo é resultante da troca de experiências e conhecimentos acumulados por todos e por cada um. [...] um trabalho individualizado dificulta a crítica, pois a ausência do outro impede o confronto e a recriação de ideias. (FREIRE, 1996, p. 3).

Connell (2010, p. 174), ao falar em trabalho coletivo, argumenta que “grande parte do que ocorre na vida cotidiana de uma escola envolve o trabalho conjunto dos professores e a relação coletiva destes com a presença coletiva dos alunos”. A autora destaca que é preciso levar em conta que um professor age no coletivo, dentro de uma estrutura que é a escola e com uma equipe de colegas professores. Sendo assim, não é possível avaliar o trabalho de um professor de forma isolada. O “bom trabalho” de um docente é certamente o bom trabalho da escola como um todo, esse espírito de trabalho colaborativo parece ser fundamental em um curso de formação docente. Essa lógica, ainda segundo Connell (2010), também pode ser utilizada quando falamos de “insucesso” do ensino, deslocando a responsabilidade, que geralmente fica com o professor, para a escola como um todo. A reflexão sobre a prática também pode ser pensada de forma coletiva repensando o ensino e a aprendizagem da escola como um todo e não somente as práticas do professor. No curso em questão, inicialmente tivemos a oportunidade de conhecer e exercitar o uso da Wiki em uma atividade denominada “Wiki de aquecimento”. Esse exercício prévio é devido ao fato de que certas atividades exigem algumas habilidades, às vezes, bem complexas, no uso das tecnologias. Então, a Wiki inicial foi justamente para que a técnica no uso da Wiki, seus recursos, suas opções e interfaces (telas) não fossem fator negativo e limitador da participação. Dessa forma, dar-se-ia a condição a todos para atingir o real objetivo da atividade – a construção coletiva, focando na construção do documento, em vez do uso da ferramenta. Dessa forma, deixamos todos à vontade para que escrevessem o que achassem importante para esse “treino no uso da ferramenta”. Já na Wiki intitulada “Escrita coletiva: construção e reflexões”, foi o espaço no qual escrevemos o documento coletivo. A turma foi dividida em grupos de oito alunos por grupo. Antes, foram apresentadas as principais diferenças entre a Wiki e outras ferramentas de escrita coletiva, principalmente o fórum, que já havia sido utilizado em outras atividades. No fórum, as ideias são discutidas e o diálogo ocorre de forma sequencial, porém não há intervenção direta na

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escrita do outro. No fórum, cada participante pode argumentar, concordar ou discordar e apresentar a sua contribuição na discussão, dando seguimento às ideias e ao diálogo em questão. Na Wiki, por outro lado, o texto é único e deve refletir a construção do grupo. Cada participante pode e, em nossa opinião, deve alterar, editar e escrever no texto do colega, pois o que deve estar refletido no documento é o resultante da coletividade, não de um ou de outro indivíduo. Neste tipo de atividade, o objetivo principal é refletir o pensamento, o conhecimento e a intencionalidade de um grupo, acima da individualização do que está proposto a ser realizado. De acordo com o que foi apresentado na figura 1, no mapa conceitual da comunidade de aprendizagem, é preciso que, em uma escrita coletiva, todos estejam motivados e imbuídos do espírito de colaboração e participação, que busquem a construção de significados nas ideias expostas, que a busca seja reflexo do coletivo em detrimento do individual, que sejam mantidas e enriquecidas as relações sociais que envolvam o respeito, o diálogo e a autonomia e que cada um assuma os papéis que lhe são atribuídos e também aqueles que a comunidade espera que cada um assuma e cumpra. Mas isso é, muitas vezes, uma tarefa complexa e difícil, se relacionada a outros formatos de escrita coletiva, como o fórum. É preciso aceitar a ideia e opinião do colega e, ao mesmo tempo, saber discutir e fundamentar a própria contribuição com argumentações que muitas vezes são frutos de percepções e interpretações pessoais e que, diante do grupo, precisam refletir um conhecimento e ter o devido embasamento para levar à aceitação dos demais. Essa ideia vai ao encontro do que é apresentado por Pallof e Pratt na obra intitulada “O aluno virtual”, em que os autores defendem que “as pessoas interagem socialmente quando tentam satisfazer suas próprias necessidades ou desempenhar papéis especiais como os de líder ou de moderador” (PALLOF & PRATT, 2004, p. 38). Diante desse cenário de complexidade e dificuldade, deve-se ter presente que é por esse caminho que passa a construção de comunidades de aprendizagem eficazes, sólidas e que resultam em conquistas positivas para quem delas participa,

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pois o crescimento e evolução do todo refletem o que ocorre individualmente com cada um. Apresentamos, abaixo, as regras de planejamento e organização de atividades de escrita coletiva, destacando que tal material foi desenvolvida com o objetivo de oferecer aos professores as condições para proporem atividades dessa natureza para seus alunos. 5 Regras de comportamento sociais em uma construção dialógica coletiva A lista abaixo é o resultado de diversas discussões realizadas em encontros pedagógicos da equipe pedagógica da EaD da Universidade Feevale, cujo objetivo foi o de construir as regras de escrita coletiva, focando comportamentos e atitudes colaborativas e de socialização, consideradas adequadas e importantes no trabalho envolvendo grupos de pessoas, baseada principalmente nas experiências e nas sugestões de alunos de professores da graduação e pós-graduação que, de alguma forma, estiveram envolvidos em atividades dessa natureza. Este material é utilizado pela equipe pedagógica e por professores em cursos de formação docente e demais espaços virtuais de aprendizagem em que recursos e ferramentas de escrita e diálogo coletivo são utilizados. A lista não é exclusiva e tem recebido análises, críticas e contribuições à medida que novas regras são identificadas e reconhecidas como adequadas de inserção na lista. 1) Levar em consideração a ideia e a opinião do colega. 2) O texto pode ser editado e alterado por qualquer um do grupo. 3) Se fores apagar um texto, informar a todos do grupo para que cheguem a um consenso. 4) Não me sentir excluído ou diminuído quanto à participação se meu texto for editado. 5) Priorizar e ressaltar sempre a ideia coletiva e buscar atingir um objetivo coletivo. 6) Proibido usar palavrões e ofensas a qualquer pessoa. 7) Não utilizar jargões, gírias, expressões regionais, caso o grupo tenha participantes de outras regiões que possam ter dificuldades em entender as expressões. 8) Adotar uma linguagem de fácil entendimento a todos, evitando termos técnicos e formalismo, deixando a escrita clara e objetiva.


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9) Utilizar parágrafos curtos e uma escrita objetiva e clara. 10) Procurar ler, entender o que já está publicado, dando seguimento adequado e correto ao texto. 11) Usar organização textual, com recursos do editor: destacar partes do texto, quando necessário. 12) Manter o foco na proposta do enunciado. 13) Necessário que todos do grupo tenham o mesmo entendimento do que deve ser realizado. 14) Buscar sempre o encadeamento das ideias. 15) Identificar os autores para consultar sobre as possíveis alterações. 16) Referenciar sempre os autores e informar a origem de citações. 17) Respeitar os direitos autorais. 18) Seguir as normas da ABNT para citações diretas e indiretas. 19) Apresentar no final uma lista de referências. 20) Assuntos que não sejam pertinentes ao tema do texto devem ser discutidos em outros canais de comunicação, como: chat, mensagens, fóruns criados para esse fim. 6 Olhares, percepções e aprendizagens advindas da escrita coletiva O/A professor/a, na Wiki, lê e acompanha diariamente tudo que ocorre na escrita coletiva. Participa e intercede à medida que percebe essa necessidade. A Wiki permite isso. Cada grupo deve buscar o diálogo e a criação de um texto coletivo, sem a condução do professor diretamente no texto, mas mais como orientador da atividade. É claro que toda oportunidade de intervenção construtiva deve ser aproveitada. Acompanhamos atentamente o diálogo e a construção do documento. E, como esperado, não realizamos intervenções, deixando a cargo de cada grupo as discussões e o entendimento sobre o que realizar em termos de construção colaborativa. E, como todo grupo, tivemos equipes com desempenho excelente e alguns casos de destaque na quantidade e na qualidade do que foi escrito. Outros tiveram algumas dificuldades em interagir, construir coletivamente e, ao mesmo tempo, aceitar a ideia do colega e as respectivas alterações que ele tenha feito. E, em especial, percebemos, em algumas situações, que alguns necessitavam da intervenção

do professor, o que pode demonstrar problemas relacionados à autonomia, dependência da figura do professor ou a necessidade pessoal em interagir sempre com o professor para se localizar e organizar-se com relação ao que deve ser realizado. A consciência coletiva apareceu quando alguns alunos, em alguns grupos, assumiram alguns papéis, às vezes de motivador, outras de organizador, de liderança, enfim, situações que auxiliaram o grupo a atingir o objetivo proposto. 7 Considerações finais Quando se busca uma nova organização do trabalho pedagógico, está se considerando que as relações de trabalho, no interior da escola, deverão estar calcadas nas atitudes de solidariedade, de reciprocidade e de participação coletiva, em contraposição à organização regida pelos princípios da divisão do trabalho, da fragmentação e do controle hierárquico. (VEIGA, 1995, p. 31)

Nesse recorte de Veiga, podemos ver vários indicativos que também apontam nossos participantes do curso ao realizar o trabalho colaborativo com êxito, desenvolvendo valores como solidariedade, participação coletiva, respeito, capacidade de reflexão a partir da ideia e posição do outro, posicionamento ante o grupo, melhoria na sociabilidade e na prática coletiva, etc. Para GÓES (2008, p. 84), em Freire [...] o trabalho coletivo ajuda a construir autonomia com responsabilidade. Desafia a superação dos limites pessoais e valoriza a atuação de cada trabalhador/educador que tenha compromisso a prática de uma pedagogia da libertação ou educação como prática de liberdade.

Como cita Bruno (2000, p. 14), “desprendimento com relação às próprias convicções, atenção para com as convicções do outro e interesse para aprimorar e ou alterar profundamente umas e outras, são exigências da organização que se pretende coletiva”. Essa forma de trabalhar vai construindo a aceitação de críticas e sugestões no sentido de qualificar o trabalho que está sendo realizado. Para tal, é importante a troca de experiências e, principalmente, uma cooperação mútua, dividindo

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inclusive as responsabilidades pelo que “ficou bom” e o que precisa melhorar. Connell reforça que, se os professores trabalham juntos, coletivamente, o bom resultado é da escola e não de um indivíduo isolado. Vai além, afirmando que [...] o bom ensino [...] é não apenas em grande medida, um trabalho coletivo: ele exige diversificação. Para funcionar bem, uma escola precisa de professores com uma gama variada de capacidades e maneiras de atuar. Dada a multiplicidade de alunos e de comunidades de onde provêm, uma escola tem que ter em seu quadro de professores uma diversidade de etnias, origens socioeconômicas, identidades de gênero e sexo, faixas etárias e níveis de experiências. (CONNELL, 2010, p. 175)

Para uma escola plural, como propõe Connell, é preciso professores abertos ao novo e especialmente abertos a questionar suas convicções, inovar. Voltamos a Bruno (2000), que diz que é preciso essa abertura, que poderíamos compreender como responsabilidade com o coletivo, com o trabalho da escola e não somente com as tarefas e as atividades individuais de professor. Conclui-se este trabalho sem esgotar as diversas possibilidades e os olhares possíveis diante do que o trabalho colaborativo, em especial, a escrita coletiva tem a oferecer como caminho para a sociabilidade das pessoas envolvidas em atividades dessa natureza. A mediação da tecnologia, como apresentado, viabiliza o desenvolvimento e a consolidação de uma comunidade de aprendizagem virtual suportada pelo tecnicismo das redes e aplicações computacionais. E, dessa forma, esperase contribuir para uma reflexão aprofundada sobre as possibilidades e as oportunidades de sociabilidade viabilizadas no Ciberespaço. Em especial, as regras de escrita coletiva apresentam-se como um importante recurso na colaboração e na socialização de ideias, permitindo aos professores, tutores e demais atores em papéis presentes na EaD utilizar como referência em atividades que envolvem o trabalho colaborativo, disponibilizando-a à comunidade acadêmica como meio para tornar construções coletivas reais oportunidades de sociabilidade.

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Referências ALAVA, Séraphin e colaboradores. Ciberespaço e formações abertas – rumo a novas práticas educacionais? Tradução: Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2002. BRUNO, Eliane Bambini Gorgueira. O Trabalho Coletivo como Espaço de Formação. In: GUIMARÃES, Ana Archangelo et al. O Coordenador Pedagógico e a Educação Continuada. São Paulo: Loyola, 2000. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução Roneide Venâncio Majer; Atualização para 6. ed. Jussara Simões. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CONNELL, Raewyn. Bons professores em um terreno perigoso: rumo a uma nova visão da qualidade e do profissionalismo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. especial, p. 163-182, 2010. CORREA, Elizabeth. S. Cibercultura: um novo saber ou uma nova vivência? In: TRIVINHO, Eugênio; CAZELOTO, Edilson (Org.). A cibercultura e seu espelho: campo de conhecimento C498 emergente e nova vivência humana na era da imersão interativa. ABCiber, São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2009. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 29. ed., São Paulo: Paz e Terra, 1996. GOÉS, Moacir. Coletivo (Verbete). In: STRECK, Danilo. REDIN, Euclides; ZITKOSKI, José. Dicionário Paulo Freire. v. 1, Belo Horizonte: Autêntica, 2008. LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 3. ed. 2007. LEVY, Pierre. Cibercultura. Tradução Carlos Irineu da Costa. 34. ed. São Paulo, 1999.


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PALLOF, Rena. M.; PRATT, Keith. O aluno virtual: um guia para trabalhar com estudantes on-line. Tradução Vinícius Figueira. Porto Alegre: Artmed, 2004.

VEIGA, Ilma Passos de Alencastro. Projeto Políticopedagógico da escola: uma construção coletiva. In: ______. Projeto político-pedagógico da escola: uma construção possível. Campinas, SP: Papirus, 1995.

PRIMO, Alex. Interação mediada por computador: comunicação, cibercultura, cognição. Porto Alegre: Sulina, 2007.

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ENTRE CONVERSAS, LINHAS E AGULHAS... E ARTETERAPIA

Braulio Pedroso Fonseca1

RESUMO O presente artigo visa a apresentar relatos de experiências feitas em sessões de Arteterapia realizadas com adolescentes do sexo feminino de um bairro da cidade de Canoas, com idades entre 14 e 17 anos, que sofreram abuso sexual em determinada fase de sua vida. As sessões de Arteterapia buscam amenizar certos males deixados intrínsecos causados por tais acontecimentos, também visando ao aumento da autoestima, analisando as reações psicoemocionais das alunas. Para isso, foram desenvolvidas quinze sessões com encontros semanais, que duravam de uma a uma hora e meia, para que fossem recolhidas informações e também, desde a primeira sessão, para conseguir reconstruir caminhos, a fim de que elas pudessem se sentir principalmente mais confiantes. Concluiu-se, com esta pesquisa, que as sessões de Arteterapia são um dos meios eficaz para a elevação da autoestima, a valorização própria e a reconstrução de caráter e confiança, pois, através da arte e da expressão plástica, consegue-se um maior retorno, alcançando um melhor resultado em experiências dificultosas, superando tais obstáculos do passado e construindo uma nova trajetória de vida. Palavras-chave: Adolescência. Abuso sexual. Arteterapia. Reconstrução. ABSTRACT This paper presents reports of experiments in art therapy sessions conducted with female adolescents of a neighborhood of Canoas city aged between 14 and 17 years who have been sexually abused at some stage of their life. Art Therapy sessions left seek mitigate certain intrinsic evils caused by such events, also aimed at increasing self-esteem, analyzing the psycho-emotional reactions of the students. To do this, fifteen sessions were developed with weekly meetings, which lasted one hour and a half, to chose the data and also, since the first session to be able to reconstruct the way, so that they could feel more through the art and artistic expression, we gets a higher return , achieving better results in traumatic experiences, overcoming such obstacles of the past and building a new pathway in the life. Keywords: Adolescence. Sexual abuse. Art therapy. Reconstruction.

1  Graduado em Artes Visuais pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA e Pós-graduado em Arteterapia pela Feevale. E-mail: bpf_rs@hotmail.com

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1 INTRODUÇÃO O abuso sexual contra crianças e adolescentes hoje em dia é muito discutido, por ser um ato ainda muito praticado e cada vez mais depreciando inúmeras pessoas. O presente trabalho visa a apresentar o resultado conseguido através das sessões de Arteterapia com um grupo de meninas adolescentes moradoras de um bairro da cidade de Canoas/RS, com idades entre 14 e 17 anos. Essas meninas foram encaminhadas pela Orientação da escola em que elas estudam e na qual o acadêmico leciona e foram atendidas nas dependências da escola, local que já gerava segurança às alunas, por ser um ambiente conhecido por todas. Esses encontros tiveram como objetivo analisar, através das produções plásticas e das conversas, as reações psicoemocionais, aumentar a autoestima e, principalmente, conseguir obter a confiança perdida ao longo dos anos. Nesse contexto delicado de ser trabalhado e conversado, a Arteterapia veio como uma opção tanto para essas meninas quanto quaisquer pessoas que possuam alguma problemática, pois as sessões de Arteterapia, através da expressão artística e plástica, além de desenvolver a criatividade, também conseguem um melhor resultado em conversas, tentando fazer com as pessoas consigam construir ou melhor reconstruir uma nova trajetória, um novo conceito de vida. Porém, esse percurso não é fácil, pois, quando se toca em feridas, muitas vezes, cicatrizadas, mas não sanadas, volta todo o passado à tona e retornam também pensamentos infelizes e, junto com eles, atitudes e comportamentos inadequados. Os encontros foram divididos em duas categorias: autorreconhecimento e reconstrução, pois as meninas precisavam, no primeiro momento, se conhecer e também tentar diminuir atitudes inadequadas junto com pensamentos ruins. E, no segundo momento, começaram a construir um novo caminho, para que ficassem marcados os novos comportamentos. 2 SITUAÇÃO DE RISCO A situação de risco com crianças e adolescentes está ligada diretamente a riscos pessoais e sociais, abrangendo uma diversidade de temas e situações. Alguns temas a serem apontados são prostituição infantil, trabalho infantil, drogadição na infância, crianças e adolescentes de rua e violência e

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vitimização infantil. Este último tema muito presente no cotidiano de vários adolescentes, inclusive, os estudados nesta pesquisa. Estudos sobre fatores de risco identificaram variáveis constituindo adversidades crônicas em nível familiar, cujos efeitos cumulativos demonstraram estar significativamente associados com o desenvolvimento de alguma patologia infantil, tais como: (1) discórdia conjugal severa; (2) baixo nível socioeconômico; (3) famílias numerosas; (4) criminalidade paterna; (5) doença mental materna; (6) institucionalização da criança (Garmezy & Masten, 1994; Rutter, 1987, 1993, 1996). Essa situação de risco está relacionada ao descaso de muitas famílias com relação aos seus filhos e também com o meio em que estão inseridos as crianças e os adolescentes. 3 ADOLESCÊNCIA Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), adolescentes são pessoas entre os 12 e 18 anos de idade, em que os traços de caráter e temperamento estão formando a identidade da não mais criança e do ainda não adulto. Essa fase é considerada por alguns autores a mais conflituosa, pois tudo que acontece com esses adolescentes é ao extremo. A maturação da libido e os órgãos genitais aptos à reprodução, a alteração na parte cognitiva: pensar sobre o pensamento, a fase crucial para a formação da identidade, mudanças de valores e critérios e oscilação de humor são algumas das muitas características da fase da adolescência. Nessa fase, ainda acontecem muitas microcrises em virtude de vários conflitos, pois não se trata mais de crianças nem de adultos para realizar certas coisas. E, com relação a isso, Knobel (1976) disse: “As típicas microcrises maníaco-depressivas marcam o processo de flutuação entre o luto pela perda da infância e as fantasias de realização futura [...]”. Adolescência é a idade na qual a pessoa forma seu sujeito e está vulnerável a todo e qualquer malefício que a sociedade tem a oferecer enquanto esse caráter não estiver maduro e formado. Também nessa fase da vida é que é formada a identidade. Erickson (1976) disse: “A adolescência é uma crise em que apenas uma defesa fluida pode superar um sentimento de fraudação causado por exigências internas e externas”. Por conta dessas


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mudanças, acontece muita oscilação de humor e de temperamento, pois está se formando o ser humano, e este passa por muitas perguntas, sem muitas vezes saber as respostas. São muitas informações que chegam rápido demais, os adolescentes não são adultos, não são mais crianças, e inicia uma fase de dúvidas, pois quem são eles? Sendo a fase final da formação da personalidade na adolescência, aparecem frustrações antigas e pendências das fases anteriores e estas retornam com maior vigor, pois, se não tiverem sido sanadas anteriormente, elas voltarão com maior força e se expandirão. Isso porque a adolescência é o período de revisão e, como já foi dito, de vários questionamentos, do que me tornei? E do que posso vir a ser? E essa insegurança está constantemente presente na vida dos adolescentes. 4 VIOLÊNCIA SEXUAL NA ADOLESCÊNCIA Com a descoberta da sexualidade, o abuso sexual contra adolescentes viola as leis ou os tabus da sociedade pela idade acontecida e é definido como o envolvimento de uma criança e/ ou um adolescente em atividade sexual que não compreende totalmente, sendo incapaz de dar consentimento, com um adulto ou outra/o criança/ adolescente. Essa atividade sexual é destinada à gratificação ou satisfação das necessidades de uma pessoa, cuja relação com a criança seja responsabilidade, confiança ou força. Além do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), existem organizações que defendem as crianças e os adolescentes de violência doméstica, espancamento, tortura psicológica, constrangimento, isolamento e abuso sexual, tais como Abrapia (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência), o Cedeca (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente). O Cecria (Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes) e o Recria (Rede de Informação sobre Violência, Exploração e Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes) possuem banco de dados, documentos e pesquisas que descrevem os tipos de abuso sexual. Entre as alterações comportamentais, destacam-se conduta hipersexualizada, abuso de substâncias, fugas do lar, furtos, isolamento social, agressividade, mudanças nos padrões de sono e na alimentação. Nas alterações cognitivas, baixa concentração e atenção, dissociação, refúgio na fantasia, baixo

rendimento escolar e crenças distorcidas, tais como a percepção de que é culpada pelo abuso, diferença em relação aos pares, desconfiança e percepção de inferioridade e inadequação. As alterações emocionais referem-se aos sentimentos de medo, vergonha, culpa, ansiedade, tristeza, raiva e irritabilidade. As representações psíquicas de hétero e autodestruição bem como representações angustiantes, que aparecem em sonhos, devaneios, relatos de impressões e sensações do contato com outras pessoas e alucinações evidenciam o intenso sofrimento psíquico e a desorganização psíquica de quem é submetido à violência sexual. 2

Para que certas patologias e traumas sejam amenizados antes que se agravem, é necessário procurar algum tipo de tratamento logo que o fato seja descoberto, pois, a cada dia que passa, a situação conflitante do paciente e/ou da pessoa abusada tende a se acentuar. 5 ARTETERAPIA E ABUSO SEXUAL A Arteterapia é um processo terapêutico que se utiliza de diversas modalidades expressivas, como: artes plásticas, dança, teatro, música e poesia. Todas elas sempre foram usadas desde os primórdios da evolução como forma de expressão, mas há pouco tempo vêm sendo utilizadas como forma terapêutica que estimula o desenvolvimento da criatividade e da autoestima, prevenindo doenças e promovendo a saúde. A Arteterapia tem a capacidade de ajudar o indivíduo a desenvolver, em inúmeras possibilidades plásticas, suas imagens simbólicas de forma concreta, potencializando o ser criativo que existe no seu interior e situando-o no mundo externo, no meio social. Urrutigaray, em relação a esse fato, informa que: A finalidade da arteterapia consiste em possibilitar a emergência de uma imagem imaginada transportada em imagem criada, a partir da utilização de materiais plásticos que cedem sua flexibilidade e maleabilidade a quem os utiliza para

2   CROMBERG, Renata Udler. Cena Incestuosa: abuso e violência sexual. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

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expressar seus conteúdos íntimos. A ação de uma imaginação criadora é um passo viável, visível e objetivado que possibilita aproximar elementos ou realidades ocultas (inconscientes), a dimensões mais acessíveis de serem compreendidos, facilitando a conscientização dos mesmos. (URRUTIGARAY, 2008 p. 24-25).

Diferentemente dos métodos utilizados pelas psicoterapias até o século passado, quando predominava a verbalização, a Arteterapia tem como função, através das atividades expressivas, projetar, em imagens espontâneas, os sonhos e as fantasias do cliente, podendo sim ajudar na verbalização. Foi Margareth Naumburg, em 1941, que sistematizou a Arteterapia. A partir dos trabalhos espontâneos realizados com seus pacientes, desenvolveu sua teoria. Ela acreditava que qualquer pessoa, independentemente dos seus conhecimentos artísticos, poderia simbolizar concretamente seus conflitos internos, pois essas imagens estariam ligadas aos sonhos, às fantasias e às memórias da infância. Portanto, através da Arteterapia, pode-se chegar ao inconsciente pela via da representação real, desbloqueando suas dificuldades e facilitando, assim, a verbalização dos seus sentimentos, suas sensações e vivências. Para ela, o arteterapeuta não deve interpretar o trabalho do cliente, mas incentivá-lo a descobrir seu significado. No Brasil, Osório César, em 1923, começou seus estudos sobre artes dos alienados no Hospital do Juqueri em São Paulo. Ele fazia uso da espontaneidade no trabalho e acreditava que o fazer arte já propiciava a cura por si só dos psicóticos com quem trabalhava. Mas foi a Dr.ª Nise da Silveira quem inovou o trabalho no Brasil em 1946. Criou a Sessão de Terapêutica Ocupacional no Centro Psiquiátrico D. Pedro II, no Rio de Janeiro, e, em 1952, o Museu do Inconsciente, onde são conservados os trabalhos dos pacientes. Mantendo contato com Jung, para quem mandava os trabalhos para serem analisados, entendeu que as imagens geométricas circulares e ordenadas que eles pintavam era uma forma sintética de representarem sua história cultural armazenada no inconsciente coletivo, que é onde fica toda a experiência da raça humana. Percebeu que o mundo interior não era somente o universo da linguagem e que os trabalhos expressivos feitos no atelier eram verdadeiros catalisadores e

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transformadores de emoções em imagens. Através dessas imagens, reconheceu que poderia manter uma comunicação com os pacientes e o valor autocurativo que os trabalhos proporcionavam a eles. Assim, Nise, com seu trabalho, abriu caminhos para outras pessoas que se interessavam pelo uso de recursos expressivos como forma terapêutica. Maria Margarida de Carvalho, em São Paulo, com o livro “A Arte Cura?”, Ângela Phillipini, com a Clínica Pomar, no Rio de Janeiro, Selma Ciornai, em São Paulo, com a formação em Gestalt terapia e outros pesquisaram, estudaram e trabalharam com a Arteterapia tendo o mesmo intuito: o de ajudar na compreensão e no tratamento de pessoas através da expressão artística, pois reconheceram que, a partir dela, se liberam energias psíquicas com um caráter simbólico surpreendente, que possibilita a passagem do inconsciente para o consciente direcionando-se para o “processo de individuação” (JUNG, 1984). Assim, o processo arteterapêutico vai transformando os conflitos e os afetos internos de forma certeira, em que o paciente vai expressar sua singularidade e identidade criativa. 6 METODOLOGIA Esta é uma pesquisa qualitativa, segundo Prodanov (2009), pois constitui-se em uma fonte de coleta de dados direta, visando a interpretar os fenômenos e atribuir os significados, permitindo uma melhor compreensão individualizada. Essa coleta se deu através de quinze sessões realizadas ao longo de cinco meses e de um questionário aplicado às participantes antes de iniciar as sessões, no qual elas a responderam de maneira dissertativa algumas questões para um maior conhecimento e uma aproximação do pesquisador e das pesquisadas. Junto ao questionário, foi assinado pelos responsáveis e acordado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE, no qual concordaram em participar da pesquisa, mantendo suas identidades no mais absoluto sigilo. As sessões de Arteterapia ocorreram uma vez na semana, com duração de uma hora cada sessão, e os participantes poderiam abandonar a qualquer momento que quisessem sua participação. 7 PARTICIPANTES O grupo foi formado por quatro meninas com idades entre 14 e 17 anos. Todas alunas da mesma


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escola, porém frequentando séries diferentes, apenas duas são colegas. As participantes estão adequadas ao propósito deste estudo por terem sofrido abuso sexual ao longo de suas vidas. O grupo foi encaminhado pela Supervisão Escolar e pela Orientação Escolar, constituindo-se então de meninas abusadas sexualmente na infância e/ou na adolescência e/ou com violência intrafamiliar e descaso por parte dos responsáveis. 8 CONTEXTO Quando falamos em abuso sexual contra adolescentes, imagina-se que o local onde este contexto está acontecendo seria de extrema baixa renda. O local dos acontecimentos, um bairro da cidade de Canoas – RS, de classe média a classe média baixa, com alguns casos de classe baixa, no bairro, o que existe mais é o uso de entorpecentes e drogas pesadas, que podem vir a gerar algum tipo de abuso e violência, mas é nas rebarbas do bairro que essa atitude é mais comum, dentro do bairro em questão, não costumam surgir tais fatos. Porém, as quatro meninas participantes das sessões de Arteterapia não vivem essa situação. Apenas uma das quatro pode-se considerar de baixa renda, e as demais podemos considerar de classe média baixa. Dentro da escola onde as sessões foram realizadas, a diretora comenta que há cerca de seis anos a escola passou a receber alunos com laudos do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – COMDICA– de violência e abuso sexual. A grande maioria dos casos que apareceram na escola durante esses anos foram de meninas. Hoje, há suspeita de um caso na escola de um menino que frequenta as séries iniciais. A irmã, que está em outra escola, foi abusada sexualmente, mas não se sabe ao certo se o irmão também sofreu o abuso, pois nunca foi dito nada à direção, uma vez que ele não apresenta nenhum tipo de problema aparente, comenta a diretora da escola. Alguns alunos já apresentaram problemas de relacionamento com os demais colegas e profissionais da escola, caso de uma aluna que não aceitou participar das sessões de arteterapia. Ela, por inúmeras vezes, sofreu ataques de fúria e total descontrole, sempre frequentando a escola muito agitada. O último ataque foi quando ela se deparou na escola com o abusador. Nessa vez, somente gritava e chorava, sem verbalizar nada. Além

dos casos atendidos pelo acadêmico e este de que não aceitou participar, não há na escola outros casos de abuso sexual e violência intrafamiliar de que a equipe diretiva ou a orientação tenha conhecimento. Os atendimentos aconteceram na escola onde o acadêmico leciona e também local onde as meninas atendidas estudam, espaço esse cedido pela direção e escolhido também, pois, nesse ambiente, elas se sentiriam asseguradas pelo fato de ser um lugar conhecido delas. 9 INSTRUMENTOS DE COLETA DE DADOS Para coletar informações das participantes antes mesmo de iniciar as sessões de arteterapia, foi aplicado um questionário contendo onze perguntas dissertativas, para que acontecesse uma maior aproximação e conhecimento das meninas que iriam participar das sessões (modelo do questionário em anexo). Nesse questionário, foi perguntado idade, algumas situações por que as meninas poderiam já ter passado, algumas atividades que elas gostariam de realizar, algum trauma vivido no passado com o intuito de tentar colher alguma informação antes mesmo de iniciar as sessões, e a primeira pergunta era como elas gostariam de ser chamadas quando mencionadas nas descrições das atividades arteterapêuticas. Outra pergunta que continha o questionário era se elas tinham interesse de realizar algumas sessões com outra participante. 10 RELATO DOS CASOS Foram utilizadas quinze sessões arteterapêuticas, com atendimentos de uma vez por semana, com aproximadamente uma hora de duração cada encontro, completando sessenta horas de atendimento. Os horários foram combinados diretamente com cada participante. 11 GRUPO EM GERAL O grupo estudado possuía muita diferença e semelhanças entre si, pois, das quatro meninas atendidas, três haviam sido abusadas por parentes próximos, ou pessoas ligadas à família, somente uma havia sido abusada por terceiros quando voltava do trabalho, sem ao menos saber a fisionomia do abusador. Todas moram no bairro onde está também situada a escola em que estudam, mesmo lugar onde as sessões foram realizadas.

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As quatro meninas participantes não tinham qualquer relacionamento entre si, pois uma estuda no 7º ano e outra menina no 9º do Ensino Fundamental do turno da manhã. As outras duas adolescentes participantes ambas estudam no mesmo ano, 3º ano do Ensino Médio do noturno. Como os atendimentos foram individuais, nunca tivemos a caracterização de grupo, para poder avaliar o comportamento delas na presença de outras participantes. Apenas as últimas três sessões foram em duplas, pois foi perguntado a elas se havia o interesse de compartilhar ideias e talvez procurar construir um novo caminho. Durante as quinze sessões, os encontros utilizariam material diversificado, muitas vezes, para livre escolha e, outras vezes, direcionado pelo acadêmico. Os encontros foram separados em duas fases. A primeira fase chamada de “Reconhecimento”, contendo sete sessões, e a segunda de “Reconstrução”, com oito sessões. 12 ESTUDO DE CASO 12.1 EDUARDA Quando respondido ao questionário, a primeira participante preferiu ser chamada de EDUARDA, ela tem dezessete anos. Quando perguntada do que gosta de fazer, diz gostar de escutar música, ler livros, estudar, cuidar dos sobrinhos, que são três, pois moram com ela. Com relação às artes, diz gostar de escrever, pois na escrita libera vários sentimentos, escutar música e desenhar, apesar de não saber. Não trabalhava no momento e diz possuir namorado, porém é o primeiro. Ao ser perguntada se teria interesse de realizar encontros com mais participantes, diz ter vergonha e achar que não se sentiria à vontade. Também diz que as sessões de arteterapia ajudarão muito, pois, com os encontros, sua autoestima aumentará, poderá desabafar, quando for preciso, e não ficar mais sozinha como se sentia e ficar chorando por tudo. Ela espera que as sessões deixem mais confiante, acreditando nas pessoas, autoestima elevada, com vontade de viver e superar todos os problemas. Para finalizar, Eduarda diz que é uma pessoa que sofre com alguns preconceitos por causa da cor da pele. Também comenta que, dos nove aos treze anos, sofreu abuso sexual pelos dois irmãos, que na verdade são somente por parte de mãe, esta que, quando bebe e 30

fica alcoolizada, agride a adolescente por qualquer coisa. Ela diz aguentar tudo isso sozinha, pois o pai e as demais irmãs também não ajudam. Eduarda é uma menina esforçada, dedicada e muito educada. Não aparenta ter sofrido qualquer tipo de abuso ou agressão. Somente pela aparência de tristeza, que era uma constante no rosto da adolescente. As sessões iniciaram em março do presente ano e algumas vezes falharam, ou seja, nem sempre aconteciam em sequência, pois aconteciam muitas faltas. Os encontros foram divididos em dois módulos – reconhecimento e reconstrução – e, para isso, as sessões aconteceram numa ordem cronológica e crescente, passando por sete encontros da primeira etapa e oito da segunda, totalizando quinze encontros. Porém essas sessões terão sequência mesmo com o término da pesquisa, para que o trabalho começado no início do ano tenha continuidade, inclusive para seguir trabalhando alguns aspectos ainda em dificuldade. A primeira etapa das sessões de autoconhecimento foi programada para que a aluna fosse, ao longo dos encontros, conhecendo a ela própria, coisa que era muito difícil, perceber-se, olhar para si. Nas três primeiras sessões, foi utilizado um espelho, para que, ao longo da atividade, ela pudesse se analisar, pois as perguntas que eram feitas foram: quem eu sou? Quem eu quero ser? E quem eu fui? Essas perguntas foram em sessões separadas, com técnicas diferenciadas, para iniciar a conversa e quebrar certos “gelos” que ainda havia entre o arteterapeuta e a aluna. Dando sequência às sessões, as atividades a seguir foram de percepção corporal, na qual ela deveria perceber seu corpo, respondendo, através de um trabalho prático, quais transformações aconteceram ao longo do crescimento. Também aconteceram outras atividades arteterapêuticas, tais como o reconhecimento de como ela está se sentindo e evoluindo. Uma das atividades foi de construir um mundo, no qual ela estaria inserida, para saber qual era o mundo da aluna, o qual seria feito em círculo, lembrando uma mandala. Na mandala, trabalham-se todos os complexos, que, segundo Jung, são conteúdos condensados, isto é, carregados de forte carga emocional. Eles ficam registrados em nossa memória celular,


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ficam registrados também em nosso corpo físico, onde se concentra uma forte carga de tensão emocional. 3

As sessões de arteterapia tiveram um ponto fundamental ao longo das sessões, que foi a construção de confiança, pois esse sentimento foi perdido quando o abuso sexual aconteceu. E esse foi o mais difícil e relutante anseio, pois ela acreditava que nunca conseguiria recuperar essa confiança junto com a autoestima. A segunda etapa de reconstrução foi feita a partir da visualização das obras de arte do artista Leonilson, que foi um artista dos anos 90 e, em algumas de suas obras, bordava a sua vida, ou melhor, ele bordava a reconstrução de uma nova vida, depois de ter conhecimento de que era soropositivo. Após a aluna conhecer algumas obras do artista, foi iniciada uma sequência de bordados, nos quais ela deveria bordar com diversas linhas o que pretendia que acontecesse no seu futuro. Essas foram as sessões mais importantes, pois a felicidade e o entusiasmo com que a aluna realizou os bordados ao longo das nossas conversas foi o que fez valer a pena todo e qualquer encontro realizado ao longo dos meses, uma vez que o principal foi ver os olhos brilharem quando a atividade foi proposta. Quando tivemos nossa conversa inicial, foi combinado que conversaríamos enquanto ela bordaria, porém ela solicitou que não comentaria nada ao longo das sessões, que somente contaria o que tinha bordado depois de ter feito quase tudo. Respeitando-a, foi atendido o pedido da aluna, mas na condição de que conversaríamos na décima quinta sessão sobre tudo que havia sido bordado. Como foi combinado, na última sessão, foi conversado tudo que havia sido bordado. Em conversa, ela foi relatando que havia bordado um sonho de ter uma casa, uma boca, pois ela estava falando agora, encruzilhada, porque às vezes se sentia indecisa, entre outros objetos bordados no tecido. 13 CONSIDERAÇÕES FINAIS O uso da arteterapia mostrou-se muito eficiente quando utilizado em sequência de sessões ao  SANTA CATARINA, Maida. Mandala: o uso na Arteterapia. Rio de Janeiro: Walk Ed, 2009, p. 28.

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longo dos meses, pois se tornou fundamental, principalmente no diálogo, facilitando na mediação de problemáticas e também no resgate de certos valores perdidos ao longo de sua vida, como autoestima, confiança e pensamentos positivos, melhorando a qualidade de vida da aluna. Ao longo das sessões, pude perceber que a aluna ganhou autoconfiança para enfrentar os percalços da vida. Enquanto as atividades aconteciam, o amadurecimento e o fortalecimento foram consideráveis, pois, em diversas conversas, percebia-se que a aluna conseguia já enfrentar e ter certa maturidade frente a diversos problemas que eram muito comuns, tais como problemas familiares e de trabalho. Essa reconstrução de confiança e da autoestima foi um percurso árduo. E também nem sempre sabemos aonde chegaremos, pois a arteterapia nos proporciona diversas vertentes e caminhos, porém a única certeza é de que, se a pessoa quer mudar, quer reconstruir uma nova trajetória, mais do que nunca esse método é de suma importância e, com toda certeza, é muito eficaz. Os laços conquistados, ao longo dos encontros, entre o pesquisador e a aluna foram extremamente importantes, pois, para ela, ter confiança para relatar certos fatos ocorridos ao longo da trajetória de vida foi fundamental. A proximidade alcançada nas conversas e na relação interpessoal não poderia ter sido melhor, ainda mais que a aluna estava e ainda está muito disposta a mudar e querer amenizar todas as problemáticas sofridas juntamente à extrema vontade de crescer e amadurecer, reconstruindo uma nova vida. Referências BLAUTH, Lurdi; WOSIACK, Raquel Maria Rossi. Terapias expressivas ou arteterapia: vivencias através da arte. Novo Hamburgo: Feevale, 2005. CIORNAI, Selma. Percursos em Arteterapia: arteterapia e educação e arteterapia e saúde. São Paulo: Summus, 2005. JUNG, C.G. Psicologia do inconsciente. São Paulo: Editora Vozes, 1984.

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MONTERIO, Dulcinéia da Marta Ribeiro. Arteterapia: arquétipos e símbolos; pintura e mídia. Rio de Janeiro: Wak Ed, 2009. PAÍN, Sara. Fundamentos da Arteterapia. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

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SANTA CATARINA, Maida. Mandala: o uso na Arteterapia. Rio de Janeiro: Walk Ed, 2009. WOSIACK, Raquel Maria Rossi. Intervenções expressivas no contexto terapêutico. Novo Hamburgo, Feevale, 2010.


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Educação infantil e ensino fundamental: articulação necessária

Andrea Antinolfi Pereira1 Dalila Inês Maldaner Backes2 Resumo O presente trabalho teve por objetivo investigar de que forma a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental influencia o processo de aprendizagem. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, a qual utilizou como instrumentos de coleta de dados entrevistas semiestruturadas e grupos focais. Nas entrevistas, o objetivo voltou-se a dialogar com duas professoras de Educação Infantil, duas docentes de 1º ano do Ensino Fundamental e três Coordenadoras Pedagógicas acerca de seu conceito de Educação Infantil, Ensino Fundamental e a influência da transição dessas etapas da Educação Básica para o processo de aprendizagem. Nos grupos focais, o objetivo dirigiu-se a verificar como as crianças percebem a escola de Ensino Fundamental, assim como a Escola de Educação Infantil. Foram efetivados quatro grupos focais, sendo dois na esfera infantil e dois no Ensino Fundamental. Através da pesquisa, percebeu-se que a díade entre Educação Infantil e Ensino Fundamental ainda não se concretizou, ocorrendo, na verdade, uma fragmentação entre essas duas etapas da Educação Básica. Dessa forma, compreende-se que a fragmentação existente entre Ensino Fundamental e Educação Infantil não favorece para que a transição seja um ponto potencializador da aprendizagem, a qual não inicia somente quando a criança passa a fazer parte do Ensino Fundamental. Palavras-chave: Educação infantil. Transição. Ensino fundamental. Abstract The present study aims to investigate how the transition from kindergarten to elementary school affects the learning process. This is a qualitative research using as instruments of data collection semi-structured interviews and focus groups. In structured interviews the purpose was talk with two teachers of Early Childhood Education, two teachers from the first grade of Elementary School and three Pedagogical Coordinators about this concept of Early Childhood Education, Elementary Education and the influence of the transition of these two steps of Basic Education for learning process. In the focal groups, the purpose was to observe how the children perceive the school of middle school, as well as the School of Early Childhood Education. Were hired four groups, two of the children’s sphere and two children from the Elementary School. In this sense, the work begins with a brief history of childhood and kindergarten; bring up the following notes on the methodology opted to attend school in early Childhood Education institutions   Graduada em Pedagogia com ênfase em Supervisão e Administração Escolar pela Universidade Feevale e professora de Educação Infantil na rede municipal de Campo Bom – andreapereiranh@hotmail.com 2   Professora orientadora do trabalho de conclusão de curso em Pedagogia com ênfase em Supervisão e Administração Escolar pela Universidade Feevale – dalilai@feevale.br 1

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and, finally, discusses how learning in the interim. Through research, it is clear that the dyad between Kindergarten and Elementary School has not been materialized yet, occurring, in fact, a fragmentation between these two stages of basic education. Thus, it is understood that the fragmented between elementary school and kindergarten is not conducive to the transition point is a potentiating of learning, which does not start only when the child becomes part of Elementary School. Keywords: Childhood education. Transition. Elementary school.

1 Introdução Considerando a organização atual da Educação Básica, a Educação Infantil passou a personificar o cenário do ensino formal, entendida nesse paradigma como etapa inicial de um processo de alfabetização permanente. A relação dos processos desencadeados nesse limiar é efetivada e ressignificada na segunda etapa, os anos iniciais do Ensino Fundamental, em que a formalidade corporifica os conhecimentos até então efetivados através da ludicidade. A transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental é repleta de aspectos que podem vir a potencializar o processo de alfabetização, assim como podem incutir percalços. Com a promoção do ingresso das crianças de seis anos para o Ensino Fundamental, elementos vivenciados na Educação Infantil deverão compor o contexto dessa segunda etapa da Educação Básica. A ludicidade é um componente que deverá estar imbricado com os processos vivenciados, sendo que a Resolução CNE/CBE nº 07, de 2010, reafirma esse posicionamento e sugere a interação e a inter-relação dessas duas etapas da Educação Básica. O presente estudo almejou investigar, em três realidades escolares do município de Campo Bom, de que forma a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental influencia no processo de aprendizagem, sendo resultado do trabalho de conclusão do Curso de Pedagogia com ênfase em Supervisão e Administração Escolar pela Universidade Feevale. Após a efetivação das entrevistas semiestruturadas com os coordenadores pedagógicos e com os professores da Educação Infantil e do Ensino Fundamental dos ambientes escolares selecionados e dos grupos focais com os alunos da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, chega o momento de analisar toda essa gama de dados obtidos, em que procuro 34

responder ao meu objetivo central de estudo, o qual se volta a investigar de que forma a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental influencia o processo de aprendizagem. 2 Tecendo a malha entre os dados coletados e a teoria Tem-se ciência de que, ao delimitar objetivos e agir para que se efetivem, a riqueza dos contextos onde se imerge impregna e relaciona-se diretamente com os pressupostos, preconceitos e hipóteses anteriormente arquitetados, construindo, então, uma malha de conceitualizações. Essa malha se dirige a expressar novos saberes, interpenetrados pelos sujeitos que foram envolvidos e que se envolveram na pesquisa, assim como a fustigar mais questões que ainda não tinham sido engendradas. A presente pesquisa relatada caracterizou-se por uma análise qualitativa através de um estudo exploratório. Seus procedimentos para desenvolvimento se embasaram no método de estudo de caso, utilizando como ambientes de imersão uma escola de Educação Infantil (EI) e duas escolas de Ensino Fundamental, sendo que uma dessas inicia seu atendimento com a faixa etária dos seis anos, ou seja, a partir do 1º ano do Ensino Fundamental (EF1), e a outra escola principia seu atendimento com alunos em idade da Educação Infantil (EF2). A temática foi abordada através do entendimento do que seja uma pesquisa com enfoque qualitativo, segundo Prodanov e Freitas (2009), em que o ambiente é a fonte direta de coleta de dados. Posteriormente às entrevistas semiestruturadas, que foram realizadas com três coordenadoras pedagógicas, e aos grupos focais efetivados, chega o momento de refletir acerca desse cabedal de materiais, dialogando intrinsecamente com a teoria. Falas, sentimentos, reações, conceitos e predisposições foram objetos de estudo, transformados


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em instrumentos de conteúdo, que, analisados à luz da teoria, buscou-se ponderar se a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental influencia no processo de aprendizagem. A coleta de dados, através do grupo focal, esteve embasada, nesta pesquisa, em Gatti (2005, p. 9), pois “[...] há interesse não somente no que as pessoas pensam e expressam, mas também em como elas pensam e porque pensam o que pensam”. Realizaram-se um grupo focal na EF1, com os alunos do primeiro ano do Ensino Fundamental; dois grupos focais na EF2, sendo um grupo com os

alunos do primeiro ano do Ensino Fundamental e um grupo com os alunos da Educação Infantil; e um grupo na EI. Como, segundo Gatti (2005), em um grupo focal a dinâmica é regida pelos componentes do grupo, a quantidade de participantes não foi maior do que 12, sendo que todos devem ser considerados e terem a escuta atenta do moderador. Anteriormente à descrição da análise, faz-se necessária a organização de uma legenda que descreva os instrumentos e os sujeitos envolvidos na coleta de dados para a futura inserção no texto reflexivo através de abreviaturas e cores.

3 A transição da educação infantil para o ensino fundamental e a sua influência para a aprendizagem Principiando o diálogo acerca da transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, faz-se de extrema importância iniciarmos a discussão pelos elementos descritos nas entrevistas. Todos os profissionais foram convidados a descrever sua visão de como ocorre essa transição e seus relatos seguem descritos no esquema do quadro 1. O posicionamento de cada escola em relação à transição da Educação Infantil para o Ensino

Fundamental reflete os conceitos dessas duas etapas da Educação Básica e foi possível perceber, nos relatos dos profissionais da EF1, a descrição da transição como um momento natural, mas sentimentos como ansiedade e expectativa são descritos como componentes desse processo. A PROF1º/EF1 relatou que é um momento de insegurança para todos os envolvidos, e a CP/EF1 descreveu como mais uma etapa de ruptura vivida pela criança, afirmando que se seguirão outras. É importante analisar esse aspecto de ruptura trazido pela CP/EF1, apontando-o como um elemento

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Quadro 1 – Descrição de como ocorre a transição da Educação Infantil no local de trabalho dos profissionais participantes das entrevistas semiestruturadas

natural à aprendizagem. Zabalza (1998, p.15), dialogando sobre os pontos de conexão entre Educação Infantil e Ensino Fundamental, assim se posiciona: [...] Um outro âmbito de conexão da escola infantil deve ser estabelecido em relação ao Ensino Fundamental. Postular a ‘identidade e autonomia’ da escola infantil não significa, absolutamente, considerá-la como um espaço separado no processo da escolarização. Uma das finalidades que o modelo curricular atribui à escola infantil é o de ‘dotar as crianças das competências, 36

aptidões, hábitos e atitudes que possam facilitar a posterior adaptação ao Ensino Fundamental’.

Percebe-se que este é o entendimento que a EF1 tem para com a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, é que a escola infantil somente prepara seus sujeitos para aprendizagens vindouras e não vivencia e proporciona aprendizagens possíveis no momento presente. Ao afirmar que a transição é uma ruptura, a CP/EF1 descreve a relação que se estabelece com a escola infantil como inexistente. A complementariedade


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que a LDB 9394/96 legitima para todas as etapas da Educação Básica não é vivenciada por essa escola e, quem sabe, esse seja o motivo pelo qual algumas crianças choram e ocorra tão marcada insegurança. A questão da ruptura também esteve presente na descrição da transição pela PROFJNA/EI, pontuando que “[...] É a saída da descoberta através da prática e a entrada somente na teoria”. Muitos aspectos aí são levantados para reflexão e um deles se dirige ao entendimento de educação que o município no qual a pesquisa foi aplicada possui, pois a referência de um momento de ruptura foi apontado em mais de uma unidade de ensino. Observa-se que a dicotomia entre Educação Infantil e Ensino Fundamental é vista com naturalidade, pois, como afirmou a CP/EF1, é mais uma vivência de muitas que uma criança tem. Mas, em contraposição ao posicionamento de tolerância e, digamos, de passividade que os profissionais da EF1 demonstraram em relação a essa ruptura, os profissionais da EI demonstraram estar incomodados e descontentes em como essa transição vem transcorrendo. A CP/EI descreve a transição como um momento de crescimento que precisa ser planejado, sendo que a PROFJNA/ EI aponta a falta de conexão entre as duas etapas iniciais da Educação Básica. Em seus discursos, é possível observar a importância que a transição tem para os processos pedagógicos, pois, ao atentar para um momento que, devido às circunstâncias e ao enquadramento social, é recoberto de insegurança, os profissionais da EI demonstram uma visão de educação para além de seu local de atuação. A integralidade e a continuidade da construção do saber é um dos pressupostos visíveis no posicionamento dos profissionais da EI, tendo como base para essa defesa a seguinte afirmação da PROFJNA/EI: Ao final de cada ano, solicito que minha coordenadora pedagógica entre em contato com as escolas fundamentais que receberão no ano seguinte nossos alunos, mas somente uma se mostra aberta e efetivamos uma visita orientada. Preocupome com esta transição, com essa saída e como o município não estimula nada, eu, juntamente com a coordenação, realizo uma avaliação o mais descritiva possível, para que, se a professora que receber nossos pequenos quiser algumas pistas, lá vai encontrar.

Essa preocupação em engendrar aspectos que possam desencadear aprendizagens demonstra a responsabilização para com os alunos, assim como o papel que a escola e a professora assumem na vida escolar da criança. Além disso, é pensando na integralidade municipal e possuindo uma visão sistêmica que a escola se preocupa em desenvolver ações que venham a contribuir e que se coadunem com o entendimento de sistema municipal de ensino, o qual abrange as escolas infantis e fundamentais do município. Ao analisar as respostas à questão de como é sua visão da transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental na EF2, percebeu-se uma unanimidade em descrevê-la como um processo natural. A escola atende desde a faixa etária dos quatro anos até o 5º ano do Ensino Fundamental e, devido a esse atendimento interetapas da Educação Básica, constata-se, nas respostas dos profissionais entrevistados, que a transição de uma etapa para outra ocorre com naturalidade, mas o que foi possível verificar não se dirige a uma unanimidade tão marcada. No GFJNA/EF2 e no GF1º/EF2, foi questionado às crianças se elas já tinham participado de atividades em conjunto entre Jardim Nível A e 1º ano, e a resposta foi negativa. O conhecimento, pelas crianças, das professoras dessas turmas também não foi presente, mesmo o discurso da PROFJNA/EF2 e da PROF1º/EF2 se voltando a um trabalho integrado. A CP/EF2 também referiu essa aproximação entre as etapas, mas ela não foi identificada. Percebe-se que, ao atender as duas faixas etárias, tem-se o entendimento de que o processo de transição de uma etapa para outra seja natural, o que não é verdadeiro, pois a metodologia é descrita tanto por professores como pelos alunos participantes dos grupos focais como diversa. Na EF2, há a preocupação com os alunos que vêm de escolas infantis, sendo possibilitada uma visita orientada, segundo a CP/EF2, de suma importância. Identificou-se que a EF2 tem uma visão integral das etapas da Educação Básica, mas está se preocupando mais com “os de fora” do que com “os de dentro”. Oliveira (2002, p. 140) relata-nos a importância de um ambiente acolhedor e que não cause insegurança, para que a criança possa efetivar avanços e construções em seu processo de ensino-aprendizagem. 37


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[...] A motivação para aprender surge à medida que a criança busca dominar algo como meio de satisfazer certas necessidades. Ser colocada em um ambiente que não lhe desperte medo, mas a incentive a explorá-lo, ter sua atenção dirigida a aspectos significativos para si mesma são elementos que ampliam o sucesso da criança na grande aventura de conhecer.

Questionados acerca dessa função que a transição pode vir a efetivar para o desencadeamento de aprendizagens conectivas de uma etapa da Educação Básica para outra, os profissionais responderam à seguinte pergunta: na sua opinião, a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental influencia ou não na aprendizagem?

Quadro 2 – A transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental influencia na aprendizagem, segundo os profissionais entrevistados 38


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Percebe-se que houve o posicionamento positivo para com a influência da transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental em relação à aprendizagem, demonstrando que todos os professores entrevistados denotam à Educação Infantil um papel inicial de conhecimento, “[...] as crianças já vêm com vários aprendizados e nós fazemos as conexões e aumentamos um pouco mais”. – PROF1º/EF2. Isso conota à Educação Infantil um papel para além da socialização, do contato com um ambiente mais elaborado de sociedade, assumindo, dessa forma, a característica de princípio da construção do conhecimento, da interação com os diferentes saberes. A PROF1º/EF1 assim se posiciona: “[...] As aprendizagens ocorrem com mais naturalidade e tranquilidade.”, demonstrando que as estimulações vivenciadas na Educação Infantil encontram ressonância nas aprendizagens futuras, ditas, como já foi referido neste estudo, como mais formais, ocorridas no Ensino Fundamental. Ao analisar as respostas e identificar que todos os professores percebem a Educação Infantil como uma etapa de muita importância para as aprendizagens subsequentes, tem-se o entendimento de que suas metodologias e as práticas desenvolvidas se voltam a valorar o que ocorre na primeira etapa da Educação Básica; mas duas Coordenadoras Pedagógicas apontam que essa influência direta na aprendizagem somente se efetiva quando o professor se direciona a uma anamnese dos alunos: “[...] depende de como o próximo professor vai encarar estas aprendizagens”. – CP/EI, “[...] depende de como a professora do 1º ano vai efetivar seu trabalho” - CP/EF1. Questões são evocadas com essas falas: as Coordenadoras Pedagógicas estão envolvidas e cientes do trabalho desenvolvido pelos professores, assim como sua visão do que seja aprendizagem? Retomando a visão sistêmica, há um diálogo transversal entre os profissionais que exercem a coordenação pedagógica nas diferentes etapas da Educação Básica ou há fragmentação? Percebe-se que os professores apontam um caminho, “[...] As descobertas da educação infantil influenciam muito no ensino dos conteúdos, o que nos falta é comunicação!” – PROFJNA/EI, ressaltando que através da aproximação entre as etapas é que se

potencializará o processo de ensino-aprendizagem efetivado. Oliveira (2002, p. 170) descreve esse olhar integral, que percebe para além de uma etapa, para além da fase estanque. A constante orientação do trabalho educativo deve respeitar a infância, captá-la na complexidade de sua cultura com sua pluralidade de características. A perspectiva que defendemos é a de que o projeto pedagógico daquelas instituições busque fazer o olho infantil saltar o muro, quebrar barreiras, e que o olhar dos educadores procure reconhecer daquilo que as famílias das crianças sabem, veem e esperam.

Dessa forma, a proposta pedagógica do município deve estar voltada para a promoção desse olhar, visto que a aprendizagem não ocorre somente na escola, nem em alguns anos escolares específicos. É processual e transcendental aos muros escolares. Construir uma proposta pedagógica implica a opção por uma organização curricular que seja um elemento mediador fundamental da relação entre a realidade cotidiana da criança – as concepções, os valores e os desejos, as necessidades e os conflitos vividos em seu meio próximo – e a realidade social mais ampla, com outros conceitos, valores e cisões de mundo. Envolve elaborar um discurso que potencialize mudanças, que oriente rotas. Em outras palavras, envolve concretizar um currículo para as crianças. (OLIVEIRA, 2002, p.169).

Assim, aprendizagem para vida, na vida e com vida. 4 Conclusão A análise dos dados coletados sinaliza alguns pontos de conclusão, de arremate de uma malha inesgotável do saber e, dessa forma, a questão preponderante se anuncia: a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental é um aspecto que pode vir a potencializar o processo de aprendizagem? Ao analisar as respostas dos profissionais entrevistados e os relatos advindos delas, percebe-se que o município no qual a pesquisa foi efetivada

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não tem preocupação em instituir como política pública processos e instrumentos que legitimem a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental como um elemento potencializador das aprendizagens; além disso, identifica-se que o conceito de educação é entendido através da compartimentação das etapas e não de um único processo que se desencadeia quando o ser humano nasce. Metodologias e currículos, no município no qual a pesquisa se transcorreu, são delineados e pensados a partir de pressupostos diferentes que, por vezes, podem não ser complementares devido à seara de atendimento. Além disso, como os profissionais que atuam na transição a efetivam? Percebe-se que, ao contrário de outras profissões, a análise do que ocorreu antes, uma anamnese, um diagnóstico inicial, por vezes não tem valoração para o que se desencadeia. A fragmentação e a compartimentação ainda são processos amplamente efetivados na educação, mesmo que se tenha o discurso de educação para a vida, visando à educação integral. Esse saber que deve se constituir na cotidianidade, interpenetrando todas as etapas de vida, tempo e escolaridade na qual o sujeito se encontra, ainda não se efetiva em nossas escolas e foi possível constatar, com precisão, no sistema de ensino pesquisado. Ponderando os contextos de imersão, percebeu-se o que Motta (2011, p.167) descreve em sua pesquisa: A expressão do corpo revelava uma aprendizagem; a sala de aula, no ensino fundamental, era um espaço de movimentos mais contidos, as vozes reguladas num volume mais baixo. Os movimentos não autorizados deveriam ser feitos de maneira rápida e sutil, preferencialmente quando a professora não estivesse atenta. Percebia-se aqui uma sujeição dos corpos infantis à lógica das culturas escolares, que conformam um tipo de subjetividade bem específica: a do aluno.

Pode-se observar, na pesquisa efetivada, que as crianças deixavam suas “criancices” do lado de fora da sala de aula de Ensino Fundamental, como se esses aspectos fossem impedir a construção de conhecimento. Dessa forma, acredito que não ocorra

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realmente uma construção do conhecimento, pois a troca entre os pares, a dinâmica de uma discussão possibilitando o olhar para mais de um viés e a argumentação não se efetivam em um ambiente que não possibilita a interação genuína entre os componentes de um grupo. Além da díade entre Ensino Fundamental e Educação Infantil, há a necessidade de os profissionais que atuam nessas duas etapas da Educação Básica, que deveriam ser complementares, atentarem para a conceitualização do sujeito que vivencia essa escolaridade, e Motta (2011, p.171) ressalta um aspecto importantíssimo: “O que não podemos esquecer é que crianças de seis, sete ou mesmo de dez anos são ainda crianças, estejam mais ou menos escolarizadas. Crianças e alunos, e não mais crianças ou alunos”. Assim sendo, faz-se necessário o arrefecimento da fragmentação entre educar e cuidar, transformando esses dois elementos do conhecimento em protagonistas desencadeadores da construção do saber, ou seja, perceber que as crianças se tornam alunos amiudemente, assim como se apropriam de toda a complexidade do mundo que as cerca, tendo como coadjuvantes permanentes suas fantasias, seus medos, suas expectativas, suas brincadeiras e seus desejos que caracterizam a subjetividade infantil. Referências BRASIL. Lei Federal 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 10 out. 2011. _______, Ministério da Educação e Cultura. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução nº 7 de 14 de dezembro de 2010. Disponível em: <http://portal. mec.gov.br/index.php?Itemid=866&id=14906&o ption=com_content&view=article>. Acesso em: 10 out. 2011. GATTI, Bernadete Angelina. Grupo focal na pesquisa em ciências sociais e humanas. Brasília: Liber Livro, 2005. 77 p. (Série Pesquisa; 10)


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MOTTA, Flávia Miller Naethe. De crianças a alunos: transformações sociais na passagem da educação infantil para o ensino fundamental. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 1, p. 157-173, jan./abr. 2011. Disponível em: <http:// www.scielo.br/pdf/ep/v37n1/v37n1a10.pdf>. Acesso em: 22 mai. 2012. OLIVEIRA, Zilma Ramos de. Educação Infantil: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2002. 255 p. (Coleção Docência em Formação).

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Docência na educação infantil: prática de qualidade em uma instituição referÊncia

Roberta Wartha1 Denise Arina Francisco2 Resumo Este artigo é fruto de uma pesquisa realizada sobre docência na educação infantil, na qual foram analisadas, dentre outras questões, práticas pedagógicas positivas nesse nível de ensino, bem como os condicionantes que contribuem para sua efetivação. Trata-se de uma pesquisa qualitativa em que foi trabalhado com o estudo de caso em uma instituição referência em qualidade na educação infantil no município de Farroupilha/RS. O estudo teve como participantes quatro professores da instituição referida, dos níveis de Maternal e Pré II, além da Direção, Vice-direção e Gestora3 da escola, analisando teorias, metodologias, influências e parcerias destaques na realização exemplar de suas práticas. A partir desta pesquisa, conclui-se que a prática do professor em educação infantil está alicerçada em pilares, como fundamentação teórica e metodológica, relações de afeto e diálogo com a criança, conhecimento da etapa de desenvolvimento, entre outras questões. A organização do profissional da área, juntamente com o planejamento e o favorecimento da instituição onde está, constituem-se como essenciais no desenvolvimento de seu trabalho. O olhar além da criança que está à sua frente faz a prática e a conduta do professor serem construídas mediante a realidade ali apresentada, tornando-o, assim, um profissional diferenciado e único. O apoio e o incentivo de toda equipe diretiva da instituição, coordenação pedagógica e demais envolvidos nesse meio contribuem no desenvolvimento dessa prática docente. Palavras-chave: Educação infantil. Formação docente. Escola de qualidade. ABSTRACT This article presents a positive practice in early childhood education. This is a qualitative research which was working with the case study in an institution benchmark in quality early childhood education in the city of Farroupilha/RS. The study had four participants and lecturers said, levels of Maternal and Pre II, besides the Director, Deputy Manager and direction of the school, analyzing theories, methodologies, and partnerships influences highlights exemplary achievement in their practices. From this research, it is concluded that the practice of the teacher in early childhood education is based on the pillars as theoretical and methodological, loving and dialogue with the child, knowledge of the stage of development among other issues. The organization of the professional area, along with planning and facilitating the institution

Graduada em Pedagogia pela Universidade Feevale.   Professora do Curso de Pedagogia Universidade Feevale. Mestre em Educação-UFRGS; especialista em Supervisão Escolar-FAPA e em Psicologia Escolar-PUC/RS; adicionais em Pré-escola-Instituto de Educação Gen. Flores da Cunha; graduada em Pedagogia-PUC; Orientadora Educacional na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre/RS. 3   Aqui, entende-se gestora como a proprietária da escola. 1 2

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where you are, are as essential in the development of their work. Look beyond the child who is in front, makes the practice and conduct of the teacher being built upon the reality presented there, making it thus a professional distinctive and unique. The support and encouragement of the entire management team of the institution, coordinating education and others involved in this way, contribute in the development of teaching practice. Keywords: Childhood education. Teacher training. Quality school.

1 Introdução O presente artigo busca destacar os caminhos a serem percorridos para chegarmos à devida qualidade para a primeira infância, em que professor, direção e instituição necessitam de total seriedade e cumplicidade em seu trabalho, desenvolvendo, assim, uma atuação voltada para ambas as partes, professor e aluno. A relação entre o cuidar e o educar, nessa etapa do desenvolvimento humano, é de extrema importância, não é possível falarmos em educação infantil sem incluirmos diretamente o cuidar nessa prática. A relação entre o professor e o corpo diretivo da instituição também contribui para uma boa socialização e aplicação de sua prática, o acesso do docente a todos os subsídios necessários para que possa desenvolver seus objetivos para o desenvolvimento da criança fortifica e aumenta a variedade e a diversidade de atividades em seus planejamentos, podendo, assim, melhor atender seu aluno. Dentro da pesquisa, destacaram-se a formação docente e a aquisição dos saberes que circundam a prática cotidiana desse profissional, de onde são advindos esses saberes que o professor coloca em prática em sua atuação em sala de aula, além da significação da qualidade para a primeira infância. A instituição onde foi realizada a pesquisa pertence à rede privada de educação, sendo mantida por uma empresa do município de Farroupilha/RS. Toda prática docente é constituída de múltiplos saberes, influências e contribuições advindas de diferentes fontes, desde os conhecimentos que o docente carrega consigo até o desempenho da direção da instituição, a estrutura física e os recursos dispensados a esse profissional são reflexos diretos na prática docente na educação infantil. E a busca pela qualidade nessa prática é atingida de acordo com o desenvolvimento de todas essas características, apenas a escrita no papel da concepção de qualidade não basta para 44

sua efetivação, a junção da instituição e de todos os seus profissionais, juntamente ao docente, reflete a qualidade na educação da primeira infância. 2 O olhar para a criança: concepção da infância O mundo medieval ignorava a infância, desconsiderava qualquer sentimento, qualquer consciência da particularidade infantil, sem nenhuma diferenciação da criança para com o adulto, ou mesmo o jovem. A partir do momento em que conseguissem viver sem os cuidados de suas mães ou amas, entre cinco ou sete anos de idade, as crianças eram lançadas no mundo do adulto, trabalhando, participando de seus jogos, designando ofícios, sem nem ao menos terem completado sua formação. “O termo ‘infância’ (in-fans) tem o sentido de ‘não fala’” (OLIVEIRA, 2002, p. 44). A imagem da infância era do pecado, advindo da figura pecadora do homem, em que a luz divina, a razão, jamais se manifestaria. Nem mesmo os filósofos do Renascimento e da Idade Média viam na infância um período de razão, não sendo cabível à criança poder lidar com todas as informações que recebe. No século XII, a infância começa a ter um valor social como conceito, como uma categoria própria. O uso da palavra criança também não era comum com o seu significado como entendido atualmente, a palavra era utilizada para crianças, mas poderia também indicar dependência ou servidão, por isso, também poderia ser aplicada a adultos ou jovens. A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII. (ARIÈS, 2006, p. 28)


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A criança possui uma personalidade única, que exige seu desenvolvimento com cautela e acompanhamento adequado. Permitir que a criança desenvolva seus aprendizados de maneira lúdica e participativa ativamente é dar o devido respeito do qual ela necessita. Ela exige, sim, uma orientação, na qual se pontua a oportunidade de um melhor e mais correto desenvolvimento de sua moral e conduta perante sua cultura e a sociedade.

como a educação sendo uma função pública, além de o ensino ser gratuito e obrigatório. Foram surgindo novos jardins de infância e cursos para formação de seus professores, mas nenhum voltado especificamente ao atendimento das crianças das camadas populares. Nesse mesmo ano, surgiu a fundação da Inspetoria de Higiene Infantil, que, mais tarde, foi transformada em Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância.

3 A educação infantil: o início de uma caminhada O surgimento das escolas de educação infantil deu-se por volta dos séculos XVI e XVII e inúmeros fatores foram responsáveis para essa mudança ser alcançada. As creches e as pré-escolas surgiram depois das escolas, juntamente relacionadas ao trabalho materno fora do lar, a partir da Revolução Industrial. Essas aparições se deram devido a mudanças econômicas, políticas e sociais ocorridas na sociedade. A história da educação infantil em nosso país acompanha um pouco daquilo que ocorreu no mundo com relação a essa área. Até meados do século XIX, o atendimento a crianças longe de suas mães, em instituições e/ou creches, praticamente não existia. No interior, no meio rural, onde vivia a maior parte da população do país na época, a família dos fazendeiros assumia o cuidado das crianças órfãs, geralmente fruto da exploração sexual da mulher escrava e índia. E na região urbana, os bebês eram abandonados à sua sorte, alguns levados à roda dos expostos, entidades existentes em algumas cidades desde o século XVIII. O jardim de infância foi recebido no Brasil com entusiasmo por alguns setores, porém muitos o criticavam por julgarem que seria apenas um mero espaço de guarda das crianças, outros consideravam ser importante para o desenvolvimento infantil.

Entendidas como ‘mal necessário’, as creches eram planejadas como instituição de saúde, com rotinas de triagem, pessoal auxiliar de enfermagem, preocupação com a higiene do ambiente físico. [...] A preocupação era alimentar e cuidar da higiene e da segurança física, sendo pouco valorizado um trabalho orientado à educação e ao desenvolvimento intelectual e afetivo das crianças. (OLIVEIRA, 2002, p. 100)

As escolas maternais, inicialmente, eram instituições de assistência à infância e foi somente com a absorção das propostas pedagógicas que transformaram-se em unidades pré-escolares, oferecendo educação e assistência social. (SANCHES, 2003, p. 66)

No ano de 1932, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova defendeu diferentes pontos,

Porém, a maior mudança ocorrida nesse período foi a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), aprovada em 1961 (Lei 4024/61). Assim, expandiu-se o conceito de educação, aumentando a responsabilidade das unidades escolares, estimulando ainda a participação dos profissionais da área na elaboração do projeto pedagógico da escola, valorizando também os profissionais da educação. Foi formulado um Referencial Curricular Nacional para a Educação infantil (RCNEI) pelo MEC e as Diretrizes Nacionais. Mais do que simples retórica, o respeito à criança ganha concreticidade na medida em que estejam previstos: brincadeira; atenção individual; ambiente aconchegante, seguro e estimulante; contato com a natureza; higiene e saúde; alimentação sadia; desenvolvimento da curiosidade, imaginação e capacidade de expressão; movimento em espaços amplos; proteção, afeto e amizade; expressão de sentimentos; especial atenção durante o período de adaptação; desenvolvimento da identidade cultural, racial e religiosa. (OSTETTO, 2002, p. 16)

A instituição de educação infantil não é uma família, porém é familiar, afetuosa, cuidadosa, tendo suas leis, suas rotinas, sua organização, enfim, toda a sua estrutura voltada em prol da criança, para que

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ela se sinta segura e orientada no período em que está com outras crianças e com adultos. 4 A formação docente: o profissional de múltiplos saberes Na década de mil novecentos e sessenta, era predominante a valorização sobre o conhecimento específico em apenas uma disciplina. Já em mil novecentos e setenta, o olhar voltou-se para questões didático-metodológicas, quando, na década de mil novecentos e oitenta, entrou em cena a valorização da prática pedagógica, além da história de vida dos professores. Mas na década de mil novecentos e noventa é que são focados os estudos no contexto social pré-profissional. Compreender a direção que foi dada à educação formal significa estabelecer relações, explicar mesmo que não seja de maneira extensa a nomenclatura empregada para designar cursos de formação de professores porque estas condensam as orientações políticas estabelecidas ao longo de nossa história. (VALDUGA, 2005, p. 27)

Uma formação docente, como traz Tardif (2003), deve considerar o conjunto de saberes que são mobilizados pela vida do professor, construindo, através de seus conhecimentos, uma vida profissional. Dizer que o professor é detentor de apenas um conhecimento se torna uma afirmação incorreta e, pode-se dizer, injusta nos tempos de hoje. O conhecimento docente é um campo vasto e amplo no qual tudo que o cerca está envolvido em sua prática, podendo ser relacionado ou, até mesmo, influenciar em seu cotidiano. O saber dos professores não é um conjunto de conteúdos cognitivos definidos de uma vez por todas, mas um processo em construção ao longo de uma carreira profissional na qual o professor aprende progressivamente a dominar seu ambiente de trabalho, ao mesmo tempo em que se insere nele [...]. (TARDIF, 2003, p. 14)

A formação pela qual o professor passa, assim como traz Nóvoa (1997), deve ser estimulante de uma visão crítico-reflexiva, fornecendo aos professores meios para que possam ter um pensamento autônomo. Estar em formação requer 46

um investimento do professor, em busca de uma identidade, além de pessoal, uma identidade profissional. Todos os saberes construídos, adquiridos com a experiência do cotidiano docente, vão contribuindo, erguendo um alicerce através da prática e da competência do professor, pois esses conhecimentos se tornam condicionantes para aquisição e produção de seus próprios saberes profissionais. Os saberes docentes parecem ser plurais, compósitos, heterogêneos, pois trazem, no próprio exercício do seu trabalho, manifestações do saber-fazer e do saber-ser diversificadas, provenientes de fontes diferentes, em que sua natureza, consequentemente, é também diferente. [...] os professores utilizam constantemente seus conhecimentos pessoais em saber-fazer personalizado, trabalham com os programas e livros didáticos, baseiam-se em saberes escolares relativos às matérias ensinadas, fiam-se em sua experiência e retêm certos elementos de sua formação profissional. (TARDIF, 2003, p. 64)

O trabalho docente tem como objetivo o ser humano, cujo processo de realização é fundamentalmente interativo, necessitando, assim, que esse trabalhador se apresente com tudo o que ele é, com toda sua história e sua personalidade, seus limites e recursos. [...] para ensinar é preciso aprender a ensinar e este aprendizado envolve situações de ensino-aprendizagem complexas e intencionais. [...] Educar exige mobilizar questões pessoais, sociais, pedagógicas e institucionais, que passam necessariamente por reelaborações inéditas, pois há na aprendizagem muito mais do que reproduções e constatações. (VALDUGA, 2005, p. 30)

Todas as características referentes à EI (Educação Infantil) nos levam a interpretar a necessidade de uma pedagogia específica para essa etapa, na qual o professor precisa ter a compreensão da vulnerabilidade e da dependência da criança, gerando, assim, atitudes de cuidado. O professor, além de ser um mediador, um caminho para a criança desenvolver seus conhecimentos, torna-se um companheiro, um amigo, um cuidador/


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educador que olha para os alunos com o olhar da compreensão, e não com os olhos da imposição, da rejeição ou, ainda, da limitação, acreditando que a criança se desenvolverá muito além com a relação dos saberes que já possui com tudo aquilo que ainda vai conhecer. Assim, a prática docente torna-se muito mais que a simples conjugação do verbo educar, ela relaciona afetividade, alegria, capacidade científica, domínio técnico, servindo para a mudança, reconhecendo que profissão de professor abrange questões amplas, envolvendo também sua própria história de vida. 5 A qualidade para a primeira infância As instituições destinadas à educação infantil preocupam-se muito com a qualidade tanto física do espaço onde a criança vai passar grande parte do seu dia quanto de ensino relacionado ao desenvolvimento dos saberes. “A importância crescente da qualidade no campo das instituições dedicadas à primeira infância pode ser entendida em relação à busca modernista pela ordem e à certeza fundamentadas na objetividade e na quantificação” (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 121). Desde o início da década de 1980, os conceitos da qualidade têm sido aplicados às instituições destinadas à primeira infância, em que estão inclusos pesquisas, medidas, padrões, diretrizes sobre a prática nessa etapa de desenvolvimento humano. Esse discurso de qualidade influenciou demasiadamente o campo das pesquisas direcionadas à primeira infância. A realização de um trabalho desafiador e exigente requer a junção extrema do cuidar e educar, o cuidado e a aprendizagem em único serviço dedicado à primeira infância. A instituição Bem Feliz4, onde foi realizada a pesquisa, é referência em qualidade de ensino e estrutura na EI. Em pesquisa avaliativa realizada pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SMEC) do município de Farroupilha/RS, a instituição recebeu a titulação de escola referência em qualidade. A instituição recebe visitas de outras cidades e regiões vizinhas com o intuito de conhecerem o projeto existente, sendo que essa escola tem como mantenedora uma grande 4

Nome fictício dado à instituição pela pesquisadora.

empresa da cidade. Todos os itens exigidos para a constituição da EI são atendidos desde o processo de construção, destacando que a escola foi construída de acordo com as normas exigidas. Todos os espaços foram construídos especificamente para a EI, sendo rodeada por um grande espaço de área verde. Todos os componentes ali presentes são estruturados para a criança, favorecendo o alcance, o manuseio e a interação dela com o espaço onde se encontra. Os Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (PNQEIs) afirmam que Crianças expostas a uma gama ampliada de possibilidades interativas têm seu universo pessoal de significados ampliado, desde que se encontrem em contextos coletivos de qualidade. Essa afirmativa é considerada válida para todas as crianças, independentemente de sua origem social, pertinência étnico-racial, credo político ou religiosos, desde que nascem. (BRASIL, 2006, p.15)

Os espaços externos propiciam à criança momentos ricos em aprendizados de mundo e contato direto com a natureza, como cuidar das plantas, com a participação na horta, o cuidado e o respeito com os animais, interagindo com os pequenos animais que se encontram ali, além da exploração dos variados brinquedos que exigem raciocínio, equilíbrio e agilidade por parte da criança. O planejamento dos cuidados e da vida cotidiana na instituição deve ser iniciado pelo conhecimento sobre a criança e suas peculiaridades, que se faz pelo levantamento de dados com a família no ato da matrícula e por meio de um constante intercâmbio entre familiares e professores. (BRASIL, 1998, p. 75)

A instituição possui uma cozinha industrial onde são preparadas todas as refeições do dia das crianças. O refeitório também é estruturado de acordo com o tamanho das crianças, com mesas e bancos apropriados. A instituição investe também em seus profissionais, fornecendo todo material que for solicitado para o desenvolvimento dos pequenos. Também dirige um investimento nos profissionais que ali estão, proporcionando formação continuada 47


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em serviço, em seu espaço escolar, sendo que o professor não precisa buscar fora soluções para sanar suas dúvidas. Professoras bem formadas, com salários dignos, que contam com o apoio da direção, da coordenação pedagógica e dos demais profissionais – trabalhando em equipe, refletindo e procurando aprimorar constantemente suas práticas – são fundamentais na construção de instituições de educação infantil de qualidade. (BRASIL, 2009, p. 54)

Uma instituição de qualidade na educação infantil deve atender a todos os pré-requisitos estabelecidos para a faixa etária, em que o educar e o cuidar andem de mãos dadas, proporcionando à criança um espaço único, rico em valores sociais, aprendizados e a construção de significados relacionados aos saberes que serão elaborados. Uma criança saudável, feliz, é fruto de um ambiente propiciador de vivências da infância. “Favorecer interações humanas positivas e enriquecedoras deve ser uma meta prioritária de toda instituição educacional” (BRASIL, 2009, p. 45). 6 Docência na educação infantil e instituição: parceira de qualidade A qualidade na prática de um professor de educação infantil constitui-se por uma verdadeira junção de saberes, métodos, propostas que envolvem, em todo o seu tempo, o cuidar e o educar da criança. “Um dos fatores que mais influem na qualidade da educação é a qualificação dos profissionais que trabalham com as crianças”. (BRASIL, 2009, p. 54) A prática docente envolve diversos conhecimentos, saberes advindos de diferentes fontes, e a junção e o uso de todos eles, de forma pedagógica e adequada à criança com a qual estamos envolvidos, traz a devida qualidade. Os docentes participantes da pesquisa demonstraram o envolvimento de todos os saberes necessários na busca da qualidade do desenvolvimento infantil. A docência é uma das profissões que mais exige envolvimento emocional, uma metodologia adequada à faixa etária na qual se está inserido, além de uma busca constante por novos conhecimentos. Tardif (2003) aponta que “a prática docente não é apenas um objeto de saber das ciências da educação, 48

ela é também uma atividade que mobiliza diversos saberes que podem ser chamados de pedagógicos” (p. 37). A atuação da equipe diretiva da escola é de suma importância na construção dos conhecimentos dos professores, a liberdade de expressão e a utilização de recursos da instituição são reflexos na prática docente, delimitando ou não a variação e a diversificação de projetos e atividades com as crianças. Tudo aquilo que cerca o professor é passível de ser lapidado na construção de novos conhecimentos. Além disso, os saberes experienciais também atuam fortemente sobre a prática docente. A busca por novos saberes é constante, e os professores expuseram sua busca de conhecimentos não apenas em livros ou teorias, mas com os colegas e a direção. Os saberes curriculares também fazem a diferença na prática em sala de aula. Esses saberes correspondem, segundo Tardif (2003), aos discursos, objetivos, conteúdos e métodos os quais a instituição apresenta para o desenvolvimento dos saberes sociais selecionados. As leis, as normas e o currículo que circundam a educação infantil também fazem sua devida contribuição para a prática do professor. Os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (RCNEIs) trazem contribuições para todo o processo do trabalho da instituição, assim como o do professor. O trabalho direto com crianças pequenas exige que o professor tenha uma competência polivalente. A implementação e/ou implantação de uma proposta curricular de qualidade depende, principalmente, dos professores que trabalham nas instituições. (BRASIL, 1998, p. 41)

A organização do professor também se torna fundamental para uma prática de qualidade. O planejamento das aulas, o método de trabalho, os recursos que serão disponibilizados fazem a diferença para a criança aprimorar conhecimentos e desenvolver novos. Corsino (2009) ressalta que “planejar na educação infantil, então, é firmar um compromisso com as crianças e seu desenvolvimento” (p. 121). Na educação infantil, o papel docente vai muito além do espaço da sala de aula, a relação


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professor/aluno é decisiva para uma prática bem sucedida, para um desenvolvimento rico em construções de aprendizados. A afetividade torna-se um componente curricular dentro do espaço da educação infantil. A prática docente, na educação infantil, envolve muito mais do que nossos olhos podem ver. “A instituição de educação infantil é um espaço de vivências, experiências, aprendizagens. Nela, as crianças se socializam, brincam e convivem com a diversidade humana” (BRASIL, 2009, p. 57). A atuação do professor e a da instituição caminham juntas no caminho da qualidade. Todos os saberes que o docente traz consigo, juntamente com a busca por novos, não serão úteis, de validade concreta, se não houver oportunidade, motivação e, pode-se dizer, liberdade por parte da instituição, confiando em seu professor, acreditando e oferecendo a ele as condições necessárias ao desenvolvimento de seu trabalho. O ambiente constitui expressão de um sistema social com suas rotinas, relações, ideologias, etc. É esse sistema que prescreve a função de um espaço físico-social e as pessoas que o podem utilizar, o que podem fazer e com quem. (OLIVEIRA, 2002, p. 194)

A instituição acredita que todos os recursos materiais são essenciais no desenvolvimento da ação docente. Para melhor trabalhar com as crianças, os professores possuem à sua disposição um grande arsenal de materiais, sendo que esses se encontram distribuídos na sala dos professores, na sala da direção e em um grande depósito, onde estão separados por grupos. Com relação aos materiais disponíveis, os RCNEIs apontam que “constituem-se em poderosos auxiliares da aprendizagem. Sua presença desponta como um dos indicadores importantes para a definição de práticas educativas de qualidade [...]” (BRASIL, 1998, p. 68). Todos os professores afirmaram estar satisfeitos com direção e a instituição em si, onde conseguem conversar abertamente, esclarecendo dúvidas e questionando, sempre que necessário. Os professores também destacam, entre muitos outros fatores apontados, que os benefícios que a escola oferece, a formação continuada em serviço, em que são contemplados com cinco cursos anuais de diferentes áreas, as quais os docentes mesmo que

determinam de acordo com as suas necessidades, contribuem para sua satisfação no trabalho. Não poderíamos encontrar outro quadro: uma instituição de qualidade referência na região onde está, com profissionais qualificados recebendo incentivos e oportunidade de ampliarem seus saberes, exercendo a docência com todos os direitos e oportunidades, desenvolvendo, assim, um trabalho rico e completo com as crianças. 7 O caminho a seguirmos na busca da devida qualidade para a primeira infância A prática docente na educação infantil envolve multissaberes. Os professores pesquisados demonstraram toda uma preocupação com o ensinar e o bem-estar das crianças, não apenas no período em que estão em sala de aula, mas o social, a família em que vive essa criança também é preocupação docente, em virtude disso, o planejamento das aulas viabiliza aquilo que a criança convive, ou seja, o histórico da criança, o social, o conhecimento que já traz consigo é determinante nesse planejamento. O saber docente ultrapassa o conhecimento das leis, das normas e do currículo da educação infantil, o saber do professor requer conhecimento de mundo. As experiências também acarretam conhecimento, os saberes experienciais são valiosos no processo de desenvolvimento da prática, em que o docente aprende com o dia a dia, aprende a aprender com seus alunos e com aquilo que decorre de seu cotidiano. A busca por mais e novos conhecimentos é imprescindível ao professor, e ele está sempre se qualificando, procurando discutir e esclarecer suas dúvidas com o grupo docente e o gestor da instituição. Além disso, a prática docente também necessita de outros meios para poder chegar a algum lugar, alcançando a qualidade e os objetivos necessários para cada criança. A instituição faz toda a diferença na prática do professor, não apenas em sua estrutura física, nas salas que oferece, nos mobiliários adequados à idade, no pátio, nos recursos externos, mas também na riqueza e na disponibilidade de materiais para uso dos professores e das próprias crianças. Os brinquedos disponíveis a elas também contribui para o desenvolvimento de seu aprendizado, pois o docente se utiliza dos

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brinquedos para a observação da criança, entre outras intenções, retirando dali aquilo que a criança está demonstrando com relação à sua vida, ao seu interior. A direção da instituição é de suma importância em uma prática de qualidade. Toda a liberdade e a confiança dispensadas ao docente são refletidas em seu trabalho em sala de aula. Acreditar e permitir que o professor desenvolva sua metodologia, disponibilizando os recursos, a atenção e o diálogo necessários são alavancas na autoestima do professor. Os incentivos que a própria instituição oferece, como a formação continuada em serviço, também contribuem para a sua prática, para a qualidade dela. Promover qualificação dentro do espaço de trabalho favorece ao docente, permite-lhe sanar dúvidas e obter respostas que serão de utilidade em seu cotidiano, visando ao melhor para a criança. Tudo isso faz parte de uma prática de qualidade, desde os saberes que o professor apresenta e desenvolve durante sua prática, a busca por novos conhecimentos e o esclarecimento de dúvidas que surgem em seu cotidiano, até a oportunidade que lhe é oferecida, a oferta de recursos e incentivos que lhe agregam oportunidades de melhor desenvolver seus conhecimentos, distribuindo, assim, práticas de qualidade, em que a criança é o foco e o seu bem-estar, aprendizado e desenvolvimento é objetivo central. O docente, quando está motivado, realiza seu trabalho com qualidade. Assim, é possível concluir que a qualidade só se dá quando instituição e o docente caminham lado a lado, pautados no diálogo, na parceria e no comprometimento. A qualidade tão almejada pelas escolas não se faz apenas no papel, não são palavras colocadas apenas na teoria, e sim atitudes verdadeiras, objetivas e concretas para ambas as partes envolvidas nesse processo: docente e instituição, junção de qualidade.

Referências ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Tradução Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006. BRASIL. Ministério da Educação e Desporto. Secretaria da Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil. Brasília: Brasília: MEC, SEB, 2006. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Indicadores da Qualidade na Educação Infantil. Brasília: MEC, SEB, 2009. CORSINO, Patrícia. (Org.). Educação Infantil: cotidiano e políticas. Campinas, SP: Autores Associados, 2009. DAHLBERG, Gunilla; MOSS, Peter; PENCE, Alan. Qualidade na Educação da Primeira Infância: perspectivas pós-modernas. Tradução Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 2003. NÓVOA, António. Os professores e a sua formação. 3. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1997. OLIVEIRA, Zilma Ramos de. Educação infantil: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2002. OSTETTO, Luciana Esmeralda. (Org.). Encontros e encantamentos na educação infantil. 3. ed. Campinas, SP: Papirus, 2002. SANCHES, Emilia Cipriano. Creche: Realidade e Ambiguidades. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. VALDUGA, Denise Arina Francisco. Processo de formação docente das educadoras legais de creche s comunitárias. Porto Alegre: UFRGS, 2005.

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PRODUÇÕES ARTÍSTICAS E IDEOLOGIA: AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NAS AULAS DE ARTE, CONCEITO E RELAÇÕES

Jéferson Luis de Azeredo1 Makeila Alves Piazza2 RESUMO O presente artigo objetiva compreender como as crianças do Ensino Fundamental percebem os personagens da Turma da Mônica e de que forma elas interpretam o veículo ideológico existente nessas histórias em quadrinhos. É uma pesquisa com abordagem qualitativa, tendo como instrumentos de pesquisa a entrevista semiestruturada realizada com alunos do 5º ano do Ensino Fundamental. Palavras-chave: História em quadrinhos. Ideologia. Senso crítico. ABSTRACT This article aims to understand how children from primary school perceive the characters in the comic Monica and how they interpret the ideological vehicle existing in these comics. It is a qualitative research approach, having as research tool, a semi-structured interview accomplished with students from last grade from primary school. Keywords: Comic. Ideology. Critical sense.

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Professor Orientador. Doutorando em Filosofia. Leciona na UNESC e UNIBAVE. jeferson@unesc.net   Formada em Artes Visuais – UNESC. 51


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1 Introdução Há várias possibilidades encontradas nos quadrinhos que podem ser aplicadas durante o processo educativo: o desenvolvimento da produção artística e a criatividade, despertando o interesse à leitura, à ampliação da conscientização, fomentar atitudes críticas, etc. Muitos conceitos podem ser discutidos com os alunos através de uma história em quadrinhos (que doravante neste trabalho chamar-se-ão HQs): luz, sombra, perspectiva, cores, composição, textura, entre outros, mas, além de serem utilizadas para explicar esses elementos, as HQs são uma oportunidade de propiciar ao aluno uma prática diferente em que ele desenvolva um olhar crítico. Levar as HQs para sala de aula pode ser, além de um exercício prazeroso e instigante, um instrumento que também aguça o senso crítico dos alunos. A Turma da Mônica é uma série de histórias em quadrinhos criadas por Mauricio de Souza em 1959 que se tornou a mais importante, chamando atenção de vários leitores. Mônica é a personagem mais conhecida, ela representa uma menina de personalidade forte, que não leva desaforo para casa, é carinhosa e feminina. Essa personagem foi inspirada na filha de Mauricio, em 1963. No início, ela saía nas tiras do personagem Cebolinha nos jornais, com o tempo, foi tomando espaço e ganhou sua própria revista em 1970 - que se tornou a mais vendida no país. Desde a década de 80, as HQs da Turma da Mônica vêm influenciando muitas gerações, sendo seu foco principal as crianças. Devido a isso, o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), em 2005, uniu-se ao Maurício de Sousa Produções para divulgar os direitos da criança e dos adolescentes de maneira divertida. Devido à importância e à divulgação das HQs, a pesquisa realizada teve como objetivo compreender de que forma as crianças percebem os personagens da Turma da Mônica e como elas interpretam o veículo ideológico ali inserido. O que motivou os pesquisadores deste trabalho a escolher a Turma da Mônica foi a popularidade dos personagens. Foram selecionadas as crianças do 5º ano (10 e 11 anos de idade), por estarem no último ano do Ensino fundamental séries iniciais e também por terem uma professora que passa mais tempo com elas em sala de aula. 52

Assim, fez-se esta pesquisa com abordagem qualitativa, tendo como instrumentos de coleta de dados uma entrevista semiestruturada e uma produção artística com observação direta a partir dos estudos realizados. 2 Como surgiram as histórias em quadrinhos Não se sabe ao certo quando surgiram as histórias em quadrinhos, para alguns autores, a origem da “arte sequencial” é remota, oriunda das pinturas das cavernas, em que já se percebia uma preocupação em narrar e registrar os acontecimentos através de imagens sequenciais, conforme escreve Luyten, “durante o processo civilizatório, várias manifestações aproximaram-se desse gênero narrativo: mosaicos, afrescos, tapeçarias e mais de uma dezena de técnicas foram utilizadas para registrar a história” (1985, p. 16). Entretanto as HQs nas artes plásticas só obtiveram valorização depois que artistas de nomes respeitados passaram a utilizar e desenvolver trabalhos com esse recurso. Vergueiro e Santos (2006, p. 4), em sua pesquisa sobre HQs na Universidade de São Paulo (USP), afirmam que foi necessário os artistas Andy Warhol e Roy Lichtenstein se confessarem influenciados pelas HQs para que o mundo acadêmico passasse a dar um pouco mais de atenção a elas. Outro aspecto que colaborou foi a utilização dos quadrinhos por intelectuais europeus como objeto de pesquisa, principalmente no âmbito da linguística e da semiologia. Por muito tempo, as HQs foram criticadas, mas foi após essas transformações que elas começaram a ter o seu devido valor, tornando-se também um ótimo recurso didático, já que retratam contextos e valores culturais da sociedade. Dutra (2001, p. 2) comenta que [...] as histórias em quadrinhos, como todas as formas de arte, fazem parte do contexto histórico e social que as cercam. Elas não surgem isoladas e isentas de influências. Na verdade, as ideologias e o momento político moldam, de maneira decisiva, até mesmo o mais descompromissado dos gibis.

Partindo da ideia de que as HQs fazem parte do contexto histórico e relatam as ideologias, são


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vistas como propostas de materiais a serem levados à sala de aula, conforme orienta o Parâmetro Curricular Nacional - Arte (Brasil, 1998, p. 67), toda criança deve ter “Conhecimento e competência de leitura das formas visuais em diversos meios de comunicação da imagem: fotografia, cartaz, televisão, vídeo, histórias em quadrinhos, telas de computador, publicações, publicidade, design, desenho animado etc.” (grifo do autor). Assim, cabe aos espaços escolares promoverem aos alunos momentos de leitura, discussão e aprendizado com as HQs. Volta-se aqui às seguintes perguntas: como são trabalhadas as ideologias das HQs e quais seus efeitos às crianças? Segundo Mendes (1990 apud ALVES, 2001, p. 6), “podemos nos utilizar das histórias em quadrinho através da análise crítica das histórias feitas em conjunto com a criança”, assim sendo, as HQs não só entretêm, como também trabalham uma mensagem, um conhecimento, uma história e propõem ao leitor uma reflexão sobre o conteúdo apresentado. 3 Os elementos das HQs Para melhor compreender o motivo que levou a esta pesquisa, foi feita uma análise do que é a HQ e os elementos principais que a compõem, sua utilização no espaço escolar, em especial, na sala de aula, como anteriormente citado, através da pesquisa de campo. Nas HQs encontram-se diversas mensagens que são, em sua grande maioria, expressas não por ideias escritas, mas por signos e símbolos gráficos. A cor representa bem essa concepção de comunicação, em que, através dela, os artistas conseguem caracterizar e dar identidade aos seus personagens. A utilização desse elemento visual vem se aprimorando. No início, as histórias eram constituídas somente pelas cores preto e branco, isso acontecia devido às limitações de recursos tecnológicos e por economia de custos, mas, com os avanços possibilitados pela evolução da informática, as HQs passaram a ser colorizadas no computador, dando assim mais destaque aos cenários e aos personagens (RAMOS, 2009, p. 84). Em alguns casos, as cores utilizadas são o único acesso à compreensão da história, como é o caso de uma sequência cujo personagem vai ficando “vermelho”, essa cor dá a ideia de que o

personagem está ficando irritado; se sua bochecha fica rosada, essa cor pode indicar que o personagem está envergonhado ou tímido, como mostra a representação abaixo.

Figura 1 Fonte: http://www.monica.com.br/comics/tabloide/ tab019.htm

Entende-se ainda que as cores também servem para criar a identidade e a característica específica de cada personagem, forte marca que fixa e perpetua tais características, a exemplo disso, conforme afirma Ramos, “O Incrível Hulk é verde. O Lanterna Verde também. O Capitão America tem uniforme com as cores da bandeira norte-americana. O vestido da Mônica é vermelho. Os Smurfs são conhecidos por serem azuis” (RAMOS, 2009, p. 84), entre outros que também são conhecidos pelas cores, como o Garfield (laranja) e o Sansão – Coelho da Mônica – (azul). Reconhecer as cores e as reações que ela provoca é um importante passo para compreender o que a imagem nos quer comunicar. Outro exemplo a ser destacado é que os personagens da Turma da Mônica são reconhecidos por sua fisionomia: a Mônica usa vestido vermelho e é dentuça; a Magali usa vestido amarelo; o Cebolinha, pelos cabelos de cinco fios; o Anjinho, pelos olhos azuis, cabelos loiros encaracolados e pelas asas; o Franjinha, pelo cabelo loiro e pelo jaleco; Chico Bento traz em sua figura as características típicas do caipira brasileiro, está sempre de chapéu de palha e pés descalços; o Cascão usa as roupas com aspectos maltrados, em seus rosto, são encontradas algumas linhas que demonstram que ele não toma banho. Barbieri (1998 apud RAMOS, 2009, p. 115) diz que os desenhistas procuram criar expressões estereotipadas, “o motivo que leva aos artistas a manterem as fisionomias dos personagens no convencional é promover que o leitor absorva a 53


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informação de forma rápida, facilitando assim o processo de leitura”, devendo ser mantida uma certa unidade com as características do personagem. Dentro dessa categoria de comunicação, as expressões devem ser apresentadas em consonância, por exemplo, se as feições de um personagem indicarem alegria e o corpo demonstrar irritação, pode-se obter como resultado uma contradição visual (Ramos, p. 115, 2009). Na figura abaixo, ao fazer a leitura visual da expressão do Cascão no primeiro quadrinho, podese perceber que ele sente que Magali faz algo errado no seu cabelo. Essa leitura se torna clara no segundo quadrinho em que o uso da linguagem visual e verbal se complementam, possibilitando ao leitor que ele compreenda imediatamente que o Cascão realmente não gostou do corte que Magali fez em seu cabelo.

representação do todo (corpo) em relação às suas partes. Podem adquirir representação de movimento a cabeça, os olhos, as sobrancelhas, a boca, o tronco do corpo, os braços, a mão (em relação aos braços, segurando algum objeto ou no movimento dos dedos), as pernas, os pés, os cabelos.

Essa possibilidade de dar vida e movimento aos personagens é de grande importância na construção das histórias em quadrinhos.

Figura 3 Fonte: http://amigasdaedu.blogspot.com.br/2012/03/ poemas-com-os-personagens-da-turma-da.html Figura 2 Fonte: http://www.monica.com.br/comics/cabeca/ pag5.htm

Segundo Cagnin, As expressões definem o caráter, o tipo dos personagens e também exteriorizam, no transcorrer da narrativa, os seus sentimentos e emoções. Cabe ao desenhista criar uma galeria variada e distinta de personagens, traçar expressões que traduzam os diversos estados afetivos, e, sobretudo, conservar sempre a identidade dos tipos na variedade das expressões fisionômicas. (1975, p. 100)

Mesmo na troca de expressões ou na troca de cenários em que as personagens se inserem, o caráter fisionômico nunca é modificado, é o que acontece quando analisado o movimento do corpo, este jamais altera o personagem, apenas atribui sentidos e significações variadas. A ideia de movimento pode ser representada de diversas formas, segundo Cagnin (1975 apud RAMOS, 2009, p.115), surge primeiramente na 54

Outra forma de indicar movimentos é a partir das linhas cinéticas. As linhas cinéticas são as linhas que indicam o movimento dos personagens ou a trajetória de objetos em ação, nas HQs, elas são muito utilizadas para dar dinamismo à narrativa. Na figura abaixo, a linha cinética indica a personagem Mônica batendo com seu coelho Sansão no Cebolinha e no Cascão.

Figura 4 Disponível em: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/ fichaTecnicaAula.html?aula=27990

Vergueiro (2006 apud RAMOS, 2009, p.118) conceitua as linhas cinéticas como a “convenção


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gráfica que expressa a ilusão do movimento ou a trajetória dos objetos que se movem”, ou figuras cinéticas. Outra sugestão de movimento pode ser adquirida quando uma parte do corpo ou o todo são reproduzidos mais de uma vez, essa repetição dará a impressão de movimento. Figura 7 Fonte: http://chargedodiemer.blogspot.com.br/2010/06/ historia-em-quadrinhos-encomenda-para.html

Figura 5 Fonte: http://www.monica.com.br/comics/teatro/ pag7.htm

Associadas ao movimento dos corpos, há as onomatopeias, que são signos utilizados para expressar o som de objetos e ruídos (explosões, socos, tiros, etc.). Para Ramos (2009, p. 78), não há regra quanto ao uso e à criação das onomatopeias, o limite é a criatividade de cada artista.

Figura 6 - POF, Batida, queda. Fonte: http://www.monica.com.br/comics/tabloide/ tab001.htm

E, como último elemento analisado nesta pesquisa, as metáforas visuais usadas pelos desenhistas para transmitir situações na narrativa da história sem usar texto: fumaça saindo da cabeça (indica que o personagem está com raiva); corações (estar apaixonado); lâmpadas em cima da cabeça (mostram que o personagem teve ideia); cobras e lagartos (falar mal, demonstrar que está zangado).

4 As HQs como veículo ideológico A palavra ideologia foi criada por Cabanis, Destutt de Tracy e seus colegas, eles se referiram à teoria das ideias, numa nova sistematização. Chauí define ideologia como Um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. (CHAUÍ, 1984, p. 113)

Reconhecendo que a ideologia é um conjunto de ideias e que ela é existente nas HQs, devemos agora fazer uma relação entre ambas para constatar sua relevância. O fato de as crianças se interessarem pelas HQs se dá por se identificarem com as características físicas dos personagens e, ainda, como afirma Flávio Calazans (2008), é “um material comumente acessado pelos alunos para entretenimento e lazer”. Para Lorenz (1989 apud ALVES, 2001, p. 3), os traços juvenis desencadeiam “mecanismos inatos de liberação”. Os liberadores seriam [...] uma cabeça relativamente larga, predominância da cápsula cerebral, olhos grandes e de implantação baixa, região das bochechas abaulada, extremidades curtas e grossas, consistência elástica e saltitante e movimento desajeitados.

Há o outro ponto relevante em que os personagens são todos garotos-propaganda, portanto, aparecem o tempo todo em várias mídias de comunicação, tornando-se e ensinando como 55


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são adoráveis, sendo “uma forma de expressão tecnológica típica da indústria cultural” (CALAZANS, 2004, p. 7). As crianças se interessam por esses produtos que levam a imagem desses personagens, os quais são tratados por elas como heróis. Essas propagandas carregam em si valores ideológicos: “compramos o ‘sonho americano’, o desejo de ‘subir na vida’, os estilos de vida, as convicções políticas e éticas que de certa forma são veiculadas sub-repticiamente nos comercias” (ARANHA; MARTINS, 1986, p. 66). As crianças ainda estão em formação e ainda não conseguem ver realmente o que está por trás dessas propagandas. Para elas, a Turma da Mônica é um grupo de amigos que querem cuidar delas. Esses personagens ganharam a confiança de milhares de crianças, e várias marcas, ao perceberem isso, utilizam-se da imagem da Turma da Mônica para venderem seus produtos. Para essas crianças, os produtos são bonitos, saudáveis é só irão fazer bem para elas. A publicidade está mais preocupada em vender ideias. E a ideia criada por Mauricio de Sousa é utilizada por diversas marcas, estando reconhecida hoje. Essa característica se refere ao efeito “massificador”, de fácil compreensão e mais acessível que livros e outros materiais escritos. Essa característica torna as HQs “construtoras de ideologias e, portanto, afeta a educação de seu público leitor” (MENDES, 1990 apud ALVES, 2001, p. 4). Entretanto, para Alves (Idem), proibir a criança de ler HQs e propor que ela leia apenas livros “sérios” (sem ilustrações), em vez de ajudá-la no processo de abstração pode, de fato, prejudicá-la. A possibilidade de a criança entender a história a partir do desenho vai ao encontro do pensamento infantil, é necessário que ela saiba então reconhecer os signos visuais e abstrair desses a representação da realidade tangível. Ao ler a história, a criança se identifica com o que encontra ali inserido (personagens, personalidades, etc.), dessa forma, deve-se ter cuidado com o que ela está lendo e se essa leitura está favorecendo para a formação do seu senso crítico, sua sensibilidade. Como são destacadas por Mendes (1990 apud ALVES, 2001, p. 4), as HQs constroem ideologia, que se dá através de estereótipos: classe social, sexo, raça, entre outros. Pode-se perceber isso com 56

melhor clareza nas HQs da Turma da Mônica, haja vista que os personagens que aparecem nas histórias são geralmente índios, negros, mulheres, portadores de necessidades especiais, etc. Pelo fato de as HQs da Turma da Mônica terem como público-alvo as crianças e a Mônica ser uma personalidade famosa no meio em que elas se encontram, há as preocupações que levam a identificar se essas histórias estão tendo um caráter de construção de conhecimento, que conduzam a uma formação do senso crítico e da identidade das crianças. Luz escreve, no artigo “Violência Na Turma da Mônica” (2010, p. 5), que outra postura deve ser observada, o uso dos clichês na Turma da Mônica, e cita que isso pode ser percebido em pelo menos três personagens: “Mônica é a que resolve as coisas na porrada; Cascão odeia água; Magali é a comilona”, ele identifica esses clichês como algo negativo e que, diferente das HQs da Mafalda3 e do Calvin4, não se conhece nenhum personagem da Turma da Mônica por ser inteligente, criativo, gentil, sensível, etc. O autor afirma que há um incentivo ao bullying (violência física ou psicológica, intencional e repetida) e que esses personagens citados anteriormente trazem consigo motivos para serem discriminados e agredidos pelos colegas. Coelho (1993 apud ALVES, 2001) escreveu um artigo para a folha de São Paulo com o título Mônica 30 anos sem psicologia, no qual ele afirma que os personagens trazem os mesmo clichês descritos pelo autor Luz anteriormente. Mas, diferentemente do jornalista, que define as HQs da Turma da Mônica como uma gama de clichês, Coelho (apud ALVES, 2001) usa a palavra psicologia entre aspas, no sentido de uma personalidade que não pode ser caracterizada por traços simples. Saltam aos olhos de quem lê as histórias da Turma da Mônica as características mais marcantes de seus personagens. Porém, ainda que os personagens tenham personalidades muito simples, as histórias da Turma da Mônica estão cheias de “psicologia”.

Mafalda: é uma tira escrita e desenhada pelo cartunista argentino Quino. 4  Calvin: é uma série de tiras criada, escrita e ilustrada pelo autor norte-americano Bill Watterson e publicada em mais de 2.000 jornais do mundo inteiro. 3


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Elas refletem a maneira como se explica e prevê o comportamento das pessoas no cotidiano. Dito de outra forma, as histórias da Turma da Mônica são construídas com base no senso comum e por isso tornam-se compreensíveis e “oferecem oportunidades para as crianças aprenderem informalmente sobre aspectos do mundo social” (ALVES, 2001, p. 5). Sendo assim, quando o autor reproduz em suas histórias valores culturais e ideológicos, oferece oportunidades para que a crianças construam os conhecimentos que irão proporcionar, assim, uma formação, e esta deve ser direcionada ao senso crítico e à sua identidade consciente. 5 Entrevista e análise das influências recebidas Na segunda parte da pesquisa, buscou-se, através da leitura de uma das histórias da Turma da Mônica - Marina em Arte na Praça (2011, Edição 55) – com crianças do 5º ano do Ensino Fundamental (faixa etária entre nove e 10 anos de idade), identificar qual a influência que a história exerce na formação e na produção artística. Neste artigo, serão expostos os dados apenas da influência no pensamento, embora os desenhos (produções artísticas - retratos dos colegas) sejam pertinentes, igualmente, à análise, pois neles podem-se constatar igualmente tais influências. Na edição lida em sala (em que cada criança tinha em mãos a HQ fotocopiada em cores), lê-se que a personagem Marina quer montar a sua primeira exposição e escolhe a praça para expor seus trabalhos, contando com a amiga Mônica para colaborar na organização. Durante o início da história, Marina mostra-se muito empolgada falando da sua felicidade em montar sua primeira exposição na praça, que, como dito pela personagem, é um espaço público, aberto a todas as formas de expressão. Porém, no meio da instalação da exposição, ela e Mônica são surpreendidas por Cebolinha, que também decide fazer o mesmo, só que, diferentemente de Marina, que quer mostrar suas produções, o objetivo dele é ganhar fama e dinheiro. Iniciou-se, logo após os desenhos já feitos, a entrevista semiestruturada (gravada com autorização para posterior registro). Havia 20 crianças, dentre as quais 10 meninos e 10 meninas. A primeira pergunta feita aos alunos foi: “O que o Cebolinha desenha é o que ele pensa da Mônica?”. Objetivava-se saber o

que as crianças pensavam da atitude do personagem Cebolinha. Dezesseis revelaram que o Cebolinha realmente desenhava a Mônica gorducha, dentuça e baixinha, pois ele achava que ela era dessa forma. Desses alunos, nove ainda disseram que ele fazia isso, porque não gostava dela e para deixá-la irritada. Como exemplo, as falas abaixo: Sim, porque ele sempre fica zombando da Mônica, chamando de dentuça, balofa. (Aluna S) É porque ele acha a Mônica gorducha, dentuça, baixinha. Porque ele tem preconceito com a Mônica. (Aluno AF) É, porque ele não gosta dela, daí sei lá, ele desenha ela feia. É para irritar ela. (Aluna M)

Observa-se, na resposta desses três alunos, que, primeiramente, percebem que, ao retratar a Mônica, o Cebolinha busca uma forma de estereotipar negativamente as suas características físicas para expô-la perante os visitantes da exposição. Porém, quatro alunos responderam que o desenho não representa o que Cebolinha pensa da Mônica, mas sim que ele faz isso com a intenção de chamar a atenção para si. É para irritar, chamar a atenção, porque ele não tem muita atenção. (Aluno A) Pra chamar a atenção da Mônica. (Aluno G) Não, porque no fundo ele gosta da Mônica. (Aluna SS) É porque ele a vê muito diferente do que ela é. (Aluna J)

Esses alunos vão além das atitudes que já se conhecem dos personagens, eles levantam um questionamento sobre a forma que o Cebolinha utiliza para conseguir um pouco de atenção da Mônica. Entre as respostas, vale destacar a terceira frase antes citada, na qual a aluna afirma que há um “amor” do Cebolinha pela Mônica. Na segunda pergunta - “Você já sofreu algum tipo de intimidação ou agressão na escola?”-, percebe-se que alguns alunos têm receio de falar o que realmente sentiam, dos vinte alunos, dez responderam que nunca sofreram nenhuma espécie de intimidação ou agressão na escola e outros nove disseram que sim. Deste grupo, seis responderam 57


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que sofriam intimidação por apelidos impostos pelos colegas (sequela, baleia fora d’água, veado, bruxa, cueca, gorducha), outros três falaram que, além de apelidos, também já haviam sofrido agressões físicas (tapas, socos). Sim, o J me dá um monte de soco. (Aluno JV) Já, palavrão, bobiça, bater, tapas. (Aluno C) Já, chamando de veado. Um monte de coisa. (Aluno CA)

Neto (2005, p. 3) afirma que a agressividade nas escolas é um problema universal, pois o bullying diz respeito a uma forma de afirmação de poder interpessoal através da agressão, a vitimização ocorre quando uma pessoa é feita de receptor do comportamento agressivo de outra. O autor ainda afirma que pessoas que sofrem bullying quando crianças são mais propensas a sofrerem depressão e baixa autoestima quando adultos. Na terceira pergunta, busca-se entender como as crianças reconhecem a atitude tomada pela Mônica quando ela não está de acordo ou não gosta de algo que o Cebolinha faz. Essa questão foi exposta de seguinte forma: “O que a Mônica faz quando não concorda com o Cebolinha?”. Dos vinte entrevistados, dezenove responderam que a Mônica sai correndo atrás do Cebolinha para bater nele com o seu coelho. Ela pega aquele coelhinho dela e sai rodando e bate nele. (Aluna E) Dá uma lição nele, fala mal e bate com o coelho. (Aluno A)

Completando a terceira pergunta: “Você concorda com a atitude da Mônica?” Quatorze alunos disseram não concordar com a atitude da Mônica, pois, antes de sair batendo, ela deveria ter conversado com o Cebolinha. Não. Ela devia falar que não gostou do que o Cebolinha fez. (Aluna S) Não. Porque a gente não deve ficar batendo nos colegas, pois a violência não leva a nada. (Aluna J)

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Não. Por causa que é uma agressão e é muito desagradável bater nas pessoas. (Aluna AF)

Percebe-se que esses alunos reconhecem de imediato as características da personagem. Em um segundo momento, eles respondem que acham essa atitude errada, pois, como exposto pela aluna AC, “Nunca deve bater, porque tem que ter uma chance de conversar”. Há um sentimento de identificação com o personagem Cebolinha, eles se colocam no lugar do personagem e refletem que eles também não gostariam de apanhar. E o aluno que anteriormente havia dito que ele agredia os colegas muda sua opinião e deixa claro que ele acha errado: “Não. Porque agressão só leva a coisa ruim. (Aluno JS)”. Como descrito por Luz, deve-se ter cuidado com algumas posturas observadas nos personagens da Turma da Mônica. Pensando na personagem Mônica, Luz diz que a personagem é a que resolve as coisas na porrada, ele identifica esse clichê como negativo, pois há um incentivo ao bullying. Mas, como respaldo ao que Luz afirma, Coelho diz que, mesmo trazendo esses clichês, as histórias da Turma da Mônica são construídas na base da psicologia do senso comum, tornando, assim, compreensíveis e oferecem oportunidades para as crianças aprenderem informalmente sobre os aspectos do mundo social em que estão inseridas. Na quinta pergunta, buscou-se identificar quais as influências dos personagens: “As pessoas que vão à praça dão valor para o trabalho da Marina?” - essa questão possibilitou descobrir onde se dão as influências comercias dos personagens da Turma da Mônica. Dos vinte alunos, onze responderam que sim, as pessoas davam valor, porque gostavam do trabalho da Marina. Das selecionadas, dois afirmaram que: Dão, porque ela desenha bem. (Aluno CA) Dão, porque é um trabalho bem bonito e criativo. (Aluno G)

Os dois ficam inseguros em responder e. ao mesmo tempo em que dizem que as pessoas dão valor à obra de Marina, colocam um “acho” no meio da frase, o que nos dá um pouco de incerteza.


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Dão. Acho porque os desenhos dela são criativos. (Aluna AF) Acho que sim. Pois gostam do desenho dela. Hum, por causa do lápis mágico. (Aluna L)

Outros seis dizem que as pessoas que visitam a praça não dão valor à obra da Marina, pois ninguém vai à praça ver a exposição, isso pode ser percebido na resposta da aluna GE. Não, porque eu não vi ninguém indo. (Aluna GE)

Observa-se que as crianças, ao lerem a HQ, não percebem o personagem Xaveco, que aparece do quadrinho vinte e quatro ao trinta em três, sempre em diálogo com os outros personagens. Observa-se que as crianças se focaram somente nos personagens que são os garotos-propaganda de Mauricio de Sousa, deixando de lado um personagem importante no contexto da história. Observa-se, no social, que as crianças vivem rodeadas pelos personagens da Turma da Mônica, pois, além de se encontrarem nas HQs e no cinema, eles são vistos em: xampu, fralda, roupas, etc. Isso faz com que a criança se foque mais nesses personagens do que em outros. A propaganda não vende apenas produtos, mas também ideias. Compramos o ‘sonho americano’, o desejo de ‘subir na vida’, os estilos de vida, as convicções políticas e éticas que de certa forma são veiculadas sub-repticiamente nos comercias. (ARANHA; MARTINS, 1986, p. 66).

Sendo assim, a propaganda vende ideias e a ideia aqui assumida por Mauricio de Sousa e Produções é vender a imagem da Turma da Mônica. Como se pode perceber, ela foi bem “comprada” por esses alunos. Na sexta pergunta, o objetivo foi identificar como os alunos interpretavam as atitudes dos personagens e se esses reconhecem a mentira através da história. Para essa análise, a pergunta foi: “O que você pensa do Cebolinha ter pegado o lápis?” Os vinte alunos responderam que era errado, pois foi essa atitude do Cebolinha que gerou a confusão final.

Eu acho que é errado, porque ele não sabe usar, não tem entendimento que a Marina tem. Que tanto ele pode usar pra bem e pra mal. (Aluna J) Mal educado. Porque ele não sabe desenhar melhor que ela, daí ficou com inveja. (Aluno JS) Eu acho que é errado porque ele devia ter pedido emprestado. Porque não ia ter uma confusão dessas. (Aluna AC)

Para Coelho (apud ALVES, 2001), “[...] as histórias da Turma da Mônica [...] refletem a maneira como nós explicamos e prevemos o comportamento das pessoas cotidianamente”. As crianças reconhecem que a atitude do Cebolinha não foi íntegra, pois ele pegou o lápis para conseguir reconhecimento de forma errada. Nota-se também que essas crianças percebem isso de imediato por ser do cotidiano delas, já que há sempre um “sumiço” de material dentro das salas de aulas. 6 Considerações finais O objetivo principal desta pesquisa consiste em investigar e compreender como os alunos percebem os personagens da Turma da Mônica e de que forma interpretam o veículo ideológico existente nas histórias em quadrinhos. Constata-se que o problema que deu origem a esta pesquisa alcançou um resultado positivo, já que a maioria dos alunos demonstrou, em suas produções artísticas e nas respostas, como interpretam o veículo ideológico presente na HQ exposta em sala de aula. Ao iniciar a pesquisa, uma das preocupações era perceber como os alunos iam receber o veículo ideológico encontrado na história em quadrinhos e se esta influenciaria nas suas produções artísticas e nas respostas dos questionários, afinal, vive-se em um mundo rodeado por imagens e textos que precisam ser discutidos dentro das salas de aula. Nas respostas dos vinte alunos pesquisados, percebe-se que dezesseis alunos demonstraram reconhecer somente o que vem apresentado pelo senso comum, reconhecendo apenas os assuntos que fazem parte do seu meio social. Mas, desses alunos, quatro demonstram ir além do que se torna

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óbvio perante a leitura, eles levantam outros pontos a serem discutidos na história, vão além das atitudes que já são reconhecidas dos personagens. As HQs da Turma da Mônica são reconhecidas por serem construídas através do senso comum, tornando-se um material compreensível e que oferece, para as crianças, oportunidades de aprenderem informalmente sobre aspectos do seu meio social, porém os professores devem buscar possibilitar aos alunos atividades que proporcionem que esses vão além do que já está evidente, cabe aos professores mediar e problematizar, para que os alunos percebam os conteúdos que estão por trás da HQ discutida; que se questione sobre os assuntos levantados, auxiliando, assim, na formação da identidade e do senso crítico desses alunos, portanto, conscientes de seu papel dentro da sociedade em que vivem. Referências ALVES, José M. Histórias em quadrinhos e educação infantil. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, 2001, v. 21, n. 3, p. 2-9. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S1414-98932001000300002&lng=pt &nrm=iso>. Acesso em: 21 mai. 2012. CAGNIN, Antonio Luiz. Os quadrinhos. São Paulo: Ed. Ática, 1975. 239 p. CALAZANS, Flávio A. Histórias em quadrinhos na escola. 3. ed. Sã Paulo: Ed. Paulus. 2008. 34p. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 14 ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1980. 125 p. FUSARI, Maria F.; FERRAZ, Maria Heloisa C. T. Arte na educação escolar. São Paulo: Ed. Cortez, 1992-1993. 151 p. LUZ, Dioclécio. Violência na Turma da Mônica. Observatório da Imprensa. 2010. Ed. 578. Disponível em: <http://www. observatoriodaimprensa.com.br/news/view/ violencia-na-turma-da-monica>. Acesso em: 8 jun. 2012.

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A FORMAÇÃO AMBIENTAL NOS CURSOS DE LICENCIATURA: ENTRE A TRADIÇÃO E A INOVAÇÃO

Elisabeth Christmann Ramos1 RESUMO O artigo apresenta a síntese de pesquisa realizada com os alunos dos cursos de Licenciatura da UFPR, na qual se propôs analisar como os futuros professores estão sendo preparados para atuar nas diferentes áreas do ensino com relação às questões ambientais. Os dados foram coletados através de questionários com perguntas fechadas e abertas e analisados por meio de uma abordagem qualitativa e quantitativa. Os resultados permitiram perceber que, apesar de a educação ambiental e os temas ambientais serem uma recomendação mundial em todos os níveis de ensino há mais de quatro décadas, de serem uma proposta expressa na Constituição Federal de 1988 e referendada por uma série de leis e programas oficiais, esse ainda é um assunto marginal nos cursos de Licenciatura. Os resultados indicaram também que a maioria dos alunos não tem uma posição científica e crítica formada sobre a relevância e o sentido da dimensão ambiental na educação e não entendem a importância da formação ambiental para a sua atuação como profissionais da educação. Palavras-chave: Educação ambiental. Formação. Licenciatura. ABSTRACT The article presents the synthesis of research conducted with the students of the Undergraduation Courses of UFPR, which proposed to analyze how the future professors are being prepared to act in the different areas of education with respect to the environmental questions. The data were collected through questionnaires and analyzed through a qualitative and quantitative approach. The results allowed perceive that, despite environmental education and environmental questions to be a recommendation in all the education levels for more than four decades, and a proposal expressed in the Federal Constitution of 1988, and supported by a series of laws and official programs, it is still a marginal subject in the Undergraduation Courses. The results also indicated that the majority of the students do not have a scientific and critical position formed about the relevance and direction of the environmental dimension in education, and do not understand the importance of environmental education for their performance while education professionals. Keywords: Environmental educacion. Formation. Undergraduation courses.

1  Doutora em Ciências Humanas. Professora Adjunta do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Educação, Ambiente e Sociedade (NEAS). E-mail: lis_ramos@hotmail.com

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1 INTRODUÇÃO A crescente complexidade dos problemas socioambientais, agravados pelo triunfo da racionalidade econômica que a sustenta, provocou a necessidade de se rever os processos de produção e aplicação do conhecimento, assim como reorientar a formação de profissionais capacitados para conduzir o processo de construção de uma nova racionalidade. Assim, em diferentes tempos e espaços, tem sido possível testemunhar o nascimento de uma política verde, uma economia ecológica, uma tecnologia limpa, todas traduções da incorporação da dimensão ambiental em suas lógicas com posições muitas vezes antagônicas e em constante disputa por legitimação ideológica. A educação não fugiu à regra, pois, no interior desse processo, surgiu a proposta de uma educação agora “ambiental”. O final da década de sessenta e o início da década de setenta são considerados referência quanto ao início das preocupações com as crescentes ameaças à qualidade ambiental e de vida da população do planeta. Por isso, esse período é considerado um período histórico para o ambientalismo mundial e para a proposta de inclusão da educação ambiental no sistema mundial de ensino, cujas primeiras discussões culminaram respectivamente com a Conferência de Estocolmo, em 1972, e a Conferência de Tbilisi, em 1977. Contudo, ao contrário do que normalmente se pensa, as ideias educacionais ligadas à natureza e ao meio ambiente não são novas no pensamento pedagógico. Desde o século XVIII, a educação “sobre”, “na” e “com” a natureza tem sido proposta por pensadores da educação, ainda que o contexto histórico de suas proposições e justificativas pedagógicas sejam diferentes. Sem querer aprofundar e esgotar aqui esse assunto, vale lembrar que as ideias rousseaunianas, dentre outras, tiveram uma repercussão importante no trabalho de teóricos da educação, cada um ao seu tempo e modo, e abriram caminho para outras formas de pensar a educação com reflexos no pensamento educacional do século XX e ainda hoje. A ideia de se considerar a natureza ou o ambiente como algo a ser reverenciado em face do seu valor educativo é uma constante que se repõe, seja de forma explícita ou não, nos programas educacionais. Esse fato revela, acima de tudo, que

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a coexistência no campo educacional da tradição e da inovação se constitui em um amplo espaço de constante experimentação e investigação, o que por sua vez requer fundamentalmente uma postura pesquisadora e a permanência do desejo de penetrar e ousar no desconhecido. Mas, qual seria o diferencial da educação ambiental? O que ela traz de novo que justifique identificá-la como uma nova prática educativa? A possibilidade da proposta ambiental na educação ultrapassa a pura e simples repetição de práticas já empregadas tradicionalmente, a novidade está na reatualização das atividades pedagógicas dentro de um novo marco epistemológico, no qual o saber ambiental deve ser pensado como um sistema complexo de relações e interações tanto do mundo natural quanto social e, principalmente, como produto das diferentes formas de apropriação ambiental pelos distintos estratos da população e de acordo com os interesses econômicos, políticos, culturais e sociais que se estabelecem nesse ambiente. Por isso, mais do que centrar o foco de suas preocupações em um ecossistema natural, a dimensão educativa da questão ambiental pressupõe compreender o ambiente como um espaço de relações socioambientais configurado historicamente e permeado por tensões, interesses e conflitos. Nesse sentido, introduzir o ambiental na educação exige mudanças profundas em diferentes âmbitos, e estas não podem ser superficiais ou simples rótulos, em que se muda o nome, mas tudo permanece igual. Esse é o sentido de ambientalização curricular que vem sendo discutido para o ensino universitário desde os anos 90, ou seja, ambientalizar o currículo significa extrapolar a concepção stricto sensu de currículo, limitado às disciplinas e à grade curricular de cada curso, significa resignificar os conteúdos e as metodologias e um compromisso institucional, o que demanda mudanças administrativas e estruturais na organização e no funcionamento das estruturas educativas (RUPEA, 2007). Apesar das discussões e propostas de inserção da educação ambiental em todos os níveis de ensino ter conquistado espaço junto aos diferentes segmentos da sociedade e de ser referendada por vários encontros, conferências e fóruns internacionais sobre


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meio ambiente que aconteceram nas quatro últimas décadas, pouco se avançou para novas formas de organização institucional, novos pressupostos teóricos e métodos pedagógicos para incorporar o saber ambiental e contribuir para a superação das formas pedagógicas tradicionais impróprias ou deficientes para enfrentar a complexidade ambiental que o mundo vive atualmente. Embora possa parecer contraditório, o saber ambiental é justamente aquele que aponta o desejo de um novo marco epistemológico, aquele saber que [...] problematiza o conhecimento fragmentado em disciplinas e a administração setorial do desenvolvimento, para construir um campo de conhecimentos teóricos e práticos orientados para a articulação das relações sociedade-natureza. [...] não se esgota na extensão dos paradigmas da ecologia para compreender a dinâmica dos processos socioambientais. (LEFF, 2009, p. 145).

Não se pode, contudo, deixar de reconhecer que muitas conquistas foram alcançadas, mas essas têm sido insuficientes para provocar as mudanças de rumo que a velocidade da crise ambiental requer. Ainda impera uma instigante indefinição política provocada por “ignorância ambiental” (LEFF, 2009). Sobretudo, a experiência tem mostrado a rigidez institucional das universidades, onde ainda prevalecem a “fragmentação e compartimentalização do saber disciplinar, e a interdisciplinaridade tem se apresentado como uma visão meramente instrumental de aplicações do conhecimento” (LEFF, 2009, p. 211). Atualmente, o conjunto de leis e dispositivos legais referentes à educação ambiental reforça a necessidade de sua inclusão no ensino formal em todos os níveis de ensino, perpassando os conteúdos de todas as disciplinas. A legislação vigente destaca a importância da educação ambiental nos currículos das instituições de ensino públicas e privadas, desde a Educação Infantil, passando pelo Ensino Fundamental, pelo Médio e pelo Superior. Esses documentos ressaltam, ainda, que a educação ambiental seja implantada não como disciplina específica, mas incluída em todas as disciplinas dos diferentes cursos e níveis de ensino e trabalhada de forma interdisciplinar. Certamente os recursos legais disponíveis significam avanços na educação relativa ao

ambiente, entretanto, a existência desses recursos legais não garantiram por si mesmos, segundo pesquisas recentes, mudanças significativas no sistema nacional de ensino. A despeito da importância e da validade dos instrumentos legais, parece ingênuo acreditar que eles sejam suficientes, ainda que tecnicamente consistentes, para transformar realidades, independentemente de outros fatores. Nesse sentido, pode-se também questionar se basta mudar a legislação e os currículos das escolas, se as instituições de ensino que formam os professores também não promoverem modificações em sua estrutura, organização e nas concepções que fundamentam o seu trabalho. Como as iniciativas pedagógicas, nas diferentes instâncias das universidades, têm procurado responder às novas demandas socioambientais, reorientado as práticas educacionais, revisto seus conteúdos, metodologias e, evidentemente, a formação dos futuros professores? A preocupação com essas questões tem estado presente nos últimos anos em vários encontros, seminários e congressos de EA e é essa preocupação também que tem motivado iniciativas e pesquisas de alguns professores na universidade pesquisada, entre elas, a pesquisa que temos realizado nos últimos anos, com o objetivo principal de investigar como a universidade está preparando os futuros profissionais da educação para enfrentar os desafios que o momento atual exige. 2 Construindo caminhos possíveis para a educação ambiental No debate atual sobre as relações entre a sociedade e a natureza, as indagações e as preocupações suscitadas pelo tema têm provocado a busca por respostas urgentes em diferentes campos, ainda que parciais e incertas. Cresceu, com isso, também, a demanda social por algum tipo de tratamento das questões ambientais no âmbito da educação. A partir de então, a educação ambiental impregnou não só o ideário político, como também passou a ocupar destaque no contexto pedagógico internacional e nacional. Não há dúvidas, portanto, de que essa proposta educacional está diretamente vinculada à emergência da crise ambiental. Nesse sentido, a abrangência das discussões que envolvem a dimensão ambiental na educação esteve, desde o início, atrelada às questões ambientais mais 63


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amplas de caráter global, que se manifestou (e se manifesta) em uma série de articulações de cunho internacional e também nacional, como conferências, fóruns e encontros. São os documentos produzidos nesses eventos que vêm sedimentando diretrizes e acordos que orientam, entre outras ações, as políticas ambientais no âmbito educacional. O documento oficial da primeira Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo/1972, afirma: [...] o homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar do bem-estar e é portador solene (sic) da obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras. (UNESCO, 1972, p. 271)

Apesar da existência de propostas de se tratar o meio ambiente como projeto educativo antes da década de 70, a Conferência de Estocolmo é considerada o primeiro pronunciamento oficial sobre a necessidade de uma educação de caráter global e, por isso, converteu-se numa recomendação universal. Definiu-se que a mudança de hábitos necessária para uma nova postura em relação ao ambiente só poderia ser obtida através de processos educacionais. Esse papel foi creditado à educação ambiental. Desde então os programas internacionais manifestaram uma intensa preocupação em adequar a educação à crise ambiental. Num primeiro momento, esses programas, sobretudo os produzidos em Tbilisi/19772, definiram as atividades e as metas da EA em escala mundial, às quais se acrescentaram, a partir da Agenda 21 (1992)3, novas recomendações, reorientando a educação ambiental para o “desenvolvimento sustentável”.  Embora não seja o único e último grande evento realizado para traçar os rumos da educação ambiental, a Conferência Internacional sobre Educação Ambiental (Tbilisi, 1977) se constitui no marco mais importante para a definição e a evolução da institucionalização da educação ambiental de abrangência mundial. 3  A Agenda 21 trata-se de um texto normativo e programático oficializado durante a Conferência Internacional sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro, 1992). 2

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Em termos gerais, a grande meta da Agenda 21 seria promover a cooperação internacional para [...] fomentar a integração sobre o meio ambiente e desenvolvimento, incluindo demografia, em todos os programas educativos, em particular, a análise das causas dos maiores problemas ambientais e de desenvolvimento no contexto local, [...] Promover ampla conscientização popular como parte essencial do esforço para a educação global, visando fortalecer todas as atividades humanas, os valores e as ações compatíveis com o desenvolvimento sustentável. [...] A educação é decisiva para promover o desenvolvimento sustentável e melhorar a capacidade das pessoas para lidarem com as questões de meio ambiente e de desenvolvimento. (CNUMAD, 1992, Agenda 21, cap. 36, p. 55-58).

Embora a EA tenha sido referendada por grandes eventos, muitos conflitos conceituais e teóricos ainda são alvos de debates envolvendo diferentes abordagens e conceitos. Em linhas gerais, é possível detectar nos documentos oficiais a presença de uma concepção de educação voluntarista e teleológica, ao fazer crer que a educação pode, por si só, modificar o estado das coisas existentes. No Brasil, as discussões sobre meio ambiente e educação são singulares, se comparadas com o que aconteceu em outros países. De certa forma, isso faz sentido, se lembrarmos que o ambientalismo no país foi tardio, em razão de um conjunto de fatores de ordem política, econômica, social, cultural e pedagógica. Oficialmente, a inclusão da educação ambiental em todos os níveis de ensino foi concretizada com a Constituição de 1988 e, nos anos seguintes, foi reforçada com uma série de leis e programas oficiais, entre eles: o Programa Nacional de Educação Ambiental (PRONEA) em 1994; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB/1996); os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) em 1998, propondo a inclusão do meio ambiente como um dos temas transversais nos programas curriculares do ensino fundamental, e, por fim, a sanção da Lei 9.795/99, que instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA), consagrando os princípios básicos da Educação Ambiental, seus objetivos, as obrigações dos diversos atores envolvidos, suas linhas gerais de ação, bem como a sua importância tanto no ensino formal como no não formal.


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Não obstante a aprovação de leis definindo a política nacional de educação ambiental e a mobilização de parcela significativa de educadores envolvidos com o assunto, o sistema educacional brasileiro, por razões ainda não suficientemente discutidas e explicitadas, tem encontrado inúmeras dificuldades e obstáculos para fazer com que a legislação seja realmente efetivada. Os exemplos de legislações ambientais não cumpridas ou apenas respeitadas parcialmente são inúmeros. Dentre as diversas causas que poderiam estar na origem desse problema, pode-se destacar o grande fosso que separa os objetivos dessa legislação e aqueles expressos em políticas públicas de desenvolvimento para o conjunto da população. No campo educacional, a simples enunciação legal, já analisada em relação às outras experiências na educação, revela que leis, reformas, planos e modelos, sobretudo quando colocados para além ou aquém da realidade educacional e impostos de cima para baixo, em nada modificaram a situação educacional do país. Ao contrário, os instrumentos legais, quando utilizados em nome da inovação, acabam por encobrir a real dimensão dos problemas. E, no caso específico da EA, pode-se questionar se ela pode, nessas condições, atingir os objetivos para os quais foi instituída (RAMOS, 2006). Pesquisa realizada pela Coordenação-Geral de Educação Ambiental (COEA), com atuação no âmbito da Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação (MEC/SEF) mostra que, não obstante o respaldo e o incentivo legal, a educação ambiental continua sendo um assunto marginal e isolado no interior dos sistemas educacionais, apesar dos acordos internacionais e do aparente destaque que tem tido no discurso institucional (MEC/SEF, 2001, p. 149). Os resultados apontam ainda outro problema: a deficiência na formação e na atuação dos profissionais da educação. No entanto, parece importante lembrar que, se, por um lado, não se pode responsabilizar unicamente o trabalho dos professores em sala de aula, pois as contradições que subjazem os processos mais amplos do modelo econômico e de gestão vigente precisam ser considerados, por outro, também parece importante considerar como os cursos que formam os profissionais da educação se adequaram às novas exigências cobradas dos professores. O que

mudou na universidade com a institucionalização da EA? Qual tem sido o papel da universidade nesse processo que já dura mais de quatro décadas? Não se trata aqui de dar resposta a todas essas questões, mas vale a pena trazer para reflexão algumas considerações, já que é difícil esperar mudanças na atuação do professor se os cursos que o preparam não atendem às condições indispensáveis para que sua atuação seja, além de científica, adequada às exigências atuais da sua ação. Na tentativa de diferenciar-se da educação tradicional e apresentar-se – apoiada em documentos oficiais – como um saber transversal, inter e transdisciplinar, a EA “arca com as dificuldades de sua assimilação pela educação formal, estruturada disciplinarmente” (CARVALHO, 2002, p. 164). Nesse caso, a relação da EA com o ensino formal traduz o estado das dificuldades de inserção das questões ambientais no âmbito educativo como um todo. Essa também tem sido uma das razões apontadas para a temática ambiental em geral não ter ainda chegado à universidade, pelo menos não no tempo e com a determinação desejados. O panorama geral da educação ambiental no país é “especialmente nutrido pelas universidades brasileiras que, apáticas, vaidosas, obsoletas e dessintonizadas com a realidade, continuam imersas em sua prática acadêmica utópica” (DIAS, 2000, p. 23). Tanto é assim que a maioria dos cursos universitários ainda não incorporou devidamente a dimensão ambiental em seus currículos. E continuam, diz o mesmo autor, produzindo profissionais que refletem o seu despreparo. A continuar dessa forma, a formação dos professores certamente não os capacita para o exercício de suas funções pedagógicas no mundo de hoje. Quer pelas suas origens, quer em função das configurações que a EA foi assumindo, um dos aspectos a destacar é que ela transcende o universo escolar. Ao longo dos anos, ela vem se desenvolvendo, em vários âmbitos sociais, pelas mais diferentes entidades e organizações que atuam numa gama incrível de temas associados à questão ambiental, o que talvez possa ter contribuído para que a dimensão ambiental na educação continue a ser entendida muito mais como um assunto relativo ao meio ambiente, já que foi tratada - e, muitas vezes, ainda é - pelos órgãos ambientais e pelos especialistas, e não como uma questão da própria educação. 65


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Também é preciso considerar que o conceito de EA é complexo e, ao longo dos anos, tem-se constituído de forma abrangente, suscitando interpretações muitas vezes equivocadas e contraditórias: ora como algo que pretende estabelecer regras de conduta que se autonomizam em relação ao problema mais amplo da educação, ora como instrumento ideológico ou político de propaganda. O pressuposto que deve ser reiterado é de que a EA diz respeito à educação geral, ou seja, a educação ambiental é antes de tudo educação e, como tal, ela não é neutra, como prática pedagógica, ela é atravessada por disputas pela conservação ou transformação das condições tanto ambientais quanto sociais. Nesse caso, a sua problemática não é isenta de todas as variáveis que permeiam os vieses e as vicissitudes comuns à educação como um todo. As práticas e as concepções educativas, quaisquer que sejam as adjetivações a elas atribuídas, não possuem uma realidade autônoma. Elas estão atreladas a um contexto histórico mais amplo que condiciona a sua direção política e pedagógica. Essa condição, certamente, justifica a necessidade de se compreender os significados, objetivos, interesses daquilo que tem sido proposto e entendido como trabalho ou atividade de EA. A necessidade de compreender a educação ambiental como um processo educativo amplo e permanente, necessário à formação do cidadão, torna-se, portanto, um fator essencial tanto para a qualidade da educação como para o direcionamento da formação do docente, já que a dimensão ambiental na educação significa muito mais do que a conjunção de enfoques interdisciplinares ou de métodos sistêmicos, “ela reclama a produção de um saber ambiental que problematize as diversas disciplinas, gerando novos conhecimentos, novas maneiras de ver a realidade” (LUZZI, 2003, p. 206). Pensar segundo essa perspectiva, pressupõe centrar a nossa reflexão na dimensão educativa da crise ambiental, e não apenas na dimensão ambiental da educação, como usualmente tem sido feito (LAYARGUES 2004). A inversão desses polos constitui, na perspectiva do autor, uma possibilidade de se resgatar o significado de educação que parece ter ficado historicamente diluído no componente ambiental e permitir novos olhares para esse mesmo objeto.

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A introdução da dimensão ambiental no sistema educacional exige novas atitudes dos professores, esse é o fato. Segundo Giroux (1988), a formação dos futuros docentes é a chave da mudança que se propõe, quer pelos novos papéis que terão que desempenhar no seu trabalho, quer pela necessidade de que sejam os agentes transformadores de sua própria prática. 3 A formação ambiental e os cursos de Licenciatura O tema formação de professores tornou-se nos dias atuais um grande desafio para os cursos de magistério e para as licenciaturas. E, apesar de o conceito de formação docente ser suscetível a múltiplas perspectivas, tem sido recorrente associar o conceito ao seu desenvolvimento pessoal e profissional. A formação pode ser entendida como um fazer permanente, que se faz constantemente na prática e na reflexão da prática. Assim, sem a intenção de aprofundar a discussão sobre o conceito de formação, mais do que compreender a formação como simples mudança na capacidade profissional, entendemos a formação na perspectiva também de transformação do ser humano, ou seja, “formar-se supõe troca, experiência, interações sociais, aprendizagem, um sem fim de relações” (MOITA, 1992, p. 115). Ainda que grandes inovações e revoluções tenham ocorrido nesse campo nas últimas décadas, a formação docente deixa muito a desejar e há ainda grande dificuldade de se colocar em prática concepções e modelos inovadores. A consequência é termos uma divergência entre um academicismo exacerbado e um empirismo tradicional, duas posturas passíveis de crítica. Se, por um lado, a necessidade de ampliação da oferta de ensino para todos se impôs como uma necessidade da sociedade brasileira, por outro, ainda é insuficiente a consciência política em relação à importância social que os professores têm no cenário de desenvolvimento do país, bem como são precárias as políticas públicas adotadas para melhorar a qualidade da educação brasileira nos diferentes níveis de ensino. Também existe um grande desprestígio da carreira docente e um descuido na formação desse profissional para enfrentar com competência as necessidades exigidas


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pela sociedade contemporânea e para enfrentar o cotidiano da escola. Nas críticas à educação, é comum observar que muitas vezes elas recaem sobre a formação e a atuação dos professores. Isso vale também para as pesquisas em educação ambiental, quando direcionadas a investigar a atuação desses profissionais. As críticas geralmente apontam um baixo nível de comprometimento político desse profissional, dificuldade de agir e pensar criticamente, deficiências técnicas, além da falta de compromisso em avaliar sua prática pedagógica. Entretanto, muito pouco se questiona o papel desempenhado pelas instituições responsáveis pela formação desses profissionais. Se os professores não estão atuando conforme o esperado, resta saber se eles estão sendo formados de acordo com o que se espera deles. A formação ambiental, por exemplo, muitas vezes interpretada como uma especialidade ou especificidade na formação do educador, deveria ser entendida como parte integral desse processo nas diferentes áreas de ensino, já que não se podem conceber processos formativos desvinculados da formação geral do educador. Ao centrarmos a presente discussão no papel da universidade no processo de formação do professor, não estamos descartando o valor que as demais instâncias educativas têm na formação do futuro educador, já que o cenário da educação e da cultura são aqui compreendidos para além do sistema tradicional formal de educação. Segundo o artigo 107 da Constituição brasileira, a universidade tem, em decorrência da sua tríade de atribuições – ensino, pesquisa e extensão –, uma função social. Essa assertiva remete à responsabilidade institucional que a universidade tem para com a sociedade que a suporta, independentemente do caráter privado ou público dessas instituições. Entre outros desempenhos esperados de quem assume essa responsabilidade social, dada a natureza de prestadora de serviços – como os processos educacionais –, à universidade cabe a promoção da Educação Ambiental, de acordo com a Política Nacional de Educacional (PNEA) e as demais leis educacionais vigentes. Portanto, a dimensão ambiental deve estar presente e ativa no seio acadêmico nacional, quer levando-se em conta os aspectos ligados à função social da universidade, quer por razões de legislação.

Importante lembrar também que a necessidade e a urgência da formação ambiental para os professores e o papel da universidade nessa formação foram recomendados também pelos documentos oficiais internacionais desde a Conferência de Tbilisi/1977. De acordo com esses documentos, a universidade deveria romper com os modelos tradicionais de educação e aceitar a interdisciplinaridade como proposta de trabalho. Como resposta a essas recomendações, foi realizada, no Brasil, na década de noventa, uma série de debates sobre a importância da inclusão da dimensão ambiental ou a ambientalização curricular do ensino superior e a formação ambiental. Cinco encontros nacionais foram realizados com o tema “Universidade e Meio Ambiente”, entre os anos de 1986 e 1992. Na leitura dos documentos produzidos nesses seminários, apesar de existir um aprofundamento nas discussões sobre a responsabilidade da universidade ante a problemática ambiental e a necessidade de se estabelecer formas de organização interdisciplinar, é possível perceber que o envolvimento concreto da universidade com esses assuntos se deu de forma limitada. A interdisciplinaridade tem sido ponto de referência em muitos projetos educativos, inclusive no âmbito universitário, mas os avanços teóricos, epistemológicos e metodológicos no campo ambiental foram, ao longo dos anos, mais significativos no campo da investigação do que eficientes na proposta de programas educativos na opinião de LEFF (1999). [...] resistências teóricas e pedagógicas fizeram com que muitos programas que surgiram com uma pretensão interdisciplinar fracassassem perante a dificuldade de integrar os paradigmas atuais do conhecimento. Isto porque a interdisciplinaridade ambiental não é nem o somatório nem a articulação de disciplinas; menos ainda se dá a margem destas, como uma ‘aposta em jogo’ do pensamento complexo fora dos paradigmas estabelecidos pelas ciências. (LEFF, 1999, p. 115).

Mas, para alguns pesquisadores, entre eles, o professor Antônio Carlos Moraes, o tratamento dos temas ambientais na universidade pública brasileira nada mais é do que o reflexo de um difícil processo 67


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de reestruturação há anos em discussão no meio acadêmico,

começar de alguma forma, e a ambientalização curricular pode ser o ponto de partida.

[...] no qual estão mais explicitadas as críticas à estrutura existente e aos descaminhos da renovação do que os parâmetros para a nova estrutura. Um campo de novas preocupações e contrário aos esquemas tradicionais de tratamento como a questão ambiental confronta-se, portanto, com o paradoxo que vive a universidade e que expressa, entre outras, as práticas das transformações pelo auto. (MORAES, 1994, p. 59).

4 O que pensam os alunos sobre as questões ambientais e a sua formação A Universidade Federal do Paraná, na qual a pesquisa foi realizada, possui, atualmente, além de inúmeros cursos de especialização, mestrado e doutorado, 47 cursos de graduação em diversas áreas do conhecimento, que se desdobram nas opções de Licenciatura e Bacharelado ofertados nos períodos diurno e noturno. Tais cursos estão distribuídos entre os diversos setores e departamentos que formam a configuração organizacional da universidade, sendo que os cursos de licenciatura representam 12,21% dos cursos ofertados. De acordo com os princípios dessa universidade, estes e os demais cursos oferecidos estão inseridos nos três pontos de sustentação de uma instituição de ensino superior pública, ou seja, o ensino, a pesquisa e a extensão. Para o desenvolvimento da pesquisa, optou-se por uma abordagem qualitativa e quantitativa, entendendo que pensar em pesquisa quantitativa e qualitativa significa, sobretudo, pensar em duas correntes paradigmáticas que têm norteado a pesquisa científica no decorrer de sua história (SANTOS, 2001, p. 13-59). Tais correntes se caracterizam por duas visões centrais que alicerçam as definições metodológicas da pesquisa em ciências humanas nos últimos tempos, ou seja, a visão realista/objetivista (quantitativa) e a visão idealista/subjetivista (qualitativa). De acordo com essa perspectiva, as duas visões, ou os métodos quantitativos e qualitativos, embora possuam diferentes especificidades, não são antagônicos, mas complementares. A coleta dos dados foi realizada por meio de questionários contendo questões abertas (descritivas) e fechadas (múltipla escolha), aplicados aos alunos de 10 cursos de Licenciatura da universidade.4 As questões abordaram situações de ordem pessoal do aluno, questões de ordem conceitual, sem revelação de nomes. Na análise das questões abertas, foram extraídas as palavras mais frequentes do discurso do

Apesar do reconhecimento formal de que essa é uma necessidade para gerar conhecimentos interdisciplinares e formar profissionais capacitados para a promoção da sustentabilidade socioambiental, ainda persiste no ensino superior uma estrutura curricular fragmentada e organizada em departamentos, e estes muitas vezes transformados em territórios de poder, em que as especialidades acabam sendo valorizadas. A ênfase nos saberes disciplinares e a marca da racionalidade técnica continuam predominantes, sem o diálogo necessário entre os diferentes componentes curriculares ou entre os diferentes saberes. O processo de ambientalização curricular nos cursos de licenciatura, com todos os seus desafios, é um processo complexo que, além de exigir ampla reflexão sobre a estrutura curricular dos cursos universitários, requer a elaboração de novos conteúdos curriculares, a revisão dos paradigmas científicos e das estruturas acadêmicas dominantes nas universidades, ou seja, mudanças estruturais e institucionais (RUPEA, 2007). Esse desafio é o que está posto quando se fala em novas dimensões educativas e, certamente, a universidade, sobretudo, os cursos de licenciatura têm um papel singular na incorporação da complexidade ambiental no ensino superior. Mas essa não tem sido uma tarefa fácil. Ao analisar as dificuldades de mudanças no sistema educacional, Morin (2002) afirma que isso ocorre porque existe um duplo bloqueio quando se trata de fazer reformas nas instituições de ensino, já que não se pode reformar a instituição sem uma prévia reforma das mentes, mas não se podem reformar as mentes sem uma prévia reforma das instituições. Entretanto, o autor argumenta que, para superar esse impasse, é preciso

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4  A pesquisa empírica teve a colaboração do aluno de iniciação científica Wagner Pereira Silva.


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grupo pesquisado, com o objetivo de aprofundar e aproximar o máximo possível de uma análise de conteúdo, visando a identificar a presença ou não de concepções referentes à educação e à educação ambiental, relações ser humano-natureza e considerações do ponto de vista ético e político. Numa leitura inicial dos dados coletados, o que chamou a atenção foram os vários pontos comuns, ou a grande quantidade de opiniões e expressões compartilhadas pelos pesquisados, que, por sua vez, são próprias e frequentes no discurso pedagógico da EA tanto oficial quanto no senso comum. Por exemplo, chama a atenção a repetição da palavra consciência e suas derivações, ou quando associada a expressões como, “consciência ecológica”; “consciência ambiental”; “conscientizar para preservar”; “conscientizar para não agredir o meio ambiente”; “falta de consciência”; o que denota a ideia da mediação de alguém ou algo como condutor do processo de formação da consciência ambiental, ou simplesmente a reprodução de expressões sem a compreensão do que significam. Com relação à questão perguntada sobre o que esses alunos entendem por EA, as repostas referem-se à educação ambiental como “uma modalidade da educação voltada para a solução dos problemas do ambiente natural”; educação “para a preservação do meio ambiente”; educação “para respeitar a natureza” e para a “busca de novas formas de utilização dos recursos naturais”. Mas foi possível perceber também tentativas de expor posições mais críticas com relação à EA, como a EA “deve fazer a associação dos problemas ambientais com questões estruturais da sociedade e do sistema global do capitalismo”; a EA “deve fazer entender não só os processos ambientais, mas entender o papel antropocêntrico neste processo”. Quanto ao conhecimento dos alunos sobre os trabalhos ou os projetos de EA desenvolvidos na universidade, a maioria dos pesquisados respondeu desconhecer qualquer projeto ou atividade relacionada ao meio ambiente ou à EA, ou seja, 86% dos alunos desconhecem qualquer iniciativa dentro da universidade sobre o tema. Aqueles que conhecem alguma coisa representam apenas 11% e, aqui, é possível levantar algumas hipóteses: a) aquilo que é proposto sobre o assunto no âmbito da universidade é pouco divulgado; b) os projetos ou as atividades propostas acontecem de forma pontual;

c) os alunos não estão interessados ou preocupados com o assunto. Na questão perguntada se os temas ambientais são trabalhados em alguma disciplina do curso, 60% dos pesquisados disseram que os temas ambientais e a EA não são assuntos abordados em seus cursos, e 27% responderam sim a essa questão e citaram disciplinas dos cursos de Química, Ciências Biológicas, Artes e de Geografia, embora relacionem aqui assuntos específicos de determinadas matérias e não exatamente de EA ou de temas relacionados às questões socioambientais atuais, com exceção dos alunos do curso de Ciências Biológicas, do currículo novo iniciado em 2009, que cursam a disciplina obrigatória Fundamentos da Educação Ambiental. Uma característica que se observa nessas respostas é que são ainda as disciplinas e os cursos considerados mais “afins” e legitimados no ensino formal como os depositários dos temas e das metodologias para o aprofundamento de conhecimentos e discussões das questões ambientais que trabalham com esses temas. De acordo com os pesquisados, os principais problemas ambientais enfrentados atualmente seriam os problemas de poluição, em suas diferentes formas; o desmatamento; o aquecimento global; o efeito estufa, as mudanças climáticas e o lixo. Mas, para um número significativo de alunos, a desinformação da população se constitui também um problema ambiental. Perguntado aos alunos se eles consideram importante incluir os temas ambientais ou a EA no seu curso, 55% dos alunos responderam que sim, consideram importante a inclusão dos temas ambientais ou a EA na sua formação, entretanto 40% não pensam assim. Importante observar que a linha que separa essas duas posições, se a ela forem somados os 5% que não responderam à questão, é extremamente insignificante, ou seja, metade dos alunos não considera importante a formação ambiental. Também chamam a atenção as justificativas apresentadas para essas posições: “isto é importante para o pessoal da Biologia”; “no meu curso não, isso é importante trabalhar na escola”; ou, como afirmou um aluno do curso de Educação Física, “não há interação do assunto com o meu curso”; ou ainda, segundo alunos do curso de Filosofia que consideram as questões ambientais como “áreas opostas”, ou “mesmo a menor relação da filosofia com este tema, não é relevante”.

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Quando questionados sobre quais os temas ambientais que deveriam ser trabalhados nos cursos de licenciatura, foi possível perceber que os alunos ainda estão presos a uma concepção bastante técnica e naturalista das questões ambientais e, mais uma vez, aparecem os temas mais divulgados pela mídia, como reciclagem do lixo, poluição, aquecimento global. Argumentos sobre a cultura e a forma de organização social, as mudanças entre as relações sociedade-natureza construídas ao longo da história da humanidade ainda são considerados menos representativos e importantes. Por último, foi perguntado se eles se sentem aptos para trabalhar com Educação Ambiental dentro da sua área de atuação e, apesar de quase a metade dos pesquisados não julgar importante a inclusão dos temas ambientais em seus cursos, o mesmo percentual de pesquisados não se considera capacitado para trabalhar com o assunto. Dentre aqueles que acreditam estarem aptos, a justificativa é dada pela própria característica do curso, e outros se consideram aptos por possuírem um conhecimento profissional anterior ao curso atual, ou ainda por entenderem que possuem conhecimento suficiente sobre o tema, sendo que “este conhecimento foi construído fora dos muros da universidade, pelos meios de informações disponíveis”. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Investigar a formação dos futuros educadores representa a possibilidade de alertar para o fato de que os fracassos no campo educacional e também, no caso específico da inserção da dimensão ambiental na educação, acontecem no alicerce de sua organização e constituição. Nesse sentido, entende-se que o tema ambiental encerra importante contribuição para a reflexão sobre a universidade de hoje, já que a complexidade dos problemas ambientais lança desafios não só teóricos e metodológicos, mas também uma reconceituação epistemológica, pedagógica e estrutural dessa instituição que teve origem e evoluiu em contextos sociais muito diferentes dos atuais. Ao mesmo tempo, a pesquisa aponta a necessidade urgente de se ampliar, nos diversos cursos das universidades, a reflexão com os nossos alunos sobre a realidade que vive a sociedade brasileira e contextualizar as políticas educacionais de forma crítica, na qual o ambiental não se 70

constitua em mero adjetivo da educação, mas que a substantive. O tema ainda é muito pouco trabalhado nos cursos de Licenciatura, o que de certa forma confirma a trajetória histórica de a EA ser trabalhada principalmente pelas áreas de Biologia e Geografia. Essa situação sugere que mudanças efetivas ainda não aconteceram, as questões socioambientais ainda são um assunto isolado e restrito a algumas áreas do conhecimento e estão na dependência da iniciativa pessoal de alguns docentes, assim como elas não existem como política da instituição. Esses argumentos reforçam a hipótese sugerida para esta pesquisa: existe a tentativa de abordar as questões ambientais nos cursos de licenciatura, contudo, isso se dá ainda de forma incipiente, pontual e condicionada ao interesse pessoal de cada professor, e não necessariamente como resultado de política da instituição ou do entendimento de que o momento atual exige mudanças na organização e na estrutura da universidade, bem como uma diferente formação do professor para enfrentar as novas necessidades do mundo contemporâneo. As ideias, os conhecimentos e as informações sobre o assunto ainda são confusos e até mesmo desconhecidos para a maioria. Apesar de alguns princípios da EA estarem presentes nos depoimentos, parece claro que a complexidade e o significado desses fundamentos não são claramente compreendidos e a sua repetição acaba não superando o senso comum. Nesse caso, a EA acaba sendo incorporada de forma simplista, entendida apenas como necessária para a preservação dos recursos naturais e a preservação das espécies. Se, por um lado, os resultados apontam que, em alguns cursos, as questões ambientais são trabalhadas, mesmo que em assuntos específicos de determinadas matérias e não exatamente de EA ou de temas relacionados às questões socioambientais atuais, por outro, fica difícil mensurar a apropriação destes na formação ambiental dos futuros educadores, já que, no processo educativo, as transformações do conhecimento impelidas pelo saber ambiental vão além da incorporação de componentes e conteúdos ecológicos para adaptar os cursos tradicionais às exigências do desenvolvimento sustentável. A realidade encontrada mostra que a dimensão ambiental, no processo de formação do profissional da educação, necessita ainda de uma profunda reflexão acerca do sentido e do significado dos pressupostos formativos em curso


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nesse campo do conhecimento, para que o tema faça parte do processo de formação dos futuros profissionais da educação nas diferentes áreas do ensino superior. Enfim, pode-se dizer que os alunos estão despreparados para tratar das questões ambientais à luz dos seus pressupostos teóricos, além de não conseguirem perceber a importância e a necessidade da presença desses temas em seus respectivos cursos. É certo que as questões ambientais são um problema social que transcende a missão das universidades, mas essas instituições desempenham um papel fundamental nesse processo de transformações do conhecimento e de mudanças sociais. Mesmo considerando que os dados não sejam conclusivos, os resultados apontam para a necessidade urgente e inadiável de trazer para discussão a importância da formação ambiental no ensino superior e nos cursos que preparam os futuros educadores. A promoção de debates, seminários e palestras sobre o tema é fundamental. Esses eventos são frequentes nos cursos de pós-graduação, mas eles precisam ser divulgados e envolver também os alunos dos cursos de graduação. Se é possível questionar o papel do nosso sistema de ensino no contexto atual para a formação de uma nova ética “ambiental”, de um novo paradigma, de outras relações entre os seres humanos e a natureza e dos seres humanos entre si, parece importante considerar as necessidades da sociedade que são trazidas para o espaço pedagógico. Essas são imposições que obrigam as instituições de ensino a estender o seu campo de conhecimento e atuação, caso elas se proponham a contribuir com soluções dentro de uma sociedade cada vez mais fragmentada em seu tecido social e político. REFERÊNCIAS CARVALHO, I. C. M. A invenção ecológica: narrativas e trajetórias da educação ambiental no Brasil. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2002. 229 p. CNUMAD. Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Rio de Janeiro. AGENDA 21. capítulo 36. Rio de Janeiro, 1992. p. 55-58

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Aprendendo Inglês com Pinguins O Desenvolvimento Linguístico através do Jogo Eletrônico Club Penguin

Conie Smolinski1 Resumo As mudanças trazidas pela tecnologia chegam à sala de aula e ao ensino de línguas, que não se limitam mais ao espaço físico e à prática com colegas próximos. Baseado na concepção de “edutainment” (Purushotma, 2005), este trabalho faz uma releitura dos conceitos de zona de desenvolvimento proximal (ZDP) e de andaimento da teoria sociocultural, aplicados à realidade dos jogos eletrônicos. Para tanto, realizamos um estudo de caso, em que analisamos as aulas particulares de inglês (L2) ministradas pela pesquisadora a alunos gêmeos, de sete anos, com a inserção do jogo eletrônico Club Penguin (www.clubpenguin.com). Percebemos que as características socioculturais da brincadeira, agindo na construção do aprendizado através da interação, não apenas foram mantidas no ambiente virtual, como também foram ampliadas pela instantaneidade e pela multimodalidade do jogo eletrônico, multiplicando as possibilidades de uso da língua-alvo. Palavras-chave: Jogo eletrônico. ZDP. Andaimento. Edutainment. Club Penguin. Abstract The changes brought up by technology have arrived to classrooms and to language teaching, which are no longer limited by physical space and practice with close classmates. Based on the notion of “edutainment” (Purushotma, 2005), this article reconsiders the sociocultural concepts of zone of proximal development (ZPD) and scaffolding, applied to the reality of electronic games. For that, we have accomplished a case study, in which we have analyzed the private English (L2) classes given by the researcher to seven-year-old-twin students, with the insertion of the electronic game Club Penguin (www.clubpenguin.com). We have noticed that the sociocultural characteristics of playing in the construction of learning through interaction, have not only been kept on the virtual environment, but have also been amplified by the instantaneity and multimodality of the electronic game, thus multiplying the possibilities of usage of the target language. Keywords: Electronic game. ZPD. Scaffolding. Edutainment. Club Penguin.

1   Me. Linguística Aplicada (Unisinos 2012). Especialista Aquisição e Ensino da Língua Inglesa (Feevale 2009). coniehs@ hotmail.com

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A cultura digital trouxe várias mudanças para o ensino de línguas, bem como para as formas de se usar a língua, que se ajusta às necessidades e aos limites do espaço digital, e não mais aos limites da sala de aula. A prática da língua limitada a uma simulação em sala de aula, a exercícios que encenam uma ação no mundo, com colegas conhecidos e com as estruturas estudadas em aula, pode ser, hoje, substituída pelo exercício linguístico dentro de um jogo eletrônico, que é o caso da pesquisa aqui desenvolvida, com o jogo Club Penguin (www. clubpenguin.com). No jogo eletrônico, a L2 é de fato usada para agir no mundo, não físico, mas virtual; o seu uso correto ou não tem consequências no jogo, pois o receptor da produção do aluno, que pode até ser um desconhecido, vai reagir a essa produção dentro do jogo, sem sequer ter conhecimento do grau de domínio linguístico do seu emissor. Além disso, os jogos eletrônicos envolvem os alunos no aprendizado, motivando-os de forma divertida, criativa e produtiva. A imersão e a motivação são fundamentais para uma aprendizagem sólida. Assim, trazer o jogo eletrônico para a sala de aula de língua estrangeira torna o processo de aprendizagem mais dinâmico e o conteúdo menos artificial, uma vez que o aluno constrói e vivencia o conhecimento recém adquirido no ambiente virtual, podendo avaliar o conteúdo e considerá-lo, ou não, para sua vida fora da tela. Purushotma observa que, “ao invés de ver as formas midiáticas focadas no entretenimento como inimigas do teor educacional, os educadores deveriam adotá-las”2 (Purushotma 2005 p. 80), e aponta para um novo termo diante da cibercultura: o “edutainment”, uma mescla das palavras “education” (educação) e “entertainment” (entretenimento), propondo, assim, uma mistura de propósitos educacionais com o divertimento do brincar infantil. Ressaltamos aqui que a palavra “divertimento” não se refere a um ensino descompromissado e imprudente, cujo único objetivo é divertir, mas sim a um ensino que possibilite “desfrutar a experiência do aprendizado” (Tapscott, 1999, p.143). Podemos observar que, em um jogo eletrônico, há frustrações,

2   “Rather than seeing entertainment-focused media forms as adversarial to educational content, educator should instead embrace them”.

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o jogador perde, morre e tem que recomeçar. Isso não é engraçado nem agradável. No entanto, o jogador persiste, aprende, testa truques e ultrapassa a fase em que morreu anteriormente. Isso caracteriza o “edutainment”, um aprendizado que não é fácil nem leviano, mas que possibilita o progresso aliado à diversão de aprender. Apesar de o termo “edutainment” ser novo e inerente à cultura digital, a aprendizagem através do brincar já havia sido percebida e trabalhada pela teoria sociocultural, proposta pelo psicólogo Lev Vygotsky. O teórico considera o brincar como um aspecto essencial no desenvolvimento da criança. Conforme Vygotsky, “a relação desenvolvimento-brinquedo pode ser comparada à relação desenvolvimento-instrução, mas o brinquedo propicia um espaço para mudança de necessidades e de consciência de uma forma muito mais ampla [...]. A criança se desenvolve essencialmente através da brincadeira”3 (Vygotsky, 1933, p. 10). Enquanto brinca, a criança apropria-se de palavras e significados, ou seja, da linguagem, e assim amplia seu conhecimento sobre o mundo e sobre o quadro social em que está inserida. Assim, a associação do brincar a propósitos educacionais remete-nos aos dois conceitos que norteiam este trabalho: o de zona de desenvolvimento proximal (ZDP) e o de andaimento. De acordo com Vygotsky, “o ‘bom aprendizado’ é somente aquele que se adianta ao desenvolvimento” (Vygotsky 1998, p.117), o que nos conduz ao conceito de zona de desenvolvimento proximal, definida como a distância entre o nível de desenvolvimento real da criança e o seu nível de desenvolvimento potencial. Por exemplo, uma criança brincando pela primeira vez de amarelinha pode não conseguir se equilibrar em um pé só enquanto pega, no chão, a pedrinha jogada na casa ao lado. Essa habilidade não faz parte do seu desenvolvimento cognitivo real no início, mas será desenvolvida com a prática do jogo, pois tem potencial para isso. No nível de

3  “The play-development relationship can be compared with the instruction-development relationship, but play provides a background for changes in needs and in consciousness of a much wider nature…The child moves forward essentially through play activity". (Vygotsky, 1933, p.10)


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desenvolvimento real da criança, estão as atividades que ela consegue realizar sem ajuda, como pular as casas da amarelinha. Já o nível de desenvolvimento potencial compreende os conhecimentos ainda não desenvolvidos pela criança, mas atingíveis com o auxílio de um adulto ou de um companheiro mais experiente, como a capacidade de se equilibrar em um dos pés enquanto pega a pedra da casa ao lado. No entanto, Vygotsky esclarece que a ZDP é um conceito dinâmico, uma vez que as atividades para as quais a pessoa precisa de assistência, hoje, ela terá capacidade de realizar sem auxílio no futuro, ou seja, “aquilo que é a zona de desenvolvimento proximal hoje, será o nível de desenvolvimento real amanhã” (Vygotsky, 1989, p. 98). Com base nesse caráter dinâmico da ZDP, os autores Wood, Bruner e Ross (1976) cunharam a ideia de andaimento (scaffolding), a partir da observação de que, para chegar ao desenvolvimento real de algo que estava na ZDP, as crianças precisavam passar por passos gradativos de assistência no seu progresso. Os autores usam, então, a metáfora de andaimes que são fornecidos às crianças pelos seus parceiros mais experientes, propiciando-lhes ir além do que já dominam, e explicam: “Esse andaimento consiste essencialmente em o adulto ‘controlar’ os elementos da tarefa que estão inicialmente além da capacidade do aprendiz, assim permitindo-lhe concentrar-se e completar apenas os elementos dentro do seu alcance”4 (Wood; Bruner; Ross, 1976, p. 90). Apesar de o conceito de andaimento ter nascido da observação da interação entre adultos e crianças, Donato (1994), assim como Zilles e Knecht (2009), observam que ele pode ocorrer entre outros pares, como duas crianças ou dois adultos, por exemplo, desde que haja uma diferença de conhecimento a ser compartilhado. “Uma criança que sabe lidar com um brinquedo pode oferecer andaimento a outra criança que está aprendendo a utilizar esse mesmo brinquedo. Por outro lado, uma professora pode fornecer andaimento a um adulto que está aprendendo a ler” (Zilles; Knecht, 2009, p. 53). O parceiro mais experiente, então, da mesma

forma que um andaime, primeiro presta o auxílio e, gradativamente, tira-o até que o par menos experiente consiga executar a tarefa sozinho. Wood, Bruner e Ross também identificaram seis funções desempenhadas pelo processo de andaimento, são elas: 1) O recrutamento: atrair o interesse do aprendiz para a tarefa. 2) A redução de níveis de liberdade: simplificar a tarefa a níveis que o aprendiz consiga cumprir. 3) A manutenção do objetivo: manter o interesse do aprendiz na realização da tarefa, levando-o a arriscar sempre mais um passo em busca do que até então não dominava. 4) A indicação de características críticas: demonstrar ao aprendiz as discrepâncias entre o que foi produzido e a solução ideal, ressaltando as características relevantes para o cumprimento da tarefa. 5) O controle da frustração: amenizar uma eventual frustração do aprendiz durante a resolução do problema. 6) A demonstração: apresentar um modelo de solução para a tarefa, completando uma solução dada pelo aprendiz ou explicando como isso pode ser feito. (Wood; Bruner; Ross, 1976, p. 98) Sendo o jogo eletrônico um espaço interativo, em que todos os envolvidos atuam ora como aprendizes, ora como mestres, em uma constante troca de conhecimento não linear, divertida e consistente, o consideramos um ambiente fértil para a observação de episódios que manifestam a ZDP e o andaimento. Dentro dessa perspectiva, as interações suscitadas pela brincadeira são entendidas aqui como fundamentais na formação do conhecimento linguístico, principalmente as que possibilitam diálogo e colaboração mútua, propiciando, assim, a efetivação da ZDP e do andaimento, sejam eles dentro do mundo físico ou virtual. Portanto, a análise que segue examina a ocorrência desses dois conceitos socioculturais no processo de ensino-aprendizagem de L2, dentro do jogo eletrônico Club Penguin.

“This scaffolding consists essentially of the adult ‘controlling those elements of the task that are initially beyond the learner’s capacity, thus permitting him to concentrate upon and complete only those elements that are within his range of competence” (Wood, Bruner, Ross, 1976, p.90)

1 Metodologia Este artigo é um recorte da dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada intitulada “My Penguin Pal – O Desenvolvimento da Proficiência Linguística através do Jogo Eletrônico Club Penguin”, em que realizamos um estudo de caso, dentro de

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uma perspectiva participativa de pesquisa, uma vez que há envolvimento direto da professora e dos alunos na coleta e na análise de dados (Moreira; Rosa, 2009, p.17). Os participantes da pesquisa são meninos gêmeos, bivitelinos, de sete anos, que, além das aulas particulares de inglês (L2) a domicílio com a pesquisadora, também frequentam uma escola regular bilíngue (português/inglês). A partir da obtenção do consentimento dos pais e dos participantes, bem como do aval do Comitê de Ética em Pesquisa da Unisinos, procedeu-se à análise de um total de 37 aulas particulares, sendo cada aula com duração de uma hora. A coleta de dados ocorreu no segundo semestre de 2010 e uniu técnicas de observação, gravações de áudio e vídeo, relatório detalhado das aulas, os exercícios e os jogos desenvolvidos pelos participantes e pela pesquisadora, dentro e fora do ambiente virtual. A transcrição das gravações de áudio e vídeo das aulas foi feita de forma integral, i.e., sem uma seleção prévia do que seria transcrito. Optamos por proceder dessa maneira quando percebemos, depois das primeiras transcrições feitas, aspectos relevantes para análise que não haviam sido notados apenas ouvindo ou assistindo às aulas gravadas. Assim, todas as gravações foram transcritas na íntegra e seus excertos foram destacados no momento da análise. Para realizar essa transcrição, usamos as Convenções de Transcrição Jeferson (Loder; Jung, 2008, p. 168), uma vez que objetivávamos analisar o conteúdo das interações, e não os pormenores do modo como se dava a conversa. A professorapesquisadora é representada na transcrição pela letra C (referindo-se à inicial do nome: Conie), e as letras M e V correspondem aos participantes da pesquisa, que têm seus nomes nas interações aqui apresentadas alterados para Marco e Victor. O jogo eletrônico escolhido para a pesquisa - Club Penguin (www.clubpenguin.com) - é um ambiente virtual lançado em 2005, atualmente administrado pela Disney, em que crianças de vários países podem se encontrar e interagir na forma de pinguins coloridos. A comunidade virtual suscitou o nosso interesse principalmente pelas possibilidades de interação e de intercâmbio cultural que oferece aos participantes. Ao iniciar o jogo, a criança tem a opção de escolher o idioma dentro do qual a interação acontecerá. O pinguim, 76

então, é transportado à cidade virtual, em que cada lugar oferece uma atividade diferente que pode, ou não, ser realizada pelo jogador. Com isso, o jogador pode dançar, participar de competições e missões, conversar com os demais pinguins presentes, comprar seu próprio iglu e mobiliá-lo, montar um livro interativo, ler o jornal com novidades do jogo e fazer atividades em sua página de variedades, criar puffles5 como mascotes e até mesmo voar, proporcionando, assim, uma exposição à L2 em contextos práticos e envolventes. As conversas com outros pinguins ocorrem através de frases digitadas pelos participantes, ou através de uma grade de opções de frases prontas fornecida pelo Club Penguin, com as estruturas linguísticas mais usadas pelos jogadores. Isso foi de especial importância para a decisão de se usar esse jogo nas aulas, uma vez que os participantes da pesquisa estavam recém sendo alfabetizados na escola regular e ainda não tinham segurança para se expressar por escrito. Não sabemos afirmar se os meninos conseguiam fazer uma “leitura holística” da frase que estávamos estudando, reconhecendo-a dentre as opções, ou se eles haviam memorizado seu lugar na grade de opções, mas o fato é que, uma vez estudadas as frases (sempre com muita prática oral), essas eram reproduzidas sem dificuldade nos diálogos que fazíamos online, sendo escolhidas na grade de opções. Em jogos virtuais como o Club Penguin, os jogadores existem de fato, apesar de travestidos de pinguins, e as interações entre eles são autênticas. Com essa característica de unir um grupo internacional em uma cidade virtual, em que os jogadores podem interagir, a simples aprendizagem da L2 supera-se pelas possibilidades de acesso a falantes (nativos ou não) da língua-alvo, de troca de informações culturais e do cumprimento de tarefas junto aos parceiros internacionais. Dessa forma, quando o jogo é usado na L2, a aprendizagem da língua e de sua cultura acontece através de atividades divertidas que requerem a comunicação.

Puffles são “bichinhos” coloridos que os pinguins podem criar como mascotes (presentes na figura de capa desta dissertação). O nome é mantido “puffles”, mesmo quando o jogo está em português.

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2 Análise de Dados 2.1 Análise do Processo de EnsinoAprendizagem à Luz da Teoria Sociocultural Como já vimos, parte do processo de desenvolvimento de uma segunda língua é caracterizada por dois conceitos socioculturais inter-relacionados: a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) e o Andaimento. A ZDP é definida por Vygotsky como um espaço dinâmico em que reside a diferença entre o que uma pessoa consegue realizar sozinha e o que essa mesma pessoa pode alcançar quando recebe ajuda de outra. Dentro dela, temos a interação entre um sujeito mais experiente e um menos experiente, o primeiro transmitindo seus conhecimentos ao segundo, até que esse consiga alçar voo solo, apropriando-se desse conhecimento. É exatamente aí que reside o aspecto dinâmico da ZDP, transformando o conhecimento potencial do aprendiz em desenvolvimento real e autônomo. Esse caráter dinâmico da ZDP foi claramente exposto na aula 24, em que assistimos ao filme Happy Feet (proposto por tratar-se da história de um pinguim, dentro do contexto do Club Penguin) e realizamos duas atividades relacionadas a ele. A primeira atividade correspondia a perguntas que eu fazia aos participantes durante o filme, cujas respostas revelaram aspectos da L2 que estavam na ZDP dos alunos, conforme os excertos 1 e 2 abaixo. Excerto 1: 15. C: What’s the problem with Happy Feet? 16. V: Ele não consegue. 17. C: He can’t. 18. M: He can’t sing. Excerto 2: 26. V: Teacher, como é “só”? 27. C: Only. 28. V: Only Happy Feet has blue eyes. 29. C: Yes, very good, Victor! Podemos perceber que, mediante o meu auxílio com o vocabulário que lhes faltava (“não consegue” e “só”), os alunos conseguiram completar a tarefa com êxito, fornecendo a resposta correta no excerto 1 e conseguindo formular a frase (feita

espontaneamente pelo participante, sem ter havido uma pergunta prévia em relação à cor dos olhos do Happy Feet) no excerto 2, caracterizando a ZDP. Passadas algumas perguntas em relação ao filme, o participante M propôs a segunda atividade que realizamos nesse dia, em que jogaríamos bola e cada um teria que dizer alguma coisa sobre o filme quando pegasse a bola. Dessa atividade, destaco, no excerto 3, as frases formuladas pelos participantes, agora já se apropriando do vocabulário que não dominavam na primeira atividade (excertos 1 e 2). Excerto 3: 36. V: Only Happy Feet has blue eyes. (…) 41. V: Happy Feet can’t sing. (…) 43. M: Happy Feet can dance and can’t sing. (…) 56. M: The friends can sing. Happy Feet first day in school can’t sing. Esses excertos demonstram claramente a face dinâmica da ZDP, transformando em conhecimento real dos participantes (excerto 3) estruturas para as quais, na primeira atividade (excertos 1 e 2), eles precisaram do meu auxílio. O dinamismo se dá pela apropriação dessas estruturas pelos participantes, ou seja, o que estava na zona de desenvolvimento proximal na primeira atividade (excertos 1 e 2) se transformou em nível de desenvolvimento real na segunda atividade (excerto 3). O segundo conceito que ampara esta pesquisa é o conceito de andaimento. Ele se relaciona ao conceito de zona de desenvolvimento proximal, pois nasceu da observação de que as crianças passam por passos gradativos de assistência até conseguirem chegar ao desenvolvimento real de algo que estava na ZDP. Assim, o parceiro mais experiente atua como um andaime, fornecendo todo o suporte necessário ao menos experiente. Esse suporte é, então, retirado aos poucos até que o aprendiz consiga desempenhar a tarefa sozinho, sem mais necessitar do apoio do andaime. Nesse processo, o parceiro mais experiente pode exercer seis funções junto ao aprendiz: (1) o recrutamento; (2) a redução dos níveis de liberdade; (3) a manutenção do objetivo; (4) a indicação das características críticas; (5) o controle da frustração e (6) a demonstração, conforme já tratado no referencial teórico. Todas essas funções foram observadas nas atividades desenvolvidas durante a pesquisa.

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Na aula número 14, escolhi oito palavras que os meninos aprenderam no Club Penguin (giggling, cove, buy, stamps, flips, octopus, flippers e coins) e mais 10 palavras aleatórias (dies, olive, pea, glove, eggs, shark, brother, pajamas, whose e luck) para verificar se os participantes as conheciam e se as reconheciam como aprendidas no jogo. Coloquei todas as palavras em cartões virados para baixo, de forma que os alunos tivessem que virar um deles e confirmar se a palavra virada lhes era conhecida e de onde a conheciam. No excerto 4, percebemos o andaimento quando o participante Victor não recorda o significado da palavra “die”, já utilizada em aula, fora do Club Penguin. Excerto 4: V: Die. C: OK, die…What’s die? V: Club Penguin? C: Die from Club Penguin? Marco, die from Club Penguin? M: Dies have in the games. C: Yes, in the games. (dirigindo-se ao Victor) What’s the meaning of dies? V: Dados. C: Yes, very good. […]. Nesse exemplo, Marco, diante da solicitação da professora, oferece auxílio para Victor recordar a palavra “die” através de uma frase, simplificando a tarefa a níveis que o aprendiz consegue reconhecer, ou seja, localizando de onde eles a conheciam (linha 75). A professora retorna a pergunta a Victor, que consegue completar a tarefa (linhas 76 e 77). Assim, o “andaime” fornecido por Marco através da redução dos níveis de liberdade (função 2 do andaimento) possibilitou a Victor ir além do que já dominava e capacitou-o à autonomia, quando o “andaime” foi retirado. Podemos concluir, assim, que essa função do andaimento foi devidamente efetivada entre pares, ratificando a observação de Donato (1994) de que o parceiro que fornece o andaime não necessariamente precisa ser adulto, nem especialista, basta ter um conhecimento a compartilhar. No excerto 5, destacado dessa mesma atividade, percebemos a quinta função do andaimento – o controle da frustração – sendo desempenhada pela professora, quando o aluno Marco consegue lembrar a palavra “luck”, sabe que não a conhece do Club Penguin, mas não recorda de que jogo a conhece. 78

Excerto 5: 38. M: Luck. 39. C: What is that? Luck. 40. M: Sorte? 41. C: Yes, sorte. From Club Penguin? 42. M: “Club Penguin” no. 43. C: No, it’s not from Club Penguin. It’s from? 44. M: It’s from “todo mundo” 45. C: How do you say o quê? 46. M: How do you say todo mundo? 47. C: Everybody. 48. M: Everybody have luck. 49. C: Everybody has luck? But do you remember the game? Tinha luck e bad luck. What game? 50. M: Pizza. 51. V: [Sorte.] 52. C: Pizza game...yes! A palavra “luck” foi escolhida para essa atividade por ser muito usada em um jogo de tabuleiro que jogávamos com frequência, no qual o participante deve montar uma pizza com ingredientes específicos e, em alguns momentos, precisa pegar uma carta que pode ser de sorte (luck) – dando ao participante o ingrediente que lhe falta, ou de azar (bad luck) – solicitando que o participante doe algum de seus ingredientes ao adversário. No excerto acima, em um primeiro momento, o aluno identifica a palavra como não pertencente ao Club Penguin (linhas 38 a 42), mas frustra-se ao não conseguir distinguir de onde a conhece e, assim, não completar a tarefa (linha 44). Tenta, então, generalizar através de uma frase, indicando que a conhece do quotidiano (linha 48). A professora, a seguir, controla essa frustração dando ao aluno pistas para identificar a que jogo a palavra se refere (linha 49), o que logo é reconhecido pelo aluno, que tem êxito na tarefa (linha 50). Na atividade desenvolvida na aula 19, usei as frases prontas oferecidas pelo Club Penguin (que podem ser selecionadas em uma lista de opções apresentada pelo jogo) para montar um diálogo. Inspirada no exercício de “jigsaw” (quebra-cabeça) proposto pelas autoras Merrill Swain e Sharon Lapkin (2001), em que pares de alunos construíram uma história baseada em oito figuras, representei cada frase com uma figura e apresentei-as aos alunos de forma desordenada, deixando-os livres para montar sua própria história com elas. Eles optaram por fazer a atividade separadamente, cada


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um montando a sua história, mas coincidentemente usaram a mesma ordem de figuras. O meu movimento introdutório da atividade, no excerto que segue, caracteriza a primeira função do andaimento: o recrutamento. De acordo com Zilles e Knecht (2009), nessa etapa é essencial que se negocie e que se definam os papéis a serem desempenhados por cada participante, o que se percebe- devidamente executado nesse excerto. No entanto, percebi uma falha no meu recrutamento quando os meninos apresentaram suas histórias, pois, como não deixei claro que havia montado um diálogo e esperava que eles o fizessem, ambos desenvolveram narrativas. Excerto 6: 1) C- Teacher has a new conversation from Club Penguin. Só que aqui estão só as figuras da conversation. Que tal vocês montarem a história de vocês e depois a gente vê se ficou igual à da Teacher? OK? 2) M- Tá, eu começo. (organiza as figuras na ordem que deseja) Também se observou a ocorrência da terceira função do andaimento durante essa atividade: a manutenção do objetivo. O estímulo a ir adiante com a tarefa se dá através de frases incentivadoras, como “Very good, and...” (fala 8) e “Very good, and to finish...” (fala 26). Uma segunda etapa dessa mesma atividade foi desenvolvida na aula 23, na qual, mais familiarizados com as estruturas e o vocabulário contidos no novo diálogo, as histórias contadas pelos alunos na aula 19 foram retomadas, visando a oferecer o suporte necessário para tornar suas sequências de ações mais coerentes. Uma vez que o foco dessa correção era o significado, o sentido do texto produzido, evitei usar regras gramaticais explícitas, e os tempos verbais primeiramente usados no presente foram mantidos dessa forma (até porque os alunos ainda não haviam aprendido o passado dos verbos), havendo correção apenas em alguns fatores que poderiam comprometer o entendimento do texto, como no caso dos possessivos. No excerto 7, evidencia-se a quarta função apontada por Wood, Bruner e Ross (1976): a indicação de características críticas. De acordo com os autores, essa indicação fornece informação sobre discrepâncias entre o que foi produzido e o

que seria a produção correta6, que foi exatamente o propósito dessa parte da atividade. Excerto 7: 9. C: OK (lendo a transcrição da narração feita pelo aluno na aula 19): “Finished the party7 and the beautiful day and he arrived in your igloo and dance”- Aqui é pinguim boy ou girl? 10. M: Girl. 11. C: Então é “he arrived”? 12. M: She. 13. C: Isso: “and she arrived in” - aqui de novo, é o iglu dela, “her igloo and dance”. Chama a atenção também o envolvimento que esse processo gerou nos alunos, que sugeriram correções ao próprio texto no decorrer da atividade, como no excerto 8, o que nos remete à afirmação de Lantolf: “Mesmo naqueles casos em que especialistas e novatos estão juntos, como em uma situação pedagógica, os novatos não copiam simplesmente as capacidades dos especialistas, mas transformam o que os especialistas lhes oferecem e se apropriam delas”8 (Lantolf, 2000, p.17). Excerto 8: 24. C: (lendo a transcrição da narração feita pelo aluno na aula 19) “When finished the party, everybody go9 to his igloo”. 25. V: How do you say “continuous”? 26. C: Continued. 27. V: And continued dancing. 28. C: Very good, Victor!

6   “His marking provides information about the discrepancy between what the child has produced and what he would recognize as a correct production” (Wood, Bruner, Ross, 1976, p. 98). 7  Percebeu-se a transferência da forma “acabou a festa”, aceita em português, feita pelo aluno, como não comprometedora do sentido do texto, por isso foi mantida sem correção explícita. 8   “Even in those cases in which experts and novices do come together, as in a teaching situation, novices do not merely copy the experts’ capabilities; rather they transform what the experts offer them as they appropriate it”. (Lantolf, 2000, p. 17). 9   Novamente percebeu-se o uso do verbo “go”, em vez do correto “goes”, como não comprometedor do sentido do texto e, por isso, mantido sem correção.

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Na aula número 30, dei aos meninos todas as figuras referentes a todos os diálogos que desenvolvemos durante a pesquisa e pedi que eles montassem uma história misturando tudo o que haviam estudado. O participante Marco começou a tarefa antes do Victor e protagonizou a sexta função do andaimento – a demonstração – quando o irmão chegou: Excerto 9: 7. C: (...) Marco, mostra pro Victor o que tu já fez para vocês montarem juntos. 8. M: É assim, ó: (mostrando as figuras já dispostas no chão) - Wanna be friends? - Yes. - Wanna play sled racing? - Yes. - How old are you? - 6 years old. - What’s your name? - ET […] 3 Considerações Finais Concordamos com Johnson, quando afirma que “os jogos [eletrônicos] conseguem fazer com que as crianças aprendam sem perceber que estão aprendendo” (Johnson, 2005, p. 28). Percebemos, nesta pesquisa, que as características do brincar, reorganizando funções cognitivas e construindo aprendizado, se mantêm no ambiente virtual, e que as crianças de hoje brincam tanto quanto as de gerações anteriores. Sua atividade física dentro do jogo eletrônico pode ter diminuído, mas não desaparecido, já que muitos dos jogos eletrônicos hoje (wii10, por exemplo) captam o movimento do jogador, que precisa correr para que seu avatar também corra, ou movimentar o braço fazendo do controle uma raquete para que seu avatar possa acertar a bolinha no tênis. Há possibilidades de interação que também não foram prejudicadas pela tecnologia, muito pelo contrário, foram ampliadas a parceiros que se unem, não mais por proximidade física, mas por afinidades e objetivos comuns. No entanto, ainda não sabemos bem que efeitos a substituição da presença física do parceiro pela sua presença virtual, mesmo que com

Marca de jogo de videogame: Nintendo Wii, ou simplesmente wii.

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aparatos tecnológicos que os aproximem, como a câmera ou o microfone, particularmente em uma idade tão precoce, pode vir a ter no desenvolvimento emocional e na capacidade de convivência social (presencial) dessa geração. Um outro aspecto percebido no decorrer da pesquisa que consideramos relevante abordar é o número de horas de prática da língua-alvo propiciada pelo jogo, caracterizando o “edutainment” (Purushotma 2005, p. 80) e gerando um conhecimento mais vivo e produtivo do que a simples memorização de listas de vocabulário e frases. Em conversa com uma das babás dos participantes, descobri que, enquanto ela estava presente, os meninos passavam por volta de uma hora diária no Club Penguin. Portanto, a união de propósitos educativos ao jogo eletrônico estava expondo os participantes da pesquisa a, no mínimo, cinco horas semanais de estudo/uso extraclasse da língua-alvo, de forma produtiva e autêntica, em situações reais, ainda que em ambiente virtual. Como já mencionamos, para este estudo, o jogo Club Penguin ou o seu conteúdo foi utilizado em 37 aulas de uma hora cada, totalizando 37 horas de prática em classe da língua-alvo através do jogo, direta ou indiretamente. As aulas ocorreram de junho a novembro de 2010, período que compreende 26 semanas. Considerando-se a prática semanal extraclasse, declarada pela babá dos participantes, de cinco horas semanais, tivemos, no período da pesquisa, 130 horas de estudo/uso da L2 fora do contexto formal de aula, o que resulta em três horas e meia de estudo extraclasse para cada hora de aula, e por iniciativa dos próprios alunos. Concluímos, então, que a inserção do Club Penguin no processo de ensino-aprendizagem da L2 propiciou avanços na ZDP, através do andaimento, oferecido tanto pela professora quanto pelo colega de aula. Saímos da imposição do professor transmissor (“hoje faremos listening / role play... ”) para a diversão com o processo de aprendizagem, em que o professor não sabe tudo o que vai acontecer na aula, mas sim contribui com o seu conhecimento para o aluno se desenvolver, permite-se aprender com o aluno e torna-se o pesquisador junto com o aluno, quando nenhum dos dois puder contribuir para a solução de um problema. No decorrer da pesquisa, eu fui professora quando contribuí com meu conhecimento linguístico para desenvolver a L2 dos alunos, mas fui aluna deles


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aprendendo como usar o jogo e todas as atividades que nele poderíamos desenvolver, e pesquisamos juntos como superar desafios e completar novas atividades, ou até algum vocabulário que fosse desconhecido para mim e para eles. Além disso, o jogo eletrônico trouxe-nos a prática continuada, tão almejada por professores e crucial no aprendizado de uma segunda língua, com mais de três horas de estudo extraclasse para cada aula ministrada. Esperamos ter contribuído, portanto, para uma reflexão sobre o processo de ensino-aprendizagem diante das novas tecnologias, apontando para a inserção destas na sala de aula, de forma tão natural quanto aceitamos o livro didático, fazendo os alunos assumirem sua responsabilidade pela aprendizagem de forma participativa, divertida e lúdica e desmitificando a passividade dos jogos eletrônicos.

MOREIRA, M.; ROSA, P. Pesquisa em Ensino: Métodos Qualitativos e Quantitativos. Porto Alegre: UFRGS, 2009.

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MODERNIDADE E FUTEBOL: A EXPERIÊNCIA DO FOOT-BALL CLUB ESPERANÇA DE NOVO HAMBURGO: 1900-1950

Vinícius Moser1

Resumo O presente artigo pretende compreender a relação existente entre o início e o desenvolvimento das atividades do Foot-Ball Club Esperança, clube que se localizava no bairro de Hamburgo Velho (Novo Hamburgo/RS) com o ideário moderno que se instituiu dentro do contexto sul-rio-grandense durante a primeira metade do século XX, articulando-os de forma a mostrar de que maneira as ideias da modernidade encontram ressonância dentro do contexto gerado pelo surgimento e pela consolidação do futebol na cidade nesse período. Para tanto, partiu-se da perspectiva de que o futebol foi um elemento comum ao cotidiano de muitas cidades no sul do Brasil no início do século passado e que esse esporte foi uma manifestação de cultura fortemente influenciada por um movimento regional e, mesmo, nacional. Palavras-chave: Futebol. Modernidade. Clubes. Novo Hamburgo. Abstract This article intends to understand the relationship between the beggining and development of the activities of the Foot-Ball Club Esperança, a club that was located in the neighborhood of Hamburgo Velho (Novo Hamburgo/RS) with the modern ideas that were introduced in the “south-rio-grandense” context during the first half of the twentieth century, articulating them in a way that shows how the ideas of the modernity find resonance within the context generated by the emergence and consolidation of the football in the city in this period. To this end, we started from the view that the football was a common element of the everyday life of many cities in southern Brazil at the beginning of last century and that this sport was a manifestation of culture, strongly influenced by a regional movement and, even, national. Keywords: Football. Modernity. Clubs. Novo Hamburgo.

1   Graduado em História pela Universidade Feevale em Novo Hamburgo (RS). Mestrando, com bolsa Prosup/CAPES, em Processos e Manifestações Culturais, pela mesma instituição. E-mail: vinicius.moser@gmail.com.

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1 Os começos do jogo da bola no Rio Grande do Sul O início das atividades futebolísticas no Brasil deu-se, em caráter oficial, com a criação dos primeiros clubes por ingleses que residiam em São Paulo e no Rio de Janeiro, a partir de 1880 (GUTERMAN, 2009). Nesse contexto, Charles Miller – nascido em São Paulo em 1874, mas de nacionalidade inglesa por seus pais serem naturais desse país – pode ser considerado o “pai” do futebol, quando trouxe da Inglaterra, vinte anos após o seu nascimento, as primeiras bolas e bombas para enchê-las. No período compreendido entre as primeiras décadas do século XX, o futebol desenvolveu-se grandemente no Rio Grande do Sul, o que, em linhas gerais, ocorre de forma semelhante à dos outros estados brasileiros. Para Jesus (2003), esse foi um período efervescente para o esporte, vários clubes se formaram em cidades gaúchas, especialmente em Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre, ensejando uma multiplicação de equipes esportivas. Concomitantemente a essa influência platina na formação visualizada dos clubes de futebol na região da campanha sul-rio-grandense, como o 14 de Julho (1902), de Santana do Livramento, e o Sport Club Bagé (1906), na capital Porto Alegre e na região colonial, os imigrantes alemães muito contribuíram para a disseminação do futebol entre as regiões coloniais do Rio Grande do Sul, em se tratando aqui, especificamente, da colônia alemã (JESUS, 2001). De igual modo, os teuto-brasileiros2 também auxiliaram a alavancar o relativo surto industrial que o Estado teve na virada do século XIX para o XX, como mostra Gertz (1991). Cabe salientar que, segundo Pesavento (1980), a influência germânica nas sociabilidades, na arquitetura e no imaginário da capital foi de tal monta que, segundo os cronistas da época, tratava-se de uma cidade francamente germanizada. Essa presença decisiva dos teuto-brasileiros na introdução do futebol no estado traduziu-se, por exemplo, na fundação do Sport Club Rio Grande, em 19 de julho de 1900 (JESUS, 2001). Nesse sentido, o futebol, que chegou ao Rio Grande do Sul como uma manifestação esportiva ligada às 2   Etnia que, segundo Seyferth (1982), pode ser explicada através conceito de germanidade (Deutschum).

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elites, transformou-se rapidamente em um elemento de cultura de massa, uma vez que esse público consumidor não formulava exigências particulares a esse produto cultural que chegava à região sul do Brasil (PRODANOV; MOSER, 2009). Nesse contexto de expansão dos imigrantes e seus descendentes, também na capital, em 1903, foram fundados, no mesmo dia (15 de setembro), os dois primeiros clubes de futebol de Porto Alegre: o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e o Fussball Club Porto Alegre. Essa última agremiação resistiu como clube durante décadas, mas, nos anos 1940, encerrou suas atividades. Com isso, os clubes de futebol surgidos nas diferentes regiões do Estado, e também no caso específico Novo Hamburgo, funcionaram como expressão das complexidades sociais e atuaram como catalisadores de opções identitárias dos grupos sociais envolvidos. O surgimento e o crescimento de novos clubes na cidade explicitam, à sua maneira, as divisões simbólicas daquela sociedade. Dentro desse contexto de organização social e identitária a que as comunidades de origem germânica se propunham, os clubes sociais de tiro, de canto e música e de esportes eram muito fortes e foram instituídos já na origem e na formação das vilas e das cidades, juntamente com as igrejas e as escolas, como elementos reforçadores dessa identidade teuto-brasileira. Desde 1824, esse movimento foi intenso e, ao longo de todo o século XIX, dezenas de clubes sociais e esportivos foram surgindo na região de colonização alemã, dentro de uma lógica de preservação da germanidade dos teuto-brasileiros (PRODANOV, 2008). Embora sendo um distrito de São Leopoldo, desde a sua fundação até 1927, quando de sua emancipação, Novo Hamburgo, desde a década de 1890, vivenciou um intenso crescimento das atividades fabris, especialmente com a introdução dos curtumes de couro, depois com as empresas artesanais e, posteriormente, com a indústria calçadista na cidade (SCHEMES et al, 2005). O setor coureiro-calçadista definiu, nesses anos iniciais, a fonte de riqueza da cidade e transformou Novo Hamburgo, em algumas décadas, de um distrito em uma cidade polo da região do Vale do Rio dos Sinos. Em paralelo com a riqueza gerada pelo couro e pelo calçado, Novo Hamburgo acompanhou as tendências esportivas ditadas pela Capital, incorporando o futebol às tradições “clubísticas”


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já arraigadas. Nesse sentido, vale lembrar que a cidade possuía, na virada do século, clubes de tiro, ginástica, canto, bolão, assim como os seus conterrâneos teuto-brasileiros possuíam em Porto Alegre (PRODANOV, 2008). E, naturalmente, o futebol, já nas primeiras décadas do século XX, tornou-se presente no cenário esportivo hamburguense. Essa dinâmica de industrialização que engendra o pensamento moderno encontra paralelos em muitas outras cidades brasileiras, como Porto Alegre e São Paulo, por exemplo. A formação dos clubes de futebol começa a tomar corpo no momento em que o processo de industrialização das cidades tem início. Os distintos clubes também refletiam as diferenças identitárias de espaços urbanos que se complexificavam em meio ao processo de modernização. As rivalidades transpostas simbolicamente para as quatro linhas traduzem, de certa maneira, as tensões daquela ambiência. Nas palavras de Silva (2009): [...] na rivalidade esportiva existe uma economia simbólica de alguma forma ligada à história dos clubes e das relações entre os diferentes grupos sociais. No jogo esportivo e político, não se jogava apenas o conflito entre as elites e o povo, de certa forma apaziguado pela ideologia populista, mas também a contradição, constitutiva de nossa identidade, entre duas formas de ser popular .

Na Porto Alegre do iníco do século XX, que também vivia um processo de ufanismo modernizante, são fundados os dois principais clubes de futebol do Rio Grande do Sul: o Grêmio Football Porto-alegrense, em 1903, e o Esporte Clube Internacional, em 1909. Ouros clubes fundados na mesma época tiveram diferentes projeções e permanências, mas a dicotomia Grenal impôs-se e domina o imaginário gaúcho até hoje. Também aqui ocorreu um processo de identificação, de afinidade eletiva, que, de uma forma geral, divide a “elite” do “povo” (OSTERMANN, 2000). A virada do século e as primeiras décadas do século XX foram um período marcado por certa secularização dos costumes em Porto Alegre e nas principais cidades do país. O imaginário dos

grandes centros e suas “formas sociais” alteraram a estética das cidades e dos comportamentos cotidianos. As traduções da modernidade nessas cidades expressam-se através das sociabilidades públicas e suas teatralizações em oposição às formas tradicionais e religiosas. Na visão de Maroneze (1994), o culto às ruas, os encontros nos cafés e a valorização de uma vida mais mundana, ligada ao consumo, ao indivíduo e ao corpo, abrem espaço também aos esportes. Nicolau Sevcenko (1992), comentando a realidade de São Paulo na época, afirma que os esportes se constituíram num traço diacrítico de um discurso cultural associado ao movimento e à velocidade. A explosão urbana da capital paulista teve nos esportes um canal legítimo de representação: a velocidade e a disciplina exigida para a produção da vida moderna necessitavam de indivíduos preparados (SEVCENKO, 1992). As práticas esportivas, na medida em que estavam associadas à modernidade e aos novos discursos sociais, assumiram rapidamente uma posição de destaque na lógica cotidiana das cidades, criando novos laços sociais e uma ordem compensatória ao caos de cidades que cresciam rapidamente. Para além das diferenças sociais demarcadas pelos distintos clubes em suas cidades, o futebol também funcionou, e funciona, como uma “forma social” de sociabilidade, uma estrutura subjetiva e discursiva que aglutina, permite conversas, aproxima indivíduos de diferentes posições econômicas e estamentais. Nesse sentido, ele é filho do espírito moderno, que tem na “cultura pública” e na vida das ruas seu espaço essencial; as diferenças na complexidade das massas são democratizadas no espírito do jogo, em que derrota ou vitória cameçam e terminam no encontro, na aposta e na “flauta”. Desse modo, este trabalho pretende mostrar de que maneira o futebol, mais especificamente através da criação e do desenvolvimento das atividades futebolísticas do Foot-Ball Club Esperança (FBC Esperança), clube fundado na localidade de Hamburgo Velho, bairro da cidade de Novo Hamburgo, pode ser traduzido como um elemento da modernidade a que se propunha nessa cidade ao longo da primeira metade do século XX. Também aqui se pretende mostrar o crescimento da cidade através do processo de industrialização nela verificado dentro desse momento histórico.

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2 O Foot-Ball Club Esperança na Novo Hamburgo da primeira metade do século XX A partir dos contextos nacional e regional apresentados anteriormente, cumpre aqui destacar de que maneira as atividades esportivas e futebolísticas tiveram seu desenvolvimento em Novo Hamburgo, cidade localizada na região nordeste do estado do Rio Grande do Sul, nas proximidades da capital, Porto Alegre (ROCHE, 1969). Desde a década de 1890, a cidade vivenciou um intenso crescimento das atividades fabris, especialmente com a introdução dos curtumes de couro, depois com as empresas artesanais e, posteriormente, com a indústria calçadista na cidade (SCHEMES et al, 2005). O setor coureiro-calçadista definiu, nesses anos iniciais, a fonte de riqueza da cidade e transformou Novo Hamburgo, em algumas décadas, de um distrito em uma cidade polo da região do Vale do Rio dos Sinos. Desse modo, já nos anos iniciais de sua emancipação, Novo Hamburgo era alcunhada de Cidade Industrial ou Manchester Brasileira, denominações de Novo Hamburgo encontradas no principal periódico da cidade nesse período3. Esses epítetos eram dados por conta de sua importante atividade fabril e do crescimento de sua projeção dentro do cenário econômico sul-riograndense como uma das cidades mais prósperas do interior do estado (MARTINS, 2011). Assim, a cidade apressava-se para estar em dia com a estética que pretendia exibir aos seus visitantes. Por um lado, a municipalidade arborizou praças, arrumou vias públicas e construiu um palácio municipal moderno [isso já nos anos 1950]. Por outro, a elite enriqueceu o dia-a-dia da cidade com novas e modernas construções que, [acreditava-se], honrava qualquer cidade civilizada. Assim, surgiram sólidos prédios ali e elegantes palacetes acolá. Modernos bungalows iam sendo construídos. A vila se renovava (SELBACH, 1999, p. 44, grifo do autor).

Esse periódico se denominava O 5 de Abril, semanário que circulou em Novo Hamburgo de maio de 1927 a setembro de 1962, sendo, em boa parte desse período, o único veículo de imprensa escrita da cidade (BEHREND, 2002).

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Nesse sentido, a riqueza crescente proporcionada pela cada vez maior produção de calçados destinados, sobretudo, à capital do Estado e a outros centros urbanos brasileiros transformava o município. A cidade, distante 45 km da capital do Rio Grande do Sul, não podia ter um aspecto de colônia; necessitava de espaços urbanos e de sociabilidade que estivessem à altura da próxima Porto Alegre. Desde o momento da emancipação hamburguense, a capital estadual consistia na principal inspiração para a construção desse discurso de modernidade que Novo Hamburgo ansiava por articular (SELBACH, 1999). Assim, no dia 10 de maio de 1914, na então “Pensão Breaescher”, que se localizava defronte ao atual Colégio Santa Catharina, em Hamburgo Velho, foi assinada e registrada a ata de fundação do FBC Esperança, que, no momento de seu surgimento, contava com trinta e oito sócios iniciais. Desse número inicial de participantes, somente quatro possuíam sobrenome não germânico, ressaltando, mais uma vez, o caráter fortemente étnico do desenvolvimento do futebol hamburguense à época (ESPERANÇA, 1944). O primeiro presidente do clube foi João Emilio Leyser. Os fundadores do FBC Esperança, diferentemente do seu maior rival, o Esporte Clube Novo Hamburgo (ECNH), eram, em grande parte, proprietários de estabelecimentos fabris e comerciais de Hamburgo Velho (PRODANOV; MOSER, 2011). Essa elite local sentia a necessidade de possuir um time de futebol próprio, para poder se sentir em pé de igualdade com a localidade vizinha – e rival – de Novo Hamburgo, que, antes mesmo da emancipação do município, ocorrida 13 anos após a fundação do FBC Esperança, já tomava a dianteira como o polo econômico da cidade (SCHEMES, 2006). Na época, “[...] era comum e equilibrada a presença de estabelecimentos fabris, comerciais e de lazer, além disso, ambas regiões possuíam seus cinemas, clubes e círculos sociais, bem como em cada uma estava fincada uma estação férrea e agência postal” (PRODANOV; MOSER, 2009, p. 7). Esse contexto de rivalidade e de dualidade entre as duas localidades é percebido também nas falas de pessoas entrevistadas. A fundação e a existência do FBC Esperança são, pois, permeados por esse sentimento de dualidade e rivalidade entre os dois bairros, podendo-se dizer


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que não existiria, em especial na década de 1930 e 40, o futebol do FBC Esperança, se não houvesse o seu oponente de Novo Hamburgo, o ECNH (SCHEFFEL, 2010). Assim sendo, faz-se necessário, para reconstruir a trajetória histórica do FBC Esperança, acompanhar de perto a rivalidade entre esses dois clubes. Desde o começo de suas atividades, o FBC Esperança, que também possuía um atuante departamento social, em especial nos anos 1930 e 40, possuía um diferencial em relação aos outros clubes sociais existentes em Hamburgo Velho – a Sociedade Fröshin (atualmente Sociedade Aliança) e a Sociedade Ginástica de Hamburgo Velho. Enquanto a primeira tinha como principal atividade o Canto Coral, a Sociedade Ginástica dedicava-se, além da própria modalidade que denominava a Sociedade, à prática de bolão. O FBC Esperança, por sua vez, também possuía uma atividade cultural relevante, sempre contando, em suas programações oferecidas aos sócios, números musicais e artísticos em maior número do que nas outras agremiações citadas. Outro detalhe interessante da trajetória desse clube é que, ao longo de sua existência, possuiu uma sede social própria e, no início dos anos 1940, inaugurou seu estádio. No entanto, em suas atividades sociais, como bailes de aniversário de fundação e outros momentos de sociabilidade, utilizava as dependências da Sociedade Ginástica, nunca tendo construído um salão social próprio. Concomitantemente a essas atividades de cunho social e cultural, o futebol, principal atividade do FBC Esperança, já nos seus anos iniciais de existência, tomava corpo. Nesse sentido, os jogos de assistência mais concorridos, na recém-emancipada Novo Hamburgo de 1927, consistiam no já “clássico” local entre o FBC Esperança e o ECNH. Como já indicou a crônica esportiva do primeiro periódico local, o jornal O 5 de Abril, que, no dia 05 de agosto do mesmo ano da emancipação hamburguense, publicou a crônica do “renhidíssimo jogo”, pelo returno do campeonato municipal, entre o FBC Esperança e o ECNH, cujo resultado vitorioso do Novo Hamburgo lhe deu- o título de campeão municipal, que enfrentaria, em Caxias do Sul, o Sport Club Juvenil, campeão daquela localidade da serra. Como se pode perceber, o futebol na cidade logo se tornou objeto da apaixonada torcida, acompanhada pela imprensa da época, que registrava, com riqueza de detalhes, essa disputa esportiva.

Rapidamente, o FBC Esperança cresceu em número de associados, contando, já em fins dos anos 1920, com departamentos específicos, como o de futebol, o social e o de atividades culturais, refletindo a organização e a profissionalização dessa agremiação esportiva (ESPERANÇA, 1944). Já na década seguinte, tomando como base os registros disponíveis na imprensa hamburguense da época, entre Esperança e ECNH, decisões de campeonatos municipais muitas vezes foram questionadas por ambos os clubes, no âmbito da AHEA (Associação Hamburguesa de Esportes Amadores), criada em 1935, com o objetivo de regular e mediar as disputas entre os diversos clubes futebolísticos existentes na cidade, à época, e que disputavam o Campeonato Municipal, principal certame da cidade. Um passo importante dentro do crescimento do FBC Esperança como clube de futebol foi a aquisição, em 1934, de uma área de terra, localizada evidentemente em Hamburgo Velho, com a finalidade de abrigar o estádio do clube. Com efeito, nove anos depois, em 28 de junho de 1942, inaugura-se o estádio 10 de maio, em alusão à data de fundação do clube (ESPERANÇA, 1944).

Figura 1 - Fotografia da inauguração do Estádio 10 de maio, em 1942 Fonte: álbum comemorativo dos 30 anos do fbc esperança, 1944

A imagem mostra o momento de inauguração, em que autoridades municipais e a sociedade de Hamburgo Velho maçicamente prestigiaram a inauguração do novo campo, considerado, segundo a imprensa da época, um “portentoso” e imponente campo de jogo (O 5 DE ABRIL, 1940). A partida oficial de inauguração do novo estádio 87


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foi contra o Grêmio Foot-ball Porto-alegrense, cujo placar marcou 2x1 para o time da casa. Um aspecto relevante de se levar em consideração é o relacionamento cordial que havia entre o Grêmio e o FBC Esperança, tendo as duas equipes disputado muitos jogos amistosos, sempre em clima de amenidade (O 5 DE ABRIL, 1940). O clube, desde seu início, teve um quadro esportivo dividido em juvenis, aspirantes e profissionais, divididos em primeiro e segundo quadros, de forma que das categorias profissionais do FBC Esperança saíram grandes profissionais de futebol (FEIJÓ, 2009). Dentre eles, destacam-se o center-forward – a denominação de centroavante, até os anos 1950, pela crônica esportiva – Geada, que começou sua carreira no Esperança e teve grande destaque na equipe do Grêmio Portoalegrense, na década de 50 – esse jogador foi considerado um dos maiores jogadores do time da capital gaúcha. Da mesma maneira, o técnico Osvaldo Rolla começou sua carreira de técnico comandando o FBC Esperança, nos anos 1950, e fez grande sucesso no Grêmio de Porto Alegre na década seguinte, inaugurando um novo estilo de técnico de futebol (OSTERMANN, 2000). Um dos pontos altos da trajetória futebolística dessa agremiação futebolística foi a conquista do título de Campeão do Interior, semelhante ao atual campeão do primeiro turno, do Campeonato Gaúcho, em meados dos anos 1950. No entanto, no início da década de 1960, o FBC Esperança começou a entrar em declínio. A grande competitividade do meio futebolístico, já na época, fazia com que somente os times da capital do estado, Grêmio e Internacional, possuíssem condições financeiras e técnicas para competir de igual para igual com equipes do centro hegemônico do país. Já em finais da década de 1950, os torneios interestaduais começavam a se popularizar, não dando muita margem de atuação para clubes de cidades de menor relevância esportiva, como no caso do FBC Esperança. Na visão de um depoente: Porque o Esperança e o Novo Hamburgo eles [os dirigentes] se esqueceram, perderam o bonde da história. Chegou um momento que a dupla Gre-nal começou a vender bandeirinhas aqui na rótula da [Rua] 07 de setembro, nem tinha rótula nem tinha 07 de setembro, mas ali era uma

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entrada pra Novo Hamburgo. Então pra não ficar mais aqui no centro, onde haveria perigo, começaram a vender bandeirinhas do Grêmio e do Internacional [...] (FEIJÓ, 2009).

Essa atividade mais agressiva e profissional de publicidade gerou maior penetração dos times da capital em Novo Hamburgo, cooptando, assim, um maior número de torcedores, fazendo com que o ECNH e o FBC Esperança lentamente começassem a perder torcedores e, consequentemente, espaço nas disputas esportivas. Nesse contexto de paulatino enfraquecimento do futebol na cidade, o FBC Esperança, em 1964, encerrou as atividades profissionais de futebol. Além da situação já citada, outro fator importante que determinou esse declínio foi a venda do Estádio 10 de Maio em 1974, em virtude do alto endividamento fiscal e previdenciário do Clube, deixando a agremiação em situação de quase insolvência, conforme um depoente (SCHEFFEL, 2010). 3 Considerações finais O futebol configurou-se, nos primeiros anos do XX, numa paixão lúdica fascinante para os jogadores e os espectadores; era um esporte com regras claras, simples e que necessitava de pouco equipamento para ser praticado e assistido por contingente relativamente grande de pessoas. A formação do FBC Esperança, em 1914, deu-se no núcleo inicial de ocupação de Novo Hamburgo, no bairro de Hamburgo Velho, como contraponto do Esporte Clube Novo Hamburgo, que teve suas atividades iniciadas três anos antes na região central da cidade. Nesse sentido, cabe destacar que a formação do ECNH se deu por trabalhadores de fábricas da região central de Novo Hamburgo, especialmente da Fábrica de calçados Sul-riograndense. Enquanto isso, o FBC Esperança, que se tornou o maior rival do ECNH, surgiu como um clube que também era integrado por segmentos populares, mas subsistia à presença da elite comercial e industrial local. Nesse sentido, a dualidade existente entre as localidades de Hamburgo Velho e a região central da cidade não ficou apenas circunscrita às atividades futebolísticas. Nos aspectos referentes à sociabilidade e a facilidades urbanas do então 2º distrito de São Leopoldo, como agências postais e


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estações ferroviárias, evidenciava-se uma disputa entre essas duas regiões hamburguenses. O desenvolvimento de uma infraestrutura urbana, propiciado pelo nascente ciclo de crescimento do setor coureiro-calçadista, que se verificou em Novo Hamburgo a partir da década de 1890, gerou um sentimento de modernidade para a cidade. Em outros termos: a cidade sentia-se – usando aqui a expressão de Selbach (1999) – moderna, em consonância com os avanços técnicos, industriais e urbanísticos que ocorriam nas principais cidades brasileiras e na próxima capital do estado, Porto Alegre, durante o final dos oitocentos e os primeiros decênios do século XX. Dessa maneira, a relevância do futebol, na mais importante - economicamente falando - cidade da região colonial alemã do Rio Grande do Sul, mostra que o futebol não se configurava somente como uma prática esportiva ou de lazer de massa. O desenvolvimento das atividades futebolísticas em Novo Hamburgo, no caso específico a trajetória histórica do FBC Esperança, foi um dos elementos construtores do discurso de modernidade que se elaborou na cidade ao longo da primeira metade do século XX. O futebol, ao lado da riqueza advinda do couro e do calçado, também pode ser compreendido como um dos elementos “modernizadores” da cidade nesse momento histórico. Assim, o jogo da pelota pode, finalmente, servir como um elemento novo dentro da compreensão do processo da construção da identidade hamburguense nesse período, marcada fortemente pelo ideário da modernidade. REFERÊNCIAS BEHREND, Martin Herz. O 5 de Abril: o primeiro jornal de Novo Hamburgo. Novo Hamburgo: [s.n.], 2002. ESPERANÇA, Foot-ball Club. Álbum comemorativo dos 30 anos do FBC Esperança, 1944, 64 f. Mimeografado. FEIJÓ, Alceu Mário. Depoimento [jul. 2009]. Novo Hamburgo: 2009. GERTZ, René. O perigo alemão. Porto Alegre: UFRGS, 1991. Série síntese rio-grandense.

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GLEE NA ERA DA CONVERGÊNCIA: MEMÓRIA, INTERATIVIDADE E HIPERTEXTUALIDADE

Aline Streck Donato1 Resumo Sob a ótica da convergência midiática, o presente trabalho realiza suas considerações acerca do canal da série televisiva “Glee” hospedado no site da emissora Fox, com o intuito de identificar e contextualizar como se dão os processos de construção da memória social dos usuários, interatividade e a hipertextualidade. Palavras-chave: Convergência. Glee. Memória. Interatividade. Hipertextualidade. Abstract From the perspective of media convergence, this paper carries out its considerations about the channel of the television series “Glee” hosted on the website of broadcaster Fox, in order to identify and contextualize how to give the construction processes of social memory, interactivity and hypertextuality. Keywords: Convergence. Glee. Memory. Interactivity. Hypertextuality.

1   Jornalista e Mestre em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale, graduada em Jornalismo pela Unipampa, bolsista CAPES/PROSUP, bolsista de Aperfeiçoamento Científico da Universidade Feevale. Contato: alline. donato@hotmail.com. Trabalho orientado por Paula Regina Puhl – PUCRS.

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1 Introdução A convergência midiática já não é novidade na sociedade. Hoje é comum que a televisão transmita vídeos retirados da internet e que produtos televisivos sejam disponibilizados na rede. Sob o viés da convergência televisão/internet, o presente trabalho realizará suas considerações a partir de um produto cultural transmitido por essa fusão, tendo como objetivo geral compreender como se dão a apropriação e os usos que os usuários fazem a partir dos textos transmitidos, apreciando as possibilidades de interação, hipertextualidade e preservação da memória social de grupo. Assim, será analisado o canal da série de televisão americana Glee transmitido e suportado pelo site da TV online da emissora Fox. Foi escolhida a análise empírica de caráter teórico-prático para ser aplicada no corpus. 2 Fundamentação teórica Jenkins (2009) designa convergência como fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas das mídias, assim como a cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e o comportamento “migratório” dos públicos dos meios de comunicação. Segundo ele, o usuário, hoje, vai a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que deseja. O poder destinado ao receptor não se limita a apenas escolher o horário e o produto midiático que irá consumir na convergência. Ele pode opinar, orientar e formar laços sociais com consumidores iguais a ele, além de estabelecer uma relação de mão dupla com os produtores de mídia. A convergência não se concretiza sem a participação dos atores sociais. Para Jenkins, é como se a função de “curador da convergência” fosse atribuída ao usuário, sendo que é para ele e através dele que a fusão dos meios se configura e alcança o êxito pretendido pelos conglomerados midiáticos. Quando se aborda o tema da convergência entre a televisão e a internet, estabelecem-se como ferramentas a interatividade, a democratização dos produtores, os conteúdos colaborativos, os horários de programação, a escolha do usuário e as ferramentas para que os receptores se expressem. Tais aparatos permitem que exista, através da relação produtor/receptor, uma maior eficácia na recepção do conteúdo veiculado.

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Carlos Tourinho (2009, p. 140) comenta que a audiência da televisão começa a ver de perto o perigo do crescimento da Internet. “O horário em que os jovens mais acessam a rede (das 18 horas às 20 horas, segundo os institutos de pesquisa) já está afetando a audiência de alguns programas de televisão aberta”. A convergência surge como uma alternativa para que a televisão eleve sua audiência, mesmo que os produtos sejam exibidos pela plataforma web. Dessa maneira, ela não perde seus telespectadores e consegue, com a web, além das grandes audiências genéricas, atingir um público cada vez mais segmentado. 3 Interatividade, hipertextualidade e memória na convergência De acordo com Lévy (2003), interatividade são as conexões e as reinterpretações produzidas ao longo de zonas de contato pelos agenciamentos e pelas bricolagens de novos dispositivos que uma multiplicidade que atores realiza; e Primo (2008) acredita que os intercâmbios mantidos entre dois ou mais integrantes (seres vivos ou não) serão sempre considerados como formas de interação. Cannito (2010) entende a interatividade como a interferência direta que causa no espectador a impressão de que está no comando de um jogo. Já nos seus primórdios, a televisão se empenhava em criar tal sensação e, hoje, a interatividade do ambiente digital ajuda a potencializá-la, ou seja, a efetivar o caráter da televisão. Como abordado anteriormente, a interatividade é uma das principais características resultantes da convergência midiática entre televisão e internet. No produto convergente entre os dois meios, observa-se que a interatividade se dá por intermédio de ferramentas como “comentários”, “dê sua sugestão”, enquetes e as possibilidades de compartilhamento e comentários através das redes sociais. O produto cultural passa a agregar outro significado para o usuário, sendo que este tem “voz” frente aos produtores de conteúdo e atores sociais que, como ele, consomem o que é emitido. Por hipertextualidade, Bittencourt (1996) fala que é a significação de um texto que está dispersa ao longo da cadeia de significantes; um significante me conduz a outro e este a um terceiro e assim sucessivamente; assim significações anteriores são modificadas por outras posteriores.


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Conforme Fachinetto (2005), o hipertexto é um processo de leitura/escrita não linear e não hierarquizada que permite o acesso ilimitado a outros textos de forma instantânea. Possibilita ainda que se realize uma trama, ou rede de acessos sem seguir, necessariamente, sequências ou regras. Para Pierre Lévy (1993), um hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos, sequências sonoras, documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos. Do ponto de vista funcional, o autor afirma que um hipertexto é um tipo de programa para a organização de conhecimentos ou dados, a aquisição de informações e a comunicação. Em produtos da convergência midiática, a importância do hipertexto se dá pela possibilidade de guiar o usuário através de conteúdos fornecidos pela mídia, além de se fazer ser visto por ele. Dessa forma, quanto mais completo for o produto no quesito de conteúdo, maior será sua popularidade frente aos consumidores. Quando se aborda o tema da construção da memória social, Halbwachs (2006) argumenta que a primeira fonte de informação provém de nossas próprias concepções sobre o acontecimento, mas, em outro lado, sempre seremos influenciados pela coletividade. De acordo com o autor, nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso acontece, conforme ele, porque jamais estamos sós (2006, p. 30). Em contraposição à ideia de Halbwachs, Pollak (1992) fala que a construção da memória se dá através de um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Porém, de uma forma similar, ele aproxima sua teoria com a de Halbwachs, quando diz que os elementos constitutivos da memória são aqueles vividos pessoalmente ou por tabela; pessoas/ personagens; e lugares. A coletividade, então, se faz a partir do resultado de reflexos das experiências passadas por outras pessoas com as quais tivemos contato. Com a convergência dos meios, tem-se um elemento que pode propiciar tal fenômeno: as ferramentas de interatividade. A partir delas, os usuários que consomem o produto midiático (entende-se aqui como um grupo ou uma coletividade aproximados

por um interesse em comum) podem estabelecer as relações necessárias para a constituição de uma memória social de grupo, seja por intermédio de seus comentários, suas opiniões ou sugestões que são deixadas no produto convergente. 4 Metodologia e análise Como corpus do presente trabalho, foi escolhido o canal de vídeos da série Glee suportados pela TV online2 da emissora Fox. No site são retransmitidos todos os episódios que passaram na TV, além de exibir enquetes, informações, fotos, vídeos extras, descrição dos personagens, testes, walpapers, avatares da série, clipes e a aba sugestões, local onde o usuário pode dar sua opinião acerca da série e do site. De acordo com Junckes (2011), Glee é uma comédia musical que retrata o dia a dia de uma escola pública americana. A série retrata a vida de adolescentes do ensino médio que se encontram em fase de descobrimento e que constantemente estão em situações de preconceito, baixa estima, busca constante pela popularidade, exclusão e outras situações. A série de TV Glee é exibida nos Estados Unidos e no Brasil pela emissora de TV por assinatura FOX, sendo produzida por Ryan Murphy Television em associação com a 20th Century Fox Television. Já ganhou importantes prêmios da indústria televisiva, tais como o Golden Globe Awards e People’s Choice Awards, em 2010, por melhor série de comédia, e, em 2009, em sua estreia no Emmy, recebeu 19 indicações de prêmios. O canal Glee, na TV online da emissora Fox, apresenta, por meio de suas funções e ferramentas, diversas possibilidades de interação entre produtores/ receptores de conteúdo, assim como entre receptores/receptores. Na página inicial do canal, uma enquete já comprova tal assertiva. No dia 20 de agosto de 2011, a pergunta para debate era: “Qual foi o momento mais emotivo da série?”, apresentando logo abaixo as opções “Quando Kurt visitou seu pai no hospital”; “Quando a irmã de Sue morreu” ou “A derrota nas regionais”. Quando se clica na opção “veja resultados”, é mostrada ao usuário a estimativa dos votos já efetuados, sendo que nesse dia a opção “Quando a irmã da Sue 2

http://www.mundofox.com/glee. 93


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morreu” estava em vantagem, com 5.599 votos, seguida por “A derrota nas regionais”, com 2.155 votos e, por último, “Quando Kurt visitou seu pai no hospital”, com 1.605 cliques. Por intermédio da enquete, os produtores ficam sabendo a opinião dos usuários e, ao ter contato com a prévia de resultado, os usuários conhecem a opinião de outros participantes como eles. Na aba vídeos, a interatividade se dá através do compartilhamento do link do vídeo assistido, assim como na possibilidade de twittar3 ou curtir pelo Facebook4. Os testes, como “Com qual personagem você se parece”, “Teste seu estilo musical” e “Crie seu estilo Glee”, também denotam a interatividade do canal. Outra importante forma de participação do usuário se encontra no link sugestões, que, de acordo com o próprio site, “É um fórum de feedback para que você nos conte o que tem em mente. Vá lá e seja ouvido!” Quanto ao hipertexto, pode-se dizer que praticamente toda função dentro do canal remete a um link que direciona para outro conteúdo. Alguns exemplos de hipertextualidade podem ser percebidos pelos links “veja mais”, “assista outros vídeos”, “confira agora”, “destaques”, “outras fotos”, etc. Por intermédio do compartilhamento de conteúdo, opiniões, sugestões, enquetes, fóruns e outras ferramentas, há a possibilidade de uma preservação da memória de grupo (nesse caso, formado pelos usuários do canal), quando se leva em conta que o contato entre eles estabelece uma relação de pertença, consolidando uma aproximação entre os membros. Por se tratar de uma plataforma em que os comentários e os compartilhamentos não são perdidos e, sim, ficam armazenados em códigos da internet, fica fácil e acessível aos membros do grupo uma aproximação constante daquilo que fica entendido como a sua memória social. Finalmente, percebe-se, nesse tipo de plataforma digital, a potencialidade para abrigar ferramentas que possuem tamanha importância no desenvolvimento de um novo sistema cultural, sendo que elas estabelecem um novo padrão

3  Utilizando o twitter (rede de relacionamento de mensagens com até 140 caracteres). 4   Rede de relacionamento da internet.

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no consumo de vídeos, pois dão ao usuário a possibilidade de também ser inserido no processo criado. Se, com a televisão, o usuário era passivo, hoje, com a internet, ele “vira o jogo” e passa a ser também um formador de opinião. 5 Considerações finais A convergência, ao contrário dos meios de comunicação, é democrática. Os receptores têm a possibilidade de se comunicar melhor e, consequentemente, diminuir os vazios informativos, possibilitando uma melhor convivência social. A inovação que se dá através dessas práticas quebra fronteiras, mostrando técnicas que diariamente se renovam e aperfeiçoam em uma sequência cada vez mais veloz. O ciberespaço adquiriu o status de espaço da convergência, pois consegue abarcar todas as demais mídias. Transformou-se, assim, em um lugar de evolução, sendo que as inovações de seu contexto proporcionam respostas úteis e diversas para o futuro modelo do consumo de produtos culturais. Observou-se pela análise que a convergência se faz eficiente para o consumo de produtos culturais. Mesmo que à primeira vista pareça que se está assistindo a um produto televisivo em outra plataforma, as possibilidades de interação quebram essa percepção. A interação que se dá através das ferramentas dispostas pela interface do site faz com que se perceba que estamos em uma nova era, na qual a opinião do público é importante. Na análise realizada acerca do canal Glee na TV online da emissora Fox, nota-se que há uma constituição de grupo de usuários que possuem a mesma identificação e, consequentemente, no futuro, terão a mesma construção de passado. As memórias que tais membros terão serão baseadas também em perspectivas de outros membros, apoiando-se mutuamente em suas recordações. A hipertextualidade e a interatividade presentes na plataforma web diferenciam do conteúdo transmitido pela televisão. Ali o usuário tem voz e opinião, é ouvido pelos produtores de conteúdo e pode escolher quando e como vai consumir o produto cultural. Nasce, assim, uma era de democracia midiática.


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Referências AQUINO, Maria Clara. Redes Sociais como ambientes convergentes: tensionando o conceito de convergência midiática a partir do valor visibilidade. In: SIMPÓSIO NACIONAL DA ABCiber, 4., 2010, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. CANNITO, Newton. A televisão na era digital: interatividade, convergência e novos modelos de negócio. São Paulo: Summus, 2010. FACHINETTO, Eliane. O hipertexto e as práticas de leitura. Revista Eletrônica de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura, Ano 02, n. 3. 2005. ISSN 1807-5193. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006, p. 29-70. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009. JUNCKES, Rafael. Glee e a cultura da mídia: a ideologia do produto cultural. In: CONGRESSO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO SUL, 12, 2011, Londrina. Anais... Londrina: GT Jornalismo, 2011. KIELING, Alexandre. A performance como referente nos gêneros televisuais. In: ENCONTRO DA COMPÓS, 20., 2011, Porto Alegre. Anais... Grupo de Trabalho Estudos de Televisão, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.

LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. MACIEL, Pedro. Jornalismo de televisão: normas práticas. Porto Alegre: Sagra: DCLuzzato, 1995. PINHO, J.B. Jornalismo na internet: planejamento e produção da informação online. São Paulo: Summus, 2003. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 03, p. 03-15, 1989. PRIMO, Alex. Hipertexto cooperativo: uma análise da escrita coletiva a partir dos blogs e da Wikipédia. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DA COMUNICAÇÃO, 7, 2003. Anais... PUC/RS: GT Tecnologia do Imaginário e Cibercultura, 25 ago. 2003 PRIMO, Alex. Interação mediada por computador. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2008. SILVA, Marco. Sala de Aula Interativa. 4. ed. Rio de Janeiro: Quartet, 2007. TOURINHO, Carlos. Inovação no telejornalismo: o que você vai ver a seguir. Vitória: EspaçoLivros, 2009.

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A CRÍTICA SOCIAL MACHADIANA INSCRITA EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS E MEMORIAL DE AIRES

Simone Maria dos Santos Cunha1 Juracy Assmann Saraiva2 Cléber Cristiano Prodanov3 RESUMO O texto literário, como manifestação artística, remete ao contexto estético, histórico e cultural em que foi produzido. Nesse sentido, as referências espaciais contribuem para a instalação da verossimilhança textual e traduzem significações simbólicas, expressando ritos e valores sociais. Este artigo busca explicitar a importância da representação da espacialidade em dois romances machadianos como fator de inter-relação entre as narrativas e o espaço a que elas se reportam, recurso que possibilita depreender a crítica social à sociedade carioca do final do século XIX. Dessa forma, menciona a significação que a transposição de menções à espacialidade do Rio de Janeiro e a objetos introduz nessas narrativas, bem como valores socioculturais e a avaliação da sociedade que eles conotam. Como referencial teórico são utilizados autores que discutem questões referentes à Teoria da Literatura, à Narratologia, à problemática da cultura, à relação entre literatura e sociedade e à história do Rio de Janeiro. A análise, cujo método é interpretativo, mostra que Machado de Assis não é um mero descritor de cenários, mas um acurado crítico que, ao inscrever o Rio de Janeiro do século XIX nos romances que são corpus dessa análise, se posiciona diante de seu contexto e o avalia. Palavras-chave: Literatura. Narrativa. Machado de Assis. Cultura. abstract The literary text, as an artistic manifestation, remits to the aesthetic, historical and cultural context in which it was produced. In this point of view, the spatial references contribute to install verisimilitude and translate symbolic signification, expressing rites and social values. This article approaches to make explicit the importance of the spatial representation in Memórias Póstumas de Brás Cubas and Memorial de Aires as an interrelation fator between the naratives and the space to wich they report, resource that anables to infer cultural aspects of the carioca society in the end of the XIX century. Thus, it investigates the meaning that the transposition of mentioning Rio de Janeiro’s spatiality and objects introduces in these narratives, as well

Mestre em Processos e manifestações culturais pela Feevale, graduada em Letras pela UNISINOS, voluntária no Grupo de pesquisa Linguagens e manifestações culturais da Feevale. E-mail: smcunha@gmail.com 2   Pós-Doutora em Linguística, Letras e Artes pela UNICAMP. Coordenadora do Mestrado e líder do Grupo de pesquisa Linguagens e manifestações culturais da Feevale, bolsista de produtividade em pesquisa CNPq. E-mail: juracy@feevale.br 3  Doutor em História Social pela USP, professor e pesquisador do grupo Cultura e memória da comunidade da Universidade Feevale, Secretário de Ciência, Inovação e Desenvolvimento Tecnológico do Rio Grande do Sul. E-mail: prodanov@feevale.br 1

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as, the sociocultural values that they connote. Authors who discuss questions related to Literature Theory, Narratology, culture problematic, relation between literature and society and those who concern about Rio de Janeiro’s history are refered. The articles’ method is interpretative and points out that Machado de Assis is not a mere scenery describer, but an accurate critic that, when inscribing Rio de Janeiro of the XIX century in the novels that are corpus of this analysis, places himself in front of its context and evaluates it. Keywords: Literature. Narrative. Machado de Assis. Culture.

1 INTRODUÇÃO Este artigo se constitui em um recorte da dissertação de mestrado denominada O Rio de Janeiro inscrito em memórias ficcionais: Memórias Póstumas de Brás Cubas e Memorial de Aires, cujo tema é a crítica social instaurada por Machado de Assis em seus romances por meio do trabalho minucioso com a linguagem. A análise da forma com que ele utiliza as referências espaciais e as menções a objetos como índices e informantes que possibilitam ao leitor o preenchimento de lacunas no texto, bem como a contextualização da época em evidência em cada um dos romances, justifica o artigo, porque revela a importância da análise literária nos estudos histórico-culturais. O texto literário, como manifestação artística, remete ao contexto estético, histórico e cultural em que foi produzido. Nesse sentido, as referências espaciais contribuem para a instalação da verossimilhança textual e traduzem significações simbólicas, expressando ritos e valores sociais. O objetivo deste artigo é explicitar a importância da representação da espacialidade em Memórias Póstumas de Brás Cubas e em Memorial de Aires como fator de inter-relação entre as narrativas e o espaço a que elas se reportam, recurso que possibilita depreender aspectos culturais da sociedade carioca do final do século XIX. Dessa forma, ele investiga a significação que a transposição de menções à espacialidade do Rio de Janeiro e a objetos introduz nessas narrativas, bem como os valores socioculturais que eles conotam. A pesquisa, cujo método é interpretativo, partiu da hipótese de que, em Memórias Póstumas de Brás Cubas e em Memorial de Aires, as referências espaciais introduzem significações simbólicas e de que essas revelam transformações do contexto sociocultural, quando se considera o momento de produção que distancia uma obra da outra. 98

O confronto entre textos do autor produzidos em épocas distintas demonstrou que Machado de Assis não é um mero descritor de cenários, mas um acurado crítico que, ao inscrever o Rio de Janeiro do século XIX nos romances que são corpus dessa análise, se posiciona diante de seu contexto e o avalia. A crítica social machadiana que se sobressai na análise do tratamento dado à espacialidade elucida o problema de pesquisa e demonstra que as referências espaciais utilizadas por Machado introduzem significações simbólicas, as quais, por sua vez, revelam elementos do contexto sociocultural. 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA A razão da escolha de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Memorial de Aires (1908) como corpus de análise é o intervalo de vinte e sete anos entre a produção de uma e outra narrativa, que possibilita a observação das mudanças no retrato da sociedade carioca, por meio da comparação das referências espaciais citadas em cada uma delas. Como referencial teórico, são utilizados autores que discutem questões referentes à Teoria da Literatura, à Narratologia, à problemática da cultura, à relação entre literatura e sociedade e que tratam da história do Rio de Janeiro. A bibliografia utilizada para chegar à compreensão e à interpretação dos resultados abrange os teóricos Roland Bourneuf e Real Ouellet, Osman Lins, Antônio Dimas, José Luiz Fiorin e Jean-Pierre Vernant, na investigação dos processos composicionais da narrativa; Gastón Bachelard, no estudo das significações de objetos e lugares na textualidade; Raimundo Faoro, John Gledson, Alfredo Bosi, Juracy Assmann Saraiva, Hélio Guimarães, Luiz Roncari, Marta de Senna, Eunice Piazza Gai e Biaggio D’ Angelo, no aprofundamento de questões relativas à obra de Machado de Assis; Roque de Barros Laraia, Stuart


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Hall, Alfredo Bosi e Leyla Perrone-Moisés, no que se refere aos aspectos culturais e artísticos; Antônio Cândido e Alfredo Bosi, no estabelecimento de relações entre literatura e sociedade; Gilberto Freyre e Fréderic Mauro, na análise do Brasil no tempo do Império, dentre outros. Os estudos de Bachelard, de Bourneuf e Ouellet, de Lins, de Dimas, de Fiorin e de Vernant trazem contribuições para a análise espacial de um texto. Bachelard cria a topoanálise e examina o valor dos espaços a partir da casa e dos objetos que a compõem, pois ela se constitui no canto de enraizamento do mundo de cada indivíduo, no centro do espaço íntimo de cada um. Bourneuf e Ouellet afirmam que o espaço se exprime de tal forma em sua multiplicidade de sentidos que, por vezes, se constitui na razão de ser da obra, pois ele confere à narrativa, simultaneamente, unidade e movimento. Eles explicam também que o espaço está vinculado ao tempo e que a personagem faz parte de uma rede de relações da qual os lugares e os objetos não podem ser excluídos. Osman Lins aprofunda o estudo da espacialidade ao delimitar a distância entre espaço e ambientação e sistematizar os tipos de ambientação a partir das relações entre o espaço e o fluxo da narrativa. Antônio Dimas aborda diversas linhas de estudos do espaço nas quais se incluem o verismo fotográfico e a obsessão geográfica. Fiorin considera a relação entre o espaço da enunciação e o do enunciado e suas projeções semânticas e aponta a necessidade de pesquisas sobre o espaço e sua sintaxe. Em uma perspectiva na qual a literatura, como manifestação cultural, representa simbolicamente, pelo olhar da espacialidade, as mazelas, os valores e a evolução de uma sociedade, os autores elencados constituíram a base da análise dos romances Memórias Póstumas de Brás Cubas e Memorial de Aires, de Machado de Assis. 3 METODOLOGIA A pesquisa bibliográfica e seu método críticointerpretativo perseguiram a concretização dos objetivos propostos e elucidaram o problema de pesquisa. A metodologia aplicada foi a proposta de Juracy Assmann Saraiva, baseada na Estética da Recepção, que, sob o ângulo de Wolfgang Iser (1996, p. 10), centraliza a análise “na interação entre o texto e o mundo extra-textual”, abstendo-

se da visão do “texto literário como alegoria da sociedade” (ISER, 1996, p. 10). Saraiva (2006, p. 36) propõe a “participação ativa do leitor, que deve transitar dos princípios constitutivos próprios do texto para o contexto extraliterário; do mundo da significação textual para o sentido do mundo; da leitura crítica para a avaliação estética do texto”. Portanto, ao investigar a significação que a transposição da espacialidade do Rio de Janeiro introduz nos romances citados, explicita-se a importância da representação da espacialidade como fator de inter-relação entre a obra literária e o espaço social a que ele se reporta, recurso que possibilita depreender aspectos culturais dessa mesma sociedade. 4 ANÁLISE Em Memórias Póstumas e em Memorial de Aires, os narradores-protagonistas fazem do papel e da pena uma extensão da sua subjetividade, inscrevendo também em suas memórias o modo de ser e de agir da sociedade. Entretanto, no âmbito do espaço, enquanto, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, predominam as menções a lugares públicos do Rio de Janeiro, em Memorial de Aires, os espaços íntimos são privilegiados. A distância ou a proximidade que o narrador tem dos fatos relatados influi no tratamento dado à espacialidade, pois enquanto a morte liberta Brás para que ele possa reavaliar a trajetória de sua vida, a aposentadoria confina Aires ao seu bairro e à recomposição de seu trânsito pela cidade. Brás está livre para revisitar todos os lugares que marcaram sua vida e escrever sem pejo tudo o que quer; Aires está preso a um duplo dilema: não pode revelar tudo o que viveu e o que pensa, porque a crítica social ainda o preocupa, e não pode viver a vida em sua plenitude, porque a velhice o impede. Assim, ambos percorrem trajetórias circulares nas quais o ponto de partida e de chegada é o mesmo: o cemitério, ou, o ponto de encontro da vida com a morte, no qual é possível decifrar a alma humana. O defunto-autor Brás, ao desvendar máscaras, confere seus defeitos e erros à sociedade da qual fez parte e à própria natureza humana, como observa Saraiva: Brás Cubas, quando evoca a totalidade de sua vida em busca da auto-revelação, expõe uma conduta individual, dimensionando-a,

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porém, pelas circunstâncias sociais. [...] A interiorização não o induz a atenuar seus defeitos, mas a explicá-los como decorrentes das forças determinísticas vigentes na malha social e, sobretudo, na natureza do homem (SARAIVA, 2009, p. 50).

Portanto, segundo a autora, ao retomar sua vida, ele cumpre a “finalidade das Memórias – conhecer para julgar” e, “como o conhecimento recapitulativo lhe mostra sua face multiplicada entre os homens, seu julgamento também os contamina” (SARAIVA, 2009, p. 51). O olhar de Brás perpassa as festas de luxo, os teatros, os bailes na corte, as festas populares, as viagens à Tijuca e à Europa, as compras na Rua do Ouvidor e na dos Ourives, os passeios pela cidade em seges ou carruagens, a Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro. Entretanto, ele também expõe, em contraponto, em meio ao luxo e à riqueza, o drama da escravidão, a exploração do homem pelo homem, a ganância e o desejo de nomeada. O narrador de Memorial de Aires também escreve seu relato como um observador da sociedade do Rio de Janeiro do século XIX, embora a época seja outra e a ambientação já não configure uma atmosfera de morte, mas apenas mostre a imobilidade e a impotência do ser humano quanto à velhice e à proximidade do findar da vida. A ambientação romanesca de Memorial de Aires, que se vincula ao círculo de amizades de Aires, que converge para pessoas idosas, com exceção de Tristão e de Fidélia, fica restrita. Assim, ela se revela pelas visitas e pelos serões em casas de famílias e ao cemitério; pelas idas ao Banco do Sul para conversar com Aguiar; pelos passeios por ruas dos bairros nobres da zona sul, Flamengo e Botafogo; por algumas idas ao Bairro Andaraí, na zona norte, e pelas viagens de Petrópolis. Nesse perambular de Aires, assim como em Memórias Póstumas, a Rua do Ouvidor continua sendo referência para compras, mas as seges e as carruagens são substituídas pelos bondes, e as antigas caleças puxadas por mulas, pelo trem. Como eventos históricos, a abolição da escravatura e a festa popular pela aprovação da lei pela Princesa Isabel fazem-se presentes no relato de Aires, mas o fato político é a renovação da Câmara de Portugal. Duas interpretações podem ser abstraídas desse olhar sobre o entorno: a questão

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servil é representada sob um ângulo mais político e econômico do que humano, haja vista o sentido da atitude do Barão de Santa Pia, que contrasta com o da atitude de Prudêncio, um escravo açoitando outro escravo; paralelamente, a preocupação com a estrutura política tampouco se reflete na vida privada de Aires e de seus amigos, uma vez que os protagonistas do Memorial se voltam para as questões que afetam Tristão, cuja candidatura a deputado é mencionada, demonstrando o desconhecimento e/ ou a falta de interesse quanto ao esgotamento do regime monárquico. Portanto, a narrativa expõe o pouco caso da sociedade brasileira para com os escravos libertos, que são lançados à própria sorte, e a apatia diante da falência do sistema político brasileiro. A análise comparativa desses dois romances memorialísticos permite a compreensão do modo de vida e da cultura das sociedades do primeiro e do segundo Império, com a apreciação das mudanças ocorridas em um intervalo de vinte e sete anos de escrita por meio das referências espaciais. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A cultura compreende um conjunto de manifestações, de tradições, de costumes de um povo, revela sua identidade e o integra a um espaço como nação. Em meio às manifestações culturais, a arte da palavra cumpre seu papel de representação ao revelar o olhar do artista sobre a sociedade que o rodeia e expressar sua criatividade e subjetividade. A literatura conjuga o olhar do escritor com o do receptor da obra, para que este possa compreender os sentidos implícitos no texto e aderir à ficção. Aquele, por sua vez, realiza um trabalho de artífice da palavra ao valer-se da funcionalidade dos elementos composicionais da narrativa para tratar temas universais que permitam ao indivíduo enxergar sua realidade por meio da representação ficcional. Machado de Assis é um escritor que revela aspectos da sociedade, particularmente por meio do tratamento que confere à espacialidade, oportunizando aos leitores que compreendam o contexto sociocultural da diegese por meio da ficção. Ele articula as referências espaciais, colocando-as tanto a serviço da significação quanto da revelação do modo de ser e de agir da uma sociedade inscrita em suas narrativas.


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Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, a cidade machadiana desnuda costumes e hábitos do Primeiro e do Segundo Império e mostra a valorização dos bens materiais e da posição social em detrimento do ser humano. Nesse romance, os objetos mencionados, como a velha prataria, herdada do avô, Luís Cubas, as grandes jarras da Índia, as toalhas de Flandres, os castiçais e as arandelas, utilizados no jantar dado pela família Cubas em comemoração à destituição de Napoleão, em 1814, são índices de riqueza e de suposta tradição familiar e do desejo da família de aparecer aos olhos da sociedade e do imperador. Paralelamente, no processo de construção da narrativa, o autor aguça sua crítica social ao introduzir a oposição entre os espaços nos quais Brás Cubas nasceu, viveu e morreu, pois, após a morte, o posicionamento do defunto-autor se inverte. A morte o liberta da preocupação com as aparências sociais e do desejo de nomeada, e a bela chácara do Catumbi passa a se constituir em um valor negativo, atrelado apenas às aparências e ao poder econômico. Por outro lado, o cemitério, a que a morte remete, passa a se configurar num espaço positivo, de libertação, conforme já foi constatado por Juracy Assmann Saraiva em seu estudo sobre o estatuto do narrador em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Ao passar da vida para a morte e dispor da possibilidade de avaliar os seus atos ao escrever suas memórias do além-túmulo, Brás atinge um discernimento tal que não observa apenas a si próprio, mas a toda a sociedade que o rodeia. Suas lembranças se conjugam a partir dos espaços vividos e dos objetos que caracterizam as personagens e as revelam em seu íntimo. A partir da revelação do modo de ser e de agir de cada personagem e da análise das referências espaciais que contribuem para a significação da narrativa, Machado de Assis desnuda a sociedade imperial do Rio de Janeiro do século XIX. Em Memorial de Aires, ele também revela a sociedade carioca, entretanto, sob outro momento histórico: a proximidade da queda do II Império e a abolição da escravatura. Machado revela as atitudes da sociedade por meio do diário escrito pelo conselheiro Aires. Neste, o dia a dia do círculo de amigos de Aires retrata a vida da elite carioca dos anos de 1888 e 1889 e instaura uma crítica social

em relação ao problema da escravidão e ao fato de as pessoas se preocuparem mais com os problemas privados do que com os públicos. O conselheiro não relata os acontecimentos utilizando o recurso da sátira, como faz Brás, mas inscreve em seu relato a melancolia de quem está desencantado com a vida, ainda que finja vivê-la com intensidade. Para que o leitor depreenda a crítica social instaurada no relato de Aires, Machado de Assis se vale de referências espaciais que conferem verossimilhança ao relato e constroem significações que transcendem o espaço textual para se reportar à realidade. Conforme Marta de Senna (2008, p. 74), “Machado de Assis fascinou contemporâneos e os que até hoje lêem sua obra pelo modo como se apropriou do Rio de Janeiro em suas narrativas”. As imagens da espacialidade exprimem “condições ético-existenciais; situações socioculturais; estados emocionais diversos em momentos diferenciados da vida das personagens” (SENNA, 2008, p.74) e desnudam costumes da época do Império no Rio de Janeiro. A cidade machadiana também mostra a valorização dos bens materiais e da posição social em detrimento do ser humano. Consequentemente, a análise aqui efetuada comprova que Machado de Assis não é um romancista sem paisagem, sendo possível contestar comentários de críticos, como Augusto Meyer, que afirmam que ele “Não pintou [...] o Rio do seu tempo, nem a gente, nem o ambiente do seu tempo, senão para poder mais livremente cultivar a sua paixão da análise psicológica, desabafo indireto e velado, às vezes inconsciente, do seu pessimismo” (apud Luciano Trigo, p. 79). Contestando a afirmação de Augusto Meyer, mas complementado-a, pode-se afirmar que isso ocorre porque o trabalho de Machado com a espacialidade não consiste apenas em revelar paisagens, mas, sim, em revelar a vida da sociedade da época inscrita na ficção por meio da composição minuciosa dos elementos espaciais, aliada ao discurso aliciante do narrador. Portanto, a cidade que se re-vela nos romances de Machado de Assis expõe a cultura de uma época, mas é capaz de transcendê-la pelos traços de humanidade que a ilustram e que a todos atingem pelo harmonioso encontro entre fantasia e realidade.

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Formação Continuada de Professores em Ambiente Virtual de Aprendizagem: Possibilidades de Ação e Reflexão para a Prática Inclusiva

Sandra Maria Koch1 Patrícia Brandalise Scherer Bassani2 RESUMO Este trabalho analisa a contribuição da formação continuada em ambiente virtual no fazer pedagógico do professor da educação básica da rede pública de ensino, no processo de inclusão de aluno com deficiência. Apresenta os resultados da pesquisa Formação Continuada de Professores para a Educação Inclusiva: Desafios de Aprender e Ensinar em Ambientes Virtuais, elaborada no âmbito do Mestrado Profissional em Inclusão Social e Acessibilidade da Universidade Feevale/Novo Hamburgo, defendida em fevereiro de 2012. O ambiente investigado é o Curso de Formação Continuada de Professores em Tecnologias de Informação e Comunicação Acessíveis, desenvolvido pelo Núcleo de Informática na Educação Especial – NIEE/UFRGS/ UAB/MEC, durante o primeiro semestre de 2011. A opção metodológica da investigação é de natureza epistemológica qualitativa e, do ponto de vista dos procedimentos técnicos, caracteriza-se como pesquisa-ação com abordagem sócio-histórica, apoiando-se nas ideias de Vygotsky (1896-1934). Foram analisadas as publicações de 18 professores cursistas no ambiente TelEduc. A pesquisa se propôs a apresentar subsídios para uma reflexão acerca da relevância da formação continuada de professor em ambiente virtual, como uma alternativa válida e de qualidade para a efetivação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, bem como para a prática reflexiva da ação docente. Palavras-chave: Educação inclusiva. Tecnologia da informação e comunicação. Formação continuada de professor. Ambiente virtual de aprendizagem. ABSTRACT This paper analyzes the contribution of continuing education in a virtual environment, in the pedagogic making of primary education teachers in public schools, in the process of inclusion of disabled students. It presents the results of the research entitled Continuing Education for Teachers in Inclusive Education: Challenges of Teaching and Learning in Virtual Environments, held at the Professional Master of Social Inclusion and Accessibility from Feevale University/Novo Hamburgo, lectured in February 2012. The environment in question is the Course for Continuing Education of Teachers in Information Technology and Accessible Communication, developed by the Center for Information Technology in Special Education - NIEE / UFRGS / UAB / MEC in the first half of 2011. The methodology of the research is qualitative and epistemological, and from a point of view of technical procedures, characterized as action-research with   Mestre em Inclusão Social e Acessibilidade/Feevale/NH/RS. Professora da Rede Pública Estadual de Ensino/RS/BR. sandrakoch20@gmail.com. 2  Professora titular do Mestrado Profissional em Inclusão Social e Acessibilidade da Universidade Feevale/NH/BR/; líder do Grupo de Pesquisa em Informática na Educação. patriciab@feevale.br 1

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a socio-historical approach, relying on the ideas of Vygotsky (1896-1934). We analyzed the publications of 18 participant teachers in TelEduc environment. The research aimed to provide subsidies for reflection about the importance of continuous training of teachers in a virtual environment, as a valid alternative for quality and effectiveness of the National Policy on Special Education in the Perspective of Inclusive Education, as well as for reflective practice of teaching action. Keywords: Inclusive education. Information and communication technology. Continuing education of teacher. Virtual learning environment.

1 INTRODUÇÃO Este trabalho analisa a contribuição da formação continuada em ambiente virtual no fazer pedagógico do professor da educação básica da rede pública de ensino, no processo de inclusão de aluno com deficiência. Apresenta os resultados da pesquisa realizada no Mestrado Profissional em Inclusão Social e Acessibilidade da Universidade Feevale/Novo Hamburgo, na linha de pesquisa Inclusão Social, defendida em fevereiro de 2012. A investigação dedicou-se a analisar as reflexões de professores cursistas durante a sua participação no Curso de Formação Continuada em Tecnologias de Informação e Comunicação Acessíveis, desenvolvido pelo Núcleo de Informática na Educação Especial - NIEE/UFRGS, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no primeiro semestre de 2011. O objetivo principal da investigação esteve focado em examinar qual a contribuição da formação continuada em ambiente virtual no fazer pedagógico do professor da educação básica da rede pública de ensino, no processo de inclusão de aluno com deficiência. Buscou-se também verificar os principais obstáculos enfrentados para a efetivação da proposta de formação continuada de professores em ambiente virtual, sob a perspectiva de professores cursistas, identificar quais recursos de tecnologias de informação e comunicação (TIC) são utilizados como ferramentas de mediação da aprendizagem e de inclusão de alunos com deficiência, bem como analisar a interferência da formação de professor em ambiente virtual colaborativo como potencializador de práticas inclusivas. Para atender aos objetivos propostos, a opção metodológica da investigação é de natureza epistemológica qualitativa e, do ponto de vista dos procedimentos técnicos, caracteriza-se como

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pesquisa-ação com abordagem sócio-histórica, apoiando-se nas ideias de Vygotsky. Esta pesquisa se propôs a apresentar subsídios para uma reflexão acerca da relevância da formação continuada de professor em ambiente virtual, como uma alternativa válida e de qualidade para a efetivação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, bem como para a prática reflexiva da ação docente. O presente artigo está organizado em quatro seções. A primeira seção dedica-se à fundamentação teórica sobre o tema investigado. A segunda seção apresenta os contextos, os caminhos, as direções, os cenários, os participantes da investigação e a metodologia. Os resultados e as conclusões estão apresentados nas seções 3 e 4, respectivamente. 2 FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM AMBIENTE VIRTUAL DE APRENDIZAGEM PARA A PRÁTICA INCLUSIVA Os desafios postos à escola pela sociedade da informação, segundo Coll (2010), estão relacionados com a alfabetização digital, as estratégias de aprendizagem, as múltiplas modalidades de comunicação e a busca seletiva de informações em ambientes digitais. Assim, o professor precisa ter habilidades de fazer leitura crítica dos textos e das mídias, capacidade de produção de escrita inteligente e criativa, para poder fazer a mediação didático-pedagógica aos seus alunos na sociedade da informação. As competências exigidas dos professores estão relacionadas ao compromisso com a educação de todos os alunos, de ser capaz de favorecer o seu desenvolvimento social e, ainda, gerenciar a sua própria formação. A formação deve permitir a reflexão sobre a sua realidade e os desafios do cotidiano escolar. Perrenoud (2008) afirma que,


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para ensinar, precisa-se rever o próprio modo de aprender e o modo de construir experiências. Assim, conforme Perrenoud (2008), Coll (2010) e Santarosa (2010), a abordagem pedagógica centrada no professor que fala, explica e ensina e que os alunos devem ouvir e observar em posição passiva não atende às necessidades e expectativas dos estudantes. Trabalhar com aprendizagem envolve um contínuo movimento de reflexão, um reajuste cotidiano de nossos próprios processos. Para que possamos ensinar nossos alunos, precisamos rever nosso próprio modo de aprender, nosso modo de construir experiência. Um processo que se desenvolve resulta em aprendizagem. (PERRENOUD, 2008, p. 166)

O processo de formação possibilita a reflexão sobre a prática e auxilia o professor a teorizar sobre a própria ação, a encontrar respostas, propostas e alternativas pedagógicas que reflitam a realidade da sala de aula e possibilitem que cumpra o seu papel de ensinar a todos os seus alunos, independentemente de qualquer condição (Macedo, 2005; Mantoan, 2006, 2010, 2011). Com o advento da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, inúmeros questionamentos foram formulados, principalmente com o indicativo de que a formação inicial é ampla e insuficiente para ensinar adequadamente os alunos com deficiência, contemplando suas complexidades e especificidades (Mantoan, 2006, 2011; Stainback & Stainback, 2008; Coll, 2010). Assim, cabe aos sistemas de ensino atender ao disposto em legislação e promover ações de formação continuada a todos os professores da educação básica. Para Mantoan (2011, p. 18), “os professores conhecem muito superficialmente o que os aguarda logo que se formam” e ainda complementa: Muito poderia ser evitado se os professores tivessem uma formação direcionada para o estudo dos problemas dos alunos e para a investigação de suas causas; se pudessem vivenciar espaços escolares contextualizados em projeto colaborativos de aprendizagem, nos quais aspectos práticos e teóricos se entrelaçam na construção do conhecimento pedagógico. (MANTOAN, 2011, p. 18)

Para Santarosa (2010), a educação inclusiva traz benefícios para a sociedade e para todos os envolvidos no processo educativo, propondo uma sala de aula e uma escola que ensinam a respeitar, a compreender e admirar as qualidades de todas as pessoas. Essa perspectiva propõe ao professor que seja o sujeito da diferença na escola, ressignificando a sua prática, acreditando em diferentes formas de aprender e de ensinar e também que seja competente em sua ação de ensinar e aprender em processo dialógico. As possibilidades de o professor participar de cursos de formação continuada têm sido ampliadas com o uso da internet para esse fim. Aprender em ambientes virtuais possibilita que o professor esteja conectado às mudanças e necessidades da educação do século XXI. Para Santarosa (2010, p. 29), “no contexto da internet não há mais um pensamento solitário, tornou-se um pensar social”. Assim, os ambientes virtuais apresentam-se como oportunidades para o desenvolvimento de novos saberes, de novas práticas educacionais. A internet possibilita novas formas de comunicação, expressão cultural e sociabilidade. Entre as possibilidades existentes, os ambientes virtuais de aprendizagem (AVA) proporcionam a criação de novos espaços de encontros, trocas, criação e relação que possibilitam (re) criar identidades, práticas culturais, projetos mútuos em processos cooperativos, colaborativos e de trocas (Lévy, 1999; Primo, 2007; Bassani e Bassani, 2010). Um Ambiente Virtual de Aprendizagem – AVA - se caracteriza como um sistema computacional que disponibiliza diferentes ferramentas de interação e comunicação síncrona e assíncrona, como chat, fórum de discussão e envio de arquivos. Entre as possibilidades existentes, os ambientes virtuais de aprendizagem (AVA) proporcionam a criação de novos espaços de encontros, trocas, criação e relação que possibilitam (re) criar identidades, práticas culturais, projetos mútuos em processos cooperativos, cooperativos, colaborativos e de trocas (Lévy, 1999; Primo, 2007; Bassani e Bassani, 2010). Filatro (2004) entende que, no espaço de aprendizagem em ambiente virtual, existem grupos de alunos encorajados e apoiados a explorar suportes de informação, ferramentas de pesquisas, formando comunidades de aprendizagem. Ensinar e mediar a aprendizagem do aluno e de sua 105


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própria formação tem sido alvo de mudanças significativas no contexto do trabalho do professor, influenciadas pelas TIC em um mundo globalizado e informatizado, em que se aprende em qualquer lugar e em qualquer tempo. Palloff e Pratt (2004, p.109), em sua análise sobre o tema, entendem que “usar a tecnologia para aprender exige mais do que conhecer um software ou do que se sentir a vontade com o hardware utilizado”. Isto é, requer capacidade de reflexão, criticidade, identidade, autonomia, criatividade. Aprender em ambientes virtuais possibilita a formação de alunos autônomos, independentes, que buscam e interagem com o grupo de forma colaborativa, apresentando-se como processo ativo que exige responsabilidade, colaboração, discussão, que une pessoas com interesses comuns. O processo de formação continuada em ambiente virtual é momento de conquista de autoria, determinação de caminhos, rotas, percursos, definidos a partir da consciência do professor de sua ação profissional comprometida com o processo de aprender e ensinar (Nóvoa, 2003; Macedo, 2005). Participar de cursos de formação continuada em ambiente virtual, a partir das concepções apresentadas, é ação de responsabilidade individual e coletiva, é decisão de ser autor de sua própria formação, de construção de conhecimento, reflexão sobre a prática, enfim, possibilidade de rompimento com o tradicionalismo do ensino presencial e da construção de um currículo próprio. Demo (2008, p. 7) concebe que os ambientes virtuais são geradores de oportunidades de aprendizagem e formação, principalmente porque “se estabelecem novos horizontes, mais envolventes e de relacionamentos”. De acordo com os autores referendados, mais do que aprender técnicas e conhecimento, a formação continuada em AVA possibilita dar sentido à condição de ser professor e de sujeito da ação, através da reflexão de sua prática, da conquista e do gerenciamento de sua própria formação em processo cooperativo e colaborativo. 3 CONTEXTOS, CAMINHOS, DIREÇÕES, CENÁRIOS, PARTICIPANTES E METODOLOGIA A partir da experiência profissional da pesquisadora como professora da rede pública estadual de ensino, de funções exercidas como coordenação na área da educação especial e

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inclusiva, de professora formadora em cursos de educação a distancia e presencial, apoiada por teóricos que fundamentam esta pesquisa, pretende-se repensar as práticas pedagógicas e o ambiente escolar a partir do uso de TIC. Busca-se refletir também sobre o processo de formação continuada de professor em AVA, como possibilidade de avançar na proposta da escola inclusiva que supera a fragmentação dos saberes e a exclusão social. É nessa direção que esta pesquisa se propõe a apresentar subsídios para uma reflexão sobre a relevância da formação de professor em ambiente virtual, como uma alternativa válida e de qualidade para a efetivação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, bem como para a prática reflexiva da ação docente. A investigação foi desenvolvida a partir do Curso de Formação Continuada de Professores em Tecnologia de Informação e Comunicação Acessíveis NIEE/UAB/UFRGS, estruturado em seis módulos, com duração de 180 horas em ambiente virtual. A população-alvo do estudo é composta por professores cursistas de três turmas orientadas pela pesquisadora, totalizando 71 professores cursistas matriculados no Curso de Formação Continuada de Professores em Tecnologia de Informação e Comunicação Acessíveis/UAB/UFRGS, no período de março a agosto de 2011, assim organizado: a) Turma 1: composta por 22 professores cursistas, sendo 10 do Estado do Amapá, sete do Estado do Rio Grande do Sul e cinco do Estado de Goiás. Desses professores cursistas, seis retornaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE - sendo identificados com as letras A, B, C, D, E e F (Estados: AP; RS). b) Turma 2: composta por 26 matrículas, sendo 13 do Estado do Rio Grande do Sul, seis do Estado de São Paulo, quatro de Santa Catarina e três de Tocantins. Desses, seis retornaram o TCLE à pesquisadora. A identificação dos professores cursistas dessa turma refere-se às letras G, H, I, J, K, L (Estado: SP). c) Turma 3 – composta por 23 matrículas, sendo oito professores cursistas do Estado do Rio Grande do Sul, sete do Estado de São Paulo, cinco da Bahia e três de Santa Catarina. O retorno de TCLE foi de seis cursistas, identificados com as letras M, N, O, P, Q e R, para fins de pesquisa (Estados: RS; BA; SP; SC).


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Para efeito da pesquisa, foram considerados somente os alunos que efetivamente participaram do curso e que retornaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, totalizando 18 professores cursistas. No estudo, a coleta de dados foi realizada por meio das ferramentas selecionadas do ambiente virtual TelEduc/UFRGS, como: perfil, fórum de discussão, diário de bordo, além dos registros em um blog, desenvolvido pelos professores cursistas. A coleta de dados aconteceu no período de julho a agosto de 2011, sendo os instrumentos as intervenções, os registros de mensagens no fórum de discussão e no diário de bordo no ambiente TelEduc e no blog. A proposta metodológica da investigação caracteriza-se por sua natureza qualitativa, que busca descrever e explicar fenômenos humanos e do mundo social. Do ponto de vista dos procedimentos técnicos, a pesquisa caracteriza-se como pesquisaação, que, segundo Nunan (1992, p. 39), “é uma forma de autoquestionamento reflexivo, conduzido por profissionais, com o objetivo de resolver problemas, melhorar sua prática, ou ampliar a sua compreensão de um problema”. A análise da investigação tem abordagem sócio-histórica, apoiando-se nas ideias de Vygotsky, que concebe o desenvolvimento humano e a aprendizagem a partir da ação sócia interacionista. 4 RESULTADOS O contexto escolar é um ambiente estimulador, desafiante, de múltiplas relações, aprendizagens, de diferentes grupos. Local propício ao desenvolvimento do processo de aprender, relacionar-se, conceber, elaborar e fundamentar projetos de vida. O estudo permitiu identificar que, do grupo investigado - dezoito (18) professores cursistas -, onze (11) estão buscando cursos de formação continuada para dar conta dos inúmeros desafios postos em seu fazer pedagógico. Também se verificam índices de 23, 42% de professores cursistas desistentes e 28,39% de reprovados do total de matrículas nas 51 turmas de cursistas do Curso de Formação Continuada de Professores em TIC Acessíveis. A oferta de cursos de formação continuada em ambiente virtual tem se mostrado uma excelente alternativa aos professores, diante da complexidade da profissão que envolve saberes, valores, práticas pedagógicas que estejam conectadas com a

realidade do aluno e que possibilitem a inclusão de alunos com deficiência de forma a atender suas necessidades e especificidades e também diante do contexto da extensão territorial brasileira. Dos relatos do grupo de professores cursistas investigados, podemos concluir que aprender em ambiente virtual é sim possível em processo de ação e reflexão, o professor reconstrói sua identidade profissional, como Nóvoa (2009) afirma. Também é importante resgatar e refletir sobre as questões complementares da pesquisa, que pretendia: a) verificar os principais obstáculos enfrentados para a efetivação da proposta de formação continuada em ambiente virtual sob a perspectiva do professor cursista; b) identificar quais recursos de tecnologias da informação e comunicação são utilizados pelos professores cursistas como ferramentas de mediação da aprendizagem e de inclusão de alunos com deficiência; c) analisar a interferência da formação do professor em ambiente virtual colaborativo, como potencializador de práticas pedagógicas inclusivas. Com relação à questão A, os professores cursistas apresentam que a principal dificuldade que enfrentam é de acesso à rede mundial de computadores, principalmente em municípios pequenos, com pouca estrutura e acessibilidade digital. Isso também se reflete no acesso aos recursos tecnológicos por seus alunos nas escolas e em suas residências, pois contam com escassos recursos financeiros. Outra questão que os profissionais apresentam como obstáculos é a extensa carga horária de trabalho que têm. Os professores cursistas relatam que acessaram o ambiente do curso principalmente à noite e em suas casas, após sua jornada de trabalho. A questão B buscava saber quais recursos tecnológicos os professores cursistas utilizam com vistas à promoção da inclusão de alunos com deficiência. Em seus relatos, os professores cursistas revelaram que não dominavam o computador, consequentemente, não o utilizando para atividades escolares e de desenvolvimento das capacidades cognitivas de seus alunos, bem como para seu uso próprio. Outro grupo de professores, mesmo conhecendo e usufruindo do computador, não o utilizava como recurso pedagógico. A questão C pôde ser respondida, a partir da análise da proposta do curso, pois os professores 107


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cursistas foram desafiados a elaborar um plano de ação pedagógica utilizando os recursos e os conhecimentos adquiridos, tendo como referência seu aluno incluído. Os professores cursistas aprenderam a utilizar e explorar o potencial de programas, como leitor de tela, Dosvox, Dasher, Falador, Audacity, Movie Maker; recursos de CAA – Comunicação Aumentativa e Alternativa; Prancha Livre de Comunicação, entre outros. Assim, pode-se perceber que a proposta do Curso de Formação Continuada de Professores em Tecnologias de Informação e Comunicação Acessíveis, promovido pelo NIEE/UFRGS, que tem como um de seus objetivos “Experienciar, projetar e desenvolver ações pedagógicas significativas mediadas pelas tecnologias digitais de informação e de comunicação e de recursos (hardware e software) de acessibilidade alicerçadas na premissa da inclusão social e digital de sujeitos com necessidades educativas especiais no cenário sociocultural contemporâneo” atinge seu objetivo. A proposta de formação continuada instrumentaliza os professores cursistas, sendo mais evidente essa comprovação nas atividades de construção de rede virtual de amigos e na elaboração do plano de ação pedagógica, que propõe a reflexão sobre as aprendizagens efetivadas durante o curso e sua aplicação em prática escolar. Assim, percebe-se a necessidade de garantir programas governamentais que estimulem e proporcionem a participação de professores em cursos em ambientes virtuais de aprendizagem como elemento para o desenvolvimento do bom ensino e de promoção do desenvolvimento de aprendizagens dos professores, consequentemente, de seus alunos e de inclusão, bem como equipar as escolas com materiais e equipamentos de acessibilidade. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A oferta de cursos de formação continuada em ambiente virtual tem se mostrado uma excelente alternativa aos professores, diante da complexidade da profissão que envolve saberes, valores, práticas

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pedagógicas que estejam conectadas com a realidade do aluno e que possibilitem a inclusão de alunos com deficiência de forma a atender suas necessidades e especificidades e também diante do contexto da extensão territorial brasileira. As mudanças necessárias para que a escola realmente seja inclusiva requerem professores que reflitam sobre a sua prática e aprendam sobre diferentes métodos e técnicas de ensino, com diferentes recursos, garantindo, assim, os princípios éticos de igualdade e equidade de oportunidades a todos os alunos. O professor reflexivo analisa sua prática, o que ensina, por que ensina e como ensina. O processo de aprendizagem do professor, em curso de formação continuada em ambiente virtual, possibilita essa reflexão e, principalmente, revela o potencial de cada um em ser autor e responsável por seu desenvolvimento profissional. É ter em suas mãos a conquista e a responsabilidade de sua formação. O estudo ao qual esteve focada esta investigação nos remete à conclusão de que propor cursos de formação de professores em ambiente virtual de aprendizagem é sim fator de inclusão digital do professor e de seus alunos. Também é excelente oportunidade para propor a reflexão sobre a prática pedagógica de forma contextualizada e dialógica. Não se pretende propor o uso do computador como uma simples ferramenta de pesquisa ou de modernização da sala de aula, mas sim como possibilidade de instrumentalizar o professor para seu uso e promoção de acessibilidade e de inclusão de alunos com deficiência, com equidade de oportunidades. Conclui-se que valorizar o trabalho e a experiência do professor, proporcionar momentos de reflexão sobre a prática pedagógica, propor cursos de formação continuada, efetivar a mudança necessária na escola para que ela seja realmente inclusiva, não por determinação legal, mas por convicção de que a exclusão fere os direitos humanos, possibilita vislumbrar a efetivação da sociedade inclusiva, na qual a participação de todos não é privilégio, mas direito conquistado.


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NORMAS GERAIS Os trabalhos deverão ser enviados por e-mail, em extensão .doc (Word). PRÂKSIS - REVISTA DO ICHLA Editor Responsável: Prof.ª Me. Márcia Blanco Cardoso ERS-239, 2755 - Novo Hamburgo - RS CEP 93352-000 - Telefone: (51) 3586-8800 Universidade Feevale - Câmpus II Prédio: Lilás - Sala: 301H E-mail: revistadoichla@feevale.br ARTIGOS Os trabalhos para publicação devem ser inéditos e podem ser apresentados em português, inglês ou espanhol. A seleção dos artigos para publicação toma como referência sua contribuição à Educação e à linha editorial da revista, a originalidade do tema ou do tratamento dado ao tema, a consistência e o rigor da abordagem teórica. Cada artigo é examinado por pelo menos dois membros do Conselho Editorial (ou especialistas ad hoc), sendo necessários dois pareceres favoráveis para que o texto seja recomendado para publicação. Os autores dos artigos aceitos serão informados sobre a data prevista para sua publicação. Os trabalhos deverão ser enviados ao editor responsável pela Revista do ICHLA por e-mail, em extensão .doc (Word), com fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço 1,5. Os artigos devem ter de 08 a 15 laudas incluindo referências bibliográficas, notas e resumo em português e inglês

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com os autores. Não serão admitidos acréscimos ou modificações depois que os trabalhos forem entregues para composição. Não haverá remuneração pela publicação dos artigos, somente cabendo ao autor o direito a receber gratuitamente dois exemplares da Revista.

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