Revista Prâksis - Agosto de 2014

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Associação Pró-Ensino Superior em Novo Hamburgo - ASPEUR Universidade Feevale

Prâksis Revista do ICHLA Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes —ICHLA—

Ano XI - Volume 2 - Agosto de 2014

Editora Feevale | 2014 |


Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes

PRESIDENTE DA ASPEUR Luiz Ricardo Bohrer

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PRÓ-REITORA DE ENSINO Denise Ries Russo PRÓ-REITOR DE PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO Alexandre Zeni PRÓ-REITOR DE PESQUISA E INOVAÇÃO João Alcione Sganderla Figueiredo PRÓ-REITORA DE EXTENSÃO E ASSUNTOS COMUNITÁRIOS Gladis Luisa Baptista DIRETORA DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES Cristina Ennes da Silva COORDENAÇÃO EDITORIAL Denise Ries Russo EDITORA FEEVALE Celso Eduardo Stark Graziele Borguetto Souza Adriana Christ Kuczynski

- CAPA E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Adriana Kuczynski - REVISÃO TEXTUAL Claudini Fabricia Maurer - REALIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes - ICHLA - TIRAGEM 300 exemplares, Gráfica Impressul - Jaraguá do Sul/SC - INDEXAÇÃO ICAP - Indexação Compartilhada de Artigos de Periódicos (Disponível em: <http://www.pergamum.pucpr.br/icap/ index.php>); LATINDEX (Disponível em: <http://www.latindex.unam. mx/>); Qualis - CAPES (Disponível em: <http://qualis.capes.gov.br/ webqualis>).

CONTATOS REVISTA PRÂKSIS ISSN: 1807-1112 Homepage: www.feevale.br E-mail: revistadoichla@feevale.br ERS 239, 2755 - CEP: 93525-075 Novo Hamburgo/RS - Fone: 51 3586-8819

Classificação

- EDITOR CHEFE Márcia Blanco Cardoso - COMISSÃO EXECUTIVA Cristina Ennes da Silva Márcia Blanco Cardoso Valéria Koch Barbosa - CONSELHO EDITORIAL Alfredo Veiga-Neto (UFRGS) Antonio Novoa (Univ. de Lisboa) Everton Rodrigo Santos (Universidade Feevale) Juracy Assmann Saraiva (Universidade Feevale) Lisiane Machado de Oliveira Menegotto (Universidade Feevale) Luciana Néri Martins (Universidade Feevale) Magali Mendes de Menezes (UFRGS) Marisa Vorraber Costa (UFRGS) Mauro Augusto Burkert del Pino (UFPel) Nélio Vieira de Melo (UFPE)

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EX PED I ENTE

REITORA DA UNIVERSIDADE FEEVALE Inajara Vargas Ramos

- PARECERISTAS Cláudia Schemes Dalila Backes Daniel Conte Dinorá Zucchetti Juracy Assmann Saraiva Luiz Antonio Gloger Maroneze Ricardo Strauch Aveline Roswithia Weber Simone Moreira Santos

Qualis (CAPES)

Estrato

Área de Avaliação

B2

PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL / DEMOGRAFIA

B3

LETRAS / LINGUÍSTICA

B3

INTERDISCIPLINAR

B4

EDUCAÇÃO

B5

HISTÓRIA

B5

ARTES / MÚSICA

B5

CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS I

B5

SERVIÇO SOCIAL

B5

SOCIOLOGIA

B5

PSICOLOGIA

B5

FILOSOFIA/TEOLOGIA: subcomissão TEOLOGIA


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SUMÁRIO

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EDITORIAL

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Apresentação

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Resgate policial de reféns: uma discussão sobre a violência e a produção social do medo Bianca Cirilo

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Avaliação Psicológica Forense em Situações de Suspeita de Abuso Sexual em Crianças: possibilidades e riscos Sonia Liane Reichert Rovinski

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A relação entre o lócus de controle e o coping ‘ações agressivas’: um estudo com atletas do esporte escolar Marcus Levi Lopes Barbosa

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GÊNERO, VIOLÊNCIA E SEXUALIDADE EM BARRELA DE PLÍNIO MARCOS Tiago Silva

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PAZ E VIOLÊNCIA NA ESCOLA: VOZES, ECOS E SILÊNCIOS Marcio Adriano Cardoso

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A PRÁXIS NO CONTEXTO ESCOLAR: UM ELEMENTO SIMBÓLICO NO PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO Luís Paulo Arena Alves Raquel Meirose 3


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O IMAGINÁRIO CULTURAL JUDAICO NA FORMAÇÃO DA ESCRITA LITERÁRIA KAFKIANA Edson de Jesus Melo Cunha Daniel Conte

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Aspectos da identidade do gaúcho rural em contos de Sergio Faraco Daniel Fernando Gruber Juracy Assmann Saraiva

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NORMAS GERAIS DE PUBLICAÇÃO


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Editorial

O Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes (ICHLA), da Universidade Feevale apresenta, à comunidade científica, o segundo volume do décimo primeiro de publicações da Revista Prâksis. Nesse segundo volume de 2014, a temática escolhida foi “Violência e cultura: representações no espaço urbano”. A Revista Prâksis tem um caráter multidisciplinar e seu principal objetivo é fomentar as discussões acadêmicas, através da apresentação de pesquisas concluídas ou em andamento, e que possibilitam inúmeras reflexões a respeito de temas complexos e abrangentes. Nessa edição, os nove artigos selecionados constituem um olhar multifacetado sobre a temática proposta e contribuirão para a produção de conhecimento na área das Ciências Humanas, Letras e Artes. Os três primeiros artigos são de convidados do “III Seminário Internacional de Psicologia Violência: Incidências sobre o Sujeito e sobre o Social”, organizado pelo Curso de Psicologia da Universidade Feevale, que ocorreu em outubro de 2013. O primeiro artigo intitulado “Resgate policial de reféns: uma discussão sobre a violência e a produção social do medo”, de Bianca Cirilo retrata um trabalho realizado no Rio de Janeiro, pela autora, junto ao Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), entre 2008 e 2013 e as reflexões a partir dessas vivências. Já o segundo artigo, da autora Sônia Liane Reichert Rovinski, que tem como título “Avaliação Psicológica Forense em

situações de suspeita de abuso sexual em crianças: possibilidades e riscos” trata do auxílio que a avaliação psicológica pode oferecer nos casos que envolvem crianças. Já o artigo “A relação entre o lócus de controle e o coping ‘relações agressivas’: um estudo com atletas do esporte escolar”, de Marcus Levi Lopes Barbosa, apresenta uma análise, a partir de estudo prático sobre ações agressivas e controle, entre atletas de esporte escolar. O artigo seguinte, de autoria de Tiago Silva, apresenta o título “Gênero, violência e sexualidade em Barrela, de Plínio Marcos” e traz uma análise da peça de Plínio Marcus e construção do gênero masculino, ali apresentada. O quinto artigo, “Paz e violência nas escolas: vozes, ecos e silêncios”, do autor Márcio Cardoso. O artigo traz uma análise de relatos de professores de Montenegro-RS, sobre conceitos de paz e violência, suas vivências e ações no espaço escolar. Os três artigos finais são de tema livre, mas relacionados diretamente à área de publicação da presente edição da Revista Prâksis. São eles: “A Práxis no Contexto Escolar: um elemento simbólico no processo de transformação”, dos autores Luis Paulo A. Alves e Raquel Meirose; “O imaginário cultural judaico na formação escrita literária kafkiana” de autoria de Edson de Jesus Melo Cunha; e, “Aspectos da identidade do gaúcho rural em contos de Sérgio Faraco”, dos autores Daniel Fernando Gruber e Juracy Assmann Saraiva. Por fim, esperamos que esta edição possa contribuir de forma efetiva para a divulgação da 5


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produção acadêmica na área de Ciências Humanas, Letras e Artes, fomentando novos olhares e reflexões sobre os temas aqui apresentados. Boa leitura e até a próxima edição. Prof.ª Me. Márcia Blanco Cardoso Editora Científica Coordenadora do curso de História

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Apresentação

Discursos e práticas interdisciplinares Um dos importantes papéis da Universidade é refletir sobre a contemporaneidade: erros e acertos, caminhos a seguir, relacionar teoria e prática, em nosso mundo de constantes transformações. Nesse contexto, no ano de 2013, dois cursos do Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes (ICHLA), ao organizarem seus eventos, trouxeram a questão da violência, dos conflitos nos espaços de convívio e como diferentes áreas refletem sobre essas questões. Nesse sentido, o seminário do Curso de Letras teve como tema “V ENALLI - Encontro Nacional de Língua e Literatura - Literatura e Cultura: Representação do Espaço Urbano”, que aconteceu de 26 a 28 de agosto de 2013. O evento teve como objetivo central discutir as contribuições dos estudos teóricos da Linguística, da Literatura e da área da Cultura para o ensino de Línguas e de Literatura, a partir da abordagem das relações entre os diferentes estratos das esferas sociais, no espaço urbano cujo embate é expresso pela diversidade das manifestações artísticoculturais.”1 No mês de outubro, o Curso de Psicologia realizou o seu Seminário, denominado “III Seminário

Disponível em: <https://www.feevale.br/ensino/curs os-e-eventos/v-enalli-encontro-nacional-de-lingua-eliteratura-literatura-e-cultura-representacao-do-espacourbano>.

Internacional de Psicologia - Violência: Incidências sobre o Sujeito e sobre o Social”, que aconteceu entre os dias 03 e 05, na Universidade Feevale. Segundo a Comissão Organizadora do evento, a atividade “(...) propõe-se a abordar o tema da violência, considerando como ela perpassa a vida cotidiana, quais as suas origens, os seus caminhos e suas repercussões na vida das pessoas e nos movimentos da sociedade. A análise de suas variantes e, em especial, de seu impacto social é premente, uma vez que a violência é um fenômeno que insiste em se manifestar em todos os segmentos sociais, gerando indiferença para alguns e horror e preocupação para outros. É comprometida com a sociedade, com os direitos humanos e com as práticas de inclusão que a Psicologia se coloca como fundamental para contribuir para uma discussão ampla e aprofundada sobre o tema. O que pretendemos com esse evento não é fechar o debate desse problema tão complexo, que é a violência, mas sim permitir que mais questões sejam formuladas e que continuemos a insistir em tal discussão tão fundamental para o humano e para o social.”2 Podemos observar que a partir das diferentes perspectivas propostas pelos Cursos, esse tema, tão complexo, foi profundamente debatido e analisado

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2   Disponível em: <https://www.feevale.br/ensino/cursose-eventos/iii-seminario-internacional-de-psicologiaviolencia-incidencias-sobre-o-sujeito-e-sobre-o-social>.

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sob suas diferentes formas e partir deles, foi proposto o tema para essa edição da Revista Prâksis, que agora apresentamos. Segundo Zaluar (1999), a palavra violência vem do latim violentia que remete a vis (força, vigor, emprego de força física ou os recursos do corpo para exercer sua força vital). Essa força torna-se violência quando ultrapassa um limite ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações, adquirindo carga negativa ou maléfica. É, portanto, a percepção do limite e da perturbação (e do sofrimento que provoca) que vai caracterizar o ato como violento, percepção essa que varia cultural e historicamente.3 Identificar limites, analisar possibilidades de atuação a partir da apresentação das diferentes formas que a violência se apresenta, enfim, pensar o mundo em que vivemos e essa aparente escalada de violência (ou de conhecimento dela) são alguns dos tópicos que nos mobilizaram para a proposição dos eventos e que, acreditamos, estarão também presentes nos artigos aqui apresentados. Uma ótima reflexão a todos! Prof.ª Me. Cynthia Berlim Coordenadora do curso de Letras Prof.ª Me. Valéria Zanetti Ney Coordenadora do curso de Psicologia

ZALUAR, A Violência e crime. In: Miceli, S. (Org). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). São Paulo: Sumaré; ANPOCS, 1999, p. 13-107.

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Resgate policial de reféns: uma discussão sobre a violência e a produção social do medo

Bianca Cirilo1 Resumo Este artigo tem por objetivo refletir sobre o problema da tomada de reféns como uma forma de expressão da violência, dando visibilidade midiática a ações policiais que costumam despertar socialmente inúmeros afetos, entretanto, destacaremos a análise da produção do medo como forma de controle social. Vale ressaltar que partimos, no entanto, de uma abordagem crítica de um contexto social específico, o do Rio de Janeiro, tomando por base a experiência como psicóloga assessora em ocorrências com tomada de reféns do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), tendo, portanto, acompanhado, em tempo real, várias situações de resgate policial nestes casos entre 2008-2013. Além disso, outra fonte de estudo sobre o tema surgiu de reflexões variadas sobre o lugar do psicólogo, nestes eventos, oriundas do curso de doutorado, em andamento, no Programa de Pós–graduação da Universidade Federal Fluminense (UFF), na área de violência, subjetividade e exclusão social. Para embasar nossa análise, utilizaremos principalmente as contribuições teóricas de Michel Foucault e Spinoza, assim como outros autores complementares, a fim de discutirmos, numa perspectiva política, alguns aspectos relacionados aos arranjos do dispositivo policial articulado ao controle social dos afetos. Palavras-chave: Resgate policial de reféns. Controle social. Produção do medo. Abstract This article aims to reflect on the problem of hostage-taking as a form of expression of violence, giving the media visibility police actions that usually arouse socially numerous affections, however, highlight the analysis of production of fear as a means of social control. It is worth mentioning that we leave, however, a critical approach to a specific social context, of Rio de Janeiro, on the basis of the experience as a psychologist advises in occurrences with hostage-taking of the Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), having thus accompanied, in real-time, various police rescue situations in these cases between 2008-2013. Additionally, another source of study on the topic arose from various reflections on the place of the psychologist in these events, from the doctoral course, in progress in the program – graduation from the Fluminense Federal University (UFF), in the area of violence, subjectivity and social exclusion. To support our analysis, we will use mainly theoretical contributions of Michel Foucault and Spinoza, as well as other additional authors to discuss a political perspective; some aspects related to the police device arrangements articulated the social control of the affections. Keywords: Police hostage rescue. Social control. Production of fear. 1   Psicóloga e mestre em Saúde Coletiva, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2002), é capitã da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Tem experiência em Psicologia Institucional e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado na área de violência e subjetividades, tendo como objeto de pesquisa seu trabalho como psicóloga do BOPE na área de negociação de resgate de reféns.

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1 INTRODUÇÃO O acompanhamento, por cinco anos, de ocorrências policiais de resgate de reféns da mesma forma que os estudos correlatos sobre o assunto provindos de fontes acadêmicas relativas a textos e informações sobre a prática policial possibilitaram o levantamento de algumas ideias centrais acerca de determinados aspectos que atravessam a rotina de funcionamento destes fatos, bem como a maneira como costumam ser conduzidos pela polícia até seu desfecho. Pela sua fecundidade e complexidade, esta discussão desdobra-se em inúmeras questões que ainda merecem um estudo sistematizado e contínuo. Porém, trataremos apenas de uma delas que diz respeito à articulação entre a forma como, neste âmbito, o resgate policial costuma funcionar em parceria com a produção social do medo; afeto muito significativo neste cenário de agenciamento2 da violência. Tudo isso parece conduzir-se fortemente articulado à visibilidade pública dos fatos que acompanham uma tomada de reféns através de uma veiculação midiática constante, numa espécie de bombardeio, em tempo real, de informações sobre os acontecimentos que vão se desenrolando numa situação desta monta. Existem alguns casos que são considerados emblemáticos tanto no Brasil quanto no exterior que foram exibidos em cadeia nacional e internacional numa frenética exposição da imprensa que, rotineiramente, tem atraído à atenção dos indivíduos; imprensa esta que se reedita a cada momento da atuação policial toda vez que situações como estas tomam grandes repercussões. O caso da jovem Eloá, de 15 anos, feita refém pelo antigo namorado Lindemberg e infelizmente tendo sido morta por ele ao final da ocorrência foi um deles. O conflito se deu em 13 de outubro de 2008 na cidade de Santo

2  O sentido do termo agenciamento está sendo utilizado aqui conforme as referências de Deleuze na complexidade das relações entre aspectos materiais e signos, produzindo possibilidades de inúmeras articulações entre imagens, ideias, regras, atitudes, gestos, etc. Ver ZOURABICHVILI, F. Vocabulário de Deleuze. Centro interdisciplinar de estudo em novas tecnologias da informação. IFCHUNICAMP, 2004. (pp 8-11). Disponível em: <http:// escolanomade.org/images/stories/biblioteca/downloads/ deleuzevocabulario-francois-zourabichvili.pdf>. 10

André, em São Paulo, sendo destaque inclusive no jornal espanhol El Pais, na época. No Rio de Janeiro, destacamos o caso marcante do sequestro do ônibus 174 ocorrido em 12 de junho de 2000, no bairro Jardim Botânico, onde um rapaz identificado como Sandro Barbosa do Nascimento, sobrevivente da Chacina da Candelária, fez cerca de onze reféns no coletivo, em trânsito, após tentativa frustrada de assalto. Esta chacina foi um terrível massacre em massa de jovens, entre 11 e 19 anos, que viviam nas ruas. Eles foram assassinados, enquanto dormiam na porta da igreja da Candelária, em 23 de julho de 1993, por volta da meia-noite, onde vários carros (a maioria composta por policiais) pararam em frente ao local e atiraram. Voltando ao caso do ônibus 174, sabemos que Geísa Firmo Gonçalves foi a principal refém, servindo de escudo para Sandro a maior parte do tempo durante a tentativa de resgate operacionalizada pelo BOPE. Sandro e Geísa morreram no curso da operação e tanto a Chacina da Candelária quanto o caso do ônibus 174 foram veiculados pela imprensa carioca em alguns documentários assim como foram alvo de significativo interesse da mídia estrangeira. 2 O RESGATE POLICIAL DE REFÉNS COMO UM DISPOSITIVO ESPETACULARIZADO De acordo com a proposta de leitura política do nosso objeto, estaremos, portanto, tomando aqui a organização de toda e qualquer operação policial de resgate de reféns, a partir de recortes teóricos que nos permitam sair de uma visão meramente psicopatológica do crime e seus efeitos, como é o caso da leitura foucaultiana e spinozista. Não que estas se constituiriam como único parâmetro de análise nem tampouco teriam qualquer caráter de verdade, ao contrário, a escolha metodológicocrítica destas abordagens, e o tipo de olhar sobre o resgate policial de reféns que elas favorecem são exatamente para que possamos questionar as visões positivistas e preditivas do crime que ainda incidem-se, hegemonicamente, sobre o manejo destas ocorrências. Melhor dizendo, a concepção e a condução deste tipo de operação policial contam com a intervenção de vários especialistas da área de Psiquiatria, Psicologia, Criminologia, Direito Penal, entre outas; todos importados pela lógica estadunidense influenciadora direta do processo de resolução cabível às autoridades policiais,


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em nosso país. A lógica de organizações como Federal Bureau Investigation (FBI), polícia norteamericana no âmbito federal, determinadora de vários procedimentos jurídicos e legais sobre como a tomada de reféns deve ser conduzida pela sua equipe técnica, tem sido a grande referência internacional, incluindo a prática brasileira. Portanto, ainda é predominante como base teórico-científica de espaços como FBI uma epistemologia investigativa e causal do crime e de seu autor, tendendo a buscar origens, desvios e traumas na história pessoal e psicopatologias que venham a justificar porque, por exemplo, alguém decide tomar outra pessoa como refém, muitas vezes, excluindo todo o contexto sócio político do problema da criminalidade. Infelizmente, existe pouca ou quase nenhuma incidência de estudos críticos voltados ao questionamento desta lógica que considere os aspectos político-sociais na questão da violência e da criminalidade. Desta forma, nossa intenção seria justamente abrir caminhos para outras leituras articuladas com uma visão mais rizomática do assunto, conforme as ideias abaixo: Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente a um traço linguístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas. (GUATTARI; DELEUZE, 1995, p. 14).

O movimento trazido pela perspectiva acima abre um leque de possibilidades de reflexões outras sobre a maneira como a sociedade percebe e lida com o problema da criminalidade e suas expressões, como é o caso da escolha da visão foucaultiana que está sendo aqui adotada. Mas quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida quotidiana. O século XVIII encontrou um regime por assim dizer sináptico de poder, de seu exercício no corpo social, e não sobre o corpo social. (FOUCAULT, 1982, p. 75)

Ainda em Foucault (1982), vemos como esta mecânica do poder transformou a prisão no espaço, por excelência, de fabricação do delinquente através de processos minuciosos e capilares de aplicação da vigilância. A prisão secreta o delinquente que surge como peça chave para que toda a engrenagem do poder funcione e se mantenha. Com isso, a lógica punitiva vai perdendo sua expressividade chocante como na época dos suplícios dando lugar à sofisticação das práticas disciplinares e setorizadas que docilizam os corpos. A nova tecnologia do corpo exercitada pelas práticas disciplinares de funcionamento do poder ganha adesão no interior dos cárceres, mas não fica restrita a estes locais; ao contrário, verificamos o quanto esse regime de vigilância se adequou ao corpo social como prática hegemônica. (FOUCAULT, 2006) Este processo seria, portanto, a expressão clara do que o autor chama de dispositivo disciplinar; uma espécie de forma de funcionar da sociedade que atravessa as instituições como o quartel, a escola, a igreja, a família e assim por diante. Tomase aqui a disciplina como uma invenção dessa nova anatomia política (FOUCAULT, 2006, p. 119), fabricando corpos dóceis, úteis econômica e politicamente. Nesta lógica, poder e saber são unidos segundo Foucault (2006), onde o conhecimento sobre algo indica uma das expressões de poder sobre ele. Os discursos científicos são um exemplo disso; discursos sobre sexualidade, criminalidade, natalidade, infância e assim por diante são saberes que demonstram processos variados. Em História da Sexualidade, Foucault analisa a produção do saber-poder sobre o sexo e seus correlatos através dos refinados processos de incitação dos discursos sobre o assunto, cuja confissão religiosa, por exemplo, ganha relevância pelo seu caráter de ferramenta do fazer falar. Aqui a noção de dispositivo da sexualidade revela que, neste jogo, proibir ou incitar significa fazer a máquina do discurso sobre a sexualidade funcionar e fabricar saber sobre ele, logo, poder de definir, de determinar, de estabelecer conceitos e ideias sobre isso. Através das orientações de Foucault (2001), refletimos então sobre determinadas formas de produção de verdade que costumam atravessar os vários discursos na panóplia do dispositivo de 11


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controle social. Os diferentes conteúdos científicos que atravessam a realidade apontam para detecção de tentativas de captura muito presentes na regulação, estruturação e manejo dos aparatos policiais da Segurança Pública. Sendo assim, quando uma operação de resgate de reféns se constitui na cena social ela controla os procedimentos a serem aplicados com vistas à cessação daquele conflito. Isto porque ela carrega todo um aparato logístico e técnico que se incide sobre a mesma, legitimando-se como único recurso aceitável jurídica e legalmente. Neste sentido, o próprio resgate policial também seria uma maneira de expressão deste dispositivo de saber-poder. A análise foucaultiana também destaca outra nuance deste dispositivo, a partir da época clássica, onde assistimos algumas transformações no Ocidente. No século XIX havia a instauração de uma organização do direito de matar, através de sofisticados mecanismos de controle e vigilância, expressos por guerras sangrentas. Neste contexto, o poder de matar dos Estados se dava para poder viver, não mais apoiados numa questão jurídica, mas como nos diz Foucault (1999), biológica. O genocídio se justificava não por causa de questões antigas sobre o direito de matar, mas devido às questões ligadas a espécie, aos fenômenos que envolviam populações inteiras. Este é um reflexo de algumas manobras sobre como o poder que mata pode garantir a vida ao mesmo tempo; trata-se do chamado biopoder, em suma, poder decisório de deixar ou não viver. O biopoder indicaria então outra vertente deste dispositivo que poderia estar relacionada ao resgate de reféns, isto porque neste tipo de operação o que está em jogo é o poder sobre a vida, por parte da polícia, determinando um tipo de validação hierárquica sobre ela; já que decide através dos manuais procedimentais e do respaldo científico de especialistas, que vida vale mais ou menos. Um exemplo de tudo isso seria a própria complexidade da finalidade do resgate que é preservar vidas. Como é possível defender a preservação pela morte ou justificar a morte pela preservação? Justifica-se a morte do tomador por necessidade de salvar o refém. Matar e salvar são ações que funcionam juntas nesta lógica biopolítica. Outra questão seria a constituição dos especialistas estrangeiros em Gerenciamento de Crises (nome dado à área de atuação policial em 12

situações das quais estamos tratando aqui). O FBI forma seus agentes em resgate de reféns ditando tanto como deve ser a capacitação técnica destes profissionais quanto determinando categorizações psicológicas de tipos criminosos, estabelecendo com isso uma prática de resgate onde se faz possível prever a periculosidade, por sua vez, controlada pelos discursos psis, penais, sociológicos e tantos outros. A relevância da menção sobre os perfis, neste contexto, se dá como ponto fundamental de discussão crítica sobre toda uma produção de conhecimento acerca do manejo do resgate de reféns, incluindo, prioritariamente, esta classificação psicológica que vem sendo associada ao direito de matar, sustentada no que Foucault (2001) discute sobre a produção e a soberania do discurso científico e suas consequentes especializações. A figura do especialista surge como uma das peças chaves para fazer a máquina do dispositivo funcionar, produzindo verdades sobre o crime praticado, sobre a violência explicitada e interferindo, mesmo que indiretamente, na decisão de sacrifício da vida criminosa, daí a necessidade de toda uma discussão ética sobre a função do técnico nestes eventos. Estes discursos respaldam não somente um tipo de atuação policial, mas também norteiam os sentimentos que são produzidos, coletivamente. O problema aqui não estaria na existência do especialista, porém na condição de atribuição de verdade que se delega a seu discurso e seus efeitos. A explicitação da cena, composta por especialistas que a “resolvem” e sua transmissão pela imprensa relevam a organização deste dispositivo de saber-poder onde os arranjos ali articulados definem lugares: o do criminoso, o da vítima, o do especialista e o da polícia. Atores fabricados pelo cenário social daquela violência tornada pública; violência produtora de discursos sobre o crime, o risco, o dano, o medo e a esperança. Tudo isto reflete uma forma de espetacularização da vida contida neste dispositivo de resgate policial; vida esta que, neste caso, é negociada, aferida em juízos de valores, submetida a um tipo de hierarquia que determina qual vida deve ser mantida e que teria mais importância, como já foi mencionado. A evidência desta exposição da vida está imersa na lógica capitalista de mercado. A cena do resgate constitui-se como mercadoria. “Precisa


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sê-lo”, já que se apresenta como instrumento de fabricação de coisas, lugares e sentimentos a serem intercambiados pela lógica econômica, tendo como apoio central nesta transmissão de mensagens os meios de comunicação de massa. Estamos aqui nos apoiando nas seguintes considerações sobre a noção de espetáculo: Considerando segundo seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda vida humana, socialmente falando, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo, descobre-o como negação visível da vida; uma negação da vida que se tornou visível. (DEBORD, 2003, p.16)

Debord (2003) nos traz o espetáculo como capital, como um tipo de acumulação tão surpreendente que culmina tornando-se imagem. Isso significa que vivemos mergulhados na fabricação de mercadorias, da qual somos mais uma delas. Coimbra (2001) também nos alerta sobre a importância de produzir visibilidade às coisas como ferramenta que sustenta as produções midiáticas. Esta visibilidade seria o coração da cena de resgate de reféns, porque ela materializa as fantasias, os medos, as esperanças de que tudo acabe bem e assim retém atentos os telespectadores, para que continuem produzindo verdades e discursos sobre o cenário e seus diferentes atores sociais. Portanto, tomando este raciocínio como base, o resgate de reféns transmite um tipo de linguagem social, comunica fatos que serão traduzidos em afetos, dentre outros fatores. Ali, se cria, por exemplo, verdades sobre aumento da violência, criminalização da pobreza, necessidade de figuras heroicas e assim por diante. Mais uma vez destacamos Coimbra (2001) acerca da criminalização da pobreza e a conveniência que tal articulação engendra na medida em que era preciso localizar o espaço do risco e justificar um tipo de atuação policial. A cena do resgate de reféns (o dispositivo), por comunicar o cometimento, em tempo real, de um crime não deixa dúvida sobre o quanto nossa sociedade está violenta, parecendo confirmar onde está o perigo e quem seria o perigoso. Alertaria os indivíduos; criaria traumas; justificaria receios; fabricando

assim tantos outros processos de prevenção social lidos por cada um de forma diferente, conforme as idiossincrasias. Além disso, surge como efeito à produção da figura do inimigo social, herdeiro da ditadura militar e capitaneado pelas práticas e saberes psis da década de 70 que atenderam aos apelos de cientificidade do patológico. Com isso, trouxeram certa “tranquilidade mágica” sobre a hegemonia e a infalibilidade da técnica psicoterapêutica. A psicologia, neste contexto, daria conta de resolver o problema do desvio, diagnosticando e orientado sobre o que deveria ser feito em caso de comportamentos desviantes. (COIMBRA, 1995). 3 O DISPOSITIVO DE RESGATE POLICIAL E A PRODUÇÃO SOCIAL DO MEDO Anteriormente vimos como articular a ideia de dispositivo de saber-poder à operação de resgate policial. Como desdobramento, a espetacularização dessas situações nos remete a relevância da discussão sobre como podemos conceber a relação com o espaço social e que aproximações podem ser feitas com a questão da produção social do medo. Os estudos de Virilio (1993) nos auxiliam nesta trajetória e a partir de sua análise, podemos pensar numa constante sensação de crise mundial que vem sendo produzida como forma de controle, afetando diretamente a relação do homem com o espaço social. Trata-se do que o autor nomeia de contaminação terrorista; algo que afeta a maneira de construir geograficamente e organizar o espaço, obedecendo-se muito menos à estética e a idiossincrasia do arquiteto do que a necessidade de segurança e proteção. [...] Última porta do Estado, o aeroporto torna-se, assim como o forte, o porto ou a estação de trem no passado, lugar de uma regulação essencial das trocas e das comunicações e, portanto, espaço de uma forte experimentação de controle e vigilância máxima realizada por uma ‘polícia do ar e das fronteiras’. (VIRILIO, 1993, p.8)

A cena do resgate de reféns associa-se ao medo do terrorismo e a relação com o espaço social, já que ela permite um tipo de visibilidade que parece confirmar o risco, se resumido na seguinte mensagem: cuidado, a qualquer momento isto 13


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também pode acontecer com você! A sensação social de insegurança foi sendo cada vez mais investida no cenário estadunidense, agravando-se com o ataque às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. Uma vez admitida como exemplo de um tipo de espetacularização da vida, a cena do resgate parece apontar para a justificativa de um estado de emergência em que vivemos, seria dada como expressão do quanto nossa sociedade estaria violenta, impondo assim um estado de alerta. As doses diárias de produção desta insegurança social podem ser compreendidas a partir da filosofia spinozista acerca de algumas de suas proposições sobre a Ética IV. Voltado à análise da questão da servidão humana e a dinâmica dos afetos, no contexto do século XVII em que viveu, Spinoza (2009) foi um grande crítico das instituições cerceadoras da liberdade como o Estado e a Igreja que, através de mecanismos sutis de produção de afetos como medo e esperança, montam suas bases para a condução das massas. Com isso, criaramse estruturas de governo baseadas em ideias mistificadoras e falsas sobre a vida, as relações e a conduta dos homens. Além disso, ao estudarmos a obra de Spinoza (2009) podemos perceber que ele rompe com uma concepção de erro no modo de sentir ou com uma ideia de afeto inato negativo ou imperfeito como uma pulsão de morte freudiana. Não há nenhum equívoco no tocante à manifestação dos tipos variados da afetividade humana, estes apenas podem ser mais ou menos potentes conforme estejam relacionados à alegria ou tristeza, respectivamente. Através de Spinoza (2009) então, torna-se possível reconhecer que não haverá mais espaço para rotular arbitrariamente como boas e más as inúmeras manifestações da afetividade humana numa perspectiva universalista destas categorias. Consequentemente, sua proposta rompeu com uma tradição clássico-religiosa que atrelou sentimento à noção de pecado e virtude, como se houvesse um jeito certo e errado de afetar-se. Apesar da proposta spinozista de romper com uma perspectiva moral de concepção da afetividade humana, as instituições tendem a controlar os homens, mediante processos cada vez mais sofisticados de promoção de culpa, aprovação, medos, e tantos outros e para isso se utilizam de recursos que atinjam a dinâmica afetiva, produzindo servidão. 14

Chamo de servidão a impotência humana para regular e refrear os afetos. Pois o homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando, mas sob o do acaso, cujo poder está a tal ponto sujeitado que é, muitas vezes, forçado, ainda que perceba o que é melhor para si, a fazer, entretanto, o pior. (SPINOZA, Ética IV, 2009, p.155).

O medo se estabelece pela condição de servidão a que o homem se submete gerando desta forma atitudes de concórdia por parte de quem o sente, na concepção spinozista. O medo provém da impotência de ânimo; e não diz respeito, por isso, ao uso da razão. (SPINOZA, Ética IV, 2009, p. 207). Seria então, a servidão humana um processo definitivo de estabelecimento do afeto de medo? Não, pois que não havendo negatividade na origem da dinâmica afetiva, também não há irreversibilidade do domínio que os afetos possam exercer sobre o ser humano ou as multidões. O desconhecimento das razões que levam os homens a esta ou aquela atitude ou sentimento não ficaria encoberto irrevogavelmente. Os afetos podem ser conduzidos pelo exercício da razão e serem transformados pela atividade humana. Quem tem um outro sob seu poder (...) detém só o corpo dele, não a mente; mas quem tem (...) tanto a mente como o corpo dele, embora só enquanto dura o medo ou a esperança; na verdade, desaparecida esta ou aquele, o outro fica sob jurisdição de si próprio. (SPINOZA, TP, 2009, p. 17).

Vemos com isso, que não haveria qualquer tipo de servidão definitiva, tudo dependeria da disposição natural humana em perseverar no seu ser e buscar o que lhe fosse útil, mediante a concórdia coletiva, melhor dizendo, buscando aproximar-se disso. Isso significa que os homens, segundo Spinoza (2009), devem investir sempre na força do grupo como potência politicamente natural e com isso, criar bases para uma convivência mais democrática. Não havendo servidão definitiva, por que então se insiste em engendrar processos cada vez mais sofisticados de submeter os indivíduos à manipulação afetiva? Tomando as considerações spinozistas como base seria por que o medo sempre pode se transformar em revolta e esta pode propiciar novas descobertas e arranjos entre os indivíduos, podendo levá-los às causas adequadas das coisas e


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com isso, recobrar o governo de si mesmos; o que não é possível num estado de servidão. No Tratado Político, Spinoza esclarece que, antes de tudo, a multidão não é um mero aglomerado, é naturalmente um sujeito político. Ela reúne a força de um conjunto que traz em si potencialidades de autogoverno. Teme-se, pois a saída da multidão de seu processo de servidão ao medo, por isso os meios de controle de seus afetos se pulveriza socialmente. A exibição em rede nacional e internacional de ocorrências de resgate policial de reféns assim como a massificação de informações, em tempo real, dos fatos que vão se sucedendo nesses contextos é um dos exemplos disso. A filosofia spinozista nos coloca que a multidão regida e dominada pela força da superstição religiosa, por exemplo, se enfraquece e se distancia da jurisdição de si mesma, logo, se afasta de sua dimensão política. A superstição [...] parece proclamar que é bom o que traz tristeza e mau o que traz alegria. (SPINOZA, Ética IV, 2009, p. 210). Neste sentido, afeto e política não se separariam, na medida em que pensando, conforme as orientações spinozistas, o verdadeiro conhecimento das causas afetivas que nos regem se dá quando estamos sob a condução da razão, portanto, quando estamos agindo dentro de nossa dimensão política natural. O que se destaca na discussão é que uma ocorrência com reféns serve de ponte para especulações e formação de sentimentos supersticiosos, no sentido spinozista, já que a superstição afasta o indivíduo de seu senso crítico e promove processos de submissão a afetos tristes, como é o medo. E nada mais supersticioso do que as exibições midiáticas. A produção do medo na cidade do Rio de Janeiro como forma de controle social também foi muito bem estudada por Batista (2003). A autora aprofunda o assunto, a partir de um recorte histórico específico do século XIX. A fabricação do sentimento de insegurança social aliado à forma judicial de tratamento dos delitos relaciona-se diretamente com a abolição da população escrava que passou a ser considerada uma classe potencialmente perigosa. Fato este que por sua vez, passou a justificar um tipo de policiamento desrespeitoso aos direitos fundamentais do ser humano. Toda esta lógica, segundo a autora, teve como base a expansão das ideias positivistas, o chamado patrimonialismo e o racismo, à época.

Outro aspecto que podemos relacionar ao medo é o que diz respeito ao caráter de imprevisibilidade inerente a qualquer ocorrência com refém. Como prever comportamentos, reações e controlar exatamente o desfecho de uma situação como esta? Este estado de incertezas tende a gerar inseguranças que circulam em todo aquele contexto, daí, a estruturação das técnicas, dos estudos sistematizados, do manejo dos profissionais para lidar com o arsenal de possibilidades resolutivas, buscando evitar os desdobramentos desagradáveis. O medo surge no rol dos acontecimentos como o afeto que atravessa os indivíduos, não sendo exclusivo dos indivíduos de fora do fato crítico. Integrantes da equipe de intervenção podem sentilo, já que não há nada que o vincule exclusivamente a um grupo ou alguém. Neste percurso narrativo, destacamos que o correlato do medo seria a esperança. Se a propaganda de cenários de resgate policial de reféns é veiculada pela mídia, até em seriados e filmes, não seria apenas para divulgar fatos. Além da produção do medo, a espetacularização da cena em jogo promove também os heróis. Sobre o exposto acima, estamos nos baseando na pesquisa de Batista (2012) acerca do que ela identifica como policização da vida, um processo contínuo de reforçar as forças policiais como “salvadoras”, um tipo de fabricação de aura mágica em torno da polícia (BATISTA, 2012, p.88), como nos diz a autora. Sua análise nos sugere um tipo de vida esquadrinhada pelas resoluções policiais. Também encontramos em Debord (2003) recursos para pensar que nada mais conveniente na dinâmica do resgate de reféns e na fabricação desta sensação de medo e esperança social do que o homem espectador trazido por ele. Nesta ocorrência, a visibilidade como necessidade parece sobressair, paralisando-nos através da mídia, num jogo ininterrupto de múltiplos afetos. Dando destaque ao medo associado à esperança, consideramos: Os afetos da esperança e do medo não existem sem a tristeza. Com efeito, o medo é [...] uma tristeza, e a esperança não existe sem o medo. (SPINOZA, Ética IV, prop. 47, 2009, p.188). Tanto o medo quanto à esperança são formas de governo de controle das multidões segundo os estudos spinozistas sobre a política e a ética. Produz-se medo para que se tenha esperança e 15


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perde-se a esperança pela volta do medo. A cena do dispositivo de resgate se desenrola sob estes dois afetos, o medo de se perder as vidas envolvidas e a esperança de acerto nas ações, neste jogo tenso entre a vida e a morte que ali se apresenta. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma ocorrência com reféns produz medo ou será que é utilizada para produzir? O problema estaria em sentir o medo ou ser levado a sentir? Estas questões se fundamentam no que foi exposto no presente artigo, na medida em que referendamos o quanto as instituições como o estado, apoiam-se em suas ferramentas de controle social, manipulam os afetos, transmitem suas mensagens de maneira a levar os indivíduos à formação de ideias não necessariamente condizentes com a complexidade da realidade social. Obviamente, a expressividade da violência em um cenário com tomada de reféns reúne elementos propícios ao despertar afetos como o medo; ela evidencia uma tentativa de causar dano a alguém que comumente não passa incólume pelo público e nem tampouco pela equipe de resgate policial. Existe ali uma clara evidência de exposição da vida e sem dúvida, uma intenção em auxiliar, resolver dentro dos parâmetros que são considerados como ajuda e compromisso profissional da equipe. O problema não é este e sim a maneira como eventos como estes são veiculados midiaticamente e o que circula quando são conduzidos. Vimos que um dispositivo de resgate policial agencia afetos, na medida em que editam e reeditam crenças, valores e ideias, muitas vezes, distorcidas e controladoras. Restringem às pessoas, a concordar com as ações pelo medo que sentem e a avaliar a situação sob a ótica da mídia, geralmente, voltada a transmitir para manipular. Além disso, a produção da figura do herói, neste contexto, gera inconvenientes que costumam atingir significativamente tanto a equipe de resgate quanto a opinião pública, já que costuma provocar grandes expectativas de sucesso, podendo ir muito além das possibilidades humanas. O que aconteceria se não houvesse medo e insegurança social? O governo, através do estado, sobreviveria sem o medo, correlato da esperança que permite a justificação de ações econômicas e sociais que respaldam autoridades e definem poderes específicos? 16

No Tratado Político, Spinoza afirma que o estado retira seu direito da potência da multidão e para se tornar democrático é necessário regular-se através do consenso comum. (SPINOZA, 2009, p. 20). Sendo assim, numa sociedade que não fosse conduzida pela manipulação dos afetos, abriríamos espaço para pensar num estado democrático, conforme as recomendações spinozistas de tal forma que os homens se conduziriam muito mais pela razão do que pelas suposições supersticiosas. Contudo, num real estado democrático, provavelmente, a incidência de tomada de reféns não seria a mesma, já que teríamos no espaço político da troca e da possibilidade de partilhar decisões, elementos facilitadores de outra participação em sociedade, ou seja, com mais expressividade das nossas potências que têm sido afastadas de nós, estrategicamente, para que o medo predomine e nos retenha longe de viver de forma mais autônoma.

Referências BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan. 2003. _______. O alemão é muito mais complexo. In: Paz Armada. Cadernos de Criminologia. ICC. Rio de Janeiro: Revan. pp 55-102, 2012. COIMBRA, C. Operação-Rio. O mito das classes perigosas. Rio de Janeiro: Oficina do autor. Intertexto. 2001. _______. Guardiães da Ordem. Uma viagem pelas práticas psi no “Brasil do Milagre”. Rio de Janeiro: Oficina do autor. 1995. DEBORD, G. Sociedade do Espetáculo. Disponível em: <www.geocities.com/projetoperiferia>. 2003. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes. 31 ed. 2006.


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Avaliação Psicológica Forense em Situações de Suspeita de Abuso Sexual em Crianças: possibilidades e riscos

Sonia Liane Reichert Rovinski1 Resumo O artigo analisa a contribuição da avaliação psicológica nos casos de suspeita de abuso sexual em crianças. As características do fenômeno do abuso sexual dificultam a revelação por parte da vítima e a confirmação do fato pelos agentes de segurança e justiça, resultando na expectativa de que o psicólogo possa auxiliar na investigação através da produção de provas técnicas baseadas nos efeitos da vivência traumática. São avaliados os riscos da produção de tais provas se não forem respeitados o contexto e os limites da ciência. São abordadas as limitações na análise dos sintomas clínicos da criança e de sua verbalização. Palavras-chave: Abuso sexual. Avaliação psicológica forense. Laudo psicológico. Abstract This paper analyzes the contribution of psychological evaluation in cases of suspected sexual abuse in children. The characteristics of the phenomenon of sexual abuse hinder the revelation by the victim and the confirmation of the fact by security and justice, resulting in the expectation that the psychologist can assist in the investigation by evidence-based techniques about the effects of traumatic experience. Respect of the evaluation context and the limits of science are discussed, addressing clinical symptoms of the children and they verbalization. Keywords: Sexual abuse. Forensic psychological assessment. Psychological report.

1   Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica (CFP), Mestre em Psicologia Social e da Personalidade (PUC-RS), Doutora em Psicologia Clínica e da Saúde (Universidade de Santiago de Compostela-ES), CRP 07/1792.

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1 INTRODUÇÃO O abuso sexual contra crianças passou a ser assunto de estudos e pesquisas há cerca de 50 anos, apesar do mesmo já ser perpetrado desde a antiguidade e atingir todas as classes sociais. Com a identificação das consequências do abuso sexual na vida das crianças, muito se tem escrito sobre o tema nos últimos anos em todo o mundo, demonstrandose a importância de intervenções preventivas, de modo a evitar maiores danos à vida das vítimas (ADED e col., 2006). Estimativas de prevalência e incidência da violência sexual contra crianças são fundamentais para o desenvolvimento de políticas de prevenção e intervenção ao problema. No entanto, no Brasil, a investigação do fenômeno ainda se dá através de serviços especializados em detrimento de pesquisas com a população em geral (ASSIS, 2009), sendo estes os dados representativos apenas daquela pequena parcela que chega ao conhecimento dos serviços de proteção. Os estudos têm demonstrado que são muitos os problemas que levam à nãonotificação do abuso, seja pela criança, por seus familiares ou, mesmo, pelos técnicos que fazem o atendimento da vítima. Fatores como medo de represálias ou do estigma social, dificuldades na identificação das práticas como incorretas quando o abuso é cometido por familiares, desconhecimento ou descrédito do sistema de proteção e o despreparo dos profissionais da área da segurança e/ou saúde, são alguns dos fatores que preocupam as autoridades quanto a esta baixa notificação dos casos (ADED e col., 2006). Por outro lado, a revelação inicial por parte da criança, ou a suspeita do fato por parte de um adulto, dá início a um longo e tortuoso processo na busca da confirmação do abuso, iniciando-se com a notificação, seguida da denúncia junto aos órgãos de polícia ou Ministério Público, para após se constituir o processo judicial (DOBKE; SANTOS; DELL’AGLIO, 2010). Em nossa realidade, na tentativa de minimizar os problemas da detecção do abuso sexual, as autoridades da área de segurança e do judiciário têm solicitado, de maneira crescente, a avaliação psicológica das crianças vítimas. O objetivo destes encaminhamentos, de maneira sistemática, tem sido o de obter subsídios quanto à ocorrência ou não de tal fato, para poder fundamentar tomadas de decisão quanto à proteção da mesma. As características do fenômeno do abuso sexual, pela falta de evidências clínicas médicas 20

(externas) ou pela síndrome do segredo (FURNISS, 1993), fazem com que as provas sejam pobres e difíceis de serem obtidas. A busca pela Psicologia parte da expectativa de que se possa, se não pela verbalização direta da criança, recorrer a indicadores indiretos decorrentes da vivência traumática, que possam sustentar a ocorrência do fato. A literatura brasileira sobre as consequências dos danos psíquicos na criança (ADED e col., 2006; ASSIS, 2009) não tem sido acompanhada, na mesma intensidade, por estudos que discutam a precisão e a validade das avaliações psicológicas para a identificação dos casos. Pelisoli, Gava e Dell’Aglio (2011), em um dos poucos estudos brasileiros sobre o assunto, discutem como as regras heurísticas podem interferir no julgamento utilizado pelos psicólogos nas tomadas de decisão em situações complexas, como no caso das avaliações em situação de suspeita de abuso sexual. Herman (2005), ao investigar o assunto das perícias forenses, concluiu que 24% das decisões técnicas em laudos se apresentaram como falso-positivas ou falso-negativas. Mesmo assim, as avaliações psicológicas têm sido requisitadas em todas as fases de encaminhamento dos casos, da notificação ao processo judicial. Desde a fase inicial ou investigativa, a criança pode passar por inúmeras intervenções, inclusive de psicólogos que não atuam diretamente com a justiça, mas que acabam tomando decisões quanto à veracidade da situação de abuso (PELISOLI; GAVA; DELL’AGLIO, 2011), sempre com o objetivo de constituir provas para que a denúncia realmente se efetive e o caso possa ir a julgamento. Conforme Amendola (2009), um procedimento técnico comum nesta fase inicial de encaminhamento é limitar-se a entrevistar a criança e o adulto que encaminha a denúncia, com o objetivo de levantar possíveis indicadores dessa vivência traumática, sem considerar a dinâmica mais ampla do caso, através de informações com o acusado. A metodologia utilizada nesse tipo de avaliação psicológica e a validade dos dados colhidos, seja na análise dos sintomas psicológicos ou no discurso da criança, serão objeto de discussão desse trabalho. 2 AVALIAÇÃO CLÍNICA VERSUS AVALIAÇÃO FORENSE A avaliação psicológica no contexto forense com o objetivo de trazer elementos de prova para a tomada de decisão difere em muitos aspectos


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daquela realizada no contexto clínico, exigindo adaptação dos procedimentos para não se incorrer em condutas antiéticas. Nessa diferenciação, três aspectos devem ser considerados: (a) o foco da avaliação; (b) a relação entre avaliador e sujeito avaliado; e (c) a metodologia de trabalho empregada (MELTON e col, 1997) . Em uma avaliação clínica, o foco fica dirigido ao mundo interno do sujeito avaliado, o objetivo é compreender a dinâmica psíquica, sofrimento e possíveis sintomas, sempre com o objetivo de formar um diagnóstico para futuras intervenções. Na área forense, o foco dirige-se a eventos que são definidos de forma mais restrita ou de interação de natureza não clínica. O diagnóstico do sujeito avaliado pode fazer parte da investigação, mas o resultado deve ultrapassar tais dados, de forma a se fazer inferências à questão legal que deu origem ao processo de avaliação. No caso dos encaminhamentos para avaliação de suposto abuso sexual, a questão da demanda não se atém ao conhecimento do mundo interno da criança, mas exige que se façam inferências quanto aos indicadores de sofrimento psíquico que possam ser associados a uma situação real e específica de abuso sexual. Grow-Marnat (2003) salienta que a maioria das críticas aos laudos psicológicos não é direcionada aos dados brutos que os psicólogos levantam em suas avaliações, mas às inferências e generalizações que realizam sobre esses dados. Os técnicos precisam estar preparados para fornecer de forma explícita o nível de segurança de suas informações através dos fundamentos do método científico para pessoas que não têm essa abordagem em seu enfoque de trabalho. Quanto à relação entre avaliador e sujeito avaliado, é de fundamental importância questionarse sobre a motivação deste último para a participação no processo avaliativo. Enquanto na área clínica o atendimento é buscado de forma autônoma, na área forense o sujeito é encaminhado por um agente legal (promotor, delegado, juiz) e seu interesse em participar estará diretamente vinculado a esta demanda jurídica e suas consequências. Assim, pode-se dizer que numa avaliação forense encontramos, com maior probabilidade, sujeitos resistentes e não colaborativos, com possibilidade de manifestarem condutas de simulação ou dissimulação. Principalmente em situações de denúncia de abuso sexual intrafamiliar, será

de fundamental importância verificar não só a motivação da criança, mas, também, do adulto que a acompanha, relativizando os dados por ele informados se houver indícios de litígio conjugal entre o acusado e o denunciante. Em separações litigiosas não é incomum encontrar-se falsas denúncias de abuso sexual com intenções diversas daquela de proteção à criança. Assim, a metodologia empregada em contextos de avaliação forense exige preocupação com a validade das informações que se recebe. A avaliação necessita ultrapassar a visão particular do avaliando (mundo interno) e de seu acompanhante, para confirmá-la com outros dados de realidade. O procedimento de avaliação deve incluir fontes variadas de informação e, no caso de denúncias de violência à criança, todos os envolvidos, inclusive o suposto agressor, devem participar do processo avaliativo (CFP, 2010). Para Packer e Grisso (2011), a justificativa para tal prática está, em primeiro lugar, no fato da possibilidade de erro inerente a todos os métodos de avaliação psicológica, quando o cruzamento de vários resultados poderia reduzir as chances de se concluir sobre uma possível fonte de informação distorcida. Na avaliação dos riscos para a validade dos achados devem ser incluídas não só as informações distorcidas de forma intencional pelo denunciante, mas, também, aquelas que foram distorcidas de forma não-intencional. Sabe-se que conflitos na discriminação entre conjugalidade e parentalidade, histórias pregressas de violência pessoal e diferença nos valores morais, podem gerar percepções distorcidas quanto condutas de cuidado com a criança entre os cônjuges, com a identificação de situações traumáticas que não existiram na realidade ou que se caracterizaram por condutas sem valor jurídico de ilícito (não correspondem ao conceito legal de abuso). Assim, o não cumprimento dessa metodologia – de uma ampla investigação contemplando todas as fontes possíveis de informação - colocará em risco as conclusões do perito, pois seus achados carecerão da necessária validade. Echeburúa, Muñoz e Loinaz (2011) incluem os testes psicológicos nas mesmas exigências de cuidados técnicos quanto às limitações de suas inferências, pois também necessitam ter seus achados adaptados às circunstâncias concretas do caso, a partir de um minucioso histórico de dados. É importante lembrar que não existem instrumentos psicológicos que podem responder de uma forma 21


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direta a demanda legal sobre a ocorrência ou não de um determinado fato. Em decorrência do exposto, é possível concluir que avaliação clínica e forense divergem substancialmente quanto aos objetivos e a metodologia empregada. Resultados encontrados em uma avaliação clínica não possuem os critérios mínimos de validade que são exigidos num processo de avaliação forense. O clínico estabelece uma relação baseada no bem-estar (o melhor interesse) de seu paciente e na confidencialidade – aspectos que colocam em risco a objetividade do avaliador forense. Crianças que passam por situações de denúncia de abuso sexual necessitam os dois tipos de intervenções. A abordagem clínica voltada ao seu mundo interno, apoiando-a no sofrimento psíquico (independente da compatibilidade com os fatos reais), e a abordagem forense, no sentido de buscar indicadores que têm a validade necessária para fundamentar inferências quanto à questão legal (ocorrência do fato). Essas abordagens, em função das diferenças de metodologia e vínculo com o entrevistador, precisam ser realizadas por pessoas distintas e não se substituem uma a outra. 3 ESTUDO DAS VARIÁVEIS QUE CONFIRMAM SITUAÇÕES DE ABUSO SEXUAL Em função das limitações de provas mais objetivas quanto à ocorrência de um possível abuso sexual, incluindo aqui a falta de um relato da criança sobre a sua vivência traumática, seja pela sua incapacidade ou negativa em fazê-lo, a avaliação da criança, suposta vítima, é dirigida pelo psicólogo para o levantamento de indicadores indiretos que possam ser associados a vivências traumáticas, de modo a permitir inferências a fatos que tenham ocorrido na vida real. Para Faust, Bridges e Ahern (2009), toda variável de comportamento ou um dado de testagem psicológica para ter o valor de indicador da vivência de um determinado tipo de trauma, deverá, necessariamente, possuir duas características: validade e valor de diferenciação. A validade é dada quando, através de estudos empíricos, podese associar determinado indicador psíquico a um determinado grupo de sujeitos. Por exemplo, quando se compara um grupo de crianças que foram abusadas sexualmente com outro de crianças não-abusadas, e constata-se que no primeiro grupo houve uma maior frequência de “comportamentos 22

sexualizados”. Assim, pode-se dizer que este é um indicador válido, pois se associa a este tipo de vivência traumática. Conforme os autores, essa variável pode ser considerada como válida, mesmo se estiver associada a uma minoria das crianças que foram abusadas sexualmente, pois estará relacionada a essa vivência. O valor de diferenciação, de modo diferente ao anterior, é determinado quando uma variável auxilia na separação ou discriminação de crianças abusadas sexualmente das outras em geral que também foram encaminhadas para avaliação. A diferenciação perfeita seria dada quando a variável se manifestasse apenas nas crianças abusadas e nunca ocorresse por outros motivos. A ocorrência deste tipo de indicador permitiria garantir que aquele que o manifestasse teria passado, necessariamente, por esta experiência específica. Portanto, pode-se dizer que uma variável que não é válida, nunca terá poder de diferenciação, mas uma variável pode ser válida e não ter o poder de diferenciação. Retomamos aqui o exemplo já citado da exacerbação da sexualidade em crianças. Enquanto alguns estudos têm mostrado uma maior sexualização associada a crianças que foram abusadas sexualmente, outros referem esta mesma forma de comportamento em crianças que passaram por diferentes tipos de estresse, como brigas familiares e separação conjugal, mas não abuso sexual (FRIEDRICH e col., 1998). Assim, podemos concluir que este tipo de indicador possui validade, mas não poder de diferenciação. O grande risco quanto à validade dos achados do psicólogo é a possibilidade de se confundir indicadores de validade com aqueles que teriam também o poder de diferenciação. Essa situação tende a ocorrer com mais frequência quando o técnico é chamado para avaliar uma criança com o objetivo de encontrar nela indicadores de uma situação que é verbalizada como verdadeira por aquele que a acompanha e que faz a denúncia. Nestes casos, o psicólogo pode considerar desnecessário ouvir a versão do acusado e passa simplesmente a confirmar hipóteses prévias trazidas por terceiros (familiares ou autoridades investigativas). Para Amendola (2009) esta seria uma situação de grande risco, pois o profissional passa a segregar e julgar o acusado por antecipação. A autora acrescenta que, na prática de muitos psicólogos, a certeza é tanta de que o abuso tenha acontecido que estes passam a prolongar no tempo seus atendimentos até que


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a criança venha expressar-se verbalmente sobre o ocorrido, sem considerar em nenhum momento a possibilidade da não-ocorrência do fato. Aqui, de modo contrário ao que foi explicado sobre os requisitos da metodologia da avaliação forense (ampla investigação de fontes), a recusa em falar fica restrita a uma única interpretação – a resistência interna da criança em expor os fatos. 4 A verbalização da criança sobre a vivência do abuso sexual O desenvolvimento atual de pesquisas na área da investigação de ocorrência de situações traumáticas tem demonstrado a importância de se obter com a vítima a verbalização de sua vivência. Inúmeras associações de profissionais e grupos de pesquisa, em diversos países, desenvolveram protocolos de orientação de como a entrevista com a vítima deve ser conduzida, principalmente quando esta é criança. De maneira geral, as propostas apresentam um alto nível de coincidência no desenvolvimento da entrevista em mais de uma sessão (ainda que não devam se prolongar demais), seguir uma determinada sequência, ser realizada por profissional capacitado, de preferência sem a presença dos pais e ser sempre gravada. A orientação destes protocolos segue duas diretrizes básicas: evitar técnicas sugestivas ou que prejudiquem a exatidão da declaração e propor procedimentos que estimulem a narrativa das vítimas (DUARTE; ARBOLEDA, 2000). Uma metodologia muito utilizada nesses casos, para verificar se o discurso seria representativo de uma vivência real, é o sistema de Avaliação da Validade da Declaração (Statement Validity Assessment - SVA, VRIJ, 2000). Conforme Vrij, para realizar este tipo de avaliação é necessário se cumpram três etapas. Primeiro, uma entrevista que favoreça uma verbalização rica em detalhes, sem produzir elementos inverídicos; segundo, que sejam identificados critérios de credibilidade - CBCA2 (são 19 ao todo); terceiro, que se faça uma avaliação do contexto da entrevista, num domínio mais amplo, envolvendo outras fontes de informação, sempre com o objetivo de considerar explicações alternativas para os dados trazidos pela criança. Nesta terceira etapa do processo, é   CBCA – “Criteria-Based Content Analysis”.

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apresentada uma “Lista de Controle de Validade”, com 11 perguntas relacionadas ao declarante, às características da entrevista realizada, à motivação da vítima para dar sua declaração e outras de cunho investigativo relacionando inconsistências com outras evidências e declarações. É praticamente impossível checar as questões desta lista com entrevistas que se restrinjam apenas à criança vítima e ao seu acompanhante. Assim, pela própria técnica, não se podem considerar a priori os critérios de credibilidade do discurso (CBCA) como conclusivos, sem antes verificar os fatores contextuais. Estudos mostram que histórias criadas, e não vivenciadas, podem se apresentar ricas em detalhes, produzidos por entrevistas anteriores sugestivas ou por um imaginário familiar decorrente de conflitos originados em situações diversas do abuso sexual (KÖHNKEN, 2005). Cabe lembrar que, falsas memórias podem ocorrer não só na criança, mas, também, nos demais adultos que a cercam, além da possibilidade de se fazerem interpretações errôneas sobre a conduta do suposto abusador. Conforme Köhnken (2008), basta uma intervenção sugestiva à criança para que se prejudique de forma definitiva e irremediavelmente a prova da oitiva da mesma. Isto porque, as falsas memórias substituem as memórias verdadeiras dos fatos realmente acontecidos, inviabilizando o acesso posterior às primeiras. Assim, ainda que a entrevista com a criança seja feita dentro de parâmetros estabelecidos pelos protocolos, sem o uso de técnicas sugestivas, cuidados devem ser dispensados em uma análise do contexto em que este discurso foi construído. Conforme Amendola (2009, p. 20), “a relação familiar torna-se parte fundamental no contexto de análise de alegações de abuso sexual contra a criança”. Situações onde existem separações litigiosas com vínculos de lealdade da criança com um dos genitores podem gerar falsos testemunhos, de forma intencional ou não. Isto quer dizer, a criança pode em algumas situações mentir (FURNISS, 1993) e, em outras, trazer relatos baseados em falsas memórias construídas durante o processo de investigação (STEIN e col., 2010). As falsas memórias devem ser compreendidas como distorções nas lembranças dos fatos vivenciados pela criança, sendo produzidas por fatores endógenos (características da personalidade da criança) ou exógenos (influências externas, como entrevistas 23


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sugestivas), mas que, para a criança, permanecem como lembrança de vivências reais. Atualmente, em nossa realidade, tem-se observado uma crescente valorização da palavra da criança vítima, em detrimento ao contexto social/ familiar em que foi construído, num direcionamento contrário ao que vem sendo alertado pelos estudos científicos. A crescente adoção dos depoimentos especiais em vários estados brasileiros (CEZAR, 2007) e o uso cada vez mais comum da entrevista com a criança como procedimento único de avaliação psicológica (AMENDOLA, 2009), tem criado um viés interpretativo de confirmação de hipóteses previamente construídas. Conforme Pelisoli, Gava e Dell’Aglio (2011, p.334), “fica claro que apenas uma entrevista não sugestiva e cuidadosa não garante que outras variáveis deixem de exercer suas influências”; neste caso, as crenças prévias dos profissionais que realizam a avaliação da criança exerceriam um papel preponderante e a atuação dos mesmos se exerceria mais como defensores da criança do que como avaliadores neutros. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo dessa apresentação crítica sobre o uso das principais técnicas de avaliação de crianças em situação de suposto abuso sexual é alertar para os riscos de se utilizarem indicadores (seja de conduta, sintoma ou verbalização) de forma isolada, sem uma inserção dos mesmos no histórico de vida da criança e no histórico da revelação e da denúncia. Quando a discussão é a produção de documentos para o judiciário, onde os dados psicológicos irão produzir provas processuais, é necessário mais do que simplesmente validar hipóteses que foram trazidas por aqueles que denunciaram o abuso. Conforme Köhnken (2008), é necessário que o psicólogo avaliador, primeiramente, investigue e descarte todas as outras possibilidades de ocorrências que possam ter gerado a denúncia, para, depois, poder afirmar aquela propriamente do abuso. Realizar esse tipo de trabalho supõe sempre uma avaliação mais ampla e com todos os sujeitos envolvidos no conflito, sejam autores, vítimas ou supostos abusadores. Para que o psicólogo venha a emitir laudos sobre situações de investigação de vitimização sexual, ele deve receber treinamento não só sobre o fenômeno em questão e suas formas de avaliação, mas, também, deve ter ciência sobre os 24

processos de tomada de decisão que venha utilizar. Conforme Pelisoli, Gava e Dell’Aglio (2011), deve o psicólogo ter consciência de que suas crenças podem influenciar a percepção das evidências, produzir a construção de uma sequência plausível de eventos, determinar a avaliação da credibilidade do acusado e da alegada vítima e, também, definir o padrão mínimo de exigência para convencerse sobre a culpabilidade de uma pessoa acusada. Em outras palavras, é fundamental que possa discriminar aquilo que pode ser justificado pela ciência daquilo que é produzido, pelas suas crenças e pelo conhecimento do senso comum.

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A relação entre o lócus de controle e o coping ‘ações agressivas’: um estudo com atletas do esporte escolar

Marcus Levi Lopes Barbosa1 Resumo O objetivo deste estudo é avaliar e discutir as relações entre as dimensões do lócus de controle (‘interno’, ‘externo – outros poderosos’ e ‘externo - grandes forças’) e o estilo de coping ‘ações agressivas’ em atletas praticantes de esporte escolar. A amostra utilizada foi composta de 437 atletas entre 13 e 19 anos. Os instrumentos utilizados foram o “Inventário lócus de controle para praticantes de atividades esportivas” e o “Inventário de coping para praticantes de atividades esportivas”. Cuidados éticos foram observados. Todos os participantes assinaram o “Termo de consentimento livre e esclarecido”. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS – sob o número 2008055. Os resultados indicam que apenas os lócus de controle ‘interno’ (r = -0,130) e ‘externo – outros poderosos’ (r = 0,167) estão significativamente (p < 0,01) correlacionados ao coping ‘ações agressivas’. Atletas com o lócus de controle predominantemente ‘interno’ tendem a preterir o coping ‘ações agressivas’, já os atletas com o lócus de controle predominantemente ‘externo – outros poderosos’ tendem a emitir o comportamento agressivo como estratégia para lidar com estresse com mais frequência. As regressões lineares indicaram que estas duas variáveis preveem 4,3% da variância do coping ‘ações agressivas’. Palavras-chave: Lócus de controle. Coping. Agressão. Esporte escolar. Abratract The aim of this study is evaluate and discuss the relationships between the dimensions of locus of control (‘internal’, ‘external - powerful others’ and ‘external - luck’) and coping style ‘aggressive actions’ in athletes in school sport . The sample was composed of 437 athletes aged 13 - 19 years. The instruments used were the “Inventário de lócus de controle para praticantes de atividades esportivas” and “Inventário de coping para praticantes de atividades esportivas”. Ethical guidelines were followed. All participants signed the “free and informed consent”. The research project was approved by the Ethics Committee of the Federal University of Rio Grande do Sul - UFRGS - under number 2008055. The results indicate that only the ‘internal’ locus of control (r = -.130) and ‘external - powerful others’ (r = .167) are significantly (p < .01)

1   Possui graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2003), mestrado em Ciências do Movimento Humano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2006) e doutorado em Ciências do Movimento Humano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2011). Atualmente é psicoterapeuta - Clínica Três Coroas e professor adjunto da Universidade Feevale. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Técnicas de Processamento Estatístico, Matemático e Computacional em Psicologia, atuando principalmente nos seguintes temas: motivação, interesses profissionais, modelo hexagonal, atividade física e adolescente. E-mail: marcusl@feevale.br.

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correlated with coping ‘aggressive actions’. Athletes with the locus of control predominantly ‘internal’ tend to eschew coping ‘aggressive actions’, as athletes with the locus of control predominantly ‘external - other powerful’ tend to emit aggressive behavior as a strategy to deal with stress more often. Linear regressions indicated that these two variables predict 4.3% of the variance of coping ‘aggressive actions’. Keywords: Locus of control. Coping. Aggression. Sports school.

1 INTRODUÇÃO O tema do presente estudo é a relação entre o lócus de controle e a ocorrência do comportamento agressivo. O objetivo é avaliar e discutir as relações entre as dimensões do lócus de controle (‘interno’, ‘externo - outros poderosos’ e ‘externo - grandes forças’) e o estilo de coping ‘ações agressivas’. Em busca de alcançar o objetivo, serão apresentadas as bases teóricas destes conceitos e evidências empíricas de sua relação. O contexto do esporte tem se mostrado especialmente fértil para a ocorrência do comportamento agressivo. Trata-se de um contexto no qual a agressão é entendida por alguns como necessária (RUBIO, 2006). Os atletas estão constantemente em situação de prova, estão em oposição ao outro (adversário), há uma tradição militar e uma linguagem bélica (TAFAREL, 1993), há, ainda a presente e frequente frustração da derrota (RUBIO, 2006). Dito de outra maneira, o contexto do esporte competitivo é repleto de fontes de frustração e estresse, apontados por alguns autores como fontes do comportamento agressivo (DOLLARD, et al., 1939; DOLLARD, et al., 1976; MILLER, 1941). O comportamento agressivo tem recebido a atenção de diversos pesquisadores e teóricos da psicologia. Dentre eles, destaca-se Dollard et al. (1939), com a sua importante hipótese de que a frustração causa a agressão. Ele sugere que a não obtenção de um objetivo desejado ou esperado (situação bastante comum no contexto esportivo) leva a um comportamento agressivo. A hipótese inicial de Dollard, embora bastante coerente, mostrouse insuficiente para explicar toda a complexidade que circunda o comportamento agressivo. Ela foi repetidamente revisada (BERKOWITZ, 1962; 1969; 1989; MILLER, 1941; PARKER; ROGERS, 1981) de forma a contemplar contingencias que provocariam ou inibiriam a ocorrência do comportamento agressivo diante de situações de frustração (tais como as regras, expectativas de punição, sexo dos 28

sujeitos envolvidos, interpretação que o sujeito faz da situação, e outros), mostrando que as situações de frustração podem desencadear diversos comportamentos, dentre os quais esta a agressão. As situações de frustração são invariavelmente estressantes, visto que exigem adaptação do sujeito diante de uma adversidade (BALBINOTTI; BARBOSA; WIETHAEUPER, 2006; BARBOSA, et al., 2006), sendo assim, é pertinente avaliar o comportamento agressivo como uma estratégia de coping. As estratégias de coping são o conjunto de esforços cognitivos e comportamentais, ou estratégias de enfrentamento, realizados pelo indivíduo com o objetivo de lidar com as demandas, internas e externas, que são por ele avaliadas como sobrecarregando ou excedendo seus recursos pessoais (FOLKMAN; LAZARUS, 1985). As estratégias de coping podem ser mais ou menos adaptativas. Entre as estratégias desadaptativas (também chamadas de estratégias de afastamento) está o coping ‘ações agressivas’. Trata-se do comportamento explosivo e violento que o atleta adota quando sob estresse. O atleta xinga, grita e briga com quem está por perto, chuta o que e quem está em sua frente. Estas estratégias são consideradas desadaptativas porque, embora oportunizem a atuação das emoções negativas acumuladas, não resolvem a situação estressante, ao contrário, podem colocar o sujeito em uma situação de maior estresse do que a situação inicial (visto que vai ter que lidar com as consequências de seu comportamento agressivo). Entre as estratégias adaptavas (também chamadas de estratégias de aproximação) está o coping ‘reavaliação da situação’. Trata-se do comportamento daquele atleta que procura repensar a situação e entender o que está acontecendo. Ele avalia a situação procurando entender o que está funcionando e o que não está funcionando, avalia o seu comportamento diante da situação, repensando a sua linha de ação do evento estressor. Estas estratégias são consideradas adaptativas porque tendem a contribuir para um


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manejo mais bem sucedido da situação estressora. Estudos posteriores às elaborações iniciais de Dollard (1939) indicaram que entre os fatores que aumentam (ou diminuem) a probabilidade de ocorrência do comportamento agressivo diante da frustração, destaca-se a explicação que os sujeitos fornecem as causas do evento frustrante (BERKOWITZ, 1989). De um lado, se a explicação fornecida pelo sujeito para as causas da frustração são internas ao próprio sujeito, o comportamento agressivo diante da frustração tende a ser menor, de outro lado, se a explicação das causas da frustração são externas, o comportamento agressivo diante da frustração tende a ser maior. Sendo assim, é pertinente incluir a variável lócus de controle neste estudo. O lócus de controle tem sido estudado em diversos contextos, (KURITA, PIMENTA, 2004; DELA COLETA, 1987; OLIVEIRA, et al., 2012; MACIEL, CAMARGO, 2010) dentre os quais, o do esporte (BARBOSA, 2011). O lócus de controle refere-se ao modo como a pessoa percebe a relação entre seus esforços e o resultado de um evento (WENZEL, 1993). Caso esta relação esteja clara para o indivíduo, diz-se que ela é internamente orientada, ao passo que quando esta relação não é clara, a pessoa tende a responsabilizar outros fatores pelo sucesso ou insucesso de determinada ação, dizendose que ela é externamente orientada. O construto de lócus de controle possui diversas conceituações, ainda assim, atualmente há um relativo consenso na literatura quanto a considerar o lócus de controle como um construto tridimensional, sendo uma dimensão interna e outras duas externas (OLIVEIRA, et al., 2012). A dimensão interna mede (a) a percepção de que o controle sobre os eventos de sua vida (tais como as vitórias e derrotas do esporte) estão no próprio sujeito (lócus de controle ‘interno’), as duas dimensões externas medem (b) a percepção de que estes eventos são controlados por outras pessoas poderosas (‘externo - outros poderosos’), tais como treinadores, dirigentes, pais, etc. e (c) a percepção de que estes eventos são controlados pelas grandes forças do universo (‘externo - grandes forças’), tais como acaso, azar, sorte, Deus, destino, etc. (DELA COLETA, DELA COLETA, 1996). Estudos empíricos indicam que o lócus de controle e o comportamento agressivo estão relacionados. Um estudo (RUSSELL, 1979), realizado com um grupo de atletas de hóquei

no gelo, mostrou que há uma relação positiva e significativa (p < 0,05) entre o comportamento agressivo e o lócus de controle externo, neste grupo. Um segundo estudo (ÖSTERMAN; et al., 1999) avaliou 722 adolescentes com idades entre 11 e 15 anos. Este estudo mostrou que há uma relação positiva e significativa entre o lócus de controle ‘externo - outros poderosos’ e o comportamento agressivo, nos sujeitos do sexo masculino. Um terceiro estudo com 135 universitários com idades entre 21 e 44 anos avaliou a relação entre o lócus de controle e diversas outras variáveis concluiu que há uma relação positiva e significativa (p < 0,05) entre o lócus de controle ‘externo - outros poderosos’ e comportamento agressivo (BANDEIRA, et al., 2005). Com base nos pressupostos teóricos e nas evidências empíricas apresentadas as seguintes questões norteiam este trabalho: Há relações lineares significativas (p < 0,05) entre as dimensões do lócus de controle (‘interno’, ‘externo - outros poderosos’ e ‘externo - grandes forças’) e o estilo de coping ‘ações agressivas’, em uma amostra de atletas do esporte escolar? As dimensões do lócus de controle (‘interno’, ‘externo - outros poderosos’ e ‘externo - grandes forças’) são capazes de prever a ocorrência do coping ‘ações agressivas’, nesta mesma amostra de atletas? Os procedimentos metodológicos descritos a seguir tem o propósito de obter subsídios empíricos que permitam responder estas questões. 2 SUJEITOS A amostra utilizada nesta pesquisa foi composta de 437 atletas (nm = 253; nf = 184), com idades de 13 a 19 anos ( X = 15,26; s = 1,47). As modalidades praticadas por eles são: futebol de campo (n = 164), futebol de salão (n = 57), vôlei (n = 118), handebol (n = 59), basquete (n = 24), atletismo (n = 5), judô (n = 4), caratê (n = 1), tênis (n = 3) e remo (n = 2) (ver mais detalhes na Tabela 1). Os critérios para inclusão na amostra foram os seguintes: (1) estar regularmente matriculado em turmas entre o último ano do ensino fundamental ao fim do ensino médio e (2) ser integrante de equipes esportivas escolares (como atividade extracurricular). Outros dois critérios (secundários) foram utilizados na seleção dos sujeitos. Tratam-se, precisamente, dos critérios da disponibilidade e acessibilidade. Esses critérios foram usados já que nas pesquisas em educação e/ou psicologia a obtenção de amostras aleatórias 29


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pode se tornar um procedimento muito complexo e demandar um incrível esforço financeiro (MAGUIRE; ROGERS, 1989) – recursos que, no caso desta pesquisa, não estão disponíveis. A fim de evitar possíveis distorções decorrentes deste tipo de amostragem, dois cuidados foram observados: (1) o número de sujeitos na amostra obedece ao critério de Dassa (1999) para este tipo de estudo; (2) a amostra inclui escolas públicas e privadas da capital, região metropolitana e interior do estado do Rio Grande do Sul. Acredita-se que, com esses cuidados, amostra é representativa a população alvo. 3 PROCEDIMENTOS O primeiro procedimento foi realizar um contato inicial com cada um dos diretores das escolas nas quais se pretendia coletar os dados. Esse contato teve o propósito de apresentar o projeto e seus objetivos a fim de obter a permissão da coleta de dados na escola. Obtida a permissão, foram agendadas as seções de aplicação dos instrumentos. O “Termo de consentimento livre e esclarecido”, endereçado aos pais, foi previamente enviado e recolhido pelos professores. No que se refere ao contato com os alunos, coube um detalhamento dos procedimentos. No primeiro contato, a pesquisa, sua importância e

objetivos foram expostos. Além disto, foi assegurada a confidencialidade de suas respostas (dos jovens atletas) e o fato de elas serem analisadas somente em grupo e conforme as variáveis de controle da pesquisa (por exemplo, sexo e idade) – o que torna impossível a identificação (ou a análise inapropriada) das respostas individualizadas, caso alguém (mal intencionado) queira utilizar os resultados apresentados na versão final deste artigo com a intenção de expor os perfis individuais explorados pelos instrumentos aplicados. Após os participantes foram informados que a qualquer momento (mesmo após seus dados terem sido coletados), eles poderiam optar por não participar da pesquisa, inclusive requerendo que seus dados fossem retirados das análises finais; procedimento sublinhado por Balbinotti e Wiethaeuper (2002). Na continuação, os sujeitos que concordaram em participar da pesquisa assinaram o “Termo de Consentimento livre e esclarecido”, que foi elaborado de acordo com os princípios de “respeito à pessoa” e da “autonomia” (GOLDIM, 2014a), “da beneficência” (GOLDIM, 2014b) e “da nãomaleficência” (GOLDIM, 2014c), todos de acordo com as diretrizes da Resolução n.º 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde (2008). O TCLE e o projeto de pesquisa foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da

Tabela 1 - Detalhes das distribuições das frequências dos dados descritivos da amostra Variáveis

Sexo Tipo de Esporte

Idades

Sexo

Idades

M

F

Individual

Coletivo

13 anos

14-15 anos

16-17 anos

18-19 anos

M

253

--

8

245

18

131

90

14

F

--

184

7

177

21

96

62

5

Individual

8

7

15

--

1

2

8

4

Coletivo

245

177

--

422

38

225

144

15

13 anos

18

21

1

38

39

--

--

--

14 - 15 anos

131

96

2

255

--

227

--

--

16 – 17 anos

90

62

8

144

--

--

152

--

18 - 19 anos

14

5

4

15

--

--

--

19

Fonte: elaborada pelo autor 30

Tipo de Esporte


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Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS – sob o número 2008055. Cumprida esta etapa, os participantes responderam aos instrumentos. O tempo de testagem foi de aproximadamente 10 minutos. A aplicação foi realizada em grupo, na sala de aula, por equipe com experiência de campo em coleta de dados para pesquisa na área da Psicologia & Educação, sempre sob a coordenação de um psicólogo. O rapport (técnica de aplicação de instrumentos) foi cuidadosamente planejado e executado com vistas a obter níveis ótimos de padronização. 4 INSTRUMENTOS Os instrumentos foram selecionados tendo em vista da relação entre o lócus de controle e o coping ‘ações agressivas’ no contexto do esporte escolar, sendo assim, os selecionados são todos aplicáveis ao contexto da pesquisa. Os instrumentos utilizados são detalhadamente descritos a seguir. Lócus de controle. Para avaliar o ‘lócus de controle’ utilizou-se o “Inventário lócus de controle para praticantes de atividades esportivas” (BALBINOTTI; BARBOSA, 2008a). Trata-se de um inventário baseado na “Escala multidimensional de lócus de controle”, de Dela Coleta (1987). A escala possui três dimensões: ‘lócus de controle interno’, ‘lócus de controle externo - outros poderosos’ e ‘externo - grandes forças’. Cada escala é composta por três itens, respondidos em uma escala de tipo Likert (LIKERT, 1932) em cinco pontos, indo de “Discordo totalmente” (1) até “Concordo totalmente” (5). As evidências da validade deste teste (a variância total explicada na analise fatorial exploratória foi de 39,71%) e consistência interna (α > 0,60) foram exploradas por Barbosa (2011). Estilo de coping. Para avaliar o comportamento de ‘coping’ foi utilizada uma dimensão do “Inventário de coping para praticantes de atividades esportivas” (BALBINOTTI; BARBOSA, 2008b). A dimensão utilizada neste estudo foi a ‘ações agressivas’. Para responder ao inventário, o sujeito deve numerar as ações descritas nos itens, hierarquizando, da primeira a última, a ordem que melhor representa a sua ação quando ele está sob estresse na atividade esportiva. As evidências da validade deste teste (a variância total explicada na análise fatorial exploratória foi de 48,90%) e consistência interna (α = 0,85) foram exploradas por Barbosa (2011).

5 RESULTADOS Descritos os procedimentos metodológicos, cabe agora apresentar os resultados obtidos a partir dos dados colhidos. Inicialmente serão apresentadas as análises descritivas e correlacionais, logo a seguir, as regressões lineares. O conjunto destes resultados permitira inferências sobre as relações entre as variáveis alvo deste estudo. No que diz respeito às análises descritivas, a média obtida na dimensão coping ‘ações agressivas’ apresentou um escore médio de cerca de 3,5 pontos abaixo da média esperada. Sabe-se que os escores para as escalas de coping poderiam variar de 3 a 24 pontos, com média esperada de 13,5 pontos. A média observada (ver Tabela 2) é estatisticamente igual à média esperada (t = -0,477; gl = 434; p > 0,05). Quanto às análises descritivas das dimensões do lócus de controle, as médias indicam que o lócus de controle ‘interno’ apresentou os maiores níveis nesta amostra, ao passo que o lócus de controle ‘externo - outros poderosos’ apresentou os menores níveis. Sabe-se que os escores nesta escala poderiam variar de 3 a 15 pontos com média esperada de 9 pontos. A dimensão lócus de controle ‘interno’ aproximouse do limite superior, ficando apenas cerca de 2,5 pontos deste limite, os escores no lócus de controle ‘externo - grandes forças’ aparece em segundo lugar, com escore médio pouco mais de 2,5 pontos acima da média esperada para a escala e o lócus de controle ‘externo - outros poderosos’ apresenta os menores níveis, ainda assim, apenas 1 ponto abaixo do escorre médio esperado. Os escores das três dimensões apresentaram diferenças significativas entre si (t > |13, 016|; gl = 437; p < 0,05). No caso das correlações, cabe salientar que 2 das 3 correlações medidas (entre os dois conceitos), apresentaram níveis altamente significativos (p < 0,01). O coping ‘ações agressivas’, apresentou corelação negativa, fraca e significativa com o lócus de controle ‘interno’ e corelação positiva, fraca e significativa com o lócus de controle ‘externo outros poderosos’, indicando que há uma associação linear, de um lado direta (lócus de controle ‘externo outros poderosos’), e de outro lado inversa (lócus de controle ‘interno’) com o comportamento agressivo diante das situações estressantes. Descritos os resultados relativos às correlações, cabe agora apresentar os resultados relativos às

31


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Tabela 2 - Estatística descritiva e intercorrelação entre o lócus de controle e o coping Variável

X

1. Coping: Ações agressivas

10,02 (6,33)

2. Lócus de controle: Interno

12,65 (2,17)

3. Lócus de controle: Externo outros poderosos

8,00 (2,77)

4. Lócus de controle: G. F.

11,68 (2,38)

(σ)

1

2

3

4

--

-0,130**

0,167**

-0,033

--

-0,056

-0,351**

--

0,196** --

Nota: Correlações r de Pearson. ** correlações são altamente significativas (p < 0,01)

Tabela 3 - Regressões lineares múltiplas (método stepwise) onde a relação causal entre as dimensões do lócus de controle e o coping ‘ações agressivas’ são testados Variáveis preditoras

Β

T

Sig.

Lócus de controle ‘externo - outros poderosos’

0,316

3,396

0,001

Lócus de controle ‘interno’

-0,278

-2,576

F

Sig.

Variável predita

0,206

0,043

9,607

0,000

Coping ‘ações agressivas’

0,010

regressões lineares, que permitirão avaliar se o lócus de controle é capaz de prever o comportamento agressivo. O teste (regressões lineares) foi realizado pelo método stepwise, com o coping ‘ações agressivas’ como variável predita. Como se pode ver na Tabela 3, a regressão linear múltipla indicou que duas das três dimensões do lócus de controle (‘interno’ e ‘externo - outros poderosos’) são preditoras do coping ‘ações agressivas’. De um lado, o lócus de controle ‘externo - outros poderosos’ é um preditor direto e, de outro lado, o lócus de controle ‘interno’ é um preditor inverso. Estas duas variáveis preveem 4,3% da variância da variável alvo. 6 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS Uma vez que os resultados foram apresentados, cabe agora discuti-los. As análises descritivas mostraram que a estratégia de coping ‘ações agressivas’ é utilizada com uma frequência 32

R

mediana na amostra de atletas estudada. Tratase de um resultado esperado, visto que, por um lado, o ambiente esportivo apresenta diversas características que propiciam a ocorrência do comportamento agressivo, tais como as frequentes frustrações impostas pela situação de competição (RUBIO, 2006), mas, por outro lado, apresenta diversas características que inibem a ocorrência do comportamento agressivo, tais como as regras estabelecidas e a expectativa de punições que no contexto do esporte são impostas a este comportamento (TAFAREL, 1993; RUBIO, 2006). Uma das possíveis maneiras de interpretar este resultado é sob a perspectiva teórica do conceito de coping. Sabe-se que o coping é concebido como um processo e não como uma ação isolada (BALBINOTTI; BARBOSA; WIETHAEUPER, 2006; FOLKMAN; LAZARUS, 1985). Sendo assim, se pode pensar que, no processo de lidar com a situação estressora, os atletas podem estar tentando laçar


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mão de outras estratégias de enfrentamento, antes de lançar mão do comportamento agressivo. Outras estratégias de coping, tais como a ‘reavaliação da situação’, podem fornecer ao atleta uma linha de ação alternativa às “ações agressivas”. O ato de, por exemplo, reavaliar a situação, implica em uma etapa pré-ação (motora): parar para pensar a respeito do que está acontecendo. Esta estratégia (reavaliar a situação), por si só diminui a probabilidade da ocorrência do comportamento impulsivo que se pode observar quando a estratégia de coping ‘ações agressivas’ é adotada. Estudos (BARBOSA, 2011) mostram que há uma correlação negativa e significativa (p < 0,01) entre estas as duas dimensões de coping (‘reavaliação da situação’ e ‘ações agressivas’), corroborando a ideia de que estes dois comportamentos de coping são, ao menos em parte, incompatíveis no campo empírico. Na prática, após ter ‘reavaliado a situação’ mesmo que o atleta decida realizar uma ‘ação agressiva’, ela não será o resultado de um impulso (comportamento impulsivo), será uma ação pensada, logo, com valor instrumental e certamente mais adaptativa. Outro resultado que merece ser discutido é aquele relativo às análises descritivas das dimensões do lócus de controle. Os resultados revelaram que o lócus de controle ‘interno’ apresenta níveis significativamente (p < 0,05) superiores aos demais. Este resultado revela que estes atletas tendem a assumir que o que acontece com eles é o resultado de suas ações próprias ações. Pessoas que agem com base neste pressuposto tende a engajarse, mais ativamente na tentativa de controlar seu comportamento (DELA COLETA; DELA COLETA, 1996). Como se pode observar nas correlações, o lócus de ‘controle interno’ e o coping ‘ações agressivas’ estão negativa e significativamente (p < 0,01) correlacionados indicando que quando mais o atleta assume que o controle da situação está nele (é interno), ele tende a engaja-se mais ativamente no controle de suas ações, preterindo o comportamento agressivo. Isso está em acordo com os achados em outros contextos. Um estudo com universitários mostrou que o lócus de controle interno está positiva e significativamente (p < 0,01) relacionado ao comportamento assertivo, em opção ao comportamento agressivo. Outro estudo, na área da saúde, mostra que pacientes com lócus de controle predominantemente interno apresentam melhor desempenho em deixar de fumar, perder

peso, controlar o diabetes, controlar a pressão arterial, tomar medicações, conhecer sua doença, reabilitar-se, colaborar na diálise e na fisioterapia (STRICKLAND, 1978). O mesmo engajamento em controlar o próprio comportamento não é observado em atletas nos quais o lócus de controle predominante é o ‘externo - grandes forças’. Na amostra estudada, o lócus de controle ‘externo - grandes forças’ apresentou níveis medianos (cerca de 2,5 pontos acima da média esperada). Atletas nos quais o lócus de controle ‘externo - grandes forças’ predomina, tendem a ter uma atitude menos engajada em mudar a situação de frustração e estresse que estão vivendo, visto que acreditam que o que acontece com eles é “obra destino”, “tinha que acontecer”, se dá certo “foi sorte”, se dá errado “foi azar”, “Deus queria que fosse assim” e assim por diante (DELA COLETA; DELA COLETA, 1996). Aparentemente, o atleta se vê impotente diante destas “grandes forças”, cabelhe, portanto aceitar e resignar-se com o que lhe acontece. Os resultados das correlações mostram que a correlação entre este lócus de controle e o coping ‘ações agressivas’ é nula e não significativa (p > 0,05), ou seja, não há relação entre estas duas variáveis. O lócus de controle ‘externo - outros poderosos’ apresentou os menores escores médios (ligeiramente abaixo a média esperada). Este resultado revela que, em média, há uma baixa tendência, nos atletas avaliados, de atribuir a outros (treinador, pais, colegas, etc.) o controle sobre o que acontece a eles. Ainda assim, cabe salientar que aqueles poucos atletas que apresentam uma predominância do lócus de controle ‘externo - outros poderosos’ tendem a coloca-se fora da situação e estão propensos a não esforçar-se para controlar o que acontece, visto que quem está no controle não é ele, é o outro (DELA COLETA; DELA COLETA, 1996). Teoricamente, este lócus de controle pode contribuir para a emissão do comportamento de coping ‘ações agressivas’, visto que quando o atleta não se engaja ativamente no controle do próprio comportamento, o impulso agressivo fica livre para se expressar, a menos que ‘o outro’ venha, de alguma forma (pela ameaça de punição, persuasão, pelo exercício da autoridade), inibir a sua expressão. Os resultados deste estudo indicam que o lócus de controle ‘externo - outros poderosos’ está positiva e significativamente (p < 0,01) correlacionado com o coping ‘ações 33


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agressivas’, fornecendo suporte empírico a está afirmação. Mais ainda, estes resultados estão em acordo com aqueles encontrados por Russell (1979), Österman, et al. (1999) e Bandeira, et al. (2005). O último resultado a ser discutido é relativo aos resultados das regressões lineares. Como esperado, visto que os resultados das correlações já apontavam nesta direção, apenas as variáveis lócus de controle ‘interno’ e ‘externo - outros poderosos’ emergiram como preditoras do estilo de coping ‘ações agressivas’. Este resultado indica que estas duas variáveis participam de forma significativa (p < 0,05) do processo que leva ao comportamento agressivo diante de situações estressantes. Ainda assim, a pequena porcentagem da variância explicada pelo conjunto destas duas variáveis (4,3%) indica que há muitos outros fatores a serem considerados, visto que mais de 95% da variância da variável alvo não pode ser explicada por este modelo. O resultado está em linha com o que se pode encontrar na literatura que afirma que o comportamento agressivo é complexo, multifatorial, e sofre a influência de aspetos ambientais, culturais, genéticos, dentre outros (BERKOWITZ, 1969; DOLLARD, et al., 1939; DOLLARD, et al., 1976; MILLER, 1941; PARKER; ROGERS, 1981). 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo teve como objetivo avaliar a relação entre o lócus de controle e o coping ‘ações agressivas’, a fim de contribuir para o entendimento dos processos que levam à adoção do comportamento agressivo como forma de lidar com o estresse no contexto do esporte escolar. Aspectos teóricos e empíricos foram revisados, procedimentos teóricos realizados, dados foram colhidos e analisadas. Uma vez que os resultados tenham sido apresentados e discutidos cabe agora tecer algumas considerações sobre as relações entre as variáveis estudadas. Das três dimensões do lócus de controle avaliadas, apenas duas apresentam correlação significativa (p < 0,01) com o estilo de coping ‘ações agressivas’, a saber, lócus de controle ‘interno’ e ‘externo - outros poderosos’. Atletas com o lócus de controle predominantemente ‘interno’ tendem a preterir o coping ‘ações agressivas’, já os atletas com o lócus de controle predominantemente ‘externo - outros poderosos’ tendem a emitir o comportamento agressivo como estratégia para 34

lidar com estresse com mais frequência. Estas duas variáveis (em conjunto) são capazes de prever a ocorrência do coping ‘ações agressivas’, entretanto, o seu poder explicativo é pequeno (4,3%). Os resultados apresentados trazem uma pequena contribuição para o entendimento do comportamento agressivo (como reação ao estresse) no contexto do esporte escolar. As contribuições aqui apresentadas podem ser úteis a professores, treinadores e psicólogos que queiram ajudar seus atletas a lidar de forma mais adaptativa com seus impulsos agressivos diante das adversidades e frustrações próprias deste contexto. Cabe mencionar que os resultados aqui apresentados dizem respeito a uma amostra de atletas do esporte escolar do Rio Grande do Sul, logo se deve ter cuidado ao generalizar estes resultados para outros contextos da atividade física e esportiva ou outros contextos geográficos. É recomendável que outros estudos, incluindo outras variáveis e outros grupos, sejam realizados a fim de entender que variáveis contribuem (ou inibem) a ocorrência do comportamento agressivo.

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GÊNERO, VIOLÊNCIA E SEXUALIDADE EM BARRELA DE PLÍNIO MARCOS

Tiago Silva1 RESUMO A obra dramatúrgica de Plínio Marcos é permeada por atores sociais marginalizados na sociedade brasileira, tais como presos, prostitutas, travestis e mendigos. Estes personagens, não obstante, vivenciam episódios de privação e violência em cenários desoladores e hostis. Este artigo propõe a análise da peça teatral Barrela, baseada em uma história real, na qual um jovem, preso por brigar em um bar, é estuprado pelos consortes de cela. Tenciona-se, assim, refletir sobre a construção do gênero masculino em detrimento do feminino no âmago do texto dramatúrgico, com base na violência e na externalização da sexualidade pelas personagens. Deste modo, o método de análise será indutivo, visto que conjuga estudos teóricos e bibliográficos com um exercício crítico-interpretativo em torno do objeto de estudo, visando apreender as representações sociais acerca da construção da masculinidade/feminilidade interpostas na obra dramatúrgica. Palavras-chave: Gênero. Violência. Dramaturgia. Sexualidade. Barrela. ABSTRACT: The dramaturgical work is permeated by Plínio Marcos marginalized social actors in Brazilian society, such as prisoners, prostitutes, transvestites and homeless. These characters, however, experience episodes of deprivation and violence in bleak and hostile scenarios. This article proposes an analysis of the play Lye, based on a true story in which a young man, arrested for fighting in a bar, is raped by consort’s cell. It is intended, therefore, to reflect on the construction of males over females in the core of dramaturgical text, based on violence and sexuality by externalizing the characters. Thus, the method of analysis is inductive, since it combines theoretical and bibliographical studies with a critical-interpretive exercise around the object of study to understand the social representations about the construction of masculinity / femininity brought in dramaturgical work. Keywords: Gender. Violence. Dramaturgy. Sexuality. Barrela.

1   Ator Teatral. Mestrando em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale- Novo Hamburgo, RS. Graduado em História pela mesma Universidade. Bolsista Capes de Mestrado, trabalhando com a relação entre História, Teatro e Sexualidade durante a Ditadura Civil-Militar no Brasil. Email: thyagocenico@gmail.com.

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1 INTRODUÇÃO Trancafiados em uma cela, vários presos discutem quem é homem e quem não o é. Entre os requisitos para a legitimação da masculinidade, pairam a vigência de uma sexualidade exacerbada e a prática recorrente da violência no interior deste cenário. Aglomerados em um espaço hostil, os presos constroem uma situação pouco agradável para aqueles que não se enquadram no protótipo de vigor masculino, da superioridade física e simbólica decretada. São anedotas e atos violentos que subjugam uma representação, a do feminino, em detrimento de outra, a do masculino. Na peça teatral Barrela2, de Plínio Marcos, os personagens encarcerados menosprezam as características que definem a feminilidade, detendo-se a perseguir e violentar todos que apresentam a insígnia da fraqueza e da passividade, substantivos que denotam a desonra, uma vez que destroem a imagem do homem idealizada pelos detentos. Neste artigo, nos interessa perceber como a questão da violência e da sexualidade, internalizadas nas cenas, constroem sentidos e significações de gênero na peça teatral Barrela de Plínio Marcos. Nos diálogos, na composição das personagens e nas formas pelas quais o texto dita o que é “ser homem” e o que é “ser mulher”, tencionamos apreender a construção do masculino e do feminino que se encontram na obra dramatúrgica. Nela, a violência recorre comumente como um elemento atribuído à masculinidade, enquanto a passividade é vista como uma característica essencial da feminilidade. Assim, a narrativa arquitetada pelo dramaturgo, elenca representações sociais que influem no sentido do espaço narrado e na edificação dos caminhos que enfatizam as relações de gênero no decorrer da história cênica. Joan Scott (1995) aponta que as distinções culturais entre homens e mulheres têm suas origens em fatores sociais, sendo que as construções de gênero efetivam-se nas relações de poder imbuídas na sociedade, definidoras da normatividade dos sexos. Neste sentido, a partir dos estudos de gênero e da pesquisa bibliográfica pertinente a esta temática,

Barrela ou Curra era um termo, uma gíria utilizada na época de concepção da peça para designar um estupro coletivo, quando vários homens cometiam o ato contra uma mesma pessoa.

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analisamos o texto dramatúrgico com base nas imagens de si e do outro apresentadas pelas personagens, imagens estas que se entrecruzam e fomentam significações acerca do masculino e do feminino no cerne da história referida. Assim sendo, as passagens narrativas que evidenciam as relações de poder entre as personagens, constituindo assim um entendimento no âmago da obra sobre os modos operacionais que caracterizam o homem e a mulher no ambiente em que a diegese3 se desenrola, constituíram o principal olhar crítico-interpretativo da análise. 2 PLÍNIO MARCOS E A DRAMATURGIA DOS EXCLUÍDOS Plínio Marcos de Barros nasceu em Santos em 1935, e faleceu em São Paulo em 1999. Foi funileiro, jogador de futebol e serviu na aeronáutica. Sua primeira atividade mais próxima das artes cênicas foi como palhaço de circo, até se envolver com o teatro amador em 1958, por influência da escritora e jornalista Pagu4. Em sua obra dramatúrgica, frequentemente censurada pelos órgãos do regime civil militar brasileiro5, abundam personagens marginais, excluídos sociais que vivem á margem da sociedade. São homossexuais, prostitutas, travestis, presos, mendigos, crianças de rua, que habitam os grandes centros urbanos e evidenciam a realidade pouco agradável de uma sociedade normatizadora e excludente. No bojo de um Brasil violento e autoritário, as histórias do “dramaturgo maldito” desvelam o mascaramento das desigualdades sociais A diegese consiste no universo ficcional criado pela obra, ou seja, “é tudo aquilo que confere inteligibilidade à história contada, ao mundo proposto ou suposto pela ficção”. GAUDREALT, André; JOST, François. A narrativa cinematográfica. Brasília: UNB, 2009, p. 50. 4 Para maiores informações acerca da vida de Plínio Marcos, ver: MENDES, Oswaldo. Bendito Maldito: Uma biografia de Plínio Marcos. São Paulo: Leya, 2009. 5 Barrela, obra analisada neste estudo, permaneceu censurada por 21 anos após sua primeira apresentação, em 1958. Certa feita, Plínio Marcos manifestou-se a respeito da censura a qual foi acometido durante sua carreira, dizendo: “Há dezessete anos pago o preço de nunca escrever para agradar os poderosos. Há dezessete anos tenho minha peça de estreia [Barrela] proibida. A solidão, a miséria, nada me abateu, nem me desviou do meu caminho de crítico da sociedade, de repórter incômodo e até provocador”. Depoimento disponível em: <www.pliniomarcos.com. br> Acesso em: 20 nov. 2013. 3


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ao despojar o cerceamento e a vulnerabilidade na qual a população pobre vivia. Oliveira (2000) refere-se ao autor como Um dos dramaturgos mais importantes dos anos 60 [...] autodidata, construiu peças de grande intensidade dramática e impacto, conduzindo para o teatro com realidade brutal as tragédias das classes marginalizadas dos centros urbanos do Brasil. As histórias apresentadas por Plínio Marcos se referem a um mundo sórdido, sem perspectiva de esperança, em que as pessoas travam uma batalha cruel exclusivamente visando à sobrevivência. (OLIVEIRA, 2000, p. 139).

Os textos dramatúrgicos do escritor paulista trazem consigo as marcas da violência na qual seus personagens estão absortos. Os cenários de desolação, simbiose entre a exclusão social e a negligência dos poderes públicos, constroem enredos em que as personagens habitam um “mundo que não oferece nenhum vislumbre de redenção”. (CACCIAGLIA, 1986, p. 133). Neste sentido, a realidade das personagens plinianas incorre em uma perspectiva de abandono e desfortúnio. De grande intensidade dramática, as peças de Plínio Marcos apresentam em cena a hostilidade de humanos em situações desumanas, típicas das grandes metrópoles que comportam a ampla massa de indivíduos solapados pela sistemática social capitalista. A descrição do homem, então, toma nos textos plinianos uma forma austera, grotesca e por vezes desoladora, devido ao aspecto inumano que os sujeitos representados vivem na própria sociedade observada pelo autor. Sujeitos estes invisibilizados e, no mais das vezes, eliminados do convívio com a sociedade normatizada. Sendo assim, A estranha humanidade- se é que merecia tal nome- que habitava os seus dramas, composta de prostitutas de terceira categoria, desocupados, cáftens, garçons, homossexuais, não consistia propriamente o povo ou o proletariado, nas formas dramáticas imaginadas até então. Seriam antes o subpovo, o subproletariado, uma escória que não alcançara sequer os degraus mais ínfimos da hierarquia capitalista. (PRADO, 2001, p. 103).

Ao trazer para o palco sujeitos que não possuíam voz na sociedade, a partir de uma fenotipia

pertencente a grupos sociais marginalizados, Plínio Marcos não limitou, todavia, sua criação dramatúrgica a um efeito arquetípico do outro. Os seus personagens, indivíduos marginais em situações aviltantes, não são considerados uma cópia caricata da realidade brasileira, mas antes uma reflexão deste cenário periférico, que incita representações sobre o real, especialmente se concordarmos com Artaud (2006), para quem o “[...] o teatro deve ser considerado como o duplo não dessa realidade cotidiana e direta, da qual ele pouco a pouco se reduziu a ser apenas cópia inerte [...] mas de uma outra realidade perigosa e típica”. (ARTAUD, 2006, p. 49). Neste sentido, a obra do dramaturgo não compõe apenas um espaço limítrofe entre as ocorrências cotidianas prosaicas e o discurso oficial, mas aprofunda a situação do homem brasileiro nas situações corriqueiras que o colocam em combate com sua própria existência. A dramaturgia pliniana, ao trabalhar com a historicidade reveladora das identidades sociais de sujeitos abandonados pelo sistema societário, utilizase de recursos linguísticos e alegóricos que constroem representações acerca destes extratos populacionais. A linguagem obscena é um destes recursos, sendo constante na obra do “poeta maldito”. Servindo como uma crítica aos problemas brasileiros de ambiência sociocultural, Plínio Marcos ornamentou a fala de seus personagens com palavras fortes e grotescas, causando, muitas vezes, estranhamento devido à precariedade do vocabulário empregado em seus dramas. Todavia, Magaldi observa que “A linguagem se fosse amenizada, falsearia a caracterização psicológica e o ambiente”. (MAGALDI, 1998, p. 210-211). Ou seja, a linguagem formal destituiria a intencionalidade do autor de representar o marginalizado em sua verossimilhança com o cotidiano de exclusão política e social no qual habita. A forma pungente com que a linguagem do autor se insere nas peças é representativa do modo de vida das pessoas marginalizadas nas grandes metrópoles do país, ultrapassando o recurso puramente estilístico. Para representar os excluídos, era necessário “falar como eles”, sendo que o próprio autor alegou em entrevista que “Escrevia como se falava entre os carregadores do mercado. Como se falava nas cadeias. Como se falava nos puteiros”6.   Depoimento de Plínio Marcos disponível em:< www. pliniomarcos.com.br>. Acesso em: 20 nov. 2013. 6

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Os personagens plinianos, que vivem em meio “às mais torpes corrupções” (CACCIAGLIA, 1986, p. 133), são construídos assim sob uma linguagem crua que intervém na agressividade posta em cena, outro elemento fundamental na obra dramatúrgica do autor. A violência exposta e legitimada no contexto em que as personagens encontram-se é frequente nas peças de Plínio Marcos, já que elas coexistem em uma situação de vulnerabilidade social, transitoriedade citadina e luta pela sobrevivência. Podemos dizer que, em sua obra dramatúrgica, a violência “organiza as relações de poder, de território, de autodefesa, de inclusão e exclusão [...]”. (FILHO, 2001, p. 22). A anomalia comportamental presente em seus escritos revela, assim, um viés psicológico em que as personagens convivem, permanentemente, sob o signo da violência urbana. Neste sentido, podemos compreender as práticas de violência acometidas pelas personagens de Plínio Marcos como uma busca de reconhecimento e imposição social pelo medo e pela intencionalidade de dominar a realidade circundante. (ZALUAR, 2004), como se verá em Barrela. A condição humana presente na dramaturgia pliniana, pautada nesta violência contextual, assume um tom de brutalidade explicada pelas circunstâncias na qual as personagens estão expostas, como em Dois perdidos numa noite suja (1966), Navalha na Carne (1967), Homens de papel (1968) e Oração para um pé-dechinelo (1969), todas censuradas pelos órgãos de repressão ditatoriais, já que as peças trazem à tona a presença latente da violência e da sexualidade e tecem uma crítica à organização político-econômica capitalista que se intencionava defender7. Cabe ressaltar que a maioria das personagens plinianas está abaixo da linha da pobreza e sequer estão inseridas neste capitalismo funcional. Destarte, a partir desta violência estrutural presente nas narrativas, “o que se busca, desesperadamente, é a segurança e a defesa” (ODALIA, 1985, p. 10) na luta pela sobrevivência. Não há, sob este feitio sociológico, uma manifestação munificente em suas ações. As idiossincrasias que compõe a obra do dramaturgo são muitas e transitam entre si,

Lembrando que o Brasil e o mundo vivenciavam, no momento de concepção destas peças de Plínio Marcos, um contexto histórico de Guerra Fria que consistia na luta ideológica entre capitalismo e comunismo e que viria legitimar golpes militares por toda a América Latina.

porém sempre evidenciando o embate social entre a sociedade padronizada e as fissuras sociais desta padronização, representada pelos sujeitos excluídos. A repercussão ideológica de sua obra, sob este aspecto, é inegável. No período de ascensão de Barrela, por exemplo, “A cartilha do engajamento ideológico no ambiente teatral brasileiro pregava a denúncia das mazelas sociais” (BRANCO, 2005, p. 38). Sua exposição artística denunciava as máculas de uma sociedade desigual, corrompida e culturalmente edificada, em que papeis e condutas sociais são definidos sob a lógica padronizadora do sujeito. Em relação a isso, é importante assinalar que “[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. (FOUCAULT, 1996, p. 10). Os diálogos presentes na obra pliniana, sob esta premissa, são solidificados de acordo com uma luta discursiva, um embate para se fazer falar, para ser visto, o que denota a impossibilidade de reciprocidade mútua entre os indivíduos. Conceituar a vasta obra dramatúrgica de Plínio Marcos, deste modo, em que pese às considerações basilares que possam ser realizadas, é uma tarefa complexa. Bakhtin observa que “a palavra revelase no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais” (2010, p. 67). Deste modo, a palavra apresenta uma materialidade que carrega consigo a historicidade particular de cada grupo social, já que “toda enunciação é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal”. (BAKHTIN, 2010, p. 101). Sob este prisma, a dramaturgia de Plínio Marcos torna-se polissêmica, já que é reveladora daquilo que permanece silenciado na cultura vigente. Sábato Magaldi ressalta que Plínio Marcos tem um peso incomensurável na dramaturgia brasileira8, uma vez que ele [...] foi um dos autores que marcaram a dramaturgia brasileira moderna. Nelson Rodrigues trouxe o problema do inconsciente coletivo; Guarnieri a luta social; Suassuna, a religiosidade ligada ao folclore; Boal, um teatro brechtiano e aristofanesco.

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8   A obra teatral completa de Plínio Marcos pode ser encontrada em seu site oficial www.pliniomarcos.com. br. Acesso em: 20 nov. 2013.


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O Plínio veio com a enorme força, trazendo ao palco a marginalidade, os excluídos da sociedade, uma outra humanidade. Com muita violência, muita crítica. (MAGALDI apud ALEXANDRE, 2004, p. 56).

Ao retratar em sua dramaturgia os sujeitos que o poder oficial tentou silenciar, aqueles indivíduos que, mesmo estando na margem da sociedade, próximos do indizível “Reinam no imaginário dos homens” (PERROT, 2006, p. 167), Plínio Marcos marcou seu nome como um escritor que mostrara os elementos secundários da sociedade através das relações de poder interpostas9, apontando aquilo que tenta ser velado pelos poderes instituídos, instaurando assim uma dramaturgia dos excluídos. Em Barrela, sua obra de estreia, a miséria humana é levada às últimas consequências. Nascida de uma notícia de jornal que o autor lera na época, a respeito de um garoto de Santos que, ao ser preso por brigar em um bar é violentado pelos outros consortes de cela, Barrela chocou o poder político do período e permaneceu censurada por longos anos. Na nota de jornal, o garoto, após sair da prisão, se armara matando quatro dos detentos que o haviam violentado. O dramaturgo revelaria mais tarde: “O caso do garoto me comoveu tanto que eu, depois de andar uns tempos atormentado com a história a despejei no papel”. (MARCOS, 1976, p. 6). Doravante, veremos como a narrativa de Barrela constrói significações de gênero a partir de seus discursos, promotores de representações acerca do masculino e do feminino. 3 VIOLÊNCIA, GÊNERO E SEXUALIDADE EM BARRELA Barrela, peça inaugural de Plínio Marcos, foi escrita e encenada10 em 1958, ano emblemático 9   Compreendendo aqui a lógica das relações de poder através de Foucault, para quem a analítica do poder “não se trata de detectar uma instância que estenda a sua rede de maneira fatal, uma rede cerrada sobre os indivíduos. O poder é uma relação, não é uma coisa”. FOUCAULT, Michel apud DOSSE, F. A História à prova do tempo: da História em migalhas ao resgate do sentido. São Paulo: Editora da UNESP, 2001, p. 223. 10   Barrela foi representada pela primeira vez em Santos pelo Grupo da Caldeiraria das Docas e dirigida por Vasco Oscar Nunes, em junho de 1958. Após esta apresentação, a peça permaneceria censurada por 21 anos.

para a dramaturgia brasileira11. Em um ato, a história traz seis personagens principais presos em uma cela: Bereco, Portuga, Tirica, Bahia, Fumaça e Louco. A narrativa foca a discussão na sexualidade dos detentos e a ação cênica, que não comporta externas, consiste na brutalidade apregoada em cada uma das personagens, que discutem seus crimes através do coloquial, permeando assim a desordem das individualidades. A peça tem sua centralidade no conflito travado entre as representações sociais construídas no cárcere12 e pela ameaça permanente da violência expressa pela curra, que indica um estado contínuo de luta pelo poder masculino no interior do espaço. “A brutalidade do ambiente carcerário é algo como a norma vigente; romper com ela significa deslegitimar os mecanismos

A produção dramatúrgica brasileira vivia um momento áureo neste ano, resultado de um processo teatral que se iniciara anos antes. O Teatro de Arena encenava Eles não usam Black Tie com um imenso sucesso de público, assumindo uma postura essencialmente política que viria a se potencializar nos anos seguintes. Tem-se a consolidação do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) do italiano Franco Zampari, que já iniciara as suas atividades anos antes, em 1948. O TBC teve o mérito de, já neste ano, ter introduzido alguns procedimentos inéditos no setor teatral, tais como a ênfase no papel do diretor, a leitura coletiva das peças e a rotina austera de ensaios. Nelson Rodrigues e sua dramaturgia de vanguarda instauram uma arrojada concepção formal imbuída na poética aristotélica de tempo, espaço e lugar, criticando e subvertendo os valores postulados como unívocos, bem como se valendo desta nova estruturação dramatúrgica para atacar os valores morais da sociedade brasileira. Neste contexto de fins da década de 1950, a experiência cênica nacional completou sua maturidade e Plínio Marcos surgiu como uma promessa desta nova fase da dramaturgia brasileira. 12   Entendendo estas representações como a concepção do “ser homem” e do “ser mulher” edificada pelos presidiários ao longo da narrativa. Não faremos, contudo, uma síntese teórica acerca do conceito de representação, muito embora o termo seja recorrente neste trabalho. Mas, cabe ressaltar que, ao mencionarmos a palavra representação, estamos de acordo com Chartier (1990), para quem as representações “[...] são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem o utiliza”. CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 17. 11

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alternativos de controle que se estabelecem para a manutenção da ordem instituída pelos detentos”. (BRANCO, 2005, p. 41). Branco (2005) afirma que existem distinções quanto à normatização do ambiente carcerário na narrativa de Barrela. Coabitam, especificamente, dois tipos de normas instituídas que visam orientar a conduta dos indivíduos no espaço: as normas institucionais e as normas técnicas. As institucionais preexistem sob uma concepção moral, que sustenta um padrão fixo de práticas sociais consideradas ilícitas. Elas “constituem um tipo explicitamente referido a valores consagrados, considerados legítimos, de dada cultura”. (2005, p. 43). Assim, o estabelecimento destas normas na obra, é garantido pela observância do aparelho policial e da própria estrutura prisional. Já as normas técnicas, “são o produto da índole pessoal, remetem aos valores alternativos de cada indivíduo [...]” (2005, p. 44) e que tem, em princípio, o objetivo de êxito do sujeito socialmente isolado. São estas normas técnicas que pautam a construção de gênero no decorrer da narrativa pliniana, uma vez que se ajustam a termos pragmáticos do entendimento de mundo dos presos e de suas condutas, ateando as representações que possuem de si e do outro. Para Soares (2010), a leitura das representações de gênero na obra de Plínio Marcos deve ser pensada em relação com sua complexidade discursiva, visto que “considerar apenas homem e mulher como categorias estanques dificulta e limita a leitura, pois o autor cria personagens que possuem outras identidades ou transitam pelo universo feminino e masculino”. (2010, p. 12). Em Barrela a discussão sobre o gênero masculino é mais presente, o que não denota, contudo, a exclusão das concepções acerca do feminino, mesmo quando de sua ausência, já que as personagens evidenciam a masculinidade em premente oposição à feminilidade. As edificações de gênero na obra inferem uma imagem do que é ser homem e do que é ser mulher, uma vez que as tecnologias de gênero podem ser consideradas “um sistema de significações que relaciona o sexo a conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias sociais”. (LAURETIS, 1994, p. 211). Ao longo da narrativa, as personagens deparam-se com angústias, certezas, medos, receios e prognósticos coletivos que fundamentam a normatização de suas sexualidades. 42

Concernente a esta questão, Scott (1995) adverte que sexo e gênero são categorias distintas. Ao passo que sexo determinaria a condição biológica do sujeito, gênero estaria focalizando a construção social, sendo uma forma primária de dar significado às relações de poder entre os sexos e sua complexa rede de símbolos, crenças, condutas, comportamentos, prerrogativas, etc. Já Saffiotti (2004) defende que sexo e gênero sejam percebidos como uma unidade, uma vez que não existe uma sexualidade biológica sumariamente definida sem relacionar-se com o contexto sócio histórico da qual faz parte. Neste sentido, a autora intercede que é necessário estar atento à elaboração social dos sexos “sem, contudo, gerar a dicotomia sexo e gênero, um situado na biologia e outro na sociedade, na cultura”. (SAFFIOTTI, 2004, p. 108). Por sua vez, Judith Butler (2002) aponta que o “gênero é performativo porque é resultante de um regime que regula as diferenças de gênero. Neste regime os gêneros se dividem e se hierarquizam de forma coercitiva”. (2002, p. 64). Assim sendo, em diferentes passagens de Barrela, percebemos esta coerção que baliza as construções de gênero que as personagens solidificam. Os colóquios discursivos têm como foco principal a discussão sobre quem é homem e quem não o é sob uma frequente crise do perfil masculino, imbuída na luta pela representação13 (HOLLANDA, 1994, p. 10). As sequências de diálogos revelam o que as personagens entendem por masculinidade e, em conseguinte, por feminilidade. Logo no início da peça, uma das personagens, Portuga, acorda no meio da madrugada, devido a um pesadelo que teve com a ex-esposa que ele assassinou, supostamente por esta ter cometido adultério, o que causa uma ira coletiva nos outros detentos, pois estes perdem o sono. Bereco, o “xerife” da cela, ameaça agredilo pelo ocorrido, enquanto Portuga lhe suplica clemência. No entanto, Bereco responde: “Livrar   Chartier (2002) observa que “as lutas de representação, cujo objetivo é a ordenação da própria estrutura social [...] dedica atenção às estratégias simbólicas que determinam posições e relações e que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um “ser percebido” constitutivo de sua identidade”. CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: A História entre Certezas e Inquietude. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002, p. 73.

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a tua cara uma porra! Vou te aprontar. E se ciscar já sabe: te encho de porrada”. (MARCOS, 1979, p. 14). Aqui, a violência e a insensibilidade com o outro aparecem como sinônimos de masculinidade, uma vez que, logo em seguida, substantivos depreciativos são lançados pelos presos contra Portuga pela sua fraqueza moral, tais como “boneca” e “meu bem”, enquanto Fumaça diz “Ai, como ela está nervosinha”! Não obstante, a insígnia do feminino é vista como algo inferior, menor, e ser tratado como mulher é tomada como uma ofensa pelos presos. Bahia, outro detento, diz ainda: “Vai bancar o macho?” enquanto os demais vão passando a mão pelo corpo de Portuga. Motivado pela ação, Louco, um personagem agitado e perturbado, passa a bradar: “Enraba! Enraba!”, codificando um imperativo de poder através do sexo. A partir de então, instalase o foco dramático de Barrela, onde a ameaça da curra se aloja durante toda a narrativa. Percebe-se então que a relação sexual entre duas pessoas do mesmo sexo não é comum entre os presos, e, se ela se efetiva, é como sinônimo de posse e dominação, a fim de legitimar a masculinidade feminilizando o outro. “Compreende-se que, este ponto de vista, que liga sexualidade e poder, a pior humilhação para um homem consiste em ser transformado em mulher”. (BOURDIEU, 1999, p. 32). Acerca deste ponto, podemos dizer ainda que Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação, é porque ela está construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, ou mesmo, em última instância, como reconhecimento erotizado de dominação. (BOURDIEU, 1999, p. 31).

Para o grupo de detentos de Barrela, a afirmação da masculinidade assume-se sob um imaginário14   Compreendendo aqui o imaginário de acordo com Maffesoli, para quem “o imaginário é algo que ultrapassa o indivíduo, que impregna o coletivo ou, ao menos, parte do coletivo”. MAFFESOLI, Michel. O imaginário é uma realidade. Revista Famecos, Porto Alegre, n. 15, agosto de 2001.

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de violência e sexualidade exacerbada. Todavia, o conceito de masculinidade oscila, pois a relação entre dois homens ora é vista como afirmação desta masculinidade, ora como demonstração de homossexualidade, que não é implicada de forma positiva no contexto prisional. Em determinado momento da peça, Portuga conta aos demais cativos que Tirica, um dos companheiros de cela, tivera relações sexuais com outro detento, Morcego, que lhe contou: “Esse eu já estraçalhei. Foi lá no reformatório. Era comida do gango todo”, legitimando sua masculinidade pelo ato de posse sexual calcado na agressividade. A revelação deixa as personagens eufóricas e Tirica passa a ser tratado com inferioridade pelo fato de ter se relacionado sexualmente de forma passiva com outro homem. Os presos advertem que “se for firmeza tu tem que dar pra nós [...] Temos aqui, mesmo xadrez. Vamos cobrir a bichinha”. (MARCOS, 1976, p. 26). Frente a estas ofensivas, Tirica justifica-se: “Não dei por gosto, não. Eu era pivete, tá? Mas tem um negócio. Não gostei. [...] Me botaram a mão. [...] Que podia fazer? Precisava comer”. (MARCOS, 1976, p. 33). Tirica segue justificando-se, revelando as humilhações sexuais que sofrera no reformatório quando criança, o que não impede que os outros consortes passem a agredi-lo verbalmente a partir de nomenclaturas femininas, tais como “boneca” “bichinha” e “menina” devido ao seu contato físico com outros homens. Também passam a tocar seu corpo, em uma tentativa de feminilizá-lo. A pressão do grupo obre Tirica e as frequentes justificativas deste para os demais, demonstram uma relação de poder crivada na construção do masculino pelas personagens, tendo em vista que [...] para as personagens de Barrela, o critério biológico aparece em segundo plano e basta um critério social para que a definição de gênero aconteça. Os parceiros de cela passam a tratar Tirica como alguém do sexo oposto porque, para eles, a existência de uma relação entre pessoas do mesmo sexo romperia com o conceito de gênero masculino que possuíam. (SOARES, 2010, p. 106-107).

Acuado sob o estigma da homossexualidade, Tirica vê na prática da curra de um jovem novo que chega à cela, visivelmente destoante do

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ambiente15, a via mais segura para a afirmação de sua masculinidade. Sua finalidade é livrar-se da malha arquetípica que passa a persegui-lo através dos insultos cunhados na feminilidade que lhe são dirigidos. A passagem a seguir revela a legitimação da masculinidade por via da violência verbal imposta ao novo consorte de cela, bem como a tentativa de Tirica de afirmar-se como homem ao levantar a possibilidade de violentar sexualmente o outro: BERECO – Filhinho de papai. PORTUGA – Parece uma menina. BAHIA – Garoto bonito. TIRICA – Agora que eu quero ver quem é macho. FUMAÇA – Que é? Já está com ideia de jerico pra cima do garoto? TIRICA – Não está todo mundo na pior? Vamos enrabar ele. (MARCOS, 1976, p. 47-48).

Ao dizer a frase “Agora quero ver quem é macho”, Tirica expressa uma vontade de reversão da situação em que se encontra, na qual sua sexualidade é alvo de suspeita e ambiguidade. Podemos inferir que, no ato da curra, a virilidade da personagem passa a tomar uma forma máscula inconteste e, por isso, praticá-la é uma questão de honra. Junto à violência sexual, Tirica contesta o domínio de Bereco, o “xerife” do cárcere, convertendo para si duas maneiras de validar seu papel de homem: a agressão física contra o jovem e a capacidade de colocar-se acima do outro, ambos os elementos que denotam força e insensibilidade, distintivos masculinos. A passagem a seguir, revela esta luta representacional, que infere a busca pela autoridade no espaço prisional, autoridade esta que denota certa respeitabilidade: TIRICA – Não pensa que vai se tratar sozinho com o garoto. Ele vai ser enrabado.   Trata-se de um rapaz de fino trato, que ali foi parar em decorrência de uma briga num bar, e cuja família não sabe de seu paradeiro, pois este não comunica o acontecido. No texto dramatúrgico, diz-se que aparenta uns 20 anos, embora na notícia original na qual Plínio Marcos recorrera para escrever o texto a vítima fosse mais jovem.

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BERECO – Vão à merda! Se tocarem no garoto, eu mato um por um de pancada. TIRICA – A gente é uma porrada. Essa vez tu não vai por banca. Estamos de saco cheio de tuas broncas. Só tu que quer ter vez. Aqui, olha pra ti. A gente só pode bater caixa quando tu deixa, só queimamos fumo quando tu tá de presa seca e os cambaus. Agora caiu do cavalo. Nós vamos enrabar esse garoto e, se tu folgar, não vai ter vez. (MARCOS, 1976, p. 52)

Não obstante, a masculinidade do sujeito que agride é reafirmada, enquanto aquele que é agredido pelo grupo- fisicamente, sexualmente e simbolicamente- tem sua masculinidade negada. No ato da violência sexual, por exemplo, os presidiários consideram homossexual apenas a vítima e não o agressor, isso porque o agredido está em situação de extrema passividade, característica vista como feminina. Mesmo quando uma suposta situação de curra entre os presos não é percebida como afirmação da virilidade dos agressores por parte de alguma das personagens, o sujeito ativo se mantém dentro da representação masculina, como evidencia este diálogo que discute a possibilidade da curra: FUMAÇA: Como é Bereco, Tu não acha ele bem no jeito? Parece uma menina. BERECO: Não gosto de veadagem. FUMAÇA: Veadagem não, só provar que o Portuga é brocha. Quer morrer de rir é só agarrar ele. TIRICA: Pode ir na frente, brocha. PORTUGA: Depois quero te ver.

A masculinidade no grupo de personagens plinianas, também é negada em caso de impotência sexual. Essa é a principal cobrança de Tirica a Portuga ao longo da peça, pois caso este não participe da curra, terá a sua masculinidade negada pelo grupo. Tirica sustenta a ideia do estupro veementemente, humilhando aqueles que não concordam com o ato. Certo momento, diz que “O Portuga foi o primeiro a sair fora. Claro que é brocha. Vai querer enrabar o garoto pra quê?” (MARCOS, 1976, p. 53). Doravante, acrescenta: “Segura ele que tu vai ver se sou homem ou não”. (MARCOS, 1976, p. 53). Contudo, no ato da barrela, Tirica não consegue violentar o garoto, sendo alvo de novas injúrias


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contra sua virilidade, mas agora por não conseguir exercer o ato e não mais por ter sido vítima: “Eu fui lá e pimba! Mandei brasa! O Tirica com toda viadagem só fez brochar”. (MARCOS, 1976, p. 56). Não assumir o papel do agressor com argúcia é considerado negativo no que tange a representação do homem e Tirica é novamente feminilizado. Diante desta premissa, a homossexualidade aproxima-se do feminino no que tange o seu aspecto de inferioridade sob a ótica dos presos, pois está no mesmo patamar de submissão e passividade. Tomar posse do outro feminilizando-o é uma mostra de domínio, uma relação de poder que subjuga o outro por “transformá-lo em mulher”. A mulher em si, aparece, essencialmente, a partir de três imagens basilares na narrativa dramatúrgica. A primeira é a aparição da mulher de Portuga em seu pesadelo, que foi assassinada pelo presidiário por tê-lo traído. Apesar de morta, ela ainda o perturba nos sonhos, fazendo-o acordar aturdido no meio da noite, o que enfurece os demais, que vêem a cena repetir-se cotidianamente. No entanto, a culpa pela situação recorre sobre a esposa do preso, como evidencia esta fala de Tirica, quando Portuga se desculpa pelo ocorrido: “A culpa é do fantasma da tua mulher que vive te assombrando. Ela que tem culpa. Não tem que vir aqui pegar no teu pé”. (MARCOS, 1976, p. 20). Portuga diz que as aparições da esposa consistem no remorso por tê-la assassinado, mas, novamente, Tirica põe a culpa na mulher: “Ela te corneava com deus e com todo mundo. Despachou ela e tá certo”. (MARCOS, 1976, p. 20). Percebemos aqui que, entre os homens do presídio, o assassinato da mulher adúltera é legítimo, uma vez que a prática do adultério recorre na desonra masculina. Ser passivo frente á situação de marido traído é romper com as normas que regem as representações de masculinidade. A segunda aparição feminina no drama é a da namorada de Fumaça. Ela é citada apenas uma vez durante toda a trama, mas é possível considerarmos alguns aspectos imanentes a esta alusão. Seu nome aparece em cena quando Fumaça pergunta a Bereco se pode acender um cigarro de maconha. Quando este diz que tem poucos cigarros e, por isso, há de se economizar, Fumaça responde: “Quinta minha mina traz mais, pombas!” (MARCOS, 1976, p. 38). A personagem aparece ligada somente ao seu namorado, não possui nome e é apenas tratada por “minha mina”. O pronome possessivo demonstra

a subalternidade da mulher na relação com os homens do grupo, onde é necessária a subjugação feminina para um relacionamento afetivo percebido como natural na ótica coletiva, pois esta asserção “representa, formula, efetua a dissolução impossível dos contrários e resolve a intransponível distância que separa os dois sexos”. (CHARTIER, 1995, p. 38). A terceira e última aparição feminina consiste na figura materna. Apesar das personagens não mencionarem suas mães de forma explícita, o substantivo aparece como uma ofensa de ordem moral16. O termo “filho-da-puta” é usado constantemente ao longo da narrativa, apesar da utilização da palavra “mãe” como uma injúria seja mais agressivo: PORTUGA: “Cornélio é a mãe!” TIRICA: “Não mete a mãe nisso!” (MARCOS, 1976, p. 21). Neste diálogo, podemos perceber que a mãe figura em uma categoria especial de mulher, pois a personagem, na condição de filho, não quer vê-la desrespeitada, ao passo que a mulher de Portuga, adúltera, recebe adjetivações como “vaca” e “vadia”. Podemos concluir desta forma, que “Na ocorrência destas três personagens femininas implícitas, pode-se perceber que para esse grupo, as mulheres se dividem basicamente em duas categorias delimitadas: a mãe a puta”. (SOARES, 2010, p. 104). Sem veto, o masculino e o feminino se cruzam quando das relações de poder prescritas entre os presos. Estas relações fomentam a concepção de gênero no âmago da narrativa, pois o gênero “se preocupa com a consolidação de um discurso que constrói uma identidade do feminino e do masculino que encarcera homens e mulheres em seus limites [...]”. (FILHO, 2005, p. 136). Ao considerarmos esta lógica, inferimos os sentidos dos papeis sociais destinados ao homem e a mulher que são fundamentados pelos cativos. A agressão latente, incapaz de definir uma imagem do feminino diante dos presos, a impotência sexual como indício de fraqueza, a homossexualidade como um estigma da subalternidade, etc., são percepções dos sexos   Na narrativa, a imagem materna eleva-se sob a ótica dos presos porque esta se configura naquilo que Badinter (1985) chama de “indefectível amor oblativo” e não na mulher objeto, inferior aos olhos das personagens plinianas. BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de janeiro, Nova Fronteira, 1985, p. 9.

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que permeiam a historicidade das personagens. Percebemos a violência expressa, que se apregoa na identidade destes, como uma variável importante no que tange a construção de gênero na narrativa. No desfecho da peça, Portuga é assassinado por Tirica17, última maneira que este encontra de reafirmar sua masculinidade posta em dúvida. Eliminar esta personagem, que revela a violência que o primeiro sofreu no passado, humilhando-o, torna-se eficaz para a figura dramática na legitimação do gênero masculino elencado coletivamente. Também é uma forma de abster-se da responsabilidade de não ter participado da curra do garoto. O assassinato ocorrido na cela é visto pelos policiais como uma prática corriqueira, sendo que a única coisa que os enfurece é o fato do crime ter sido cometido em seu turno de trabalho: “Não podia esperar mais um pouco para aprontar o salseiro? Mais dez minutos e era a rendição que iria resolver essa alteração”. (MARCOS, 1976, p. 58), evidenciando a violência como uma prática natural. Norberto Bobbio ressalta que a violência é “a intervenção de um indivíduo [...] sobre outro indivíduo [...] exerce a violência quem, não obstante à resistência imobiliza ou manipula o corpo do outro”. (BOBBIO, 1986, p. 129). Diante desta premissa, percebemos que, na narrativa de Barrela, embora os presos estejam sob a custódia do Estado no ambiente prisional, não há nenhuma garantia de segurança devido às normas técnicas edificadas pelos mesmos. E, na esteira desta questão, percebemos que matar ou morrer conjuga-se a ideia da masculinidade como algo viril, imponente e de caráter despótico, opondo-se ao feminino passivo e vulnerável. Ser homem é ser dono da situação, e, se possível, manter o outro em uma posição de dominação simbólica, requisito primário para a condição masculina no ambiente carcerário. 5 APONTAMENTOS CONCLUSIVOS: SER HOMEM, SER MULHER Foucault (2011) observa que a necessidade de regular o sexo se dá por meio da incitação de

Como mencionando neste trabalho, Barrela baseia-se em uma notícia de jornal e, na história verídica, quem mata os consortes de cela é o garoto violentado, para se vingar dos agressores. Na peça teatral, entretanto, Tirica mata Portuga na tentativa de reafirmar sua masculinidade.

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discursos públicos acerca da sexualidade. Discursos úteis que não se apregoam apenas à lógica da proibição. Sobre o sexo “toda uma teia de discursos, de saberes, de análises e de injunções o investiram”. (FOUCAULT, 2011, p. 33). Neste sentido, a sexualidade, ao ser alvo de uma verdadeira profusão discursiva, que não visa apenas reprimir, mas normatizar a conduta dos sujeitos é produzida de acordo com os preceitos de cada grupo social. Ao encontro desta constituição societária dos indivíduos, o gênero torna-se uma teoria que busca compreender esta edificação em diferentes espaços de interação e produção humana, como na dramaturgia, que foi objeto de estudo neste artigo, uma vez que “[...] o construto gênero foi apropriado da forma as mais distintas pelas inúmeras áreas disciplinares e suas teorias [...]” (MATOS, 2008, p. 237). Em Barrela de Plínio Marcos, a narrativa dramatúrgica apresenta um grupo de detentos que distingue pontualmente o que é aceito como masculinidade e o que é abrigado como feminilidade no âmago do espaço o qual habitam. A partir de regras, simbologias, valores, crenças, condutas e comportamentos, os presos constroem representações de gênero que pautam a normatividade do sexo masculino em detrimento do feminino. Não vetante, percebemos que, mesmo tratando-se de uma obra ficcional, a ideia de heteronormatividade fixada pelas personagens plinianas, pautada na violência e na agressividade, é significativa, pois traz em si uma carga imaginária da própria sociedade observada pelo autor, já que os presidiários referem-se à realidade extramuros ao longo da narrativa para elencar as feições de si e do outro. Deste modo, a mistura das normas técnicas criadas no ambiente prisional, quase todas fixadas na agressividade, com as representações sociais postuladas pela exclusão social na qual estão abstraídos, denota a masculinidade dos consortes de cela e seus referentes imaginários acerca do que é ser homem e ser mulher.


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PAZ E VIOLÊNCIA NA ESCOLA: VOZES, ECOS E SILÊNCIOS

Marcio Adriano Cardoso1 RESUMO O presente artigo busca analisar os conceitos de paz e de violência presentes na escola e quais os seus significados e influências que os mesmos geram nas ações pedagógicas que visam enfrentar situações de violência. Através da análise de conteúdo, foram apreciados 83 relatos de experiências escritos por professores da rede municipal de ensino de Montenegro/RS. O levantamento dos dados demonstra que diferentes concepções de paz convivem nos discursos escolares influenciando as diferentes maneiras que as escolas lidam com as violências em seu cotidiano. Algumas ignoram os conflitos que produzem violências por acreditarem que não é tarefa da escola (Silêncios), outras percebem os conflitos, mas não sabem como lidar com eles e acabam repetindo antigas fórmulas ordenadoras e disciplinadoras (Ecos) e, por fim, algumas percebem os conflitos e buscam soluções coletivas e criativas através de projetos a longo prazo (Vozes). As instituições que construíram experiências eficazes de resistência à violência têm em comum um conjunto de procedimentos: desenvolvem atividades que aproximam os vínculos entre escola e comunidade; investem na consolidação de uma equipe unida e determinada através da formação de professores por meio de um processo participativo e coletivo. Palavas-chave: Paz. Violência Escolar. Educação para a Paz. ABSTRACT: This paper analyzes the concepts of peace and violence in the school and meanings and influences that generate these conceptions in educational activities that aim to address situations of violence. Through content analysis, we examined 83 reports of experiences written by teachers from the municipality Montenegro / RS. Different conceptions of peace coexist in school discourses influencing the different ways schools deal with violence in their daily lives. Some ignore the conflicts that produce violence because they think it is not the task of the school (Silences), others perceive the conflicts, but do not know how to deal with them and end up repeating old formulas disciplinary (Echo) and, finally, some perceive conflicts and seek collective solutions and creative projects through to long term (Voices). Institutions experiences built effective resistance to violence have a common set of procedures: develop activities that bring the links between school and community; invest in the consolidation of a team united and determined by training teachers through a participatory process and collective. Keywords: Peace. School Violence. Education for Peace.

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Filósofo e Psicólogo, Mestre em Educação, UNISINOS – E-mail: marcioacpoa@hotmail.com. 49


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1 INTRODUÇÃO Minhas inquietações de pesquisa me inserem no cenário escolar, nos discursos que ali estão sendo produzidos sobre violência e paz e as consequências desses discursos. Parto do princípio que é preciso colocar estes dois termos – PAZ e VIOLÊNCIA - sob suspeita, evitando compreensões universalizantes ou totalizantes. É necessário situá-los, portanto, na centralidade da cultura, na emblemática realidade escolar e na ordem do discurso social como lugar de constituição de significados, e na conflitividade das relações sociais e culturais. Parto de dois pressupostos importantes. Primeiro: a violência é uma produção cultural. Vivemos numa cultura de violência e, portanto, a violência está presente em todos os ambientes sociais e reprodutores de cultura. Isso nos faz concluir que também está presente na Escola. Segundo, a compreensão de que a paz não é mera ausência de violência. Entendo paz como conjunto de valores e atitudes afirmativas que busca promover a justiça, os direitos humanos, o diálogo e o entendimento entre os sujeitos (GALTUNG, 1985; JARES, 2002; GUIMARÃES, 2005). Não basta combater a violência ou extirpá-la de um determinado ambiente. É preciso pôr algo no lugar dela, ou seja, criar ações e projetos que fomentem novos tipos de relações entre os sujeitos ali implicados. Portanto, para fazer frente ao fenômeno da violência, é preciso criar novas formas dos indivíduos resolverem seus conflitos, administrar suas diferenças, superar seus preconceitos e estereótipos. Se a violência está presente na escola, de alguma forma, a escola precisa lidar com seus reflexos e consequências e, de certa forma, o faz. Percebe-se que a escola não consegue ficar indiferente ao fenômeno da violência, busca, de vários modos, fazer frente a este desafio. Assim nascem inúmeras iniciativas de enfrentamento da violência e promoção de uma cultura de paz. E é justamente essas iniciativas que são o objeto de estudo da presente pesquisa. Mais especificamente as concepções de paz e de violência que estão presentes nessas iniciativas e que efeitos produzem. Como objeto de estudo foi escolhido um conjunto de 83 experiências escritas por professores municipais do município de Montenegro/RS. Esses professores foram convidados a escrever sobre “experiências de ensino que deram certo” ou 50

“experiências que fizeram a diferença para aluno/ comunidade/professor/escola”. Este conjunto de relatos é resultado de um amplo projeto firmado em parceria entre a Secretaria de Educação de Montenegro e o grupo de pesquisa coordenado pela Prof. Drª. Mari Margarete dos Santos Forster, vinculado à Linha de Pesquisa Formação de Professores, Currículo e Práticas Pedagógicas da UNISINOS e iniciou suas atividades em agosto de 20011. Partindo do pressuposto que todas estas experiências, que foram entendidas pelos autores como significativas, abordaram questões do cotidiano escolar das mais variadas ordens: desde projetos específicos relacionados à aprendizagem de determinada competência de alguma disciplina até projetos amplos e interdisciplinares que visavam à relação entre a escola e sua comunidade. Sendo assim, concluo que essas experiências são respostas às demandas escolares no entendimento e na percepção dos professores. Dessa forma, entendo que tais experiências podem nos dizer de uma forma ou de outra, se a questão da violência e da construção de uma cultura de paz é percebida pelos professores autores como uma tarefa da escola ou não e quais os pressupostos embasam as práticas nascidas desse desafio. Esses 83 relatos se tornaram o corpo de pesquisa. Para acessar os dados que interessavam e poder inferir criticamente sobre seus significados e efeitos, usei como metodologia a análise de conteúdos, proposta por Bardin (1977). Este procedimento metodológico pressupõe que toda mensagem contém, potencialmente, uma grande quantidade de “informações sobre seu autor: suas filiações teóricas, concepção de mundo, interesse de classe, traços psicológicos, representações sociais, motivações e expectativas” (FRANCO, 2003, p 21). Além disso, a mensagem revela as teorias sociais que perpassam a formação do autor da mensagem que, ao enunciá-la, seleciona certos conteúdos, e essa seleção não é arbitrária (FRANCO, 2003, p 22), sendo, portanto, uma boa ferramenta para as pretensões dessa pesquisa. 2 AS PRIMEIRAS VOZES Dos 83 relatos de experiências que foram enviados para o grupo de pesquisa, podemos afirmar, em linhas gerais, que 24 deles abordam de forma direta ou indireta temas pertinentes à Educação para a Paz.


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Como sabemos, historicamente, a educação não tem conseguido fazer frente a este cenário de violência, exclusão e de desigualdade social. No entanto, praticamente 24% das experiências relatadas pelos professores e pelas professoras municipais de Montenegro/RS e que foram consideradas por seus próprios autores como significativas ao longo do ano de 2011, tem no seu escopo a intencionalidade de criar novas formas de relações na própria comunidade escolar, ou, em outras palavras, muitas das experiências aqui analisadas abordam temáticas que fazem frente a aspectos da cultura de violência. As questões que surgem são: será que conseguem isso? Será que estas experiências que tratam de combater a violência e promover a paz de fato o fazem? 3 VOZES, ECOS E SILÊNCIOS O conceito de paz não é um conceito único e harmônico. Ao longo da história tal palavra recebeu mixagens semânticas que tornam seu sentido polissêmico, com muitas interpretações e usos. Pode ser usado desde a cela contemplativa de um mosteiro tibetano até nos barulhos ensurdecedores dos campos de batalha. O mesmo acontece com o conceito de violência, interpretado de diversas formas. E na escola? Como esses conceitos são usados e que potencialidades carregam e engendram? Analisando as 24 experiências que, direta ou indiretamente, abordam essa temática, percebo que esta confusão semântica que envolve o conceito de paz e de violência acaba por direcionar as práticas e abordagens dessas temáticas, potencializando algumas ações e empobrecendo outras. Um dos conceitos que perpassa bastante as experiências analisadas é o entendimento de paz como tranquilidade e harmonia. Talvez pelo fato de que muitas dessas experiências tenham sido concebidas e construídas como resposta aos desafios do cotidiano escolar que, segundo indicam pesquisas nesta área (CODO, 1999)2, estão repletas de violência, entre as quais as mais constantes são: agressões físicas entre os alunos e as agressões de alunos contra os próprios professores e contra o patrimônio. Justamente como resposta a essas demandas, algumas das experiências almejam criar ambientes onde a perturbação da ordem e os conflitos possam ser extintos. Esse conjunto de experiência tem em comum o fato de “conceber” como alternativa ao ambiente

conflituoso, repleto de brigas e desentendimentos, o ambiente tranquilo, calmo e sereno. Xesús Jares (2002) classifica esta concepção de paz como tradicional, justamente porque restringe o conceito de paz a um estado de harmonia, serenidade ou ausência do conflito. Segundo o autor, tal concepção empobrece o conceito de paz, pois limita seu sentido a uma passividade, sem dinamismo próprio e “criada antes como consequência de fatores externos a ela” (JARES, 2002, p. 123). Além disso, tal concepção nega o conflito como fator inerente ao convívio humano. Querer criar um ambiente sem conflitos acaba por delegar à paz um sentido metafísico, quase que impossível de ser atingida, tarefa de anjos e querubins. Segundo Guimarães (2005) e Jares (2002) esta visão do conceito de paz é a mais presente no senso comum, o que explica a dificuldade de entender a paz como algo mais concreto e possível de ser realizado. Essa concepção carrega em si a impossibilidade de concretizar a pretendida paz. Dada à difusão que se faz da ideia tradicional de paz, principalmente pelo próprio sistema educativo, é mais fácil concretizar a ideia de guerra e o que gira em torno dela do que a ideia de paz, que parece condenada ao vazio, a uma não existência difícil de concretizar e precisar (JARES, 2002, p. 123)

Tal confusão aparece também em experiências que, claramente, se propõem a reverter situações de agressão entre alunos ou falta de cuidado e respeito pelos bens de uso coletivo através de um maior disciplinamento ou no resgate de valores morais ordenadores, como no exemplo do relato de experiência nº 10: O aluno perdeu o respeito pela escola, mostrando sua insatisfação através de agressividade com colegas, professores, funcionários e o próprio patrimônio escolar. Este respeito precisa ser resgatado promovendo atitudes para melhorar a convivência dentro da escola. (...) Resgatar valores morais que mostrem atitudes de respeito mútuo, solidariedade, humildade e amor ao próximo. (Relato 10)

Novamente é possível perceber a forte presença do conceito negativo de paz, ou seja, paz 51


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apenas como ausência de perturbações e conflitos pessoais entre alunos ou entre alunos e professores ou por meio de depredação do patrimônio. Apesar de também ser importante o combate a esse tipo de violência mais direto e perceptível, não se pode deixar de lado que tal abordagem, se exclusiva, reduz a paz à manutenção da ordem estabelecida, ocultando a violência simbólica promovida pela própria escola e a própria violência estrutural. Essa abordagem tradicional de paz (GALTUNG, 1985; JARES, 2002), ao ocupar-se exclusivamente da violência direta (violência na qual existe um ator que comete violência e que neste caso é sempre identificado como o aluno), não tem força suficiente para promover mudanças mais sérias no cenário escolar e social, servindo apenas para a manutenção e reprodução do que já existe. Uma das experiências (Relato 05), ao trabalhar o tema “paz” com os alunos, traz como referência a música de Zizi Possi com este mesmo nome: A PAZ. Abaixo alguns trechos da canção:

A Paz! Invadiu o meu coração / De repente me encheu de paz Como se o vento de um tufão / Arrancasse meus pés do chão A Paz! Fez o mar da revolução / Invadir meu destino A Paz! Como aquela grande explosão Uma bomba sobre o Japão / Fez nascer o Japão na paz. (...) Que contradição / Só a guerra faz nosso amor em paz... A Paz! Invadiu o meu coração! / A Paz! Fez o mar da revolução!

Na letra da música fica clara a presença do conceito tradicional e negativo de paz, mesclando com a concepção romana, paz como ausência de guerra, com a concepção estoica, paz como tranquilidade da alma. A paz invadindo o coração deixa transparecer a ideia da paz como um sentimento, um atributo da alma sensível, algo que brota do coração e nos invade. Tal concepção nega a dimensão relacional e conflituosa da vida humana. A expressão “só a guerra faz nascer um Japão de paz” recorda o trágico episódio das bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki como condição quase que necessária para o estabelecimento da paz, como se a guerra fosse o meio pela qual a 52

paz pudesse se estabelecer. Nessa concepção, é o imperativo da força que instaura, a qualquer custo, a paz. Além disso, tal concepção trata a paz apenas a partir da dualidade guerra-paz, mau-bom, bandidomocinho, criminoso-policial... Por isso, vemos, no nosso cotidiano, que existe uma grande tendência a querer responder aos episódios de violência com a presença e o aumento do aparato policial e/ou de vigilância, excluindo o caráter estrutural e cultural dos fenômenos que envolve a violência. Essa abordagem, mesmo sem dar-se conta, ao negar a violência estrutural, acaba servindo como paliativa, pois atua apenas na superfície dos problemas, não desenvolvendo uma reflexão crítica e emancipadora sobre suas causas. Para Galtung, a violência estrutural (...) está edificada dentro da estrutura e se manifesta como um poder desigual e, consequentemente, como oportunidades de vida distintas. Os recursos são distribuídos de forma desigual, como ocorre quando a distribuição de renda é muito distorcida ou quando a alfabetização/ educação é distribuída de forma desigual, ou quando os serviços médicos existentes em determinadas zonas são apenas para certos grupos, etc. Acima de tudo, quando o poder de decisão acerca da distribuição dos recursos está distribuído de forma desigual (GALTUNG, 1985. p. 167)

Nesse sentido, a paz, no seu caráter positivo, assemelha-se à justiça social e, portanto, parafraseando Galtung, chamar de paz uma situação em que imperam a pobreza, a repressão e a alienação é uma paródia do conceito de paz (GALTUNG, 1985). Por outro lado, em alguns relatos de experiências produzidos pelos professores participantes do estudo, há um conceito mais alargado, que foge do tradicional conceito de paz como tranquilidade da ordem ou como antítese da guerra, e aprofunda mais o caráter relacional da convivência humana. Essa concepção é observada no relato de experiência número 12. Torna-se, fundamental, então, promover atividades a fim de que os alunos percebam o quanto são responsáveis pelos ambientes que frequentam e pela qualidade dos vínculos estabelecidos, tendo a escola como ponto de partida. (...) (Relato 12)


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Nesse relado é possível observar que a paz não é tratada como mera ausência de violência física, mas como um conjunto de atitudes que nos leva a resolver os conflitos existentes de outras formas que não a violenta. Por isso a importância de educar na prevenção das violências, não de modo disciplinador, mas emancipador: “promover atividades a fim de que os alunos percebam o quanto são responsáveis pelos ambientes que frequentam” (Relato 12). É ao aluno que cabe escolher o ambiente que quer construir. Aqui o aluno deixa de ser mero repetidor de normas e regras para, em conjunto, refletir e demarcar novas possibilidades. Outro fato importante é a intenção de educar para o respeito às diferenças, fator fundamental e indispensável na educação para a paz, pois, ao contrário da concepção negativa da paz, essa concepção não nega a existência do conflito, pelo contrário, sabe de sua existência e trabalha com a intenção de criar competências necessárias para que os sujeitos possam lidar com sua existência e resolvê-lo de forma construtiva. Como afirma o inglês Adam Curle: (...) Em contraste com a ausência de luta declarada, uma paz deveria significar – em escala individual – amizade e compreensão suficientemente amplas para superar quaisquer diferenças que pudessem surgir. Em escala maior, as relações pacíficas deveriam implicar uma associação ativa, uma cooperação planejada, um esforço inteligente para prever e resolver conflitos em potencial. (CURLE, 1978. In: JARES, 2002, p. 125)

Essa percepção nos ajuda a construir uma concepção muito mais realista e possível de paz, pois, ao invés de idealizá-la, a entende como processo dinâmico que cria situações caracterizadas por um nível reduzido de violência e um nível elevado de justiça. Em vários outros relatos de experiências aparece esta preocupação de vivenciar, experimentar situações desejadas, ou seja, situações nas quais o respeito pela diferença, a tolerância e o diálogo se tornem presentes. Tratam dessa temática, enfatizando especialmente a diversidade humana e a necessidade de aprendermos a respeitar estas diferenças para que nosso convívio seja mais sadio. Fica evidente a importância do aspecto coletivo e do protagonismo dos sujeitos envolvidos

no processo de consolidação de uma cultura de paz. Tais fatores favorecem o desenvolvimento de uma das principais competências sugeridas por vários autores como fundamental na construção da paz e no combate à violência: o uso da palavra como ação afirmativa (FREIRE,1986; JARES, 2002; GUIMARÃES, 2005; CHARLOT, 2002). O relato de experiência 03 mostra como é possível envolver toda a escola num processo participativo de planejamento. Ao romper com a maneira tradicional de organizar a formação pedagógica da escola e se propor a buscar em conjunto, como grupo, outras possibilidades, a equipe diretiva da escola consolida uma nova perspectiva relacional: todos são responsáveis pelos processos. Sendo assim, todos têm direito à palavra e, ao usá-la, nos diversos momentos oportunizados, empoderam-se. Ressalto que, ao exemplo das duas atividades desenvolvidas nas reuniões citadas, existe uma preocupação em organizar as reuniões com os professores que oportunizem uma reflexão dialogada coletiva, a fim de que tenhamos uma aproximação em nossos entendimentos sobre o fazer pedagógico na escola. Noto que, neste interesse e movimento, muitas ações e relações positivas tecem a nossa escola. Parece-me que criamos assim um clima de interação, de receptividade, de colaboração, de disponibilidade, de respeito, de ajuda mútua, de solidariedade, que nos permite qualificar nossa prática com as possibilidades que se têm. (Relato 03)

Segundo Paulo Freire (1986) é pelo uso da palavra que nos tornamos protagonistas capazes de ler e escrever a história. Ao dizer a sua palavra, o sujeito cria/recria o mundo, e, ao fazê-lo, cria/recria a si mesmo, num processo contínuo e infindável de autoconstrução e desconstrução. É nesse processo que acontece a emancipação. Ao propor, num processo de formação permanente, que os próprios professores “teçam” o caminho a ser trilhado juntos, a equipe diretiva delega a todos a responsabilidade das escolhas a serem feitas e, ao fazê-lo, oportuniza que todos sejam verdadeiros sujeitos autônomos nesse processo. Para Freire o construir-se, o biografar-se, o existenciar-se só é possível através da autonomia e de uma relação ética com o outro. O horizonte ético se estabelece justamente no momento em que eu, como sujeito autônomo 53


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capaz de construir a minha história e também a história coletiva através da minha afirmação através da palavra, também reconheço o outro como sujeito autônomo capaz de criar-se a si mesmo e ao mundo. O diálogo é a essência da emancipação humana, é sempre uma relação de iguais mediatizados pelo mundo. Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizêla para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais. (FREIRE, 1986, p.78)

Os sujeitos fortalecidos e capazes de reconhecer também no outro um protagonista são capazes de criar espaços onde as vozes circulam, onde a palavra se faz presente. Além de recriarem-se a todo o momento, criam e recriam uma identidade coletiva: Agora, percebo uma participação maior, com sujeitos que se posicionam, sugerem, contribuem, interagem, vivem a experiência, ou melhor, sujeitos do “lugar do acontecimento”, como sugere Larrosa em uma de suas obras. E, mais do que sujeitos fortalecidos em suas diferenças pessoais, nesta pluralidade de singularidades, percebo que se forma na escola o “sujeito-coletivo”: uma identidade comum. (Relato 03)

É importante ressaltar a percepção de que, mesmo construindo processos democráticos de uso da palavra, de decisões coletivas e vários outros dispositivos de emancipação de sujeitos, isso não significa que todos os problemas e obstáculos sejam suprimidos. Esse processo, como qualquer processo coletivo, acontece dentro das imanências humanas, dentro das tensões históricas, culturais e sociais. São processos que se dão nas tensões do chão da escola e que recebem todos os tipos de influências da comunidade local e que, portanto, não são imaculados. Isso significa dizer que são repletos de conflitos. O diferencial talvez esteja, justamente, na maneira de encarar esses conflitos.

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5 ARTICULANDO NOVAS VOZES Uma das descobertas interessantes nesse esforço de análise é que essas diversas maneiras de conceber a paz que foram sendo forjadas nas tramas da história hoje se misturam, se confundem e, na grande maioria das vezes, convivem de modo caótico, mas não estático, e acabam por produzir efeitos, ora que enfatizam uma dessas concepções, ora outra. Isso nos ajuda a entender que nenhum desses processos é linear, imaculado ou definitivo. Todos são cheios de tensões, idas e vindas, avanços e retrocessos. Observei escolas que desenvolvem iniciativas significativas em relação à educação para a paz, mas que, ao mesmo tempo, decidem equipar a escola toda com sistemas de vigilância por vídeo, ou seja, optam por usar o velho modelo panóptico de vigiar. Esse estudo também indica que as concepções de paz e de violência, que predominam em cada ambiente, acabam por direcionar a maneira como cada escola vai entender e lidar com os conflitos que ali existem. Neste sentido, observei que as escolas pesquisadas, de modo geral, adotam três grandes maneiras de lidarem com os conflitos geradores de violências. Umas negam a existência do conflito, mas acabam tendo que lidar com a manifestação violenta dele, que é a tão conhecida violência escolar. Não sabem o que fazer e por isso não fazem nada, apenas silenciam. Ao silenciar, se eximem da responsabilidade por achar que “isso não é competência da escola” e acabam por transmitir e manter esta passividade e este assujeitamento. Dedicam seu tempo e sua energia na transmissão dos “conteúdos escolares”. Muitas dessas escolas assumem um discurso queixoso diante das dificuldades que se apresentam e culpam terceiros, vitimizam-se e deixam de assumir seu lugar de agente social. Além disso, por assumirem o lugar do silêncio, são elas mesmas promotoras de violência de todas as ordens, tanto violências simbólicas como violências estruturais, na medida em que compactuam com o sistema de desigualdade, injustiça, e elas mesmas cooperam com a exclusão silenciosa dos alunos. Outro grupo de escolas percebe o conflito e tenta extingui-lo, pois o entende como algo que atrapalha a escola, um evento perturbador


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da ordem que causa indisciplina e o insucesso escolar. No entanto, para extinguir os conflitos, estas escolas usam velhas fórmulas disciplinadoras, autoritárias e excludentes. Com boa vontade, promovem ações em relação à educação para a paz, mas de maneira estanque, episódica e isolada. Reforçam o imperativo da autoridade do professor e da obediência por parte dos alunos como forma de reestabelecer a ordem, entendida aqui como sinônimo de paz. Queixam-se da falta da educação dos alunos e culpam a família, ou a falta dela, pela ausência de limites e pela pouca valorização da instituição escolar. Esse grupo de escolas insiste em tornar a sala de aula um ambiente harmônico e “pacífico”, sem o qual a aprendizagem não acontece e por isso tenta deixar os conflitos do lado de fora da escola. Busca aumentar os muros, baixa regras e normas mais rígidas e o disciplinamento dos corpos e das mentes. Usa velhas fórmulas, repete antigas soluções e antigos discursos sobre o tema, ou seja, continua a propagar ecos de violências na estrutura da escola. Percebe-se, ainda, a existência de um terceiro grupo de escolas que também se incomodam com a presença e os sinais de violência, mas, diferentemente do grupo anterior, elas assumem a existência dos conflitos e os transformam em oportunidades. Essas escolas têm consciência da complexidade do fenômeno da violência e da dificuldade em lidar com ele, mas buscam soluções e criam alternativas. Diante dos conflitos que aparecem, sabem que existe a possibilidade de criar novas maneiras de melhorar as relações. Essas escolas entendem que a educação é responsabilidade de todos e investem no trabalho coletivo. Envolvem professores, pais e alunos nas discussões e na busca coletiva de soluções para os problemas enfrentados. Esses grupos têm, também, em comum, o fato de ter a consciência de que o processo educacional é muito mais amplo do que aquele realizado pela escola. Reconhecem-se como limitados e, por isso, se abrem à parceria, com as mais diferentes instituições sociais. Sem receitas prontas, colocam-se a caminho, desacomodam-se na busca insistente de uma educação que vai muito além dos tradicionais conteúdos escolares. Não apostam em soluções mágicas, mas em processos coletivos a médio e a longo prazo. São novas vozes que se fazem escutar.

São essas escolas que acabam por construir experiências interessantes e inovadoras de resistência à violência. Elas têm, em comum, um conjunto de procedimentos interessantes e que, de certa forma, podem auxiliar tantas outras escolas que também buscam alternativas para reverter realidades perpassadas por violências. São eles: Desenvolver atividades que aproximam os vínculos entre a escola e a comunidade. A aproximação com a comunidade acontece através do diálogo constante com os pais. Envolvêlos no acompanhamento da aprendizagem, dos êxitos e das dificuldades dos filhos é tarefa dos gestores e professores e ajuda a romper o empurraempurra sobre a responsabilidade pelo sucesso ou o fracasso escolar. Outro fator que ajuda é o desenvolvimento de atividades esportivas e culturais que podem ser feitas em parcerias que articulem o trabalho extracurricular com a aprendizagem de conteúdos e valorizem a história e a cultura locais. Esse processo acontece nos dois sentidos. A comunidade vem para dentro da escola, e a escola vai para a comunidade. Investir na consolidação de uma equipe unida e determinada. Nas escolas que se destacaram em relação a iniciativas referentes à educação para paz, percebese o comprometimento de todos os professores e da equipe diretiva. Uma equipe diretiva forte, unida e competente também é fundamental para a formação de um grupo de trabalho que se comprometa com as decisões tomadas. Uma direção que compartilha decisões, uma coordenação pedagógica atuante na formação dos professores através de um processo democrático, uma orientação educacional que atua para resolver os problemas de alunos, familiares e professores são os primeiros passos para quebrar o ciclo de violências e exclusões e abrir as portas para a aprendizagem e para a paz. Investir em projetos em longo prazo que visam reverter e fazer frente a um processo histórico de depreciação do espaço escolar e de fortalecimento das situações de exclusão e violência não é tarefa fácil, bem pelo contrário. Tal desafio só se torna plausível com um grupo comprometido com esta transformação. Os momentos de frustração e desânimo diante das limitações da escola são inúmeros, e somente um grupo determinado

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consegue permanecer fortalecido para continuar a enfrentar os desafios que nunca cessam. a. Buscar a formação de professores através de um processo participativo, pois a escola é um local de formação permanente. Outro fator que me parece preponderante é a consciência de que a própria escola é um espaço formativo e que a rotina de refletir e discutir a própria prática é fundamental para o crescimento e a busca consistente de alternativas realmente eficazes. O estudo faz parte constante das reuniões e encontros, não somente dos professores, mas também dos pais e alunos. Como exemplo é possível citar que uma das escolas pesquisadas reúne grupos de pais e alunos para estudar o livro sobre comunicação não violenta. Outro fator importante é que estes grupos evitam receitas prontas e tentam buscar soluções concretas e viáveis para suas realidades. Outro fator importante são as constantes avaliações realizadas ao longo do processo. Elas ajudam a aprimorar o que vai dando certo e a corrigir o rumo do que precisa ser repensado. b. Realizar parcerias com outras instituições. Nas escolas que fazem frente à violência esta é uma prática constante. Elas demonstram reconhecer que o processo de construção e retomada da cidadania vai muito além dos muros escolares e que, portanto, ações mais eficazes são construídas em parcerias com várias outras instituições. Entender que a escola não é e não pode ser uma instituição isolada é fundamental. Se a violência tem múltiplas causas e efeitos, é preciso fazer frente a ela de maneira interdisciplinar e articulada com outras formas de organização social. Essa articulação pode acontecer com os conselhos tutelares, com os órgãos de segurança, postos e secretarias de saúde, igrejas, associações, ONG, entre outras. A paz se constrói por múltiplas mãos. Nestas escolas, mesmo que casos de violência ainda se percebam, observa-se que existe uma barreira muito mais duradoura e eficiente contra a violência do que a formada por grades e cadeados. Violências ainda acontecem nestes espaços, afinal não existe mágica quando se trata de um processo tão complexo como é a formação de pessoas, no entanto a escola e seus sujeitos já não são passivos diante desses casos. Todos estão mais atentos para os episódios de violência e investem no diálogo como meio 56

de resolver os conflitos. Em uma das escolas, o projeto desse ano, “Diálogo: sustentabilidade da paz”, não é apenas mais um projeto da escola, mas a síntese de anos de caminhada que traduz a certeza de que o caminho no combate às violências passa necessariamente pela capacidade do sujeito dizer a sua palavra, fazer-se ouvir, manifestar-se, emancipar-se ao mesmo tempo em que sabe ouvir, respeitar a manifestação do diferente e preservar sua emancipação. Vozes, ecos e silêncios estão presentes na polifonia de nossas escolas, no cotidiano dos desafios dessa realidade escolar transpassada por tantas ideologias, discursos, demandas e abandonos. Vozes, ecos e silêncios convivem numa tensão permanente, ora perigosamente harmoniosa, ora desafiadoramente caótica. Nosso grande desafio é afinar os ouvidos e empoderar novas vozes que sejam capazes de traduzir em novas melodias tantas vozes silenciadas pela história ou sufocadas por ecos do passado. São estas vozes que tornam a paz uma realidade possível. São estas vozes que constroem novas possibilidades para a própria escola. São estas vozes que fomentam novas melodias que embalam tantas e tantas outras “danças de roda”, e estas novas danças, diversas e plurais, dão aos espaços escolares novas configurações.

Referências BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa, Edicções 70: 1977 CHARLOT, Bernard. A Violência na Escola: como os sociólogos franceses abordam esta questão. Tradução Sônia Taborda. Revista Sociologias, Porto Alegre, v. 4, n. 8, jul./dez. 2002, p. 232 -443. CODO, Wanderley (Org.). Educação: Carinho e trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes: Brasília: Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação: Universidade de Brasília. Laboratório de Psicologia do Trabalho, 1999.


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FORSTER, Mari; LEITE, T. C; BITENCOURT, M. O. Processos de formação continuada: impactos na prática docente. Anais Congresso Internacional de Educação, Profissão Docente: Há futuro para este ofício? São Leopoldo, 2011. FRANCO, Maria Laura Puglisi Barbosa. Análise de conteúdo. Brasília: Plano Editora, 2003. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra S/A, 1986. GALTUNG, Johan. Sobre la paz. Barcelona: Fontamara, 1985. JARES, Xesús R. Educação para a paz: sua teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 2002. GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Educação para a paz: sentidos e dilemas. Caxias do Sul, RS: Educs, 2005.

(Endnotes) 1 Para maior conhecimento sobre o projeto citado, ver FORSTER, Mari; LEITE, T. C; BITENCOURT, M. O. Processos de formação continuada: impactos na prática docente. Anais Congresso Internacional de Educação, Profissão Docente: Há futuro para este ofício?. São Leopoldo, 2011. 2 Um estudo realizado sobre condições de trabalho com professores da rede de ensino público, no qual o tema da violência e segurança nas escolas é abordado, oferece algumas informações bastante elucidativas. A investigação foi realizada com 52 mil professores dos sistemas públicos de ensino, distribuídos em todo o país, sob a coordenação de Wanderley Codo, do Laboratório de Psicologia do Trabalho da Universidade de Brasília (CODO, 1999). Na referida pesquisa, três tipos de situações foram identificadas como as mais frequentes: as depredações, furtos ou roubos que atingem o patrimônio, as agressões físicas entre os alunos e as agressões de alunos contra os professores.

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A PRÁXIS NO CONTEXTO ESCOLAR: UM ELEMENTO SIMBÓLICO NO PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO

Luís Paulo Arena Alves1 Raquel Meirose2 RESUMO Nas notas deste artigo refletiremos sobre o conceito de práxis e sua relação com o contexto escolar. A escolha da temática se deu a partir da necessidade de aprofundar o sentido e o entendimento filosófico do termo, mas, acima de tudo, pela importância de se observar os seus desdobramentos na realidade educacional, a fim de que estes possam colaborar para uma ação futura nos diferentes espaços pedagógicos. Buscaremos também, relacionar a práxis como o processo e a dinâmica pedagógica que se traduz pela compreensão crítica da realidade, estabelecendo correlações de causa e efeito, formulação de juízos com vistas ao desenvolvimento integral do aluno, como caminho para o alcance de uma verdadeira cidadania. Apontaremos dentre outros os aspectos relevantes, não só o desenvolvimento da teoria na prática, mas também para a construção do conhecimento a cerca desta temática como um elemento importante para a atuação dos profissionais na área da educação. Palavras-chave: Práxis. Educação. Transformação. ABSTRACT In the notes to this article will seek to reflect on the concept of praxis and its relationship with the school context. The choice of this subject was given from the need to deepen the meaning and philosophical understanding of the term , but the importance of observing their outcomes in educational reality , so that these elements can collaborate for future action in different pedagogical spaces. Also seek to relate the praxis as a process and a pedagogical dynamic that translates the critical understanding of reality, establishing correlations of cause and effect , making judgments with a view to the full development of the student as a way to achieve a true citizenship . Will point among other relevant aspects, not only for the development of theory in practice, but also in the construction of knowledge about this theme as an important the work of professionals in education element. Keywords: Praxis. Education. Transformation.

1   Assistente Social pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, mestre em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e assessor de projetos sociais da organização internacional KINDERNOTHILFE, E-mail: luispauloarena@terra.com.br. 2 Professora de língua espanhola Graduada em Letras Português/ Espanhol pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, especialista em língua e literatura espanhola pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do SulPUCRS. E-mail: rameirose@hotmail.com.

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1 A CONCEPÇÃO FILOSÓFICA E O SENTIDO SIMBÓLICO DA PRÁXIS Ao falar sobre “Práxis” é importante buscarmos a compreensão terminológica do seu real significado, sendo este originalmente um conceito que é utilizado pelos gregos para designar a ação propriamente dita do que seria a prática. Podemos então utilizar tanto “prática” como “práxis”, a saber, que o primeiro está ligado a uma linguagem mais “corriqueira” e o segundo é reconhecido pelo seu caráter filosófico, ou seja, a práxis remete à ideia de prática, mas vai além. Como prática podemos considerar (sem desmerecer o termo) o puro fazer. Já a práxis é o fazer que resulta de ação reflexiva e, respectivamente, constitui um olhar sobre si e sobre o mundo, levando em consideração, para isso, o que se pretende desenvolver. Neste aspecto, cabe dizer que a práxis é entendida como atividade que busca a transformação das circunstâncias sendo o processo pelo qual uma teoria, lição ou habilidade é executada ou praticada de forma consciente e com uma intencionalidade. “Entendida desta forma, a práxis ocupa o lugar central da filosofia que se concebe a si mesma não só como interpretação do mundo mas também como elemento do processo de sua transformação” (VÁZQUEZ: 2011:30). Compartilhando com as ideias apresentadas por Kosik (2011), a práxis pode ser compreendida, além da atividade objetiva do homem, como parte da formação da subjetividade na qual a experiência é parte da realização para a liberdade humana. Por outro lado, a liberdade não nasce da simples objetividade da práxis, ou seja, ela somente se materializa pela luta e pelo reconhecimento. “A práxis como criação da realidade humana é ao mesmo tempo o processo no qual se revelam em sua essência, o universo e a realidade” (KOSIK, 2011:225). A compreenção das coisas e do seu ser, do mundo nos fenômenos particulares e na totalidade, é possível para o homem na base da abertura que eclode na práxis. Na práxis e baseado na práxis, o homem ultrapassa a clausura da animalidade e da natureza da ignorância e estabelece a sua relação com o mundo como totalidade. (KOSIK, 2011:227).

É interessante analisar que Vázquez (2011) coloca que, em primeira instância, o conceito de 60

práxis é uma atividade prática que faz e refaz coisas, isto é, transmuta uma matéria ou uma situação. O sujeito modifica suas ações para alcançar o trânsito entre o subjetivo ou teórico, e o objetivo ou atividade: sua ação ao ser realizada atualiza o pensamento, ou potencial-concreto-pensado. Vázquez (2011) destaca que na práxis social os sujeitos agrupados aspiram mudar as relações econômicas, políticas e sociais. A práxis é coletiva e revela conhecimentos teóricos e práticos a fim de superar as unilateralidades. No entanto, é importante reconhecermos que estamos inseridos nesta contemporaneidade em uma sociedade desigual. Desta forma, enquanto sujeitos/profissionais tendo como base os espaços educacionais é importante ter claro os caminhos aonde se quer chegar, mas que, além disso, é fundamental ter os olhos voltados para outras instâncias sociais onde a educação transita. A práxis no âmbito deste trabalho caracterizase como um processo plural por meio do qual se materializa a ação num ato intencional, político e coletivo que busca redefinir os espaços sociais como forma de superar as unilateralidades e responder aos problemas educacionais que são vivenciados em nossa cotidianidade e, acima de tudo, atuar a favor de uma sociedade igualitária. 2 PRÁXIS E REALIDADE ESCOLAR: UMA CONEXÃO PARA A TRANSFORMAÇÃO Diante das reflexões iniciais propomos avançar na materialização deste artigo e, para isso, cabe aqui, como pesquisadores, problematizar estas questões sobre outros patamares, a fim de estabelecer um percurso que possibilite aos docentes e discentes compreender a importância da práxis como campo teórico metodológico, e sua articulação como prática pedagógica. Para isso, torna-se importante, inicialmente, examinar o contexto atual da escola brasileira e o cotidiano das práticas pedagógicas. Para refletirmos sobre o sistema educacional e as práticas desenvolvidas na escola é necessário repensar as ações dos professores, ou seja, muitos dos que ali trabalham não se interrogam sobre o que fazem, para que e a quem interessa essa educação. Sobre a educação escolar, Candau (2012), ressalta que esta problemática tem dimensões diferentes sendo “(...) possível detectar um crescente mal-estar entre os profissionais da educação.


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Insegurança, stress, angústia parecem cada vez mais acompanhar o dia a dia dos docentes”. (CANDAU, 2012:13). Complementa ainda, “O que parece evidente é a necessidade de se reinventar a educação escolar para que se possa adquirir maior relevância para os contextos sociopolíticos e culturais atuais e inquietudes de crianças e jovens”. (CANDAU, 2012:13) Desta forma, refletir nos dias de hoje sobre a escola e suas experiências metodológicas desenvolvidas, significa, desvendar nesse contexto aqueles elementos de uma pedagogia política, porque “Não podemos pensar o desenvolvimento como um processo abstrato, descontextualizado (...)” (ALBUQUERQUE, 2008: 20), ou seja, para isso é necessário entendê-lo nas suas múltiplas dimensões para perceber o sentido da proposta de educação: se esta se volta à “reprodução” ou é “motivadora” e “protagonista”. Na descrição desta problemática, é importante retomar brevemente à colocação feita por Ivana Jinkings na apresentação do livro de István Mészáros onde ela coloca, citando Grasmsci: que Educar “(...) é resgatar o sentido estruturante da educação e de sua relação com o trabalho, as suas possibilidades criativas e emanciapatórias” (JINKINGS, apud MÉSZÁROS, 2008:09). Neste mesmo sentido, IOSIF (2009) coloca que uma educação que se fundamenta na neutralidade como princípio, limita a participação da sociedade e consequentemente enfraquece os espaços democráticos o que colabora para o agravamento de situações mais amplas como a pobreza, as desigualdades e as injustiças. “transforma-se em uma educação exclusiva, opressora e colonizadora de mentes, ao invés de uma educação do cuidado, inclusiva, dialógica, global e emancipatória” (IOSIF, 2009:20). Cabe a nós educadores e pesquisadores articular permanentemente a teoria e confronta-la com uma determinada situação conhecida ou não e com as demais teorias existentes relacionando-as. Equivale a dizer que a práxis insere-se no espaço coletivo da escola como um elemento extremamente importante e diferencial. Para Sem (2010), a práxis se relaciona com a liberdade, pois ao expandirmos nossas liberdades, torna “(...) nossa vida mais rica e mais desimpedida, mas também permite que sejamos seres sociais mais completos pondo em prática nossas volições,

interagindo com o mundo que vivemos e influenciando este mundo (SEN, 2010, 29)”. Feitas estas considerações na perspectiva de relacionar os conceitos identifica-se a importância de proporcionar aos educandos momentos de repensar e refletir sobre as diferentes problemáticas que nos apresentam no cotidiano, a fim de que estes reconheçam e reconstituam tais rupturas. Para isso, promover o estímulo a uma reflexão crítica da realidade na busca de levar a estes sujeitos a compreensão destas distintas relações torna-se fundamental. O enfoque da subjetividade insere-se nesse contexto como uma das alternativas onde a reflexão interna pode promover uma modificação externa. Dito de outra forma, seria partir da subjetividade individual para a coletiva a fim de promover as relações sociais. Por este caminho torna-se importante à práxis estar conectada com a realidade e a complexidade das relações a fim de integrar os processos educativos como estímulo a promover uma cultura participativa e emancipatória. Consideramos que a educação como formação na perspectiva emancipatória visa contribuir para tensionar a subalternidade dos sujeitos, desacomodando-os, resgatando a fluidez, o interesse, a informalidade dos processos quebrando o silenciamento e instituindo falas e a escuta do outro (GENRO; FELIX; LEITE; CAMPOS, 2009:09).

Na mesma direção, com outra especificidade, “Ter mais liberdade melhora o potencial das pessoas para cuidar de si mesmas e para influenciar o mundo, questões centrais para o processo de desenvolvimento” (SEM, 2010:33). Na esfera de uma educação diferenciada, Souza (2010) traz as considerações sobre uma proposta de educação baseada em Gramsci, quando ele fala sobre os princípios de uma formação humanista que procura considerar a relação educador-educando, sendo esta uma relação fundamental para a construção do saber coletivo, a fim de resignificar as demandas em busca dos seus direitos sociais. Essas considerações nos permitem reconhecer que a educação é condição fundamental para a promoção da cidadania, tendo a formação, a participação, a informação e o acesso à cultura como instrumentos e componentes capazes de 61


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promover e desenvolver as potencialidades no que diz respeito aos diferentes saberes. Nesta perspectiva, a educação no contexto escolar deve estar relacionada a uma educação que promova o diálogo entre os saberes, do trabalho pedagógico que resulte em um conhecimento que é promovido através da aprendizagem integral e coletiva como forma de conscientização e que tem reflexo na concepção de formação dos sujeitos que ali participam, proporcionando resultados para a vida, ou seja, uma formação educativa que possibilita acima de tudo a aprendizagem em torno de objetivos comuns para a solução de problemas coletivos. Portanto, ressalta-se, para fins didáticos, que se torna relevante repensar determinados procedimentos e atividades, pois, quando temos por fim promover a autonomia dos sujeitos, não se pode levar a nossa ação ao automatismo ou a “prática pela prática”. Dito de outra forma, quando buscamos a emancipação dos sujeitos pelos processos educacionais, temos que trabalhar diretamente a autonomia destes e nesse sentido a práxis torna-se fundamental. Para Gohn (2010), é necessário que os indivíduos tenham capacidade de escolha, caso contrário, estaremos reduzindo a forma de participação. É importante que ele compreenda o processo para poder refletir, pensar e agir. Sendo a autonomia requisito básico para a participação, pois “somente um indivíduo autônomo é capaz de processar e selecionar informações, ter domínio de conhecimento, tomar decisões e posicionar-se frente às incertezas e conflitos globais” (GOHN, 2010:59-60). Neste contexto, cabe mencionar as colocações de Trilha (2008), onde o educador educa na sua relação direta com o sujeito e, por isso, é preciso ter presente e de forma consciente, seus efeitos, percebendo-a como um processo holístico e sinérgico que não se dá pela simples acumulação ou soma das diferenças, mas sim pela combinação das experiências como forma de interação entre si. Cumpre destacar que as atividades interativas são fundamentais para a promoção de novos saberes e que a produção do conhecimento não ocorre pela simples absorção substancial, mas pelo conhecimento que é produzido no processo interativo a partir das vivências cotidianas que são estabelecidas. “Participar vai muito além de 62

estar presente. Participar significa tomar parte do processo, emitir opinião, concordar/discordar” (CORDIOLI, 2001:27). O trabalho interdisciplinar apresenta-se como uma possibilidade de intervenção devendo ocorrer uma integração das áreas do conhecimento e entre os agentes envolvidos, passando a ser uma vertente pela qual se processa o fluxo do saber, possibilitando que as atividades realizadas atinjam os resultados num contexto mais global. A ação interdisciplinar caracteriza-se, como uma possibilidade de instrumentalizar os “profissionais a interagir em equipe de forma mais coerente e eficiente, conjugando esforços, ampliando o raio de análise e de ação, face a uma realidade sempre pronta a nos desafiar e tornar nossa intervenção obsoleta” (BARBIANI:1997:35). O pensar e o refletir interdisciplinarmente requer uma relação de reciprocidade, de mutualidade, dependendo basicamente de uma atitude. A relação entre os envolvidos conduz a uma interação e uma intersubjetividade, apontando assim para uma possibilidade de efetivação de um trabalho interdisciplinar. A interdisciplinaridade sob o enfoque da práxis em espaços educacionais proporciona o princípio de exploração das potencialidades de cada sujeito, da compreensão de seus limites, e, acima de tudo, é o princípio da integração dentro da diversidade para qualificar a atuação profissional. Caracteriza-se como um elemento importante de diferenciação, pois passa a apresentar um artefato complementar, o qual se preocupa com os processos de aprendizagens e saberes do coletivo. Significa ir além do racional e desenvolver “(...) esa visión multidimensional natural, la capacidad de percibir otros aspectos importantes de la vida, más Allá de lo estrictamente material, en especial aquello intangible que también determina nuestras vidas” (MAMANI, 2010: 20). Genro, Felix, Leite e Campos (2009) defendem a ideia de que é importante aproximar os saberes para se ter uma partilha de conhecimentos. Para isso, as oficinas, o lúdico, estimulam as reflexões e o exercício da participação e da cooperação como algo que possibilita a reciprocidade e a abertura de novos olhares. Neste sentido, Gohn (2011) faz uma análise interessante, expondo que a aprendizagem política gera uma conscientização dos sujeitos para a


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compreensão do seu meio social. A participação ativa destes no processo exerce um papel de destaque, ao mesmo tempo em que o exercício da prática volta-se ao bem-estar coletivo e da civilidade. Sob o ângulo analítico da participação, uma contribuição importante é quando Ferrarini (2008) destaca que o sujeito transforma-se nesta contemporaneidade a partir do momento em que ele constrói o saber de suas próprias vivências e experiências. Isso, por sua vez, fundamenta e fornece subsídios para práticas com intecionalidades emancipatórias. Para a autora, o cotidiano é um espaço privilegiado para se produzir processos emancipatórios, pois é pelas relações concretas que temos “(...) a possibilidade de exercitar a solidariedade, a democracia e a autonomia nas diferentes posições e papéis desempenhados, tendo a oportunidade todos os dias de pensar e produzir emancipações (FERRARINI, 2008: 48)”. Segundo Cordioli (2001), a participação é um processo importante que permite ao sujeito interagir na sociedade a fim de contribuir, criar e realizar. Isso, por sua vez, colabora no desenvolvimento da autoestima e excita seu potencial organizativo. O processo participativo “pretende mudar comportamentos e atitudes, onde os indivíduos passam a ser sujeitos ativos no processo e não objeto do trabalho dos outros” (CORDIOLI, 2001: 27). Para Brose (1997), o que se caracteriza como mais importante não é o resultado o ato de participar pode promover, mas sim, o processo de exercitálo. Brose sintetiza os princípios que, segundo ele, regem este processo de participação podendo assim ser identificado: 1) é uma necessidade humana e, por conseguinte, constitui-se como um direito; 2) justifica-se por si mesmo e não pelos seus resultados; 3) é um processo de desenvolvimento da consciência crítica; 4) leva a apropriação do desenvolvimento à população; 5) é algo que se aprende fazendo; 6) pode ser provocada ou organizada sem que isso signifique necessariamente manipulação; 7) é facilitada com a organização e criação de fluxos de comunicação; 8) as diferenças individuais devem ser respeitadas no quando da participação; 9) podem resolver conflitos, mas também gerá-los; 10) não se deve sacralizar a participação: não é panaceia nem indispensável em todas as ocasiões. Cabe dizer que “O desenvolvimento de um processo participativo permite uma interação interdisciplinar e multisetorial, facilitando o

surgimento de soluções mais criativas e ajustadas a cada realidade” (CORDIOLI, 2001:26). O autor complementa ainda que “Participar também se pratica e se aprende, sendo o melhor caminho para o fortalecimento da cidadania, em suas mais diversas possibilidades” (CORDIOLI, 2001:27). Sobretudo, este processo participativo fundamenta-se como abertura importante de formação política destes sujeitos, aonde o ato de participar é elemento fundamental em todos os níveis e nos diferentes aspectos, tendo o agir coletivo se configurando como princípio mediador para a construção de uma nova realidade. Por isso, na concepção de Kosik (2011), é preciso envidar esforços para sair do “estado natural”, evoluir e conhecer a realidade como tal - e essa empreitada é realizada pelo conhecimento, um dos modos de apropriação do mundo pelo indivíduo. Porém, o conhecimento não é contemplação, visto que só se realiza na medida em que a realidade é criada (práxis); da mesma forma, a explicação da realidade ocorre com base na ilustração das suas fases e seu movimento. Relacionando estas temáticas seu desdobramento acontece na medida em que se trabalha o conceito da cultura política sendo importante o comportamento dos “(...) indivíduos nas ações coletivas, os conhecimentos que os indivíduos têm a respeito de si próprio e de seu contexto, símbolos e a linguagem utilizadas, bem como as principais correntes de pensamento existente” (GOHN, 2011:67). Com isso é importante percebemos nesta atualidade o quanto é significativo refletir sobre os distintos espaços de aprendizagem e, acima de tudo, numa possível integração entre os mesmos. Sobre esse aspecto é importante ressaltar que Gohn (2011) coloca que se torna necessário repensar a escola rompendo com as diferenças existentes, onde a escola pública é para os pobres e a outra para os demais, ou seja, o principal elemento é ter como foco a cidadania preparando os indivíduos para o cotidiano e respectivamente para a vida. Acredita-se, que cada vez mais se precisa romper com estas barreiras e aliar-se junto à comunidade para a promoção da democratização da educação, na criação de espaços que sejam utilizados como canais de democracia e do exercício à cidadania. Na perspectiva educativa a práxis necessita ter presente que: 63


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La educación no se inicia ni termina en las aulas, es permanente: la vida es dinámica, por lo tanto también la enseñanza y el aprendizaje lo son, permanentemente vamos aprendiendo y enseñando, no podemos decir un día que ya no queda nada que aprender o que ya lo sabemos todo, nunca dejamos de aprender y por ello proyectar la educación fuera de las aulas es vital (MAMANI, 2010:43).

Do ponto de vista educativo é importante que esta seja vista como um movimento circular, pois “el niño también le enseña al maestro; le enseña su alegría, su inocencia, su actuar sin temor, sin estructuras, una educación de ida y de vuelta, donde ante todo, compartimos la vida (MAMANI, 2010:43)”. A educação vista sobre este aspecto irá proporcionar que “La enseñanza aprendizaje y evaluación comunitaria nos devolverá la sensibilidad con los seres humanos y La vida y la responsabilidad respecto a todo lo que nos rodea (MAMANI, 2010:43)”. Boaventura de Sousa Santos (2006-2007) ao falar da sociologia das ausências, e aprofundando a temática nos coloca que não existe uma forma específica de entender as ausências, mas cita cinco modos de produção destas em nossa sociedade ocidental sendo elas; 1) A monocultura do saber e do rigor; 2) A monocultura do tempo linear; 3) A monocultura da naturalização das diferenças; 4) A monocultura da escala dominante e; 5) A monocultura do produtivismo capitalista. Por outro lado, a partir do momento em que identificamos estas se torna importante substituí-las e para isso ele apresenta cinco ecologias; 1) A ecologias dos saberes; 2) A ecologia das temporalidades; 3) A ecologia do reconhecimento; 4) A ecologia da transescala e 5) A ecologia das produtividades. Para isso nos diferentes espaços educacionais, é importante estarmos atentos que nesta incompletude do saber é que decorre a possibilidade do diálogo e este deve orientar as práticas para se transformar em ações sábias. Para este autor a sociologia das emergências insere-se neste contexto das ausências como uma possibilidade de ampliar o presente na perspectiva do futuro, ou seja: (...) consiste em proceder a uma ampliação simbólica dos saberes, práticas e agentes de modo a identificar neles as tendências de futuro (o Ainda-Não) sobre as quais 64

é possível atuar para maximinizar a probabilidade de esperança em relação a probabilidade de frustração (SANTOS, 2006:796).

A subjetividade aparece nas ausências como consciência ao inconformismo e nas emergências como consciência que se antecipa a este e como uma possibilidade (SANTOS, 2006). Complementa o autor ainda que “de uma forma ou de outra, estas emoções estão presentes no inconformismo que move tanto a sociologia das ausências como a sociologia das emergências (SANTOS, 2006:797)”. Neste sentido, torna-se importante ter presente e considerar no contexto escolar “o respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros (FREIRE, 1996:25)”. É possível compreender que esta lógica dos saberes nos permite apreender que estes não se constroem somente pela via científica, ainda que esta possa colaborar, mas são alternativos, e isso nos permite diversificar os saberes e as práticas. Neste aspecto, a educação pela troca de saberes estimula questionamentos e produz novos conhecimentos. “ Estes significados só são apreendidos com a participação e participar não é apenas estar presente em algo, comparecer, ser numero. Participar é um processo, ativo, interativo, que se constrói (GOHN, 2010:50)”. Participação é sempre um ato de fé na potencialidade do outro. É acreditar que a comunidade não é destituída, mas oprimida. É assumir que pode ser criativa e cogerir seu destino, sem populismos e provincianismos. A potencialidade que uma comunidade tem é precisamente o que constitui na história pelas próprias mãos, dentro de condições objetivas dadas. A isto damos o nome de cultura (DEMO, 2001:60).

No mesmo caminho, Santos (2010) afirma ainda que a emancipação só é possível se pensarmos a participação como uma relação mais próxima, aberta e coletiva para o exercício da cidadania. Entendemos, assim, que a proposta educativa como uma prática cultural aponta para finalidades sócioeducativas de desenvolvimento do ser humano. “A cultura é dimensão essencial para incutir qualidade na quantidade de vida, como a participação


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transforma o crescimento em desenvolvimento (DEMO, 2001:53)”. Nesta perspectiva, a práxis educativa orienta a intervenção na busca do rompimento com a passividade através da socialização, da discussão, da reflexão para que a partir das vivências do cotidiano o exercício da crítica e da participação acene a estas novas formas de intervenção nestes diferentes espaços educativos. 3 CONSIDERAÇÕES Cabe dizer, que articulando os conceitos até aqui trabalhados, o educador/professor do processo insere-se como elemento fundamental para desafiar os sujeitos, onde, “(...) o diálogo tematizado, não é um simples papo ou uma conversa, mas é sempre o fio condutor da formação (...)” (GOHN, 2010: 51), tendo neste um dos instrumentos da intervenção. Neste contexto, é importante “Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 1996:21). Diante destas questões, Gohn (2010) contribui argumentando que os educadores são fontes de estímulo para impulsionar as mudanças futuras na produção dos saberes a partir das culturas locais. Para finalizar, o politizar é um passo fundamental na busca por retomar a reflexão democrática e emancipatória, não pautada esta pela inclusão excludente (como diria Boaventura, grifo nosso), mas como forma de politizar os sujeitos a fim de que sejam respeitados e conquistados os direitos de cidadania, sendo esse o pressuposto fundamental da práxis no contexto escolar, onde as finalidades serão determinadas pelas possibilidades objetivas inscritas na própria realidade social.

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O IMAGINÁRIO CULTURAL JUDAICO NA FORMAÇÃO DA ESCRITA LITERÁRIA KAFKIANA

Edson de Jesus Melo Cunha1 Daniel Conte2 Resumo Este artigo visa analisar o tema do imaginário cultural judaico na formação da escrita literária kafkiana. Para tanto, temos adotado como fundamentação teórica a fenomenologia do imaginário do pensador francês Gilbert Durand em sua obra O Imaginário, em consonância com os conhecimentos históricos, psicanalíticos e fenomenológicos referentes ao conceito do imaginário presentes tanto em aludida obra e autor quanto na escrita literária sionista kafkiana que, ao narrar o drama do imaginário descentrado do homem europeu em geral e do judeu em particular, revolucionou a literatura do início do século XX. Dada a natureza teórica de nossa pesquisa, temos adotado o procedimento metodológico qualitativo do tipo bibliográfico em seu desenvolvimento. Palavras-chave: Imaginário Cultural Judaico; Escrita Literária Kafkiana; Fenomenologia Do Imaginário; Gilbert Durand. Abstract This article aims at analyzing the theme of the jewish cultural imaginary in the formation of the kafkian literary writing. Therefore, we have adopted as theoretical foundation the French thinker Gilbert Durand´s phenomenology of the imaginary in his work The Imaginary, in accordance with the historic, psychoanalytical and phenomenological knowledge related to the concept of imaginary present in the above mentioned work and author as well as in the kafkian sionist literary writing that, by telling the drama of the European man uncentered imaginary in general and of the jew in particular, revolutionized the literature in early twentieth century. Given the theoretical nature of our research, we have adopted the qualitative bibliographical type of methodological procedure in its development. Keywords: Jewish Cultural Imaginary; Kafkian Literary Writing; Phenomenology Of The Imaginary; Gilbert Durand.

Mestrando em Processos e Manifestações Culturais pela Feevale. Bel. em Direito pela UFMA. Lic. em Letras e Esp. em Docência Universitária pela FAMA. Professor de Inglês do IFMA. Bolsista PROSUP/CAPES. E-mail: ejmcunha@ifma. edu.br. 2   Professor e pesquisador da Universidade Feevale, no curso de Letras e no Programa de Pós-graduação em Processos e Manifestações Culturais. Tutor PET/Feevale. E-mail: danielconte@feevale.br 1

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1 O CONCEITO DE IMAGINÁRIO: DESDOBRAMENTOS HISTÓRICOS De acordo com Durand (2011), por imaginário entendemos “[...] uma representação incontornável, a faculdade da simbolização de todos os medos, todas as esperanças e seus frutos culturais jorram continuamente desde os cerca de um milhão e meio de anos que o homo erectus ficou em pé na face da Terra.” (p. 117). O conceito durandiano, embora aparentemente revele um caráter triunfalista e abrangente do tema, não esconde, todavia, a luta que a simbologia do imaginário, enquanto produto cultural exclusivo deste homo erectus ou, no dizer de Edgar Morin, deste homo sapiens demens, precisou travar para ser aceita como fundamento da verdade científica, artística, filosófica e religiosa ao longo da história. O homo erectus, assim como o homo sapiens (demens), precisou de todo seu um milhão e meio de anos de evolução histórica, notadamente os seus últimos dois mil e quatrocentos anos de evolução da história escrita, para entender a indelével importância heurística do imaginário. Porquê o entendimento e a aceitação do conceito de imaginário foram, ao longo da história, tão íngremes para nós, da espécie homo sapiens? A resposta para esta pergunta está naquilo que Durand (2011) chama de “[...] iconoclasmo ocidental [...]” (p. 107), isto é, na luta da razão ou logos do idealismo platônico contra as imagens (imaginário) inerentes ao processo de simbolização (significação) que se formam na psique na busca pelo conhecimento científico, religioso, artístico-literário, entre outros campos do pensamento humano. Assim é que, desde a influência poderosa do monoteísmo hebraico, bem como por meio do ensinamento idealista (racional e lógico) de Platão, passando por todo o pensamento da escolástica aristotélica medieval, até ao final da época iluminista, houve um verdadeiro sufocamento do imaginário (imagético) em prol da “razão platônica”, esta o fundamento de toda a epistemologia filosófica da cultura ocidental no plano secular, cabendo ao “monoteísmo hebraico” a fundamentação filosófica da razão no plano religioso. Portanto, combatido deste a Antiguidade pela doutrina platônica da imortalidade da alma e a do mundo das ideias, assim como pelo monoteísmo judaico que proibia o culto a Deus por meio de imagens pictóricas ou iconográficas, doutrinas fortemente incorporadas ao incipiente corpus teológico cristão do século 68

I, o conceito de imaginário entra em decadência e mesmo em vias de ser banido da história do pensamento judaico-cristão ocidental, dado o seu caráter agora profano, pecaminoso, posto que relacionado à idolatria e ao alógico. Na Idade Média, a querela “racionalismo platônico-cristão” versus “imaginário”, ganha relevo. O Império Bizantino, receoso de uma invasão da civilização muçulmana, esta, assim como a judaica, totalmente avessa ao imagético (imaginário) religioso, destruirá, “[...] durante quase dois séculos (730-780) e (813-843), as imagens santas guardadas pelos monges que acabarão perseguidos como idólatras.” (DURAND, 2011, p. 11). Isto significa que a supressão do imaginário pela força política e religiosa da lógica platônica no decorrer da história do cristianismo não se deu de forma completa; sempre houve focos de resistência por parte daqueles que Durand (2011) denomina “[...] iconólatras (adoradores de ícones) [...]” (p. 11), fato histórico que revela a importância do imaginário religioso icônico na constituição psíquica da cristandade. Com isto queremos dizer que a criatividade individual da imaginação, conceito também durandiano (DURAND, 2011, p. 118) não pode simplesmente ser banida da história pela ação violenta da lógica platônica e do monoteísmo judaico enquanto fundamentos epistemológicos da filosofia cristã. Em nosso entendimento, seguindo Durand (2011), “A imagem pode se desenovelar dentro de uma descrição infinita e uma contemplação inesgotável. Incapaz de permanecer bloqueada no enunciado claro de um silogismo, ela propõe uma realidade velada enquanto a lógica aristotélica exige claridade e diferença.” (p. 10). Em outros termos, para Durand (2011), o imaginário não pode ser contido ou reprimido pelos poderes constituídos, quer sejam eles políticos, religiosos, artísticos, econômicos ou de qualquer outra natureza, tendo em vista que a criatividade individual da imaginação sempre encontrará uma forma de “[...] escoamentos prenunciadores [...]” (p. 115) de sua revolta latente contra o status quo dominante, no caso, o da lógica platônica. Em nosso entendimento, a arte em geral e a literatura em particular são manifestações culturais imprescindíveis neste processo de escoamento imaginário da criatividade humana visando à denúncia dos poderes constituídos. No início da Idade Moderna, a lógica platônica é reforçada pelo pensamento racionalista do


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matemático e filósofo francês René Descartes. Seu mundo mecanicista coloca Deus como o primeiro motor do universo. Mais uma vez, o pensamento judaico-cristão monoteísta alia-se à ciência lógica e racional contra o alógico do imaginário durandiano. Inicialmente voltado para a contemplação e o culto das “imagens” dos deuses pagãos da Antiguidade, o imaginário foi, dessa forma, colocado em um segundo plano perante a lógica da ciência e do monoteísmo judaico-cristão, formas de pensamento que abolem a iconografia e a “alógica” do imaginário em prol do idealismo racionalista de Platão. Em decorrência do pensamento racionalista descartiano, posteriormente o Iluminismo empirista, o Positivismo de Auguste Comte e as “[...] filosofias da História [...]” (DURAND, 2011, p.14), por se basearem respectivamente na experiência e percepção do fato racional (empirismo), na mensuração ou quantificação do fato científico (positivismo) e na concretude do evento histórico (historicismo) como formas de obtenção do conhecimento, também são, para Durand, oposições ao conceito de imaginário. De acordo com o mestre francês: O positivismo e as filosofias da História, às quais nossas pedagogias permanecem tributárias (Jules Ferry era discípulo de Auguste Comte), serão frutos do casamento entre o factual dos empiristas e o rigor iconoclasta do racionalismo clássico. As duas filosofias que desvalorizarão por completo o imaginário, o pensamento simbólico e o raciocínio pela semelhança, isto é, a metáfora, são o cientificismo (doutrina que só reconhece a verdade comprovada por métodos científicos) e o historicismo (doutrina que só reconhece as causas reais expressas de forma concreta por um evento histórico). (DURAND, 2011, p. 15).

Em qualquer uma das formas de pensar supracitadas, o imaginário é visto como um “[...] delírio, o fantasma do sonho e o irracional.” (DURAND, 2011, p. 14). É necessário o pensamento romântico da segunda metade do século XVIII e as vanguardas artístico-literárias da primeira metade do século XX para que a linguagem imaginária do devaneio, do onírico, do delírio, do fantasma, da metáfora, da ironia e da irracionalidade como formas de obtenção do conhecimento científico, literário, religioso, artístico, entre outros, ganhasse

força e validade em oposição à linguagem do racionalismo platônico-cristão. Assim é que neste contexto de valorização tardia do imaginário surge o movimento literário, artístico e político do Romantismo, na Alemanha, no final do século XVIII, em oposição aos paradigmas racionalistas do Iluminismo. Para Durand (2011), o imaginário do romantismo é “[...] naturalista e sentimentalista.” (p. 106) e, para o mestre francês, “[...] a música será a catedral invisível.” (p. 106) do imaginário romântico, papel desempenhado pela arquitetura gótica no final do século XII, que, mediante a imponência de suas catedrais, tentava levar o homem medieval a cultuar o Deus judaicocristão cuja representação por meio de “imagens” era proibida. No plano literário, a liberdade de expressão do escritor, uma característica marcante do movimento romântico, permitiu uma mudança na forma e no conteúdo dos gêneros apolíneos (normativos) da literatura aristotélica (lírico, épico e dramático). O dramático foi e continua sendo representado pelo teatro atual. No entanto, no que concerne aos gêneros épico e lírico, houve uma verdadeira revolução quanto às suas formas e conteúdos (temas). O épico, que na Grécia antiga dizia respeito às narrativas das façanhas dos heróis, tornou-se o gênero narrativo atual, cuja forma se nos apresenta no romance, na novela, no conto, na crônica, entre outros; mas que, diferentemente do gênero épico grego, pode narrar tanto as façanhas do herói quanto as do anti-herói. No gênero lírico ou poético, assim como no épico, houve uma mudança tanto na forma quanto na sua temática. Quanto à forma, desde a Grécia de Aristóteles até o início do romantismo esta se apresentava ao público por meio de versos e metrificações; no entanto, com o advento do romantismo e a liberdade de expressão do poeta, o poema não mais se apresenta ao público leitor apenas desta maneira, podendo o escritor-poeta optar pelo uso da métrica aristotélica ou então pelo uso dos chamados versos livres, sem forma definida. No que concerne ao conteúdo do gênero lírico, também tem havido, desde o romantismo, uma mudança com relação à classificação aristotélica inicial. Desde então, o escritor-poeta não mais faz exclusivamente poemas de amor ou encomiásticos, mas seu lirismo pode também voltar-se, por meio dos seus poemas, à crítica social em seus mais diversos aspectos. Quanto ao gênero dramático 69


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(teatral) não houve mudanças significativas na forma ou no conteúdo com relação à classificação aristotélica inicial. No entanto, mesmo com a liberdade de expressão proporcionada ao escritor pelo romantismo, para Durand (2011), o movimento político, artístico e literário romântico ainda foi um passo incipiente na direção da valorização e legitimação da criatividade individual da imaginação simbólica, ainda que tenha sido um passo importante. Isto porque, do ponto de vista histórico e político, para o renomado discípulo de Gaston Bachelard, o “[...] humanismo romântico [...]” (p. 107) serviria de fundamentação filosófica para o “[...] moralismo positivista ou socialista [...]” (p. 107) que, por sua vez, foi a ideologia dominante das Revoluções Americana e Francesa, respectivamente em 1776 e 1789, dos movimentos de independência da América Latina no século XIX e da Revolução Russa de 1917. Com isto queremos dizer que, em que pese a importância do romantismo enquanto movimento artístico-literário que liberta o imaginário do escritor das amarras racionalistas de um classicismo elitista do Iluminismo, do ponto de vista histórico e político este movimento literário tornou-se o precursor ideológico do “moralismo positivista” - este o fundamento ideológico das revoluções acima aludidas; e do “moralismo socialista” – este o fundamento ideológico do marxismo-leninismo que influenciaria a Revolução Russa de 1917; ideologias políticas que, no decorrer dos séculos XIX e XX, deturpadas pelos líderes das nações que as adotaram, especialmente na Europa e na América Latina, perderam-se na demagogia ou na tirania de seus governantes, tendo tanto o moralismo positivista quanto o moralismo socialista o “nacionalismo romântico” como fonte de constituição de seus “imaginários sociais.” Assim é que, debilitado pelo testemunho da história, o imaginário social do romantismo não pôde mais sustentar, de um lado, a ideologia da igualdade, liberdade e fraternidade do humanismo positivista comtiano na Europa Ocidental ou o mito do comunismo leninista-stalinista, de outro, na Europa Oriental. De acordo com Durand (2011): Jean-Pierre Sironneau, na sua tese Sécularisation et religions politiques [A secularização e as religiões políticas], atémse aos dois grandes mitos que ocuparam oficialmente a Europa e uma parte do 70

mundo: o nacional-socialismo de um lado e, de outro, o comunismo leninistastalinista. Causa-nos grande espanto que estes mitos – que consideravam-se explicitamente um mito, segundo Alfred Rosenberg, ou apoiavam-se numa lógica afetiva e num mito milenar, porque não dizer joaquinista, inconfessos mas presentes em Marx – regeram de acordo com suas normas tanto o cientificismo alemão quanto as Igrejas. (p. 67).

Consoante o autor supracitado, o nacionalsocialismo (de fundo positivista) e o comunismo leninista-stalinista foram mitos institucionalizados, oficializados pelo imaginário social europeu. Quanto ao nacional-socialismo, nascido na Alemanha após a 1ª Guerra Mundial (1914-1918), de ideologia racista e eugênica, revelava a crise do capitalismo alemão da década de 30. Quanto ao comunismo leninistastalinista, que serviu de fundamentação ideológica para a Revolução Russa de 1917 e para a sua continuidade, ideologicamente ligado ao marxismo, defendia, em linhas gerais, uma sociedade sem classes e uma total emancipação dos trabalhadores ou, em outras palavras, o comunismo preconizava, com a evolução da sociedade sem classes, a chamada ditadura do proletariado. O autor de O Imaginário não justificou a classificação do nacional-socialismo e do comunismo leninista-stalinista como “mitos oficiais” que permearam o imaginário europeu no início do século XX; no entanto, acreditamos que o mascaramento destas ideologias políticas no que se revelaram extremamente opressivas com relação aos povos que governaram mediante a política do “líder carismático” ou ainda por meio daquilo que Bronislaw Baczko (1985) denomina o “[...] grande terror [...]” (p. 326), pode ser, em nossa opinião, entendido como uma justificativa para a classificação durandiana destas duas ideologias na condição de mitos oficiais mantenedores do imaginário político europeu do início do século XX na Alemanha (nacional-socialismo) e na Rússia (comunismo leninista-stalinista). Em que pese a política do “líder carismático” e do “regime do terror” característica das ideologias do nacional-socialismo e do comunismo leninistastalinista que assolaram, respectivamente, a Alemanha e a Rússia no início do século XX, este período da história foi pródigo no que concerne ao surgimento de revoluções libertadoras do imaginário. Assim é que, com a derrocada do


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humanismo romântico pela ascensão do “moralismo positivista burguês” ou do “moralismo socialista”, um novo movimento literário, em substituição ao romantismo, vem salvaguardar a liberdade do imaginário individual e social europeu, as chamadas “vanguardas artístico-literárias”, em voga de 1910 a 1939 e também originadas na Alemanha. As vanguardas artístico-literárias europeias, em especial o cubismo, o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo e o expressionismo fundamentavamse no pensamento da incipiente ciência do inconsciente, a psicanálise, criada pelo médico e psiquiatra austríaco Sigmund Freud (1856-1939) que, com o conceito de inconsciente, revolucionaria a psicologia, a arte e a literatura ocidentais. Esse novo modo de entender a arte e a literatura por meio da expressão inconsciente do imaginário do escritor e do leitor incentivou o homem europeu ao livre pensar, levando-o a libertar-se tanto da opressão do moralismo positivista burguês quanto do moralismo socialista, decorrências ideológicas do humanismo romântico que não mais atendia aos anseios de uma Europa em crise do ponto de vista político, social, econômico e militar. Assim é que o homem europeu do início do século XX, pertencente às classes sociais mais baixas ou mesmo à pequena burguesia, caracteriza-se pela sua “identidade deslocada”, descentrada, perdido como um flaneur que olha para as vitrines das lojas luxuosas de Paris, sem, contudo, ter condições financeiras para usufruir das benesses de um capitalismo industrial extremamente excludente. O imaginário deste homem europeu pequenoburguês, operário e assalariado, decepcionado pelo fracasso dos paradigmas de igualdade, liberdade, fraternidade e progresso apregoados por mais de um século de humanismo romântico, encontra-se agora em uma “angústia existencial” sem precedentes do ponto de vista político, com o crescimento de um nacionalismo europeu fundamentalista, que seria uma das causas da eclosão da 1ª Guerra Mundial (1914-1918); social, com o abismo de classes cada vez maior que havia entre a burguesia industrial e o pequeno burguês e entre este e a classe baixa, que convivem em um ambiente urbano extremamente angustiante e segregacionista; econômico, com a crise do capitalismo no final da década de 20; e militar, com as nações europeias fazendo alianças e armando-se para aquele que seria um dos conflitos mais sangrentos da história, a 1ª Grande Guerra.

É no contexto das “[...] análises fenomenológicas [...]” (DURAND, 2011, p. 73) de fundo psicanalítico da angústia existencial urbana do homem europeu no início deste desalentador século XX, fenomenologia da imaginação (imaginário) de Gaston Bachelard (baseada no sonho e no devaneio do escritor e do artista), que viria substituir o malogro da narrativa positivista do romantismo, que as vanguardas artístico-literárias preconizariam a liberdade da “criação individual do imaginário” do artista e do escritor na busca pela verdade da arte, da ciência, da filosofia e da religião. Dentre os vários movimentos artístico-literários que compunham as vanguardas europeias outrora citados, ganha relevo, pela qualidade intelectual dos seus escritores e artistas, o expressionismo, originado na Alemanha em 1910 e cuja culminância deu-se até meados da década de 20. Os artistas e escritores expressionistas viam na crítica psicanalítica da sociedade pequeno-burguesa urbana europeia, a possibilidade de colocar o ser humano novamente no centro das atenções da ciência, da arte, da filosofia e da religião, muito embora soubessem que para tanto teriam que recriar a literatura e a arte; não mais romântica ou naturalista, determinista ou racionalista, mas uma literatura que descrevesse o ser humano em toda sua faceta desumana, absurda, como se através do horror, do grotesco, mas também por meio de uma arte veloz e, ao mesmo tempo, paralisada pelo medo da vida e do mundo, pudessem ser os porta-vozes de uma crítica inteligente, originada das profundezas de um intelecto aguçado pelos conhecimentos obtidos através da leitura de Sigmund Freud; uma literatura que é produzida a partir da mente crítica e do coração angustiado do seu escritor, que narra fenomenologicamente o drama do imaginário individual e social do homem europeu também angustiado e paralisado com medo do que lhe reserva o futuro, em sua urbis; enfim, uma literatura que expressa de maneira subliminar (psicanalítica), absurda e, por vezes, chocante, porém sem perder de vista o caráter estético da arte, o drama do imaginário urbano do homem europeu cuja identidade está descentrada. Mesmo tendo o seu início na Alemanha, o expressionismo atraiu a atenção de intelectuais da Boêmia, que, devido ao primado de sua capital, Praga, como um dos mais importantes centros culturais da Europa no início do século XX, desenvolveram um bilinguismo na prosa 71


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expressionista, escrevendo em tcheco e em alemão. Tal bilinguismo fora uma decorrência do intercâmbio cultural que os escritores tchecos mantinham com a “elite” intelectual alemã que residia em Praga e que compunha 7% dos 230.000 mil moradores da capital da antiga Boêmia, posterior Tchecoeslováquia e, hoje, a República Tcheca, em 1910, quando se iniciara o movimento expressionista alemão. Esta elite ou minoria intelectual alemã residente em Praga exercia uma grande influência na literatura e na economia daquela cidade, ao passo que aos tchecos cabia-lhes o poder político no parlamento. Como exemplos mais importantes da prosa bilíngue em alemão e tcheco na Praga expressionista de 1910 temos os escritores tchecos “[...] Pavel Eisner, Otakar Fischer, Otto Pick, O. F. Babler [...]” (SALFELLNER, 2011, p. 11) e o principal, Franz Kafka (1883-1924), considerado pela crítica literária tradicional o terceiro mais importante escritor em prosa do século XX, atrás apenas de James Joyce e Marcel Proust. 2 FRANZ KAFKA: A ESCRITA LITERÁRIA SIONISTA DO DRAMA DO IMAGINÁRIO DE UMA IDENTIDADE JUDAICA DIASPÓRICA Nascido a 03 de julho de 1883, na cidade de Praga, filho de um “[...] comerciante judeu de artigos de moda [...]” (SALFELLNER, 2011, p. 55) e militar austero chamado Hermann Kafka (Wossek, 1852; Praga-1931) e de uma também comerciante judia chamada Julie Löwy (Podiebrady, 1856; Praga-1934), Franz Kafka foi, na verdade, um indivíduo pertencente a dois mundos imaginários complementares à época do expressionismo: o da língua alemã, na qual ele escreveu toda a sua obra e o da língua tcheca, idioma de seu país de origem; um escritor de múltiplas memórias, conflitos e imaginações. O advogado e escritor Franz Kafka trazia em seu estilo literário as lembranças e as vivências de uma consciência angustiante, dolorosa, absurda, irônica, dinâmica, paralisante e deslocada de viver em um país, a Boêmia (atual República Tcheca), que era parte de um decadente império austro-húngaro; um escritor que nascera e vivera praticamente todos os seus 40 anos em Praga, mas que tinha o alemão como a sua língua materna, ao passo que o tcheco, ironicamente, seria a sua segunda língua; um escritor convicto de seus ideais sionistas e judeu praticante, herança religiosa herdada de seu pai, o qual, mediante uma 72

tradição patriarcal judaica que lhe fora transmitida desde os seus antepassados mais remotos, exerceu a função da figura paterna na família com mão de ferro, um autêntico representante do patriarcalismo monoteísta abraâmico stricto sensu na comunidade judaica na Praga do primeiro quarto do século XX, uma cidade que florescia culturalmente pelo intercâmbio entre escritores judeus tchecos e intelectuais alemães no contexto do expressionismo artístico e literário da época. Franz Kafka teve cinco irmãos: “[...] George, nascido em 1885 e falecido 15 meses depois; Heinrich, nascido em 1887 e falecido seis meses após o nascimento; Gabriele, chamada Elli (1889; 1941); Valerie, chamada Valli (1890; 1942), e Ottilie, a preferida, chamada Ottla (1892; 1943).” (KAFKA, 2012, p. 104). As condições de vida em Praga eram muito difíceis naquela época, mesmo em uma cidade que se desenvolvia do ponto de vista cultural. Os bolsões de falta de higiene, doenças e pobreza do bairro judeu, localizado na cidade velha, contrastavam com a opulência da elite econômica e cultural alemã que morava no centro da cidade. Assim sendo, é fácil compreendermos o porquê das mortes prematuras dos irmãos de Kafka; o primeiro, Georg, morrera de sarampo, doença comum na época, enquanto Heinrich morreria de uma inflamação no tímpano, tempos depois. Quanto às irmãs de Kafka, Gabriele, Valerie e Ottilie, estas tiveram um destino ainda mais trágico, pois morreriam nas câmaras de gás nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Sempre introspectivo, Kafka tinha poucos amigos, com destaque para os intelectuais alemães com os quais convivia nos cafés de Praga e que o fizeram conhecer, mediante acalorados debates literários, a obra de Dostoiévski. Kafka também conhecia a obra de Goethe, Freud e Kierkegaard, entre outros grandes pensadores. Se por meio do pensamento de Dostoiévski e Goethe, Kafka, no início de sua escrita em 1912 aproxima-se de uma narração do imaginário romântico europeu da belle époque, pelas leituras de Freud e Kierkegaard, em contrapartida, que coincidem com a culminância de sua carreira literária (1919; 1924), percebemos um escritor mudado, essencialmente psicanalítico, irônico, pessimista e fatalista que, mediante uma criatividade literária que para muitos estudiosos se revela por meio de uma prosa dura, seca e despojada de um estilo definido, mas sempre “sem


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finais felizes”, característica do expressionismo alemão no qual se insere o grande escritor tcheco, narra, de forma psicanalítica e fenomenológica o drama do imaginário individual e social urbano do homem europeu pequeno-burguês, com destaque para a narração do imaginário cultural religioso judaico no qual ele se inseria e o qual, assim como o imaginário cultural da Europa cristã do início do século XX, encontra-se em crise. Freud sabia da importância indelével de Kafka para a literatura mundial. Consoante o pai da psicanálise: Será Kafka um Homo religiosus ou alguém que com seus veredictos toma nas mãos a vingança contra Deus e contra seu mundo desfigurado pelos homens? O pai da psicanálise referia-se à obra O veredicto, e logo depois dela viria A metamorfose, apresentando a mesma situação, aparentada em índole e conteúdo; fruto da mesma época, produto da mesma safra. (KAFKA, 2012, p. 10).

A situação à qual Freud se refere ao comentar sobre o estilo kafkiano de escrever diz respeito ao tema central da prosa kafkaesca, a narração do imaginário cultural judaico pequeno-burguês presente em quase toda a escrita de Kafka, em especial nas novelas supracitadas O Veredicto (1912) e A Metamorfose (1912), bem como nos contos Um Artista da Fome (1922) e A Construção (1923); a época à qual Freud também se refere é a do expressionismo alemão e sua efervescente art nouveau de fundo psicanalítico e fenomenológico. Além das obras supracitadas, merecem também destaque o romance O Processo (1915), o conto Na Colônia Penal (1916), sua autobiografia em Carta ao Pai (1919) e o romance O Castelo (1920). Embora Kafka houvesse escrito muito mais obras de valor imensurável para a história da literatura, para efeito didático, citamos apenas estas. Kafka, enquanto judeu praticante devido à influência que recebera de sua rigorosa educação patriarcal, sempre ia à sinagoga com sua família e parecia pressentir o futuro sombrio que aguardava o seu povo no contexto da crise generalizada em que a Europa se encontrava no início do século XX; ele percebia o antissemitismo por vezes latente, por vezes declarado contra a comunidade judaica europeia; em seu imaginário, o escritor tcheco via-se como um pária, um sujeito sem pátria em

uma Europa cristã que, embora de raiz monoteísta assim como a extinta Canaã de Kafka, não via com bons olhos a prosperidade dos filhos de Abraão em um continente que, pouco a pouco, perdia sua liderança mundial e que se preparava para um dos mais sangrentos conflitos da história, a 1ª Guerra Mundial. Assim sendo, consciente do passado de sofrimento milenar de seu povo em diáspora, dos recentes “pogroms” russos que dizimaram muitas vidas judias no final do século XIX, preocupado pelo isolamento dos judeus em guetos (havia um na cidade velha de Praga) nos grandes centros urbanos europeus e, acima de tudo, dotado de um estilo literário extremamente psicanalítico e fenomenológico que se voltava para uma narração crítica, porém, velada deste imaginário individual e social judaico vitimizado pelo moralismo positivista burguês e pelo nascente moralismo socialista, o escritor tcheco irá desenvolver, em toda a sua literatura, um apego à descrição de temas relacionados à “tradição cultural religiosa judaica”, nela incluída o patriarcado, os códigos e valores morais bíblicos, talmúdicos, rabínicos e cabalísticos que ele também conhecia e, como consequência de toda essa sua herança cultural religiosa, ele também irá desenvolver um “sionismo” latente em toda a sua escrita literária voltada para a narração do imaginário cultural (religioso) judaico. Torrieri Guimarães, um dos mais importantes tradutores brasileiros de Franz Kafka, assim se manifesta quanto ao amor do escritor tcheco pelo imaginário cultural judaico sionista retratado em sua escrita literária e em seus anseios de vida: Ao tomar consciência de si como homem válido, Kafka dá-se conta de que vive em uma comunidade judaica, excessivamente circunscrita dentro de suas próprias tradições, e cercada pelo ódio surdo que já nasceu em alguma parte e está prestes a desencadear-se sobre o seu povo. Esta certeza do flagelo, da hecatombe, é constante na obra de Kafka; ele pressente, como um iluminado, que o seu povo atrai sobre si, novamente, as iras divinas, que deve vergastá-lo porque se enclausurou no egoísmo do seu poder. O judeu Kafka, que saúda o sionismo como a salvação, que acredita que somente quando os judeus tiverem a sua pátria poderão reagir contra os seus detratores tradicionais e surgir aos olhos do mundo como um povo válido para a humanidade – ele sentia já, como 73


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dragomano, a avalancha que se formava em qualquer ponto ignorado, o ódio que se avolumava, e que afinal, pouco tempo após a sua morte, se abatia sobre a sua raça, dizimando-a horrivelmente, atingindo mesmo as três irmãs do escritor, assim como muitos amigos e parentes. (KAFKA, 2000, p. 5).

Ainda no que diz respeito ao imaginário cultural sionista kafkiano, Torrieri Guimarães assim se manifesta: [...] ele amava o seu povo, sonhava para ele condições de vida mais dinâmicas, mais atuantes, dirigidas no sentido de uma nacionalidade completa, e não somente como um agregado de párias. Tudo o que era judeu despertava o seu interesse, embora não se iludisse jamais com as teorias segregadoras, perigosas e carregadas de ódio, de raças puras e impuras, de povo escolhido, etc. O seu judaísmo tinha o sentido de uma recomposição de seu povo, definida e imperiosa, para sobreviver, unido e em sua própria pátria, às investidas do ódio milenar. (KAFKA, 2011, p. 27).

No entanto, devido ao agnosticismo e quase ateísmo de Kafka e também devido à decepção que este sofrera com o rígido e hipócrita sistema do patriarcado judaico que ele presenciara na própria figura de seu pai, o Sr. Hermann Kafka, o interesse sionista que o escritor tcheco possuía pela narração do imaginário cultural religioso do judaísmo de sua época revelava-se, desta forma, não por uma valorização da religião e códigos morais de seu povo, nos quais ele não acreditava; mas, acima de tudo, pela necessidade que a escrita literária kafkiana sentia de narrar os conflitos existenciais absurdos que o imaginário de uma subjetividade judaica descentrada e perseguida, em uma Europa urbana em crise, sofria; bem como o de narrar os conflitos existenciais absurdos que o imaginário de uma nação judaica cuja identidade também tem estado descentrada e perseguida por quase dois milênios, no tempo, no território e na alma, igualmente sofria. Assim sendo, o amor da escrita literária de Kafka pela narração do imaginário da tradição cultural religiosa judaica revelar-se-á, em suas obras, não de forma cega ou fundamentalista, mas revolucionária no seu estilo de prosa crítica, velada, seca, dura, irônica, absurda, sombria, despojada de um estilo 74

definido (embora historicamente Kafka pertencesse ao movimento literário do expressionismo alemão), psicanalítica e fenomenológica visando à recuperação do imaginário da identidade individual e social judaica, no sentido de transmitir ao judeu o valor simbólico de imaginar-se como tal e de que, este mesmo judeu cujo imaginário pode ser representado por meio de seus valores religiosos, é também dotado de uma identidade enquanto nação, mesmo que agonicamente em diáspora; um estilo de escrita que só pode ser entendido, a princípio, por aqueles que conheciam o contexto histórico-cultural, social, político, econômico e militar no qual Kafka vivera. O papel da escrita literária kafkiana sionista será, assim, o de narrar os dramas urbanos absurdos de um imaginário identitário individual e social judaico descentrado que, somente mediante um retorno psicanalítico, expressionista e fenomenológico a si mesmo por meio de uma crítica aos seus valores religiosos e também mediante a defesa de um retorno à sua terra de origem, feitos por Kafka, poderá, finalmente, redescobrir-se. Desta maneira, imbuído de um amor telúrico e identitário pelo imaginário cultural dos judeus, Kafka sempre comunicava ao seu melhor amigo, o escritor judeu alemão Max Brod que, mais tarde, após a morte de Kafka, tornar-se-ia o transmissor do seu legado literário ao mundo, o seu desejo de ir para a Palestina e lá estabelecer, de acordo com os princípios sionistas de Theodor Herzog que pregavam o retorno dos judeus à Palestina a fim de lá estabelecerem o seu antigo lar nacional, uma pátria definitiva; ou seja, Kafka desejava um novo lugar no qual, longe da crise europeia e do antissemitismo (latente), ele e o seu povo pudessem redescobrir e ressignificar o seu imaginário cultural identitário descentrado e perseguido por quase dois milênios de moralismo cristão e, mais recentemente, pelo moralismo socialista. Desta maneira, no final de sua vida, Kafka, cada vez mais sionista na alma e na escrita, intensifica seus estudos na língua hebraica e aprende técnicas agrícolas visando começar uma nova vida na sonhada “Sião” (nome dado pelo sionismo ao Monte Sião, o lugar mais importante e santo da amada Jerusalém Antiga dos judeus), com seu grande amor, Dora Diamant, uma jovem judia alemã que ele conhecera quando esta trabalhava como empregada em um refeitório em Berlim, em 1923. Dora pertencia à vertente religiosa hassidim,


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uma das mais conservadoras do judaísmo na Europa Oriental. Esta jovem judia de 19 anos daria a Kafka uma nova motivação para viver e escrever. Quanto ao seu sonho de morar na Palestina, esse não pôde realizar-se, haja vista que Kafka morreria no ano seguinte, 1924, vítima de uma tuberculose que o afligia desde 1917. Quanto à relevância de Dora Diamant como incentivadora da escrita literária kafkiana sionista de origem psicanalítica, fenomenológica e expressionista na narração crítica do imaginário cultural judaico europeu descentrado no início do século XX, assim se manifesta o escritor, historiador e crítico de arte Lemaire (2006): Eu acredito que sua atração por Dora Diamant foi em grande parte alimentada pelo fato de ela pertencer a uma família hassidim ultraconservadora. Ele queria tudo saber sobre a vida dos pioneiros judeus lá, ele queria se familiarizar com as técnicas agrícolas, pois falava em também trabalhar a terra. Por causa de sua fraqueza física e de suas contradições pessoais, o estudo do hebraico acabou tornando-se seu laço simbólico com a Palestina. (p. 224).

Assim é que, após ter conhecido Dora, os dois últimos anos da vida de Kafka foram decisivos para as pretensões sionistas do escritor. Como era detentor de uma cultura universal, não foi difícil para o grande escritor tcheco atingir em pouco tempo um nível intermediário de conhecimento tanto do idioma hebraico antigo quanto do moderno, que o possibilitaria ler com avidez contos hassidim, os quais eram, consoante as palavras do próprio Kafka, “[...] as únicas coisas judaicas nas quais me reconheço imediatamente e me sinto logo em casa [...]” (LEMAIRE, 2006, p. 212). Quanto ao interesse por técnicas agrícolas, isso deveu-se ao fato de Kafka saber que os imigrantes judeus que saíam em massa da Europa Oriental, vítimas dos pogroms russos do final do século XIX e do antissemitismo (latente) dos demais países europeus, rumo à Terra Prometida (Palestina), aprendiam técnicas agrícolas nas colônias (kibutzim) que estes “pioneiros” imigrantes judeus estabeleciam ao chegarem em solo palestino como uma forma de sobrevivência econômica bem como de afirmação de um novo imaginário identitário nacional. Kafka queria, mediante o aprendizado do hebraico e o desejo

de cultivar a terra na Palestina, sentir-se parte na construção de um novo imaginário da identidade judaica, a sua e a de seu povo. Assim sendo, ao ligar-se simbolicamente ao idioma hebraico e ao desejo de cultivar a terra caso viesse a realizar o seu sonho de morar na Palestina, Kafka estava recriando um novo imaginário do que poderia ser um “judeu” e do que poderia ser viver em uma “nova nação”; o que de fato teria se concretizado para Kafka caso a morte não tivesse ceifado a vida deste incomparável escritor, no dia 3 de junho de 1924. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Do que até aqui exposto, entendemos que o conceito de imaginário passou por uma evolução em seus desdobramentos históricos até que atingisse o atual estágio de legitimidade como um dos fundamentos na busca pela verdade científica, religiosa, artística e filosófica do universo simbólico imagético. Inicialmente reprimido pela razão platônica na Idade Antiga, pelo cristianismo iconoclasta na Idade Média, pelo racionalismo cartesiano na Idade Moderna, pelo humanismo romântico nos séculos XVIII e XIX, pelo moralismo positivista burguês e pelo moralismo socialista no início do século XX na cultura ocidental, com os estudos de pensadores como Gaston Bachelard e Gilbert Durand, entre outros fenomenólogos, o conceito de imaginário tem ganhado força e legitimidade nas últimas décadas não apenas como uma forma de busca pela verdade da ciência, da arte, da religião e da filosofia, mas também como uma maneira de expressão crítica e criativa das sensibilidades, anseios e angústias do ser humano. Um dos maiores exemplos da relevância do imaginário na narração crítica e criativa das sensibilidades, angústias e anseios humanos é o escritor tcheco Franz Kafka. Tendo escrito no início do século XX, período histórico que corresponde ao desenvolvimento do movimento artístico-literário do expressionismo e, tendo recebido influências da psicanálise freudiana e da fenomenologia, Kafka foi capaz de narrar, de forma velada, sombria, irônica, dura, seca, pessimista e despojada de um estilo literário definido, toda a complexidade do imaginário identitário descentrado do judaísmo europeu ao qual ele pertencia, mediante uma crítica ao patriarcalismo rigoroso de raiz milenar dos judeus, ao egoísmo dos valores religiosos do seu povo e também ao moralismo positivista 75


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burguês e ao recente moralismo socialista que tanto sofrimento trouxeram à sua nação diaspórica; sem nunca esquecer, contudo, o amor sionista que move toda a sua literatura centrada na narração do drama absurdo da existência humana. Em última análise, concordamos com as palavras do catedrático norteamericano Bloom (2012), para quem “Sendo o mais sutil e o mais evasivo de todos os escritores, Kafka continua a ser o mais severo e o mais inquietante dos sábios tardios daquilo que ainda virá a ser a tradição cultural judaica do futuro.” (p. 181); um escritor cujo legado para a história da literatura é imensurável e que soube, como poucos, em nosso entendimento, narrar o imaginário cultural judaico em toda a sua complexidade.

REFERÊNCIAS BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: LEACH, Edmund et Alii. Anthropos-Homem. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. BLOOM, Harold. Abaixo as verdades sagradas: poesia e crença desde a Bíblia até nossos dias. Tradução Alípio Correa de Franca Neto, Heitor Ferreira da Costa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. DURAND, Gilbert. O imaginário: Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Tradução Renée Eve Levié. 5 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2011. KAFKA, Franz. Diários. Tradução Torrieri Guimarrães. V. 10. Belo Horizonte: Itatiaia Ltda 2000. _______. O processo. Tradução: Torrieri Guimarães. 5 ed. São Paulo: Martin Claret, 2011. _______. Carta ao pai. Tradução de Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2012.

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_______. A metamorfose e O veredicto. Tradução de Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2012. LEMAIRE, Gérard-Georges. Kafka. tradução Júlia da Rosa Simões. Porto Alegre: L&PM 2006. SALFELLNER, Harald. Franz Kafka & Praga. Tradução André Delmonte. Rio de Janeiro: Tinta Negra Bazar Editorial, 2011. p. 368.


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Aspectos da identidade do gaúcho rural em contos de Sergio Faraco

Daniel Fernando Gruber1 Juracy Assmann Saraiva2 Resumo Este artigo analisa três contos de Sergio Faraco, reunidos na coletânea Dançar tango em Porto Alegre (1998), centrando-se em suas personagens e no cenário rural em que desenvolvem suas ações. Por meio dessa relação, delineiam-se características do “gaúcho,” ou do homem situado no campo e na fronteira, para demonstrar o vínculo dessas personagens com a ideia de identidade e tradição. Palavras-chave: Sergio Faraco. Identidade. Cultura brasileira. Rio Grande do Sul. Abstract This article analyses three short stories written by Sergio Faraco, gathered in a collection called Dançar tango em Porto Alegre (1998). It focuses the characters and the countryside scenery in which the actions were developed. Through this relation, characteristics of the “gaucho” or of the man situated in the countryside and in the country boundaries are delined in order to demonstrate the connection between these characters and the idea of identity and tradition. Keywords: Sergio Faraco. Identity. Brazilian culture; Rio Grande do Sul.

Jornalista, aluno do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale. Bolsista Prosup/ Capes. E-mail: danielfg@feevale.br. 2   Doutora em Teoria Literária pela PUC/RS e pós-doutora em Teoria Literária pela Unicamp. Professora e pesquisadora da Universidade Feevale e bolsista em produtividade do CNPq. E-mail: juracy@feevale.br. 1

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1 INTRODUÇÃO Sergio Faraco3 jamais intencionou fazer literatura regionalista, mesmo assim a identidade do sujeito sul-rio-grandense está representada em seus contos, visto que eles têm uma relação direta com o contexto sociocultural em que o escritor se situa, e sobre o qual reflete. Na coletânea Dançar tango em Porto Alegre (1998), Faraco expõe personagens cujas peculiaridades, determinadas por orientações geográficas, podem ser reunidas em dois grupos distintos: no primeiro, inserem-se as que habitam o espaço rural, em que a vida segue seu fluxo em meio à lida no campo, preservando-se as tradições; no segundo, o espaço urbano é o reduto onde se destacam conflitos gerados pela instabilidade e perda de referências aptas a constituírem identidades coesas, ainda que múltiplas. Neste artigo, contudo, são abordados três contos referentes ao universo do gaúcho rural, onde figura o espaço geográfico do campo e da fronteira, e onde se fixa a identidade do sujeito que o habita e o transforma em um espaço também de cultura. 2 TRADICIONALISMO COMO RESISTÊNCIA À HOMOGENEIZAÇÃO O reconhecimento de uma identidade gaúcha exige diferenciar o referente gentílico – que a idealização, pela literatura, propagou, e que o habitante sul-rio-grandense adotou – daquele que recobre o de homem das pradarias, situado, geograficamente, na Argentina, no Uruguai e no Paraguai. O homem dos pampas descende de índios, negros e brancos, e esse caráter mestiço assinala a identidade étnica e racial do povo sulrio-grandense, da qual não se pode subtrair a ideia da vida no campo, da inter-relação de fronteiras e da transnacionalidade. Todavia, a abrangência do termo gaúcho não se limita aos indivíduos que habitam um espaço restrito, mas acolhe, igualmente, àqueles que, imersos na vida urbana, adotam uma herança cultural comum, capaz de integrá-los por meio de traços unificadores. Abrigar o termo gaúcho

3   Um dos mais prestigiados contistas gaúchos contemporâneos, cuja obra é nacionalmente reconhecida pela crítica literária. Nasceu em Alegrete e aborda, como temas recorrentes em sua literatura, o universo rural do Rio Grande do Sul, especialmente a fronteira, bem como o espaço urbano e a memória da infância e da juventude.

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sob um território ou um campo cultural unitário ou homogêneo é limitador, uma vez que a ideia de uma identidade local, regional ou nacional coesa é desmentida pela realidade. Alfredo Bosi (2008) lembra que muitos propagam a ideia da unidade na cultura brasileira, que seria definida por qualidades-mestras, imagens em constante repetição e estereótipos legitimados. Com base nesse posicionamento, concebem uma hipotética identidade nacional, embora não haja apenas uma cultura brasileira, que seja definitiva e que promova o caráter do sujeito nacional. Para que se compreendam as diversas identidades nacionais, regionais e locais, é necessário, conforme Bosi, admitir a natureza plural do processo constitutivo da cultura. O brasileiro não só herdou a imbricação da cultura indígena, africana e portuguesa, como essa mesma já resultara da miscigenação, de que a influência dos árabes é exemplo. A partir do século XIX, soma-se a isso a transposição da cultura de imigrantes e, durante o século XX, os constantes e permanentes efeitos da globalização, que permitiram assimilar, por meio da tecnologia da informação e da comunicação, a cultura de países hegemônicos. A reflexão sobre a cultura e a identidade sulrio-grandense expõe, portanto, a pluralidade de sua formação, particularmente a do homem do pampa, que sofre forte influência dos países fronteiriços. A vida pastoril e a proximidade com argentinos e uruguaios forjaram uma cultura que, ao mesmo tempo, é própria, transnacional, sem deixar de integrar o caldeirão de identidades que é a cultura brasileira. A importância dessa fronteira sul-rio-grandense como universo cultural – e não apenas geográfico – mostra-se em grande parte da obra de Faraco. A representação da vida do gaúcho rural é permeada por paixões e descobertas, desafios naturais, sociais e humanos. A própria plasticidade da narrativa incorpora este universo, traduzindo, na linguagem concisa e coloquial, o falar desse gaúcho, marcado por seu léxico cheio de termos próprios. Nestes contos, de cunho rural, os narradores abordam a descoberta de restrições da vida no núcleo familiar, a perda da inocência, a austeridade dos adultos em relação à vivacidade das crianças, as amarguras das mulheres em relação à rudeza dos homens e os desafios da natureza – secas e enchentes. Portanto, é em um ambiente inóspito que homens, mulheres, crianças e jovens forjam seu


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caráter. O cenário pode ser a vastidão do pampa ou a estância, a casa da estância, o rio, a fronteira ou a mata. Neste terreno, tão familiar a alguns e tão estranho a outros, constrói-se a imagem do gaúcho rural, a qual está representada nos contos “Dois guaxos”, “Travessia” e “Noite de matar um homem”, objeto de análise deste artigo. No conto “Dois guaxos”, por exemplo, Faraco apresenta a história da descoberta sexual do jovem Maninho que, além de ser o protagonista, é também o narrador. A narrativa tem por cenário uma chacrinha na região do rio M’Bororé, onde Maninho vive com a família. Ele sente uma intensa atração pela irmã, Aninha, e chega a insinuar uma relação incestuosa ao lembrar-se de que Aninha “viera se deitar no catre dele” (p.10)4 e que, no meio da noite, “quisera que lhe chupasse o seio pequenino”. A menina, porém, é cobiçada por um empregado do rancho, um índio chamado Cacho, que “viera do Bororé para ajudar na lida”. Em uma das investidas, Aninha rende-se ao “bugre”, e Maninho ameaça pegar um punhal e atacá-lo, embora lhe falte coragem. A narrativa finaliza com o afastamento de Maninho que deixa a fazenda, a irmã e o pai, restando-lhe apenas a saudade da mãe falecida. Neste conto, é possível encontrar diversas referências a lugares entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai – Uruguaiana, Alegrete, Bella Unión – e termos da fala campeira, como costado, pelego, charlas, nonada e alcaide. Fazem parte do universo ficcional da narrativa as personagens do imaginário fronteiriço – o mestiço indígena, o rancheiro apegado à cachaça, a menina que cumpre os cuidados da casa uma vez que “morrendo a mãe ela tomara seu lugar” (p. 10). Também ocorre a representação do peão abrutalhado na figura do Cacho, que “desde o primeiro dia, vendo Aninha, não disfarçara suas miradas de cobiça, sua tensão de abuso grosso”. Conjugam-se, neste conto, a naturalidade do erotismo entre irmãos – já que “Maninho não conhecia muitas mulheres e nunca dormira com nenhuma, mas com qualquer que pudesse

As transcrições dos contos são indicadas pelo número da página em que se encontram na edição referendada neste artigo (FARACO, 1999). Quando há referências à mesma página, em um mesmo parágrafo, elas são indicadas apenas uma vez. 4

comparar, Aninha parecia mais bonita” (p. 13) – com o tema da mulher desvirtuada, que depois “ia virar puta de rancho” (p. 11) e com o da violência que se manifesta na “mão crispada no punhal” (p. 12). Ainda nesse cenário – breve representação da paisagem campesina – são comuns “os mugidos soluçantes de terneiros extraviados” (p. 10), e a natureza traz as rudezas da vida, seja sob a forma do temporal noturno que arrebenta o zinco, seja pela presença da morte que arrebata a mãe do protagonista. O conto não apenas institui um retrato da vida rural no interior gaúcho, mas também os temas peculiares à literatura de Faraco: a solidão, a inadequação familiar, a inconformidade e o impulso sexual. Em “Travessia” e “Noite de matar um homem”, Faraco explora a naturalidade das contravenções e os subterfúgios da lei, remetendo ao dilema histórico do brasileiro que reside na oscilação entre o respeito à constituição nacional e sua desobediência, oscilação presente em situações onde cada um se “salva” como pode (DAMATTA,1986). Em ambos os contos, as ações giram em torno da atividade dos chibeiros, indivíduos que, na fronteira, dedicam-se ao contrabando de pequeno porte. O protagonista é o próprio narrador, não nomeado, que pode ser identificado pela menção ao “tio Joca”. A atividade de chibeiro não é apresentada como criminosa, mas é humanizada, como se o contrabando fosse a única opção de sobrevivência para as personagens. Tal ideia está expressa, por exemplo, em um trecho de Travessia: “estávamos precisados de que tudo desse certo. Fim de ano, véspera de Natal, uma boa travessia, naquela altura, ia garantir o sustento até janeiro” (p. 18). Nesse conto, o narrador, ainda criança ou muito jovem, acompanha o tio na travessia de encomendas da cidade de Alvear até Itaqui, por meio do rio Uruguai. O clímax ocorre quando o menino e tio Joca se veem obrigados a jogar as mercadorias no rio, ao serem flagrados pelos fuzileiros: “Três ventiladores, uma dúzia de rádios, garrafas, cigarros, vidros de perfume e dezena de cashemeres, nosso tesouro inteiro mergulhou no rio” (p. 19). As estratégias da narrativa, que abrangem a narração a partir de um ponto de vista interno, a exposição da situação de carência das personagens, os laços de afeto que as unem, conjugam-se para 79


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provocar no leitor uma atitude de compaixão. Assim, quando tio Joca mostra aos fuzileiros que só há peixes no barco, aplicando em sua resposta o melhor jeitinho brasileiro – “o doutor tenente entende de chibo e de chibeiros, de peixe entendo eu” (p.20) – consegue a simpatia do leitor que se torna cúmplice da personagem, concedendo-lhe o direito de burlar a lei. Em “Noite de matar um homem”, o narradorprotagonista – aparentemente mais velho e em companhia do amigo Pacho – assume a responsabilidade de assassinar outro chibeiro conhecido como Mouro, “tão atrevido que em Itaqui apareceu o nome dele no jornal” (p. 24), que vem atrapalhando as atividades de tio Joca na região. Como na narrativa anterior, as referências geográficas voltam a se destacar, tanto brasileiras quanto uruguaias: Itaqui, Alvear, Bajé, Santiago, Monte Caseros, Libres, Santo Tomé. Há referência a locais típicos da região fronteiriça, como o rio, os ranchos, as vilas, as picadas, as planícies e as coxilhas. Há menções ao vestuário típico – alpargatas, poncho, lenço; à culinária – braseiro e espeto, carreteiro de milho verde; e a linguagem integra, ao português, termos castelhanos, como recuerdos, bueno, chico, ustedes, hijos, e o falar peculiar da região, expressa em vocábulos como milongueando, façanhudo, bolicho, achicou, chalana, charla. Se em “Travessia” há um embate entre o eu e o outro, manifestado na figura dos chibeiros que se opõem aos fuzileiros, em “Noite de matar um homem”, o outro é representado pelo Mouro, chibeiro rival de ascendência estrangeira – fala outra língua e tem hábitos distintos5. Embora sejam brasileiros, chibeiros não são fuzileiros e um não existe sem o outro, uma vez que, sem a repreensão da lei, a atividade de comercializar mercadorias na fronteira não seria uma contravenção. Da mesma forma, brasileiros não são uruguaios, mesmo que sejam chibeiros e gaúchos. Nesse conto, a ideia de crime está inevitavelmente ligada à ideia do multiculturalismo. 5   A relação entre a formação da identidade como negação como forma de diferenciar-se do outro é discutida por Kathryn Woodward (2012), para quem a identidade não depende apenas de fatores étnicos ou culturais, mas de uma “marcação simbólica” da diferença, uma identificação social assinalada pela exclusão.

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Se um assassinato se justificaria pelo conflito entre o eu e o outro, a suspensão desse conflito se dá no reconhecimento da humanidade, elemento que transcende a separação identitária. Por esse motivo, Pacho e o narrador hesitam em atirar, ao emboscarem o Mouro na mata, quando o ouvem e o observam tocar sua gaita de boca. A música, aqui, assume uma função humanizadora, pois, como elemento transcultural, é capaz de integrar os sujeitos, mesmo que temporariamente. Este conto tem a morte como conflito nuclear, mas nele também se destaca o reconhecimento da ternura e da beleza que emerge dos sons da gaita de boca, ainda que, posteriormente, o narrador e seu comparsa voltem a encontrar o Mouro e o matem. A ação, porém, já não assume a forma de um assassinato premeditado, pois ocorre como reação ao medo, visto que as personagens se deparam com o brilho dum objeto prateado que o inimigo traz à mão e confundem a gaita com uma arma. A culpa pela ação equivocada do protagonista é explicitada na sua reação fisiológica: “vomitei e vomitei de novo e já vinha outra ânsia, como se minha alma quisesse expulsar do corpo não apenas a comida velha”, mas também “a história daquele homem que aos meus pés estrebuchava feito um porco” (p. 26). Quando o narrador vai recuando e “urinando”, em meio à sujeira física, expõe o sentimento de opressão que lhe vai na alma. Todavia, tanto ele quanto o companheiro calam-se ao encontrarem seu bando, assumindo o comportamento próprio a seu grupo, em que a morte, mesmo ignóbil, do inimigo, não deve receber qualquer lamento. Nos contos em análise, a rudeza e a violência conjugam-se à manifestação da religiosidade, que, segundo DaMatta (1986), constitui um “grande espelho” para dar a cada indivíduo o sentimento de comunhão com o universo. Entidades sobrenaturais regem aqueles que possuem fé, como se constata “Em Noite de matar um homem”: quando o Mouro é avistado em um acampamento a cinco horas de caminho da vila, o povo entra em alvoroço e “o mulherio se agarrou com a Virgem” (p. 25). Em “Travessia”, enquanto os homens se preparam para embarcar na chalana, Dona Zaira reza para que a chuva venha logo: “Ela disse que durante a tarde tinha erguido vela a Santa Rita e São Cristóvão” (p. 16), mas Tio Joca “retrucou que naquela altura, nove da noite, os santos já não resolviam e carecia negociar mais alto”. Quando finalmente a chuva veio


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e “o primeiro galope do aguaceiro repicou no zinco do telhado”, Tio Joca demonstrou a Dona Zaira que tinha razão, que “nos santos não dava para confiar, não mandavam nada, nos arreglos mais piçudos era preciso tratar direto com o patrão” (p. 17) 6. A religiosidade revela-se, assim, como mais um traço a caracterizar a identidade do homem do campo, cuja natureza contraditória e complexa se rege por padrões rudimentares, próximos aos do universo natural, em que crenças e convicções religiosas se manifestam simultaneamente a contravenções e à eliminação do concorrente nos negócios. Faraco expressa, nos contos, características do gaúcho da fronteira, metido com os santos, com punhais, com armas de fogo, gaúcho que revela uma moralidade peculiar, em que os homens da lei são percebidos como inimigos, uma vez que restringem práticas socialmente aceitas ou, até mesmo, necessárias. Essas narrativas estabelecem, portanto, uma oposição entre a tradição arcaica, empírica e supersticiosa do gaúcho rural, e a racionalidade fria e mutável do sujeito urbano, que, em contos desse mesmo escritor gaúcho, é apresentado de forma tão miserável quanto aquele. Entretanto, o citadino é ainda mais pobre e mais solitário do que o homem do campo, pois, no vazio de sua falta de padrões comportamentais e de fé, já não tem mais a que recorrer ante seus dilemas, enquanto aquele se aferra às suas tradições, que determinam o bem e o mal, o certo e o errado e, particularmente, lhe dão a garantia de reconhecer-se como sujeito em meio a seu grupo e a seu espaço cultural. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS É importante ressaltar que o sujeito rural representado nos contos situa-se na segunda metade do século XX, uma modernidade tardia ou, como acreditam alguns teóricos, uma pósmodernidade. Kathyn Woodward (2012) lembra que mudanças nos padrões de produção e consumo desta época globalizada resultam em identidades novas, decorrentes da interação de fatores

econômicos e culturais, expostos pela globalização e pela imigração de comunidades, bem como na resistência de identidades mais tradicionais à homogeneização. Conforme Woodward, uma unificação cultural, promovida pelo mercado mundial, leva a um distanciamento das identidades primitivas, relativamente à comunidade e à cultura local. Ao mesmo tempo, porém, algumas comunidades buscam resistir e impor suas tradições e histórias frente ao surgimento das identidades globalizadas. A face conservadora do gaúcho contemporâneo está representada nos contos analisados, ainda que Dançar tango em Porto Alegre também traduza, em outros contos, o esfacelamento das identidades do mundo contemporâneo. Entretanto em “Dois guaxos”, “Travessia” e “Noite de matar um homem”, objeto deste artigo, a própria ideia de fronteira, como demarcação geográfica e cultural, permeia as narrativas. Em Itaqui, Alegrete ou Uruguaiana, desenvolvem-se conflitos cujo âmago está na afirmação de uma identidade, ratificada por um lugar. É nesse perímetro simbólico que Faraco constrói a imagem do gaúcho do pampa, cuja concepção é permeada por amor, solidão, violência, sexo, fome e humanidade. Ao dar voz a suas personagens, refletir sobre os espaços habitados por elas e colorir plasticamente suas histórias, Faraco foge da reprodutibilidade do estereótipo do homem perdido em busca da identidade e brinda o leitor com uma visão crítica, mas ao mesmo tempo calorosa e empática, do gaúcho contemporâneo. Contudo, se nessa visão as personagens se revelam integradas ao seu espaço, nem por isso deixam de mostrar a pluralidade de fronteiras, separadas por um rio, por duas línguas, por dois códigos morais, a demonstrar que mesmo a face do gaúcho tradicional é múltipla.

6   DaMatta (1986) explica que as formas de comunicação com o sobrenatural, por meio das rezas, são mais fracas ou mais fortes que outras, de acordo com uma lógica de “gradação dominante”. As súplicas, acompanhadas de promessas, oferendas e sacrifícios, serão, naturalmente, mais fortes que um simples pedido verbal.

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REFERÊNCIAS BOSI, Alfredo. Cultura brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 2008. DAMATTA, Roberto. O que faz do brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986. FARACO, Sergio. Dançar tango em Porto Alegre. Porto Alegre: L&PM, 1999. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis-RJ: Vozes, 2012, p.7-72.

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