Revista Prâksis / Agosto 2015

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Associação Pró-Ensino Superior em Novo Hamburgo - ASPEUR Universidade Feevale

Prâksis Revista do ICHLA Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes —ICHLA—

Ano XII - Volume 2 - Agosto de 2015

Editora Feevale | 2015 |


Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes

PRESIDENTE DA ASPEUR Luiz Ricardo Bohrer REITORA DA UNIVERSIDADE FEEVALE Inajara Vargas Ramos

PRÓ-REITOR DE PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO Alexandre Zeni PRÓ-REITOR DE PESQUISA E INOVAÇÃO João Alcione Sganderla Figueiredo PRÓ-REITORA DE EXTENSÃO E ASSUNTOS COMUNITÁRIOS Gladis Luisa Baptista DIRETORA DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES Cristina Ennes da Silva COORDENAÇÃO EDITORIAL Denise Ries Russo EDITORA FEEVALE Celso Eduardo Stark Graziele Borguetto Souza Adriana Christ Kuczynski CONTATOS REVISTA PRÂKSIS ISSN: 1807-1112 Homepage: www.feevale.br E-mail: revistadoichla@feevale.br ERS 239, 2755 - CEP: 93525-075 Novo Hamburgo/RS - Fone: 51 3586-8819 - EDITOR CHEFE Márcia Blanco Cardoso

- REVISÃO TEXTUAL Valéria Koch Barbosa - REALIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes - ICHLA

- INDEXAÇÃO ICAP - Indexação Compartilhada de Artigos de Periódicos (Disponível em: <http://www.pergamum.pucpr.br/icap/index. php>); LATINDEX (Disponível em: <http://www.latindex.unam.mx/>); Qualis - CAPES (Disponível em: <http://qualis.capes.gov.br/ webqualis>).

Classificação

- COMISSÃO EXECUTIVA Cristina Ennes da Silva Márcia Blanco Cardoso Valéria Koch Barbosa - CONSELHO EDITORIAL Alfredo Veiga-Neto (UFRGS) Antônio Nóvoa (Universidade de Lisboa) Cláudia Schemes (Universidade Feevale) Cynthia Schwarcz Berlim (Universidade Feevale) Everton Rodrigo Santos (Universidade Feevale) Júlio Cesar Herbstrith (universidade Feevale) Juracy Assmann Saraiva (universidade Feevale) Luciana Néri Martins (Universidade Feevale) Luis Henrique Rauber (Universidade Feevale) Magali Mendes de Menezes(UFRGS) Marisa Vorraber Costa(UFRGS) Mauro Augusto Burkert del Pino (UFPel) Nélio Vieira de Melo (UFPE) - PARECERISTAS André Luiz dos Santos Silva Carlos Eduardo Stroher Carmen Esther Rieth Dalila Inês Backes

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- CAPA E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Adriana Christ Kuczynski

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EX PED I ENTE

PRÓ-REITORA DE ENSINO Denise Ries Russo

Denise Arina Francisco Dinorá Zuccheti Eliana Perez de Moura Gabriel Grabowski Ida Helena Thon Inês Caroline Reichert José Arthur Fell Jozilda Fogaça Lima Lovani Volmer Lúcia Hugo Uczak Luiz Antônio Gloger Maroneze Magale Konrath Magna Lima Magalhães Margarete Fagundes Nunes Paulo Roberto Pasqualotti Ricardo Strauch Aveline Simone Moreira dos Santos Sueli Maria Cabral

Qualis (CAPES)

Estrato

Área de Avaliação

B2

PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL / DEMOGRAFIA

B3

LETRAS / LINGUÍSTICA

B3

INTERDISCIPLINAR

B4

EDUCAÇÃO

B5

HISTÓRIA

B5

ARTES / MÚSICA

B5

CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS I

B5

SERVIÇO SOCIAL

B5

SOCIOLOGIA

B5

PSICOLOGIA

B5

FILOSOFIA/TEOLOGIA: subcomissão TEOLOGIA


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SUMÁRIO

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EDITORIAL

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APRESENTAÇÃO

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EDUCAÇÃO DO CAMPO: ENTRE A LUTA, AS LEIS E AS POSSIBILIDADES Carlos Eduardo da Silva Teresa Mary Pires de Castro Melo

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FUTEBOL E INFÂNCIA: FORMAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES DAS CATEGORIAS DE BASE DO SPORT CLUB INTERNACIONAL Honor de Almeida Neto Everton Rodrigo Santos

33

“ANTIGA FEBEM, FASE AQUI NÃO!”. (RE)AÇÕES COLETIVAS E MOVIMENTOS CONSERVADORES Andreia Lorena Ferraz Dinora Tereza Zucchetti Eliana Perez Gonçalves de Moura Gustavo Roese Sanfelice

43

A RELAÇÃO DOS BRINQUEDOS COM A EDUCAÇÃO Raquel Dilly

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DIMENSÕES PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO NÃO-ESCOLAR: CADÊ O QUADRO-VERDE? Rosana Silveira Dorneles Jozilda Berenice Cândido Fogaça 3


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EXPERIÊNCIAS COM O USO DE TABLETS NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR E NÃO-ESCOLAR Débora Nice Ferrari Barbosa Patrícia B. Scherer Bassani Rosemari Lorenz Martins Bethânia Linden Maciel

69

O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: COMO PRÁTICA SOCIAL EFETIVA Henrique Alexander Keske

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CADERNO DE CAMPO: UM INSTRUMENTO DE AVALIAÇÃO NA PERSPECTIVA INCLUSIVA Elizete Vargas Morgana Domênica Hattge

89

MEMÓRIAS DA COMUNIDADE, HISTÓRIAS DA CIDADE:EXPERIÊNCIAS E VIVÊNCIAS NO ESPAÇO ESCOLAR Carlos Eduardo Ströher Daison Kipper da Paz Michelle Leite

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ANÁLISE TEMPORAL DAS MATRÍCULAS EM EDUCAÇÃO ESPECIAL ENTRE 2005 E 2013 NO ESTADO DO PARANÁ Alexandre Dido Balbinot Arieli Haubert

111

“MÃOS DADAS”: EXPERIÊNCIAS DE DOENÇA DE UM GRUPO DE APOIO AO CÂNCER DE MAMA Daiane Riva de Almeida Tonantzin Ribeiro Gonçalves

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ANSEIOS E DESEJOS: MULHER MADURA E A MODA COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL Claudia Schemes Paulo Henrique Saul Duarte Magna Lima Magalhães

131

EXPERIÊNCIAS E PROGNÓSTICOS DE UM BRASIL: UM ENSAIO SOBRE MANOEL BONFIM Daniel da Silva Becker

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PROPOSTAS PARA OS (DES)BORDES URBANOS DO BAIRRO SÃO JOSÉ, EM NOVO HAMBURGO/RS Alessandra M. do Amaral Brito Luciana Néri Martins Caroline Kehl Juliana Tassinari Cruz

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NORMAS GERAIS DE PUBLICAÇÃO


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EDITORIAL

O Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Feevale, apresenta, à comunidade acadêmica, o segundo volume de 2015 da Revista Prâksis. Já em seu décimo segundo ano de publicações, a Revista traz, nesse volume, a temática “Saberes e práticas no campo social”. O objetivo de nossa Revista é fomentar discussões acadêmicas através da apresentação de pesquisas concluídas ou em andamento e que possibilitam reflexões a respeito de diferentes temas, levando em conta o caráter multidisciplinar de nossa publicação. Nesta edição, foram selecionados quatorze artigos sobre a temática proposta e que, certamente, contribuirão para a produção do conhecimento na área das Ciências Humanas, Letras e Artes, a partir de diferentes olhares. O primeiro artigo, Educação do campo: entre as lutas, as leis e as possibilidades, de Carlos Eduardo da Silva e Teresa Mary Pires de Castro Melo, apresenta um relato de experiência na Escola do Campo Helena Borsetti, em Matão- São Paulo e, através desse relato, discute a questão da educação camponesa e da relação entre movimentos sociais e educação. Em seguida, o artigo Futebol e Infância: formação de crianças e adolescentes das categorias de base do Sport Club Internacional, escrito por Honor de Almeida Neto e Everton Rodrigo Santos, analisa como se dá a formação de atletas nas categorias de base e as expectativas a partir de sua inserção no mundo do futebol.

O terceiro artigo, “ANTIGA FEBEM, FASE AQUI NÃO!” (Re)ações coletivas e movimentos conservadores, dos autores Andreia Lorena Ferraz, Dinora Tereza Zucchetti, Eliana Perez Gonçalves de Moura e Gustavo Roese Sanfelice, analisa a percepção negativa que grande parte da comunidade gaúcha apresenta em relação à FASE (Fundação de Atendimento Socioeducativo) e como esse fenômeno é mais um de tantos aspectos a contribuir para a dificuldade de inserção social dos egressos desse sistema. Os três artigos seguintes relatam experiências docentes em espaços escolares e não escolares em práticas didático-pedagógicas inovadoras. Os artigos são: A relação dos brinquedos com a educação, de Raquel Dilly, Dimensões pedagógicas na educação não escolar: cadê o quadro-verde?, das autoras Rosana Silveira Dorneles e Jozilda Berenice Cândido Fogaça, e Experiências com o uso de tablets no contexto da educação escolar e não escolar, de autoria de Débora Nice Ferrari Barbosa, Patrícia B. Scherer Bassani, Rosemari Lorenz Martins e Bethânia Linden Maciel. Em seguida, apresentamos o artigo de Henrique Alexandre Keske, O Estatuto da Criança e do Adolescente como prática social efetiva, que apresenta uma análise profunda do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e sua efetividade no momento em que ele completa 25 anos. Já as autoras Elizete Vargas e Morgana Domênica Hattge apresentam, no artigo intitulado Caderno de campo: um instrumento de avaliação 5


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na perspectiva inclusiva, como o programa Jovem Aprendiz e a lei de cotas vêm auxiliando na inclusão de pessoas com deficiência, bem como analisam a utilização do Caderno de Campo como instrumento alternativo de avaliação da prática realizada em empresa do Vale do Taquari/RS por esses jovens aprendizes com deficiência. O artigo Memórias da comunidade, histórias da cidade: experiências e vivências no espaço escolar, de autoria de Carlos Eduardo Ströher, Daison Kipper da Paz e Michelle Leite, apresenta o projeto “Memórias da comunidade, histórias da cidade”, que visava a ressignificar o espaço (e o aprendizado) escolar a partir do estudo das localidades de origem dos alunos da 8ª série (9º ano) da Escola Municipal São José, de São Sebastião do Caí, ao longo do ano letivo de 2013. Em seguida, os autores Alexandre Balbinot e Arieli Haubert apresentam o artigo Análise temporal das matrículas em Educação Especial entre 2005 e 2013 no estado do Paraná, procurando identificar o crescimento desses números e seus motivos. Já no artigo “Mãos dadas”: experiências de doença de um grupo de apoio ao câncer de mama, os autores Daiani Riva de Almeida e Tonantzin Ribeiro Gonçalves apresentam um estudo qualitativo a partir do acompanhamento de um grupo de apoio em Novo Hamburgo- RS. No artigo Anseios e desejos: mulher madura e a moda como construção social, os autores Cláudia Schemes, Paulo Henrique Saul Duarte e Magna Lima Magalhães apresentam uma reflexão sobre a relação entre as mulheres a partir de 65 anos de idade e a moda, trazendo algumas reflexões sobre

as mudanças que ocorreram na maneira de vestir e no estilo dessas mulheres, além de relacionar as transformações do comportamento feminino no século XX e como esse processo chega ao século XXI, sob o olhar das mulheres maduras. O autor Daniel Becker, em seu artigo Experiências e prognósticos de um Brasil: um ensaio sobre Manoel Bonfim, procura analisar como Manoel Bomfim articulou, em sua obra “América Latina: males de origem” (1905), as noções de passado, presente e futuro e como essas três categorias temporais foram utilizadas para expressar sua própria experiência na história e suas expectativas em relação ao futuro do Brasil. No último artigo, Propostas para os (des)bordes urbanos do Bairro São José, em Novo Hamburgo/ RS, os autores Alessandra do Amaral Brito, Luciana Néri Martins, Caroline Kehl e Juliana Tassinari Cruz apresentam um estudo de caso do bairro São José, no município de Novo Hamburgo. Esse estudo é fruto da participação do Projeto de Extensão do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Feevale junto à Red “(DES) Bordes Urbanos: Política, Proyecto y Gestión Sostenible en la Ciudad de la Periferia5”, financiado pelo Programa CYTED (Programa Iberoamericano, de Ciencia y Tenología para el Desarollo). Esperamos, ao apresentar mais esta edição, contribuir para a divulgação da produção acadêmica, fomentando novas reflexões e debates sobre os temas apresentados, tão complexos e abrangentes. Desejamos, portanto, uma boa leitura a todos e até a próxima edição!

Prof.ª Me. Márcia Blanco Cardoso Editora Científica Coordenadora do curso de História

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APRESENTAÇÃO

SABERES E PRÁTICAS NO CAMPO SOCIAL Estamos diante de uma temática que remete ao conceito de educação em seu sentido mais amplo, aquele que que nos permite afirmar que práticas de educação não escolar são práticas de educação! Distinguir a educação não escolar da educação escolar é um recurso pedagógico necessário, em tempos que, hegemonicamente, é atribuída à escola a responsabilidade de educar, ensinar, promover o conhecimento e suas variantes. Historicamente, todas as demais experiências de educação, entre elas, a educação não formal, as atividades socioeducativas, a educação popular, a pedagogia social, foram consideradas práticas residuais, com pouco alcance, voltadas aos segmentos sociais menos favorecidos e promotoras de senso comum. Sabe-se, no entanto, que a educação não escolar desempenha importante papel, especialmente, quando complementa os saberes aprendidos na escola. Segundo Carvalho e Azevedo (2004), a educação no campo social é traduzida em ações que fazem da educação para o convívio em sociedade e para o exercício da cidadania uma estratégia de proteção à infância e à juventude. Em geral, ocorre, segundo as autoras, de modo paralelo à educação escolar ou de forma complementar a ela, no seu contraturno, inclusive podendo habitar o próprio ambiente da escola. Geralmente, as ações são efetuadas por ou em parceria com organizações da sociedade civil e com um sentido diverso ao do mero reforço escolar. Essas ações possuem definido um campo educacional próprio que, por vezes, se apresenta com caráter transdisciplinar, a partir de intencionalidades

previamente definidas, traduzidos na modalidade de programas e/ou projetos específicos e realizadas através de oficinas. Têm caráter não obrigatório e, em geral, compensatório, também caracterizandose pela flexibilidade de tempos e espaços. As ações de educação não-escolar são orientadas para as necessidades dos grupos envolvidos, na maioria das vezes não apresentam hierarquização e, liberadas de certificação, acontecem por meio de metodologias variadas (PARK; FERNANDES; CARNICEL, 2007). Merece reiterar a diversidade das estratégias educativas de tais práticas, dos locais onde elas acontecem, dos sujeitos que a elas estão afetos. Em conjunto, isso repercute sobre a formação dos educadores (sociais) que atuam nas práticas não escolares, os quais, muitas vezes, são leigos ou acadêmicos em formação, lideranças comunitárias e/ou pessoas engajadas nos movimentos populares. Por último, registrar que a junção e, muito especialmente, o tensionamento entre os saberes populares, que advêm dessas experiências educativas, e os ditos saberes acadêmicos, produzem ações que podem ser utilizadas, pelas Universidades, em todos os níveis de ensino para a formação de pessoas sensíveis às demandas do campo social.

Dinora Tereza Zucchetti Doutora em Educação pela UFRGS Professora Titular do PPG Diversidade Cultural e Inclusão Social – Universidade Feevale 7


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EDUCAÇÃO DO CAMPO: ENTRE A LUTA, AS LEIS E AS POSSIBILIDADES

Carlos Eduardo da Silva1 Teresa Mary Pires de Castro Melo2 RESUMO O que hoje conhecemos como Educação do Campo no Brasil reflete o avanço histórico de marcos legais e conceituais, os quais foram fortemente determinados pela ação dos movimentos sociais de luta pela terra. Garantir a perspectiva de educação como direito de todos os grupos sociais, reconhecendo suas especificidades e necessidades, incorporando seus saberes e valorizando suas práticas, é um ciclo que envolve movimentos sociais, escola, documentos, leis e suas traduções nas articulações de cada espaço educativo escolar. Trazemos aqui essa perspectiva no breve relato de observações da Escola do Campo Helena Borsetti, de Matão – SP, que apresenta práticas inovadoras e metodologias alternativas na busca de incorporar saberes e práticas do campo no trabalho pela autonomia da comunidade. Palavras-chave: Educação do campo. Saberes e práticas camponesas. Prática docente. Movimentos sociais. ABSTRACT Rural Education in Brazil reflects the historic breakthrough of legal and conceptual frameworks, which were strongly determined by the action of social movements struggling for land. Ensure the education perspective as a right for all social groups, recognizing their specific needs and incorporating their knowledge and enhancing their practices is a cycle that involves social movements, school, documents, laws, and their translations in the joints of each school educational space. We bring here this perspective in a brief report of observations of Escola do Campo Helena Borsetti, Matão - SP, which features innovative practices and alternative methodologies in searching for incorporating knowledge and practices of land workers for the autonomy of the community. Keywords: Rural education. Knowledge and practices. Educational Practice. Social movements

Mestre em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação (PPGEd) da Universidade Federal de São Carlos – campus Sorocaba. 2 Doutora em Ciências da Comunicação, docente do Departamento de Ciências Humanas e Educação e colaboradora do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGEd) da Universidade Federal de São Carlos – campus Sorocaba. 1

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1 INTRODUÇÃO E assim [...] vocês não estão afastados de uma militância, vocês estão numa militância em uma trincheira diferente. É importante estar colocando isso, pois nós ficamos muito felizes em tê-los atuando neste espaço [...] a gente precisa ampliar a quantidade de pessoas nas escolas dentro de assentamentos com um trabalho que reflete e é voltado para a educação do campo. (Educadora camponesa)

A luta dos movimentos sociais pela posse, pelo trabalho e pela vida na terra é travada em várias trincheiras. Uma delas é a da Educação do Campo, que assumiu, no Brasil, um novo significado a partir dos movimentos organizados de trabalhadores que fomentaram debates em diversos setores, apresentando ao poder público e à sociedade as demandas levantadas em todo o processo: seja na consolidação de legislação específica, seja na necessidade de articulação entre o Estado e os próprios movimentos na efetivação da educação por eles pretendida. Essa luta é histórica e tem suas raízes na própria organização da sociedade brasileira, que, até o final da Repúbica Velha (1930), tinha a maior parte de sua população nas áreas rurais, sem ter sido apontada, nas leis, a necessidade de um projeto de Educação para essas populações. Segundo Carvalho (2008, p. 54), o censo de 1920 apontou que “apenas 16,6% da população viviam em cidades de 20 mil habitantes ou mais [...] e 70% se ocupavam de atividades agrícolas”. Esse grande contingente populacional também não foi contemplado na Constituição de 1934, que estabelece no parágrafo único de seu artigo 156: “Para a realização do ensino nas zonas rurais, a União reservará, no mínimo, vinte por cento das cotas destinadas à educação no respectivo orçamento anual” (DAVIES, 2010, p. 268). A Constituição Federal de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, não faz menção à valorização da educação do cidadão do campo. Ao contrário, a industrialização passa a reger a política educacional na formação de mão de obra para o mercado. Em seu artigo 129, a Constituição prescreve que é “dever das indústrias e dos sindicatos econômicos criar, na esfera da sua especialidade, escolas de aprendizes, destinadas aos filhos de seus operários ou de seus associados” (DAVIES, 2010, p. 270). 10

A partir desse movimento em direção à industrialização e ao mercado, a população do campo, até então base da organização social do país, chega aos anos 50 sendo considerada “atrasada” em relação a uma “modernidade” que se impunha como ideário de nação. O “rural” e o “urbano” passam a ser dicotômicos e é preciso atender às demandas das cidades como representação do “moderno”, uma vez que o “rural” é a representação do atraso a esse desenvolvimentismo. Nesse sentido, a antiga “Escola Rural” não tinha como objetivo conhecer, valorizar e preservar os saberes e as práticas dos camponeses, mas atender principalmente aos interesses dessa modernização e dos fazendeiros que buscavam regularizar a condição dos camponeses e, com isso, mantê-los nos quadros de trabalhadores das fazendas. É com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Lei 9.394/96) que se estabelece um marco para os povos do campo na necessidade de se pensar uma escola diferenciada, que realmente atenda ao morador do campo, como vemos no artigo 28: Art. 28º. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente: I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III - adequação à natureza do trabalho na zona rural. (BRASIL, 1996, p. 11).

Da mesma maneira, as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo avançam nas definições e orientações sobre como a Educação está inserida na realidade do país e no bojo das lutas camponesas: A educação do campo, tratada como educação rural na legislação brasileira, tem um significado que incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das minas e da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas. O campo, nesse sentido, mais do que um perímetro não urbano, é um campo de possibilidades que


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dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da existência social e com as realizações da sociedade humana. (BRASIL, 2002, p. 1).

A própria expressão Educação “do” Campo, em contraponto à Educação Rural ou Educação “no” Campo, traz em sua concepção o direito à Educação planejada e praticada nos espaços ocupados pelos atores do campo. Se a Educação “no” Campo foi gestada como uma espécie de continuação da educação escolarizada urbana, apenas transferida para o espaço não urbano, a Educação do Campo valoriza os saberes da cultura (e da agricultura como produção de cultura) significativos. Caldart (2008, p. 26) entende que a construção de um projeto político-pedagógico específico para o campo parte da realidade e é capaz de promover educação emancipatória com referências culturais e políticas para a intervenção das pessoas e dos sujeitos sociais na realidade em que vivem. Quem somos nós que trazemos de volta à agenda nacional algumas lutas tão antigas como nosso país, e que ao mesmo tempo nos atrevemos a desenhar alguns traços novos para o jeito e o conteúdo destas lutas? Por que não aceitamos mais falar em uma educação para o meio rural e afirmamos a nossa identidade vinculada a educação do campo? [...] Trata-se de uma reflexão especialmente necessária neste momento histórico de transição, onde talvez aumente o número dos que pretendam falar em nosso nome.

A luta dos atores da Educação do Campo fez/ faz com que a imagem estereotipada de um homem do campo submisso aos fazendeiros, latifundiários, seringalistas, senhores de engenhos, coronéis ou estancieiros seja substituída pelo reconhecimento do camponês como sujeito de sua história, cujos saberes e práticas devem ser incorporados também às ações da educação formal a eles destinadas. 2 EDUCAÇÃO DO CAMPO E ECOLOGIA DE SABERES Reconhecer e valorizar os saberes e as práticas dos sujeitos e das comunidades do campo implica compreender sua multiplicidade e pluralidade para que seja possível realizar ações emancipatórias a partir desses conhecimentos: esse movimento é

chamado de Ecologia de Saberes por Boaventura Souza Santos. O autor cria o conceito a partir de uma análise da estrutura do pensamento moderno ocidental como continuidade das demarcações entre o Velho e o Novo Mundo na era colonial. Tais estruturas de pensamento ainda hoje definem as relações políticas, econômicas, culturais e sociais do planeta, tornando-se a ‘injustiça cognitiva’ que está ligada à injustiça social. Santos (2007, p. 22) sugere, então, que seja construído um outro pensamento, o qual Confronta a monocultura da ciência moderna com uma ecologia de saberes. É uma ecologia, porque se baseia no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogéneos (sendo um deles a ciência moderna) e em interacções sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a sua autonomia. A ecologia de saberes baseia-se na ideia de que o conhecimento é interconhecimento.

Segundo o autor, frente a um mundo globalizado e interconectado, em que conhecimento e informação são centrais na circulação da cultura e nas outras relações sociais e econômicas, é necessário construir uma “epistemologia dos conhecimentos ausentes” de modo a tornar possível o equilíbrio global e local. Nesse movimento, as experiências não valorizadas pela lógica neoliberal são resgatadas, lembradas, evidenciadas e tornadas credíveis – especialmente aquelas dos saberes e das práticas de comunidades consideradas desimportantes pela circulação das informações. O autor define: A ecologia de saberes é um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da globalização contra-hegemônicas e pretendem contribuir para as credibilizar e fortalecer. Assentam em dois pressupostos: 1) não há epistemologias neutras e as que clamam sê-lo são as menos neutras; 2) a reflexão epistemológica deve incidir não nos conhecimentos em abstracto, mas nas práticas de conhecimento e seus impactos noutras práticas sociais. Quando falo de ecologia de saberes, entendo-a como ecologia de práticas de saberes (SANTOS, 2008, p. 154).

A construção de um pensamento sociodiverso, etnodiverso e epistemodiverso poderá superar 11


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as “monoculturas” de saberes dominantes, as quais não acreditam no saber e na experiência alternativa, tornando impossível a sua aparição e/ ou permanência. O pensamento de um ‘saber único’ tem seus efeitos também na Educação, uma vez que esta, quando se pretende inconformista e transformadora, depende do pluralismo de pensamentos, emoções e saberes e suas vinculações com a prática: A educação para o inconformismo tem de ser ela própria inconformista. A aprendizagem da conflitualidade dos conhecimentos ela própria conflitual. Por isso, a sala de aula tem de transformar-se ela própria em campo de possibilidades de conhecimento dentro do qual há de optar. Optam os alunos tanto quanto os professores e as opções de uns e outros não tem de coincidir nem são irreversíveis. As opções assentam exclusivamente em idéias já que as idéias deixaram de ser desestabilizadoras no nosso tempo. Assentam igualmente em emoções, sentimentos e paixões que conferem aos conteúdos curriculares sentidos inesgotáveis. Só assim é possível produzir imagens desestabilizadoras que alimentem o inconformismo perante um presente que se repete, repetindo as opções indesculpáveis do passado. O objetivo último de uma educação transformadora é transformar a educação, convertendo-a no processo de aquisição daquilo que se aprende, mas não se ensina, o senso comum. O conhecimento só suscita o inconformismo na medida em que se torna senso comum, o saber evidente que não existe separado das práticas que o confirmam. (SANTOS, 1996, p. 18)

Parece-nos muito significativo esse conceito neste contexto, uma vez que a luta dos movimentos sociais pela terra, no que diz respeito à Educação do Campo, indica como base de atuação os saberes e as práticas campesinas, as quais são ancestralmente contrárias à monocultura e respeitadoras do equilíbrio ecológico, que pressupõe diversidade. As Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (BRASIL, 2002, p. 22-23) reconhecem: Art. 2º Parágrafo único. A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua 12

realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país. Art. 5º As propostas pedagógicas das escolas do campo, respeitadas as diferenças e o direito à igualdade e cumprindo imediata e plenamente o estabelecido nos artigos 23, 26 e 28 da Lei 9.394, de 1996, contemplarão a diversidade do campo em todos os seus aspectos: sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia.

A seguir, trazemos o relato de uma experiência credível, que reafirma as possibilidades de significação das lutas do camponês no que diz respeito à Educação do Campo, a partir da realidade, da temporalidade, dos saberes, das práticas e da diversidade apontadas nas Diretrizes. Essa experiência se deu no escopo de uma pesquisa para o mestrado sobre Educação do Campo, que buscou conhecer contextos educativos integrativos de saberes e práticas do campo. Estão aqui relatadas as observações do mestrando, assim como as falas da coordenadora pedagógica entrevistada durante a visita. 3 UMA ESCOLA DO CAMPO A Escola do Campo Helena Borsetti situa-se no distrito de São Lourenço do Turvo, no município de Matão – SP – na região central do Estado, o qual Possui características bastante particulares no que concerne a classificação entre população rural e população urbana, pois parcela mais significativa de sua população reside no meio urbano, no entanto trabalha no meio rural; visto que há no município grandes indústrias do agronegócio, com monocultura de canade-açúcar e laranja, estas que angariam trabalhadores matonenses residentes nas áreas urbana e rural. (JESUS, 2011, p. 1)

Inserida nessa realidade, a escola Helena Borsetti vem desenvolvendo um trabalho de Educação do Campo que não está isolado, mas encontra-se em uma proposta do município de Matão, que, segundo Jesus (2011, p. 5),


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tem buscado estruturar e desenvolver uma proposta pioneira em educação rural, uma proposta de escola do campo que tem como principio a discussão coletiva de seus pressupostos teóricos e que busca incorporar em seu cotidiano a qualidade social da educação em uma perspectiva crítica de inserção num contexto global, sempre partindo da totalidade para pensar a realidade do campo, de forma a buscar a valorização dos sujeitos, da cultura e do trabalho no campo e a democratização do acesso a escolarização de qualidade e pública.

A Escola, com 360 alunos, está social e geograficamente localizada entre as realidades de trabalho de uma importante indústria de atomatados e a agricultura familiar, sendo um exemplo de tantos outros espaços que se apresentam dentro de um paradoxo: o desenvolvimento ditado pelo agronegócio e a existência de pequenos agricultores que sobrevivem da prática agroecológica. Convivem naquele espaço tanto os estudantes que pretendem cursar o SENAI - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – quanto aqueles que querem manter a roça da família e a escola, atendendo os dois públicos, propôs-se a abrir um diálogo entre eles, o que resultou na participação democrática da comunidade camponesa. De acordo com uma das coordenadoras pedagógicas, a escola procura avançar sempre na aproximação entre as duas demandas - indústria e agricultura familiar - e não teme que a indústria aniquile a agricultura familiar por considerá-la uma forte alternativa para a manutenção do homem no campo. Espera que seja possível, com o passar dos anos, atender às expectativas tanto do pequeno agricultor quanto do morador que veio para o bairro para trabalhar na fábrica, em um exercício de constante diálogo. Além de estar inserida em um projeto municipal de educação do campo, a Escola conta com profissionais que optam por ali atuar por acreditarem na pertinência, na qualidade do trabalho e do grupo de profissionais. Para a coordenadora pedagógica, a escola vive uma experiência singular, contrária à realidade de muitas unidades escolares situadas no campo, que tem seu quadro formado por professores mal classificados em concursos púbicos “obrigados a atuarem na

zona rural, por ter sobrado vaga”. No sentido de potencializar a atuação por meio de formação continuada, o profissional da cidade que trabalha na Escola do Campo Helena Borsetti participa de HTPCs (Horários de Trabalho Pedagógico Coletivos) direcionados para a discussão sobre a realidade do campo e as especificidades que a diferenciam da experiência urbana. A gestão da escola, cujos membros são escolhidos com participação da comunidade, está próxima e inserida na realidade: “Aqui a diretora mora no sítio, conhece a realidade local, uma pessoa que é do campo e mora no campo e conhece as demandas e isso contamina a todos”, avalia a entrevistada. Ainda sobre os professores, os funcionários e a direção que trabalham na unidade, a coordenadora afirma: “desde o porteiro até a direção, todos têm autonomia para ensinar”. Essa autonomia é consequência, também, da participação de toda a comunidade escolar na elaboração do Projeto Político-Pedagógico – PPP, ao lado de outros documentos, como o Plano de Trabalho Docente – PTD, o Plano Didático – PD e Projeto Diversidade, que não são instrumentos apenas burocráticos, “são documentos de cabeceira do professor, são vividos”. A construção do Projeto Político-Pedagógico e de outros documentos orientadores das práticas na Escola do Campo Helena Borsetti está articulada - além da LDB e das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo com documentos como o Decreto nº 7.352, que dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA, que afirma: Art. 2o São princípios da educação do campo: I - respeito à diversidade do campo em seus aspectos sociais, culturais, ambientais, políticos, econômicos, de gênero, geracional e de raça e etnia; II - incentivo à formulação de projetos político-pedagógicos específicos para as escolas do campo, estimulando o desenvolvimento das unidades escolares como espaços públicos de investigação e articulação de experiências e estudos direcionados para o desenvolvimento social, economicamente justo e ambientalmente sustentável, em articulação com o mundo do trabalho; 13


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III - desenvolvimento de políticas de formação de profissionais da educação para o atendimento da especificidade das escolas do campo, considerando-se as condições concretas da produção e reprodução social da vida no campo; IV - valorização da identidade da escola do campo por meio de projetos pedagógicos com conteúdos curriculares e metodologias adequadas às reais necessidades dos alunos do campo, bem como flexibilidade na organização escolar, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; e V - controle social da qualidade da educação escolar, mediante a efetiva participação da comunidade e dos movimentos sociais do campo. (BRASIL, 2010, p. 86).

As orientações municipais, como os princípios educativos das escolas do campo de Matão, também estão presentes na construção dos documentos da Escola do Campo Helena Borsetti, indicando: 1 Articulação entre o urbano e o rural, verificando sempre a necessidade de partir da realidade do aluno de modo a respeitar os espaços, tempo saberes do campo; 2 Valorização da identidade dos povos do campo, do direito e da aceitação da diversidade; 3 Reflexão crítica sobre as questões do campo de modo assegurar a liberdade crítica-reflexiva no espaço escolar do campo; 4 Gestão democrática, objetivando sempre a participação de todos os sujeitos da comunidade escolar, possibilitando que os mecanismos de participação e decisão sejam efetivados para todos e todas (comunidade, educadores (as) e educandos(as); 5 Valorização do MST e dos demais movimentos sociais organizados na luta pela Reforma Agrária; 6 Inserção de datas comemorativas do referencial camponês no calendário escolar com a finalidade de que estas sejam incorporadas ao trabalho escolar (JESUS, 2011, p. 5-6).

O resultado dessa articulação entre documentos basilares da Educação do Campo pode ser observado no documento criado pela própria comunidade escolar, que se traduz em Eixos de 14

Trabalho expressos no PDT – Plano de Trabalho Docente da Escola Helena Borsetti. Para garantir que essas temáticas permeiem o trabalho pedagógico, utilizaremos os eixos temáticos que se constituem em instrumentos de problematização da realidade: 1- Identidade e diversidade:- reconhecer os modos próprios de vida no campo como fundamentais para a constituição da identidade das crianças; -pesquisar as relações de gênero no campo, possibilitando o conhecimento das famílias não apenas sob o enfoque socioeconômico mas também das relações estabelecidas no cotidiano. 2- O trabalho no campo: - conhecer as práticas de produção local e sua reprodução social, os papeis dos membros da família nas ralações de trabalho, a produção de alimentos da comunidade, incentivo a presença desses alimentos no cardápio escolar; - refletir sobre como são divididas as atividades de trabalho entre homens, mulheres, jovens e crianças; - refletir sobre práticas sociais e manifestações culturais desenvolvidas pelos sujeitos da agricultura familiar, tendo o estabelecimento familiar como locus dessas relações; -entender o trabalho realizado pela mulher do campo tanto na esfera do domicílio, cuidando da casa, dos filhos, da horta e a “ajuda” prestada ao marido, interpretada como uma situação de desperdício para a mulher(trabalho repetitivo) em relação ao trabalho realizado pelo homem (produtivo); - conhecer as práticas culturais que influenciam no planejamento das atividades no estabelecimento familiar(ex: plantio em época de lua cheia, influência dos santos, manifestações culturais, etc.); 3Recursos naturais e práticas ambientalmente sustentáveis:- valorizar e evidenciar os saberes e o papel da população do campo na produção de conhecimento sobre o mundo e o ambiente natural; -caracterizar os agroecossistemas das famílias dos educandos e as formas de uso dos recursos naturais nos subsistemas de cultivo, de criação, extrativistas, beneficiamento da produção e atividades não agrícolas;


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-compreender os principais impactos ambientais resultantes da história de ocupação e refletir sobre os efeitos destas, na produção e qualidade de vida das famílias. 4- Sistema de produção no campo: - refletir sobre a forma como os agricultores familiares se organizam, a partir de uma lógica de mercado no sentido da especialização do sistema produtivo; - conhecer os sistemas de cultivos; os sistemas de criação; os sistemas de processamento ou beneficiamento dos produtos agrícolas; os produtos extraídos dos ecossistemas naturais, como caça, pesca, frutas, resinas; -entender as relações sociais de propriedade e de trabalho, que tencionam a própria existência da agricultura familiar. (MATAO, 2013, p. 2).

Percebe-se, na construção desses documentos, a incorporação da valorização de saberes e práticas da população do campo e a problematização da complexidade das relações sociais e de produção decorrentes das condições dessas populações. A escrita comprometida com a prática traduzse em projetos, como o Projeto Diversidade: “Os professores usam os conteúdos como ponto de partida para desenvolverem projetos voltados para o campo, sempre valorizando o trabalho com o homem do campo”. Como exemplo, aqui trazemos a proposta intitulada “Aqui se planta, aqui se colhe”. Nela foram desenvolvidas atividades diversas, divididas em temáticas para os cinco anos do Ensino Fundamental I. Nos primeiros anos, foram trabalhados “Cheiros e sabores”, relacionando todos os conteúdos às ervas aromáticas e aos temperos; nos segundos anos, “O comer bem”; nos terceiros, “O plantio da Horta”; nos quartos anos, “O cultivo da horta” e, nos quintos anos, “a comercialização dos produtos da horta”, todos como disciplinas eletivas sendo ligadas ao currículo oficial. O debate sobre ter ou não ter horta na escola resultou em uma opção híbrida: manter uma horta na escola e também se relacionar com as hortas da comunidade, possibilitando a experiência de conhecer as hortas camponesas. Interessante salientar que a escola mantém hortas em casas de pais de alunos, e a iniciativa foi importante para também estabelecer um contato com os saberes dos agricultores. A ida

dos estudantes às casas da comunidade suscita uma série de dúvidas e curiosidades. Para a coordenadora, a função dessa interação é realmente que o estudante entre em contato com realidades como “vaca do rabo torto, bicho, berne, chifre caído” e que, a partir dessas realidades, a escola seja mais um lugar de aprendizagem: Criamos no laboratório de informática um ambiente de pesquisa com livros sobre o campo, para a aula de Ciências a cozinha foi transformada em ‘cozinha experimental’, um espaço que não é nem cozinha e nem laboratório de ciências. Lá os estudantes observam o leite, decantação, as bactérias quando é feito o iorgute... e assim a escola estabeleceu dois horários, duas aulas na cozinha experimental e duas na biblioteca/ sala de multimeios.

Assim, a escola amplia a ideia da sala de aula estruturada como único espaço pedagógico e cria muitos outros espaços educativos, além de improvisar outros usos para os já existentes e utilizar os espaços da comunidade. Com essa espacialização, tudo na escola é uma continuidade e a escola inteira fica envolvida, não existindo a separação entre os segmentos. Estudantes, professores, gestores, funcionários, comunidade, disciplinas e atividades conversam. E concretizase o Artigo 7º das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo: § 2° As atividades constantes das propostas pedagógicas das escolas, preservadas as finalidades de cada etapa da educação básica e da modalidade de ensino prevista, poderão ser organizadas e desenvolvidas em diferentes espaços pedagógicos, sempre que o exercício do direito à educação escolar e o desenvolvimento da capacidade dos alunos de aprender e de continuar aprendendo assim o exigirem. (BRASIL, 2002, p. 23).

Ao término dos projetos, seus relatos são impressos em formato de livros, os quais, expostos na biblioteca da escola, são requisitados para pesquisas. Esse movimento de construção de conhecimento faz do espaço da escola também o da pesquisa sobre sua própria realidade, os saberes e a publicização de seus resultados como parte do saber historicamente construído. 15


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4 CONSIDERAÇÕES Procuramos estabelecer neste breve texto as relações entre as visões oficiais sobre a Educação do Campo e sua presença em leis e diretrizes ao longo do tempo, bem como a tradução de tais visões na operacionalização de uma Escola do Campo. Se, por um lado, os debates e as demandas dos movimentos sociais levaram a legislação da área a um significativo avanço, por outro lado, as letras da lei carecem de materialização nas ações educativas formais, especialmente, no entendimento e na valorização dos saberes e das práticas daqueles movimentos sociais. Contribui para esse avanço a experimentação de modelos diferentes do modelo tradicional de educação, em seus aspectos materiais e imateriais – espaços, tempos e currículos –, que se propõe a contribuir com a emancipação dos estudantes em um delicado exercício de equilíbrio entre o conhecimento historicamente construído e os saberes e as práticas das comunidades onde estão inseridas essas escolas. Experimentar essas novas configurações não é privilégio da Escola do Campo Helena Borsetti, mas conquista de todo um movimento por uma nova educação, que é resultado do protagonismo de trabalhadores organizados para interferir nas políticas que estão associadas ao conjunto de direitos assegurados pela luta pela terra. Nos resultados do debate, da pressão pela aprovação das leis, da luta pela implementação da legislação específica, os avanços estiveram em grande parte nas mãos dos povos alinhados com a causa - o militante acaba sendo o primeiro legislador e especialista na questão. Assim, é importante relatar e publicizar a observação de um espaço educativo que se apropria dos textos diretivos e legais sobre o que seja a Educação do Campo e retira da “letra fria da lei” as práticas possíveis e vivas que traduzem essas conquistas.

REFERÊNCIAS BRASIL. Presidência da República. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1934. BRASIL. Presidência da República. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1937. BRASIL. Presidência da República. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, 1996. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CEB nº 1, de 3 de abril de 2002. Institui Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Brasília: 2002. BRASIL. Presidência da República. Decreto 7.352 de 4 de novembro de 2010. Dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA. Brasília: 2010 CALDART, Roseli Salete. Sobre a educação do Campo. In: SANTOS, Clarice dos (Org.). Educação do Campo: Campo- políticas públicas –educação. Brasília: Incra; MDA, Brasil: 2008. CARVALHO, Jose Murilo de. A Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. DAVIES, Nicholas. A educação nas constituições federais e em suas emendas de 1824 A 2010. Revista Histedbr On-Line, Campinas, Faculdade de Educação da UNICAMP, n. 37, mar. 2010, p. 266-288. JESUS, Adriana do Carmo. O projeto de educação do campo do município de Matão: apontamentos preliminares. III Seminário de Dissertações e Teses do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar. São Carlos, 2011. Disponível em: <http://sistemas3.sead.ufscar.br/ ppge/adriana_do_carmo_de_jesus.pdf>. Acesso em: mai. 2015.

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MATAO, Prefeitura Municipal de. Plano de Ensino 2013 – Escolas do Campo. Matão-SP: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 2013. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, p. 3-46. Também publicado na revista Novos Estudos Cebrap, 79, p. 71-94, 2007. ______. Para Uma Pedagogia do Conflito. In: SILVA, Luiz H. et al. (Orgs.) Novos Mapas Culturais – Novas Perspectivas Educacionais. Porto Alegre: Editora Sulina, 1996. ______. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.

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FUTEBOL E INFÂNCIA: FORMAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES DAS CATEGORIAS DE BASE DO SPORT CLUB INTERNACIONAL

Honor de Almeida Neto1 Everton Rodrigo Santos2 RESUMO Este artigo investiga o processo de formação de jovens atletas das categorias de base do Sport Club Internacional, visando a reconstituir a construção do habitus dessas crianças e desses adolescentes, analisando os riscos a que são expostos e a forma como reagem à pressão que caracteriza o contexto do futebol. Busca também identificar as expectativas de pais/responsáveis quanto ao futuro das crianças através da experiência nesse espaço de formação. Neste estudo de casos, realizaram-se entrevistas com uma amostra de atletas com idade entre 10 e 11 anos, compreendendo 42 atletas, nascidos em 1997 e em 1998, bem como foram entrevistados 41 pais de atletas. Palavras-chave: Formação. Infância. Futebol. Trabalho infantil. Adultização. ABSTRACT This article investigates the training process on young athletes from Sport Club Internacional base soccer team, aiming to analyze these children and teenagers habits, the risk they are exposed and how theyreact under pressure. This article also identify parentes/ responsible ones about the children’s future through experience in this training área. In this case study, interviews were held with athletes and athletes’ parentes aged between ten(10) and eleven(11) years old, including 42 athletes born in 1997 and 1998 and 42 parents. Keywords: Training. Childhood, Soccer. Child Labor. Get adult.

1 O autor é Doutor em Serviço Social pela PUC de Porto Alegre (2004). Mestre (1999) e graduado em Ciências Sociais (1995). Atualmente é professor e pesquisador na graduação e na Pós-graduação em Ciência Política e Gestão Pública EAD, integrando o grupo de pesquisa Políticas Públicas, Redes e Sustentabilidade da ULBRA. Pesquisador com experiência na área das Ciências Humanas, com ênfase na análise de processos de formação da Criança e do Adolescente e do impacto das NTIC na qualidade das relações humanas e sociais. 2 O autor é Pós-doutor em Ciência Política pela UFRGS (2013). Doutor (2005), Mestre (1996) e graduado em Ciências Sociais (1993). É consultor e avaliador da CAPES, professor e pesquisador na Feevale, atuando no Programa de Pósgraduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social, é ligado ao grupo de pesquisa Metropolização e Desenvolvimento Regional. Também é professor na ULBRA, nos cursos de Ciência Política e Gestão Pública EAD, onde integra o grupo de pesquisa Políticas Públicas, Redes e Sustentabilidade.

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1 INTRODUÇÃO Neste período particularmente importante que engloba a realização dos jogos da segunda Copa do Mundo no Brasil, torna-se ainda mais oportuna a discussão sobre a forma como vêm sendo formados os principais atores desse evento internacional, os atletas. Analisamos aqui alguns pontos que distinguem a forma de formar os “artistas da bola”, cuja caminhada desde o ingresso nas escolinhas de futebol amador até a profissionalização é muito árdua, extenuante e extremamente competitiva. Na linguagem coloquial do futebol, a “bola cobra”. E cobra um preço muito alto, tendo em vista o retorno possível, real. Preço que é pago por todos os aspirantes a ídolos e pela imensa maioria que fracassa nesse sonho e seus familiares. Para vencer por essa dura estrada, há que se expender muito trabalho, dedicação, passando-se por muitas privações e, sobretudo, ter muita “sorte”. Os riscos de lesões e a enorme e crescente competitividade por um espaço nos clubes nos levam a crer que são realmente vencedores aqueles que chegam um dia a vestir a camisa de um clube profissional, e quase “heróis” aqueles que conseguem vencer nesse métier em um clube grande. Estima-se que apenas em torno de 1%3 consiga alcançar a profissionalização. Este artigo discute o processo de formação de crianças e adolescentes nas categorias de base de futebol, mais especificamente no Sport Club Internacional, lócus da pesquisa que realizamos desde o ano de 2008. É importante ressaltar que analisamos a realidade de um clube de ponta, cujo trabalho de base é referência nacional e internacional e que se constitui, por isso, em um caso exemplar de sucesso e cuidado na formação e no lançamento de jovens talentos do futebol, mas que sabemos ser uma exceção no comparativo com os demais clubes formadores do país. 2 METODOLOGIA Os dados aqui apresentados são produto de um estudo iniciado em novembro de 2008, que mapeou toda a população de atletas e profissionais

Ver reportagem em: <http://www.observatoriodainfancia. com.br/>. Exploração do trabalho infantil no futebol, Rio de Janeiro, 18 dezembro de 2007.

3

20

das categorias de base do Sport Club Internacional4. Trata-se de um estudo de casos, da análise de um caso exemplar de escola de formação de atletas. Nessa primeira fase da coleta de dados, foram aplicados questionários junto às crianças e aos adolescentes atletas do clube e seus familiares, bem como a todo o corpo técnico do clube. Para isso, foram utilizadas as próprias dependências do clube, através de uma parceria com a equipe de Assistentes Sociais5, que disponibilizou os cadastros dos atletas e cedeu suas salas para a realização das entrevistas. As entrevistas foram previamente agendadas e autorizadas através do preenchimento de termos de consentimento por parte dos pais e dos responsáveis. Foram todas gravadas e transcritas. Os dados coletados referemse a uma amostra de 42 crianças (nascidas em 97 e 98) e 41 pais/responsáveis pelos respectivos atletas. Cumpre assinalar que foram pesquisados 70% da população em tela. Além dos atletas, compõem a amostra também preparadores físicos, treinadores, fisioterapeutas, psicólogos e assistentes sociais que trabalham com as categorias de base do clube. A investigação responde ao seguinte problema de pesquisa: como vem se constituindo o processo de formação de crianças nascidas entre 1998 e 1997 das categorias de base do Sport Club Internacional em Porto Alegre? 3 FUTEBOL EM REDE: O MUNDO É UMA BOLA No contexto da sociedade pós-industrial, as transformações no mundo do trabalho impulsionadas pelo advento das novas tecnologias

São consideradas categorias de base os grupos de atletas com idade a partir de 10 anos. Até essa idade, as crianças treinam nas escolinhas, que não têm o mesmo caráter competitivo e de formação para os profissionais, que se completa por volta dos 18 anos. 5 Assistentes Sociais Bernardette Mole Richard e Patrícia Bom Vasconcellos. 4


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Tabela 1 - cidade natal dos atletas LOCAL DE NASCIMENTO

Nº RESPOSTAS

%

Porto Alegre (RS)

16

38.1

Alvorada (RS)

2

4.8

Pelotas (RS)

2

4.8

São Paulo (SP)

2

4.8

Blumenau (SC)

2

4.8

Santa Cruz do Sul (RS)

1

2.4

Viamão (RS)

1

2.4

Gravataí (RS)

1

2.4

Nova Prata (RS)

1

2.4

Montenegro (RS)

1

2.4

Santiago (RS)

1

2.4

Esteio (RS)

1

2.4

Santana do Livramento (RS)

1

2.4

Encantado (RS)

1

2.4

Igrejinha (RS)

1

2.4

Florianópolis (SC)

1

2.4

Maravilha (SC)

1

2.4

Xaxim (SC)

1

2.4

Maringá (PR)

1

2.4

Cascavel (PR)

1

2.4

Pato Branco (PR)

1

2.4

Porto Seguro (BA)

1

2.4

Bogotá (CO)

1

2.4

Total

42

100

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998).

de informação e comunicação (NTIC) modificam a dinâmica do campo esportivo6 e desse subcampo que é o futebol, complexificando o processo de formação dos jovens atletas. A nova visibilidade desse esporte traz um novo ritmo a esse subcampo, trazendo-lhe uma ruptura. Essa relação entre O campo esportivo “pode ser construído a partir de um conjunto de indicadores, como, de um lado, a distribuição dos praticantes segundo sua posição no espaço social, a distribuição das diferentes federações, segundo o número de adeptos, sua riqueza, as características sociais dos dirigentes [...] e de outro lado, o tipo de relação com corpo que ele favorece ou exige”. (BOURDIEU, 1997, p. 208).

atletas, clube e empresários está cercada de uma maior vigilância e fiscalização por parte dos órgãos públicos responsáveis. Na esteira da visibilidade uma das dimensões que distingue a Sociedade da Informação -, verifica-se uma preocupação, por exemplo, com a erradicação do trabalho infantil7 no âmbito do futebol, que motivou ações do

6

7 É toda e qualquer atividade útil, executada por crianças com menos de 16 anos, com certa regularidade (média de 15 horas por semana), com salário ou remuneração e ainda que envolva situações de risco tanto no cotidiano do trabalho como também para uma formação escolar regular (ALMEIDA NETO, 2003, p. 16).

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Ministério do Trabalho, autuando clubes e exigindo melhorias nas instalações, sobretudo, para os jovens atletas residentes nos clubes. A apuração reúne Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público dos estados e Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE). Na mira dessas instituições, estão a exploração de menores de idade, sem remuneração e contrato formal, por empresários e clubes, e a privação do convívio regular com a família e do acesso adequado à educação (FURTADO, 2008). Inúmeros aspectos associados ao processo de formação de crianças nessa atividade profissionalizante podem ser caracterizados como trabalho infantil. Exploração financeira, pressão excessiva, prejuízos físicos e formação regular (quer seja pelo ritmo de treinos e/ou mesmo pelo desinteresse pela escola), além da inversão de papéis com os pais e responsáveis, são indicadores disso. Porém, é importante ressalvar que essa é uma modalidade peculiar de trabalho infantil, pois se trata de uma atividade esportiva e da busca do sonho e do desejo de milhares de aspirantes a craques e seus familiares espalhados pelo Brasil. Na comparação com anos anteriores, constata-se que essa escola de formação que são as categorias de base dos clubes de futebol se modificou nos seus propósitos e na sua estruturação, tendo em vista o novo perfil de atleta hoje demandado pelo mercado e as novas disputas e interesses que distinguem hoje esse subcampo do campo esportivo que é o futebol. Impulsionado pelo processo de globalização econômica e cultural em curso, amplia-se a oferta de pés de obra8 e o próprio mercado de trabalho do atleta. Associada a isso, a pressão pelos resultados e pelo bom desempenho a cada treino e a cada jogo, inerente a esportes de competição, está bem presente nessa realidade. O ambiente impõe uma tensão constante por parte dos atletas, o que é agravado pela enorme rotatividade e constante apresentação de novos concorrentes, hoje vindos de todo o Brasil e também do exterior, conforme Tabela 1. A tabela acima demonstra como, na comparação com anos anteriores, acirraram-se a competitividade e a dificuldade em vencer nesse

8 Analogia feita por DAMO (2007), na relação com a mão de obra do jogador de futebol.

22

métier. O caráter estritamente formativo, que era o principal propósito das categorias de base, deu lugar à crescente competitividade e mercantilização desse espaço, em que hoje os atletas são comercializados e rendem dinheiro ao clube desde muito cedo. Esse novo cenário vem pressionando cada vez mais a infância9 dessas crianças e desses adolescentes, adultizando-os10 precocemente. O ingresso desses agentes nesse universo competitivo do futebol profissional, embora represente uma possibilidade remota, porém real de materialização de um sonho infantil e de ascensão social da criança e de sua família, exige dela uma série de interações, que, por vezes, não são condizentes com sua idade cronológica, tanto mental como fisicamente. Hoje, exige-se a antecipação de etapas no desenvolvimento dos atletas para dar conta das demandas desse subcampo (futebol). 4 A BOLA COBRA: OS RISCOS FÍSICOS Na sociedade da Terceira Revolução Industrial, a metáfora da criança como uma planta a ser cuidada, regada e que exige, portanto, proteção especial é tensionada pela metáfora do Supergaroto. Uma noção errônea sobre a capacidade e as condições das crianças em resistirem a toda e qualquer pressão (ELKIND, 2004). No caso específico dos esportes de alto desempenho, esse tensionamento está associado às concorrências interna e externa11 por espaço dentre do grupo de jogadores e pela pressão por resultados. Pressão que antes era amenizada nas categorias de base por seu caráter até certo ponto

A infância é análoga ao aprendizado da linguagem. Tem uma base biológica, mas não pode se concretizar a menos que um ambiente social a ative e a alimente [...] se as necessidades da cultura não a exigem, então a infância continua muda (POSTMAN, 1999, p. 158). 10 Quanto ao conceito de adultização: “Hoje o trabalho infantil pode ser traduzido por adultização, a adultização de crianças não é uma novidade na história humana, ela sempre existiu. A questão central é que ela não atinge mais somente a criança ‘pobre’, tem uma amplitude muito maior, é uma ‘epidemia’ que assola todas as camadas sociais” (ALMEIDA NETO, 2006, p. 118). 11 Segundo um dos avaliadores técnicos do Sport Club Internacional, somente no ano de 2008, em torno de 11 mil jovens atletas foram avaliados pelo Internacional e, desse número, apenas 60 foram aprovados em todos os testes e se tornaram atletas do Internacional. 9


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Tabela 02 - tempo em que está no Inter? RESPOSTAS

Nº RESPOSTAS

%

Até 6 meses

05

11.9

De 7 a 10 meses

09

21.9

1 ano

06

14

1 ano e 6 meses

03

7

2 anos

06

14

3 anos

09

21.9

4 anos

04

9.7

TOTAL

42

100

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

amador e de fabricação de atletas para a categoria profissional e que, hoje, aumentou e é inerente a esse processo de formação12. As inúmeras formas de pressão que recaem prematuramente sobre crianças e adolescentes no mundo do futebol invertem a lógica legal de proteção integral associada ao ECA e criam o seguinte dilema: “Qual será a melhor forma de integrar a prática do desporto e os seus efeitos benéficos na formação e desenvolvimento do organismo infantil e juvenil: para isso a criança não deve dedicar-se à competição erigida em dogma, mas a competição deve, pelo contrário, estar adaptada à infância e às suas características específicas” (PERSONNE, 2001). Nas palavras dos treinadores, o grande dilema que assola os clubes de ponta no Brasil é se devem “formar ganhando, ou ganhar formando”, porém o que se observa é que a competição e a exigência por vitórias estão na gênese desse processo. O habitus do jogador de futebol é forjado, portanto, desde tenra idade. No que tange ao conceito de habitus,

Formação é a ação pela qual algo se forma, é produzido; é a ação de formar, de organizar, de instruir, de educar e seu resultado. E formado é aquele que recebeu uma certa forma; que foi habituado conforme tal forma ou tal feitio” (MIALARET apud DESAULNIERS, 1997, p. 191).

12

Os ‘sujeitos’ são, de fato, agentes que atuam e que sabem, dotados de um senso prático, de um sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e de divisão (o que comumente chamamos de gosto), de estruturas cognitivas duradouras (que são essencialmente produto da incorporação de estruturas objetivas e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta adequada). O habitus é essa espécie de senso prático do que se deve fazer em dada situação... (BOURDIEU, 1997, p. 42).

O habitus, essa estrutura estruturada estruturante é construído através de práticas reiteradas e, embora tenda à conservação, é durável, porém não imutável. Como conceito que ilumina nosso olhar sobre essa realidade, não pode ser compreendido a não ser na relação que estabelece com o campo dentro do qual é forjado e, claro, de acordo com os capitais que estão em “jogo” nesse campo, em torno dos quais se estabelecem as disputas que distinguem os agentes, determinando sua posição no campo. Saber jogar futebol é condição para melhor disputar nesse subcampo do campo esportivo que é o futebol e, assim, ocupar uma posição mais favorável no campo. Porém, inúmeras outras habilidades e competências incidem nesse contexto e são determinantes para o sucesso do futuro atleta profissional. A tabela a seguir analisa o tempo em que as crianças estão no clube, alimentando e fomentando seu sonho de se profissionalizar. Há em torno de 46% de atletas que estão no clube há mais de 4 (quatro) anos. Esse dado é relevante 23


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Tabela 3 - Jogador de futebol tem que saber conviver com a dor? RESPOSTAS*

Nº RESPOSTAS

%

Sim

37

88

Não

5

12

TOTAL

42

100

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

Tabela 4 - Já treinou ou jogou com dor? RESPOSTAS*

Nº RESPOSTAS

%

Sim

28

66.7

Não

14

33.3

TOTAL

42

100

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

se analisarmos os possíveis efeitos de dispensas de atletas na transição das categorias13 frente ao investimento tanto dos pais quanto das crianças, de tempo e dinheiro na busca pela realização de seu sonho maior: o de se tornar jogador profissional. Embora haja uma constante rotatividade de atletas, sobretudo de uma temporada para outra, não há ampliação de espaço, ou seja, há sempre o limite de 30 a 35 vagas para atletas por categoria (determinada pelo ano do nascimento). É crescente a mobilidade do jogador de futebol desde a tenra idade, assim como o número de negociações (venda e troca de atletas) com o mercado nacional e internacional. O processo de globalização do mercado do futebol intensifica a concorrência e aumenta a dificuldade dos jovens atletas em se manterem no caminho sonhado que leva à profissionalização, como demonstra o depoimento a seguir. Eu vejo muita gente aqui no Inter mesmo, que desloca da Bahia, eu acho um absurdo fazê isso, ainda mais com criança...aí vem competi com os outros aqui. Aí dizem que porque lá não tem categoria de base, tem

Em torno de 30% dos atletas não ficam no clube de um ano para o outro, a rotatividade é muito grande e a competitividade, crescente.

13

24

sim, mas sei lá por que que vem... (mãe de atleta).

O mercado do futebol globalizou-se e se complexificou, pois, embora haja possibilidades de emprego no mercado internacional, boa parte dessas oportunidades é em países “futebolisticamente” periféricos ou em clubes de segunda e terceira divisões de mercados mais glamorosos. Mas, não é com essa expectativa que os meninos entram para os centros de formação. O projeto deles é um sonho e, como tal, nada modesto: a seleção brasileira, os grandes clubes brasileiros e europeus – o Inter, o Olympique Marseille (OM), etc. (DAMO, 2007). Outro ponto a ser destacado se refere aos prejuízos físicos oriundos do ritmo de treinos e jogos, que são inerentes ao cotidiano do atleta de alto desempenho, como é o caso das crianças e dos adolescentes envolvidos no contexto do futebol profissional. A associação entre esporte e saúde, em se tratando de esportes de alto desempenho, é um mito. A capacidade da criança e do adolescente de resistir ao ritmo de treinamentos e suportar o convívio com a dor distingue os atletas, selecionando-os. Aliás, a capacidade física distingue também adultos e crianças e é um dos pontos que caracteriza a própria infância. Quando questionados sobre se já sentiram dores nos treinos


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Tabela 5 – Já sofreu alguma lesão? RESPOSTAS

Nº RESPOSTAS

%

Sim

17

73.9

*Não

06

26.8

Total

23

100.7

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

e/ou nos jogos, é praticamente unânime a ideia de que, para ser atleta profissional, é preciso saber suportar e conviver constantemente com a dor: Não obstante o fato de ser o futebol um esporte extremamente violento, de contato físico e choque, o treino específico precoce deixa suas marcas. Na esteira dessa discussão, há toda uma produção teórica, aparentemente ignorada pela realidade dos clubes e dos governos sobre os riscos à saúde física das crianças e dos adolescentes. Nesse sentido, o francês Jaques Personne (2001) fez uma exposição completa dos danos causados pelo treino intensivo precoce. Para ele, o desporto pode se mostrar a melhor ou a pior das coisas, em função das condições como sua prática é conduzida. De fato, como argumenta o autor, praticado em excesso e sem um método, pode revelar-se prejudicial ao organismo, causando-lhe danos em alguns casos para toda a vida das crianças. É preciso levar em conta que os efeitos e os riscos do excesso de carga de trabalho físico nas crianças são diferentes em relação aos adultos, pois as estruturas são, na tenra idade, de uma particular fragilidade aos pesos mecânicos. Isso resulta da imaturidade, que os torna muito sensíveis ao excesso de treino e aos microtraumatismos. Nesse sentido, impõe-se esse esclarecimento sobre os riscos de um treino desportivo muito intensivo e muito precoce, para que se possa tentar reduzir ao mínimo a sua aplicação. Porém, trata-se quase de uma utopia, muito distante da realidade e do pensamento de dirigentes e treinadores (PERSONNE, 2001). Essa discussão é extremamente relevante quando nos deparamos com um cenário “selvagem” de garimpo de jovens atletas, jovens craques, fenômenos potenciais e os interesses de clubes, federações, pais e, sobretudo, de ávidos “empresários”. Podemos então questionar se não será criminoso aceitar o risco de destruir a saúde de inumeráveis crianças e adolescentes para descobrir

o indivíduo super, cujo organismo se demonstrará, aliás, profunda e definitivamente arruinado depois de alguns anos de procura do melhor resultado a todo o preço. E ainda, em condições muito ambíguas em que se misturam vaidade e glória, nacionalismo excessivo, chauvinismo, política no mau sentido da palavra e, algumas vezes, considerações financeiras especialmente impuras. (PERSONNE, 2001). Quando questionados a respeito de lesões, chama a atenção o alto índice, sobretudo, por tratarmos aqui de crianças com 10 e 11 anos de idade. Justifica-se, assim, que pesquisemos o tema e que possamos agir no sentido de chamar a atenção para esses riscos, pois Atrás da trama simbólica que faz parte do poder de sedução da profissão de jogador, existe um processo altamente competitivo, exigindo aproximadamente 5.000 horas de investimentos num período de dez anos, e que envolvem rotinas cansativas e monótonas... Trata-se de uma tecnologia aplicada diretamente no corpo, que se constrói ao longo do processo de espetacularização do futebol e visa converter jovens talentosos em profissionais capazes de mostrar um desempenho à altura das exigências dos torcedores... (DAMO, 2007, p. 18). [grifo dos autores].

Para além dos riscos à saúde física, há que se analisar o preço cobrado pelo risco inerente do fracasso, da frustração familiar e, sobretudo, individual. 5 FUTEBOL É PRESSÃO: OS RISCOS EMOCIONAIS Dentre os inúmeros aspectos que distinguem o futuro jogador profissional, como a necessária 25


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Tabela 6 – Como reage à pressão? RESPOSTAS

Nº RESPOSTAS

%

Não tem pressão

02

4.8

Normal / Fica tranquilo

23

54.8

Normal, mas às vezes chateia Procura melhorar cada vez

02

4.8

05

11.9

mais Se estressa / Briga em casa

01

2.4

Fica nervoso

08

19

Procura esquecer

01

2.4

TOTAL

42

100.1

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

Tabela 07- Quem mais te incentiva a ser jogador de futebol? RESPOSTAS

Nº RESPOSTAS

FREQUÊNCIA %

Pai

17

40.4

Pai e mãe

06

14.3

Pai, mãe e irmãos

07

16.3

Mãe

03

7.1

Toda a família

03

7.1

Avós e dindo

02

4.8

Pai e irmãos

01

2.4

Pai e avô

01

2.4

Mãe e avós

01

2.4

Ninguém

01

2.4

TOTAL

42

100

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

predisposição técnica (saber jogar) e física (suportar o ritmo de treinos e jogos), talvez o principal ponto se refira à sua capacidade de resistir à pressão. Suportar a pressão fará a diferença entre tornarse profissional ou ficar apenas no desejo ou na promessa de craque. Na linguagem dos jogadores, no futebol é preciso “matar um leão por dia” e, frente a essa realidade, os jovens atletas mostramse conscientes e resignados, considerando-a natural no processo de formação do jogador de futebol profissional. 26

O desejo de sucesso na futura carreira está intimamente ligado ao desejo da família. É comum observar a frustração dos pais por não terem conseguido vencer quando adolescentes no futebol e a forma como transferem essa responsabilidade aos seus filhos. A pressão, portanto, se dá, sobretudo e em primeiro lugar, pela família. Apenas um atleta trouxe o fato de que sua família não apoiava sua ideia e seu sonho de ser jogador de futebol. Vê-se, pelos dados acima, que os pais são os maiores incentivadores das crianças, o que,


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Tabela 08- Expectativa quanto ao futuro do menino no futebol profissional? RESPOSTAS*

Nº RESPOSTAS

FREQUÊNCIA%

Que seja um bom profissional

11

18

Que se realize seu sonho

08

13.1

Melhores possíveis

06

9.8

Que seja uma grande pessoa/cidadão

04

6.5

Que vença como jogador

04

6.5

Não tenho grandes expectativas

04

6.5

Que seja um grande jogador (atleta)

03

4.9

Hoje é uma diversão

03

4.9

Priorizamos o estudo

03

4.9

Que não decepcione e vá longe na carreira

02

3.3

Que seja feliz

02

3.3

Ele está aqui porque ele gosta

02

3.3

Estar sempre do lado dele, incentivar

02

3.3

O futuro dele vem de berço, o guri é bom de bola

01

1.6

Que não se decepcione no futuro

01

1.6

Que tenha boas lembranças desse momento

01

1.6

Depende da oportunidade que tiver

01

1.6

Não sabe, não respondeu

03

4.9

TOTAL

61

100

* Alguns pais deram mais de uma resposta

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

evidentemente, não exclui o desejo delas, embora influenciem nas suas escolhas e nos seus sonhos. Os dados a seguir apresentados referem-se a respostas dadas pelos responsáveis pelas crianças, corroboram esse desejo e explicam o porquê desse investimento, o que em muitos casos requer a reorganização de toda a estrutura familiar. Algumas das respostas acima chamam a atenção e ilustram os aspectos que queremos destacar. Quando um pai responde que o “o guri é bom de bola”, deve-se levar em conta que, via de regra, todos os meninos que compõem esse seleto grupo de 30 atletas de cada seleção (por faixa etária) são diferenciados. Ou seja, não se chega a esse grupo sem ter grande capacidade técnica. Porém, essa oportunidade, que efetivamente requer investimento e dedicação prematura, representa também uma chance, mesmo que remota, de

ascensão social. Daí todo o investimento feito e os sacrifícios a que todos se sujeitam. Apenas um atleta relatou que sua família não apoiava sua ideia e seu sonho de ser jogador de futebol. Via de regra, a família aposta e acredita no futuro profissional dos jovens atletas, sentimento esse que certamente se reflete na criança e tende a deixar marcas, caso haja uma frustração dessa expectativa no futuro. A tabela a seguir ilustra a ideia de que há todo um investimento voltado ao sucesso das crianças no esporte. Há uma migração das famílias para apoiar a futura carreira de seus filhos como atletas e, por vezes, toda a organização familiar se dá em função desse empreendimento, conforme a tabela 11. Chama atenção também a prática de alguns empresários que, donos de imóveis, disponibilizam os apartamentos para a moradia de alguns atletas (crianças e adolescentes). Estes são “cuidados” 27


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Tabela 09- Acredita que ele vence como jogador? RESPOSTAS

Nº RESPOSTAS

FREQUÊNCIA %

Sim

32

78.1

Depende

09

21.9

Não

0

0

TOTAL

41

100

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998).

Tabela 10- Local de moradia RESPOSTAS

Nº RESPOSTAS

FREQUÊNCIA %

Porto Alegre (RS)

26

63.1

Viamão (RS)

02

4.8

São Leopoldo (RS)

02

4.8

Taquara (RS)

01

2.4

Gravataí (RS)

01

2.4

Alvorada (RS)

01

2.4

Santa Cruz (RS)

01

2.4

Veranópolis (RS)

01

2.4

Passo Fundo (RS)

01

2.4

Encantado (RS)

01

2.4

Vale Real (RS) Santo Antônio da Patrulha

01

2.4

01

2.4

01

2.4

Maravilha (SC)

01

2.4

TOTAL

41

100

(RS) Camboriú (SC)

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

pelos responsáveis, que revezam o tempo de estada nesses imóveis junto às crianças. Nas duas próximas tabelas, os dados demonstram como essas crianças já sentem o peso da responsabilidade de terem que ajudar sua família, principalmente em retribuição ao apoio e ao investimento. Essa pressão tensiona a infância, trazendo responsabilidade e um peso que, via de regra, criança alguma tem condições de suportar. Essa é uma das dimensões que distinguem essa atividade 28

e a associa com o que conhecemos como trabalho infantil, conforme ilustra o relato a seguir: Quero ajudar muito, porque quando nós era criança, eles investiram muito, ajudaram nós, incentivaram... Às vezes eu me acho criança outras não... Jogar futebol já é coisa de meio adulto assim, porque tipo assim às vezes tu te machuca... essas coisas... (atleta 10 anos).

Chama atenção neste relato que o menino se refere à infância como algo do passado, quando, na


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Tabela 11- É importante ajudar os pais financeiramente? RESPOSTAS

Nº RESPOSTAS

FREQUÊNCIA %

Sim

38

90.4

Não

04

9.5

TOTAL

42

99.9

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

Tabela 12 - Por que é importante as crianças ajudarem os pais financeiramente? RESPOSTAS

Nº RESPOSTAS

%

Somente após os 18 anos

02

4.4

Depende, se a família for correta

01

2.2

Recompensa a ajuda que receberam quando criança / Retribuir o esforço/apoio

26

57.8

Porque os pais têm dificuldades / para não trabalharem sozinhos

03

6.7

Quando necessário / Se não têm condições

09

20

Para que eles aproveitem a vida

01

2.2

Não respondeu

03

6.7

TOTAL

45

100

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

verdade, na ocasião da entrevista, tinha apenas 10 anos de idade14. Quando questionados sobre esse desejo de retribuir ao investimento da família em sua carreira, as respostas foram as seguintes. De uma maneira geral, a família aposta e acredita no futuro profissional dos jovens, sentimento esse que se reflete na criança e tende a deixar marcas caso haja uma frustração dessa expectativa no futuro. Porém, na visão dos responsáveis, essa pressão não significa nenhum tipo de prejuízo ao processo de formação das crianças, ao contrário. Muitos consideram

Como forma de atualização dos dados, temos revisitado o clube e constatamos que esse atleta, já em 2009, não integrava mais o grupo de atletas. É sintomática a dispensa do atleta na relação com sua fala, pois é na dor, no sofrimento e na capacidade de resistir à pressão (em todas suas formas) que são forjados os jogadores profissionais.

14

positiva essa tensão e essa responsabilidade, tendo em vista que, na visão desses pais, prepara-os para o mundo competitivo em que vivem e que enfrentarão quando adultos. Quando questionados sobre esse fato, as respostas foram as seguintes. Analisando os dados da tabela 14, pudemos compreender algo que sempre nos intrigou. Como os jogadores conseguem suportar a pressão de serem vistos por milhares de pessoas, em uma atividade (um jogo) cujos riscos do fracasso são enormes e suas consequências (por tratarmos de paixões e fanatismos) são também enormes e, por vezes, definitivas para as suas carreiras? Talvez a resposta esteja na própria fala dos treinadores e das pessoas envolvidas, quando apontam que “é preciso ter o brilho no olho”, ter “a faca entre os dentes” e, simplesmente, saber que esse esporte (e, imaginamos nós, todos os esportes de alto desempenho) não é para todos, mas sim para um seleto grupo de resistentes. 29


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Tabela 13- A pressão é benéfica ao seu filho? RESPOSTAS

Nº RESPOSTAS

%

Sim

33

80.5

Às vezes

02

4.8

Não

04

9.7

Não tem pressão, não sabe

02

4.8

TOTAL

41

100

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

Tabela 14- Período em que frequenta a escola RESPOSTAS

Nº RESPOSTAS

FREQUÊNCIA %

Manhã

40

95.2

Tarde

02

4.8

TOTAL

42

100

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

Tabela 15 - Já trocou de colégio? RESPOSTAS

Nº RESPOSTAS

%

Sim

25

59.5

Não

17

40.5

TOTAL

42

100

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

6 O FUTEBOL E A FORMAÇÃO ESCOLAR Na relação que os jovens e seus familiares estabelecem com o contexto escolar, percebe-se como o futebol é prioridade na vida dessas crianças, o que faz com que, por exemplo, busquem adaptar os horários da escola em função dos dias e dos horários dos treinos. Para entendermos melhor os dados a seguir, devemos levar em conta que, para essa faixa etária (entre 10 e 11 anos), há o compromisso dos treinamentos em pelo menos três dias por semana, realizados no turno inverso ao da escola e ocupando toda a tarde, das 14h às 17h30min. E, há ainda os dias de jogos, muitos deles realizados aos finais de semana, conforme a tabela 14. 30

Muitas crianças acabam se transferindo de escola por virem de outras cidades, ou por buscarem adaptar o local da escola à proximidade do clube onde treinam. Em alguns casos, trocam a matrícula em colégios públicos de qualidade, sobretudo no interior do estado do Rio Grande do Sul, por escolas de baixa qualidade na capital. Essa decisão, por vezes, depende do tipo de negociação que os pais estabelecem com os empresários, cujos contratos das crianças são firmados desde cedo. Assim, vai depender do interesse dos pais essa escolha, pois, às vezes, estes preferem receber um valor maior em dinheiro por mês em detrimento da matrícula em uma escola particular, por exemplo. A rotatividade de escolas é demonstrada a seguir, na tabela 15.


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Tabela 16- O que aprende na escola é importante para a carreira de jogador de futebol? RESPOSTAS

Nº RESPOSTAS

%

Sim

41

100

Não

00

00

TOTAL

41

100

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

Tabela 17- Como a escola auxilia na carreira? RESPOSTAS

Nº RESPOSTAS

%

Para saber conceder entrevistas

24

28.9

Para saber lidar com o dinheiro/nºs

16

19.3

Para ser educado e disciplinado

10

12

Para ser esperto/inteligente

07

8.4

Para aprender outras línguas

12

14.4

A ser humilde

02

2.4

Ensina a se relacionar

04

4.8

A não pensar só em dinheiro

01

1.2

A ter raciocínio rápido, dentro de campo

02

2.4

Para conhecer outras culturas

01

1.2

É uma exigência do clube

01

1.2

Poder ter outra profissão se não for jogador

02

2.4

Saber sobre o corpo

01

1.2

TOTAL

83

100

Fonte: Projeto de Pesquisa O preço da bola (ULBRA, 1998)

Quando questionados sobre a importância da escola para a sua futura carreira, as crianças apontam a relação entre o aprendizado formal e aquilo que precisarão para vencerem como jogadores, como é demonstrado a seguir nas tabelas 16 e 17. Vê-se que é a escola que está a serviço do futebol e é possível visualizar as novas exigências demandadas ao futuro jogador profissional, muito além do que apenas saber jogar futebol. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS No que diz respeito especificamente a esse subcampo do campo esportivo que é o futebol, é preciso ressaltar que, associadas à importância da capacitação técnica e física, ou seja, da

predisposição da criança e do adolescente à prática futebolística (saber jogar), há a cada dia novas demandas ao processo de formação de atletas de alto desempenho. Hoje se requer um conjunto de novas habilidades com vistas a uma formação integral do atleta, como flexibilidade, autonomia, capacidade de trabalhar em grupo, postura proativa, controle emocional, entre outras, que não se instauram apenas com treinamentos técnicos, mas estão relacionadas com o desenvolvimento pessoal da criança e do adolescente. Nesse sentido, foi possível observar também o zelo do clube em relação a alguns aspectos da formação das crianças. O trabalho do Serviço Social dentro das categorias de base efetivamente valoriza e fiscaliza a presença 31


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das crianças na escola, o que é condição para que participem dos times e disputem os torneios. Essa preocupação tem relação com todo o movimento hoje observado de maior cuidado com a infância, associada aos avanços legais e à preocupação do clube com sua imagem e sua política de responsabilidade social. Porém, essas iniciativas não excluem a pressão excessiva à infância que caracteriza essa prática esportiva e, de resto, todo o esporte de competição voltado ao alto desempenho. Embora se constitua em uma oportunidade de mobilidade social, o universo que envolve o mundo do futebol tem sido extremamente cruel com a criança e com o adolescente. Não obstante todas as características e as exigências demandadas ao atleta profissional e, mais especificamente ao atleta de um esporte competitivo e popular como o futebol, é possível humanizar esse espaço de formação. Não se trata de desconhecer a dinâmica que caracteriza o campo esportivo, de abordar de maneira ingênua a forma talvez necessariamente rude como são forjados os “vencedores”, aqueles que se tornam profissionais, por exemplo. Mas trata-se, sim, de levar em conta em que medida os interesses do campo político e do campo econômico, sobretudo, podem convergir para uma qualificação desse espaço de formação de cidadãos que é o campo esportivo e, mais especificamente, as categorias de base de um clube de futebol. É nesse contexto que há hoje a possibilidade concreta de aprimorar essa escola de formação que são os clubes de futebol, através da realização de pesquisas (diagnósticos) e de projetos de intervenção junto a esses agentes. A pesquisa, ao realizar um diagnóstico dessa realidade e dessa demanda social emergente, pode subsidiar projetos de extensão voltados às famílias de atletas, a funcionários dos clubes e, claro, às próprias crianças e aos adolescentes envolvidos nessa realidade, trazendo à tona o preço a ser pago pela busca do sonho de se tornar atleta de futebol.

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REFERÊNCIAS ALMEIDA NETO, Honor de. Trabalho Infantil na Terceira Revolução Industrial. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007. E-book disponível em: <http:// www.pucrs.br/edipucrs>. 244 pp. ______. Trabalho Infantil: formação da criança jornaleira de Porto Alegre. Canoas: Editora da ULBRA, 2004. 296 pp. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus, 1997a. 231pp. ______. Coisas Ditas. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990. DAMO, Arlei Sander. Do dom à profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo: HUCITEC, 2007. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede - A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 617 pp. DESAULNIERS, Julieta Beatriz Ramos. Formação e pesquisa: condições e resultados. Veritas, Porto Alegre, Edipucrs, v. 42, n. 2, p.183-204, jun. 1997. FURTADO, Bernardino. Jogo sujo na mira. Disponível em: <http://brasilcontraapedofilia.0fr eehosting.com/2008/02/21/jogo-sujo-na-mira/>. Acesso em: 16 set. 2008. ELKIND, David. Sem Tempo de ser Criança: a Infância Estressada. Porto Alegre: Editora Artmed, 2004. PERSONNE, Jacques. Nenhuma medalha vale a saúde de uma criança. Lisboa: Livros Horizonte, 2001.


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“ANTIGA FEBEM, FASE AQUI NÃO!”. (RE)AÇÕES COLETIVAS E MOVIMENTOS CONSERVADORES

Andreia Lorena Ferraz1 Dinora Tereza Zucchetti2 Eliana Perez Gonçalves de Moura3 Gustavo Roese Sanfelice4 RESUMO Neste artigo busca-se discutir manifestações de moradores de um município no Estado do Rio Grande do Sul/ RS veiculadas nos meios de comunicação, tendo como palavra de ordem a frase: “Antiga Febem, FASE aqui não”. Tomando como ponto de partida uma investigação, resultado de estudos em nível de Mestrado, sobre a situação de jovens em conflito com a lei, egressos da Fundação de Atendimento Socioeducativo (FASE), foram realizadas entrevistas, análise documental e observações que buscaram analisar como o binômio exclusão/inclusão foi imputado aos “ex-internos”. É central, neste texto, a descrição de quem são os jovens egressos do sistema e como compreendem sua institucionalização como expressão de conflitualidade, questão necessária à análise sobre a (re)ação coletiva “FASE aqui não!”; declaração de grupos que instala um quadro local de flagrante exclusão social de sujeitos considerados “perigosos”. Palavras-chave: Jovens. Exclusão social. Ação coletiva. ABSTRACT The aim of this article is to discuss the demonstrations by residents from a city in the State of Rio Grande do Sul/RS, reported by the media, disseminating their motto: “Old FEBEM, No FASE here”. The results of master’s-level studies on the situation with youths in trouble with the law were used as a starting point for research done on former inmates of the Educational Correction Services Foundation (FASE). It is aimed in this text the description of whom are youth in the Institution systems and how they understand its institutionalization as a conflict of expression, question required for the analysis about the collective (re) action “No FASE here!” ; declaration that installs a local framework of flagrant social exclusion of persons considered “dangerous”. Keywords: Young. Social exclusion. Collective action

Mestre em Inclusão Social e Acessibilidade pela Universidade Feevale. E-mail: andreialorena@terra.com.br. Doutora em Educação pela UFRGS. Docente do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social/Feevale. Pesquisadora do CNPq. E-mail: dinora@feevale.br. 3 Doutora em Educação pela PUC/RS. Docente do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social/Feevale. E-mail: elianapgm@feevale.br. 4 Doutor em Ciências da Comunicação pela Unisinos. Docente do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social/Feevale. E-mail: sanfeliceg@feevale.br. 1 2

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1 INTRODUÇÃO Desde 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA estabelece uma ruptura paradigmática ao substituir o Código de Menores (1979) e adotar a Doutrina da Proteção Integral para amparar as crianças e os adolescentes brasileiros. Sob os auspícios da Constituição Federal (1988), o ECA apresenta aderência aos postulados internacionais de proteção à infância e à adolescência, tais como a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959) e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989). Entre os marcadores do ECA que mais interessam neste artigo, destaca-se a definição do papel da família e do Estado no que se refere à proteção. Especialmente sobre o Estado recai a responsabilidade com relação aos adolescentes infratores, nome atribuído aos que estão em conflito com a lei. Eles têm de doze (12) a dezoito (18) anos, são autores de conduta contrária à lei penal, respondem a procedimentos para apuração de seu ato, sendo passível a aplicação de medida socioeducativa, conforme o artigo 112 do ECA. A medida socioeducativa, em geral, é de caráter retributivo, daí sua natureza jurídico-penal de pena/sanção; resposta sancionatória à prática de um ato infracional, que pode ser restritiva de direito ou privativa de liberdade. Neste caso, a medida se dá com a internação em estabelecimento educacional e é a mais gravosa prevista no Estatuto e direcionada aos adolescentes daquela faixa etária. A Fundação de Atendimento Socioeducativo – FASE/RS, em consonância com o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE, é o órgão responsável pela execução das medidas socioeducativas de internação e de semiliberdade, aplicadas judicialmente aos adolescentes que cometem ato infracional. Seu propósito é reintegrar os jovens em conflito à lei por meio de ações pedagógicas para o desenvolvimento de suas capacidades intelectual, profissional e o seu retorno ao convívio familiar5. A FASE foi criada a partir da Lei Estadual nº 11.800, de 28 de maio de 2002, em substituição à Lei nº 5.747, de 17 de janeiro de 1969, que extinguiu a antiga Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor – FEBEM. Resultado de todo um reordenamento institucional, ocorreu o processo de regionalização do atendimento dos adolescentes infratores, cuja culminância, entre outros, se deu com a construção de novas unidades (PEMSEIS, 2010). 5

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Nesse contexto, jovens infratores, egressos de medidas socioeducativas e a população em geral se veem diante de alguns dilemas. A sociedade se diz vítima da violência cometida pelos jovens e exige respostas. Os jovens infratores realçam a situação de exclusão a que são submetidos. Os egressos não se sentem incluídos quando do seu retorno após a internação, instalando-se, assim, um campo de tensionamento sobre o qual duelam forças poderosas, num jogo de interesses e desentendimentos, do qual ninguém resulta satisfeito; impera a luta pelo direito próprio em que os adolescentes e a sociedade se posicionam em frentes antagônicas. É exatamente nesta “arena” que surge uma (re) ação coletiva cujo slogan se disseminou por meio da expressão “Antiga FEBEM, FASE aqui não”, a qual foi protagonizada por moradores de uma cidade no estado do Rio Grande do Sul/Brasil na tentativa de impedir a construção de uma unidade da instituição no município6. Tal movimento explicita a deliberação das chamadas “forças vivas” da comunidade que buscam impedir a construção da Fundação. Os argumentos não poderiam ser mais nimby7, ou seja, a população demanda a construção de mais presídios, mais instituições de privação de liberdade para infratores, mas não as quer como vizinhas. Esse é o fenômeno sobre o qual vamos focar a nossa análise, perguntamo-nos: quais os efeitos produzidos por uma (re)ação coletiva de rejeição, protagonizada por um grupo organizado que incide sobre sujeitos que se encontram vulnerabilizados socialmente? Tal (re)ação coletiva constitui um legítimo recurso político que expressa valores e ideologias de um determinado segmento da sociedade? Trata-se de uma (re)ação coletiva pontual que apenas manifesta a vontade de pessoas que militam por mais segurança ou expressa, num contexto específico, as contradições sociais que permeiam nossas sociedades? Trata-se de uma (re) 6 Essas questões emergem de um recorte de pesquisa de uma investigação mais ampla, resultado da Dissertação de Mestrado em Inclusão Social e Acessibilidade, realizada na Universidade Feevale durante os anos de 2012 e 2013. Na investigação foram entrevistados jovens egressos da FASE oriundos da modalidade internação, bem como analisadas diferentes formas de manifestações de setores da sociedade. 7 Sigla que em inglês significa not in my back yard, cuja livre tradução significa “não no meu quintal”.


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ação coletiva que, visando a manter interesses privados, pode fazer subsumir interesses coletivos? Nesse cenário, o presente artigo pretende trazer algumas respostas às questões acima, cotejando a ampla análise - também realizada na pesquisa - das manifestações que revelam o que pensam e como (re)agem moradores da cidade quanto à implantação de uma unidade da FASE no município. 2 OS JOVENS EGRESSOS. QUEM SÃO ELES? A pesquisa de Mestrado, de natureza qualitativa, cujos dados primários são utilizados neste artigo, merece certo detalhamento, uma vez que a caracterização dos sujeitos investigados é o mote, no nosso entendimento, para as manifestações de caráter conservador, objeto de análise neste texto. São sete (7) jovens, do total de dez (10) egressos da FASE que cumpriram medidas socioeducativas na modalidade internação, de acordo com sentença judicial transitada em julgado, oriundos do município em questão e que consentiram em participar da investigação, os sujeitos sobre os quais recai a investigação. Todos retornarnaram ao município no ano de 2010, na condição de Liberdade Assistida - LA8, após a internação que ocorreu na capital do estado; desde então, deveriam ficar sob o monitoramento do Juizado da Infância e da Juventude até cumprir a medida socioeducativa no seu teor. A coleta de dados com os sete (7) jovens foi feita a partir de entrevistas semiestruturadas realizadas em local escolhido por eles9 (FERRAZ, 2013). Importante destacar, inicialmente, que, em 2013, época da realização da entrevista, todos

8 Liberdade Assistida – LA, conforme ECA, é a medida que predispõe um conjunto de ações personalizadas, que permitem a disposição de programas pedagógicos individualizados, orientadores adequados, respeitando as circunstâncias inerentes a cada adolescente, que permitiram a realização da infração, como determina o Art. 118 do ECA. O regime também tem caráter pedagógico, visando à inserção do jovem no convívio familiar e comunitário, ao seu desenvolvimento escolar e à sua integração profissional. Quando colocado em liberdade, pós-internação, por um período a ser definido, todo adolescente infrator deverá permanecer em LA (FERRAZ, 2013). 9 A fim de resguardar os dados de identificação dos jovens, eles passam a ser identificados, neste texto, por letras do alfabeto.

haviam atingido a maioridade penal: três (03) tinham 20 anos, três (03) estavam com 22 anos e um (01) completara 23 anos. Já não eram mais adolescentes, não precisavam mais da presença de um representante legal para conversar, mas muitos fizeram questão de trazer um membro da família para a entrevista (esposa, filho e até mesmo irmãos). Havia, entre eles, uma preocupação latente de que as entrevistas se convertessem em interrogatórios: “eu já contei tantas vezes a minha vida”, diz o jovem A. Desconfiando tratar-se de uma operação policial, pergunta o jovem F: “a entrevista faz parte da investigação?” A pesquisa de Mestrado constatou também que esses jovens têm muito mais em comum do que apenas serem egressos do sistema de medida socioeducativas. Antes da internação, possuíam 18 anos incompletos, viviam na periferia da cidade, tinham baixa escolaridade e frágil vínculo com a escola. Trabalhavam esporadicamente. Alguns possuíam histórico de uso de drogas e relataram dificuldades no convívio familiar. Todos já tinham passagens pela polícia, vivenciando uma rotina que incluía idas à Delegacia, à Promotoria de Justiça e ao Juizado da Infância e Juventude, bem como rápidas passadas pela escola. Os jovens que praticaram delito de roubo tinham envolvimento com drogas, como, por exemplo, posse de entorpecentes. Aqueles que eram vinculados ao tráfico também estavam envolvidos noutras apreensões: ao mesmo tempo que o tráfico servia para sustentar o vício, também os mantinha em delito. Após o período de internação, gozando da prerrogativa da Liberdade Assistida – LA, nenhum deles estava estudando e somente um (01) havia completado o ensino de educação básica. “Só voltei porque era no CIEP10, lá tem bastante galera maior estudando. Fica chato um grandão feito eu estudar com criancinhas [riso]. No CIEP já são tudo criado, daí eu fiquei lá e estudei até o final da oitava”, relata o jovem E.

Os CIEPs – Centro Integrado de Educação Pública - é uma modalidade de escola que se caracteriza por ter sido construída na década de 1990, nas periferias das grandes cidades, em alguns casos mantendo experiências de tempo integral, contando para isso com uma arquitetura particular projetada por Oscar Niemayer.

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De todos, um (01) estava trabalhando, três (03) estavam desempregados e dois (02) estavam presos respondendo por crime de assalto e tráfico de drogas praticados em LA. “Se eu não trabalhar, não tenho comida e aí vou roubar”, justifica-se o jovem B. Dos sete (7), seis (06) reincidiram em crimes de tráfico de drogas e roubos. De forma geral, podemos dizer que essas vidas têm a marca da precariedade, no sentido atribuído por Castel (2008, p. 10). A evocação conhecida destes jovens faz deles os símbolos da inutilidade pública (eles seriam incapazes de integrar-se a ordem produtiva) e da periculosidade (são considerados os principais responsáveis pelo crescimento da insegurança). Se existe em nossa sociedade um grupo colocado em situação de alteridade total e sobre o qual se cristalizam os medos e as rejeições, é exatamente junto a estes ‘jovens da periferia’.

Precariedade que, inclusive, serve muitas vezes para justificar os delitos praticados numa sociedade que discrimina. O jovem G refere-se a outros jovens da cidade como os “‘riquinhos do centro’. Eles nunca foram para a FASE e nem tiveram filhos por lá. Nem todos têm uma vida boa, carro, dinheiro [...]”. Ou, como afirma Castel (2008), a sociedade discrimina antes, dada a sua existência territorializada, e segrega depois na ausência de qualquer perspectiva de futuro. 3 A FASE NARRADA PELO EGRESSO Em que pese a função socioeducativa e restauradora da FASE, os jovens, ao falarem da sua institucionalização, o fazem demonstrando suas angústias geradoras de conceitos. Daí que se expressar em relação ao futuro, a sonhos, a desejos, passa por criticar uma sociedade que os puniu e que sequer demonstra preocupação, segundo os próprios jovens, com sua incapacidade em ressocializar, para utilizar uma expressão que refere um dos propósitos da existência da instituição. Nesse contexto, é produzido um discurso que reforça a existência de práticas, no interior da instituição, que perpetuam antigos tratamentos, em oposição aos novos direitos expressos nas legislações. Repudiar a forma como foi tratado é um direito do jovem que não recebeu o que devia; sentimentos de revolta são comuns entre eles, 36

como, também é recorrente serem taxativos quando dizem que cumpriram pena/prisão na FASE. “Vai fazer o que lá? Lá tu sai pior do que entra. Aquilo é um inferno [...] com gente tipo nós, querem é ferrar. Ninguém quer ajudar”, diz o jovem C. “Lá não se aprende nada, a tendência é piorar. Aquilo é pior que qualquer coisa. Se o inferno existe, é aquilo”, refere G. “Gostaria que a FASE fosse diferente, aquilo é pior que prisão, os monitores uns carrascos que batem sem medida na gurizada. Se você não tem família que te apoia aqui fora, você sai pior do que entra”, afirma o jovem D. “A juíza disse que eu ia ser internado, falou para a mãe. Aí me levaram para a FASE. Passou uns dias e a mãe foi me visitar (rindo) e quando ela me viu disse: ‘tu tá é preso! Isso aqui é uma cadeia, meu filho’. E é, né?”, desabafa A. De acordo com os entrevistados, a FASE é uma prisão associada à ideia de inferno, que no período da internação nada lhes ofereceu além de castigos e falta de oportunidades. “Lá tu só leva pau. Aquilo não é lugar de gente, lá eu conheci o capeta, o verdadeiro inferno”, ainda contribui C. Também referem que não receberam nenhum tipo de atendimento para ‘retornar para a sociedade’ e não tiveram a oportunidade de fazer cursos profissionalizantes. Resumindo, os jovens consideram o tempo que permaneceram na instituição como um tempo perdido. A FASE é uma prisão, lá o tempo só passa. O que eles te ensinam é só para passar o tempo”, sentencia o jovem E. Ferindo a própria legislação, que ampara a ressocialização, conforme previsto no Programa de Execução de Medidas Socioeducativas e Semiliberdade – PEMSEIS (2010), os jovens referem que não receberam ajuda assistencial do Estado, não foram vistos pelo Judiciário, tampouco foram assistidos por organizações não governamentais previamente contratadas pelo município para acompanhar o retorno. Num único caso em que houve acompanhamento, o relato do jovem E diz: “o trabalho na ONG era pena, foi ordem do juiz, mas eu até gostei de ensinar a fazer origami para os outros guris que também estavam lá para cumprir hora. Nunca ganhei ajuda do Estado, se eu quisesse comer, tinha que me virar, só não voltei para o crime porque minha irmã me deu conselho e por minha mãe que já morreu”. Ou como afirma A: “esse país é uma droga, não tem oportunidade de nada. Ninguém do juizado me ajudou. Quem me


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ajudou foi a minha família”. Assim sendo, apesar de conflitos familiares, todos os jovens foram unânimes em colocar a família como único ponto de apoio durante a interação e mesmo depois dela, quando os familiares foram a referência para o retorno. Na fala dos sujeitos da pesquisa, sem exceção, a permanência na FASE parece ser não somente um tempo de supressão de liberdade para os jovens, mas um tempo de desintegração social. Longe de suas famílias, mesmo que mantendo com elas algum tipo de contato, vivendo em pequenas unidades incomunicáveis entre si, excluídos de qualquer sistema de proteção – ainda que o ECA encarne a doutrina de proteção integral –, os jovens se veem diante do que Castel (1997) chama de déficit de integração. Essa realidade vem muito bem descrita no estudo realizado por Barbosa (2013) em sua dissertação de Mestrado intitulada “Ecos do passado: dna da situação irregular ressoando na proteção integral”. Nele é demonstrado que a passagem da doutrina da situação irregular, presente no extinto Código de Menores, para a da proteção integral, base epistemológica do ECA, no que se refere às medidas socioeducativas, em especial no que tange à privação de liberdade, apresenta caráter fortemente coercitivo, prevalecendo este sobre o seu conteúdo pedagógico. Do resultado da investigação, conclui que há ‘uma mistura de conceitos entre novos e velhos paradigmas. Os depoimentos indicam o conflito entre duas lógicas, a pedagógica e a punitiva e a forma como os profissionais entendem suas próprias ações [...] Por um lado se tem os dispositivos implantados pelo Estado, nas últimas décadas na garantia de direitos a população infanto-juvenil, por outro, a bagagem cultural, os códigos, os símbolos e valores que conformam estes segmentos sociais refletem no cotidiano das instituições voltadas às medidas socioeducativas’ (p. 189 e p. 193).

Assim sendo, não é possível esperar que esses jovens tenham um conceito diferente do que foi narrado referente à FASE. Eles estavam “presos”, porque privados de liberdade; não estavam recebendo “tratamento”, pois, se o tivessem, seu retorno poderia ser o marcador de mudanças; não

foram “acompanhados” como egressos do sistema, conforme prevê a legislação, muito provavelmente porque são considerados o lixo da sociedade, refugos humanos, no dizer de Bauman (2005). 3 A EXPRESSÃO DA REJEIÇÃO E DA EXCLUSÃO SOCIAL: (RE)AÇÕES COLETIVAS E/OU MOVIMENTOS SOCIAIS O ancoradouro das questões que pretendemos aqui discutir é um faixa11 fixada logo na entrada da cidade que convida a população para uma audiência pública, dizendo não à construção de uma unidade da FASE no município num chamamento à mobilização em torno de uma máxima: “A FASE é a antiga Febem, portanto, não queremos nada disto por aqui”12. Expressão da opinião de moradores da cidade, lideranças comunitárias e empresariais, que passam a compor um diálogo virtual registrado num website da cidade e que se empresta como materialidade empírica para o recurso de análise como registro da oposição à instalação da unidade da instituição. O problema não é ter uma penitenciária e uma FASE instalada na cidade, o problema é que essas pessoas vêm de tudo quanto é canto e vêm os parentes morar aqui, e quando vão para o semiaberto, ficam praticando crimes aqui. O município aumentou a criminalidade depois que a Modulada13 começou a funcionar. (Morador A). O R. é a favor da FASE porque ela não será construída no lado da casa dele. Pimenta no [olhos] dos outros é colírio. Esse discurso simplista geralmente é a voz dos políticos da situação. Enquanto ganhamos uma FASE, o hospital que terá que atender esses novos cidadãos nem UTI tem. A ciclovia não sai do papel. As lagoas

Espécie de mídia colocada em espaços públicos utilizada, principalmente, com a finalidade de comercialização e propaganda. 12 Sede de um Juizado Regional da Infância e Juventude responsável pela execução de medidas socioeducativas, a FASE poderia contribuir para a redução da superlotação de unidades da região metropolitana e da capital do estado. 13 Modalidade arquitetônica de penitenciárias construídas por módulos. 11

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continuam podres. Quem é mais velho sabe: a construção da Modulada foi um erro (o município poderia viver muito bem sem ela) e a vinda da FASE também será. Quem mora em cidade grande sabe o que é ser “vizinho” de um empreendimento desses. (Morador B) Ainda bem que não moro mais em Osório. Já não basta o erro da construção da penitenciária (Não existe estatística nenhuma sobre o aumento da criminalidade e da violência no município e no litoral norte inteiro após a instalação? Por quê?). Se a população não se organizar, o poder público vai transformar bairros pacatos e ainda seguros em verdadeiros campos de concentração. [por outro lado] o cidadão de bem aumenta os muros e coloca cerca elétrica e concertinas, se trancando em casa. (Morador C) Fecha o Juizado Regional da Infância e daí não precisa mais da FASE. (Morador D).

Somam-se aos registros da Web programas de rádio, além de adesivos colados nos carros e em vitrines de estabelecimentos comerciais da cidade dando visibilidade ao tema que tomou conta das conversas de bar e até de debates nas escolas. Aparentemente, uma (re)ação coletiva aproximou opiniões e interesses de setores distintos, desde os mais tradicionais até os setores populares, produzindo a (falsa) impressão de uma opinião pública uníssona. Latente desde 2010, essa mobilização evidenciou a visão de parte dos moradores da cidade que se coloca contra a implantação da FASE, sob argumentos tais como: a FASE é uma penitenciária; a qualidade de vida e a segurança dos moradores da cidade estão ameaçadas; a instalação da unidade vai repercutir sobre o preço dos imóveis e terrenos no bairro onde será construída. Ação coletiva que veio se constituindo num fenômeno baseado em argumentos de clara rejeição à diferença, carregados de fortes matizes de conservadorismo e de intolerância. As manifestações no website demonstram que 70% dos internautas que se expressaram nas redes sociais são contrários à instalação da FASE no município, percentual semelhante à opinião de vereadores, informada pessoalmente ou através de suas assessorias, que também anunciam 38

contrariedade com relação à instalação do equipamento social no município14. Diante disso, entendemos que, mesmo como expressão de um fenômeno local e relativo a um território específico, é flagrante o seu efeito de paralização de qualquer força de acolhimento à novidade e de transformação no que tange à proteção dos mais vulneráveis socialmente. Nesse sentido, cremos constituir-se uma ação coletiva (ação civil) voltada à defesa de interesses particulares e imediatos, relativos a direitos restritos a uma categoria ou um grupo social. Aqui, a noção de ação coletiva é entendida, por nós, como distinta da definição de movimentos sociais, isso porque, se, por vezes, essa modalidade de ações compõe os modos de organização de movimentos sociais, noutras vezes, reduz-se a manifestações mais ou menos pontuais que são marcadamente discriminatórias e excludentes, reflexão que nos alinha com Gohn (2010, p. 10) e seus estudos sobre as teorias da ação social. Nelas a autoria distingue a ação coletiva de movimentos sociais, argumentando que “[...]a realidade se alterou, novíssimos sujeitos entraram em cena, novas formas de ação social coletiva emergiram – muitas vezes denominadas apenas ‘mobilização social’ - novas categorias de análises foram criadas e as teorias também se ampliaram.”. Na medida em que a noção de ação coletiva resulta de novos “marcos referenciais explicativos sobre as ações sociais dos seres humanos, entre si e com a sociedade”, segundo Gohn (2010, p. 10), opera-se uma abertura conceitual que nos permite abordar fenômenos locais, parciais, restritos a um território específico de forma independente do modo como, tradicionalmente, têm sido examinados os movimentos sociais. Isso porque, de acordo com Gohn (2010), um movimento social é a [...] expressão de uma ação coletiva e decorre de uma luta sociopolítica, econômica ou cultural. Usualmente ele tem os seguintes elementos constituintes: demandas que configuram sua identidade; adversários e aliados; bases, lideranças

Informações colhidas no ano de 2013 no website analisado, que, com o intuito de preservar a identidade dos que nela se manifestaram, optou-se por não identificar o endereço eletrônico.

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e assessorias – que se organizam em articuladores e articulações e formam redes de mobilização; práticas comunicativas diversas que vão da oralidade direta aos modernos recursos tecnológicos; projetos e visões de mundo que dão suporte às suas demandas; e culturas próprias nas formas como sustentam e encaminham suas reivindicações (p. 14).

Não obstante, é preciso considerar o caráter polissêmico das palavras, lembrando que, por exemplo, no campo jurídico, a expressão “ação coletiva” designa um procedimento especial, que segue o rito ordinário do Código de Processo Civil. Além disso, é preciso mencionar que os movimentos sociais, ainda que, aparentemente, defendam bandeiras de lutas ligadas a interesses e/ou direitos particulares (Movimento Sem Terra - MST; Economia Popular e Solidária - EPSol, por exemplo), geralmente, visam a promover uma ruptura histórica mais ampla. Por definição, a particularidade das lutas dos movimentos sociais remete a um campo de tensionamento que coloca sob suspeita as/ os lógicas/valores dominantes que sustentam a sociedade. Nesse sentido, diferentemente da noção de (re)ação coletiva, os movimentos sociais tendem a promover uma discussão mais revolucionária que, indiretamente, se coloca como uma questão social de interesse universal. Um movimento social, embora tenha sua gênese em uma ação coletiva, dela pode se diferenciar na medida em que se expande aspirando a interesses coletivos e promovendo a identificação com valores, tais como igualdade e justiça social. Já a (re)ação coletiva, mesmo que seus efeitos sejam de longo alcance, pode ser a expressão de um embate pela manutenção de interesses particulares, construídos sobre a desigualdade. Reconhecemos com Gohn (2010, p. 12) que vivemos tempos de importantes “alterações nas formas de mobilização – de cima para baixo – e na forma de atuação – agora em redes – e o alargamento das fronteiras dos conflitos e tensões sociais em virtude da nova geopolítica que a globalização econômica e cultural tem gerado”. Mas, não podemos desconsiderar que uma ação coletiva não é uma coisa que se valoriza pelo que os movimentos dizem de si - faz-se necessário descobrir o sistema de relações internas e externas que constituem a ação - e nem pode ser nomeada

de movimento social, porque não produz efeitos de grande proporção, no sentido de transformar a sociedade (MELUCCI, 1989). 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo de Mestrado realizado e o recorte da pesquisa objeto de análise neste artigo nos colocam diante da dura realidade vivida por jovens egressos do sistema socioeducativo. Dela identificamos que o lugar que esses jovens ocupam na sociedade – mesmo antes de envolverem-se em delitos – é comparável à ideia de margem: nem dentro, nem fora, resultado do que é próprio das sociedades e seus interesses; dramas juvenis da atualidade, conforme enfatiza Castel (2008). Uma ideia de margem que contém em si a prerrogativa da exclusão social, uma vez que fazer parte, estar integrado, incluído no mundo da produção do trabalho e da cultura é algo quase que impensável para esses jovens. A cada situação-limite em que se envolvem ou se veem envolvidos, mais à margem são colocados. É importante ressaltar que, ao colocarmos essa problemática em escala, passamos a falar de muitos, de outros milhares de jovens que vivem situação semelhante aos aqui referidos. Estudos realizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) demonstram o perfil dos jovens brasileiros que passam por medidas de ressocialização no Brasil, a maioria é de classe média baixa, oriunda de famílias reorganizadas, com pouca escolaridade e grande parte envolvida com drogas (BRASIL, 2012). No que tange à esfera do direito, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, conforme o art. 119, incisos I a IV, estabelece a necessidade da reeducação e reintegração do adolescente infrator através das medidas socioeducativas e de proteção. Ações essas que devem contemplar, também, a promoção social da família, fornecendo orientação e inserindo os jovens em programa oficial ou comunitário de auxílio e assistência, bem como supervisionando a frequência e o aproveitamento escolar. Entretanto, mesmo diante de políticas (sociais) a partir de onde se desenha o Plano Individual de Atendimento (PIA), entre outras ações com vistas à saída do jovem do sistema, em geral realizadas nos municípios por Organizações Não Governamentais (ONGs) – parceiras do poder público municipal para acompanhar a reintegração 39


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do jovem –, as estratégias socioeducativas apresentam-se pouco eficientes. A realidade observada entre os sujeitos da pesquisa se traduz em baixa efetividade social. Além do que, muitas vezes, nos vemos diante da inexistência de ações concretas que acabam por contribuir com a elevação dos indicadores de reincidência, situação também verificada entre os jovens investigados. Por outro lado, a família, como fonte de apoio, demonstra a importância do fortalecimento dos vínculos entre os jovens e seus responsáveis. A presença destes (que parece se reduzir à figura da mãe e de irmãos) aparece como o grande suporte durante e posteriormente à internação, comparativamente à ineficaz presença do Estado, seja ela direta ou indiretamente, através de seus serviços terceirizados. Daí que a contradição quase irreal por seu absurdo é: se, de um lado, temos legislações avançadas no que tange à proteção dos jovens em conflito com a lei, incluindo a presença de instituições e suas forças de ordem que, em tese, buscam consolidar a atenção especializada, de outro, vê-se a sociedade construir modos de exclusão de cidadãos considerados perigosos. No caso, não são somente os egressos que se quer excluídos, nem somente suas famílias, mas preventivamente excluir aqueles que venham a migrar caso confirmada a construção da FASE. Os pais dos filhos que, por ventura, venham a cumprir medida socioeducativa e, no limite de suas condições, sirvam de apoio para os (futuros) internos passam a representar o que se quer evitado, distanciado, excluído. Aproximamo-nos aqui, novamente, de Castel (1997), para quem a ideia de exclusão social não se confunde com o conceito de pobreza. O excluído, para o autor, é aquele que não tem proteção nem participa socialmente, tem baixa integração social, caracterizada pela ausência de trabalho e de poder. Daí que a realidade dos jovens e suas famílias, em seus déficits de integração, e os “cidadãos da cidade”, com suas lógicas excludentes a tudo e todos que representam desordem, se debatem em campos de forças opostas. Enquanto os primeiros lutam por incluir-se em padrões, mesmo que mínimos, de cidadania, os segundos manifestam-se através de mídias visuais, como faixas, decalques em carros e vitrines de lojas, utilizando-se de uma crescente adesão às mídias virtuais, todas estratégias de evidente exclusão social. 40

Vemo-nos diante de manifestações que contrariam a lógica da cidadania, porque impedem a permanência do jovem infrator na cidade de origem quando no cumprimento da pena/sanção, usufruindo, por exemplo, de uma maior proximidade de seus familiares e, portanto, preservando laços afetivos, de antemão fragilizados pelas condições sócio-familiares. Portanto, as manifestações explicitam as contradições de uma sociedade que, ao mesmo tempo que busca garantir direitos sociais, exclui parte dos cidadãos, fenômeno que atualiza as marcas de uma sociedade colonial, escravagista e patrimonialista, reeditadas na (re)ação coletiva “FASE aqui não”. O preconceito exposto evidencia, também, as dificuldades de atenção a adolescentes envolvidos em atos infracionais quando no período da chamada ressocialização, mesmo que essa proteção esteja garantida por lei e formalmente contratada entre Estado, poderes locais e terceiro setor e/ou ONGs na área da assistencias social. Isso posto, ressaltamos que essa complexa teia de (des) proteção, quando associada às manifestações de evidente caracateristicas conservadoras, de clara índole reativa e reacionária, sugere que estamos diante de uma evidente (re)ção coletiva àqueles que causam medo à sociedade.

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A RELAÇÃO DO BRINQUEDO COM A EDUCAÇÃO

Raquel Dilly1 RESUMO Este artigo tem como objetivo trazer algumas reflexões sobre a relação que podemos estabelecer entre o brinquedo e a educação. Para iniciar a reflexão, procura-se compreender como essas relações se estabelecem a partir de sistemas de significados, que se constroem e se reconstroem constante e diferentemente dentro de cada grupo social e cultural. Buscaram-se algumas referências historiográficas para situar a inserção do brinquedo como atividade lúdica na educação, estabelecendo a sua relação com a visão de infância, de criança e de função educativa dentro de diferentes contextos. Por fim, reflete-se como essa relação se estabelece hoje, numa sociedade marcada pela globalização, comunicação e multiplicação de brinquedos, procurando analisar criticamente o efeito dessa relação na forma de se ver e ser criança. Palavras-chave: Brinquedo. Educação. Infância. Criança. Cultura. ABSTRACT This article aims at bringing up some reflections about the relations one may establish between toys and education. In order to start this reflection, it is looked for understanding how such relations are established from meaning systems, which are built and rebuilt constantly and differently inside each social group. Some historiographical references were searched to situate the toy insertion as a playful task in education, establishing its relation to the view of childhood, child and educational function inside each context. Finally, it is reflected on how this relation is built today, in a society marked by globalization, communication and multiplication of toys, trying to analyze critically the effect of such relationship in our own way of seeing and being a child. Keywords: Toy. Education. Child. Culture.

Pedagoga (Feevale), especialista em Educação Infantil e Anos Iniciais (FACCAT). Mestre em Teologia: Religião e Educação (EST). Professora no Curso Normal em Nível Médio no Instituto de Educação Ivoti (IEI) e no Curso de Pedagogia e Pós-graduação do Instituto Superior de Educação Ivoti (ISEI). Doutoranda em Processos e Manifestações Culturais pela Feevale. Assessora pedagógica pela Aprendente: gestão da aprendizagem. E-mail: raqueldilly@terra.com.br. 1

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1 INTRODUÇÃO Que relações podemos estabelecer entre o brinquedo e a educação? Quando, como e por que essas relações se estabelecem? Elas se estabelecem? Para procurar responder a esses questionamentos e tentar compreender as diferentes relações que podemos estabelecer entre o brinquedo e a educação, temos que considerar que tanto o brinquedo quanto a educação têm significados e funções diferentes, dependendo do momento e do contexto de cada sociedade. Nesse sentido, seria impossível conceituar e estabelecer apenas uma relação entre brinquedo e educação, uma vez que ambos os conceitos são construídos dentro de um sistema de significados, ou seja, lidamos com noções abertas, polissêmicas e, às vezes, ambíguas, pois são consituídas num tempo que se constrói e se reconstrói constantemente. Principalmente na educação, o brinquedo tem oscilado constantemente em relação a sua importância e sua função, entre a frivolidade e a seriedade. Ele está diretamente relacionado à atividade lúdica no contexto educacional e esta nem sempre é concebida de forma positiva no processo de ensino. Isso nos faz perceber que falar da relação brinquedo e educação não é um ato isolado, mas subentende um grupo social para o qual essa relação faz sentido. Significa dizer que essa relação nem sempre se deu e se dá da mesma forma e que o brinquedo e as atividades lúdicas nem sempre foram vistos de forma favorável no processo educativo, como hoje os concebemos. Também é importante considerar que, ao estabelecer relação entre o brinquedo e a educação, faz-se necessário analisar a inserção e a relação existente entre o lúdico e a educação. Nesse sentido, também se torna necessário distinguir ou esclarecer a definição ou relação conceitual existente entre o brinquedo e a atividade lúdica. Considerando ambos os conceitos como construções sociais produzidas por meio de um sistema de sentidos e significados dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, não podemos reduzi-los e restringi-los a definições estanques, mas é importante situá-los e esclarecê-los na dimensão adotada neste texto. Nessa concepção, compreende-se o brinquedo como o suporte da brincadeira, tendo uma dimensão material, cultural e técnica e relacionado diretamente com a criança. Já a atividade lúdica, como a ação que é desempenhada ao concretizar as regras da brincadeira e ao se utilizar do brinquedo, 44

permite a fruição, a imaginação e a espontaneidade de quem brinca. 2 RELAÇÃO EDUCATIVA ENTRE O BRINQUEDO E A EDUCAÇÃO Cada época e contexto criam e produzem cultura a partir da qual emergem diferentes conceitos de criança, infância, e por consequência, sua educação e seus brinquedos. Assim, o brinquedo traz e contém uma visão e concepção de infância e criança e está associado a todo um contexto de valores, projeções e crenças da sociedade. Ao mesmo tempo, segundo Kishimoto (2003), traz aspirações e percepções próprias do sujeito que o constrói, escolhe, disponibiliza, cria ou fabrica, incorporando memórias de seu tempo de infância. Por tais razões, o brinquedo contém sempre uma conotação de criança, conforme cada época, e uma referência do tempo de infância do adulto criador, introduzindo imagens que variam de acordo com a sua cultura. E é por isso que o brinquedo tem sempre uma dimensão cultural, variando sua função técnica e sua criação material, de acordo com o seu contexto histórico, espacial e temporal. Ao trazer o termo brinquedo para a dimensão material e técnica como função, significado e características diferenciadas, construídas a partir de diferentes culturas, referimo-nos a ele como objeto materializado, utilizado como suporte da atividade lúdica. Materializado, como significado de quem o introduz teorica e intencionalmente no campo educativo tanto quanto de quem o utiliza e o manipula na prática. E, nesse sentido, tornase imprescindível procurar compreender como e quando o brinquedo se insere como suporte de atividade pedagógica lúdica na educação. 3 A ATIVIDADE LÚDICA NA EDUCAÇÃO A atividade lúdica inserida e incorporada através de diferentes suportes, como os brinquedos, nem sempre foi concebida de forma favorável no processo educativo, assim como nem sempre foi ou ainda é definida, inserida e utilizada da mesma forma. Isso quer dizer que a relação que se estabelece entre o brinquedo e a educação se constrói e se diversifica segundo numerosos critérios, conforme o meio social e cultural. Cada época e contexto são marcados por inúmeras diferenças, embora possam ter alguns elementos em comum. Por isso, não significa que teremos apenas formas únicas de


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estabelecer relações entre o brinquedo e a atividade lúdica. Partindo desse pressuposto, não nos é possível narrar acontecimentos e fatos, como se houvessem percorrido percursos lineares, ou seja, como se houvesse apenas uma história ou relação estabelecida entre educação e brinquedo de forma crescente, mas o que podemos constatar são muitas histórias que se construíram de modo diferente, numa cronologia de tempo. Isso demonstra que, ao mesmo tempo em que as ideias sobre essa relação estivessem presentes, não se estabeleciam da mesma forma em todos os contextos e, por isso, não podem ser consideradas e definidas como únicas e verdadeiras, mas apenas como importantes referências na construção dessa história e dessa relação. No entanto, reconhece-se, através de diferentes representações importantes, momentos e trajetórias que marcaram não apenas tempos e lugares, mas principalmente pessoas e que nos podem ser recontados e que nos servem como importantes referências do passado, na busca da compreensão do presente e reflexão de possibilidades futuras acerca da relação entre o brinquedo e a educação. Assim, torna-se fundamental conhecer e estudar algumas abordagens do passado, quando o brinquedo, através da atividade lúdica, é inserido e reconhecido como parte do projeto educativo. Dessa forma, faz-se necessário trazer como importante referência dessa relação a criação das primeiras instituições educativas infantis. A criação das primeiras instituições educativas para as crianças deu-se no Romantismo (séculos XVII e XIX), quando se enfatizou a necessidade de separar a vida infantil da vida adulta. Evidenciou-se, então, uma grande preocupação com as crianças, concebendoas como o futuro da nação e, por isso, viu-se a necessidade de serem educadas, além de cuidadas. Nesse sentido, tais escolas, além de se remeterem a uma instituição de caridade, mostravam uma preocupação educativa, pois acreditavam que essa nova instituição infantil ou pequena escola (como eram chamadas) tinham a finalidade “de favorecer o desenvolvimento moral e intelectual das crianças desde os primeiros anos de sua existência” (BROUGÉRE, 1998, p. 105). Percebe-se, nessa época e situação, uma forte preocupação em tornar a criança um ser digno de receber uma educação, transformando a imagem que se tinha da criança

anteriormente. A criança, dentro dessa concepção de educação, era vista como frágil ainda, mas que precisaria ser educada. Essa visão se evidencia na fala de Brougére (1998, p. 107) quando traz que a atividade lúdica tinha o direito de entrar na escola, pois A inteligência das crianças, tão frágil ainda deverá ser gradualmente desenvolvida sem que jamais seja fatigada por uma aplicação demasiado intensa. Chegar-se-á a isso, entremeando seu tranbalho com muita recreação, dando algumas vezes ao próprio trabalho a forma de entretenimento.

A criação e a instituição dessas instituições infantis eram o reflexo de uma visão da época, introduzindo uma nova concepção de criança. Nesse contexto, a atividade lúdica ganhou um importante espaço no projeto educativo, mas como recreação e como uma forma e estratégia de ensino de diferentes habilidades, posturas e atitudes, através de jogos corporais e cantados, não devendo, contudo, substituir as lições morais e, muito menos, absorver o tempo do estudo. Segundo Brougére (1998, p. 107), encontramos nesse contexto um duplo papel da atividade lúdica: “refazer as forças do aluno para que possa voltar ao trabalho, fazer passar sob aparência de jogo trabalhos áridos”. No entanto, com o reconhecimento da necessidade da recreação no projeto educativo, os regulamentos da época já começavam a prover alguns brinquedos, como baldes, pás e carrinhos para possibilitar a atividade lúdica da criança (BROUGÉRE, 1998). A introdução e a presença dos brinquedos não foram tão bem compreendidas, foram contestadas por muitos que acreditavam que a disponibilidade de tais materias poderia desenvolver a iniciativa e a autonomia da criança face ao objeto. Isso demonstra que nesse contexto a liberdade durante a recreação era questionada, pois, em se tratando de um momento educativo, deveria ser vigiada e dirigida. Em meio a esse contexto, dividido entre a livre iniciativa da criança e a atividade lúdica dirigida e controlada pelo adulto, estabeleceu-se uma nova relação entre a educação e o brinquedo. Essa nova relação muito se deve às influências das ideias do filósofo alemão Friedrich Fröbel, que na sua tese apresentava a atividade lúdica como meio educativo: 45


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Foi apenas com o movimento romântico (já nos séculos XVII e XIX) em especial com as ideias de Froebel, influenciado pelo Roussseau, que a educação pareceu incorporar alguma coisa entendida como “o valor” da ludicidade. Foram as ideias deste pedagogo da infância, que considerava o jogo como exteriorização ou expressão de uma riqueza interior da criança, que deram força para a inclusão dessa atividade na educação da infânia. (BUJES, 2012, p. 59-60).

Foi no cerne do pensamento romântico que pudemos situar as contribuições de Froebel. Ele trouxe para a educação da primeira infância o jogo . De acordo com Arce (2002), a influência das ideias do filósofo alemão Friedrich Froebel marcou preponderantemente a expansão internacional para o atendimento da criança. Em sua tese, trazia o jogo como atividade lúdica como cerne da educação. Seu método foi divigulgado e aplicado em diversos países. Froebel vinculou suas teses sobre o papel do jogo na primeira infância à concepção de um material (livre e espontâneo) estimulante e específico (dons e ocupações). Faziam parte dos dons: bolas, cubos, blocos. Esses jogos e materiais, também brinquedos, seriam meios para ajudar a criança a adentrar em sua própria vida. O filósofo alemão, ao trazer o jogo e os brinquedos como base da educação, considerando-os educativos como tais, contrastou com as ideias da época que concebiam o jogo como recreação (atividade campensatória) e/ ou como sendo uma estratégia didática de ensino, valorizando, nessa nova visão, a infância e a criança. Nessa nova relação entre a educação e o brinquedo, a criança esconderia por detrás de sua fraqueza um dinamismo interno, que, segundo Brougère (1998, p. 73), traz como “fator do desenvolvimento do indivíduo que encontra tudo em si mesmo. Não é mais um adulto em miniatura, mas um adulto em germinação”. Surgiu, desse modo, um novo olhar sobre a infância e sobre a criança e, por consequência, a sua educação. O adulto não deveria mais coagir e manipular a infância, mas abrir a possibilidade de proporcionar e promover a iniciativa autônoma da criança. Nesse quadro, ganharam força novos pensamentos científicos (final do século XIX) que estabeleceram também novas relações entre a educação e o brinquedo, agora para justificálas e fundamentá-las com mais seriedade, em 46

função de teorias de referência. Surgiram, dessa forma, segundo Brougére (1998), novos discursos pedagógicos, influenciados principalmente pela Psicologia da criança, que desenvolveu um método científico, descrevendo o seu desenvolvimento. Nessa perspectiva, a visão romântica sobre essa relação foi racionalizada pelas diferentes teorias. Nos últimos três séculos, num cenário marcado por inúmeras mudanças sociais, econômicas e políticas na sociedade, surgiram e emergiram, portanto, novas visões de infância e criança, quando passaram a ter uma importância mais acentuada, começando a ser estudadas e a ter o seu desenvolvimento previsto a partir de diferentes teorias (BUJES, 2001). Essas diferentes teorias também fortaleceram a corrente pedagógica e os discursos teóricos sobre a importância das atividades lúdicas no desenvolvimento e na aprendizagem das crianças, ora enfatizando a liberdade e a espontaneidade da criança, reduzindo a intervenção adulta, ora justificando seus objetivos e as intenções pedagógicas, tendo que ser dirigidas e conduzidas como artifícios prazerosos para a construção da aprendizagem. Dentro dessas novas visões, o brinquedo passou a ter, também, uma função educativa, em que facilmente passou a ser confundido como um recurso de ensino ao ser reduzido como material pedagógico. O brinquedo, em muitas situações, é utilizado com a finalidade de intervenção pedagógica ou como proposta de ensino, desenvolvimento e aprendizagem, perdendo a sua possibilidade de proporcionar à criança a sua fruição e a sua espontaneidade para deixar fluir o imaginário infantil. Podemos perceber que cada época trouxe, traz e tem a sua própria maneira de conceber a importância e o lugar do lúdico na educação. E, nos últimos três ou quatro séculos, especialmente, a relação educativa entre o brinquedo e a escola passou a ter uma importância cada vez maior e passou a ser pesquisada, fundamentada e descrita, principalmente pela psicologia e pela pedagogia, a partir da construção da aprendizagem e do desenvolvimento humano. Assim, vimos que constantemente se apresentam alternâncias entre visões de mundo, consequentemente, entre as formas de ver e conceber as atividades lúdicas e os brinquedos na educação atribuídos pela relação que se estabelece dentro de cada contexto social e cultural, marcado


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pela emoção e pela razão, sujeito a variações tanto no tempo quanto no espaço. 4 BRINQUEDO E EDUCAÇÃO: QUAL A RELAÇÃO ATUAL? Permanecemos em um contexto no qual, ao menos no nível do discurso, a importância da atividade lúdica e dos brinquedos é reconhecida como fundamental na educação das crianças, particularmente no que diz respeito à Educação Infantil. Isso significa que ninguém mais duvida ou questiona sobre a relação educativa que se estabeleceu entre o brinquedo e a educação das crianças nas escolas, mas muitos são ainda os questionamentos e as divergências sobre como e de que forma essas relações se estabelecem na prática na educação das crianças. Na organização dos pátios escolares, na constituição dos cantos da brincadeira espontânea e livre das crianças nas salas, na disposição dos educadores em suas propostas didáticas pedagógicas e nos referenciais teóricos contemporâneos encontram-se os brinquedos, em diferentes dimensões, proporções e variações. No entanto, parece-nos haver uma unanimidade em relação à sua importância e finalidade. Mas, ao analisarmos o sentido e o significado, tanto quanto em relação ao seu uso com as crianças no cotidiano educativo quanto a sua intencionalidade em nível de discurso pedagógico, ainda encontramos muitas diferenciações, tensões e contradições. Para procurarmos compreender e analisar essa relação no âmbito educativo na atualidade, faz-se necessário também considerar a visão que hoje temos da infância e a forma como hoje vemos a criança. Nessa perspectiva, concebemos a ideia de que vivemos em contextos culturais históricos mutáveis e contínuos e, assim, podemos incluir também a ideia de que as crianças, participando igualmente dessa transformação, são “hoje concebidas como seres ativos, que podem se tornar cada vez mais competentes para lidar com as situações neste mundo extremamente dinâmico, se assim tiverem oportunidades para isso” (BUJES, 2001, p. 21). Um mundo extremamente dinâmico e um contexto de sociedade e cultura globalizadas, que ultrapassam e se inserem na cultura local, através de diferentes meios e canais de comunicação, influenciando e constituindo novas e diferentes formas de se ver e de ser criança. Assim, alguns modos de se ver a criança,

bem como a função dos brinquedos no âmbito educativo, emergem dessas vias de comunicação e tornam-se massificados e generalizados, transformando e modificando a cultura lúdica local da criança, rompendo com a ideia de tempo e espaço. Nessa perspectiva, os brinquedos são também manifestações culturais, refletem o mundo contemporâneo não só pela maior quantidade, intensidade e multiplicidade de brinquedos hoje disponíveis e acessíveis, mas pelos efeitos que causam e pela influência que exercem na construção da identidade das crianças, influenciando na constituição e na produção de modelos e estilos de vida, corpo, beleza, padrão social, gênero e outros. Os brinquedos, contendo e trazendo uma visão de mundo e, ao fazerem parte do mundo infantil através de diferentes modos de entretenimento, vêm carregados de conteúdos, diferentes modelos e interesses sociais, num processo de construção da identidade infantil, de forma individual e universal, simultânea, mas não linear. Identidade compreendida como “algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento” (HALL, 2001, p. 38). Individual e universal de forma simultânea, pois as crianças contemporâneas fazem parte de uma geração que nasce em contato direto com as tecnologias e descobre o mundo através da mídia, tornando a cultura lúdica infantil internacional, universal e global. Ao mesmo tempo, essa cultura é individual, pois cada sujeito (criança) é portador dela e acumula diferentes experiências lúdicas e interações e, com isso, o sentido, o significado e o uso que farão dos brinquedos também serão diferentes. Procurar compreender esses processos e manifestações culturais, de como o brinquedo se manifesta na construção da identidade e na cultura infantil contemporânea, pode ser uma importante forma de pensarmos a relação que se estabelece hoje entre o brinquedo e a educação. Talvez tenhamos de pensar com mais criticidade sobre o efeito que alguns brinquedos podem provocar, vindo carregados de estereótipos, significados, conceitos e preconceitos, mas vistos, muitas vezes, de forma simplista e ingênua e que podem interferir e influenciar na nossa forma de conhecer, perceber e nos relacionar com o mundo. Partindo dessa concepção, faz-se necessário refletir e discutir acerca dos brinquedos e das 47


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brincadeiras e suas interações, fabricados e disponibilizados para as crianças nas instituições educativas, determinando modos de viver as práticas atuais infantis, uma vez que tanto as brincadeiras como as suas interações constituem o eixo norteador da proposta curricular da Educação Infantil hoje. 5 A ESCOLHA DOS BRINQUEDOS Ao trazer para discussão a relação e a forma de inserção dos brinquedos no projeto educativo das escolas na atualidade, precisamos nos perguntar como e por quem são feitas as escolhas desses brinquedos e com que intenção. Grande parte dessa seleção é feita pelo adulto, trazendo nessa escolha seu modo de pensar e conceber a educação de crianças. Embora reste às crianças uma certa liberdade em aceitar ou recusar os suportes a elas oferecidos, terão sido de certa forma impostos a ela, “os quais só mais tarde, e certamente graças à força da imaginação infantil, transformaram-se em brinquedos” (BENJAMIN, 2009, p. 96). Nessa escolha e seleção, os brinquedos, segundo Brougére (1998, p. 29), “integram as representações que os adultos fazem das crianças, bem como os conhecimentos sobre a criança disponíveis numa determinada época”. Benjamin (2009, p. 92) também nos traz que, ao imaginar brinquedos para as crianças, “os adultos estão na verdade interpretando ao seu modo a sensibilidade infantil”. Nessa visão, constatamos o olhar do adulto sobre a criança, e o brinquedo como material educativo disponibilizado pela escola, trazendo na sua imagem ou utilização a sua finalidade como transmissor de informações e valores. Assim, poderíamos pensar que essa escolha, dentro de cada contexto, nos indica de que forma esta concebe a relação entre o brinquedo e o processo educativo, esclarecendo nessa relação o seu lugar, a sua intenção e a sua função. Além do olhar do adulto sobre a criança, temos que considerar outro aspecto ao refletir sobre a escolha e a introdução dos suportes lúdicos hoje, que são os numerosos brinquedos que a sociedade propõe através da mídia. Esses brinquedos nos invadem e, muitas vezes, influenciam nossas escolhas, homogeneizando imagens, funções e padrões. Assim, podemos facilmente perceber e visualizar brinquedos muito semelhantes, por vezes idênticos, em contextos completamente diferentes. 48

No entanto, mesmo que a introdução desses brinquedos possa constituir uma nova cultura lúdica infantil, influenciada pela cultura global, oferecida pela mídia, não é impositiva, pois a criança intervém e cria com base na interpretação que ela faz das significações que traz. Isso significa que, mesmo havendo uma certa “homogeneização cultural”, conforme Hall (2001), e uma produção de “cultura lúdica internacional”, conforme Brougére (2002), ela não é determinante, pois ambos os autores trazem a construção da identidade com a ideia de uma possível articulação entre as culturas ou um entrelaçamento entre as diferentes culturas, a do indivíduo em seu contexto mais local e individual com a global, uma nunca anulando completamente a outra. Segundo Brougére (2002, p. 32), “quem brinca se serve de elementos culturais heterogêneos para construir sua própria cultura lúdica com significações individualizadas” e, assim, vai constituindo-se também na sua forma de ser e de se produzir como sujeito hoje. De acordo com Dornelles (2012, p. 80), “a criança carrega consigo uma cultura, concebida simbolicamente na imersão das vivências experimentadas em sua comunidade, da qual fará uso ao longo de sua vida”. No entanto, Sarmento (2007, p. 36) fala “que as crianças incorporam, interpretam e reconstroem continuamente informações culturais, constituídas por valores, normas sociais, ideias, crenças e representações (que fazem parte) dos artefatos culturais”. Isso nos faz pensar que, mesmo a criança estando exposta à cultura lúdica global, ela vai construindo a sua de forma individual a partir de suas significações, com um modo de pensar próprio. Isso significa dizer que, ao se relacionarem com as formas e os conteúdos universais, as crianças se mostram como sujeitos ativos e interativos, em que, ao mesmo tempo que são influenciadas de diversas qualidades e níveis, “também produzem, à sua maneira, influências infantis ao elaborar, recriar, expressar suas emoções, ideias, histórias junto a seus familiares, colegas, professores” (FUSARI, 2003, p. 145). É nesse processo contínuo que adultos e crianças, professores e alunos experimentam, leem e exploram o mundo, construindo diferentes e novas relações entre a educação e o brinquedo, pois (re) criam suas formas evidenciando seu investimento pedagógico, também sujeito a variações dentro de cada sistema de significados.


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6 CONSIDERAÇÕES Podemos dizer que a relação entre o brinquedo e a educação supõe sempre uma relação com a infância e uma abertura ao novo e ao diferente, ou seja, a uma indeterminação, pois não se estabelece numa relação direta e única, mas se traduz e se introduz através dos diferentes contextos que os significam e que lhes conferem sentido e função. Vimos que a atividade lúdica no âmbito educativo e os brinquedos cruzam diferentes tempos e lugares. Isso requer que olhemos para os tempos passados, presentes e, com certeza, futuros e que são culturalmente contituídos, sendo marcados pela continuidade e pela mudança, numa relação que se estabelce dentro de diferentes sistemas de significados. Considerando o contexto atual, faz-se necessário refletir, principalmente, sobre as instituições educativas, que se utilizam do brinquedo como recurso pedagógico de interação e de aprendizagem. É importante analisar como ele é condicionado e influenciado por diferentes culturas, principalmente a econômica. O brinquedo ainda é, muitas vezes, percebido na perspectiva e como uma criação do adulto para a criança, e não sob o ponto de vista da própria criança. Nessa visão, ele perde a sua ludicidade, pois não permite a fruição, a imaginação e a espontaneidade da criança e limitase a ser mais um recurso pedagógico no processo de ensino do adulto. Ainda se torna necessário situar a criança contemporânea em seu lugar de protagonismo, e não apenas como reprodutora de culturas, mas como um ser que interpreta e compreende, capaz de recriar e ressignificar com criatividade e autonomia. Para isso, precisamos aprender a reconhecer e legitimar as expressões simbólicas e imagimárias de interpretação do mundo da criança e respeitá-la em suas expressões culturais.

BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. 2. Edição. São Paulo: Duas Cidades. Editora 34, 2009. BROUGÈRE, Gilles. Jogo e educação. São Paulo: Artmed, 1998. ______. A criança e a cultura lúdica. In: KISCHIMOTO, Tizuko Morchida. (Org.). O brincar e as suas teorias. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2001. p. 19-32. BUJES, Maria Isabel Edelweis. Resgate da Infância: uma questão para a propaganda? In: DORNELLES, Leni Vieira; BUJES, Maria Isabel Edelweis. (Org.). Educação e infância na era da informação. Porto Alegre: Mediação, 2012. p. 51-78 ______. Escola infantil: pra que te quero? In: CRAIDY, Carmem; KAERCHER, Gládis. (Org.). Educação Infantil: pra que te quero? Porto Alegre: Artmed, 2001. p. 12-22. DORNELLES, Leni Vieira. Artefatos culturais: ciberinfâncias e crianças zappiens. In: DORNELLES, Leni Vieira; BUJES, Maria Isabel Edelweis. (Org.). Educação e infância na era da informação. Porto Alegre: Mediação, 2012. p. 79103. FUSARI, Maria Felisminda de Resende. Brincadeiras e brinquedos na TV para crianças: mobilizando opiniões de professores em formação inicial. In: KISHIMOTO, Tizuko Morchida. (Org.). Jogo, brinquedo, brincadeira e educação. São Paulo: Cortez, 2003, p. 143-164. HALL, Stuart. A identidade cultural na pósmodernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

REFERÊNCIAS

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SARMENTO, Manuel Jacinto. Produzindo pedagogias interculturais na infância. Petrópolis: Vozes, 2007. 49


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DIMENSÕES PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO NÃO ESCOLAR: CADÊ O QUADRO VERDE?

Rosana Silveira Dorneles1 Jozilda Berenice Cândido Fogaça2 RESUMO Este artigo é resultado de uma pesquisa desenvolvida na educação não escolar e tem como objetivos analisar as dimensões pedagógicas nela presentes na perspectiva de sua articulação à totalidade da ação e observar a relação das dimensões pedagógicas presentes na prática dos educadores com seus planos de ação. A pesquisa proporciona a reflexão em relação à Pedagogia e à educação não escolar, trazendo a importância de pensá-la nesse contexto. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que teve como instrumentos de coleta de dados a observação participante, a análise documental e a entrevista semiestruturada. A investigação proporcionou a descoberta de dimensões pedagógicas no contexto da educação não escolar, elencadas como categorias de análise: formação continuada, prática docente e planejamento. Tais dimensões pedagógicas são semelhantes às do contexto da educação escolar, no entanto se articulam de formas distintas, singularizando as práticas educativas não escolares. As ações pedagógicas, nessa análise, são voltadas ao educando e constituem-se a partir da prática. Pensar as dimensões pedagógicas na educação não escolar é direcionar um olhar especial às práticas educativas, potencializando e legitimando ainda mais esse novo campo de educação. Palavras-chave: Pedagogia. Formação. Prática docente. Planejamento. Educação Não Escolar. ABSTRACT This article is the result of a developed research on non-school education and it has as its goal: to analyze the pedagogic dimensions present in a proposal for a non-school education, in the perspective of its totality articulation of action and to observe the relation of present pedagogical dimensions in the practice of educators with their action plans. The research provides the reflection related to pedagogy and non-school education, bringing the importance of thinking about the subject in this context. It is a qualitative research that had as data collection participant observation, document analysis and semi-structured interview. The investigation provided the discovery of pedagogical dimensions on the context of non-school education, listed as categories of analysis: continued formation, teaching practice and planning. Such pedagogical dimensions are similar to the context of school education, however articulated in different forms, singling non-school educational practices. The pedagogical actions on this analysis are focused on education and

Universidade Feevale, licenciada em Pedagogia. Coordenadora Pedagógica na Rede Municipal de Educação de Novo Hamburgo. E-mail: rosana@feevale.br. 2 Universidade Feevale, pedagoga, mestre em Inclusão Social e Acessibilidade, professora do curso de Licenciatura em Pedagogia em Universidade Feevale. E-mail: jofog@feevale.br. 1

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constitute from practice. To think pedagogical dimensions in non-school education is to direct a special look to the educational practices, strenghtening and legitimizing this new education field even more. Keywords: Pedagogy. Formation. Teaching practice. Planning. No Education School.

1 INTRODUÇÃO O artigo “Dimensões pedagógicas na educação não escolar: cadê o quadro verde?” é fruto da pesquisa de trabalho de conclusão de curso, na qual me propus a analisar as dimensões pedagógicas presentes na educação não escolar, tendo como campo empírico o PELC – Programa de Esporte e Lazer na Cidade. Trata-se de um estudo procedente de dúvidas, inquietações, desejos, práticas, conhecimentos, amadurecimentos. A inserção como coordenadora pedagógica no PELC e o amadurecimento teórico como concluinte do curso de Pedagogia iam instigando a reflexão sobre as dimensões pedagógicas na educação não escolar, visto que o percurso na coordenação, desconstruir as dimensões pedagógicas próprias do contexto escolar, procurando identificar as dimensões que caracterizavam a educação não escolar, foram as molas propulsoras para o desencadeamento da pesquisa. Sendo assim, pude elencar as dimensões inerentes à Pedagogia que se correlacionavam nesse contexto, definindo, a partir das observações no campo empírico, as dimensões emergentes como categorias de análise: formação continuada, prática docente e planejamento. Assim, analiso os enunciados que se correlacionam com essas categorias, a fim de apresentar a dinâmica de articulação entre elas. 2 DA AÇÃO À REFLEXÃO: FORMAÇÃO, QUAL SUA IMPORTÂNCIA NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO NÃO ESCOLAR? A formação é uma dimensão pedagógica muito legitimada no PELC. Ela aparece nos macroplanejamentos como condição para a existência do programa. Desse modo, as diretrizes que orientam a implementação do programa (BRASIL, 2012) preveem três formas distintas de formação, cabendo à coordenação do PELC executá-las e/ou organizá-las a partir das exigências impostas pelo Ministério do Esporte. Essas formações se dividem 52

nos módulos I, II e III. O módulo I, ministrado por um formador encaminhado pelo Ministério do Esporte, tem como objetivo o aprimoramento dos agentes sociais que irão trabalhar no PELC, dando ênfase no conteúdo “esporte, cultura e lazer” como direito social. O módulo II é contínuo, ou seja, deve ser realizado durante os doze meses de execução do programa em forma de reuniões pedagógicas semanais, a fim de ocorrerem trocas entre os educadores, momento de planejamento e estudo. Já o módulo III, avaliação/formação, ocorre no sexto e no décimo segundo mês de execução do programa, para que o formador, também encaminhado pelo Ministério do Esporte, possa, a partir da avaliação realizada com todos os agentes, identificar os pontos positivos e os pontos a melhorar pertinentes ao programa e, dessa forma, capacitá-los para superar os desafios. Na educação não escolar, a formação é uma proposta pedagógica de extrema importância para a prática do educador, pois se sabe que não há uma formação acadêmica específica para atuar nesse contexto. De acordo com Libâneo (2006, p. 75), Até hoje pouco se cuidou da preparação formal e sistematizada de agente e lideranças culturais que se especializassem no exercício de funções pedagógicas nesses ambientes não-escolares, levando-se em conta sua importância como mediadores da educabilidade, necessária no processo informal de consolidação de uma cultura, ou seja, articulada com uma proposta de construção da cidadania. Pimenta (2000, p. 28) refere-se ao educador como [...] intelectual em processo contínuo de formação. Enquanto tal, pensar sua formação significa pensá-la como um continuum de formação inicial e contínua. Entende também, que a


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formação é, na verdade, autoformação, uma vez que os professores reelaboram os saberes iniciais em confronto com suas experiências práticas, cotidianamente vivenciadas [...] . Embora a educação não escolar não exija, em alguns casos, formação acadêmica específica para o educador atuar em uma determinada oficina, há uma preocupação explícita nos documentos do Ministério do Esporte em relação à formação acadêmica e aos conhecimentos do educador acerca do conteúdo de suas aulas. Sugere-se que, sempre que possível, aqueles que atuarão com atividades físicas e esportivas sejam estudantes e/ou professores de educação física, ou orientados por um deles [...]. Os agentes sociais selecionados devem ter conhecimento e experiência a respeito das atividades que desenvolverão (BRASIL, 2012, n. p.). Assim, é possível perceber que essa preocupação advém de um comprometimento com a qualidade das aulas, assegurando também o bemestar dos educandos, e que o educador, mesmo tendo perfil para atuar no contexto da educação não escolar, necessita dominar seus conteúdos. No caso específico das oficinas esportivas e de fitness, tornase de extrema importância a formação do educador, bem como o acompanhamento de um profissional formado na área de Educação Física, por se tratar de oficinas que trabalham diretamente com o corpo e com pessoas idosas, mais vulneráveis a problemas de saúde. Dessa forma, no contexto da educação não escolar, a formação ganha um caráter diferenciado e emergente, por se tratar de espaços educativos distintos da escola, que tem uma sistemática pedagógica construída historicamente, na qual os educadores, de saberes escolares já construídos, acreditam saber o que fazer, quando fazer e como fazer. Na educação não escolar, o que, quando e como fazer se constitui a partir da prática, pois cada programa social, cada comunidade vai “pedir” a dinâmica de suas aulas. Assim, a formação passa a ser, também, um momento de construção e planejamento entre todos, cabível à flexibilidade, possibilitando a fala e a escuta de educadores que anseiam trocar cada inusitada experiência.

3 PRÁTICA DOCENTE A educação não escolar também se singulariza na prática de seus educadores. Esses se constituem como educadores sociais não através de uma formação acadêmica, mas sim através de uma história de vida, de implicações pessoais que de alguma forma os lançaram para atuar nesses contextos. A baixa remuneração e o contrato temporário são fatores que não valorizam o profissional, mas que não afetam a qualidade das aulas. De acordo com a educadora T, “Desde muito cedo, desde 16 anos eu já trabalho com animação de grupo, alfabetização de adultos. Minha caminhada pessoal aliada com a minha caminhada profissional [...]”. Dessa forma, pode-se perceber que a subjetividade da educadora está inerente à sua escolha profissional e ela consegue identificar isso. O educador que está imerso na educação não escolar tem como característica a ousadia, não tendo medo de encarar os desafios, as novidades e as oportunidades, desvinculado de qualquer tipo de “acomodação”. Na reunião observada, a prática dos educadores entrou em pauta. Segundo um dos coordenadores, existe a possibilidade de o PELC3 se tornar uma política pública no município de Novo Hamburgo, no entanto essa terá como prioridade o atendimento de pessoas acima de 45 anos. Nesse caso, os educadores que não atuam com essa faixa etária, mas que desejam continuar no programa, precisam se qualificar para atender, em sua oficina, a esse público. Educadores de atividades esportivas também deverão adaptar suas oficinas dentro de sua área de atuação, substituindo o vôlei pelo câmbio, o futebol pela bocha e o basquete pelo basquete reloginho4. Todos aceitaram o desafio. Desse modo, podemos perceber que a prática docente do educador social não está engessada em uma única oficina. A partir disso, cada educador busca novas estratégias e novos conhecimentos para se adaptar ao contexto de diversidade5 inerente à educação não escolar.

3 O programa tem subsídio do governo federal até dia vinte e cinco de maio de dois mil e doze. 4 Basquete adaptado para pessoas idosas: jogado em linha, onde nove integrantes passam a bola entre si, até que ela chegue ao primeiro da fila, que fará o arremesso à cesta. 5 Aqui compreendida em relação a oficinas e faixa etária.

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Inspirando-me em Lima (2010, p. 81), “[...] percebo que, na prática dos educadores sociais, existe algo a mais, um fazer que se diferencia” e caracterizo a prática do educador social como algo que se qualifica a partir da prática, e não de uma formação acadêmica. Dessa forma, o educador A atribui à falta de materiais uma condição para sua qualificação profissional: Sem querer, depois que entrei no PELC aprendi a fazer coisa que nem imaginava, nem sabia trabalhar com garrafa pet, hoje faço muita coisa. Talvez se eu tivesse muitos materiais não teria me potencializado muito. Em relação a isso, a coordenadora de núcleo S diz: Muitos educadores chegaram no PELC sabendo fazer apenas uma coisa, por exemplo, dar aulas de futebol. Às vezes as oficinas não dão certo, têm pouquíssimos alunos, só que tem outras oficinas com fila de espera. Aí lançamos o desafio de propor ao educador que tente dar aula de Jump, por exemplo. Na maioria das vezes eles se empenham e saem dando aulas ótimas. Cabe destacar que essa “metamorfose” do educador ocorre sempre dentro de sua área de atuação, ou seja, educadores da área da Educação Física, que não deixaram de dar aulas relacionadas à sua formação, embora tenham trocado as oficinas esportivas pelas oficinas de fitness ou a faixa etária de seus alunos. Desse modo, pode-se perceber que os educadores qualificam muito suas ações passando pela educação não escolar, pois vivenciam diferentes práticas e tornam-se autônomos na busca de novos conhecimentos. No entanto, isso gera uma problemática no PELC, pois, a partir da qualificação da prática do educador, passa a haver uma grande rotatividade entre eles devido às novas oportunidades de emprego que surgem. Segundo Pimenta (2000), a experiência é de grande importância na prática docente e essa aparece na fala da educadora T6, quando se refere 6

Educadora formada em Ciências Contábeis.

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às suas percepções pedagógicas, pois ela, durante suas práticas, deixa explícito no seu planejamento o uso de metodologia adequada e ações pedagógicas provenientes da educação não escolar: Desde muito cedo, desde 16 anos eu já trabalho com animação de grupo, alfabetização de adultos. Minha caminhada pessoal aliada com a minha caminhada profissional. Aí vai a questão de ser mãe. Eu acho que tudo isso vai te agregando, vai te amadurecendo e te dando percepções diferentes, aí tu vai te ligar que tem que ser trabalhado daquela forma. Mesmo não tendo essa formação pedagógica, mas, claro, a gente lê, a gente conversa. Não pode tirar do nada, de algum lugar! Acho que é a questão da prática, da tua experiência, da tua caminhada, tudo tá junto.

De acordo com a presente pesquisa, a experiência está atribuída desde a inserção do educador como educando no contexto escolar até as experiências constituídas no cotidiano docente. O educador V, quando questionado em relação à maneira como ensina, afirma: “Levo muito em consideração a forma como aprendi”. No entanto, essa experiência advinda da educação formal pode acabar prejudicando a prática do educador social, pois nesse contexto a ação pedagógica perpassa por outros objetivos. O educador A deixa evidente a influência da educação escolar em sua prática, ao relatar: Minha metodologia é mostrar (material) e deixo que eles se virem, criem, façam. Minha metodologia é bem simples, depois eu confecciono a peça mostrando que tem que fazer assim, assim, assim e monto. Depois que estou com a peça montada, pego outra peça e vou fazer com eles junto, ao mesmo tempo que eu estou fazendo, eles estão fazendo junto acompanhando. Só que aí vem a dificuldade, eles não conseguem. Aqui eles são carentes nisso aí, de ter autonomia de fazer sozinhos.

O educador, em sua fala, demonstra saber a importância, na educação não escolar, de deixar os alunos desenvolverem a autonomia, a criação. Apresenta preocupação por eles terem dificuldade e por não conseguirem fazer sozinhos. No entanto,


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mesmo identificando a necessidade de trabalhar com a criação, a manipulação do material, ele acaba reproduzindo as ações inerentes ao contexto da educação formal, ao dizer: Minha metodologia é bem simples, depois eu confecciono a peça mostrando que tem que fazer assim, assim, assim e monto. Depois que estou com a peça montada, pego outra peça e vou fazer com eles junto, ao mesmo tempo que eu estou fazendo eles estão fazendo junto acompanhando. Essa metodologia muitas vezes é característica da escola, na qual o educador mostra que tem que se fazer “assim, assim, assim” e, posteriormente à explicação, faz junto com o educando. Essa prática está presente na constituição do educador que atua na educação não escolar pelo fato de ele já ter passado pela educação escolar. No entanto, cabe a ele, a partir de sua reflexão, formação e coordenação, identificar esses “escorregões” para saber que as dificuldades dos educandos em construir a peça estão relacionadas ao fato de eles não terem aprendido a fazê-la, e não de eles não terem autonomia. Na educação não escolar, cabe a cada educador atribuir suas estratégias metodológicas em sua prática, pois necessitam dialogar com públicos, interesses, bairros e faixas etárias distintos e levar em consideração que a cada aula pode aparecer um novo aluno, que deverá ser inserido na turma já em andamento. O educador V disse ter que mudar sua prática ao entrar no PELC, pois antes ele apenas dava aulas particulares. Quando se deparou com turmas grandes e com alunos chegando a cada aula, passou a dividir a turma em dois grupos, pois nela se encontram alunos de diferentes níveis7. Com base nos exercícios ensinados, cada grupo exercita suas notas musicais e, no final de cada aula, integram-se todos os alunos para tocar a mesma música, cada aluno a nota que aprendeu, garantido a participação de todos. Ao questionar o educador sobre como ele teve a ideia de trabalhar dessa forma, ele explicou:

Refiro-me a alguns alunos que, por estarem há mais tempo no programa, apresentam melhor habilidade com o material da oficina. 7

Foi embasado na prática, um dia lá na Ginástica tinha uma turma de 15 alunos, não conseguia atender todos ao mesmo tempo, pois uns sabiam um pouquinho, outros nunca haviam pego no violão. Tem também aqueles que aprendem superligeiro. Daí na hora me veio a ideia de dividir os grupos.

Dessa forma, podemos perceber que nem sempre o planejamento vai dar suporte suficiente à prática do educador, principalmente em turmas de diferentes níveis de conhecimento e de idades, típicas da educação não escolar. Por esse motivo, ocorre com frequência de o educador social precisar adaptar sua prática de acordo com o momento, reafirmando, assim, a importância de o educador ter conhecimento sobre a sua ação. Outro fator inerente à prática do educador social se refere à dinâmica na relação dele com os educandos. O educador A, ao se referir positivamente sobre os objetivos alcançados em uma proposta de jogo com sua turma, diz que “Hoje tem alunos que jogam melhor que eu, saem do raciocínio de querer atacar, já sabem me burlar.” É cabível de análise, nesse contexto, que a prática docente na educação não escolar foge de uma teoria empirista, já que não há relação de poder centrado no educador. O educador cede o espaço de único conhecedor para que seus educandos construam seus conhecimentos, colocando-se de igual para igual nessa relação. As aulas observadas eram todas permeadas de muito afeto por parte dos educadores, que demonstravam um “apaixonamento” pelo que estavam fazendo. O diálogo antes e depois das atividades era algo sistemático, em que todos falavam, podendo ser assuntos relacionados à aula, à família, ao trabalho. Não havia pressa dos grupos com o término da aula. A educadora F diz que sua aula possibilita às alunas falarem de questões bem pessoais e que o conteúdo da oficina está muito atrelado ao diálogo: Já aconteceu de eu chegar aqui com a aula preparada e naquele dia elas querem só conversar. Aí a gente conversa. A gente fala sobre uma notícia que saiu na mídia, como pensar sobre isso, até onde é julgamento, onde é repreensão. Outro dia uma senhora de 40 anos veio dizer que não gostava mais de ter relações com o marido 55


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dela. Disse que só estava falando porque confiava em mim. Aí perguntei o porquê. Ela disse que machucava muito, não tinha mais lubrificação. Conversamos bastante sobre isso e aconselhei ela a ir no médico. A partir disso ela foi e semanas depois voltou radiante, dizendo que tinha comprado a medicação que o médico receitou e tinha virado uma nova mulher. Gohn (2007, p. 15), ao encontro do relato da educadora, diz que O principal instrumento de trabalho do educador social é o diálogo. Não o simples ‘jogar conversa fora’, mas o diálogo tematizado, estruturado com base nas propostas das atividades. Somam-se a ele o estudo de fundamentos teóricos e a prática de atividades. O trabalho do educador deve ter, sem dúvida, uma boa dose de espontaneidade, mas só terá um efeito mais profundo se for sustentado em princípios e metodologias de trabalho, que incluem estudo de indicadores socioculturais e econômicos, contextualização da comunidade no conjunto das redes sociais e temáticas de um município e pesquisa histórica. É perceptível na fala da educadora que somente houve progresso na relação de sua aluna com o marido por ela sentir confiança na pessoa com quem falava. Desse modo, a prática do educador social extrapola a estrutura física dos núcleos, ela adentra na qualidade de vida, no bem-estar da comunidade atendida. Será por esses motivos, tão subjetivos na prática do educador, que não chegamos a uma formação de educadores sociais? A prática do educador social não segue uma linha única de atuação, pois cada sujeito a constitui a partir de sua visão de mundo. O que tem em comum nisso é o posicionamento político e um desejo de transformação. 4 PLANEJAMENTO: QUEM DISSE QUE AQUI NÃO SE PLANEJA? De acordo com as orientações do Ministério do Esporte (BRASIL, 2012), o planejamento é atribuição de todos os envolvidos, sendo cada agente, gestor, coordenador ou educador, responsável por planejar suas atividades atribuídas. 56

Ao questionar os educadores em relação a seus planejamentos, sobre o que levam em consideração no momento de pensar suas aulas, três deles disseram levar em consideração o interesse de seus educandos. A preocupação com o planejamento na educação não escolar não está na fundamentação teórica do conteúdo desenvolvido durante as aulas nem nas teorias de aprendizagem, pois me parece que o aprender, nesse contexto, está interligado ao desejo, à participação dos educandos no momento de planejar, tornando-se a consequência das aulas. A educação não escolar, por não precisar seguir conteúdos preestabelecidos, tem como característica, na construção do planejamento, seguir o desejo dos alunos. Isso é o que assegura seu diálogo direto com a comunidade e facilita o alcance de seus objetivos. Embora os educadores não tenham clareza do que significa um planejamento pedagógico, em todas as oficinas observadas, percebeu-se o preparo prévio deles, pois havia clareza de objetivos, da metodologia, da organização de tempo e espaço, assim como havia domínio do conteúdo a ser trabalhado e suas atividades dialogavam com a cultura local. Três educadores, quando questionados sobre o registro de seus planejamentos, disseram não registrar sistematicamente, no entanto estão construindo um projeto que organiza os objetivos das oficinas e conteúdos que serão a priori trabalhados. Por que ocorre a resistência do registro, uma vez que se observa que o planejamento dos educadores é permeado por ricas práticas? Será que eles conseguem dimensionar os seus fazeres como uma ação educativa de transformação? O que está sendo feito, em termos de formação, para dar suporte e segurança para que os educadores realizem os seus registros? A partir da ausência do registro, é possível perceber que a escrita de planos de aula realizados a priori, para esses educadores, não faz sentido, por levarem em consideração o “calor” do momento e o projeto realizado. Contudo, embora os planos de aula previamente registrados não tenham aderência pelos educadores, há necessidade do registro, mesmo esse sendo posterior às aulas, para que o educador consiga traçar o perfil, a evolução da turma, as atividades positivas e as negativas, os erros e os acertos. Desse modo, o registro respalda seu profissionalismo e documenta suas ações.


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O planejamento comprometido com a situação sociocultural de uma determinada comunidade pode, em algumas vezes, ser digno de práticas extraordinárias, embora carente de registros que deem sustentação às ações. O inverso também pode ocorrer, quando os registros anunciam objetivos e ações educativas voltadas para a realidade social, porém as práticas pedagógicas provêm de outra finalidade. Não basta ter um planejamento registrado com todos os passos, tecnicamente organizado e fundamentado teoricamente, se a prática não se relaciona com esse registro. Essa coerência, entre o registro e a prática, deve ser respeitada pelo educador, que não deixará de ser reflexivo por isso. Nesse contexto, Pimenta (2000) assegura a importância do registro, por se tratar de possibilidades para a constituição teórica a partir da prática. A autora segue dizendo que o registro compõe a memória da ação educativa, que, analisada e refletida, contribuirá para novas práticas. Nas práticas docentes estão contidos elementos extremamente importantes, como a problematização, a intencionalidade para encontrar soluções, a experimentação metodológica, o enfrentamento de situações de ensino complexas, as tentativas mais radicais, mais ricas e mais sugestivas de uma didática inovadora, que ainda não está configurada teoricamente (PIMENTA, 2000, p. 29).

De acordo com Freire (2010), deve haver o respeito pelos saberes dos educandos, sobretudo das classes populares, as quais compartilham o ato de planejar, vigorando os sentidos, especificando os objetivos. Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem estar das populações [...] Por que não há lixões nos bairros ricos e mesmo puramente remediados dos centros urbanos (FREIRE, 2010, p. 30). Essa tarefa educativa indagada por Freire caracteriza o planejamento na educação não escolar por levar em consideração vários aspectos, como: saberes prévios dos alunos, situação sociocultural

da comunidade, comprometimento ético e político por parte do educador, conteúdo significativo e capaz de intervir positivamente na realidade social. Portanto, o planejamento na educação não escolar é de suma importância para legitimar as ações educativas, formalizando os objetivos. Nesse meio, ele aparece em todas as ações, desde os documentos de regulamentação do programa, das estratégias pensadas pelo educador durante o seu deslocamento para suas aulas, até mesmo na escolha da música a ser dançada pelos próprios educandos. Planejar, nesse contexto, é ter a sensibilidade do educador social, com o aproveitamento das formações semanais, a fim de oferecer qualidade nos atendimentos. 5 REFLEXÕES FINAIS No contato com o empírico, mais precisamente durante as observações participantes, surgiu o receio de não conseguir perceber as ações pedagógicas, pois elas, naqueles momentos, amarravam-se à proposta da educação não escolar, a qual foge de toda sistematização formal da educação, como tempo, currículo, calendário, escola. Havia uma angústia no meu olhar, queria enxergar aquilo em que ele já estava viciado, em termos de práticas pedagógicas: cadê o quadro verde? Cadê o planejamento do educador? Cadê a didática? Embora percebesse as ações educativas nas oficinas, as ações pedagógicas se escondiam, o que eu precisava, naquele momento, era saber onde. A partir dessa angústia, senti-me como descreve Libâneo (2010), reducionista ao conceito de Pedagogia, devido a uma formação que me deixou quase incapaz de enxergar as ações pedagógicas fora da instituição escolar. Voltei-me, então, às teorias pedagógicas, que me reorganizaram e me “capacitaram” para perceber que entre a ausência do quadro e do uso sistemático de mesas e cadeiras, bem como dos sinais sonoros emitidos para o controle de tempo, decorrem também ações pedagógicas. As oficinas observadas têm o quadro verde substituído totalmente pela figura do educador; as mesas e as cadeiras servem apenas para o apoio do material confeccionado, pois a intenção é que os educandos circulem todo tempo entre eles; as salas de tamanhos uniformes são trocadas por espaços amplos, que caracterizam a diversidade de oficinas oferecidas no mesmo local; e o atraso no término 57


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de uma aula é caracterizado pelo prazer de estar ali, entre os educandos e o educador. Aqui não existem filas, banheiros para meninas e meninos, sinais para controle de tempo e presença por obrigação. Falo de associações de bairro, Centro de Tradições Gaúchas (CTGs), praças públicas e Organizações Não Governamentais (ONGs). A partir da presente pesquisa, foi possível chegar a discussões bastante construtivas na relação da educação não escolar com a Pedagogia. A principal “sacada” foi compreender que as dimensões pedagógicas na educação não escolar e na escolar são as mesmas, o que as difere é a forma como elas se articulam.

REFERÊNCIAS FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1998. GOHN, Maria da Glória. Não fronteiras: universos da educação não formal. 2. ed. São Paulo: Itaú Cultural, 2007. LIBÂNEO, José Carlos. Ainda as perguntas: o que é pedagogia, quem é o pedagogo, o que deve ser o curso de Pedagogia. In: PIMENTA, Selma Garrido. (Org.). Pedagogia e Pedagogos: caminhos e perspectivas. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006. ______. Pedagogia e Pedagogos, para quê? 12. ed. São Paulo: Cortez, 2010. LIMA, Jozilda Berenice Fogaça. Práticas Educativas no Âmbito da Educação Não Escolar: Reflexões sobre o Fazer e o Saber de Educadores Sociais. 2010. 90 f. Dissertação (Mestre em Inclusão Social e Acessibilidade) - Universidade Feevale, Novo Hamburgo, RS, 2010.

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BRASIL. Ministério do Esporte. Programa Esporte e Lazer da Cidade. 2012. Disponível em: <http:// www.esporte.gov.br/snelis/esporteLazer/default. jsp>. Acesso em: 25 mar. 2012. PIMENTA , Selma Garrido. (Org.). Saberes Pedagógicos e Atividade Docente. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000.


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EXPERIÊNCIAS COM O USO DE TABLETS NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR E NÃO ESCOLAR

Débora Nice Ferrari Barbosa1 Patrícia B. Scherer Bassani2 Rosemari Lorenz Martins3 Bethânia Linden Maciel4 RESUMO Este artigo apresenta uma reflexão sobre o uso de dispositivos móveis na educação em um contexto escolar e não escolar, a partir do entrelaçamento de diferentes experiências em andamento, envolvendo o uso de dispositivos móveis do tipo tablets nos processos educativos. A abordagem da pesquisa é qualitativa, e os resultados apontam três aspectos que envolvem o uso de tecnologias móveis em processos educativos, independentemente do contexto educacional: a formação dos professores e educadores; a seleção, a

Doutora e Mestre em Ciência da Computação – UFRGS (2007,2001). Bacharel em Análise de Sistemas – UCPel (1998). Professora Adjunta da Universidade Feevale vinculada ao Programa de Pós-graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social e ao Mestrado Profissional em Letras. Na graduação, atua nos cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação. Bolsista de Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora – DT – Nível – CNPq. Coordena vários projetos de pesquisa e desenvolvimento na envolvendo aprendizagem com mobilidade, jogos na educação e aprendizagem ubíqua. É também membro do Projeto Lavili – Laboratório de Vivências em Linguagem. Universidade Feevale – ERS-239, 2755, Novo Hamburgo, RS, CEP 93352-000. E-mail: deboranice@feevale.br. 2 Doutora em Informática na Educação – UFRGS (2006), Mestre em Educação – PUC-RS (1999), Bacharel em Informática – Unisinos (1994). Professora titular da Universidade Feevale vinculada ao Programa de Pós-graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social e ao Mestrado Profissional em Letras. Na graduação, atua nos cursos de Sistemas de Informação, Pedagogia e Letras. Coordena vários projetos de pesquisa e desenvolvimento, além do grupo de Pesquisa em Informática na Educação na Feevale. Universidade Feevale – ERS-239, 2755, Novo Hamburgo, RS, CEP 93352-000. E-mail: patriciab@feevale.br. 3 Doutora em Letras – PUC-RS (2013), Mestre em Ciências da Comunicação com Habilitação em Semiótica – Unisinos (1999), Especialista em Linguística do Texto – Unisinos (1996) e Graduação em Letras – Português/Alemão – Unisinos (1993). Professora Adjunta da Universidade Feevale vinculada ao Programa de Pós-graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social, ao Mestrado Profissional em Letras e ao Curso de Letras. Assessora de Pós-graduação Stricto Sensu e membro do Projeto Lavili – Laboratório de Vivências em Linguagem. Universidade Feevale – ERS-239, 2755, Novo Hamburgo, RS, CEP 93352-000. E-mail: rosel@feevale.br. 4 Estudante de Letras – Português e Inglês na Universidade Feevale. Bolsista de Iniciação Científica Feevale vinculada ao projeto de pesquisa Aprendizagem Lúdica, Colaborativa e com Mobilidade: análise do impacto do uso de jogos, tecnologias móveis e ambientes virtuais de aprendizagem no processo de ensino e aprendizagem de crianças e adolescentes em tratamento oncológico. Acadêmica de Extensão Não Remunerada do Projeto Lavili – Laboratório de Vivências em Linguagem. Bolsista do projeto PIBID - Projeto Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência e de Iniciação Científica. Universidade Feevale – ERS-239, 2755, Novo Hamburgo, RS, CEP 93352-000. bethania@feevale.br. 1

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organização e o planejamento dos recursos digitais em função dos objetivos propostos e o perfil dos alunos envolvidos no processo educativo. Palavras-chaves: Aprendizagem com mobilidade. Formação de professores. Processos educativos. ABSTRACT This paper presents a reflection on mobile devices in formal and non-formal educational settings. The study is based on the interlacing of different researches, which involve the use of mobile devices such as tablets in educational processes. The research has a qualitative approach and the results point out three main aspects involving the use of mobile technologies in educational processes: the formation of teachers and educators; the digital resources selection, organization, and planning; the profile of the students who are involved in the educational process. Keywords: Mobile learning. Teachers’ formation. Educational processes.

1 INTRODUÇÃO Segundo Castells (1999), as rápidas mudanças tecnológicas e sociais, características da nossa sociedade, trazem avanços tecnológicos que permitem apoiar novos padrões sociais, em vista da rapidez com que a sociedade se comunica, se organiza e processa informação. Nesse contexto, o ciberespaço é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. Lemos (2004) afirma que o “ciberespaço é um ambiente mediático, como uma incubadora de ferramentas de comunicação” (p. 136) e, portanto, “mais que um fenômeno técnico, o ciberespaço é um fenômeno social” (p. 138). O ciberespaço também pode ser analisado a partir de uma perspectiva cultural, uma vez que se constrói pela interconexão entre os sujeitos, as tecnologias e a informação, tornando-se um elemento da cultura, da sociedade. Assim, uma vez que as tecnologias permeiam a sociedade atual, elas estão transformando a relação entre as pessoas e o seu meio social, criando uma cultura cibernética inerente ao nosso dia a dia, em que o real e o virtual coexistem e se completam. A educação é uma das áreas impactadas por essa sociedade tecnológica e mutante. Para acompanhar as mudanças sociais, espaços de Educação Escolar e Não escolar precisam constantemente se (re) inventar, visto que o objetivo é o mesmo: educar. Segundo Zuchetti e Moura (2010), a Educação Escolar ou formal acontece em espaços formais de educação, com uma estrutura preestabelecida de processos e conteúdos. Já a Educação Não escolar, para as autoras, traz uma conotação de educação 60

que acontece em espaços socioeducativos e que são complementares à escola, conjugando, em geral, educação e proteção social. Independentemente do contexto, a evolução das tecnologias aplicadas à educação vem acompanhada por mudanças significativas no comportamento dos estudantes na última década. Um exemplo disso é a proliferação de dispositivos computacionais móveis e de sites de redes sociais, causando impactos tanto nos hábitos sociais como na Educação. As tecnologias móveis, em especial, são responsáveis por romper limites de lugar e tempo, consolidando um paradigma de produção e acesso ao conhecimento de forma colaborativa e ubíqua. Segundo Saccol (2010), a possibilidade de o sujeito levar consigo o objeto de estudo ou de poder acessá-lo de qualquer lugar potencializa a Aprendizagem com Mobilidade (mobile learning). A partir de pesquisas envolvendo o uso de tablets no contexto da Educação Escolar e Não escolar, percebemos que as principais questões que envolvem o uso de tecnologias móveis em processos educativos envolvem três aspectos: a formação dos professores ou educadores; a seleção, a organização e o planejamento dos recursos digitais em função dos objetivos propostos e o perfil dos alunos envolvidos no processo educativo. Dessa forma, este artigo apresenta nossas experiências com esse cenário, abrangendo tanto o contexto da Educação Escolar, onde o uso dos dispositivos exige um planejamento formal e inserido no processo educativo da Escola, como o contexto da Educação Não escolar, envolvendo sujeitos atendidos por


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uma instituição que auxilia crianças e adolescentes em tratamento oncológico. Assim, a partir dos trabalhos em desenvolvimento, apresentamos os entrelaçamentos das pesquisas, bem como reflexões sobre o uso de dispositivos nesses dois contextos educacionais. O artigo está organizado da seguinte forma: partimos de uma reflexão sobre aprendizagem com mobilidade, na seção 2; na seção 3, apresentamos a metodologia da pesquisa e as experiências com o uso dos dispositivos móveis junto aos sujeitos envolvidos nos processos; e, por fim, na seção 4, apresentamos uma reflexão final sobre os entrelaçamentos e as especificidades observadas no uso de tablets no contexto da Educação Escolar e Não Escolar. 2 APRENDIZAGEM COM MOBILIDADE: DESAFIOS PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR E NÃO ESCOLAR Considerando que atualmente as tecnologias móveis são elementos presentes em nossa cultura, é preciso refletir sobre o uso dessas tecnologias nos processos educativos. Além disso, precisamos pensar no sujeito dessa cultura. Como Nativos Digitais e web atores, esses sujeitos nasceram e convivem em uma cultura digital, em que os artefatos tecnológicos digitais são elementos naturais, imbricados no contexto do sujeito (PRENSKY, 2001)5. Esses sujeitos costumam ser mais autônomos na busca de conhecimento e, para que a aprendizagem ocorra, o objeto de conhecimento precisa ter um significado para eles (PRENSKY, 2001).

O conceito da Nativos e Imigrantes Digitais, proposto por Prensky (2001), apresenta como limitação o fato de caracterizar o sujeito a partir da data de nascimento. Nesse caso, pessoas nascidas ao final do século XX são nativos digitais, enquanto sujeitos nascidos antes desse período são considerados imigrantes digitais. Entende-se as limitações da perspectiva adotada pelo pesquisador. Portanto, no presente estudo, entendemos que nativos são aqueles sujeitos que têm acesso às tecnologias da informação e comunicação desde a infância, de uma forma espontânea, independentemente do ano de nascimento. Por outro lado, consideramos imigrantes digitais os sujeitos que estão em permanente processo de apropriação dos usos das tecnologias digitais para fins pessoais e/ou profissionais. 5

Segundo Moreira (1999), a aprendizagem significativa ocorre quando o indivíduo é capaz de estabelecer relações coerentes entre o que já sabe e o novo conhecimento que está sendo apresentado. Para um aprendizado significativo, o indivíduo precisa ter disposição para aprender, e o conteúdo a ser aprendido tem que ser potencialmente significativo. Assim, cria-se o cenário favorável para que cada indivíduo possa perceber o significado ou não dos conteúdos para si próprio. A aprendizagem significativa toma importância no momento em que as tecnologias de informação e da comunicação trazem a possibilidade de explorar um universo de informações, interconectadas através de uma rede, na qual pessoas navegam e se alimentam desse processo. Considerando esse cenário, a autonomia se traduz em um elemento importante na significação da aprendizagem do indivíduo. Esse, responsável pela sua própria educação, elabora e reelabora os elementos desse universo, fazendo escolhas, interagindo e selecionando elementos significativos para auxiliar na sua aprendizagem. As tecnologias, em especial, potencializam a aprendizagem autônoma e significativa, uma vez que é possível que o indivíduo leve consigo seu dispositivo, acesse e interaja com os recursos do ciberespaço. As tecnologias móveis em geral, especialmente os tablets e os smartphones, apoiam-se em um modelo um para um (1-1), em que cada usuário possui o seu dispositivo. Como um dispositivo pessoal, esse tipo de tecnologia é pensada para ser usada por um usuário, para um usuário, considerando seus dados e sua organização pessoal. Severin e Capota (2011) destacam que o uso de tecnologias móveis na educação facilita o desenvolvimento de processos educativos personalizados, voltados para as necessidades e para o perfil de aprendizagem do sujeito. Nesse sentido, os autores propõem um modo diferente de entender o modelo 1-1, em que, em lugar de referir a relação entre aluno e dispositivos, o modelo deveria ser entendido como a relação entre um aluno e sua aprendizagem. Nessa perspectiva, o modelo 1-1 refere-se à relação de cada estudante e sua aprendizagem, que acontece formalmente na escola, mas que pode acontecer, também, em diferentes tempos e lugares. Dessa forma, entendese a educação como um processo que se desenvolve de forma ubíqua e permanente, no qual o aprender 61


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acontece em qualquer lugar, a qualquer tempo, a partir de vários dispositivos de acesso e redes de interconexão – a também chamada Aprendizagem Ubíqua. Segundo Barbosa (2008), nesse tipo de aprendizagem, o processo educativo é dinâmico, possui uma variedade de recursos disponíveis, e a conectividade pode ser global. O sujeito pode se mover constantemente nesse cenário, acessando informações e recursos necessários para a construção da sua aprendizagem. Portanto, podemos perceber que as mudanças nos processos de ensinar e de aprender exigem novas práticas pedagógicas, que, por sua vez, exigem competências específicas dos professores e dos educadores. Além disso, segundo Prensky (2001), os professores e os educadores, em geral, não nasceram permeados pela tecnologia - os chamados Imigrantes Digitais. Esses sujeitos, segundo o autor, tendem a falar uma linguagem digital com “sotaque” e podem demonstrar dificuldade em compreender e expressar-se digitalmente. Esses Imigrantes Digitais precisam se adaptar a essa nova cultura digital e se apropriar dos artefatos tecnológicos digitais. Conforme a Unesco, “os professores na ativa precisam adquirir a competência que lhes permitirá proporcionar a seus alunos oportunidades de aprendizagem com apoio da tecnologia” (UNESCO, 2009, p. 1). Dessa forma, além de disponibilizar os recursos tecnológicos para uso na sala de aula, é importante possibilitar, aos professores e aos educadores, espaços de formação específicos, a fim de conhecer esses recursos e refletir sobre as possibilidades pedagógicas no contexto da sala de aula. Nesse sentido, Moreira (2011) também discute o modelo de mobilidade a partir de uma visão 1-1, destacando que esse não pode se caracterizar exclusivamente pelo fato de disponibilizar equipamentos a professores e alunos. Para ele, é preciso, antes, mudar os significados, as crenças e a cultura pedagógica dos professores e dos demais agentes educativos. Nesse contexto, o uso das tecnologias móveis na educação deve ser encarado como uma quebra de paradigma, e não apenas a representação de um modelo tradicional de ensino e de aprendizagem, só que agora usando ferramentas que permitem mobilidade, interatividade e ubiquidade. Portanto, podemos concluir que, para potencializar o uso das tecnologias móveis nos processos educativos, três elementos são importantes: (1) entender que essas 62

tecnologias se configuram como artefatos culturais e, por isso, o seu uso será cada vez mais expandido e as interfaces de acesso cada vez mais acessíveis; (2) compreender que as tecnologias móveis potencializam a colaboração, a mobilidade e a interação; (3) perceber o potencial dos aplicativos e dos sistemas disponíveis que podem ser acessados através dessas tecnologias e como dispositivo e sistemas podem ser articulados considerando os objetivos educativos propostos. Considerando os aspectos destacados até então, a próxima seção apresenta nossas experiências com o uso de dispositivos móveis, do tipo tablets, nos processos educativos considerando o contexto escolar e não escolar. 3 EXPERIÊNCIAS COM O USO DE TABLETS NA EDUCAÇÃO ESCOLAR E NÃO ESCOLAR As pesquisas as quais este artigo aborda estão entrelaçadas por um elemento comum: o uso de tablets na educação como potencializador dos processos de ensino e de aprendizagem. O que difere as pesquisas é o contexto em que são desenvolvidas, seus objetivos e seu públicoalvo. As autoras deste artigo integram o grupo de profissionais envolvidos nas pesquisas. A pesquisa intitulada Ensinar e aprender em/na rede: a arquitetura de participação da web 2.0 no contexto da educação presencial6 tem como foco o contexto da Educação Escolar. O projeto de pesquisa desenvolvido durante os anos de 2013 e 2014 teve por objetivo investigar o potencial da arquitetura de participação da web 2.0 no processo de ensino e de aprendizagem presencial dos anos finais do ensino fundamental, a fim de desenvolver uma proposta para uso do software social na educação. Segundo Dabbagh e Reo (2011), software social é um subconjunto de ferramentas web 2.0, que suporta a interação social e a colaboração. Assim, o projeto contemplou a utilização de aplicações da web 2.0 por meio de tablets, sob a perspectiva da aprendizagem colaborativa. A pesquisa envolveu professores e alunos dos anos finais do ensino fundamental da Escola de Educação Básica – Escola de Aplicação Feevale. Importante destacar que a pesquisa se desenvolveu de forma articulada ao

6 Projeto apoiado pelo edital MCTI/CNPq/MEC/CAPES No 18/2012.


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projeto de ensino Educanet, envolvendo a educação infantil e os anos iniciais do ensino fundamental. O projeto de ensino Educanet, desenvolvido na Escola de Aplicação, tem por objetivo possibilitar diferentes espaços de interação para impulsionar práticas educativas inovadoras com o uso das tecnologias da informação e comunicação. Os projetos envolveram a formação de professores para o uso de aplicativos diversos, a fim de fomentar atividades diferenciadas com o uso das tecnologias. Com um foco no contexto de Educação Não escolar, a pesquisa intitulada Aprendizagem Lúdica, Colaborativa e com Mobilidade: integrando tecnologias e potencializando ações em direção a um ambiente lúdico de aprendizagem voltado ao reforço escolar de crianças e adolescentes em tratamento oncológico7 busca identificar como os dispositivos móveis podem ser usados para auxiliar no processo de ensino e de aprendizagem de crianças e adolescentes em tratamento oncológico. A pesquisa é realizada em parceria com a Associação de Assistência em Oncopediatria - AMO, que oferece, dentre vários trabalhos que envolvem os pacientes e seus familiares, oficina de informática e atividades de acompanhamento escolar. Uma das principais dificuldades que os sujeitos atendidos pela entidade enfrentam é a de acompanhar os conteúdos escolares durante e após os períodos de hospitalização ou de baixa imunidade, bem como de acesso a atividades oferecidas pela AMO, como as oficinas de informática. A pesquisa envolve os sujeitos entre o 4o e 9o ano do Ensino Fundamental e visa a selecionar e desenvolver um conjunto de aplicativos móveis para tablets que auxilie no desenvolvimento de competências linguísticas e raciocínio lógico. 3.1 METODOLOGIA DE AÇÃO DAS PESQUISAS A metodologia proposta para as pesquisas seguem as orientações do documento Padrões de Competência em Tecnologias da Informação e Comunicação – TIC - para Professores, desenvolvido pela UNESCO (2009). O documento apresenta diretrizes que orientam e impulsionam novas práticas educativas, combinando habilidades

7 Projeto apoiado pelos editais MCTI/CNPq/MEC/CAPES Nº 07/2011, CNPq/MinC/SEC Nº 80/2013 CNPq/Edital Universal 2013.

em TIC com inovações em pedagogia, currículo e organização escolar. Assim, o estudo de caso proposto nas pesquisas é conduzido a partir de três abordagens complementares: Alfabetização Digital, Aprofundamento do Conhecimento e Criação do Conhecimento. A abordagem metodológica é a mesma para os diferentes sujeitos das pesquisas, diferenciando-se somente os aspectos e os objetivos a serem explorados. Portanto, entendemos que essa abordagem pode ser explorada tanto na Educação Escolar como Não escolar. A primeira abordagem envolve a Alfabetização Digital. Para o professor ou educador, essa etapa é necessária para que ele possa se apropriar da tecnologia e pensar/planejar formas de integrar o uso dessas ao currículo escolar padrão, à pedagogia e às estruturas de sala de aula. Do ponto de vista dos alunos, envolve a apropriação e o reconhecimento dos dispositivos e aplicativos, além de atividades necessárias para as diversas atividades, como cadastro, perfil, navegabilidade, etc. Nessa etapa, a exploração livre das tecnologias e a descoberta são impulsionadas. A segunda abordagem envolve o Aprofundamento do Conhecimento. Nessa etapa, o professor deve pensar mudanças amplas e que tenham mais impacto sobre a aprendizagem, possibilitando habilidades para experienciar e utilizar metodologias e tecnologias mais sofisticadas, impulsionando mudanças no currículo. Do ponto de vista do aluno, essa etapa envolve ações mais específicas com o uso da tecnologia, voltadas para as atividades pedagógicas propostas, em que o desenvolvimento cognitivo é explorado e os objetivos educacionais propostos devem ser alcançados. A terceira abordagem é a de Criação de Conhecimento, que envolve, segundo a UNESCO (2009), “o aprendizado por toda a vida – a habilidade de colaborar, comunicar, criar, inovar e pensar de forma crítica”. Do ponto de vista do professor, é necessário que ele compreenda o uso das tecnologias como artefatos culturais, imbricados no sujeito aluno e no contexto social. Do ponto de vista do aluno, é necessário que esteja preparado para o desenvolvimento de atividades pedagógicas que vão exigir o uso efetivo de comunidades virtuais, aplicativos colaborativos, trabalho em grupo, ferramentas de comunicação e de criação e resolução de problemas. 63


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3.2 A SELEÇÃO E A ORGANIZAÇÃO DOS RECURSOS DIGITAIS Uma das questões fundamentais para o uso de dispositivos móveis na educação é a seleção e a organização dos aplicativos. Nesse sentido, buscamos na literatura frameworks ou metodologias que envolvessem essa temática, tais como as propostas de Patten, Sanchez e Tangney (2006), Deegan e Rothwell (2010) e o projeto iPads for Learning (2011). Além disso, consideramos a organização utilizada pelas lojas virtuais (GOOGLE PLAY STORE, 2013; APP STORE, 2013) das plataformas mais presentes no mercado atualmente (Android e iOS/Apple) para categorização dos aplicativos. A partir dos estudos acima, identificamos a necessidade de uma categorização mais voltada para as necessidades das pesquisas, que auxiliasse no planejamento das atividades pedagógicas. Entendemos que isso pode facilitar aos professores/ facilitadores na hora de analisar aplicativos para uso nas atividades. Além disso, essa categorização é a base para a organização dos aplicativos nos tablets, a fim de facilitar sua localização. Dessa forma, foram propostas as seguintes categorias: 1) Suporte - são os aplicativos Nativos já disponíveis nos dispositivos, tais como Calendários, Notícias, Navegadores, Comunicação, etc. Esses aplicativos em geral apoiam o uso de outros aplicativos; 2) Educação - aplicativos voltados especificamente para os conteúdos a serem desenvolvidos dentro da proposta pedagógica. Eles são subcategorizados conforme as temáticas, tais como Alfabetização, Português, Matemática, Espanhol, Inglês, Música, Artes, etc.; 3) Raciocínio - aplicativos que envolvem raciocínio e estratégia, podendo conter uma abordagem interdisciplinar com as demais categorias. Em geral, são usados para o desenvolvimento de habilidades necessárias para o entendimento e o desenvolvimento das temáticas relacionadas à educação; 4) Entretenimento podendo apresentar uma abordagem interdisciplinar com as demais categorias, envolvem aplicativos utilizados em uma abordagem mais livre do uso dos dispositivos. Podem ser subcategorizados em Ação e Aventura; Esportivos; Casual, etc.; e 5) Colaborativos - são os aplicativos que fazem uso da mobilidade, incentivando a troca de conhecimento e envolvendo atividades voltadas para a interação social e a colaboração. Essa categoria pode ser 64

subcategorizada em aplicativos voltados para Rede Social, Ambiente e Comunidade Virtual de Aprendizagem, Escrita Coletiva, Blogs, Criatividade/ multimídia, etc. Vale ressaltar que nas práticas pedagógicas o uso dos aplicativos se entrelaça, e a sua categorização não é o foco do processo educativo. Além disso, os sujeitos para os quais os processos estão voltados se utilizam de muitas ferramentas para o desenvolvimento de suas atividades e não estão presos a uma categorização do aplicativo. Por outro lado, entendemos que a categorização facilita o processo de apropriação do professor e também a organização dos aplicativos no tablet. Importante destacar que o processo de seleção e análise de aplicativos é contínuo e acontece sistematicamente como parte integrante das atividades educativas com uso dos tablets. 3.3 EXPERIÊNCIAS NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR A pesquisa Ensinar e aprender em/na rede iniciou em 2013 com a aquisição, com recursos do CNPq, de 17 tablets com sistema operacional Android. Essa pesquisa foi desenvolvida durante dois anos (2013 e 2014) por meio da pesquisa-ação, envolvendo professores e alunos dos anos finais do ensino fundamental da Escola de Aplicação Feevale. Entendemos que mudanças na prática docente não podem ser impostas e, dessa forma, envolver o professor no processo de pesquisa e torná-lo ator do seu processo de formação pode impulsionar mudanças significativas e a incorporação de novas práticas no fazer docente. A metodologia para a formação de professores foi baseada na proposta da Unesco (2009). A primeira abordagem envolveu a alfabetização digital do professor. Essa etapa de formação, que ocorreu principalmente no primeiro semestre de 2013, mas que se repetiu com novos professores que se envolveram na pesquisa em 2014, envolveu experiências no uso dos tablets e exploração de aplicativos, a fim de possibilitar ao professor conhecer o potencial dos dispositivos móveis e conhecer a proposta de uso do software social na educação. A segunda abordagem proposta pela UNESCO (2009) envolve o aprofundamento do conhecimento. Essa etapa foi desenvolvida especialmente durante o segundo semestre de 2013, envolvendo o planejamento das aulas junto


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com o professor e o acompanhamento da prática docente nas atividades com os tablets e com o uso do software social na sala de aula. A terceira e mais complexa das abordagens é a de criação de conhecimento. Essa etapa foi desenvolvida ao longo de 2014, quando os professores foram desafiados a utilizar os tablets e o software social sem o acompanhamento direto da equipe de pesquisa. A utilização dos tablets na educação, no âmbito do projeto Educanet, iniciou em 2012, quando a Escola de Aplicação adquiriu 20 iPads, que inicialmente foram utilizados apenas na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental. O estudo foi desenvolvido por meio de pesquisa-ação (ABDALLA, 2005), envolvendo as turmas dos anos finais do ensino fundamental da Escola de Aplicação Feevale (6o, 7o e 8o anos – a escola implantou o 9o ano apenas em 2014). Ao total, foram cinco turmas envolvidas (311, 321, 322, 421, 422), totalizando sete professores envolvidos diretamente nas atividades de pesquisa. Os professores envolvidos no projeto foram acompanhados de forma individual e/ou em pequenos grupos para estudos sobre o uso dos tablets na sala de aula. A primeira fase de uso dos iPads, durante o primeiro semestre de 2012, teve foco na alfabetização digital dos professores. Nesse período as atividades com alunos envolveram entretenimento e uso de aplicativos diversos para reforço escolar. Atividades de entretenimento foram realizadas nas primeiras vezes, para fazer um levantamento do conhecimento dos alunos sobre os dispositivos e, também, para possibilitar aos professores a familiarização com a dinâmica de uso dos iPads na sala de aula. A segunda fase, com foco no aprofundamento do conhecimento, aconteceu ao longo do segundo semestre de 2012 e no primeiro semestre de 2013. Nesse momento, os professores começaram a utilizar os tablets na sala de aula sem acompanhamento da equipe de formação. As atividades propostas aos alunos envolveram o uso de aplicativos para reforço aos conteúdos escolares em desenvolvimento. As atividades desenvolvidas nessa etapa buscaram uma articulação entre os aplicativos e a proposta de aula, mas as atividades ainda estavam muito centradas nos aplicativos. A terceira etapa, envolvendo a criação do conhecimento, desenvolvida durante o segundo semestre de 2013 e ao longo de 2014, teve por objetivo explorar práticas pedagógicas com o uso dos tablets na perspectiva de artefato cultural

digital. Nessa perspectiva, busca-se superar a ênfase nos aplicativos e possibilitar atividades efetivamente integradas aos conteúdos e ao dia a dia dos alunos. 3.4 EXPERIÊNCIAS NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO NÃO ESCOLAR A pesquisa envolvendo os sujeitos da AMO iniciou em 2012, com a aquisição, com recursos do CNPq, de sete tablets com sistema operacional Android. O trabalho desenvolve-se através de oficinas semanais, em que os participantes utilizam tablets contendo jogos educacionais e aplicativos que estimulam o aprendizado e o desenvolvimento das habilidades de leitura, escrita e raciocínio lógico. Inicialmente, durante 2013 e 2014, as oficinas foram integradas ao curso de informática básica oferecido aos pacientes e aos familiares. O educador responsável pelo curso foi envolvido no processo e auxiliou os pesquisadores nas atividades propostas. As experiências com relação a essa etapa da pesquisa podem ser consultadas em Barbosa, 2014; Barbosa, 2013). A partir de 2014, passaram a ocorrer somente com os pesquisadores e os bolsistas do projeto, envolvendo em alguns momentos a pedagoga da AMO. Nesse sentido, vivenciamos o papel de educadores e pesquisadores. Assim, relatamos neste artigo as experiências com as atividades de pesquisa ocorridas nesse período e que integram a etapa de Aprofundamento do Conhecimento. Visando a organizar a infraestrutura tecnológica, foram selecionados e categorizados aplicativos gratuitos disponíveis na loja virtual Google Play, segundo a organização proposta neste artigo. Priorizamos nessa etapa aplicativos que envolvem Português, Matemática, Raciocínio, Ação e Aventura. Além desses, utilizamos os aplicativos Nativos, tais como o Navegador, a Câmera, a Calculadora, Mapas, Memo (Notas), Planner (Calendário) e o aplicativo SuperNote para suporte à escrita de texto sem a necessidade de acesso à internet. Os aplicativos são constantemente revisados pela equipe de pesquisa e foram organizados em telas/ janelas dos tablets, conforme a sua categorização. As oficinas ocorreram no segundo semestre de 2014, as práticas culminaram na criação de Fanzines, e as crianças que participaram tinham de 12 a 13 anos. Essa produção foi escolhida, pois proporcionou aos autores expressarem seus gostos sobre diversos assuntos, como música, brinquedos, desenhos e hobbies. Cada oficina tem 65


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um planejamento, em que é solicitado aos sujeitos que desenvolvam as atividades propostas, conforme o projeto em desenvolvimento. Primeiramente, os sujeitos passaram pela etapa de Alfabetização Digital, em que o tablet e seus recursos foram usados livremente. Essa etapa acaba se entrelaçando com a etapa de Aprofundamento do Conhecimento, pois, em cada oficina, os sujeitos são motivados a utilizar os aplicativos que envolvem matemática e português, além de explorar recursos do dispositivo, navegar na internet e acessar a Google Play para sugerir novos aplicativos. Para o desenvolvimento da Fanzine, utilizou-se o aplicativo Supernote, que permitiu a inserção de imagens, áudios e desenhos, além da escrita com teclado e à mão. Além disso, como a entidade estava com problema no seu acesso à internet, o aplicativo permite trabalhar sem acesso a ela. Os sujeitos utilizaram também os recursos do dispositivo, como a câmera, para fotografar objetos e colocar na revista. Também foram utilizados o navegador para cesso a informações na internet e captura de imagens, manipuladas através do aplicativo de fotos. A escrita foi acompanhada pelas professoras, que apontaram aspectos a melhorar e propiciaram a correção, de forma que os participantes puderam conhecer regras e aplicá-las de forma adequada em seus textos. Foi possível perceber que as produções refletiram a personalidade de cada autor. Ao final do semestre, as Fanzines foram impressas e expostas em um quadro especial na AMO. 4 TECENDO AS CONSIDERAÇÕES FINAIS – REFLEXÕES SOBRE OS ENTRELAÇAMENTOS E AS ESPECIFICIDADES OBSERVADAS NO CONTEXTO ESCOLAR E NÃO ESCOLAR A aprendizagem significativa torna-se possível no momento em que as tecnologias de informação e da comunicação permitem explorar um universo de informações – o ciberespaço – em que as pessoas, interconectadas através de uma rede, navegam, buscam informações, trocam ideias, enfim, alimentam-se desse processo. Nesse cenário, a autonomia traduz-se como um elemento importante para a significação da aprendizagem do sujeito, que é responsável pela construção de seu próprio aprendizado e elabora e reelabora os elementos desse universo por meio de suas próprias escolhas, da interação e da seleção de elementos significativos que possam auxiliar em 66

sua aprendizagem. Percebemos que esse processo de aprendizagem significativa e de envolvimento com o processo de ensino e aprendizagem por parte do sujeito está presente tanto em um contexto de Educação Escolar como Não Escolar. No contexto Escolar, percebemos que quanto mais o professor articula a tecnologia com o currículo e as práticas pedagógicas, mais os alunos se envolvem e percebem significado nas ações pedagógicas, inclusive relacionando com outras áreas do conhecimento. No contexto Não Escolar, percebemos que articular a tecnologia com o objetivo pedagógico a ser alcançado, bem como com o contexto social e de saúde do sujeito (no caso da pesquisa, considerar a fase do tratamento do câncer em que o sujeito se encontra) é fundamental para os objetivos propostos. Além disso, independentemente do contexto, percebemos que os alunos exploram as potencialidades dos tablets, fazendo escolhas e usando recursos e aplicativos além dos propostos na atividade pedagógica, e colaboram para alcançar os objetivos propostos. Em muitos momentos, professores ou educadores se veem aprendendo novas ferramentas que não haviam sido pensadas no contexto da atividade proposta. Dessa forma, entende-se que a efetiva utilização das tecnologias no contexto educativo perpassa pelo processo de formação dos professores ou dos educadores e pelo processo de apropriação das tecnologias pelos alunos, bem como do envolvimento de ambos os sujeitos como atores ativos do processo educativo. Pensar ações pedagógicas que envolvem aprendizagem significativa e a autonomia do aluno encontra especificidades no contexto da Educação Escolar e Não Escolar. Na Educação Escolar, temos como elemento facilitador o fato de que as atividades estão voltadas para grupos organizados de forma seriada, com idades, interesses e conhecimentos aproximados. Por exemplo, as atividades envolvem, em geral, turmas de alunos que se encontram no mesmo ano escolar e estão juntos por um período maior de tempo – em geral, um ano. Além disso, geralmente os professores possuem um histórico do aluno ou da turma, visto que esses frequentam a Escola há um bom tempo. Nesse sentido, percebemos que esse cenário facilita o planejamento das atividades pedagógicas envolvendo as tecnologias, bem como a avaliação dos resultados, impactando nas novas atividades a serem propostas. Já no contexto da Educação Não escolar, planejar, observar e avaliar


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ações pedagógicas com o auxílio das tecnologias envolve um cenário no qual a diversidade de sujeitos e de interesses é um fator bastante presente. Geralmente, os grupos são heterogêneos tanto do ponto de vista de interesses como de conhecimentos. Por exemplo, em um mesmo grupo, temos sujeitos do 4o, do 50 e do 9o ano do ensino fundamental. Assim, a mesma atividade precisa envolver sujeitos, conteúdos e objetivos diferentes e, para isso, promover a construção de conhecimento levando em consideração as especificidades de cada participante. Independentemente do contexto Escolar ou Não escolar, percebemos que o sujeito aluno realmente percebe e utiliza a tecnologia, em maior ou menor intensidade, como elemento da sua cultura. Já, do ponto de vista do sujeito professor ou educador, a tecnologia é um elemento a ser conhecido, explorado e reelaborado, visto que não é um elemento natural da sua cultura. Segundo Prensky (2001), estamos vivendo uma geração que pode ser classificada como Nativos Digitais, isto é, sujeitos que nasceram com a tecnologia e são fluentes na linguagem digital dos computadores, dos jogos, dos videogames e da internet - os sujeitos da Escola de hoje. Assim, ao olhar para os sujeitos que hoje estão na Escola ou em projetos sociais, em contexto de educação Não Escolar, precisamos compreender que são sujeitos que nasceram e convivem em uma cultura digital, em que os artefatos tecnológicos digitais, segundo Bassani et al. (2013), são elementos naturais, imbricados no contexto de vida desses sujeitos, com mais ou menos intensidade. Ao mesmo tempo, essa cultura digital está permeada de sujeitos que não nasceram envolvidos pela tecnologia, os chamados Imigrantes Digitais, segundo Prensky (2001). Conforme o autor, esses sujeitos, que em geral são os professores ou os educadores, tendem a falar uma linguagem digital com sotaque e podem demonstrar dificuldade em compreender e expressar-se digitalmente, necessitando se adaptar a essa nova cultura digital e se apropriar dos artefatos tecnológicos digitais. Em ambos os contextos de pesquisa, percebemos claramente essas diferenças, relacionadas à cultura digital, entre professores ou educadores e alunos. Para o professor ou educador, pensar o uso da tecnologia no processo educativo envolve sempre o conhecimento com relação à tecnologia e o quanto se sente confortável com os recursos que serão utilizados. Esse aspecto limita o uso dos recursos disponíveis, mesmo que o professor

esteja apoiado por uma equipe de pesquisadores experientes. Esse fato ocorre de forma mais clara no contexto Escolar, pois o professor possui responsabilidades com o processo formal da Escola e precisa se reinventar e reelaborar o seu processo educativo. Portanto, o professor precisa lidar com o novo e com o desconhecido. No contexto da Educação Não Escolar, embora os educadores também estejam apoiados pelos pesquisadores, eles se sentem mais livres para experiências com os recursos tecnológicos, aprender junto com o aluno e alterar a atividade pedagógica durante o processo. Além disso, como é um cenário mais informal e com sujeitos heterogêneos, naturalmente cria-se o ambiente em que conviver com a diversidade é algo natural. A autonomia do aluno, nesse caso, é fundamental, pois é preciso que o educador dê conta dos diferentes objetivos e das necessidades presentes em uma mesma turma, no contexto de uma mesma atividade. Portanto, a mesma atividade pode atingir os objetivos para um grupo, mas ter de ser ajustada para outro. Em função dessa natureza, percebemos que tanto o sujeito aluno como o sujeito educador se sentem mais tranquilos em explorar os recursos digitais propostos. A partir disso, os sujeitos podem realizar uma busca significativa, que fomenta o reinventar de toda ação. 5 AGRADECIMENTO Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq - pelo apoio financeiro à pesquisa.

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O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE COMO PRÁTICA SOCIAL EFETIVA

Henrique Alexander Keske1 RESUMO O presente artigo se propõe a apresentar as temáticas de que trata a Lei nº 8.069/90, como paradigma legal que, no ordenamento jurídico brasileiro, se evidencia como resposta ao enfrentamento da proteção integral da criança e do adolescente, considerados como seres humanos em formação e, portanto, como fonte originária de direitos humanos. Por sua vez, o artigo insere-se em proposta de divulgar a forma com que o Direito pátrio procurou enfrentar dois graves problemas sociais, quais sejam: a violência praticada, em todos os níveis, contra os abrigados pela lei, tanto quanto a questão dos menores que praticam atos infracionais. Apresenta-se, igualmente, um guia prático para todos os chamados a tratar dessas temáticas, em todos os níveis definidos pelo Estatuto como operadores próprios do sistema, bem como a sociedade em geral, quer sejam universitários, estudantes, pais, professores ou responsáveis e envolvidos e/ou interessados, de alguma forma, de maneira a realizar um chamado a sua efetiva concretização. Essa tarefa se apresenta como responsabilidade a ser desenvolvida, conjuntamente, pela sociedade e por instâncias do Estado que, por definição constitucional, se diz democrático e de direito. Palavras-Chave: Estatuto da criança e adolescente. Efetividade. Políticas públicas ABSTRACT This article aims to present the themes dealt within the Law No. 8.069 / 90, as a legal paradigm that, in the Brazilian legal system, is evident as a response to the confrontation of the full protection of children and adolescents, considered as humans in training and therefore, as original source of human rights. In turn, this article is inserted in a proposal to disclose the way the parental law sought to face two serious social problems, namely: violence, at all levels practiced against the sheltered by the law, as far as the issue of minors who practice illegal acts. It presents also a practical guide for all called to address these issues at all levels defined by the statute as system operators themselves, as well as society at large, whether academics, students, parents, teachers or guardians, and involved and/or interested in some way, in order to make a call to its effective implementation. This task presents itself as a responsibility to be developed along with the society and instances of the state, which, for constitutional definition, calls itself democratic and righteous. Keywords: Child and Adolescent Statute. Effectiveness. Public policy.

Professor de Hermenêutica Jurídica e Ciência Política – Teoria Geral do Estado, do Curso de Direito da Universidade Feevale. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade do Vale do Sinos - UNISINOS. Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/RS e Doutor em Hermenêutica Filosófica pela Universidade do Vale do Sinos – UNISINOS. 1

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1 DAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS O presente artigo insere-se no contexto de contribuir para a implementação das políticas públicas voltadas à proteção integral da criança e do adolescente, considerados como seres humanos em formação, bem como da missão própria das instituições de ensino, no sentido de atuar no desenvolvimento de uma cidadania ativa, focada na dimensão social da comunidade em que estão inseridas, configurada, por sua vez, na formação de espírito crítico de todos os envolvidos em seus processos e que passam, assim, a conhecer a proteção legal presente em nosso ordenamento, relacionando tais definições legais, então, com as realidades concretas nas quais muitos estão envolvidos. Além disso, essa interação transformadora entre setores da sociedade e do Estado, escopo do artigo, se insere na possibilidade de operar uma intercomunicação de perspectivas e propostas entre saberes acadêmicos e populares, acentuada pelo desenvolvimento de ações processuais e contínuas que digam respeito, fundamentalmente, a todos os envolvidos na defesa dos direitos humanos da criança e do adolescente, uma vez que tais garantias estão estatuídas pela Constituição Federal/88 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, Lei nº 8.069/90, de 13 de julho de 1990, e suas alterações. Da mesma forma, a proposta deste artigo insere-se em todo um conjunto de ações públicas e privadas nesse sentido. Portanto, os beneficiários diretos aos quais nos dirigimos são os agentes sociais encarregados, pelo próprio ECA, para efetivarem, de forma concreta, em nossa sociedade, esses direitos fundamentais. Assim, é a esses agentes que o artigo se dirige, precipuamente, na tentativa de auxílio na qualificação para o cumprimento de sua tarefa, de forma a promover o estudo, a análise e a difusão de seus postulados, para contribuir no sentido da efetiva concreção do ECA como meio regulatório legal das políticas públicas voltadas à criança e ao adolescente. Entendemos que tais iniciativas se revistam do necessário caráter social implícito na temática abordada, pois procuram agregar os envolvidos nessas políticas, de forma a desenvolver ações tendentes à superação dos problemas sociais daí decorrentes, contribuindo ainda para a transferência e, mais precisamente, troca de conhecimentos e 70

de vivências voltadas para o tema. Dessa forma, ampliam-se oportunidades educacionais e facilitase o acesso de todos os envolvidos no seu processo de qualificação, para bem tratarem do destinatário final, ou seja, a própria criança e o adolescente, como valor máximo tutelado pelo Estado através do Estatuto. 2 DA PROTEÇÃO LEGAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE O Estatuto da Criança e do Adolescente, de forma precípua, é o marco fundamental, como norma legal regulatória, dos direitos humanos de crianças e de adolescentes, porque, ao dispor sobre tais direitos, o faz atendendo a dispositivos constitucionais – Constituição Federal/88; a normas constantes no Código Civil e no Processual Civil, bem como de Direito Penal, tendo originado, ainda, uma série de outras normas complementares para tratar da complexidade de sua temática, definida como de proteção integral ao bem jurídico a que se destina. Além de ter desencadeado toda uma estrutura normativa própria no direito pátrio, abriga em seus dispositivos vários instrumentos jurídicos internacionais, tais como: a Declaração dos Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas – Resolução nº 1.386, de 20.11.59, e a Convenção de 20.11.89, de que o Brasil é signatário; as Regras de Beijing – Regras Mínimas das Nações Unidas para administração da Justiça na Infância e na Juventude – ONU – Resolução 40/33, de 29.11.85; e as Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da delinquência juvenil – Anexo ao VIII Congresso das Nações Unidas sobre prevenção do delito e tratamento do delinquente juvenil, de 1990. Essa estreita relação entre os dispositivos legais brasileiros e as normas estatuídas por convenções, fóruns e organismos internacionais dedicados à questão aponta para uma sintonia muito apropriada para se estabelecer um novo paradigma para o tratamento das complexas questões sociais envolvendo as temáticas que dizem respeito à elaboração desse estatuto jurídico. Ademais, a aprovação do Estatuto em comento foi precedida por uma intensa movimentação social, no sentido de que a Assembleia Nacional Constituinte referendou essa emenda popular, origem da lei, ínsita no Art. 227 da Constituição Federal/88, de que o ECA é a posterior regulamentação.


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Por seu turno, a adoção desse novo paradigma veio alterar radicalmente o tratamento dado à questão pelo antigo Código de Menores, representando, mais ainda, um novo projeto jurídico-político no país e, portanto, uma profunda mudança desencadeada na Sociedade, no Direito e no Estado, no sentido de não se dar à complexidade do problema a solução simplista de “caso de polícia”. Esse entendimento anterior, focado na situação penal do menor infrator e de uma doutrina que se voltava para adequar a situação irregular e criminosa desse menor, discriminava parcelas significativas desses menores socialmente vulneráveis e excluídos da proteção efetiva do Estado, cujo empenho não estava focado em assegurar os direitos fundamentais ou garantir tais direitos contra possíveis ameaças ou efetivas violações. A alteração trazida pelo ECA significa não mais o mero tratamento da criança e do adolescente como objeto do direito, tutelado pelo Estado, mas a mudança de seu status jurídico, porque passam a ser considerados, agora, como pessoas em desenvolvimento e, como tais, sujeitos de direitos originários. Portanto, esses preceitos do Estatuto não apenas rompem com o modelo anterior – mero assistencialismo e discriminação –, como instituem o sistema de proteção integral como forma de priorizar a formulação de políticas públicas e dotações orçamentárias privilegiadas para o cumprimento de seus dispositivos normativos, dirigidos às diversas instâncias político-administrativas do país. A abrangência das questões e a complexidade das temáticas envolvidas no valor social garantido, agora, pelo ordenamento jurídico, possibilitam que esse normativo legal seja considerado como uma consolidação normativa, em sua condição de Estatuto. Com tal designação de Estatuto, por sua vez, como nova concepção legislativa, essas normas se estabelecem em função dos inúmeros dispositivos que se apresentam, de forma condensada e devidamente codificada, consubstanciando-se, no direito pátrio, em decorrência de sua prioridade social. Tal codificação se sustenta na garantia dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, bem como nas garantias específicas destinadas à criança e ao adolescente e que envolvem família, pais e/ou responsáveis, instituições públicas e privadas, governamentais e não governamentais e, portanto, como já referido, a Sociedade, o Direito e o Estado.

Dessa forma, além das circunstâncias gerais acima expostas, fundamentamos esta perspectiva em dar ênfase, cada vez maior, à efetividade do ECA, em função dos preceitos adotados como objetivo geral do próprio Estatuto, quando prima por formar cidadãos mais qualificados, como atores sociais e históricos, bem como de atender às demandas da cidadania ativa e do Estado Democrático de Direito, a partir de uma perspectiva ética, criativa, reflexiva, problematizadora e emancipatória. Assim, este artigo se insere no contexto de propiciar uma educação integral e humanista aos(as) operadores(as) do sistema de proteção legal da criança e do adolescente, bem como à sociedade em geral, pela difusão dos princípios constantes do referido sistema legal. De outra sorte, a característica das temáticas abrigadas no ECA e nos demais dispositivos normativos que tratam da questão exige, precisamente, que se propicie o acesso a um referencial teórico, bem como a espaços de experiência concreta, privilegiando a orientação dialógica e inter-multi-transdisciplinar do Direito para a implementação da integração entre todas as esferas sociais que atuam no sistema, de tal forma que é esse o enfoque com o qual este artigo se propõe a contribuir, no sentido de romper com os intrincados muros que ainda separam os agentes do Estado e as forças sociais atuantes no sistema jurídico. Da mesma forma, ao propormos a difusão do Estatuto, voltamo-nos para a possibilidade de propiciar uma formação geral suficiente para a prática das diversas funções jurídicas que tratam do problema, bem como possibilitar uma formação específica capaz de preparar os profissionais do Direito com condições de compreender a complexidade das relações jurídicas e a função social e promocional do Direito. Assim, quanto à função geral, ou integral, faz-se necessária a informação adequada para um grande número de profissões jurídicas, nos vários órgãos envolvidos nas ações estabelecidas pelo ECA, bem como, ao possibilitar a formação específica nas disposições do Estatuto, são oferecidas as condições para a compreensão das complexidades envolvidas na relação das instâncias jurídicas, com o âmbito das funções sociais primordiais do Estado, que se voltam para atender a tais demandas sociais. Ademais, entendemos ser necessário criar condições para que os(as) participantes das várias instâncias que se articulam no Estatuto possam 71


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incorporar a reflexão-ação-reflexão como valor pedagógico de saber pensar, problematizar, argumentar, refletir criticamente, julgar, tomar decisões, intervir e, fundamentalmente, saber integrar a interpretação, a compreensão e a aplicação da proteção jurídica às suas funções sociais, como responsáveis pela efetiva realização dos direitos humanos da criança e do adolescente, assegurados tanto pela Constituição Federal/88 quanto pelo próprio ECA. Assim, o desenvolvimento de tais habilidades e capacidades se inter-relacionam de forma construtiva, no sentido de se atender às demandas sociais e jurídicas da proteção integral à criança e ao adolescente, atualizando os(as) participantes acerca das disposições legais instituídas pelo Estatuto, bem como das respectivas práticas processuais que se instauram para o cumprimento de seus fins. Para o cumprimento dessa tarefa, deve-se ressaltar que as temáticas constantes no Estatuto exigem que os operadores do sistema possam entender o fenômeno jurídico em sua historicidade e complexidade, de forma que, ao se proporem ao exame e à análise aprofundada do novo paradigma jurídico-político estabelecido pelo ECA, se voltem, precipuamente, para possibilitar e desenvolver uma atitude investigativa, entendendo que a formação dos(as) participantes não pode estar calcada em meras proposições exegéticodedutivas e normativistas, meramente focadas no texto da lei. Dessa forma, tal conceituação se volta, portanto, precipuamente, para se enquadrar, aqui, o desenvolvimento das potencialidades humanas de seus integrantes, bem como da comunidade em que se encontrem inseridos. Ademais, desenvolver implica, igualmente, enfrentar a mazela social a que se destinam os fins precípuos do ECA, de proteção integral à criança e ao adolescente, considerados como seres humanos em formação e, portanto, como já referido, sujeitos de direitos originários. Entendemos, ainda, que os (as) participantes do sistema do ECA, dessa forma, tornam-se capazes de interagir como agentes propulsores de transformação social, tendo como referenciais a orientação dos valores do Estado Democrático de Direito e a promoção dos Direitos Humanos. Isso se dá em consonância com o Estatuto, já que esse surge, precisamente, como aplicação efetiva das determinações internacionais dos direitos humanos fundamentais, focados na criança e no adolescente, 72

de cujos dispositivos o Brasil é signatário, bem como se insere no contexto da redemocratização do Brasil e, portanto, orientado pelos valores do Estado Democrático de Direito e revela-se como esse novo paradigma do enfrentamento social das temáticas que aborda. Ao se propor a difundir o Estatuto, tendo como alvo estimular a sua efetivação concreta como legislação operante, inserimo-nos no âmbito de propiciar as melhores condições possíveis para que os direitos humanos de crianças e adolescentes se tornem realidades efetivas em nossa sociedade, de modo que as ações desenvolvidas pelos operadores do sistema apoiem o enfrentamento do abuso e da exploração sexual de crianças e adolescentes, bem como das outras formas de violência sofridas pelos destinatários finais da norma jurídica em comento. Assim, difundir o ECA, a partir do que o Estatuto prevê como direitos e deveres da família, da escola, da comunidade, da sociedade em geral e do próprio Estado e de suas Instituições, se nos afigura como a melhor forma de tratar, além das agressões sexuais e de violência doméstica, do outro foco definido pelo Estatuto e que diz respeito ao menor envolvido em ato infracional. Por seu turno, entendemos que as ações se devam dirigir, inclusive, no sentido de capacitação dos agentes do sistema para tratarem com os menores envolvidos nesses atos infracionais em sua relação com os órgãos judiciais específicos de prestação jurisdicional, por parte do Estado, bem como da própria Promotoria especializada. Portanto, como existem Juizados Especiais e Promotorias Especiais para tratarem desses menores infratores, também a esses sistemas se devem voltar nossas ações, no sentido de procurar recuperar esses menores, ressocializando-os ou, mesmo, socializando aqueles que só receberam dessa sociedade atos de exclusão. Informar e assessorar a formação dos Conselhos Tutelares, como operadores e mediadores entre a comunidade e o Estado e a efetividade do ECA parece se justificar de per si, principalmente quando se trata da realidade social do baixo nível de conhecimento dos operadores envolvidos nessas questões. Além do mais, quando focamos a realidade do trabalho em regiões industrializadas, ou mesmo em áreas rurais, importante se faz tornar efetivas, igualmente, as formas de tutela do ECA no que diz respeito à proteção do adolescente trabalhador, vindo a até mesmo a apoiar ações de


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verificação de ocorrência de trabalho infantil, para poder tratar de sua prevenção e erradicação. Além do mais, não podemos perder a possibilidade de realizar, agora, uma profunda análise crítica desses 25 anos de efetiva prática jurídica das disposições estatuídas pelo ECA e, nessa perspectiva, a melhor doutrina afirma, seguidamente, que o Direito, ao produzir sentido, e por se referir sempre à pessoa humana como sujeito de direitos originários, deve dialogar, de maneira permanente com sua própria aplicação, desenvolvendo, dessa forma, um processo de autocompreensão e de autocrítica permanente. Então, entendemos, ser este o momento de uma tal prática pedagógica, ou seja, de participar desse esforço de se assumir essa tarefa para o Direito como força viva e atuante na realidade social. Portanto, é agora o momento de propormos uma reflexão para revisarmos os procedimentos de todas as instâncias jurídicas e sociais que atuam e atuaram nesses 25 anos de prática da proteção integral da criança e do adolescente, envolvendo todos os seus agentes: seja a família, a sociedade, o Estado e seus órgãos, como o Ministério Público, as Defensorias, os Juízos Especiais, os Conselhos Tutelares, os advogados e todos os demais operadores do sistema. Pode-se, dessa forma, discutir quanto à validade dos dispositivos legais, das decisões sociais e da efetividade das práticas sociais em função disso desencadeadas, da legitimidade dos próprios dispositivos, bem como se representam ou representaram uma solução adequada aos fins a que se propuseram. 3 DA PROPOSTA DE UM GUIA PRÁTICO PARA ANÁLISE DAS TEMÁTICAS DO ESTATUTO Propomos, a seguir, aquilo que entendemos serem as melhores maneiras de abordagem dos dispositivos legais constantes no ECA, de forma a contribuirmos nas condições de entendimento de seus postulados, para se chegar a sua concreta efetividade, no sentido de desenvolvimento das habilidades e capacidades necessárias para o exercício posterior das funções dos operadores do sistema de proteção integral da criança e do adolescente. Nesse sentido, os operadores do sistema e mesmo o público em geral, interessados em tais temáticas, podem realizar um adequado enfrentamento das diversas instâncias previstas pela Lei nº 8.069/90, que o instituiu. Para tanto, então,

alinhamos as seguintes formas de abordagem do Estatuto. 3.1 DAS DISPOSIÇÕES ATINENTES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS INSTITUÍDOS PELA LEI O estudo deve iniciar-se pela análise das disposições que tratam dos direitos fundamentais atribuídos pela lei que institui o Estatuto, tais como: à vida e à saúde; à liberdade, ao respeito e à dignidade; à convivência familiar e comunitária; à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer; à profissionalização e à proteção ao trabalho. Com essa atividade, propicia-se o desenvolvimento das habilidades de se pensar e analisar, criticamente, os bens e os valores fundamentais erigidos como garantias legais, não somente por esse Estatuto, mas pela ordem jurídica como um todo, em função da complexidade do fenômeno jurídico, considerado em sua tríplice vertente de fato social, valor e norma. Esse enfoque inicial propicia, igualmente, aos(as) operadores do sistema, que possam articular os conceitos específicos abrigados no Estatuto como demandas sociais dirigidas a determinado fato, com os postulados gerais dos demais dispositivos legais que tratam do tema; no aprofundamento da relação entre o particular, ou seja, os direitos específicos de crianças e adolescentes; e o universal, isto é, relativamente aos direitos humanos em geral, pois ambos constam como bens jurídicos estatuídos. Essa ação se destina à articulação entre o poder público e a sociedade, ou seja, agentes sociais que trabalham no sistema do ECA, por meio de qualificação de seus participantes nessas instâncias e mecanismos de participação social. 3.2 DAS CONDIÇÕES ESPECÍFICAS QUE TRATAM DO ACOLHIMENTO FAMILIAR E INSTITUCIONAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Esses postulados dizem respeito às crianças e aos adolescentes que se encontram em condições de vulnerabilidade social, em função de sua família de origem, ou natural, das circunstâncias de sua família substituta, ou seja, aquela família para a qual a criança fora enviada, no caso concreto, bem como dos institutos jurídicos pertinentes a tais disposições. O conhecimento adquirido dessa maneira tem como objetivo habilitar os(as) 73


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operadores(as) do sistema a tratarem, habilmente, das questões relativas à guarda, à tutela, à adoção, inclusive de postulantes internacionais, dirigidas às crianças e aos adolescentes, focadas, igualmente, em sua relação com os demais dispositivos legais correlacionados a tais temas. 3.3 DAS POSSIBILIDADES DE PREVENÇÃO DAS AMEAÇAS OU VIOLAÇÕES AOS DIREITOS ESTATUÍDOS Esses dispositivos têm como objetivo estabelecer as condições para que os(as) operadores(as) do sistema examinem os serviços e os produtos que possam ser oferecidos aos destinatários da lei, quando submetidos a ameaças ou violações explícitas dos direitos a eles assegurados e que dizem respeito às informações disponibilizadas, pela sociedade, às crianças e aos adolescentes, isto é, ao tipo de informação que a sociedade faz chegar, de quaisquer formas, aos menores protegidos pela lei. Referese, ainda, aos instrumentos de desenvolvimento cultural e de lazer, esportes, diversões e espetáculos, inclusive quanto ao direito de ir e vir, bem como à possibilidade de realizar viagens. O conhecimento de tais condições habilita o operador ou futuro operador do sistema, para que possa zelar pela formação adequada desse menor abrigado pelas disposições da lei, em sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, tratando, inclusive, das responsabilidades das pessoas físicas e/ou jurídicas no que diz respeito à observância ou não dos dispositivos prescritos na própria lei. Não se trata de uma forma repressora de censura explícita, mas de uma forma de determinar o tipo de entretenimento e de informação que pode ser disponibilizado ao menor em função de sua idade. 3.4 DAS DISPOSIÇÕES GERAIS E ESPECIAIS ATINENTES ÀS POLÍTICAS DE ATENDIMENTO DETERMINADOS PELO ESTATUTO Essas disposições do Estatuto tratam do conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais necessárias ao cumprimento das funções de proteção integral previstas na lei. Assim, os(as) operadores(as) do sistema devem habilitarse a atuar junto aos respectivos órgãos responsáveis por tais ações, relativamente às entidades da União, dos Estados e dos Municípios, notadamente no que diz respeito ao atendimento médico e psicossocial às

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vítimas de negligência, maus tratos, exploração pelo trabalho, ou de quaisquer outras formas, bem como de abuso sexual e de outros abusos de qualquer natureza, além de crueldade no tratamento e opressão. 3.5 DAS ENTIDADES DETERMINADAS PELO ESTATUTO PARA ATENDER ÀS DEMANDAS DE RESSOCIALIZAÇÃO DO MENOR INFRATOR Esses dispositivos possibilitam identificar as entidades definidas pela lei e que estejam envolvidas no atendimento, no cumprimento e na aplicação de medidas de ressocialização e, muitas vezes, de socialização da criança e do adolescente. Deve-se esclarecer que, na maioria dos casos, nem se pode falar em ressocialização do menor que cometeu ato infracional, pois, uma vez mantido à margem de quaisquer mecanismos que lhe assegurassem condições mínimas de socialização, por ter uma vivência em condições de vulnerabilidade econômica, como acentuada miséria, nada recebeu desse Estado ou da sociedade, a não ser exclusão. As disposições estatutárias, nesse sentido, inserem-se no contexto de determinar ações de planejamento e execução de programas de proteção desse menor, quando em cumprimento de serviços socioeducativos, de orientação e apoio sociofamiliar. Também se volta para os casos de apoio socioeducativo em regime fechado, ou semiaberto, desde sua colocação ou recolocação familiar, e/ou atendimento institucional, ficando, dessa forma, capacitados os(as) operadores(as) do sistema a verificar as condições que são definidas como prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação compulsória. Além disso, esses dispositivos permitem a fiscalização das respectivas entidades que atuam em tais serviços. 3.6 DAS MEDIDAS ADOTADAS NOS CASOS DE AMEAÇA OU VIOLAÇÃO DOS DIREITOS INSTITUÍDOS PELO ESTATUTO Esses dispositivos tratam da importância e do alcance das medidas de proteção que foram adotadas nos casos gerais e específicos, bem como da ameaça e da violação das condições e dos direitos estabelecidos pela lei. A análise de tais postulados possibilita uma visão panorâmica dos casos de ação ou omissão da sociedade e/ou do Estado, bem como por falta, omissão ou abuso praticado pelos pais e/


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ou responsáveis e mesmo em razão da própria conduta do menor, no caso do adolescente. 3.7 DAS DEFINIÇÕES DA PRÁTICA DE ATOS INFRACIONAIS Trata-se de um dos pontos mais sensíveis do Estatuto, na medida em que, mesmo que o chamado “espírito da lei”, ou seja, os princípios norteadores adotados pelo legislador se voltem para a proteção da criança e do adolescente, deve-se passar pelo momento em que a lei estabelece e, portanto, classifica os atos que considera como infracionais, ou seja, como condutas antissociais praticadas pelo menor. Não se trata de enquadramento em delitos, uma vez que os autores de tais ações dispõem de uma classificação especial no ordenamento jurídico brasileiro, ou seja, não cometeram prática criminosa, mas ato infracional; configura-se na essência do tratamento especial atribuído pela lei a esse problema social. Entretanto, o ato infracional contra os direitos de terceiros foi cometido e, como tal, deve seu autor ser responsabilizado. Em função disso, tais disposições visam a tratar dos direitos individuais e das garantias processuais asseguradas aos menores enquadrados nos casos previstos em lei e possibilitam o exame das medidas aplicáveis em cada caso de ocorrência de práticas infratoras, bem como das condições de sua remissão, além de habilitar a tratar das medidas pertinentes aos pais e/ou responsáveis. O exame de tais dispositivos deve se focar, igualmente, a promover análise crítica acerca de um dos mais delicados e complexos temas tratados pelo Estatuto, como já referido, ou seja, a apuração de ato infracional atribuído ao adolescente. Além disso, essa análise crítica deve se voltar, igualmente, em relação às disposições atinentes à apuração de irregularidades praticadas pelas próprias entidades encarregadas do atendimento da criança e do adolescente, bem como das infrações e penalidades administrativas que lhes possam ser aplicadas. 3.8 DA CONSTITUIÇÃO DOS CONSELHOS TUTELARES Essas disposições tratam das condições de constituição dos órgãos definidos por lei para que, do âmbito próprio da organização social, possam zelar pelo cumprimento das disposições instituídas por esse Estatuto. Os dispositivos legais evidenciam atribuições, competências e o processo de escolha

dos Conselheiros, isto, é daqueles que se destinam a atuar em tais órgãos. Trata-se, portanto, de participação na formação e no controle social das políticas públicas e de representantes da sociedade civil organizada, bem como de apresentar as características de constituição desses Conselhos Tutelares para o desenvolvimento e a implantação das políticas públicas de que trata o ECA. 3.9 DA ATUAÇÃO NO SENTIDO DA GARANTIA DE DIREITOS DA JUVENTUDE E DA PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA Esses dispositivos evidenciam as condições estabelecidas pelo Estatuto relativamente ao acesso à Justiça, determinando as condições de atuação nas instâncias próprias da função jurisprudencial, quer seja por meio da Defensoria Pública, do Ministério Público e das instâncias apropriadas do Poder Judiciário, por quaisquer de seus órgãos. Nesse passo, são determinadas as condições e as disposições de aplicação da Justiça à infância e à juventude, definindo as atribuições do Juízo Especial e dos Serviços Auxiliares, bem como dos procedimentos específicos desses Juízos. Trata-se, igualmente, de qualificar os agentes do sistema à prática de ações de “re-inclusão” social, oportunidades e prevenção dos atos infracionais, primando pelo apoio à reinserção social e econômica de jovens egressos de internação em instituições socioeducativas. 3.10 DAS FUNÇÕES DOS DEMAIS ÓRGÃOS E DOS OPERADORES DO SISTEMA DE PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Essas determinações apresentam as funções de todos os órgãos que atuam no sistema de proteção integral da criança e do adolescente, além de uma revisão geral das funções específicas do Ministério Público. Nessas disposições está definida a atuação dos(as) operadores(as) do sistema em todas as lides dessa natureza. Habilitam-se, assim, a conhecer e, portanto, ter condições de vir a atuar nas instâncias específicas da proteção judicial dos interesses e dos direitos dos protegidos pela lei, tratando de suas definições; e, por fim, das disposições gerais e transitórias definidas pelo Estatuto em relação aos atos infracionais praticados pelos adolescentes. 4 DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse percurso que sugerimos, no sentido de abrir um espaço de ensino-aprendizagem acerca 75


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das instâncias e definições jurídicas instituídas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90, - 13.07.1990, o foco do artigo voltouse para a tarefa de divulgar as definições legais, através das quais o ordenamento jurídico brasileiro intentou tratar da proteção integral da criança e do adolescente, oferecendo uma possibilidade de compreensão desses dispositivos e apresentando os seus principais eixos temáticos. As definições constantes do Estatuto estabelecem os direitos e os deveres da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Estado, inserindo-se, por sua vez, no conjunto de políticas públicas a esse fim destinadas e levando em conta os fins sociais a que tal proteção se dirige, atentando, notadamente, às exigências e à condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. Estamos, portanto, diante de um novo paradigma legal para tratar dessa questão, até então, focada mais no tratamento policialesco dos problemas que a lei procurar enfrentar. Difundir essas disposições legais significa contribuir para as relações que se estabelecem entre Instituições Federais, Estaduais e Municipais, bem como Comunitárias, envolvidas na tutela do bem jurídico protegido pelo Estatuto, com o intuito de contribuir para a implementação das políticas públicas estabelecidas, no sentido de dar efetividade concreta às disposições Estatutárias, associando-se, dessa forma, à necessidade de natureza pedagógica no sentido de qualificação e formação dos operadores sociais do sistema do ECA. Procura-se estimular, dessa forma, o desenvolvimento social e o espírito crítico dos(as) acadêmico(as), bem como a atuação profissional dos operadores sociais do sistema do Estatuto, pautados na cidadania e na função social de suas atividades. Nesse sentido, procuramos focar seu caráter educativo, tendo como objetivo específico o de qualificar os operadores do sistema a tornar concretos, em nossa realidade social, os direitos humanos assegurados na Constituição Federal/88 e pelo próprio Estatuto relativos às crianças e aos adolescentes, considerados como seres humanos em formação e, portanto, como fonte de direitos originários. Evidentemente que a melhor maneira de seguir os comentários que elaboramos acerca das disposições desse Estatuto é, precisamente, ter presente o próprio texto da lei em mãos, 76

procedendo a uma análise comparativa entre os termos expressos pelo legislador com esses apontamentos aqui oferecidos. E, para tanto, basta um simples acesso, via Internet, como assinalamos logo a seguir, nas referências. Se apresentamos esses comentários, o fazemos na busca de dar ao Estatuto uma sempre maior e mais ampla divulgação, para que esse conhecimento se dissemine e se enraíze na sociedade como um saber que se transforme em prática social efetiva, no sentido da proteção integral da criança e do adolescente. Por fim, cabe ressaltar que, em inúmeras vezes, fizemos referência ao conceito de efetividade e de que nos voltamos, conscientemente, para nos articularmos com esse movimento de assegurar a devida concretização de tais dispositivos em nosso ordenamento. Procuramos, dessa forma, reforçar a ideia de que tornar efetivo, pois, se refere a fazer com que, efetivamente, essas disposições deixem a esfera da mera normatividade, uma espécie de miragem antevista pelo legislador, ou pior, como uma espécie de mistificação ideológica da lei, para se materializarem em nosso meio sociopolítico, a partir de sua concreta aplicação à realidade social que visa a enfrentar. Não se trata de uma lei recente, se considerarmos o tempo cronológico, pois já se passaram cerca de 25 anos de sua edição. Entretanto, em termos de sua prática realização, ainda nos debatemos com uma precária inserção em nossa realidade social, muitas vezes, senão na maioria das vezes, pelo desconhecimento de seus postulados e temas básicos. Isso chega a soar absurdo, mas se refere a uma triste constatação quando focamos as condições em que atuam os(as) operadores(as) do sistema. Entretanto, basta recordar que o Estatuto é uma espécie de rebento precoce, que se seguiu logo na esteira da Constituição Federal/88, definida como a Constituição Cidadã, em função das garantias e dos direitos fundamentais que estabelece em seu texto. Um breve olhar em nossa Carta Política poderá mostrar que, em toda a sua transversalidade, se estabelecem os direitos humanos fundamentais que devem sustentar e nortear nossa estrutura jurídicopolítica, que se define como Estado Democrático de Direito. Lamentavelmente, se focarmos nossa realidade social, poderemos constatar o quanto ainda nos distanciamos da efetividade de tais disposições constitucionais. O mesmo se aplica ao ECA. Então, não há como não pretender que tal


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efetividade se realize e se torne realidade concreta, a não ser pela insistente difusão dos postulados que protegem, em nosso ordenamento, esse bem absolutamente precioso e de valor-guia para uma nação, qual seja, a de proteção integral da criança e do adolescente.

REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <www.planalto. gov.br>. BRASIL. Lei nº 8.069/90, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente e suas alterações. Disponível em: <www.planalto.gov. br>. BRASIL. Lei nº 12.010/2009. Instituto da Adoção. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. CURY, Munir; MENDEZ, Emílio Garcia; SILVA, Antonio Fernando do Amaral. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente, Doutrina e Jurisprudência. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001. ONU – Organização das Nações Unidas. Resolução nº 1.386, de 20.11.1959; Resolução nº 40/33, de 29.11.1985; Anexo ao VIII Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente/1990. 77


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CADERNO DE CAMPO: UM INSTRUMENTO DE AVALIAÇÃO NA PERSPECTIVA INCLUSIVA

Elizete Vargas1 Morgana Domênica Hattge2 RESUMO A inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho tem se constituído em um grande desafio. Assim, os cursos de Aprendizagem Comercial, idealizados e assegurados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), têm se tornado uma importante alternativa na garantia desse processo de inclusão. O presente artigo trata, em linhas gerais, do programa Jovem Aprendiz e da lei de cotas, bem como analisa a utilização do Caderno de Campo como instrumento alternativo de avaliação da prática realizada em empresa do Vale do Taquari/RS por jovens aprendizes com deficiência. Através deste estudo, foi possível perceber os resultados positivos do caderno de campo como instrumento avaliativo. Palavra-chave: Inclusão. Caderno de campo. Pessoas com deficiência. Avaliação. ABSCTRAT The inclusion of people with disabilities in the labor market has constituted a great challenge. Thus, the Commercial Training courses , devised and provided by the Ministry of Labor and Employment (MTE) have become an important alternative in ensuring that the inclusion process. This article is, in general, the Young Apprentice program and the quota law, and examines the use of Fieldbook as an alternative measure to assess practice held in company Vale do Taquari / RS, for young apprentices with disabilities. Through this study it was revealed the positive results of field book as assessment tool. Keywords: Inclusion. Field notebook. People with disabilities. Evaluation.

Professora Orientadora da Educação Profissional no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC) em Lajeado – RS. Especialista em Educação Especial - Centro Universitário Univates. 2 Professora e Coordenadora do Curso de Pedagogia e Professora do Curso de Pós-Graduação em Educação Especial do Centro Universitário Univates – Lajeado-RS. Pedagoga. Mestre e Doutora em Educação. 1

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1 INTRODUÇÃO Mesmo que a sociedade tenha mudado nos últimos tempos e seja possível observar transformações na forma de nos relacionarmos com as diferenças, as pessoas com deficiência ainda são vistas muitas vezes como seres incapazes de gerenciar seus sentimentos e suas opiniões, de serem autônomas, ou seja, de conduzirem suas próprias vidas. No decorrer deste artigo, utilizaremos a terminologia pessoas com deficiência, pois é o termo presente na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, na Organização das Nações Unidas (ONU), de 2006 (LANNA JÚNIOR, 2010). Muitas vezes ouvimos termos como pessoa portadora de deficiência ou portador de deficiência. A pessoa não porta ou carrega sua deficiência, ela tem uma deficiência, e, antes de ter uma deficiência, é uma pessoa como qualquer outra e traz consigo muitas potencialidades. Nas últimas décadas, houve um avanço nas políticas públicas no que se refere à inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Em 1981, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou que seria o Ano das Pessoas com Deficiência. Para Bordignon (2011), o objetivo era chamar a atenção para a necessidade de criação de planos de ação para enfatizar a igualdade de oportunidades, o direito à prevenção e à reabilitação das pessoas com deficiências. No Brasil, o programa Jovem Aprendiz é uma alternativa para que jovens possam se capacitar e ingressar no mercado de trabalho. Esse programa possibilita o acesso de jovens com idade entre 14 e 24 anos e, para os aprendizes com deficiência, não há limite de idade (Cf. parágrafo único do Art. 2º do Decreto nº 5.598). O Art. 43 da Lei 1.097, de 19 de dezembro de 2000, diz que: “na hipótese de os Serviços Nacionais de Aprendizagem não oferecerem cursos ou vagas suficientes para atender à demanda dos estabelecimentos, esta poderá ser suprida por outras entidades qualificadas em formação técnicoprofissional metódica, a saber” (NR)3

Para facilitar a rápida captação do que foi alterado numa determinada lei por outra, o expediente previsto é a inclusão, no final do texto, do artigo, cuja redação foi alterada, da expressão "(NR)", isto é, "nova redação". 3

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II – Escolas Técnicas de Educação III – Entidades sem fins lucrativos, que tenham por objetivo a assistência ao adolescente e à educação profissional, registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (AC).4 Entre as diversas instituições que oferecem cursos de aprendizagem comercial, destaca-se as do Sistema “S”5, SENAR, SESCOOP, SENAT, SENAI E SENAC. Para se matricular no curso, o aprendiz deve ser encaminhado por uma empresa cotista. As empresas buscam jovens aprendizes através de anúncios nas escolas e também veículos de comunicação. A cota de aprendizes está fixada entre 5%, no mínimo, e 15%, no máximo, por estabelecimento, calculada sobre o total de empregados cujas funções demandem formação profissional. Sendo assim, os cursos de aprendizagem possibilitam a capacitação do jovem contratado pelas empresas do setor de comércio de bens e serviços, por meio de cursos destinados a proporcionar, na forma da lei, competências necessárias ao exercício profissional, além de propiciar a formação integral do jovem aprendiz, criando situações de aprendizagem que o levam a aprender a aprender, a mobilizar, a articular e colocar em ação conhecimentos, habilidades e valores em níveis crescentes de complexidade. No período em que foi desenvolvida a pesquisa, o curso de Aprendizagem Comercial Serviços Administrativos, ministrado no Senac/ Lajeado-RS, tinha uma carga horária de 800 horas. Desse total, 400 horas do módulo teórico, que eram desenvolvidas na escola profissionalizante. E, após o término do módulo teórico, os aprendizes realizam

4 AC – Cada vez que houver o acréscimo de dispositivo, ou seja, alteração na Lei, dever-se-á incluir, ao final do dispositivo, entre parênteses, a sigla AC.

Sistema S - O sistema S é formado por organizações e instituições todas referentes ao setor produtivo, tais como indústrias, comércio, agricultura, transporte e cooperativas, que têm como objetivo, melhorar e promover o bem-estar de seus funcionários, a saúde e o lazer, por exemplo, como também a disponibilizar uma boa educação profissional. As instituições do Sistema S não são públicas, mas recebem subsídios do governo.

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as 400 horas do módulo prático na empresa. Nossa pesquisa foi realizada durante o Módulo Prático na empresa, o que aconteceu de março a dezembro de 2013. Atualmente, essa carga horária teve alterações e passou para 1.100 horas, sendo 500 horas na escola profissionalizante e 600 desenvolvidas na prática nas empresas. Essa alteração aconteceu devido à mudança estabelecida pelo CONAP (Catálogo Nacional de Programas de Aprendizagem), que reestruturou as horas, organizando-as por famílias ocupacionais, conforme agregação utilizada na CBO6, que enumera as atividades realizadas pelo profissional e especifica requisitos especiais de idade e escolaridade para o exercício da ocupação. Durante o período da prática na empresa, a escola SENAC/Lajeado-RS acompanha o desenvolvimento dos aprendizes através de visitas periódicas e registros em um formulário padrão. Essa avaliação acontece durante as visitas realizadas pelo representante da escola, que, juntamente com o jovem aprendiz e o(a) gestor(a), realiza os registros em formulário padrão da escola profissionalizante. Percebeu-se que esse modelo de avaliação não poderia ser aplicado aos aprendizes com deficiência devido ao fato de que muitos deles necessitam de um acompanhamento diferenciado nas questões referentes à escrita, à leitura e a outras demandas da aprendizagem. Conhecendo as necessidades desses aprendizes, pensou-se em um modelo alternativo de avaliação que complementaria a ficha de avaliação exigida pela instituição: o caderno de campo. Para Beber (2013, p. 6), quando um sujeito tem conhecimento de suas especialidades, eficácias e limitações, consegue ter clareza na escolha da estratégia mais adequada para a realização de determinada tarefa e, por consequência, domina as ações necessárias. É importante deixar claro que não se está, de maneira alguma, criticando a forma de avaliação 6 A CBO é o documento que reconhece, nomeia e codifica os títulos e descreve as características das ocupações do mercado de trabalho brasileiro, organizadas e descritas por famílias. Cada família constitui um conjunto de ocupações similares correspondentes a um domínio de trabalho mais amplo que aquele da ocupação. A versão 2002 está disponibilizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego – MTE para consulta pela Internet por meio de endereço eletrônico://mtecbo/cbosite/pages/homes.jsf

utilizada pela instituição, apenas criando alternativas que, aliadas ao modelo já existente, contribuam tanto para o desenvolvimento da empresa quanto dos aprendizes. Portanto, o objetivo principal da pesquisa realizada foi analisar a utilização do caderno de campo como instrumento alternativo na avaliação das práticas realizadas pelos aprendizes com deficiência nas empresas. Para atender aos objetivos propostos, este artigo está dividido em quatro seções. A primeira seção dedica-se à fundamentação teórica sobre a lei de cotas e o programa Jovem Aprendiz. A segunda seção traz uma discussão sobre a avaliação e o caderno de campo. A terceira seção explica a metodologia utilizada. E, por fim, a quarta seção aborda as contribuições do caderno de campo no processo formativo. 2 LEI DE COTAS E PROGRAMA JOVEM APRENDIZ Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos seja clara quanto ao direito do trabalho, sabemos que o mercado de trabalho pode ser excludente, visto o grande número de pessoas sem acesso ao emprego em todo o mundo, principalmente nos países em desenvolvimento como o Brasil. Na Lei nº 8.122, de novembro de 1990, fica determinado que até 20% das vagas dos concursos públicos sejam destinadas a pessoas com deficiência. No ano seguinte, foi promulgada a Lei nº 8.123, de 24 de julho de 1991, mais conhecida como Lei das Cotas. Empresas privadas, com 100 funcionários ou mais, são obrigadas a garantir vagas em seu quadro funcional para pessoas com deficiência. As cotas variam de 2% a 5% dos postos de trabalho (de 100 até 200 funcionários, 2%; de 201 até 500 funcionários, 3%; de 502 até 1.000 funcionários, 4%, e de 1.001 funcionários em diante, 5%). De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE, 2001), a fiscalização da Lei das Cotas para pessoas com deficiência ocorre em duas esferas. De um lado, atua o Ministério do Trabalho e Emprego, através das Superintendências Regionais do Trabalho; nesse caso, o descumprimento da legislação resulta em multas. De outro, há as ações do Ministério Público do trabalho, que firma termos de compromisso com as empresas e, caso não haja acordo, inicia processos judiciais. 81


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O programa Jovem Aprendiz, antes chamado de Menor Aprendiz (para PCD chamado de Programa de Aprendizagem), citado primeiramente no Decreto-Lei nº 5.598, de 1º de dezembro de 2005, tem como objetivo principal a regulamentação da contratação de aprendizes. De acordo com esse Decreto, é considerado aprendiz o jovem com idade de catorze a vinte quatro anos. Para as pessoas com deficiência, não há limite de idade, assim como a comprovação da escolaridade de aprendiz com deficiência mental, considerando as habilidades e as competências de profissionalização. No ano de 2000, através da Portaria nº 615/2007, foi criado o Cadastro Nacional de Aprendizagem, que se destina à inscrição das entidades qualificadas em formação técnico/ profissional metódica, buscando promover a qualidade técnico/profissional dos programas e cursos de aprendizagem. Ao cadastrar os cursos no Cadastro Nacional de Aprendizagem, a Instituição deve fornecer dados sobre o público participante do curso (perfil), os objetivos do programa (ações a serem realizadas e os conteúdos a serem desenvolvidos - habilidades, competências e atitudes). Esse programa facilita o processo de capacitação profissional de jovens e adultos, com ou sem deficiência, pois possibilita o aprendizado da atividade real de trabalho, no local de trabalho, com a supervisão de professores da instituição responsável pelo desenvolvimento do componente curricular. Assim, o programa possibilita conhecimentos e vivências que possibilitarão, além da inserção no mercado de trabalho, utilizar esse aprendizado e conhecimentos significativos adquiridos ao longo de sua vida profissional. Os jovens aprendizes, após o término do módulo teórico, realizam o módulo prático na empresa cotista e são avaliados da mesma maneira que os aprendizes das turmas regulares. Ou seja, pela ficha-padrão. Porém, esse modelo de avaliação não leva em conta o acompanhamento diferenciado de que esses aprendizes necessitam, impossibilitando uma análise mais precisa do desenvolvimento na realização das atividades. Por isso, uma das alternativas foi a utilização do caderno de campo como um instrumento diferenciado na avaliação desses jovens aprendizes com deficiência.

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Sendo assim, nosso objetivo é relatar como o caderno de campo pode ser utilizado como instrumento de avaliação dos jovens PCDs na prática supervisionada na empresa. “Estes papéis profissionais, familiares e sociais, irão influenciar no seu acesso ao mercado de trabalho. Este tem papel importante na inclusão, já que proporciona condições necessárias básicas, a valorização e o desenvolvimento das potencialidades das PNE’s” (ARAÚJO; SCHMIDT, 2006, p. 75). O caderno de campo será o aliado nesse processo, uma vez fará parte não apenas do processo avaliativo, foco da nossa pesquisa, mas será nosso canal de comunicação entre aprendiz PCD e empresa, estreitando laços e tornando o processo avaliativo mais próximo das necessidades e da realidade desses jovens trabalhadores. 3 AVALIAÇÃO E CADERNO DE CAMPO Com a inserção de um grupo de jovens aprendizes com deficiência em uma empresa do Vale do Taquari/RS, muitas adaptações foram necessárias no planejamento das aulas do curso para atender a esse novo desafio. Mas, o que gerou inquietação e se constituiu no foco deste artigo foi a avaliação desses jovens aprendizes na prática na empresa. “Um processo pelo qual se procura identificar, aferir, investigar e analisar as modificações do comportamento e rendimento do aluno, do educador, do sistema, confirmando se a construção do conhecimento se processou, seja este teórico (mental) ou prático” (SANT’ANNA, 1998, p. 29-30). Os jovens aprendizes com deficiência, durante a prática na empresa, seriam avaliados com a mesma ficha-padrão de avaliação utilizada pela escola profissionalizante para os demais aprendizes. Nessa ficha-padrão de avaliação, são realizados registros periódicos sobre o desenvolvimento dos aprendizes na prática na empresa. São atribuídos conceitos de A (apropriou), NA (não apropriou) e NV (não verificado). Também existe um campo no qual gestor(a) e aprendiz podem, por escrito, redigir um texto sobre o desenvolvimento verificado no período. A fichapadrão de avaliação é preenchida pelo(a) gestor(a) e aprendiz acompanhado pelo representante da escola profissionalizante. Sabemos que o processo avaliativo nem sempre supre as necessidades e muitas vezes a forma como


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avaliamos gera um impacto muito grande sobre os avaliados. Pensando nessa questão é que o caderno de campo serviu como alternativa de avaliação, já que acompanhou os aprendizes durante sua prática na empresa. Afinal, esse caderno serviu de elo entre aprendiz, gestor(a) e empresa. Segundo Falkenbach (1987, p. 16): O diário de campo, mais do que um instrumento de anotações, pode funcionar como um ‘sistema de informação’, onde. é possível avaliar as ações realizadas no dia a dia, permitindo que o diário de campo, mais do que um instrumento de anotações, pode funcionar como um ‘sistema de informação’, onde é possível avaliar as ações realizadas no dia a dia, permitindo que o investigador seja capaz de melhorálas e ao mesmo tempo desenvolver sua capacidade crítica, através da elaboração de um planejamento, onde ele possa traçar objetivos e propor atividades, preparando assim as ações profissionais futuras.

Afinal, foi nele que, ao final de cada dia, as atividades realizadas foram registradas juntamente como gestor(a) e aprendiz. Essa aproximação foi muito importante, pois as tarefas eram comentadas e, caso fosse necessário, readequadas. O objetivo da avaliação da prática na empresa é permitir um acompanhamento mais efetivo do desenvolvimento profissional desses jovens aprendizes com deficiência, dos resultados obtidos nas atividades desenvolvidas durante a prática e para repensar as atividades a eles destinadas. Os registros no caderno de campo foram diários, obedecendo a uma ordem de data e setor onde as atividades foram desenvolvidas. Essa sistemática de registro foi importante para saber as tarefas que foram direcionadas e a preocupação na escolha das atividades designadas aos jovens aprendizes com deficiência. Por ser também um instrumento de registro de atividade de pesquisa, segundo Triviños (1987, p. 114), Considera o diário de campo uma forma de complementação das informações sobre o cenário onde a pesquisa se desenvolve e onde estão envolvidos os sujeitos, a partir do registro de todas as informações que não sejam aquelas coletadas em contatos e entrevistas formais, em aplicação de questionários, formulários e na realização de grupos focais.

Assim, após termos feito nossa explanação de como utilizamos o caderno de campo como instrumento de avaliação, seguimos agora para a metodologia, na qual abordaremos a maneira como utilizamos a pesquisa realizada para este artigo. 4 METODOLOGIA As análises realizadas neste estudo contaram com a utilização do caderno de campo e de entrevistas realizadas na empresa junto aos(às) gestores(as) e aprendizes com deficiência. A realização das entrevistas possibilitou uma interação entre as pessoas, gerando diálogos, sentimentos e significados que resultaram em novos conhecimentos. A entrevista é uma estratégia importante, uma vez que produz um material privilegiado e constituise numa opção teórico-metodológica que está no centro de vários debates entre os pesquisadores. Em geral, a maior parte das discussões trata de problemas ligados à postura adotada pelo pesquisador em situação de contato com o entrevistado, ao seu grau de familiaridade com o referencial teóricometodológico adotado e, sobretudo, à leitura, interpretação e análise do material recolhido no trabalho de campo (DUARTE, 2002). Além disso, a pesquisa pode mostrar muito mais significados que estão intrínsecos na habilidade e na sensibilidade de o entrevistador se conectar com o entrevistado. E, dependendo desse contexto, segundo Silveira (2002, p. 118), Quando se pensa em entrevista [...] temse a seguinte imagem: de um lado o entrevistador, coletando dados[... ], de outro o entrevistado com seu nervosismo pensando o que falar, que perguntas irão ser feitas e como o entrevistador irá interpretálas. O que fica desta coleta de dados são os gestos, o tom de nervosismo ou até mesmo de agrado sobre determinado assunto. Neste jogo de representações e significados que permeiam as entrevistas, deixemos um pouco de lado a busca incessante de revelar ‘verdades’, e passemos a investigar de que significados estão povoadas as palavras ali usadas, levando em conta o destinatário da entrevista, assim como os sucessivos relatos e regularidades.

Participaram da pesquisa três gestoras da empresa cotista que acompanharam as atividades diárias de três aprendizes. 83


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Os dados das entrevistas com as gestoras e os jovens aprendizes com deficiência, posteriormente, foram transcritos. No momento da transcrição, utilizamos G1, G2 e G3 para designar as falas dos gestores. E, quando transcrevemos a fala dos aprendizes, utilizamos A1, A2 e A3. No texto transcrevemos com fidelidade a fala dos entrevistados para tentar mostrar os sentimentos inseridos nas palavras. E, sobre a transcrição das entrevistas, Bourdieu (1999) “aponta algumas sugestões, que é parte integrante da metodologia do trabalho de pesquisa. Uma transcrição não é só aquele ato mecânico de passar para o papel o discurso gravado do informante, pois, de alguma forma, o pesquisador tem que apresentar os silêncios, os gestos, os risos, a entonação de voz do informante durante a entrevista. Esses “sentimentos” que não passam pela fita do gravador são muito importantes na hora da análise, eles mostram muita coisa do informante. O pesquisador tem o dever de ser fiel, ter fidelidade quando transcrever tudo o que o pesquisado falou e sentiu durante a entrevista. Ao realizarmos pesquisas com gestores e aprendizes, temos que ter em mente o que fazer com as informações recebidas. Qual a maneira correta de utilizarmos as informações recebidas. Nesse sentido, Silveira (2002, p.120) “ressalta que é nessa clareira de inseguranças de como se caracteriza este evento discursivo ‘entrevista’ e, sobre o que ‘fazer’ com as falas e registros deixados por ela, num horizonte onde as verdades são ditas como discursivas, que se insere neste estudo”. Assim, realizamos a seleção das “falas” que julgamos se enquadrarem de maneira harmônica nesta pesquisa e faremos os relatos a seguir. Não foi uma tarefa fácil, pois todas estão carregadas de informações e tivemos que filtrar nas entrelinhas as que mais se adequaram a este estudo. Sendo assim, na próxima seção apresentamos os resultados das análises empreendidas, abordando as contribuições do caderno de campo para o processo formativo segundo gestores e aprendizes. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa realizada comprova que a utilização do caderno de campo conseguiu atingir seus objetivos, pois possibilitou avaliar as atividades realizadas pelos aprendizes com deficiência de forma mais particularizada, levando em consideração suas necessidades especiais de aprendizagem, assim como seu crescimento intelectual durante a prática 84

na empresa. Essa afirmação é observada nas palavras da G37, quando diz: o caderno serviu como avaliação sim. Foi muito positivo. Foi uma novidade para nós este acompanhamento. Tanto para nós da empresa como para os aprendizes especiais. Tenho certeza que houve um crescimento deles e a gente teve a oportunidade de demonstrar este trabalho deles na empresa. A empresa ganhou com eles e eles com certeza ganharam com a empresa. Houve uma troca de experiência...uma troca de aprendizado que foi muito importante. Foi muito gratificante. [sic]

Esse crescimento intelectual foi percebido tanto pelos próprios aprendizes com deficiência como pelos gestores. Com o final da prática, gestores e aprendizes leram todos os registros. O resultado dessa leitura resultou em reflexões que geraram um duplo sentimento: primeiramente, o de dever cumprido e também o relacionamento interpessoal entre os envolvidos. Dever cumprido, pois a empresa batalhou muito para conseguir um grupo de aprendizes que estivesse disposto a realizar o curso de capacitação. Em relação ao relacionamento interpessoal, todos nós sabemos o quanto é difícil fazer com que um grande grupo interaja com mudanças e se adapte de maneira harmônica às transformações que o mercado de trabalho exige. Mas, o que observamos foi que essa empresa fez a diferença e auxiliou na formação de novos profissionais tão especiais. O relacionamento interpessoal foi muito importante, pois, através dos relatos, observamos o quanto todos se esforçaram para que esses jovens se sentissem acolhidos e que tudo corresse da melhor maneira possível. Percebemos nas palavras de A1 que, após ler os registros, percebeu que cresceu muito. Esse crescimento é retratado nestas palavras: “mudei, fiquei mais responsável. O crescimento de amadurecer, de crescer. Lendo o que escrevi. Tudo o que cresci. Da minha parte e pelos o que os outros sentiam em mim. Eles sentiam que eu era uma moça que tinha bastante responsabilidade, maduram né”. E também nos relatos de A2 ao olhar o caderno de campo: “eu olhei o caderno de campo e me 7 A transcrição foi realizada de maneira fiel às palavras do entrevistado.


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senti bem. Feliz. Eu completei tudo aquilo que eu consegui. Atingi a meta”. Ao ler as anotações, A3 diz com muito entusiasmo: “porque eu vi o quanto eu aprendi e fui crescendo. Eu mudei muito. Agora eu converso com as pessoas, inclusive em casa. A cada dia eu aprendia mais. E, quando eu anotava, eu crescia mais. Porque eu via que era capaz”. Além da avaliação, o caderno de campo funcionou como um instrumento de aprendizado e também de organização das atividades realizadas na prática. Caso algum(a) gestor(a) não estivesse presente e surgisse alguma dúvida quanto às atividades destinadas aos aprendizes, os colaboradores sempre recorriam aos registros do caderno de campo. Como foi observado, o caderno de campo, para os aprendizes com deficiência, foi muito mais do que avaliação. Segundo G1, “eles viam o caderno como um troféu... um certificado. Eles davam muito valor para este caderno. Ele era muito bem cuidado”. Diante das diversidades intelectuais, sempre podemos criar soluções adequadas às realidades e que possibilitem um melhor aproveitamento no processo de avaliar. Muitas vezes a saída é elaborar alternativas paralelas, como foi o caderno de campo. O caderno de campo foi muito além das expectativas, pois, além de avaliar, aproximou aprendizes, gestores(as) e empresa. Os registros no caderno de campo criaram um elo de amizade e confiança entre as pessoas envolvidas, estreitando laços e registrando uma nova história na vida desses aprendizes PCDs. Que venham novos desafios. Salientamos que esta pesquisa é o pontapé inicial para oportunidades futuras de continuidade do estudo nessa área e do acompanhamento mais detalhado dos retornos na prática de um processo avaliativo diferenciado.

REFERÊNCIAS ARAÚJO, Janine Plaça; SCHMIDT, Andréia. A inclusão de pessoas com necessidades especiais no trabalho: a visão de empresas e de instituições educacionais especiais na cidade de Curitiba. Rev. Bras. Educ. Espec., Marília, v. 12, n. 2, p. 67-98, ago. 2006.

BEBER, Bernadétte et al. Autorregulação: processo metacognotivo facilitador da aprendizagem. Competência: Revista Superior da Educação do Senac-RS, Porto Alegre, v. 6, n. 1, jul. 2013. BORDIGNON, Priscila Mallmann. A inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho: uma realidade possível. Disponível em: <http:// www.faders.rs.gov.br/ >. Acesso em: 01 dez. 2014. BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Tradução de Mateus S. Soares. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. BRASIL. Lei n. 10.097, de 19 de dezembro de 2000. Altera dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l10097.htm->. Acesso em: 01 dez. 2014. COSTA, Marisa Vorraber Costa. (Org.). Caminhos Investigativos II: outros modos de fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. DUARTE, Rosália. Pesquisa qualitativa: reflexões sobre o trabalho de campo. Educação & Sociedade, Campinas, n. 115, p. 139-154, mar. 2002. FALKENBACK, E. M. F. Diário de Campo: um instrumento de reflexão. Revista Contexto/ Educação, Ijuí, 1987, Unijuí, v. 7, s.d. LANNA JÚNIOR, Mário Cléber Martins (Comp.). História do movimento político das pessoas com deficiência no Brasil. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010. 443 p. SANT’ANNA, Ilza Martins. Por que avaliar? Como avaliar? Critérios e instrumentos. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. 4-130 p. SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. A entrevista na pesquisa de educação uma arena de significados. In: COSTA, Marisa Vorraber. (Org.). Caminhos Investigativos II outros modos de pensar e fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A. 2002. TRIVIÑOS, A.N.S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

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ANEXOS

APRENDIZAGEM PROFISSIONAL COMERCIAL AVALIAÇÃO DO APRENDIZ – PRÁTICA PROFISSIONAL NA EMPRESA SENAC LAJEADO Nome do aprendiz: Curso:

______________________________________________________________________

_________________________________________________________________________________

Nome da empresa _______________________________________________________________________ Setor - atividades/desenvolvidas: ____________________________________________________________ Período avaliado de:

/

/

a

/

/

Supervisor

Indicadores de competências

Avaliação Formativa

SABER (3 avaliações)

Início do Meio período período (120 horas) (240 horas)

Capacidade de desenvolver trabalhos planejando e avaliando Conhecimento prático e teórico Criatividade Capacidade de pesquisa SABER FAZER Capacidade de trabalhar com novas tecnologias Uso de equipamentos

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FINAL Final do período

Situação Final


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Comportamento perante situações-problema Aplicação dos conhecimentos obtidos Apresentação de trabalho com qualidade SABER SER Capacidade de trabalhar em equipe (cooperação, empatia, objetividade, etc.) Postura profissional Interesse e responsabilidade Assiduidade e pontualidade Organização, higiene e segurança Iniciativa Comprometimento com as atividades relacionadas à prática supervisionada

Registro das Avaliações: A – Apropriou NA – Não Apropriou NV – Não verificado – competência não observada/não avaliada Parecer descritivo 1º período (se necessário): .................................................................................................................................................................... .................................................................................................................................................................... Autoavaliação do aprendiz: .................................................................................................................................................................... .................................................................................................................................................................... Parecer descritivo 2º período (se necessário): .................................................................................................................................................................... .................................................................................................................................................................... Autoavaliação do aprendiz: .................................................................................................................................................................... .................................................................................................................................................................... 87


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Parecer descritivo 3º período (se necessário): .................................................................................................................................................................... .................................................................................................................................................................... Autoavaliação do aprendiz: .................................................................................................................................................................... .................................................................................................................................................................... Situação Final: ( ) Apropriou ( ) Não Apropriou ( ) Cancelou ( )Desistente/Evadido Motivo:........................................................................................................................................................ ______________________________

_______________________________

Carimbo e assinatura/Senac

Carimbo e assinatura da empresa

_______________________________ Aprendiz

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MEMÓRIAS DA COMUNIDADE, HISTÓRIAS DA CIDADE: EXPERIÊNCIAS E VIVÊNCIAS NO ESPAÇO ESCOLAR

Carlos Eduardo Ströher1 Daison Kipper da Paz2 Michelle Leite3 RESUMO A escola é um espaço em que o adolescente (re)constitui constantemente sua identidade, estabelecendo – ou não – laços afetivos e de pertencimento a certos grupos sociais, ao meio em que vive e onde estuda. Sentir-se parte da história do local em que reside e da escola que frequenta é fundamental para que o discente se torne agente da realidade que presencia e se sinta sensibilizado a observá-la e a pensá-la de maneira mais crítica. Sob essa perspectiva, foi desenvolvido o projeto “Memórias da comunidade, histórias da cidade”, que visava a ressignificar o espaço (e o aprendizado) escolar a partir do estudo das localidades de origem dos alunos e da produção de novas fontes históricas, sobretudo de fotografias que representassem a paisagem natural sob a ótica particular e a subjetividade de cada discente. As atividades foram desenvolvidas de maneira interdisciplinar, com 31 alunos de 8ª série (9º ano) da Escola Municipal São José, de São Sebastião do Caí, ao longo do ano letivo de 2013. A experiência de pesquisa estimulou a reflexão a respeito das memórias existentes nos bairros e de suas relações com o ambiente escolar, possibilitando a reconstrução da memória coletiva da comunidade e a produção de novos conhecimentos. Palavras-chave: Educação. Memória. Comunidade. ABSTRACT School is a place where the teenager constantly rebuilds their identity, establishing emotional bonds to certain social groups and to the environment they live and study. Feels like a portion of the place where they live and study is essential for the students to become agent of their reality and to feel sensitized to observe it and think of it in a more critical manner. From this perspective, it developed the project “Community memories, city stories”, was developed to give a new meaning to the school environment through the study of the source locations of the students and the production of new historical sources. Among these sources, there are photographs there represent the natural landscape from the perspective of students. The activities

Mestre em Educação (UFRGS), especialista em Ensino de História e Geografia (UFRGS) e licenciado em História (Feevale). Professor da educação básica na rede municipal de São Sebastião do Caí e da Universidade Feevale no curso de História. E-mail: carloseduardo@feevale.br. 2 Bacharel em Geografia (UFRGS) e licenciado em Geografia (Ulbra). Professor da educação básica na rede municipal de São Sebastião do Caí. E-mail: daisonpaz1@gmail.com. 3 Especialista em Mídias na Educação (Ufpel) e licenciada em Artes Visuais (Feevale). Professora da educação básica nas redes municipais de São Sebastião do Caí e São José do Hortêncio. E-mail: michelle.leite.arte@gmail.com. 1

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were developed in an interdisciplinary way, with 31 students from the 9th grade in the Escola Municipal São José in the city of São Sebastião do Caí, throughout the school year of 2013. The research experience encouraged the reflection on the memories of the residents of the neighborhoods and their relations with the school environment, enabling the reconstruction of the collective memory of the community and the production of new knowledge. Keywords: Education. Memories. Community.

1 DA MINHA ALDEIA VEIO QUANTO DA TERRA SE PODE VER NO UNIVERSO...4: COMO E POR QUE SURGIU O PROJETO “O efeito que colocamos na imagem pode mudar o contexto, o olhar”.5

Qual é o olhar do aluno brasileiro sobre a educação pública de seu país? Qual é a sua percepção a respeito da disciplina “História”? Há identificação dos educandos com a instituição que frequentam? E com a localidade em que vivem? Quem não aprecia o pedacinho de chão em que vive poderá admirar seu país? Dentre um universo de questionamentos, essas perguntam permearam o planejamento de um projeto pedagógico no ano letivo de 2013. A partir do contato com os alunos de duas turmas de 8ª série (9º ano) da Escola Municipal São José, na cidade gaúcha de São Sebastião do Caí, pôdese constatar que não havia um sentimento de identificação com as localidades em que viviam e que eles desconheciam a história desses lugares. Para os educandos, a História era constituída por grandes personalidades e em locais distantes. Esse fato repercutia na sua relação com a escola, pois ela era considerada mais um espaço sem grande significado, e os alunos não se viam como agentes da história do meio em que se inseriam. Em um contexto como esse, a evasão escolar se transforma em uma realidade ameaçadora, pois não há uma razão social e afetivamente forte o suficiente para garantir a permanência de todos os educandos Os subtítulos correspondem a versos de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa), os quais comporão uma unidade significativa ao final do texto. 5 Frase da aluna Lucinara Lovison Höerlle, após palestra da fotógrafa profissional Joana Schneider. 4

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na escola. Por isso, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) ressaltam a importância de o professor elaborar formas de acolhimento e de valorização da pluralidade cultural dos alunos, além de favorecer uma educação mais holística, que considere o aluno como um ser complexo, inserido em um meio social, político e histórico. Assim, os PCNs apontam que: Muitas reflexões inerentes à pesquisa histórica são significativas para o ensino na escola fundamental. As abordagens teóricas que problematizam a realidade social e identificam a participação ativa de “pessoas comuns” na construção da História nas suas resistências, divergência de valores e práticas, reelaboração da cultura instigam, por exemplo, propostas e métodos de ensino que valorizam os alunos como protagonistas da realidade social e da História e sujeitos ativos no processo de aprendizagem (BRASIL, 1998, p. 33).

Sob essa perspectiva, o aluno reconhece sua capacidade de analisar criticamente a realidade atual, confrontando-a com práticas passadas e de outras nações, etnias, culturas e sociedades. No reconhecimento de semelhanças e diferenças, ele deve compreender que pode interferir na história de sua localidade, de sua escola, de seu país, pois suas práticas individuais englobam e carregam memórias e valores coletivos, muitas vezes, despercebidos ou ignorados. Dessa forma, “aprender História” tornase, também, um processo de autoconhecimento e de respeito ao “outro”. Assim, a série de perguntas que inicia este texto transformou-se em um só questionamento, que norteou o planejamento: qual é o “efeito” que o professor de História pode dar à educação pública para mudar o olhar dos alunos a respeito dela e da realidade em que eles estão inseridos?


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A resposta despontou rapidamente, voltandose ao estudo da realidade local dos discentes. Entretanto, a metodologia teve de ser mais cuidadosamente planejada, pois os registros sobre a história do município se resumem a poucos dados políticos disponíveis no Museu Municipal, que, todavia, permanece fechado a maior parte do tempo em virtude de reformas na estrutura e da inexistência de um profissional habilitado para trabalhar nele. Em outras palavras, o pouco material histórico que existia não era de fácil acesso aos alunos e não privilegiava o aspecto considerado fundamental para o projeto: a memória. Segundo Verena Alberti, A memória é essencial a um grupo porque está atrelada à construção de sua identidade. Ela [a memória] é resultado de um trabalho de organização e de seleção do que é importante para o sentimento de unidade, de continuidade e de coerência – isto é, de identidade. E porque a memória é mutante, é possível falar de uma história das memórias de pessoas ou grupos, passível de ser estudada por meio de entrevistas de História oral (ALBERTI, 2005, p. 167).

Escolhida a metodologia da História oral, foi necessário buscar parcerias com outros professores, pois o combate à evasão escolar e a formação de cidadãos não se dá isoladamente pela ação de um docente em uma única disciplina. Afinal, para exercer a cidadania, o sujeito necessita não somente de conhecimento empírico ou teórico, mas também da habilidade de expressão, de apurado senso estético e crítico e de valores atitudinais, que conduzam à interação social respeitosa e construtiva. Após a apresentação da proposta de projeto em uma reunião pedagógica, os proponentes (professores Carlos Eduardo Ströher, de História; Michelle Leite, de Artes, e Daison Kipper da Paz, de Geografia) contaram com a adesão da direção da escola e também da professora Jaqueline Kievel, de Língua Portuguesa. Assim, em um planejamento conjunto, estipularam-se duas etapas para a realização das atividades. Na primeira, privilegiouse a pesquisa histórica a respeito das comunidades, o estudo da geografia local, a produção de um panorama social dos bairros e a vinculação com conteúdos curriculares, como a globalização. Na segunda parte, o trabalho voltou-se para o desenvolvimento da percepção dos alunos acerca

de sua realidade, sobretudo por meio de ensaios fotográficos das paisagens locais. Nessa etapa, houve também exposições do trabalho dos discentes, a fim de dar visibilidade e de valorizar seu trabalho. Em suma, no planejamento da ação pedagógica, foram cumpridas as seguintes etapas: a. levantamento do conhecimento prévio dos alunos e de suas percepções a respeito do meio em que vivem; b. reunião com professores da escola, a fim de aderirem ao desenvolvimento do projeto, o que se consolidou, sobretudo, com as disciplinas de História, Geografia, Artes e Língua Portuguesa; c. delimitação clara dos objetivos a serem alcançados; d. busca de parcerias com a comunidade, de que resultaram uma palestra com uma fotógrafa profissional e um passeio guiado com recursos da Prefeitura às localidades pesquisadas; e. realização de avaliações contínuas e progressivas (inclusive, autoavaliações), analisando questões atitudinais e o processo de aprendizado, sem considerar um produto final (como as fotografias ou maquetes) como indicador absoluto do rendimento do aluno; f. envolvimento dos discentes e da escola em exposições e uma Mostra Técnica que desse visibilidade ao trabalho. 2 POR QUE A MINHA ALDEIA É TÃO GRANDE QUANTO OUTRA TERRA QUALQUER: O CONTEXTO SOCIOCULTURAL E A INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA DOS ALUNOS “Com esse projeto pude perceber quanta coisa bonita tem perto de nós e nem notamos, pois estamos ligados às tecnologias”.6

Os nomes são significativos. Assim, o Loteamento Popular, em que está situada a Escola Municipal São José, carrega em sua denominação o caráter plural de seus moradores – com origens étnicas e culturais muito variadas, embora prevaleçam as raízes portuguesa e africana – e o propósito de criação do bairro. A localidade existe há cerca de duas décadas e foi concebida pelo poder público como uma área alternativa para pessoas 6

Frase da aluna Caroline Ferraz. 91


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de baixa renda, que habitavam zonas passíveis de inundação pelo Rio Caí ou cujas condições financeiras não permitissem a aquisição de imóveis em terrenos mais valorizados. Inicialmente, por volta do final da década de 1980, a localidade constituiu-se como uma área de ocupação planejada. Posteriormente essa organização ficou em segundo plano, uma vez que muitas residências foram construídas de forma irregular. Lentamente o poder público local passou a realizar obra de estrutura básica de saneamento, de pavimentação de ruas, de acesso à saúde, ao lazer e à educação, bem como agindo para a regularização de construções e terrenos com a concessão de escrituras a preços diferenciados. Por todas essas características, a Escola Municipal São José, fundada em 1992, apesar de constar nos dados do Ministério da Educação (MEC) como uma Escola Rural, identifica-se como pertencente a um espaço urbanizado, embora seja um ponto de confluência de alunos advindos da região rural que cerca o Loteamento, a qual é marcada pela origem alemã. Assim, estão representadas no ambiente escolar também as localidades de Arroio Bonito, Bairro São José, Loteamento São José, Campestre Santa Terezinha, Nova Rio Branco e Chapadão. A escola é, portanto, para os alunos, “um mundo em menor escala”, pois é marcada pela pluralidade de etnias, de culturas, de práticas de trabalho e de modos de vida. E, assim como no mundo globalizado, nesse contexto, a tecnologia tem uma significativa presença. Embora boa parte dos discentes pertença a famílias de baixa renda, destaca-se o acesso que possuem a celulares e a aparelhos eletrônicos, os quais foram incorporados ao projeto, tornando-se instrumentos de pesquisa, de gravação de entrevistas, de documentação histórica e de registro das paisagens das localidades. Esse foi um dos pontos que mais atraiu os educandos para o desenvolvimento das atividades, pois os aparelhos tidos como nocivos à educação, porque lúdicos e instantâneos, foram empregados a seu serviço. Daí a avaliação positiva feita por João Paulo Wiederkehr: “aprendi que a fotografia não é apenas uma recordação, mas também uma forma de estudo, bem mais prática e divertida”. Nesse ponto, chegou-se ao objetivo geral do projeto, que propôs estudar o passado com recursos do presente, a fim de atualizar as vivências e os significados das memórias locais, levando 92

à identificação dos alunos e à ampliação de suas percepções a respeito da realidade que vivem. Obviamente, a escassez de fontes documentais a respeito da história das localidades representou uma dificuldade adicional ao trabalho, mas, por outro lado, aguçou o espírito investigativo dos discentes, que se sentiram agentes de “descobertas históricas”. Foi o que ocorreu, por exemplo, com Lucinara Höerlle, que identificou uma foto de seu bisavô junto a um grupo de rapazes os quais participaram da 2ª Guerra Mundial, e com os alunos que descobriram que o terreno onde atualmente se localiza a escola era, outrora, uma plantação de rosas. Nessas pequenas descobertas, floresceram novos olhares sobre a escola e os fatos históricos. 3 PORQUE EU SOU DO TAMANHO DO QUE VEJO: OS OBJETIVOS E O DESENVOLVIMENTO DO PROJETO “Eu gostei muito [...], pois descobri uma qualidade que eu não sabia que tinha”.7

Por se tratar de um projeto interdisciplinar, o objetivo geral, inicialmente mais vinculado à História, desdobrou-se em vários objetivos específicos, que contemplaram diferentes áreas do saber. Os principais eram: • estabelecer laços de identificação com a localidade de proveniência, percebendo-a como espaço significativo de experiências e memórias; • desenvolver a autonomia e o espírito investigativo por meio de busca de informações e de documentos históricos; • conhecer os principais fundamentos metodológicos da História oral, valorizando os aspectos afetivos e identitários presentes nos depoimentos dos moradores; • reconhecer os efeitos da globalização na forma de vida e nas relações de trabalho e de estudo dos grupos sociais; • comparar e avaliar as diferentes realidades encontradas, distinguindo potencialidades e problemas inerentes a cada espaço; • interpretar cartas hipsométricas das localidades;

7

Frase da aluna Camila Andrade Batista.


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• representar em escala reduzida a formação geográfica do bairro em que vive, respeitando as proporções; • desenvolver a expressão linguística, por meio de textos escritos e orais (entrevistas, sínteses, trechos argumentativos, etc.), observando questões gramaticais e de coerência textual; • distinguir as marcas de oralidade na transcrição da entrevista, atentando para a fidelidade ao que foi expresso pela pessoa entrevistada; • compreender a fotografia como forma de arte e, consequentemente, de expressão dos sentimentos e opiniões do artista; • conhecer aspectos técnicos da fotografia e características da carreira de fotógrafo, por meio de palestra com profissional da área; • apurar o senso estético e a sensibilidade na realização de fotografias das paisagens locais; • empregar tecnologias disponíveis adequadamente, reconhecendo-as como possíveis instrumentos de pesquisa e de aprendizado; • desenvolver o senso crítico na avaliação de seus próprios trabalhos, de seus colegas e das atividades realizadas durante o projeto; • identificar a escola como espaço de confluência de culturas, histórias, memórias, formas de vida, de identidades e, por isso, como local rico em experiências; • desenvolver a cooperação, a responsabilidade e o respeito através das atividades em grupo; • aprimorar o autoconhecimento, reconhecendo-se como integrante e agente da história da escola e da comunidade; • valorizar o “outro”, apreciando o trabalho dos colegas e respeitando os diferentes pontos de vista apresentados. A longa lista de objetivos demandou meses de trabalho para a sua concretização. Inicialmente, quando o projeto foi apresentado, nem todos estavam explicitados ou desenvolvidos, pois o próprio diálogo entre os integrantes do projeto (alunos e professores) delimitou os rumos das pesquisas. Num primeiro momento, verificaramse algumas dificuldades, a partir da divisão dos alunos conforme sua localidade de origem, o que gerou resistência por parte de alguns, pois não havia “afinidade” entre os integrantes. No decorrer do projeto, contudo, a necessidade de interação e de esforço conjunto se mostrou produtiva, pois

demonstrou semelhanças entre os estudantes que eles próprios desconheciam e anulou animosidades iniciais. Os grupos formados ficaram responsáveis por buscar moradores antigos de cada bairro, dispostos a serem entrevistados. É preciso ressaltar que, antes da realização da entrevista, houve um preparo dos alunos, a fim de que eles compreendessem e valorizassem as falas dos moradores. Na aula de História foi apresentada, sinteticamente, uma adaptação da metodologia de História oral proposta por Verena Alberti, ressaltando os objetivos e a importância social, histórica e afetiva das memórias dos mais velhos. Em Língua Portuguesa, inicialmente, cada grupo elaborou um roteiro, com perguntas que considerava pertinentes. Somente após cuidadosa revisão dos professores e incentivo para o aprimoramento das questões, os alunos realizaram as entrevistas, gravando-as em seus celulares ou suas câmeras. Em um momento posterior, utilizaram o laboratório de informática para transcrever as falas, atentando para as marcas de oralidade8 e para a fidelidade com o que fora expresso pelo entrevistado. Concomitantemente, os grupos realizaram um levantamento de fontes históricas de cada localidade, as quais incluíram fotografias de antepassados dos moradores e eventos sociais, como casamentos; registros fotográficos de paisagens e de imóveis, como uma fotografia antiga do Loteamento Popular (figura 1); dados sobre a fundação de espaços públicos e religiosos, entre outros. Em alguns casos, porém, não foi possível encontrar registros fotográficos, sendo proposto a esses estudantes que representassem as localidades como eram antigamente a partir dos relatos dos moradores entrevistados.

Embora haja uma discussão teórica em defesa da manutenção de todos os traços de oralidade na transcrição de entrevistas, por serem índices de questões afetivas e de opiniões, optou-se pela supressão de expressões como “né” e “tá?” e pelo não registro de hesitações. Essa escolha se deu em virtude da imaturidade teórica e metodológica dos alunos e do objetivo de fazê-los perceberem que a linguagem escrita guarda diferenças em relação à falada. 8

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Figura 1 - Vista do bairro Loteamento Popular na década de 1980 Fonte: Histórias do Vale do Caí

Finalizada a coleta de dados, cada grupo elaborou o portfólio de sua comunidade, que foi partilhado com os demais colegas (para isso, juntaram-se as turmas). Após a apresentação das histórias de cada fonte documental e dos relatos dos moradores, foi iniciada a elaboração de um livro do projeto, cujo layout foi inspirado na rede social Facebook, a fim de estabelecer a identificação com o universo dos alunos. No livro, além de outras informações, constam, para cada localidade, um resumo de sua história, uma ou duas fotografias, trechos das entrevistas selecionados pelos alunos como representativos (figura 2) e um panorama atual, em que os estudantes apontaram aspectos positivos e negativos que eles observaram em cada bairro (figura 3). 9 É interessante perceber que, nesse processo de análise das entrevistas e das localidades, os alunos conseguiram distinguir pontos de vistas discordantes, compreendendo que a avaliação da

Disponível em: <http://historiasvalecai.blogspot.com. br/2012/07/1429-loteamento-popular.html>. Acesso em: 22 set. 2014. 9

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realidade é, em grande parte, subjetiva, ou seja, basear-se apenas na fala de alguém para julgar uma situação não é a melhor alternativa. Por isso, os discentes foram solicitados a emitirem sua opinião sobre o local em que vivem. Eles avaliaram de maneira positiva principalmente aspectos interligados à sua cultura, à vida social (como festas de comunidade, áreas de lazer etc.) e a avanços da urbanização (como calçamento de ruas, existência de escola etc.). Negativamente, apontaram a falta de infraestrutura em certas localidades e, em outras, problemas comuns a espaços urbanos (como o lixo, o consumo de drogas, a violência etc.). Paralelamente a essas atividades, em Artes, investiu-se na análise da história da fotografia, que extrapolou sua natureza inicialmente documental para alcançar o status de produção artística. A fim de sensibilizar os alunos, foram trabalhadas obras de Araquém Alcântara, Robert Doisneau e Juarez Silva, ressaltando-se a beleza por detrás de registros de detalhes da natureza e de situações cotidianas. Além disso, convidou-se uma fotógrafa profissional do município, Joana Schneider, para palestrar às turmas. A fala da fotógrafa foi um momento de intenso aprendizado, pois as especificidades das


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Figura 2: vozes da comunidade do Loteamento Popular a partir dos trechos das entrevistas Fonte: livro do Projeto Memórias da Comunidade, histórias da cidade. São Sebastião do Caí, 2013

Figura 3: panorama atual do bairro Chapadão a partir das entrevistas Fonte: livro do Projeto Memórias da Comunidade, histórias da cidade. São Sebastião do Caí, 2013 95


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câmeras e as técnicas de fotografia chamaram muito a atenção dos alunos. Um dos pontos mais louváveis de sua palestra foi o desenvolvimento da confiança dos discentes em sua habilidade de registrar aspectos de sua realidade, como revela a aluna Gabriele Simon Simsen em sua avaliação da atividade: “Aprendi que devemos observar bem o que queremos fotografar, aprendi a mexer mais nas câmeras fotográficas, também sei que para tirar fotografias perfeitas não precisa ser um fotógrafo profissional”. Essa questão vai ao encontro do que o estudioso António Marques Tavares afirma a respeito do lugar que a fotografia ocupa na arte contemporânea. Em sua visão, ela “permite, grosso modo, que qualquer pessoa possa ser artista. Um bom enquadramento

do tema, uma obturação perfeita, o efeito da lente especial ou o tratamento digital fazem com que o comum cidadão possa ser, num ápice, um artista” (TAVARES, 2009, p. 118). A confiança e a expectativa geradas nos alunos impulsionaram a realização das atividades previstas em uma segunda etapa do projeto, que iniciou com um passeio pelas localidades estudadas (figura 4). O transporte foi disponibilizado pela Secretaria da Educação do município após a apresentação dos portfólios produzidos pelos alunos em sua investigação. Além das paisagens naturais, a saída de campo contemplou a visita a alguns moradores, que falaram de seus bairros; a uma antiga escola, em que a professora, já aposentada, explicou como se dava a educação em épocas passadas.

Figura 4 - Alunos do projeto durante o passeio na localidade de Campestre Santa Terezinha Fonte: livro do Projeto Memórias da Comunidade, histórias da cidade. São Sebastião do Caí, 2013 96


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Essa atividade foi especialmente produtiva por estar relacionada a todas as disciplinas envolvidas no projeto. Em História e em Geografia, houve um estudo prévio sobre a globalização e seus efeitos na contemporaneidade. Durante o passeio, os estudantes deveriam tentar relacionar o assunto com aspectos da vida nessas localidades, registrando, posteriormente, suas reflexões em um texto a ser produzido em aula (Língua Portuguesa). Em Artes, propôs-se que cada estudante compusesse uma coletânea de dez fotos. A saída de campo contou com algumas pausas para que os alunos iniciassem a prática de fotografar, sendo orientados, quando preciso, pela professora. Em Geografia, havia-se trabalhado a interpretação de cartas hipsométricas de São Sebastião do Caí, com o objetivo de preparar os alunos para posterior representação geográfica das localidades.

A observação abstrata do relevo por meio das cores nas cartas materializou-se nas paisagens observadas pelos alunos durante a saída de campo. Isso facilitou a confecção das maquetes em massa corrida, havendo a observação das proporções, a assimilação de distâncias, a pintura de rios e a identificação da malha rodoviária de cada bairro. As últimas atividades do projeto foram desenvolvidas na disciplina de Artes. Em sala de aula, houve a visualização das fotografias feitas pelos alunos com o auxílio de projetor multimídia. Conjuntamente, foram avaliadas as imagens e selecionadas as melhores coleções (figura 5) para posterior participação na Mostratec Júnior, um evento de divulgação científica, organizado pela Fundação Liberato, em Novo Hamburgo (figura 6). A Mostra constituiu uma importante imersão dos alunos apresentadores no universo da pesquisa

Figura 5 - fotografia “Um pedido especial”, registrada na localidade de Arroio Bonito, de autoria de Lucinara Lovison Hoerlle, aluna participante do projeto Fonte: livro do Projeto Memórias da Comunidade, histórias da cidade. São Sebastião do Caí, 2013 97


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Figura 6 - alunas Pérola Fristch e Larissa Cardoso na Mostratec Júnior 2013, na Fundação Liberato Salzano Vieira da Cunha Fonte: Fonte: livro do Projeto Memórias da Comunidade, histórias da cidade. São Sebastião do Caí, 2013

e da metodologia científica, fazendo-os visualizarem mais claramente o percurso transcorrido durante o projeto e os resultados obtidos. Ressalte-se, porém, que a intenção era dar visibilidade a um trabalho coletivo, tanto por parte dos discentes quanto dos professores. Assim, mesmo que não tenha sido viável a exibição, na Mostratec, de todo o material produzido, todas as fotografias foram reveladas e expostas – junto às maquetes e ao livro das localidades – no saguão da escola para apreciação da comunidade, ressaltando-se a relevância do olhar que cada aluno lançou à sua realidade. 4 E NÃO, DO TAMANHO DA MINHA ALTURA: AVALIAÇÕES DO PROJETO “O que eu mais gostei e o que mais me chamou a atenção foi que todos 98

participaram e conseguiram tirar fotos bonitas”.10

Considerando a amplitude e o propósito do trabalho realizado, não é possível falar em uma única avaliação, tampouco em um único avaliador. Havendo o desejo de fazer os alunos perceberemse como agentes da história, tornou-se necessário haver abertura para que também eles avaliassem, em diferentes momentos, a si mesmos, a seus colegas e às atividades propostas. Certamente, essas análises constituíram um dos resultados mais significativos do projeto, pois revelaram um processo de desenvolvimento da criticidade dos estudantes e de sua capacidade 10

Frase da aluna Fernanda Streher.


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de autovalorização e de apreciação do trabalho dos colegas. Na projeção das fotografias tiradas pelos discentes, houve inúmeras expressões de contentamento com a beleza captada pelas lentes alheias, o que, considerando o individualismo e a competitividade típicos da faixa etária dos alunos, representa um amadurecimento emocional e crítico. É importante frisar que a capacidade de elogiar o “outro” está vinculada à confiança na própria competência. Veja-se, por exemplo, a seguinte declaração da aluna Larissa Gabriela Rosa: “Com a produção fotográfica aprendi a ver o lado bom de sair com uma câmera na mão e conseguir registrar imagens magníficas da natureza, que antes eu passava e nem cuidava. Gostei muito da fotografia da colega que tirou uma foto de um balanço”. As frases revelam que ela se sente capaz de “registrar imagens magníficas da natureza” e é por isso que não se sente diminuída em elogiar a foto da colega. No contexto da escola, o reforço da autoestima, o desenvolvimento de uma visão mais aguçada para a realidade (antes, muitas vezes, desprezada) e o envolvimento de todos os alunos nas atividades foram relevantes fatores para não haver evasão escolar nessas turmas. Em reflexo, também a comunidade se sentiu valorizada, porque suas memórias foram registradas e constituíram objeto de estudo dos discentes, contribuindo para seu êxito escolar. Enfim, o projeto ressignificou o aprendizado dos alunos, os quais perceberam, pelas histórias ouvidas e pelo registro das lentes fotográficas, que o espaço em que vivem constitui um lugar rico de vivências e experiências e que eles não só o integram, mas também auxiliam na construção de sua história. O encantamento pelas minúcias das memórias e pelas pequenas descobertas históricas, não obstante sua aparente insignificância, são capazes de transformar a maneira de conceber a realidade atual. Afinal, a “aldeia” em que cada aluno vive é todo o seu mundo, pois é onde ele aprenderá – ou não – a conviver, a se identificar, a se sensibilizar, a respeitar e a estabelecer laços com os outros. Se ele não se tornar cidadão no bairro em que vive, como o poderá ser em seu país ou em uma nação estrangeira?

REFERÊNCIAS ALBERTI, Verena. Fontes orais: Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi. (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 155-202. ______. Manual de História Oral. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2004. ALCÂNTARA, Araquém. Colecionador de mundos. Disponível em: <http://www.araquem.com.br/> Acesso em: 12 mai. 2013. BORGES, Maria Eliza Linhares. História e Fotografia. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. 136 pp. (Coleção História e... Reflexões, 4 ). BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais (PCNS). História – terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental . 1998. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/ pcn_5a8_historia.pdf>. Acesso em: 20 set. 2014. DOISNEAU, Robert. Atelier Ard. Disponível em: <http://www.robert-doisneau.com/fr/>. Acesso em: 14 mai. 2013. HISTÓRIAS DO VALE DO CAÍ. Disponível em: <http://historiasvalecai.blogspot.com. br/2012/07/1429-loteamento-popular.html>. Acesso em: 22 set. 2014. LIVRO DO PROJETO MEMÓRIAS DA COMUNIDADE, HISTÓRIA DA CIDADE. São Sebastião do Caí, 2013. SANT’ANNA, Renata. Saber e ensinar arte contemporânea. São Paulo: Panda Books, 2009. TAVARES, António Luís Marques. A fotografia artística e o seu lugar na arte contemporânea. Sapiens: História, Património e Arqueologia. N. 1, jul. 2009, pp. 118-129.

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ANÁLISE TEMPORAL DAS MATRÍCULAS EM EDUCAÇÃO ESPECIAL ENTRE 2005 E 2013 NO ESTADO DO PARANÁ

Alexandre Dido Balbinot1 Arieli Haubert2 RESUMO Introdução: objetivou-se analisar a evolução temporal das matrículas de portadores de necessidades especiais na educação no Estado do Paraná no período entre 2005 e 2013. Método: estudo de delineamento ecológico baseado em série histórica de matrículas nas redes de ensino pertencentes ao Estado do Paraná/ Brasil. Como período estudado, foram incluídos os dados pertencentes aos anos de 2005 até o ano de 2013. A análise empregou: Correlação de Spearman, Regressão de Poisson robusta e Intervalo de Confiança de 95%. O nível de significância adotado foi de p<0,001. Resultados: foram analisadas 24.257.201 matrículas da educação básica e 577.440 matrículas da educação especial. Foi evidenciada diminuição nas matrículas totais da educação básica em 1%, semelhante ao ocorrido para a rede pública. A educação especial não apresentou alteração, mas na rede pública houve aumento de 5%. Na educação especial, não houve variação para escolas exclusivamente especializadas. Para classes especiais, houve redução de 13%. Nas classes comuns, houve aumento de 12%. Conclusão: a educação no Estado do Paraná tem passado nos últimos anos por uma modificação em seu paradigma de atendimento educacional de sujeitos com necessidades educacionais especiais, com aumento das matrículas da classe regular. Entretanto, não houve ampliação no atendimento total da rede de ensino. Palavras-chave: Educação especial. Necessidades educacionais especiais. Inclusão escolar. Paraná. Brasil. ABSTRACT Introduction: This study aimed to analyze the temporal evolution of enrollment of special needs education in the state of Paraná between 2005 and 2013. Method: An ecological study based on historical series of enrollment in the school systems belonging to State of Paraná / Brazil. As study period data, were included belonging to the years 2005 to 2013. The analysis used: Spearman correlation, robust Poisson regression, and 95% confidence interval. The level was set at p<0,001. Results: A total of 24.257.201 enrollment in basic education and 577.440 enrollment of special education. It was found a decrease in total enrollment in basic education by 1%, similar to what happened to the public network. Special education did not chance, 1 Mestre em Saúde Coletiva (UNISINOS), Especialista em Saúde Coletiva com ênfase em Saúde Mental Coletiva (RIS/ESP/HPSP), Especialista em Avaliação e Prescrição de Treinamento Físico Personalizado com ênfase em Rendimento e Saúde Coletiva (ESEF/UFRGS), Professor de Atendimento Educacional Especializado (AEE) (CACHOEIRINHA/RS). Email: adbalbinot@gmail.com – Endereço: Rua Waldemar Guido Vicentini, 242, Bairro Dom Feliciano, Gravataí/ RS, Brasil. 2

Graduanda do curso de Psicologia do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha (CESUCA).

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but in the public increased by 5%. In special education, there was no chance was reduced by 13%. The common classes increased by 12%. Conclusion: Education in Paraná state has experienced in recent years by a change in their paradigm of educational services to individuals with special educational needs, with increased enrollment of regular class. However, there was no expansion in the total care of the school system. Keywords: Special education. Special educational needs. School inclusion. Paraná. Brazil.

1 INTRODUÇÃO Para a realidade brasileira, o direito à educação é assegurado para todos os cidadãos desde a Constituição Nacional que data de 1988. Porém, ao se tratar de crianças com algum tipo de deficiência, seja ela física ou intelectual, as leis são muito mais recentes e, por esse motivo, a opção pelo ingresso do sujeito na rede de ensino dependia da vontade da família e da aceitação, que podia ou não ocorrer nas escolas. O cenário de atendimento educacional brasileiro de crianças com deficiência começou a sofrer modificações após a assinatura da Declaração de Salamanca. Tal documento foi desenvolvido após reunião ocorrida na cidade espanhola em 1994, onde estiveram presentes representantes de mais de 20 países, a fim de delimitar as obrigações dos Estados para com esses sujeitos, como: verbas para adaptação física de ambientes; graduação de professores e contratação de profissionais; assegurar o atendimento educacional efetivo, visando ao melhor desenvolvimento dos sujeitos (BRASIL, 1988; BRASIL, 1997; SANTOS, 2000). A partir do referido documento, começaram a surgir no Brasil algumas legislações mais específicas em torno do tema. A princípio, o Decreto nº 3.956/01 juntamente com a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência asseguram não apenas o direito à educação, mas também outros direitos da pessoa com deficiência, dando a esta mais espaço e reconhecimento na sociedade (BRASIL, 2001; ONU, 2006). Um dos direitos hoje garantidos à pessoa com deficiência é o benefício financeiro continuado, promulgado pelo Decreto nº 6.214, que oferece ao portador de deficiência, que, por contingências de sua deficiência, não consegue arcar com seu sustento, ou cuja família não possua condições de manter os gastos com seu tratamento, um salário 102

mínimo mediante comprovação de que seu estado é incapacitante e duradouro (BRASIL, 2007). Já em 2009, obteve-se uma das maiores mudanças no processo educacional brasileiro de crianças com necessidades especiais. Através da Resolução nº 4, ficou definido que toda criança com deficiência deve estar matriculada em uma escola regular, em uma classe normal, juntamente com outras não portadoras de necessidades especiais, e não mais restritas às escolas ou classes especiais (BRASIL, 2009). A grande modificação ocorrida com essa resolução e legislações adicionais foi a forma de atendimento oferecida pelas escolas regulares para os sujeitos com deficiência. Até então, o mais próximo que se tinha de uma inclusão escolar era a classe especial dentro da escola regular. Nessa perspectiva, havia um número reduzido de alunos, todos com alguma deficiência, que integravam uma mesma turma, regida por um profissional especializado e alguns momentos coletivos eram a oportunidade de sociabilizar com os demais estudantes da escola. Atualmente, estando integrado em uma classe regular, esse convívio é muito mais efetivo e intenso, e o trabalho do profissional é realizado de forma diferente. O aluno com necessidades especiais deve ser atendido pelo professor da classe regular, da mesma forma que todos os demais, e ter seu currículo de atividades adaptado às suas capacidades e potencialidades. O professor especializado, hoje, atua no Atendimento Educacional Especializado (AEE), dispondo de uma sala de recursos multifuncionais, preferencialmente na escola em que a criança está inserida, e presta atendimento em contraturno, visando a complementar o atendimento recebido na classe regular e utilizando-se de recursos que não estão disponíveis no outro ambiente (BRASIL, 2011; PARANÁ, 2004).


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Passado algum tempo das legislações postas, é notável a necessidade de se buscar “o que” e “como” estão sendo colocadas em prática essas diretrizes, se ocorre ou não de forma efetiva a inclusão de pessoas com deficiência. Zilly et al. (2015), por exemplo, foram à busca da percepção dos professores de sala de recursos a respeito desse processo e perceberam que os profissionais se consideram capacitados para a função e a possibilidade da efetiva inclusão de educandos com necessidades educacionais especiais. Porém, evidenciaram também a necessidade de maior troca entre o profissional da sala de recursos e o de sala de aula, bem como algumas dificuldades encontradas na grande diversidade de deficiências. Machado e Vernick (2013), por sua vez, fazem uma reflexão em torno das políticas nacionais e paranaenses e da evolução do processo inclusivo, asseverando, em seu trabalho, a existência de uma trama entre o público e o privado, mas com o movimento em direção aos estados e municípios, para se tornarem capazes de prestar toda atenção necessária à aprendizagem dos sujeitos com necessidades educacionais especiais. A complexidade, a diversidade e a singularidade do processo de inclusão em diferentes contextos, seus desafios, mas também suas possibilidades, são destacados e debatidos por Salles (2013) em pesquisa realizada no estado do Paraná, que conclui a necessidade de maiores avaliações e discussões sobre o processo de inclusão educacional. Nessa perspectiva, o presente estudo objetivou analisar a evolução temporal das matrículas de educandos com necessidades especiais na educação no Estado do Paraná, contemplando o período entre 2005 e 2013. 2 MÉTODO Este estudo apresenta delineamento ecológico e foi baseado em dados representativos de série histórica composta por dados secundários e de domínio público referentes às matrículas nas redes de ensino e visualizados através dos Censos Educacionais disponibilizados pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) no domínio http://portal.inep. gov.br. Foram incluídas para análise no presente estudo somente as matrículas realizadas nos estabelecimentos de educação pertencentes ao Estado do Paraná/Brasil. Como período estudado,

foram incluídos os dados pertencentes aos anos de 2005 até o ano de 2013. Na presente análise, foram contempladas todas as redes de ensino, ou seja, públicas (estadual e municipal) e privada. A aquisição dos arquivos referentes aos Censos Educacionais, para a coleta dos dados, foi realizada durante o mês de novembro de 2014, através do download dos referidos arquivos diretamente no site do INEP. De dentro do arquivo do censo de cada ano, foram extraídos os dados que faziam referência aos valores totais (quantidade) das matrículas na educação básica, na educação especial, na educação especial através de escolas especiais, na educação especial através de classes especiais em escola regular e na educação especial através de classes regulares em escola regular. Esses dados também foram coletados estratificando-os para as diferentes redes de ensino (pública ou privada). Os dados coletados foram inseridos em tabelas dentro de planilhas através do programa Microsoft Office Excel versão 2013. Findada essa etapa, foi realizada a transferência dos dados para o programa Stata 11. A análise dos dados empregou: Correlação de Spearman, Regressão de Poisson robusta e Intervalo de Confiança de 95%. O nível de significância adotado foi de p<0,001. 3 ASPECTOS ÉTICOS O presente estudo é baseado em um conjunto de dados secundários e de domínio público. As informações estão disponíveis à consulta pela população através do domínio http://portal.inep. gov.br, ou seja, disponibilizados pelo Ministério da Educação através do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INPE). Tendo em vista esses aspectos, não foi identificada a necessidade da submissão do presente estudo para avaliação por comitê de ética em pesquisa. 4 RESULTADOS Foram analisadas 24.257.201 matrículas da educação básica e 577.440 matrículas da educação especial provenientes do Estado do Paraná, sendo 263.763 provenientes de escolas exclusivamente de ensino especial, 246.368 provenientes de classes especiais em estabelecimentos de ensino regular e 17.395 provenientes de classe regular em estabelecimentos de ensino regular. A educação básica apresentou uma média anual de 2.695.245 (DP= 67568,72) inscrições 103


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Gráfico 1 - Matrículas no ensino básico entre 2005 e 2013 no Estado do Paraná/ Brasil

Gráfico 2 - Total de matrículas referentes à educação especial entre 2005 e 2013 no Estado do Paraná/ Brasil 104


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Gráfico 3 - Matrículas referentes à educação especial por modalidade de atendimento entre 2005 e 2013 no Estado do Paraná/Brasil

por ano, sendo que o maior número de inscrições observado foi de 2.789.527, no ano de 2006, e o menor foi de 2.593.193, no ano de 2013. A rede privada de ensino englobou em média 358.967,3 (DP= 23.730,16; 326.769-408.461) matrículas ao ano, enquanto a rede pública, 2.332.944 (DP= 88.278,11; 2.184.732-2.423.658). A evolução das matrículas totais é apresentada no Gráfico 1. No que se refere especificamente ao ensino especial, foi observada uma média anual de matrículas de 64.160 (DP= 12.630,02), sendo que o menor valor (47.095) foi observado no ano de 2009, enquanto o maior valor (79.309), no ano de 2012. Dessas matrículas, observou-se média de 27.374,22 (DP= 9.271,86; 16.215-38.092) referente à rede privada de ensino, enquanto média de 4.043,89 (DP= 6.396,46; 1.533-21.091) para a rede pública. A evolução das matrículas totais para a educação especial, assim como para cada rede de ensino, é apresentada no Gráfico 2. A média anual de inscrições para a educação especial em escola exclusivamente especializada foi de 29.307 (DP= 9.433,30), sendo o maior (40.052)

valor observado no ano de 2006, e o menor valor (18.048), no ano de 2011. As matrículas em classe especial do ensino regular foram em média de 8.453,78 (DP= 4.041,57), com maior valor (12.240) no ano de 2005 e menor valor (409) no ano de 2011. Já as matrículas em classe comum da rede regular de ensino apresentaram média de 26.399,22 (DP= 9571,11), com maior valor (39.639) no ano de 2012 e menor valor (13.216) no ano de 2005. A evolução das matrículas da educação especial por modalidade de atendimento é apresentada no Gráfico 2. Foi evidenciada, ao longo do período, diminuição significativa nas matrículas totais da educação básica (p<0,001), com diminuição de 1,0%, semelhante ao ocorrido para a rede de ensino público (p<0,001), quando estratificado por rede de ensino. Todavia esse fenômeno não foi evidenciado para a rede particular de ensino (p= 0,059). A educação especial não apresentou alteração significativa no número de matrículas totais (p= 0,664), nem a rede privada de ensino (p= 0,328), mas, na rede pública, houve aumento de 5,0% (p<0,001). 105


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Tabela 1 - Análise através da Regressão de Poisson robusta da evolução das matrículas entre 2005 e 2013 no Estado do Paraná/ Brasil Variável

RP

IC 95%

P

Total

0,96

0,89-1,04

0,293

Particular

0,96

0,88-1,04

0,296

Pública

1,43

1,05-1,94

0,022

Total

0,87

0,80-0,94

<0,001

Particular

0,82

0,60-1, 11

0,204

Pública

0,87

0,80-0,94

0,001

Total

1,12

1,07-1,17

<0,001

Particular

1,13

1,04-1,21

0,002

Pública

1,12

1,07-1,17

<0,001

Total

1,01

0,97-1,05

0,664

Particular

0,96

0,89-1,04

0,328

Pública

1,05

1,02-1,08

<0,001

Total

0,99

0,99-0,99

<0,001

Particular

1,01

1,00-1,03

0,059

Pública

0,99

0,98-0,99

<0,001

Nº de inscrições no Ens. Esp. em escola especial

Nº de inscrições no Ens. Esp. em classe especial

Nº de inscrições no Ens. Esp. em classe regular

Nº Total de inscrições no Ens. Esp.

Nº Total de inscrições no ensino básico

Tabela 2 - Análise através da Correlação de Spearman - Total de matrículas no ensino básico e matrículas na educação especial entre 2005 e 2013 no Estado do Paraná/ Brasil Nº Total de inscrições no ensino básico

106

Spearman’s rho

p

Nº de inscrições no Ens. Esp. em escola especial

0,617

0,077

Nº de inscrições no Ens. Esp. em classe especial

0,867

0,003

Nº de inscrições no Ens. Esp. em classe regular

-0,750

0,020

Nº Total de inscrições no Ens. Esp.

-0,033

0,932


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Ainda no que se refere à educação especial, mas mais especificamente a cada modalidade de atendimento, não se observou variação significativa nas inscrições em escola exclusivamente especializada ao longo do período, nem quando estratificado por rede de ensino. Para as classes especiais em estabelecimentos de ensino regular, observou-se redução de 13% (p<0,001) nas matrículas. Já no que diz respeito às matrículas em classe comum da rede regular de ensino, houve aumento estatisticamente significativo, com 12% (p<0,001) de incremento no total, sendo 12% (p<0,001) na rede pública de ensino. Não foram evidenciadas correlações significativas entre as matrículas da educação básica quanto comparadas com: Educação especial; Educação especial em escola especializada; Educação especial em classe especial e Educação especial em classe regular de ensino. A descrição mais completa dessa análise é apresentada na Tabela 2. 5 DISCUSSÃO Inicialmente é interessante observar que as matrículas na educação básica diminuíram, fenômeno semelhante ao ocorrido quando estratificado pela rede de ensino e analisadas as matrículas da rede pública. Entretanto, na rede particular, não houve diferença. As modificações na quantidade das matrículas da educação básica foram discretas, entretanto podem ser representativas da diminuição da população com idade escolar, conforme observados dados apresentados ao longo do mesmo período pelo governo através do site do DATASUS, através da seção “Demográfica e socioeconômicas” (BRASIL, 2015). Especificamente em relação à educação especial, cenário investigado na presente pesquisa, não houve modificação das matrículas ao longo do período. Essa informação remete ao pensamento de que, possivelmente, há um importante contingente de demanda por matrículas do ensino especial sendo suprimida ao longo do período, ou seja, inúmeros sujeitos com necessidades especiais podem estar desprovidos de atendimento especializado, fato que contraria os direitos garantidos a priori através da legislação brasileira após mobilização social ampla (FÁVERO, 2004; PARANÁ, 2006). Diferentemente das matrículas totais na educação especial, assim como dessas na rede

privada, houve aumento nas matrículas da educação especial da rede pública, um demonstrativo do desenvolvimento de políticas e ações pelos gestores com vistas à ampliação do atendimento em direção à universalização do acesso para os sujeitos e aos mecanismos de atendimento dentro da rede pública de educação (GOMES; SOUZA, 2011; MENDES JUNIOR; TOSTA, 2012). Esse aspecto contrapõe o evidenciado na rede privada, em que o emprego de atendimento especializado não tem se ampliado, talvez em decorrência da oneração imposta para a realização desse serviço (ARANHA, 2014; BRASIL, 2010). De um modo geral, observa-se uma modificação no paradigma de atendimento dos sujeitos com necessidades educacionais especiais dentro do Estado do Paraná. Essa modificação é observada pela alternância no modelo de atendimento, evidenciada pela retração nas matrículas em classe especial e no aumento em classes regulares de educação, fato que reflete os ideais preconizados e convencionados pelo Brasil no acordo firmado em Salamanca (POLETO, 2008). Todavia, não houve redução nas matrículas das escolas especializadas, escolas essas que até outrora eram denominadas de escolas especiais. Esses ambientes são importantes como suporte na rede de educação, entretanto sua utilização de forma demasiada tende a gerar estigmatização dos sujeitos que são atendidos nesses locais (SOUZA, 2007). Mais que isso: a inserção em classes regulares de ensino é importante estímulo de socialização e fomento de estímulos para o desenvolvimento do sujeito através do convívio com seus pares, assim como está relacionada a outros aspectos relevantes para o bem-estar e o desenvolvimentos dos sujeitos, devendo, desse modo, a inclusão na rede básica ser estimulada em todas as localidades (SILVA; SILVA, 2012; SANTANA, 2003). 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A educação no Estado do Paraná tem passado nos últimos anos por uma modificação em seu paradigma de atendimento educacional de sujeitos com necessidades educacionais especiais. Esse fato é evidenciado pela alternância desencadeada através do declínio no atendimento em classes especiais e do implemento nas classes regulares, em conformidade, assim, com o preconizado pela legislação, pela sociedade e por profissionais interessados. 107


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Entretanto, observou-se que os gestores educacionais dos últimos anos no Estado do Paraná, através de suas políticas e ações, parecem ter optado pela manutenção do atendimento através de escolas exclusivamente especializadas, conhecidas popularmente como “escolas especiais”. Mesmo sabendo-se da necessidade e da importância desse tipo de atendimento para determinados alunos, é importante ressaltar que esse modelo de atendimento tende a restringir a socialização dos sujeitos e fomentar a segregação, além de gerar a estigmatização dos estudantes. Então, após a visualização do cenário ao longo do período temporal abordado, é plausível asseverar que os avanços na inclusão dos educandos existem, e grande parte do que foi conseguido em prol da educação especial e da inclusão escolar dos estudantes com necessidades educacionais especiais tem ocorrido em decorrência das alterações evidenciadas e propiciadas pela rede pública de ensino.

BRASIL, Presidência da República, Casa civil. Decreto nº 6.214, de 26 de setembro de 2007. Regulamenta o benefício de prestação continuada da assistência social devido à pessoa com deficiência e ao idoso de que trata a lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, e a lei nº 10.741, de 1 de outubro de 2003, acresce parágrafo ao art. 162 do decreto nº 3.038, de 6 de maio de 1999, e dá outras providências. Brasília, DF: 2007. BRASIL, Presidência da República, Casa civil. Decreto nº7.611, de 17 de novembro de 2011. Dispõe sobre a educação especial, o atendimento educacional especializado e dá outras providências. Brasília, DF: 2011. BRASIL, Presidência da República, Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília, DF: Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – CORDE, 1997. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. BRASIL. Nota Técnica 15/2010. Orientações sobre o Atendimento educacional Especializado na rede privada. Ministério da Educação. Jul. 2010.

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FÁVERO, E. A. G. Direito à educação das pessoas com deficiência. Revista CEJ. n. 26, p. 27-35, jul./ set. 2004, Brasília. GOMES, Claudia; SOUZA, Vera Lucia Trevisan de. Educação, psicologia escolar e inclusão: aproximações necessárias. Rev. psicopedag., São Paulo , v. 28, n. 86, 2011. MACHADO, E. M., VERNICK, M. da G. L. P. Reflexões sobre a política de educação especial nacional e no estado do Paraná. Nuances: estudos sobre a educação. Presidente Prudente, SP. v. 24, n. 2, p. 49-67, mai./ago., 2013. MENDES JÚNIOR, Edson; TOSTA, Estela Inês Leite. 50 anos de políticas de educação especial


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“MÃOS DADAS”: EXPERIÊNCIA DA DOENÇA EM UM GRUPO DE APOIO AO CÂNCER DE MAMA

Daiane Riva de Almeida1 Tonantzin Ribeiro Gonçalves2 RESUMO O estudo abordou a experiência de doença de mulheres com câncer de mama no contexto de um grupo de apoio. Tratou-se de estudo qualitativo com base em entrevistas com as mulheres e observações das atividades do grupo de apoio no município de Novo Hamburgo/RS. Foi realizada uma análise de conteúdo qualitativo dos dados. Os resultados mostraram que a participação no grupo potencializava o acolhimento e a troca de experiências, resgatando a autoestima e empoderando as mulheres. Evidenciaram-se também dificuldades quanto à articulação do grupo com gestores e redes de atenção à saúde, que, muitas vezes, não acolhiam suas demandas e seu protagonismo por uma atenção mais integral e humanizada às mulheres com câncer de mama. A ação efetiva das políticas e dos serviços de saúde com redes de apoio da comunidade ainda é um desafio na área da saúde da mulher. Palavras-chave: Câncer de mama. Empoderamento. Apoio social. Grupo de apoio. ABSTRACT The study aimed to investigate the experience of women living with breast cancer in the context of a peer support group. It was a qualitative study based on interviews with women and participant observations in a peer-support group located in the city of Novo Hamburgo/RS. Qualitative content analysis showed that participation in the peer-group enabled mutual embracement, sharing disease experiences, recovering self-esteem and empowering women. Difficulties faced by the group to create and maintain links with the health care network were related since health managers often not welcomed their demands and their role in a more integral and humanized health care for women living with breast cancer care. The effective health policies and services to peer social support networks is still a challenge in the area of women’s health. Keywords: Breast cancer. Empowerment. Social support. Peer support.

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Mestre em Saúde Coletiva da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. 111


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1 INTRODUÇÃO O câncer de mama é importante problema de saúde pública, sendo o segundo tipo de câncer mais comum no mundo e o de maior incidência entre mulheres adultas (BRASIL, 2011). No Brasil, estimativas para 2012 e 2013 apontavam a ocorrência de aproximadamente 53 mil casos novos de câncer de mama, com um risco estimado de 52 casos a cada 100 mil mulheres (BRASIL, 2011). O tratamento do câncer de mama envolve cirurgia, radioterapia e quimioterapia, exigindo a atuação de uma equipe multidisciplinar, para melhor subsidiar a recuperação e a reabilitação física e psicológica da mulher. Atualmente, tais procedimentos possuem uma resolutividade considerável, e o número de óbitos pela doença vem sendo reduzido (FILHO, 2011). Apesar disso, o diagnóstico de câncer de mama é uma experiência de crise com consequências no âmbito psicossocial, devido ao forte estigma, à ameaça de morte, ao abalo na autoestima e ao simbolismo associado ao seio como parte fundamental da identidade e da sexualidade feminina (ALMEIDA et al., 2001; SCORSOLINI-COMIN, SANTOS; SOUZA, 2009). As redes de apoio familiar e comunitária, incluindo grupos de ajuda mútua, são fundamentais para o enfrentamento do câncer de mama, pois a notícia do diagnóstico, os problemas gerados pela mastectomia ou pelos tratamentos adjuvantes afetam diversos aspectos da vida da mulher. Embora o conceito e as formas de avaliar o apoio social apontem controvérsias, evidências mostram os efeitos positivos do apoio sobre o bem-estar físico e psicológico, particularmente em situações de doença crônica (PINHEIRO et al., 2008). Pesquisadores enfatizam a importância de entender o apoio social como um constructo multidimensional e de investigar os processos pelos quais influencia a saúde (GONÇALVES et al., 2011). O apoio social remete à ajuda mútua, que, para Valla (2000), trata-se de processo recíproco, gerando efeitos positivos tanto para o receptor como para quem oferece o apoio. As interações podem ocorrer de maneira intencional ou não e são capazes de impactar positiva ou negativamente conforme a percepção subjetiva de quem oferece e recebe o apoio e o reconhecimento efetivo das necessidades individuais. Nesse sentido, entende-se que os grupos de ajuda mútua no contexto do câncer de mama objetivam, na sua maioria, auxiliar as mulheres a 112

compreender a doença, compartilhar experiências e promover convivências que favoreçam seu bemestar geral. Muitos desses grupos, organizados espontaneamente por mulheres atingidas, familiares e profissionais da saúde, também se propõem a atuar preventivamente, promovendo esclarecimentos sobre a doença, diagnóstico precoce, diminuindo o estigma e auxiliando no enfrentamento da doença por meio de reivindicações à rede de atenção, fortalecendo as comunidades mais vulneráveis na luta pelos seus direitos (VALLA, 1999). Andrade e Vaitsman (2002) apontam que o apoio social tem potencial de promover a sensação de coerência e controle sobre a própria vida, beneficiando a saúde geral das pessoas. Para os autores, o apoio social favorece o empoderamento, como processo de ação social que envolve as dimensões psicológica/individual, grupal/ organizacional e estrutural/política ao estimular o pensamento crítico e favorecer o enfrentamento de conflitos e a reconstrução das relações sociais (KLEBA; WENDAUSEN, 2009). Como evidencia o estudo de Gomes et al. (2003), o apoio do grupo ajuda as mulheres com câncer de mama a superarem sentimentos de solidão e isolamento, especialmente pela possibilidade de compartilhar dores e dúvidas relacionadas à doença e receber sugestões construtivas daquelas que vivenciam os mesmos problemas. Mas, apesar dos benefícios da participação em grupos de apoio, ainda há poucos espaços nos serviços de saúde que promovam essas atividades ou mesmo a articulação com aqueles já existentes e, quando presentes, nem sempre conseguem atingir muitas mulheres que necessitam (PINHEIRO et al., 2008). Além disso, poucos estudos enfocam o papel dos grupos na experiência de câncer de mama na literatura brasileira, prevalecendo investigações centradas nas repercussões psicossociais do câncer para as mulheres e sua família. Estudos que abordam o apoio social prestado às mulheres com câncer de mama tornam-se relevantes, na medida em que fornecem subsídios para planejar e implementar uma assistência voltada para as suas necessidades de modo mais integral (FURLAN et al., 2012). Ademais, a fundamentação teórica sobre esse tipo de participação social ainda está sendo construída. Muitas vezes, esses grupos podem antagonizar com as práticas e a atenção médica convencional, ao proporem outras formas de alívio físico e emocional


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relacionadas a práticas religiosas, remédios e terapêuticas populares. Assim, o presente estudo visou a compreender a experiência da doença de mulheres com câncer de mama no contexto de um grupo de apoio, buscando identificar as contribuições dessa participação no enfrentamento individual e coletivo da doença. 2 METODOLOGIA E CONTEXTO DA PESQUISA Tratou-se de uma pesquisa qualitativa exploratória. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas e observação participante no Grupo de Apoio Oncológico Mãos Dadas do município de Novo Hamburgo/RS. O grupo é uma instituição não governamental, fundada em 2006, fruto de iniciativa popular, que oferece um espaço de compartilhamento de vivências, sentimentos e dúvidas entre mulheres com câncer de mama. O grupo funciona duas vezes por semana com diversas atividades, como oficinas terapêuticas e educativas, atendimento de profissionais da saúde, organização de cursos, atividades de artesanato, lazer e beleza. As atividades são organizadas por mulheres voluntárias que vivem ou viveram a experiência do câncer de mama, e os encontros acontecem em espaço cedido pela prefeitura da cidade. Quando a pesquisa foi realizada, cerca de 35 mulheres participavam do grupo e o cadastro total incluía 153 mulheres. O trabalho de campo ocorreu entre março e julho de 2013, período em que a pesquisadora frequentou todos os encontros do grupo, aproximando-se intimamente das participantes e da rotina do Mãos Dadas. Manteve-se um diário de campo para registrar impressões, questões e insights sobre a vivência no grupo e nos contatos informais com as mulheres. Além da inserção no cotidiano do grupo, foram entrevistadas dez mulheres, participantes regulares, com idades entre 39 e 81 anos. Dentre elas, seis eram casadas, uma solteira e três viúvas. Elas tinham nível socioeconômico baixo, eram aposentadas ou recebiam auxílio-doença, características que representavam a maior parte das demais participantes do grupo. O tempo de vínculo com o grupo variou desde a fundação até um ano de participação. Todas utilizaram quimioterapia e/ou radioterapia e realizaram cirurgias para o tratamento do câncer (quatro fizeram mastectomia radical; quatro, cirurgias mais conservadoras e duas, a retirada de nódulo). Das participantes entrevistadas,

apenas duas fizeram a reconstrução mamária com prótese de silicone. Na condução desta pesquisa, foram respeitados os princípios éticos conforme Resolução de nº 196/96, que regulamenta normas para a pesquisa com seres humanos. Todas as participantes que responderam a entrevistas assinaram um TCLE. Foi obtida autorização das coordenadoras do grupo e o aceite das demais frequentadoras para a participação da pesquisadora nos encontros. O nome das mulheres foi substituído por um pseudônimo para preservar a identidade das participantes. O pseudônimo será dado com nome de flores, conforme a escolha das próprias mulheres. Foi realizada uma análise de conteúdo temática (BARDIN, 1995; MINAYO, 2000) a partir do material textual oriundo da transcrição das entrevistas, bem como dos diários de campo que narraram as situações das entrevistas, observações dos encontros do Mãos Dadas e as impressões e vivências da pesquisadora. A construção das categorias se deu a partir da leitura exaustiva dos relatos, da triangulação entre as falas, o diário de campo e os aportes teóricos sobre apoio social e empoderamento no contexto de doença. 3 RESULTADOS E DISCUSSÃO O processo de análise resultou em três eixos analíticos: 1) “De Mãos Dadas”: grupo de apoio como lugar de acolhida do sofrimento; 2) “Se Quiser Viver”: grupo de apoio como dispositivo de empoderamento; e 3) “Apertos de mão e desalinhos”: solidariedade e tensões na busca pela integralidade da atenção ao câncer de mama. A seguir, cada uma dessas categorias centrais será apresentada, buscando-se ilustrar com relatos e articulando-as com reflexões teóricas. 4 “DE MÃOS DADAS”: GRUPO DE APOIO COMO LUGAR DE ACOLHIDA DO SOFRIMENTO Esse eixo temático contemplou a afirmação explícita e implícita das mulheres sobre o grupo Mãos Dadas como espaço que potencializava o acolhimento, a troca de experiências e o enfrentamento individual e coletivo da doença. As mulheres chegavam ao Mãos Dadas em momentos variados da sua trajetória de doença, sendo que algumas começaram a frequentá-lo logo que descobriram o câncer, outras, durante o tratamento ou após a cirurgia, e algumas até 113


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mesmo após o tratamento e a remissão da doença. Elas conheceram o grupo por encaminhamentos de médicos ou de outros profissionais de saúde e também pelo convite de amigas, parentes e vizinhas. A chegada ao grupo foi relatada pelas mulheres como um momento marcante, perpassado por reações de surpresa, inibição e até desconforto ao se depararem com outras que viviam com a doença. Uma participante expressou seu choque diante da visão de outras mulheres carecas, o que a fez, num primeiro momento, não querer mais voltar aos encontros: No primeiro dia eu fiquei sem graça quando eu vi aquelas mulheres todas carecas. Não sei o que me deu. Para mim era o fim do mundo eu não queria mais voltar no grupo. Mas depois eu voltei e comecei a olhar diferente, aí eu fui aceitando mais, até passei a achar mais normal. Eu me lembro que eu dizia assim: ai, eu não vou naquele grupo, tá todo mundo doente, eu só quero ficar com quem não está doente! (Acácia).

Era como se a primeira vez no grupo as tivesse obrigado a entrar em contato com o câncer sem margens para negações. Mas, aos poucos, elas salientaram ter se sentido parte do grupo, obtendo ganhos, principalmente pelo apoio que recebiam e das relações com outras mulheres, como evidencia o relato: Eu imaginava que ia encontrar as pessoas bem mais abatidas, deprimidas. Aí, quando eu cheguei aqui, tava todo mundo bem, então eu me senti forte e vi que as pessoas estavam fortes. Eu fui muito bem acolhida. (Lírio).

Assim, entendemos que os grupos de ajuda mútua são espaços nos quais a cotidianidade da doença é compartilhada com os pares que estiveram/estão “do lado de dentro da doença”, somando-se aos demais espaços em que a doença ganha sentido, é interpretada e compartilhada. A forte marca de acolhimento era incorporada pelas mulheres à medida que passavam a frequentar e se perceber como parte do grupo. Assim, a recepção de novas integrantes se pautava por um grande “abraço”, sendo esse acolhimento reiterado em vários momentos diferentes, quando elas podiam 114

ser ouvidas e emitir opiniões. Em alguns casos, o grupo se tornava a principal fonte de apoio da mulher, até então limitada à família: Aqui no grupo até é melhor para gente conversar, desabafar, eu até me sinto melhor aqui do que em casa com as minhas irmãs, porque no grupo todo mundo já passou mais ou menos tudo igual ou bem parecido, então parece que a gente se entende mais neste sentido. (Flor do Campo).

Conforme Pinheiro et al. (2008), ao encontrar pessoas com experiências similares, as mulheres com câncer de mama fortalecem sua crença na superação das dificuldades e em melhores condições de vida. Nessa direção, as participantes mais antigas, que já tinham passado por todo o tratamento, eram referências para aquelas que iniciavam e que estavam em tratamento, pois podiam se “espelhar” nas suas experiências, visualizar o que enfrentariam e encontrar motivação. Como explica Zimerman (1993), cada um pode ser refletido nos e pelos outros, ou seja, o grupo funciona por meio de processos de identificação recíproca que facilitam estratégias de conforto e enfrentamento. O depoimento das participantes durante as reuniões era uma maneira de se aproximar e, ao mesmo tempo, se distanciar da experiência com o câncer, pois a história de cada mulher a fazia um exemplo particular e, ao mesmo tempo, coletivo de que o câncer podia ser vencido. A convivência no grupo habilitava-as para enfrentar problemas relacionados ao câncer, em particular o medo de morrer, tema que costumava ser silenciado em outros contextos interpessoais e que podia ser exposto ali. Em grupo, a maioria conseguia expressar-se sobre o assunto, debatendo suas aflições e a própria finitude. Porém, a dificuldade inerente de lidar com a morte voltava com dramaticidade quando uma participante falecia: Eu sei que muitas já foram. Ninguém quer falar de morte, mas não adianta, a morte faz parte da vida. Se uma colega morre, a gente vai falar sobre ela e sobre a morte. Faz parte. (Lírio).

Assim, uma função importante do grupo era a elaboração da experiência de doença no contexto grupal. A centralidade desse aspecto foi vislumbrada pelo fato de as mulheres tenderem a focar seus


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discursos, durante as entrevistas e, especialmente, nos seus encontros de segundas-feiras, em narrativas sobre a doença e o tratamento. Esses momentos pareciam indicar um processo de mudança pessoal. Visto que nas entrevistas, em geral, iniciaram falando sobre o processo da descoberta do câncer, revelando que o diagnóstico fora um dos momentos mais difíceis, corroborando estudo de Romeiro et al. (2012), o sentimento de finitude, de receber uma condenação à morte, era constante nos relatos, conforme valores e metáforas culturalmente construídas sobre o câncer como uma doença corrosiva, cruel e estigmatizante (SCORSOLINICOMIN, SANTOS; SOUZA, 2009). Ao mesmo tempo, as mulheres referiram ter recuperado a esperança com a participação no grupo: Eu fiquei muito triste, como todas as outras. Eu não queria nem fazer o tratamento, eu queria fugir para bem longe, morrer em outro lugar, porque quem tem câncer vai morrer, então, podiam me enterrar como indigente em qualquer lugar. No início não queria contar para ninguém [...]. Depois eu vim parar aqui no grupo e agora eu acredito que ainda posso viver. (Hortência).

O contato com a doença e o tratamento impõe à mulher uma nova rotina e exige adaptações tanto dela como da família. A quimioterapia provoca diversos efeitos colaterais que modificam a imagem corporal e, muitas vezes, provocam o isolamento da mulher (FERREIRA; MAMEDE, 2003). Com a frequente chegada de mulheres ao grupo, as discussões sobre a quimioterapia e a queda do cabelo eram os principais assuntos. Elas compartilhavam estratégias para disfarçar ou minimizar a perda do cabelo, considerada por muitas mulheres a pior consequência do câncer, ensinando uma às outras como fazer um lenço bonito ou onde comprar lenços bons e baratos, como e onde podiam encontrar boas perucas ou como cuidar delas. As mulheres que já tinham terminado o tratamento explicavam como ficaram “carecas” e depois voltaram a ter seus cabelos novamente, possibilitando àquelas no início do tratamento saber como lidar com isso. Outro ponto interessante é que, embora não soubessem precisar as drogas que usavam na quimioterapia, as mulheres reconheciam a medicação por meio das cores, o que as auxiliava a antecipar e

lidar com os efeitos do tratamento. Assim, se uma mulher dizia que a quimioterapia “era da branca”, então as que já haviam passado pelo tratamento sabiam que essa era uma medicação mais fraca, que “dava pouca reação” e talvez “nem caísse o cabelo” [sic]. Se a medicação “era da vermelha”, então não escapavam dos enjoos, dos vômitos e da queda do cabelo, vista como “a mais forte”, aquela que “derrubava mesmo” [sic]. Nas conversas informais, percebia-se até certa vanglória por parte das mulheres que recebiam essa medicação, pois precisaram de mais força para aguentar os efeitos colaterais. Depois da quimioterapia e seus efeitos colaterais, tão representativos para as mulheres, o tratamento com a radioterapia não parecia ter as mesmas repercussões e recebeu atenção menor nas narrativas das mulheres. Por ser normalmente a última parte do tratamento, figurava como o momento final do processo, quando já haviam superado etapas difíceis, como a cirurgia e a quimioterapia, e preparavam-se para o período livre da doença. Seria, portanto, um momento até certo ponto desejado, pois significava ter sobrevivido e vencido as fases anteriores. Isso ficou explícito porque mesmo as marcações definitivas na pele para realizar a radioterapia não pareciam incomodar: As sessões de radioterapia são rápidas, eu não senti nada, nenhum efeito, nem a pele ficou vermelha. [...].O que é uma marquinha azul na pele para quem faz a cirurgia e tem câncer? (Margarida).

Ainda sobre o tratamento, Pereira et al.(2006) relatam que a mastectomia confronta a mulher com um estado intenso de fragilidade emocional e com dificuldades a serem superadas para viver o mais próximo possível do que reconhece como normalidade. A dor, frequentemente relatada pelas mulheres, presentifica o sofrimento físico e emocional de uma cirurgia mutiladora como a retirada da mama. Como atestam vários estudos, a mulher submetida a mastectomia tem de lidar com a perda de parte corporal importante para a identidade feminina, afetando sua autoestima (AMÂNCIO; COSTA, 2007; AURELIANO, 2009). Apesar do apoio do grupo, o depoimento que segue reflete a grande dificuldade em lidar com a nova imagem corporal a partir da mastectomia, principalmente quanto à vivência da sexualidade: 115


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Eu não deixo ele [marido] ver, ele não se importa, mas até hoje eu não deixo ele quase encostar neste seio. Elas aqui [no grupo] dizem que eu tenho que mostrar, mas eu não consigo. Ele só viu mesmo quando estive no hospital porque ele tinha que me ajudar a tomar banho. (Orquídea).

Quando questionadas sobre a reconstrução mamária, a maioria das mulheres mostrou indiferença pela plástica, colocavam o fato de o parceiro “não ligar pra isso”, não se importarem ou não sentirem vontade de realizar o procedimento. Para além da possível aceitação, não podemos negligenciar o fato de que muitas das participantes da pesquisa se viam excluídas da possibilidade de uma reconstrução mamária devido à precariedade de acesso a esse procedimento pelo SUS e dos limites da sua condição financeira. Talvez por isso muitas se mostrassem indiferentes à reconstrução dos seios, por vê-la como pouco acessível e difícil. Ao mesmo tempo, o imaginário social em torno da “mulher de família” e o controle da sexualidade feminina, especialmente sublinhados entre classes populares, torna subalterno o desejo de desfrutar de sua sexualidade e de possuir um corpo sensual, os quais, por sua vez, são postos em xeque pelo câncer de mama. É possível também que outros fatores, como o medo da morte, a rejeição do implante e a recidiva do câncer se somassem a esse discurso. Os depoimentos revelaram que o temor da recorrência da doença era bastante presente e se traduzia em um sentimento de fragilidade diante dos resultados dos exames, endossando achados de Almeida et al.(2001). Os autores confirmam que a participação das mulheres em grupos alivia o sofrimento e o medo que permeiam a possível recidiva da doença, embora, paradoxalmente, as confronte com essa realidade:

tratamento do câncer, é importante que a mulher seja apoiada, e o grupo mostrou-se crucial como espaço de acolhimento dessas vivências e de elaborar significados e estratégias frente à doença. 5 “SE QUISER VIVER”: GRUPO DE APOIO COMO DISPOSITIVO DE EMPODERAMENTO O segundo eixo temático propõe uma reflexão sobre como o coletivo de mulheres se organizava em torno de atividades de ocupação, lazer e geração de renda para o grupo, empoderando-as e possibilitando que o foco da vida se desviasse da doença. Apesar de comumente marcadas pelo sofrimento, as experiências das mulheres no Mãos Dadas também refletiam amizades, momentos de prazer e alegria pela convivência em passeios, viagens, comemorações, atividades de lazer e realização de trabalhos manuais de artesanato. Essas vivências potencializam mecanismos de proteção que auxiliaram na retomada do senso de controle sobre a própria vida e impactaram no bem-estar das mulheres, coadunando com as ideias de Andrade e Vaitsman (2002). As participantes referiram que a integração grupal possibilitava encontrar equilíbrio e lazer, mantendo o cotidiano mais próximo do “normal”. Muitas enfatizaram que os momentos no grupo eram preciosos, pois se sentiam bem, divertiam-se e colocavam de lado sentimentos ruins. Me sinto feliz, porque uma conta uma piada aqui, a outra conta uma coisa engraçada ali, daí a gente dá risada, se distrai um pouco, esquece que teve câncer. (Acácia).

Eu fui consultar para fazer a revisão, eu perguntei para ele [médico] se não tinha perigo de voltar. Porque aqui no grupo quantas mulheres já voltou o câncer. Eu tenho muito medo, cada vez que faço o exame é um alívio. (Copo de Leite).

Outros depoimentos das mulheres mostraram que o apoio do grupo era refletido na forma de proteção, carinho e amizades e, acima de tudo, de cuidado e preocupação entre elas. Gomes et al. (2003) entendem que o diálogo entre as mulheres vivendo com câncer de mama, o lazer e o tempo passado juntas reforçam o grupo como espaço de prazer e bem-estar. Era nesse convívio que o grupo de apoio possibilitava que cada uma se ocupasse consigo mesma e com as outras:

Apesar do medo da recidiva, muitas mulheres se sentem fortalecidas por já terem vencido várias etapas do tratamento, enfrentando ativamente suas perspectivas futuras. Pela longa duração do

Vir aqui é muito importante pra mim, só de receber o abraço e o beijo de cada uma delas [voluntárias] e de vocês também, de todas que trabalham aqui, me faz muito bem. (Copo de Leite).

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Para elas, o Mãos Dadas significava um espaço de união que lhes possibilitou crescer como pessoas, construir amizades e uma nova família em que se ajudavam mutuamente. Elas consideravam um “privilégio” desfrutar dos benefícios oferecidos no grupo, principalmente das atividades de lazer sem gastos financeiros, algo pouco acessível na sua realidade. No estudo de Fernandes et al. (2004), mulheres cearenses mastectomizadas que frequentavam um grupo de autoajuda também entendiam o grupo como responsável por momentos prazerosos com reflexos no seu dia a dia. Com o tempo, sob apoio terapêutico e estimuladas em dinâmicas de grupos e nas diversas atividades, as mulheres relataram ter vivenciado uma crescente participação em outras esferas da vida social, inclusive nas decisões pertinentes aos seus corpos, sua capacidade de fazer coisas e de controlar a própria vida. Para elas, esse processo se iniciava quando se deslocavam de suas casas para frequentar o grupo, no qual podiam conhecer e compartilhar experiências e informações com outras mulheres. As entrevistadas afirmaram ter percebido mudanças em suas atitudes, principalmente, no modo como solucionavam alguns problemas e no maior equilíbrio para tomar decisões que julgavam corretas na sua vida pessoal e familiar, possibilitando maior autonomia, autoconfiança e novos sentidos para a doença, como relata Acácia: Eu acho que modificou assim, por exemplo, eu não fazia nada além de trabalhar e ir pra casa cuidar da casa e dos outros, não pensava em mim. Agora não, aprendi aqui a me cuidar e me valorizar.

Segundo elas, a família percebia positivamente essas mudanças e incentivava a participação delas no grupo: Eles (os pais) sempre me incentivam a participar do grupo, até a minha irmã acha importante eu vir. Como ela diz: ‘Eu me transformei depois do grupo’. (Jasmim).

Dessa maneira, ao passo que se sentiam mais motivadas e valorizadas, seus relacionamentos interpessoais passavam a ser diferentes, resgatavam o prazer de viver e a autoestima, adotando uma atitude mais positiva diante da doença:

Tenho mais cuidado e carinho por mim. Fiquei menos agressiva e mais paciente com todos. Adoro me arrumar e agora uso até batom. (Acácia). O grupo levanta a autoestima da gente porque elas ajudam a cuidar da gente. Aquelas meninas que fazem a maquiagem deixam a gente tão bonita arrumam o cabelo, fazem até sobrancelha. Eu saio daqui me achando o máximo! (risos) (Lírio).

Esses movimentos, possibilitados pela participação no grupo se coadunam com a noção de empoderamento, por estimularem a autonomia das mulheres (VALLA, 2000) e favorecerem o protagonismo de grupos vulneráveis na produção de uma vida saudável. Ações e processos que facilitam o empoderamento aumentam a capacidade dos sujeitos e coletivos para analisarem e atuarem sobre seus próprios problemas, estimulando habilidades para responder aos desafios impostos por uma dada enfermidade ou situação social. No nível grupal, o empoderamento desencadeia o respeito e o apoio mútuo entre os membros do grupo, promovendo o sentimento de pertença e práticas solidárias (KLEBA; WENDAUSEN, 2009). Ademais, os processos de empoderamento possibilitam a emancipação do sujeito, aumentando sua autonomia e liberdade. Pode-se então se afirmar que no Mãos Dadas esse processo de empoderamento vem sendo favorecido consistentemente, embora não ocorra de forma idêntica e simultânea para todas as mulheres, em função de aspectos subjetivos e do próprio grupo. 6 APERTOS DE MÃO E DESALINHOS: SOLIDARIEDADE E TENSÕES NA BUSCA PELA INTEGRALIDADE DA ATENÇÃO AO CÂNCER DE MAMA O terceiro eixo analítico abarcou potencialidades e dificuldades enfrentadas pelo coletivo de mulheres nas relações com outros atores sociais. Nesse contexto, destaca-se a importância da intersetorialidade e das parcerias entre comunidades, redes de apoio de iniciativa popular e as políticas/ações públicas na área da saúde da mulher. Kligerman25 relata que, apesar da existência de políticas públicas na área de oncologia, especialmente para o câncer de mama, o acesso a um atendimento integral e de qualidade ainda não

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é um cenário real vivido pela maioria das mulheres brasileiras, especialmente as de baixa renda. Conforme Andrade e Vaitsman (2002), a Política Nacional de Promoção da Saúde estimula a criação de mecanismos e ações que se vinculem aos grupos sociais organizados em redes colaborativas, visando a favorecer o planejamento mais democrático das ações em saúde e seu alinhamento às necessidades da população. Além de preencher lacunas deixadas pelas políticas sociais e de disseminar a noção de cidadania, as iniciativas e os movimentos populares podem representar um espaço de luta e elaboração de propostas visando à implementação de políticas mais justas e adequadas (ANDRADE; VAITSMAN, 2002), assim como o apoio à construção de redes cooperativas, solidárias e comprometidas com a produção de saúde e de sujeitos. Por isso, ressaltamos a necessidade de documentar os trabalhos realizados no grupo e o protagonismo que potencializam na vida das mulheres com câncer de mama, no sentido do apoio e da articulação que os serviços de saúde locais poderiam agenciar. Porém, ao analisarmos o trabalho do grupo, identificamos que ações de atendimento multiprofissional e de divulgação não ocorriam, de fato, em larga escala, uma vez que a principal atuação do grupo se baseava nas tecnologias relacionais, muito mais próximas dos saberes e das práticas populares do que do conhecimento técnico-especializado, que tem legitimação social dominante. Conforme assinalou uma voluntária, o grupo “procura buscar parcerias, mas param os projetos; não vão pra frente” [sic]. Alguns projetos foram realizados em parceria com uma faculdade local, que o grupo identifica como sendo uma forma de inclusão social. Apoiadas em investimentos públicos, organizações da sociedade civil têm oferecido serviços e criado redes solidárias, contribuindo para a redefinição de estratégias e práticas e que advoguem a ampliação da assistência e que impactem no bem-estar das mulheres com câncer de mama. Essa forma de solidariedade “ativa” pode ser um caminho na conquista dos direitos sociais para uma maioria da população que vive experiências cotidianas de privação material e simbólica, sujeitando-se, muitas vezes, a arranjos alternativos para atender a suas necessidades básicas (VALLA, 2000). Assim, acredita-se que a maior articulação e a legitimação do grupo junto à rede de serviços de 118

saúde e aos dispositivos de controle social poderiam estimular ainda mais seu protagonismo e contribuir com a construção de práticas de saúde socialmente contextualizadas e efetivas. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo sublinhou a importância das redes comunitárias de apoio social no enfrentamento do câncer de mama, considerando suas diversas repercussões biopsicossociais. Em especial, grupos de apoio como o Mãos Dadas, constituídos e liderados pelas próprias mulheres que vivem ou viveram a experiência do câncer de mama, estimulam o protagonismo, a autonomia e a reconstrução do senso de controle das mulheres sobre suas vidas. Pautado na promoção do compartilhamento de informações, no acolhimento, no alívio emocional, na solidariedade e em atividades de cunho ocupacional e recreativo, a vivência no grupo possibilitava às mulheres um enfrentamento ativo da doença. No grupo de pares, as mulheres sentiamse à vontade para compartilhar experiências e criar novas amizades. A ressocialização potencializada pelo grupo fazia com que se reconhecessem mais fortes para enfrentar o câncer e até mesmo com que modificassem atitudes e maneiras de pensar sobre a doença, sobre suas relações e sobre si mesmas. Por outro lado, a dificuldades do reconhecimento e a falta de apoio, por parte de gestores e serviços de saúde, às atividades do grupo tinham um impacto aquém do seu potencial como dispositivo de humanização, atenção integral e democratização na saúde. Os depoimentos das mulheres e a vivência no Mãos Dadas revelaram a importância central que ele assumia para as mulheres com câncer de mama, sendo, portanto, fundamental o seu reconhecimento e a legitimação como estratégia de cuidado. Fazse necessário apoiar o desenvolvimento e/ou a expansão de grupos dessa natureza, valorizandoos e estabelecendo articulação entre suas ações e o cotidiano dos serviços de saúde para que mais mulheres se beneficiem. Entende-se que os resultados deste estudo podem subsidiar a implementação de ações no âmbito do atendimento às mulheres com câncer de mama, que favoreçam e valorizem a atuação de iniciativas populares, visto que a vivência grupal possibilita a reconstrução da experiência da doença em sentidos mais positivos, trazendo elementos que contribuem para o empoderamento individual


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e coletivo dessas mulheres. Nesse sentido, é necessário trabalhar de forma intersetorial, com respaldo na realidade vivida por essas mulheres para o fortalecimento de ações da sociedade civil organizada e a formulação de políticas e ações efetivas.

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ANSEIOS E DESEJOS: MULHER MADURA E A MODA COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL

Claudia Schemes1 Paulo Henrique Saul Duarte2 Magna Lima Magalhães3 RESUMO Este artigo tem como foco de discussão as mulheres com mais de 65 anos e sua relação com a moda, visto que essa área do conhecimento é pouco explorada do ponto de vista científico. O estudo pretende elaborar algumas reflexões sobre as mudanças que ocorrem na maneira de vestir e no estilo dessas mulheres, além de relacionar as transformações do comportamento feminino no século XX e suas influências nas mulheres maduras no século XXI. Para tanto, lançamos mão da técnica de entrevista em profundidade para discutir acerca de questões que abordam o envelhecimento e, em especial, as transformações no vestir. Ressalta-se que a discussão proposta neste trabalho é um fragmento de uma pesquisa mais ampla vinculada ao projeto A Vestimenta feminina e os diferentes olhares da mulher madura: moda, cultura e identidade. Palavras-chave: Mulher. Envelhecimento. Moda. ABSTRACT This article has a specific focus on women over 65 years and his relationship with fashion, as this area of knowledge is rarely explored from a scientific point of view. The study intends to reflect on the changes that occur in dress and style of these women, in addition to relate the change in female behavior in the twentieth century and their influence on mature women in the twenty-first century. Therefore, we used the in-depth interview technique to discuss the issues that address aging and in particular the changes in dress. It is noteworthy that the proposed discussion in this paper is a fragment of a larger research project linked to Female clothing and different looks mature woman, fashion, culture and identity. Keywords: Woman. Aging. Fashion.

Doutora em História, professora do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS). Coordenadora do projeto de pesquisa A Vestimenta feminina e os diferentes olhares da mulher madura: moda, cultura e identidade. E-mail: claudias@feevale.br. 2 Acadêmico do curso de Moda, bolsista de Iniciação Científica do grupo de pesquisa Cultura e Memória da Comunidade da Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS). E-mail:sd_p2@hotmail.com. 3 Doutora em História, professora do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS). Colaboradora do projeto de pesquisa A Vestimenta feminina e os diferentes olhares da mulher madura: moda, cultura e identidade. E-mail: magna@feevale.br. 1

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1 INTRODUÇÃO A moda é uma área de estudo pouco explorada no âmbito científico, porém não carece de temas a serem desenvolvidos e estudados, como design, produção, estilismo, varejo, setor industrial, que são extremamente impactantes na sociedade e no mercado. A moda possibilita a reunião e a troca de experiências entre diferentes indivíduos. De acordo com Barnard (2003, p. 76), moda e indumentária “são culturais no sentido de que são algumas das maneiras pelas quais um grupo constrói e comunica sua identidade”. Crane (2006), por sua vez, informa que o vestuário é fundamental para a construção social da identidade. Historicamente, as roupas foram o principal meio pelo qual as pessoas se identificavam na sociedade e, mesmo tendo os contrastes reduzidos ao longo dos séculos – até o século XVIII a distinção de classes era expressa visualmente de forma bastante ostensiva –, as pessoas continuam se identificando através de suas vestes. Segundo a autora, a escolha do vestuário oferece “um excelente campo para estudar como as pessoas interpretam determinada forma de cultura para o seu próprio uso, forma essa que inclui normas rigorosas sobre a aparência que se considera apropriada num determinado período (o que é conhecido como moda)” (CRANE, 2006, p. 21). A maneira de vestir pode ser considerada como uma forma de expressão dos sujeitos e como identificação da cultura e de traços da identidade do indivíduo. “Na moda, e por ela, os sujeitos mostram-se, mostrando os seus jeitos de ser e estar no mundo, o que os posiciona neles” (OLIVEIRA, 2004, p. 10). Tendo como perspectiva a relação profícua entre moda, elaboração cultural e identidade, o presente estudo propõe pensar acerca das relações estabelecidas entre a mulher madura, com mais de 65 anos, e a moda. Por essa perspectiva, acionamos um tema que cada vez mais passa a ser discutido em diferentes esferas da sociedade: o envelhecimento. Moraes (2011, p.430), em seu estudo sobre corpo e envelhecimento, menciona que: O tema torna-se constante no século XX, principalmente a partir do pósguerra. As mudanças demográficas que acompanharam a segunda metade desse período e a expansão progressiva dos sistemas previdenciários estão na raiz da 122

discussão sobre envelhecimento naquele momento.

Segundo a autora, o debate sobre envelhecimento no século XXI ganha mais força impulsionado, principalmente, pelo aumento da expectativa de vida e pela redução do número de nascimentos. Em se tratando de Brasil é durante a década de 1970 que inicia uma “gestão da velhice”, cujo avanço se deve à ação do Ministério da Previdência e Assistência Social, que, em 1977, elabora uma política social do idoso. A partir de 1990, a velhice no Brasil tem atenção maior através das políticas sociais mais abrangentes, como a Política Nacional do Idoso, em 1994, e o Estatuto do Idoso, em 2003 (MORAES, 2011). Lopes et al (2012, p. 52), em um artigo intitulado Envelhecimento e Velhice: pistas e reflexões para o campo da moda, realizam o seguinte questionamento: “Como o campo da moda, cuja dinâmica básica de funcionamento gira em torno do conceito de juventude, pode contribuir para a tarefa de pensar e propor espaços e imagens que correspondam às diferentes possibilidades de envelhecer? A partir dessa provocação, pretendemos discutir ou possibilitar reflexões sobre o envelhecimento e suas diferentes faces e relações como forma de colaborar com o debate. No que tange a este estudo, propomos pensar a relação entre moda e envelhecimento a partir de algumas questões, sendo elas: em que momento a mulher madura percebe a necessidade de alterar o seu modo de vestir? Qual relação pode ser estabelecida entre alterações no modo de vestir e uma padronização da roupa como um demarcador de envelhecimento? No processo de investigação em busca das respostas, elegemos os termos “madura” ou “velha” para as mulheres de mais de 65 anos, respaldados em Motta (2012, p. 96), que assevera: “atualmente está se tentando reabilitar a palavra velho/velha proscrita pela ânsia da sociedade de consumo em eufemizar a idade e disfarçar a fobia social a essa etapa da vida, ao mesmo tempo em que oferece serviços específicos para a terceira, melhor ou feliz idade”. Organizamos o estudo da seguinte forma: em um primeiro momento, apresentamos um breve histórico acerca da história das mulheres e, por


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conseguinte, elaboramos algumas percepções respaldadas na interlocução com duas entrevistadas. Cabe destacar que utilizamos a técnica da entrevista em profundidade, já que é uma técnica qualitativa que explora determinado assunto a partir da busca de informações, percepções e experiências das pessoas entrevistadas. Segundo Duarte e Barros (2009, p. 63), essa técnica de pesquisa [...] explora um assunto a partir da busca de informações, percepções e experiências de informantes para analisalas e apresenta-las de forma estruturada. Entre as principais qualidades dessa abordagem está a flexibilidade de permitir ao informante definir os termos da resposta e ao entrevistador ajustar livremente as perguntas. Este tipo de entrevista procura intensidade nas respostas, nãoquantificação ou representação estatística. A entrevista em profundidade é um recurso metodológico que busca, com base em teorias e pressupostos definidos pelo investigador, recolher respostas a partir da experiência subjetiva de uma fonte, selecionada por deter informações que deseja conhecer.

Para o propósito deste estudo, selecionamos duas entrevistas aleatoriamente, do total de seis realizadas até o momento, sendo assim, é importante ressaltar que trabalhamos com “fragmentos” que servem para instigar a discussão de um tema ainda pouco explorado que é a moda e a sua relação com o envelhecimento. Dessa forma, as reflexões apresentadas neste trabalho são um exercício de problematizar e trazer à tona questões atuais e que ainda carecem de subsídios para o debate. O estudo vincula-se ao grupo de pesquisa Cultura e Memória da Comunidade, da Universidade Feevale, a partir do projeto de pesquisa intitulado: A vestimenta feminina e os diferentes olhares da mulher madura: moda, cultura e identidade. 2 A MULHER NA HISTÓRIA As primeiras décadas do século XX apresentaram mudanças significativas em relação ao comportamento feminino que incomodaram a sociedade conservadora da época. A mulher das classes média e alta, que antes estava praticamente isolada em casa, passou a estar presente nas

ruas da cidade, da mesma forma que passou a frequentar escolas que antes eram reduto quase que exclusivamente masculino. Já para as mulheres pobres, restavam as fábricas, os escritórios comerciais, os serviços em lojas ou em casas de família. Essas mudanças do comportamento feminino impulsionadas pelas transformações que a sociedade urbana estava vivendo vinham carregadas de um sentimento de inconformismo. Ele acontecia devido à maneira depreciativa com que as mulheres se viam e eram vistas pela sociedade, que as privava tanto das atividades econômicas quanto das políticas. Nessa conjuntura, passou a ser disseminado um novo modelo de feminilidade. A imagem da mulher como mãe-esposa-dona de casa passou a ser divulgada pela imprensa, legitimada pelo Estado, defendida pela Igreja, ensinada e cientificamente provada pela ciência moderna. Segundo afirmam Maluf e Mott (1998, p. 372), [...] o dever ser das mulheres brasileiras nas três primeiras décadas do século foi, assim, traçado por um preciso e vigoroso discurso ideológico [...] que acabou por desumanizálas como sujeitos históricos, ao mesmo tempo em que cristalizava determinados tipos de comportamento [...].

A partir desse momento, a mulher passou a ser responsável pela vida de seus familiares. O controle de horários, a prevenção de doenças e os desvios de seus membros estavam entre suas tarefas e responsabilidades. De acordo com o pensamento difundido naquela época, a diferença entre homens e mulheres tornava-se acentuada na sociedade, dessa forma, delimitava os limites do papel social da mulher, que ficou restrito ao espaço privado da sua casa. A imagem de “rainha do lar” tinha o objetivo de reduzir ao máximo as atividades e as aspirações possíveis do sexo feminino. Toda essa ideologia era baseada na crença de uma “natureza feminina” que fazia da mulher um ser biologicamente estruturado para desempenhar as funções do lar, enquanto o homem era naturalmente predisposto para o trabalho (MALUF; MOTT, 1998). Assim, essa construção de um modelo quase que santificado da mulher influenciou também suas condutas e opções no mercado de trabalho (para

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aquelas que tinham a oportunidade ou a necessidade de trabalhar), que acabou por determinar as suas opções profissionais, ou seja, elas poderiam optar entre a atividade de professoras primárias, enfermeiras, domésticas, operárias, costureiras, telefonistas, datilógrafas. De qualquer maneira, as funções realizadas pelas mulheres estavam sempre submissas ao homem ou subordinadas a um chefe masculino, sendo que a elas restava ser ajudante ou assistente, sem nenhum poder de decisão. Nesse sentido, conforme Rago (1987, p. 67), “estabelece-se então uma relação pedagógica e paternalista de subordinação da mulher frente ao homem, exatamente como no interior do espaço doméstico”. O chefe, assim como o pai e o marido, deveria ser obedecido e respeitado pelo sexo feminino, já que as mulheres não teriam capacidade para decidir suas vidas sozinhas. Sob esse enfoque, a imagem da mulher frágil e desamparada, incapaz de pensar e agir e dotada de um espírito servil por natureza era um dos argumentos mais consistentes para manter o sexo feminino longe das fábricas. As indústrias eram consideradas um lugar impróprio para as mulheres, por serem perigosas e por causa da falta de delicadeza dos chefes e contramestres com o sexo frágil. Nesse sentido, o ser mulher construído durante o início do século passado envolve todos os campos – ciência, religião e governo – numa união pela tentativa de constituir a imagem da família perfeita, com um pai, o provedor da esposa e dos filhos, uma mãe abnegada, responsável pelo lar e pelos filhos, que deveriam ser educados para serem úteis aos preceitos modernos. Por tudo isso, a representação da mulher foi composta sobre o tripé esposa-mãe-dona de casa, estabelecendo que para elas a satisfação estava dentro do espaço do lar, não podendo acontecer no trabalho, enquanto para os homens não haveria realização dentro de casa, e sim no trabalho (RAGO, 1987). Pode-se dizer, então, que o sexo feminino se submetia à imagem de rainha do lar e mãe abnegada, mas, ao mesmo tempo, havia vozes que lutavam pela igualdade de direitos entre os sexos, tentando garantir que elas também pudessem ter a sua força de trabalho valorizada, assim como os homens. Toda a situação e a posição na qual a mulher se encontrava se revelava no modo com que ela se vestia. Considerando que as mulheres maduras 124

de hoje constituíram a formação do seu modo de vestir ao longo de suas trajetórias e experiências pessoais, pode-se dizer que vários resquícios desses momentos estão presentes em suas escolhas na hora de se vestir. Essa mulher trata a moda de um ponto de vista diferente se comparada à mulher mais jovem, pelo fato de ter nascido e vivido em um período em que os valores morais e as normas de comportamento eram diferentes dos atuais. Sendo assim, as percepções de uma pessoa madura são influenciadas, direta e indiretamente, positiva e negativamente, por suas experiências passadas. Além disso, à medida que a mulher se aproxima da maturidade, ela se depara com significativas mudanças em seu corpo, seu estilo de vida e sua maneira de pensar. Adaptações são necessárias, o que pode ser entendido dentro de um processo de construção de identidade, já que esta é processual, sempre incompleta, e é “formada ao longo do tempo, através de processos inconscientes” (HALL, 2004, p. 38). Assim, o envelhecimento resulta em muitas mudanças na vida de uma mulher. A própria maneira de se referir às pessoas mais velhas gera controvérsias: Idoso? Velho? Maduro? Terceira Idade? Melhor Idade? Debert (1998) discorre sobre isso e comenta que no processo do envelhecimento os signos foram invertidos e assumiram novas designações: “nova juventude”, “idade do lazer”. Segundo ela, “inverteram-se os signos da aposentadoria, que deixou de ser um momento de descanso e recolhimento para tornar-se um período de atividade, lazer, realização pessoal” (DEBERT, 1998, p. 63) O ato de vestir pode ter efeitos físicos e emocionais nas mulheres jovens e velhas. Para estas últimas, pode significar um momento de desprendimento, de liberdade, de criatividade, já que nesse momento da vida não há mais tantas preocupações profissionais, sociais, com os filhos, etc. O início do envelhecimento pode implicar algumas limitações de vestuário. Há quem não perceba tais mudanças em si mesmo, porém, mesmo que sutis, a vida da mulher que passa dos sessenta anos muda em vários aspectos, e um deles pode ser seu modo de vestir, que pode influenciar a própria identidade feminina. A esse respeito, Matos (2010) diz que [...] as roupas constituem indicadores sutis de como são vivenciados as


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diferentes posições dentro de uma sociedade. O vestuário pode ser visto como um importante reservatório de significados passíveis de ser manipulados e reconstruídos e acentuar identidades pessoais (MATOS, 2010, p. 12).

Sendo assim, a roupa não só demonstra a classe social de uma pessoa, por exemplo, mas pode contar um pouco sobre as influências, as aspirações, os desejos, os medos, as inseguranças e várias outras características do sujeito. O vestuário não é simplesmente o que ele aparenta sozinho, mas, quando em um corpo, em uma pessoa, toma formas diversas e assume outros significados. Portanto, reescreve e conta a história das mulheres que hoje são maduras. Segundo Bassit (2002, p. 175), “a contribuição que diferentes histórias de vida podem apresentar está pautada no pressuposto de que o envelhecimento é uma experiência diversificada e sujeita às influências de diferentes contextos sociais, históricos e culturais”. A mesma autora informa que, muitas vezes, a visão que a sociedade e os especialistas têm dos velhos não é a mesma que eles têm deles próprios, ou seja, é muito importante ouvirmos o que eles nos dizem para podermos refletir acerca do processo de envelhecimento, suas representações e seus significados. 3 UMA CONVERSA SOBRE ESTILO, MODA E MATURIDADE Para este artigo, selecionamos duas entrevistas: a de Ana, de 66 anos e Beatriz4, de 70 anos. Ambas residem em São Leopoldo, cidade conhecida pela sua relação estreita com a colonização alemã, posto que foi o local da chegada dos primeiros imigrantes alemães em 1824. A localidade fica próxima de Porto Alegre, capital do estado sul-rio-grandense. Uma das entrevistadas, Beatriz, mora no centro da cidade e tem poder aquisitivo médio, estaria hoje classificada como sendo de classe média. Ana, por sua vez, reside em um bairro mais afastado da área central e tem poder aquisitivo mais baixo. Para este estudo, avaliamos importante pensar a partir de mulheres que possuem uma proximidade de idade, residem na mesma cidade, porém 4

Optamos por utilizar nomes fictícios para as entrevistadas.

em espaços diferenciados, e possuem situação financeira também diferenciada. As entrevistas foram realizadas individualmente, na residência das entrevistadas. A interlocução com as entrevistadas iniciou com a seguinte pergunta: como você definiria seu estilo? Beatriz disse que seu estilo é ‘’prático’’, que ela explica que vem da combinação de calças e bermudas e algumas blusas, comentando o fato de ter somente dois vestidos. Contraditoriamente, Ana hesitou bastante para responder à pergunta, dizendo que não sabia explicar direito, mas concluiu que possui um “estilo próprio”, pois nunca prestou muita atenção do que está na moda e o que ela veste é criação de sua cabeça. O que chamou atenção nessa primeira questão foi que ambas estavam vestindo roupas muito similares no dia de suas entrevistas – calça capri escura, blusa branca e rasteira – mesmo uma dizendo que não ligava para o que estava na moda, e a outra assumindo sua praticidade, o que reforça a ideia de que as roupas significam coisas diferentes para diferentes pessoas e que todos recebem uma grande quantidade de informação por dia. O conjunto de tudo isso é que vai, mesmo inconscientemente, influenciar suas decisões na maneira de vestir. Para Barnard (2003, p. 128), as “palavras e imagens terão associações, ou conotações, diferentes para pessoas diferentes [...]”. Para o autor, toda roupa é uma representação e tem um significado que pode estar relacionado a uma emoção, uma ideia ou uma pessoa. Assim, o que uma mulher absorve e entende de uma composição de roupas pode ser completamente diferente para a outra devido ao simples fato de não serem a mesma pessoa. A segunda pergunta relacionava-se às referências e às inspirações de moda que as entrevistadas possuem. Beatriz e Ana dizem que não compram revistas nem procuram informações de moda, elas se consideram desprendidas das “ditaduras de moda” – nas quais tendências são criadas e repassadas para as consumidoras – e guiam-se muito mais pelos seus sensos estéticos pessoais. Entretanto, observamos que a televisão é uma influência importante, pois Ana conta que uma vez tinha comprado um chapéu de praia e viu na televisão uma mulher com uma roupa de uma cor e o chapéu da mesma cor, ela comprou tinta para 125


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tecido e pintou o chapéu. A entrevistada afirma que não foi a influência da mulher que a fez tingir o chapéu, mas, sim, porque gostou da ideia de combinação entre chapéu e roupa, criando uma composição monocromática. Sobre a influência da televisão na maneira de vestir, Kegler (2008) afirma que, desde sua criação até o momento em que as novelas alcançaram o posto de programas mais vistos da televisão brasileira, elas se tornaram grandes influenciadores da moda. Dentre diversos exemplos, ela mostra que a novela provoca muitas vezes o desejo de identificação do telespectador com o personagem e que isso se dá através da indumentária. Em relação à mídia, Bauman (2001) afirma que vivemos em “tempos líquidos modernos” e que ela tem um papel fundamental, pois leva os sujeitos a uma construção social e identitária padronizada, na qual os espaços públicos são colonizados por questões privadas, o que podemos observar em relação às influências na maneira de vestir das depoentes. Quando perguntadas sobre os critérios utilizados na escolha de uma roupa, Beatriz afirmou que o que a faz escolher uma peça ou uma composição é “evitar parecer ridícula” e exemplificou com bom humor: “eu já sou grande, então não vou usar uma manga morcego! Senão levanto os braços e saio voando!” Certamente Beatriz ouviria tal dica de uma consultora de moda, mas ela tem constituído o que fica melhor no seu corpo sem necessariamente recorrer a uma revista de moda ou algum programa específico de televisão. Por outro lado, Ana baseia-se única e exclusivamente nas cores para decidir o que vestir. Como ela mesma descreve, há dias em que sente que deve usar vermelho, ou azul, ou branco, ou qualquer outra cor, portanto, é imprescindível que ela tenha um guarda-roupa bastante colorido. A partir dessas afirmações, podemos concluir que nem todas as mulheres maduras estão preocupadas com o que dita a moda, mesmo havendo um cuidado de Beatriz com o “não parecer ridícula”, que está muito mais relacionado com o preconceito de idade do que com a aparência do vestuário. Goldenberg (1998), em pesquisa realizada sobre corpo, envelhecimento e felicidade com mulheres brasileiras, informa que elas estão muito preocupadas em não parecerem “ridículas” 126

através de comportamentos e roupas de jovens, para a autora, “em uma cultura em que o corpo é um capital, o processo de envelhecimento pode ser vivido como um momento de grandes perdas, especialmente de capital físico” (p. 31). Segundo Hall (2000), somos a somatória de inúmeras mudanças e experimentações, assim, podemos dizer que o senso de estilo é o que engloba todas as preferências e as noções que essas pessoas têm sobre seu corpo e que levam em consideração na hora de fazer escolhas de moda. O que cada uma das entrevistadas leva mais em consideração na hora de escolher o que vestir mostra como elas lidam com as roupas e como estas refletem seus valores pessoais. A questão do consumo de moda (roupas, sapatos, acessórios) foi abordada com as entrevistadas e ambas têm visões bastante parecidas em relação ao assunto. O preço é a parte mais importante de um produto, porém cada uma observa e procura peças com preços em conta de forma diferente. Ana é “apaixonada” por tecidos e prefere ir à loja de tecidos e criar seus modelos, opção que pode ter relação com o fato de ela não ter renda própria, pois vive da pensão que os filhos lhe proporcionam. A entrevistada informa que não se preocupa com artigos de luxo, mas que, quando vê um tecido que lhe agrada, não consegue resistir. Cita o fato de ter comprado um tecido apenas para combiná-lo com alguns botões que tinha em casa. Já para Beatriz, a qualidade deve ser considerada juntamente com o preço do produto. Ela gosta de comprar roupas quando viaja para o exterior, pois acredita que os produtos apresentam preço baixo e boa qualidade. No Brasil, ela prefere lojas populares e compra de algumas amigas que trazem mercadorias da China, tornando o valor mais acessível. A entrevistada chama a atenção para a importância maior que atribui ao conforto em detrimento da estética e cita como exemplo uma marca de calçados que “não era bonito, mas era muito bom, durava bastante e eu tenho uma bota até hoje”. Quando questionadas se achavam que seu estilo de vestir havia mudado com a chegada da maturidade, ambas disseram que não, mas Ana tem dúvidas em relação a se vestir adequadamente para sua idade, e Beatriz comentou que, depois de completar 50 anos, foi se tornando mais ‘’na dela’’.


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A fase na qual elas se encontram é de entrada, de transição para a maturidade, o que gera um leque de possíveis mudanças. O consumo diminui e as exigências mudam. O corpo passa por mudanças e a mente também, o que muitas vezes não é encarado com tranquilidade. Entretanto, na sociedade contemporânea, a mulher já está mais preparada para essas mudanças e acaba encarando a nova experiência como uma continuação e até uma libertação de muitas das amarras sociais que antes as prendiam. Outra pergunta direcionada às entrevistadas foi a seguinte: há alguma peça de roupa, calçado ou acessório que não usam mais, porém gostariam ainda de usar? A esse respeito, ambas salientaram que existem impedimentos físicos para o uso de alguma indumentária. Ana indica o uso do salto alto, menciona que “se sente realizada em cima de um salto alto, porém não pode usá-lo devido às dores no joelho”. Beatriz comenta que costumava usar blusas com alças finas, mas que “hoje elas não ficam bem nos ombros”. De acordo com Moraes (2011, p. 440), “o corpo não é simplesmente a base sobre a qual se constrói uma percepção de si. A maneira de senti-lo, de abordá-lo, as relações que se estabelecem com e por meio dele são os conteúdos dessa subjetividade.” Poderíamos pensar o “não ficam bem” mencionado a partir de um sentido simbólico, em que a relação corpo e envelhecimento está envolta pelo permitido e não permitido, o que cai bem e o que não cai bem, um jogo sutil de uma construção da relação envelhecimento e estética aceitável vai se estabelecendo de forma nem sempre nítida em nossa sociedade, porém eficiente. Algumas alterações no modo de vestir da mulher madura são, segundo elas, inevitáveis, entretanto o estilo pessoal da mulher não muda em função disso. Observamos que, quando as mulheres mais velhas se sentem impedidas de usar algo em função de alguma parte do corpo que não lhes agrada, outra característica é acentuada para compensar. Conversando com essas duas mulheres, observamos que elas têm consciência das mudanças que estão incutidas no processo de envelhecimento, mas as aceitam de uma forma muito tranquila. Beatriz comenta que não sente que mudou, pois nunca foi de usar nada ‘’fora do normal’’, pois seu estilo é muito “básico”. Já Ana, por mais que se considere fora do comum, fala com orgulho que

isso é algo natural dela. Ela diz que ser diferente e destacar-se por sua personalidade é intrínseco e completamente não intencional. Segundo ela, “às vezes as pessoas dizem que eu não tenho mais idade pra vestir o que eu visto, mas eu não me sinto assim, eu me sinto bem”, dizem: “só podia ser a Lena”. “Nessa idade as pessoas acham que temos que assumir a idade, cortar cabelo curto, parar de usar decote, mas eu não sinto esta necessidade”, afirma a entrevistada. Notamos que, ao mesmo tempo que há uma liberdade com a chegada da maturidade, há também os estereótipos de mulher madura que a sociedade impõe juntamente com as normas do aceitável e do não aceitável em termos de comportamento e de vestimenta. Como contado por Ana, isso nem sempre é uma coisa boa, e narra um episódio: ao visitar uma nova vizinha muito idosa para cumprimentá-la e dar as boas-vindas ao bairro, a senhora comentou: “Foi bom que tu vieste aqui, vou te dizer uma coisa, desde o dia que me mudei pra cá, cada estalinho do teu portão eu estou te cuidando. Tu parece ser muito certinha, pelo jeito que tu te veste”. Pasma, Ana disse que não foi a primeira vez que ela é notada pelo seu jeito de vestir. A esse respeito, Motta (2012, p. 90) diz que, em meados dos anos 1950, “[...] no panorama social mais amplo, as velhas permaneciam em boa parte diligentes avós ou ‘beatas’ [...]”, ou seja, Ana não quer ter sua imagem remetida a uma época na qual as mulheres maduras estavam identificadas com pessoas recatadas e zelosas, mas a uma época na qual as mulheres já têm direito de não serem julgadas pela roupa que vestem. Os resquícios de uma época em que prevalecia uma moralidade e um padrão de comportamento podem perseguir as mulheres que vivem no século XXI. Ainda que elas não usem mais decotes ousados e roupas justas como antigamente, como Beatriz comenta, elas se tornam alvo de críticas devido ao modo como se vestem e escolhem suas roupas, posto que a ideia das mulheres mais velhas e o seu modo de vestir está vinculada ainda à solteirona comportada ou à avó atenta, vestida de forma “adequada” a sua idade, cuidando dos netos. Quando foram questionadas sobre qual teria sido o look inesquecível da vida delas, ambas relembraram vestidos de festa que usaram em ocasiões importantes. Beatriz conta que alugou um 127


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vestido para um casamento, de uma cor entre o azul e o verde escuro, de alcinha e de cetim liso e brilhoso. O diferencial era uma peça, feita com um tecido fluido e com transparência, que ficava sobre os ombros e presa com um broche. Ela lembra que se sentiu incrível e “chiquérrima”. Essas também foram as palavras de Ana descrevendo seu vestido verde-água, cujo tecido foi comprado depois de meses de economia e foi confeccionado só para seu deleite, já que não havia nenhuma ocasião especial para usá-lo. Ana diz que quis confeccioná-lo “mesmo que fosse só para se olhar no espelho em casa!” A memória, segundo Le Goff (1984), é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade e cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos, o que percebemos nas rememorações de Ana quando menciona um vestido do passado. “Olha, eu acho que foi nos meus 15 anos. Meu pai determinava regras rígidas para a costureira – que era sobrinha dele –, como como o comprimento do vestido, mas ela ficou com pena de mim, pois achou que o vestido estava longo demais e fez uma faixa pra gente poder subir o comprimento! Era um vestido muito bonito. Eu nunca esqueci. E o meu pai nunca ficou sabendo!” A costureira, segundo a entrevistada, sentia pena dela e das mulheres da sua família, já que foram para escola somente para aprender a assinar seus próprios nomes. As palavras veiculadas em uma memória nos remetem a Motta (2012), ao afirmar que os avanços do feminismo, já desde a década de 1970, transformam o modo com que as mulheres velhas se veem e como são vistas. Segundo a autora, a maioria dessas mulheres se sente muito mais livre e satisfeita hoje do que quando eram jovens e não podiam fazer nada do que desejavam. Esse é um sentimento muito comum entre as “novas velhas” da sociedade atual, pois aquelas que não tinham um pai severo provavelmente se depararam com barreiras ao casarem, ou ainda de algum outro membro da família que tolhia sua liberdade. Porém, agora, libertas desses vínculos, elas percebem as novas oportunidades e as possibilidades de outro cenário, o que se evidencia no final das entrevistas, quando perguntadas sobre as perspectivas de suas vidas. Beatriz e Ana afirmam que não se preocupam mais com a carreira profissional nem com grandes 128

conquistas sociais, mas possuem ainda alguns desejos guardados. Ana, por exemplo, de usar uma peça de roupa “toda feita de brilho”, e Beatriz, de usar um vestido que ela nunca usou. Um fato que chamou a nossa atenção é que ambas assinalam o orgulho e a relação que mantêm com suas netas e demonstram uma grande preocupação para que as coisas sejam diferentes com elas. Segundo elas, o mais importante é que as netas não se sintam presas ou limitadas em relação ao seu estilo de vestir. Para isso, trocam experiências e até mesmo roupas. Ana menciona que sua neta, que tem vinte anos, já usou várias de suas peças de roupa em ocasiões especiais, como “um casaquinho de renda muito bonito, que é um dos que ela mais gosta”. Da mesma forma, Beatriz preocupa-se em apoiar as netas na busca pela liberdade e individualidade no vestir. Por terem vivido o que viveram, as avós colocam-se na posição das netas e imaginam como seriam suas vidas se tivessem tido as mesmas oportunidades que as netas têm. Por outro lado, observamos que as gerações mais jovens desenvolvem um olhar de admiração, inspiração, referência e reconhecimento pelas suas avós. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir desses depoimentos, observamos que, assim como a memória, as roupas têm o poder de carregar histórias e podem transmitir sentimentos. As peças contêm lembranças, expressões e resquícios das pessoas que as usam. O sentimento de realização e alegria na rememoração de determinada vestimenta demonstra o quanto uma peça de vestuário é capaz de trazer à tona histórias de vida, com suas alegrias, tristezas, enfim, acionar as sensibilidades inerentes ao ser humano. O modo como as mulheres se sentem em relação ao seu envelhecimento e como processam isso através da indumentária difere muito de pessoa para pessoa. Pode-se identificar mulheres maduras que sofrem com o envelhecimento, já outras atravessam a barreira dos sessenta anos e sentemse livres de uma bagagem pesada de obrigações e cobranças que as vinha acompanhando em diferentes momentos de sua vida. Percebemos que as mudanças que acompanham o envelhecimento estão muito relacionadas com a maneira com que essas mulheres se vestem. As mulheres que têm seu estilo alterado drasticamente


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não são necessariamente vítimas das opressões e expectativas da sociedade para a mulher velha, mas, sim, usam essa força imposta sobre elas para se libertarem dos muitos ideais e paradigmas que elas mesmas não sentiam mais ou que nunca chegaram a fazer parte da sua personalidade. Observamos que as vestimentas constituem indicadores sutis de como o passado é representado no presente em relação à personalidade e à memória de um indivíduo, ou seja, relaciona temporalidades. No caso das mulheres, a memória implica a maneira com que elas vivem hoje e repassa uma imagem para as gerações seguintes, e o estilo pode ser entendido como um depósito de significados decorrentes da identidade pessoal, muitas vezes, fragmentada, construída e reconstruída incessantemente. Ao pensarmos sobre a relação entre moda e mulher madura, intencionamos neste estudo trazer à tona a percepção, mesmo que limitada, dos próprios atores sociais, ou seja, Beatriz e Ana, que, mesmo com diferenças sociais e econômicas, fazem parte de uma mesma geração, suas experiências e trajetórias não foram as mesmas e possuem singularidades próprias, no entanto, ao envelhecerem, ao se tornarem mulheres maduras, seus corpos são vistos sem distinção, são corpos velhos e, por isso, a eles nem tudo é permitido. Em uma sociedade que ainda privilegia a juventude e marginaliza seus velhos, Beatriz e Ana estão se saindo muito bem.

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EXPERIÊNCIA E PROGNÓSTICOS DE UM BRASIL: UM ENSAIO SOBRE MANOEL BOMFIM

Daniel da Silva Becker1 RESUMO Entre o final do século XIX e início do século XX, muitos intelectuais brasileiros não deixaram de esboçar os seus próprios diagnósticos e prognósticos a respeito da história de sua jovem nação. Com isso, traçavam-se linhas interpretativas, teorias e perspectivas de interpretação e construção do Brasil. Analiso como Manoel Bomfim articulou, em sua obra “América Latina: males de origem”, publicada em 1905, as noções de passado, presente e futuro, concentrando-me especialmente na forma como essas três categorias temporais foram utilizadas pelo autor para expressar sua própria experiência na história e suas expectativas em relação ao futuro do Brasil. É escrevendo uma história do parasitismo ibérico que o médico e professor Manoel Bomfim ambicionou chegar a um diagnóstico dos problemas que afligiam o Brasil dos primeiros anos do século XX e, a partir daí, direcionar o seu olhar para o futuro. Palavras-chave: Manoel Bomfim. Temporalidade. Brasil República. História. ABSTRACT During the 19th and 20th centuries, several generations of Brazilian intellectuals had tried to sketch their own accounts about the history of their young nation. They drew up theories and perspectives of construction and interpretation of Brazil. In this article I analyze how Manoel Bomfim articulated in his book “América Latina: males de origem”, published in 1905, the notions of past, present and future, focusing particularly on how these three time categories were used by the author to express his own experience in history and his expectations for the future of Brazil. It is writing a history of the so-called Iberian parasitism that Manoel Bomfim aspired to reach a diagnosis of the problems afflicting Brazil in the early years of the twentieth century and, from there, directing his gaze toward the future. Keywords: Manoel Bomfim. Temporality. Brazilian Republic. History.

1 Bolsista de Mestrado em História do CNPq no PPGH da PUCRS. Integrante do Grupo de Pesquisa em Teoria e História da Historiografia da PUCRS e membro da International Network for Theory of History (INTH). E-mail: dsilvabecker@ yahoo.com.br.

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1 INTRODUÇÃO Nas linhas a seguir, exploro como Manoel Bomfim articulou, em sua obra “América Latina: males de origem”, publicada em 1905, as noções de passado, presente e futuro, concentrando-me especialmente na forma como essas três categorias temporais foram utilizadas pelo autor para expressar sua própria experiência na história e suas expectativas em relação ao futuro do Brasil. Como demonstrou Koselleck (2004), nossa compreensão da história está indissociável das categorias linguísticas que utilizamos para dar sentido ao passado. Essa perspectiva abre a possibilidade de se pensar então na escrita da história como um dos fatores decisivos na conformação da experiência temporal de uma época. Ou seja, escrever sobre o passado e sua articulação entre o presente e o futuro passa a ser um espaço de cruzamento e/ou sobreposição de várias temporalidades. No dizer de Koselleck (2004, p. 223), os conceitos da história reúnem experiências e encadeiam expectativas que possibilitam um “acesso às esperanças e aos desejos, aos temores e sofrimentos dos contemporâneos de outra época”. De algum modo, todos os projetos de construção da nação ou da identidade nacional envolveram uma releitura/utilização/instrumentalização do passado, uma interpretação do presente e inúmeras expectativas e prognósticos lançados em direção ao futuro. Nesse sentido, o processo de construção ou mesmo de reelaboração de uma identidade nacional pode significar também, ainda que nem sempre de uma forma consciente e estruturada, um complexo processo de estabelecimento de novos significados e categorias temporais. A emergência de uma nova concepção de tempo, a partir do final do século XVIII, marcada pela historicidade e pela noção de um tempo irreversível e em constante mudança, possibilitou uma nova relação do homem com os elementos de seu passado. Ao mesmo tempo, o passado passou a estar associado ao futuro. E, o tempo adquire movimento e recebe um sentido, permitindo prognósticos que, do presente, se direcionam ao futuro, sempre amparados pelos diagnósticos lançados em direção ao passado. Nesse sentido, seguindo a reflexão de Koselleck (2004, p. 19), o prognóstico torna-se um fator consciente de ação política. Se de um lado, elementos como a cultura e a raça tornaram-se importantes chaves de análise

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da realidade brasileira no início do século XX, de outro, uma espécie de mal-estar sempre permanecia entre os próprios intérpretes, como se suas categorias encontrassem alguma dificuldade para se materializarem num projeto capaz de inserir o país na órbita das modernas potências europeias. Interpretar o passado, portanto, era uma atividade complexa e penosa. A maioria das análises sobre o passado histórico nacional acabou inevitavelmente examinando-o em termos de permanências, apesar do interesse presente por mudanças, fazendo com que o passado pairasse sobre o presente como um fardo. Daí um Silvio Romero ou um Euclides da Cunha, por exemplo, mesmo reconhecendo as possibilidades oferecidas pela mestiçagem como uma peculiaridade para o Brasil, manifestarem em suas análises sempre um significativo tom de insatisfação diante de sua realidade. Por outro lado, essa dimensão de insatisfação em relação ao presente constituiu, ao menos desde o século XVIII, uma das bases sobre as quais o próprio pensamento histórico moderno se edificou. Conforme Rüsen destacou: “esta transformação de uma experiência emocional destrutiva da história numa interpretação cognitiva construtiva parece ser típica nas origens do pensamento histórico moderno no inicio da filosofia da história” (RÜSEN, 2008, p. 42). E, os sentimentos atuam aqui transformando os acontecimentos do passado numa história significativa para o presente e suas expectativas futuras. Autores como Leopold von Ranke e Jacob Burckhardt viram seu próprio mundo presente como algo penoso e gerador de sofrimento, direcionando, desse modo, o seu olhar para o próprio passado. Como escreveu Burckhardt em suas reflexões sobre a história, “somente o movimento, por doloroso que seja, é uma garantia de vida” (BURCKHARDT, 1999, p. 272). É interessante observar que, no início do século XX, a história do Brasil ainda estava praticamente por ser escrita. E, nesse contexto, escrever história e atuar politicamente no presente estão intimamente relacionados. Como observou Luiz Costa Lima (1981), nossos intelectuais nessa época estavam presos ao jornal e à tribuna, compondo um estilo “fácil e ligeiro, ainda quando grandiloquente e oratório” (p. 193). A partir da emancipação política de Portugal, em 1822, escrever essa história, torná-la real,


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sempre foi uma das tarefas deixadas pelas gerações passadas aos seus conterrâneos do futuro. Tal tarefa, no entanto, não deixou de ser pensada no presente, neste espaço temporal incerto entre o passado e o futuro. Diversas gerações de intelectuais brasileiros, na esperança de verem suas próprias esperanças concretizadas no futuro, não deixaram de esboçar seus próprios relatos sobre a história de sua jovem nação. Com isso, traçavam-se linhas interpretativas, teorias e perspectivas de interpretação e construção do Brasil. Mas, certamente, as obras desses intelectuais ambicionavam muito mais do que uma interpretação. É interessante ressaltar esse fato, uma vez que a definição como nação e a criação de projetos para o Brasil estiveram diretamente relacionadas à escrita de sua história. Escrever a história parecia a única alternativa para acomodar os fantasmas do passado ainda muito vivos no presente e, a partir de então, olhar para o que o país poderia se tornar no futuro. É escrevendo uma história do parasitismo ibérico que o médico e professor Manoel Bomfim ambicionou chegar a um diagnóstico dos problemas que afligiam o Brasil dos primeiros anos do século XX e, a partir daí, direcionar o seu olhar para o futuro. 2 O HORIZONTE DAS EXPERIÊNCIAS Quando, em 1905, foi publicada a primeira edição de “América Latina: males de origem”, de Manoel Bomfim, pela tradicional livraria Garnier, ponto de encontro de importantes intelectuais cariocas, como o próprio Machado de Assis, o Rio de Janeiro vivia seu momento de regeneração (NEEDELL, 1993). A inauguração da Avenida Central no final do ano de 1904 foi um símbolo desse esforço modernizador presente nos primeiros anos da República no Brasil. Inserir a capital do país dentro da órbita das modernas cidades europeias, tendo Paris como seu principal modelo, era visto como uma ação decisiva na inserção do próprio Brasil na órbita da civilização. Neste sentido, como reconhece Nicolau Sevcenko (1998, p. 27), o tempo republicano era marcado pelo sentido da aceleração, [...] impulsionado por novos potenciais energéticos e tecnológicos, em que a exigência de acertar os ponteiros brasileiros com o relógio global suscitou a hegemonia de discursos técnicos, confiantes em

representar a vitória inelutável do progresso e por isso dispostos a fazer valer a modernização ‘a qualquer custo.

Vivia-se, nesse sentido, um período de grandes ambições, marcado pela “sensação de expansão ilimitada dos desejos” 2 em praticamente todos os campos da atividade humana, ou seja, a conhecida Belle-Époque. Além disso, havia uma expansão das ideias, caracterizadas por Silvio Romero como um “bando de ideias novas”, ligadas ao naturalismo e ao cientificismo, desempenhando, no Brasil desse período, um ”papel semelhante à Ilustração na Europa no século XVIII, ao trazer um saber secular e temporal, afastado das concepções religiosas” (VENTURA, 1991, p. 12). Contudo, o objetivo nutrido durante os primeiros anos da República, o de incluir o Brasil na órbita dos países civilizados, dentro dos moldes da cultura europeia, provou-se, desde o início, uma fonte de grandes apreensões e angústias. Foi nesse contexto que Manoel Bomfim terminou de escrever o seu livro sobre os males de origem que condenam a América Latina e, especialmente o Brasil, a uma posição marginal no concerto das grandes potências e impérios do início do século XX. É interessante lembrar que o próprio autor escreveu o prefácio de sua obra justamente em Paris, em março de 1903. Entre 1902 e 1903, Bomfim estudou psicologia na Sorbonne, entrando em contato com importantes pesquisadores da área. Observando a realidade dos países latinoamericanos, Bomfim questionava-se justamente sobre como uma das partes mais ricas do planeta, em termos de recursos naturais e ambientais, poderia ser, ao mesmo tempo, uma das mais atrasadas e suscetível a instabilidades. Nas palavras do autor, apesar de serem nações novas, estabelecidas em um grande território reconhecido pelas nações desenvolvidas como rico e propício, continuavam a ser símbolos do atraso. Nesse sentido, se o meio era propício ao desenvolvimento, como o autor mesmo reconhecia, por que a existência de um tamanho descompasso entre a América Latina e o restante das nações desenvolvidas? Encontrar uma resposta para essa questão tratava-se, para Bomfim, antes de tudo, de uma 2

A expressão é de Edgar de Decca (2003, p. 176).

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questão de felicidade para os povos americanos. Ao mesmo tempo, representando o Brasil e a América como alvos dos interesses e das ganâncias das potências europeias e dos Estados Unidos, o autor caracterizava o seu presente como sendo uma “hora de universal egoísmo” (BOMFIM, 1905, p. 15). Nesse sentido, o próprio tempo passa a ser qualificado a partir de uma característica moral. E o dilema emerge justamente dessa posição peculiar das repúblicas latino-americanas dentro da “civilização ocidental”, para usar uma expressão próxima a de Bomfim: Mas, em o nosso caso, participando directamente da civilização occidental, pertencendo a ella, relacionados directamente, intimamente a todos os outros povos cultos, e sendo ao mesmo tempo dos mais atrazados, e por conseguinte dos mais fracos, somos forçosamente infelizes. Soffremos todos os males, desvantagens e onus, fataes ás sociedades cultas, sem fruirmos quase nenhum dos benefícios com que o progresso tem suavisado a vida humana. (BOMFIM, 1905, p. 18) [grifos dos autores].

Note-se que o progresso não foi criticado por Bomfim, sendo visto como um elemento capaz de suavizar a vida dos seres humanos no planeta. Nesse sentido, o autor partilhou do mesmo otimismo de seus contemporâneos do início do século XX em relação ao progresso e às ciências, questionando apenas a posição ocupada pelos países latinoamericanos nesse contexto. Além disso, devese observar como outros elementos do discurso político e intelectual do período acabaram aderindo ao próprio discurso do autor. Nessa citação, podemos perceber que Bomfim concebeu um ente chamado “civilização ocidental”, que congregaria todos os povos cultos. É interessante observarmos que se tratou de um período fortemente influenciado pela doutrina Monroe, que visava a integrar os países americanos sob um mesmo discurso, baseado na tutela dos Estados Unidos. E, apesar de o autor se posicionar contrário a essa política, não conseguiu escapar de outros elementos justificadores dessa mesma doutrina. Como sugere a historiadora Lynn Hunt (2008), o próprio conceito de “civilização ocidental” era estranho à maioria dos europeus

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do século XIX. Ele surgiu principalmente nos Estados Unidos do início do século XX, como uma tentativa de estabelecer uma ligação histórica entre a herança europeia e o seu pretenso representante nas Américas. É esse conceito, justamente, uma das bases que irá sustentar a propaganda americana de participação na I Guerra Mundial, alegando um substrato comum de história, todos participantes da dita “civilização ocidental”. Mas, neste ponto, deve-se observar outra sutileza da argumentação de Manoel Bomfim. O autor reconheceu que existia uma ligação e, mais do que isso, uma participação dos países da América Latina dentro da “civilização ocidental”. Contudo, nas páginas que se seguiriam a essa afirmação, o autor começou a traçar uma história dos povos ibéricos, Espanha e Portugal, a fim de identificar a herança prejudicial para os povos americanos colonizados. Trata-se do conceito de parasitismo ibérico. E, aqui, emerge um elemento de tensão em sua análise: se o parasitismo ibérico foi a chave explicativa para o atraso das repúblicas latino-americanas, de outro lado, foi através da colonização por Portugal e Espanha que se pôde reivindicar alguma espécie de vínculo, a dita “civilização ocidental”. A resposta para essa tensão, no entanto, encontra-se no modo como Bomfim analisou o desenvolvimento da história moderna e a periodizou. Para ele, a história do Iluminismo e dos progressos científicos e tecnológicos observados a partir do século XVIII na Europa se constituiu num processo alheio ao da história da península ibérica. Portugal e Espanha encontravam-se fora da Modernidade para Manoel Bomfim: No correr do seculo XVII e do XVIII, a Iberia, que havia dado ao mundo Cervantes, Camões, Murillo, Lope de Veja, Ribera... desapparece, involue, degenera; não se vê um só nome hespanhol ou portuguez entre os homens que fundam a cultura moderna e dominam a natureza, ou naquelles que refazem a philosophia racionalista, que illuminará as gentes na conquista da justiça e da liberdade. [...] a Hespanha desapparece desse concurso do progresso (BOMFIM, 1905, p. 26).

Assim, para Bomfim, Espanha e Portugal, em seu processo de degeneração, acabaram por não ser participantes do que chamou de “cultura


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moderna”, que, para ele, era caracterizada pelo domínio da natureza e pela filosofia racionalista. Estando, pois, essa mesma cultura associada, para o autor, a uma fonte da justiça e das liberdades, seu projeto de regeneração para a América Latina, mas especialmente para o Brasil, se localizará num âmbito educacional e pedagógico, já que “a evolução humana é o progresso do espírito, é a cultura da intelligencia para conhecer, a cultura do sentimento para amar” (BOMFIM, 1905, p. 402). Para Manoel Bomfim, as nacionalidades são produtos de uma evolução. Calcando a sua análise a partir de conceitos derivados da biologia, o autor reiterou alguns dos princípios do naturalismo e do positivismo, tomando a sociedade como um “verdadeiro organismo”, sujeito a “leis categóricas”. E, dentro dessas características, retomou também a noção de “transmissão dos caracteres adquiridos”, de Lamarck. Já no prefácio, o autor citou Walter Bagehot e sua obra “Physics and Politic”, de 1872, que possui como subtítulo algo muito próximo da abordagem de Bomfim em “América Latina”: “pensamento sobre a aplicação dos princípios da seleção natural e ‘hereditariedade’ à sociedade política”. Neste livro, Bagehot desenvolve o conceito de “cake of custom”, caracterizado pelo conjunto de costumes em que uma sociedade está enraizada. Mas, para esse autor, trata-se justamente de se quebrar com esses costumes cimentados nas relações sociais, no sentido de promover uma evolução para algo melhor. E, nesse sentido, Bagehot afirma que a grande dificuldade que a história registra não é a do primeiro passado em direção à mudança, mas, sim, o do segundo, da permanência no caminho da mudança e da evolução. Certamente essa análise influenciou profundamente Bomfim, que via na história de Portugal e Espanha justamente o afastamento do progresso, a estagnação no primeiro passado, sem chegar ao desenvolvimento da cultura moderna. Desse modo, procedendo como um médico que busca localizar nos antecedentes de seu paciente as causas para os seus males do presente, Bomfim iniciou a sua análise das causas do parasitismo ibérico na América. Dentro desse esquema explicativo, o passado emerge, primeiramente, como um peso. Ele representa a origem de um mal, uma ferida ainda aberta, que levou ao estado de convalescência do paciente no presente:

A cura depende, em grande parte, da importancia desse “historico” [do paciente], principalmente quando as condições presentes são relativamente favoraveis, e são taes que a ellas o individuo se poderia adaptar facilmente, si não tivesse contra si uma herança funesta. Então, num tal caso, o empenho do clinico é dirigido todo, não contra o meio actual, pois este é propicio – mas contra o passado, para vencel-o e eliminal-o (BOMFIM, 1905, p. 22) [grifos dos autores].

O médico então não adquire apenas um papel de terapeuta, ele é também uma espécie de juiz que deverá julgar “o histórico” de seu paciente. E, ao proceder dessa forma, seu objetivo final será o da superação do próprio passado. 3 PROGNÓSTICOS E PROJETOS DE UM BRASIL Superar esse passado, para Manoel Bomfim, estava diretamente ligado à promoção da educação e do ensino. Somente a instrução, segundo Bomfim, seria capaz de construir um povo livre e democrático. Como escreveu o autor na sua conclusão, o próprio povo ainda estava por ser construído nas repúblicas americanas: “povo, consciente de sua existência, tal como o exige uma democracia, não existe aqui; é preciso fazel-o” (BOMFIM, 1905, p. 420). Para o autor, o conhecimento racional, obtido através da ciência, capaz de estimular o progresso, dota os homens de domínio sobre a natureza e permite a eles a “previsão dos fenômenos”. Nesse sentido, a cura para a degeneração imposta pelo parasitismo ibérico, que implicava não apenas consequências políticas e sociais, mas também morais, como o embrutecimento, a apatia, a superstição, o conservadorismo e o tradicionalismo, estaria na entrada dos países latinoamericanos dentro da órbita da cultura europeia moderna, que, para Bomfim, estava caracterizada pela racionalidade e pelo progresso: Foi esse estudo e essa nova comprehensão da vida que faltaram aos povos ibericos, nas epocas em que viviamos á sombra deles; e assim nos retardamos de seculos. E, hoje, o indispensável e urgente é aplicar ao nosso meio e ás nossas necessidades, a sciencia que já está feita, difundir as verdades adquiridas e os bons methodos de estudo; ao mesmo tempo, nos é preciso

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observar, estudar e interpretar aquillo que, sendo peculiar ao nosso meio, ainda não é do dominio corrente da sciencia (BOMFIM, 1905, p. 406-407).

Nesse sentido, a metáfora do parasitismo elaborada por Manoel Bomfim foi muito além da afirmação dos efeitos nocivos da cultura e da ação de Portugal e da Espanha na América. Ao discutila, Bomfim articulou categorias temporais e propôs uma periodização da própria história. Para o autor, Espanha e Portugal, bem como suas antigas colônias americanas ainda não haviam entrado na história moderna. E, a chave dessa interpretação está principalmente dada a partir de sua leitura do significado do Iluminismo europeu para o desenvolvimento do pensamento moderno. Nesse sentido, seguindo a metáfora do parasitismo, o autor afirma que os países latinoamericanos estão imobilizados, degenerando junto com seu parasita original. Tratando-se, portanto, de um estado de quase morte, isso porque, para Bomfim (1905), “viver é progredir, declinar já é morrer; a moral, o aperfeiçoamento, é a vida que se desenvolve” (p. 426). E, estando a vida aliada ao progresso, só pode haver um único caminho possível para as nações latino-americanas trilharem: [...] A America Latina está ameaçada; a civilização transborda sobre ella, e esse transbordamento será uma ameaça e um perigo, si ella, por um esforço consciente e methodico, não buscar a única salvação possível: avançar para o progresso, entrar no movimento, apresentar-se ao mundo, vigorosa, moderna, senhora de si mesma, como quem está resolvida a viver, livre entre os livres (BOMFIM, 1905, p. 387) [grifos dos autores].

Dessa forma, a educação, a instrução, adquire uma importância central no diagnóstico de Bomfim e também na sua previsão de um futuro para esses países. “[...] Porque a sociedade que pretende durar deve, não só organizar o presente, como preparar o futuro; assim o quer o interesse social bem entendido” (BOMFIM, 1905, p. 425). A educação, ao possibilitar a entrada na cultura moderna, vista por Bomfim como positiva e capaz de trazer a felicidade, significaria um “apresentar-se ao mundo”

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para as nações latino-americanas: Busquemos da sciencia os seus recursos eficazes, infalliveis; e, emancipados pela critica, illuminados pelo saber, voltemo-nos á vida, confiantes e fortes, preparando para nós mesmos o conforto, a fraternidade, os gozos elevados, moraes e estheticos (BOMFIM, 1905, p. 428) [grifos dos outores].

Com isso, ao associar essa entrada futura no âmbito do progresso geral, que ele pensou caracterizar as grandes potências europeias, como uma ação de movimento, de quebra da inércia, Bomfim mais uma vez reiterou sua visão a respeito de seu próprio presente. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A história, mas especialmente os conceitos de raça e cultura emergiram no Brasil do final do século XIX como dimensões vitais nas discussões a respeito das projeções do futuro da jovem nação. As preocupações com uma monarquia decadente e inoperante misturaram-se às incertezas da instauração da república e sua suposta universalidade liberal. E, o passado, aliado ao futuro, tornou-se uma fonte fundamental para descortinar as possibilidades e a originalidade do Brasil no concerto das nações civilizadas ocidentais. É por isso que Silvio Romero bradou o nascimento da literatura brasileira na primeira quadrinha popular cantada pelo primeiro mestiço nos tempos coloniais. Formar nossa literatura ligava-se à proposta de formar o próprio país, expulsando, na medida do possível, as lembranças de um passado de domínio português. Ao mesmo tempo, raça e cultura estimularam o fervor intelectual e as fantasias de inúmeros desses autores envolvidos por um “bando de ideias novas” que se achegavam vindas de fora. Naturalismo, positivismo, evolucionismo e liberalismo, já existentes nestas bandas, passaram também por um processo de miscigenação, culminando na adoção de uma postura racista em relação à diversidade étnica existente no país (VENTURA, 1999). Os caminhos traçados pelos diversos intérpretes dessa nova nação são reveladores das experiências desse período e de seu “horizonte de expectativas”. Contudo, o caminho de análise seguido por Manoel Bomfim, em seu livro “A América Latina:


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males de origem”, é um pouco diferente dentro desse contexto. Diante das previsões pessimistas do futuro do Brasil, preditas pelo racismo científico, intelectuais como Silvio Romero passaram a ver na mestiçagem e no branqueamento uma alternativa de reabilitação das raças consideradas inferiores e uma possível saída para o desenvolvimento da jovem nação brasileira dentro do contexto das nações ocidentais. Já a explicação de Manoel Bomfim seguia por uma linha distinta, na qual localizava o problema do atraso brasileiro em relação à exploração por parte da metrópole portuguesa. Autor de uma leitura original sobre o passado histórico brasileiro, Bomfim via a própria história como um organismo em desenvolvimento (REIS, 2003). Se, no início do seu livro, o parasitismo está associado a uma característica ibérica, no seu final, o próprio passado torna-se um parasita na vida dos países da América Latina e que necessita ser expurgado. “Assistidos, reconfortados por estes [dirigentes latino-americanos], os elementos refractarios, remanescentes do passado parasitario, revivem, proliferam, doutrinam, orientam; e a nova patria não chega nunca a ser uma patria, sinão a excolonia, que se prolonga pelo Estado independente” (BOMFIM, 1905, p. 396, grifos meus). E, Bomfim cita Machado de Assis, reiterando sua posição de juiz e sua esperança de que “os tempos serão rectificados. O mal acabará [...]” (BOMFIM, 1905, p. 424). A retificação do passado virá, para o autor, através da educação, único elemento capaz de levar o homem a uma ação consciente no mundo. Sua obra, portanto, se inseriu dentro do agitado processo de demarcação cultural da nação no Brasil (PAREDES, 2011). Esse processo envolvia a necessidade de uma releitura/reelaboração da experiência histórica passada, especialmente uma revisão das relações entre Brasil e sua antiga metrópole. E, não podia deixar de ser diferente, as tentativas de reescrita da história andavam lado a lado com a busca por uma identidade nacional para a jovem república americana.

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PROPOSTAS PARA OS (DES)BORDES URBANOS DO BAIRRO SÃO JOSÉ, EM NOVO HAMBURGO/RS

Alessandra M. do Amaral Brito 1 Luciana Néri Martins 2 Caroline Kehl3 Juliana Tassinari Cruz4 RESUMO O artigo apresenta o Estudo de Caso dos (des)bordes urbanos do bairro São José, no município de Novo Hamburgo. Esse estudo é fruto da participação do Projeto de Extensão do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Feevale junto à Red “(DES) Bordes Urbanos: Política, Proyecto y Gestión Sostenible en la Ciudad de la Periferia5”, financiado pelo Programa CYTED (Programa Iberoamericano de Ciencia y Tenología para el Desarollo). A rede visa a atender a dois grandes objetivos: produzir conhecimento (através da discussão e da construção de marco teórico) e gerar metodologias aplicáveis desse conhecimento, isto é, dar operacionalidade ao conceito do (des)borde (LORENZO, 2013). Assim, o trabalho que será apresentado busca contribuir com esses objetivos. Palavras-chave: (Des)bordes urbanos. Regularização fundiária. Arquitetura e urbanismo. ABSTRACT The paper presents a case study that took place in São José neighborhood in the city of Novo Hamburgo. The analyzed place contains what is called a urban (des)borde. The study shows the results of Feevale University’s Architecture and Urbanism’s School Extension’s Project from participation in Red “(DES) Bordes Urbanos: Política, Proyecto y Gestión Sostenible en la Ciudad de la Periferia5”, funded by CYTED

Arquiteta e urbanista. Mestre em Engenharia Civil, líder do Projeto de Extensão Arq +, professora da Universidade Feevale do Curso de Arquitetura e Urbanismo. Investiga na área da Arquitetura Social. E-mail: abrito@feevale.br. 2 Arquiteta e urbanista. Doutora em Investigação e Inovação em Educação pela Universitat de les Illes Balears - UIB/ Espanha, professora da Universidade Feevale dos Cursos de Arquitetura e Urbanismo e Design de Interiores. Investiga nas áreas de Arquitetura Escolar, Arquitetura Social e Acessibilidade. E-mail: lmartins@feevale.br. 3 Arquiteta e urbanista. Mestre em Engenharia Civil, professora e coordenadora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Feevale. Investiga nas áreas da Arquitetura Social, Sustentável e de Tecnologias de Informação Aplicadas à Construção (BIM). E-mail: carolinek@feevale.br. 4 Arquiteta e urbanista. Mestre em Engenharia Civil, professora da Universidade Feevale dos Cursos de Arquitetura e Urbanismo e Engenharia Civil. Investiga nas áreas de Arquitetura sustentável, Bioarquitetura e Autoconstrução de moradias. E-mail: julianacruz@feevale.br. 5 Red (DES) Bordes Urbanos. Política, Proyecto y Gestión Sostenible en la Ciudad de la Periferia - Tradução literal do espanhol: Rede (DES) Bordes Urbanos. Política, Projeto e Gestão Sustentável na Cidade da Periferia. Literal translation from Spanish: Urban (DES) Bordes Network. Politics, Design and Sustainable Management to the Periferic City. 1

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Program (Science and Technology Iberian American Program for Development). The network aims to meet two main goals: to produce knowledge (through a theoretical discussion on a concept construction) and to generate applicable methodologies from the obtained knowledge as meaning to operationalize the (des) borde’s concept (LORENZO, 2013). Thus, the work to be presented contributes to these goals. Keywords: Urban (des)bordes. Land tenure. Architecture and urbanism.

1 INTRODUÇÃO A rede (des)bordes urbanos surgiu em 2011, quando um grupo de amigos e investigadores de diferentes origens, situações geográficas, práticas e experiências reuniu-se para iniciar um caminho em conjunto, formando uma Rede Temática em torno de preocupações comuns acerca das problemáticas urbanas. A proposta consolidada como Red “(Des)Bordes Urbanos: Política, Proyecto y Gestión Sostenible en la Ciudad de la Periferia” formou-se para se apresentar à convocatória do Programa CYTED6, na área temática Desenvolvimento Sustentável, Mudança Global e Ecossistemas e na linha de investigação Gestão sustentável dos espaços periféricos urbanos ibero-americanos. Atualmente a rede conta com 102 pesquisadores pertencentes a nove grupos de pesquisa e um grupo de extensão (o da Universidade Feevale), provenientes de diversas universidades, organizações não governamentais e organismos internacionais de seis países (Brasil, Argentina, Chile, Espanha, Equador e Uruguai). Um dos principais objetivos da Red (des)bordes é gerar conhecimento, de forma a desenvolver um conjunto de dispositivos e de estratégias inovadoras, de aproximação ao território e de promoção da cidadania para construir coletivamente o conhecimento sobre o âmbito concreto do bairro e do lugar; sobre os usos e as apropriações do espaço público e do habitat, impulsionando, assim, projetos de investigação e de gestão em diversas escalas e com diferentes horizontes temporais, principalmente, com a introdução de critérios de sustentabilidade ambiental. De uma maneira geral, a rede estuda espaços urbanos que apresentam as seguintes situações: Programa Iberoamericano, de Ciencia y Tecnología para el Desarrollo - tradução literal: Programa Ibero-americano de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento.

necessidade de intervenção (consolidação, reabilitação ou melhoria), vulnerabilidade social e/ou ambiental, pressão sobre o uso do solo, concentração de pobreza, precariedade urbano-habitacional, conflito social, etc. O (des)borde não consiste necessariamente na periferia ou na borda da cidade, pois o conceito não está atrelado à questão topológica ou de localização espacial. A periferia tem uma relação de centralidade com a cidade (o anel mais distante de uma configuração radiocêntrica). O (des)borde, nem sempre. Assim, esse pode se manifestar em todo o território da cidade, está associado ao que pode ser qualificável através de certos atributos. Portanto, os (des)bordes contemplam tanto os âmbitos social - a sociedade marginalizada, a sociedade paralela, os excluídos - quanto territorial: os vazios urbanos, as áreas de transição, as áreas com desequilíbrio social, urbano e ambiental (RED DESBORDES URBANOS, 2013). Em consonância com os estudos realizados na Rede, o projeto de extensão do curso de Arquitetura e Urbanismo, atualmente chamado ARQ+, estuda espaços urbanos que apresentam características como as citadas acima. Em especial, serão apresentados os (des)bordes urbanos do bairro São José, em Novo Hamburgo/RS. Essa área foi escolhida como objeto de estudo do ARQ+ por estar muito próxima à Universidade Feevale e por ser considerada, segundo o PLHIS7, uma AIS I, isto é, uma Área de Interesse Social I. Sua população tem uma renda média de zero a três salários mínimos. 2 A CIDADE E O BAIRRO A cidade de Novo Hamburgo está localizada a 45 km da capital do estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Sua economia durante muitas décadas esteve baseada na indústria calçadista. Ao mesmo tempo que a industrialização possibilitou transformar a cidade em

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Plano Local de Habitação de Interesse Social.


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polo calçadista, também foi responsável pela migração de várias pessoas que vieram em busca de trabalho. O município, diante da franca expansão, não conseguiu prover infraestrutura e moradia necessárias e, consequentemente, ocorreram ocupações irregulares em toda a cidade (BRITO; KEHL, 2014). O (des)borde que este artigo abordará está situado no bairro São José, localizado no centro-norte

da cidade. Sua área fica próxima ao Câmpus II da Universidade Feevale, separada desse apenas pela ERS-239, conforme a seguir localizado na Figura 1. A área geográfica é de 2,40km², representando 3,52% da área do município. O bairro contabiliza 5.851 habitantes, 1.443 residências, 62 indústrias, 153 comércios, 144 serviços e oito escolas (PREFEITURA MUNICIPAL DE NOVO HAMBURGO, 2014).

Figura 1 – Mapa da cidade de NH com a localização: da Universidade Feevale (em cinza escuro), dos bairros Centro (em cinza claro) e São José (em branco, acima da ERS 239) Fonte: Prefeitura de Novo Hamburgo, 2014 141


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Segundo o Censo de 2010, o déficit habitacional urbano total do município é de 7.013 unidades habitacionais, sendo 4.058 dessas de famílias com renda entre zero a três salários mínimos (BRITO e KEHL, 2014). Portanto, parte dessas famílias que não possuem moradia está no bairro São José. A figura abaixo mostra as áreas precárias da AIS I, delimitadas no capítulo de Diagnóstico do PLHIS. A área de estudo deste artigo está concentrada nos números a seguir. • 14: Nova Esperança • 64: Praça Invadida: Colina da Mata e 3ª Idade • 65: Praça Invadida: Colina da Mata • 99: Praça Invadida: Loteamento Kephas II 3 OS (DES)BORDES URBANO E AMBIENTAL Grande parte do bairro São José é constituída de loteamentos regulares, já consolidados, com

edificações simples de alvenaria, algumas com bom padrão construtivo. O bairro conta com transporte público e infraestrutura completa (água, energia, coleta domiciliar de resíduos sólidos e esgotos pluvial e sanitário). Entretanto, os (des)bordes estão localizados na porção Oeste do bairro, na interface da Área de Preservação Ambiental Norte, com os loteamentos regulares, como mostra a Figura 3. As ocupações irregulares ocorrem tanto em áreas públicas quanto em áreas privadas pertencentes a uma cooperativa habitacional. Além disso, parte da área pertencente à cooperativa foi caracterizada como APA8 em 2006, em atendimento ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Como na APA os índices urbanísticos são muito restritivos em relação à ocupação e ao uso do solo, a cooperativa

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Área de Preservação Ambiental.

Figura 2 – Delimitação das áreas precárias (AIS I) do bairro São José Fonte: PLHIS, 2010 142


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Figura 3 – Áreas irregulares e de Preservação Permanentes (APPPs) da porção Oeste do bairro São José

Fonte: Prefeitura Municipal de Novo Hamburgo (2012). Adaptada pelas autoras

habitacional não conseguiu produzir as habitações que planejava. Atualmente, essa vem acumulando dívidas relacionadas aos impostos municipais e está buscando negociar a dação das terras como forma de pagamento de impostos (BRITO; KEHL, 2014). Enquanto isso, as terras vêm sendo ocupadas irregularmente e têm sido abastecidas pelos órgãos municipais com infraestrutura básica, como água, luz e redes pluviais em áreas pontuais. Além da posse irregular da terra, outro fator que preocupa são as casas construídas às margens de um

dos afluentes do Arroio Pampa (Figura 3). Segundo a revisão do Código Florestal9, esses afluentes devem ter suas margens protegidas (intocadas), observando a largura de 15m para cada lado e denominadas

Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, que alterou o antigo Código, Lei Nº 4.771, de 15 de setembro de 1965. 9

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de Áreas de Preservação Permanente10 (APP), o que hoje não ocorre (Figuras 3 e 4). Somado a isso, o esgoto das casas é lançado diretamente no corpo hídrico sem qualquer tipo de tratamento. Análises da qualidade dessas águas, realizadas em 2013, apontam um índice de qualidade da água considerado péssimo, o que contribui para aumentar o risco de doenças (BRITO; KEHL, 2014). A Figura 4 mostra que a ocupação se dá em área de morro, com declividades próximas a 30%, declividade considerada limite para ocupação em encostas. 4 COMO REGULARIZAR UM (DES)BORDE Como se vê, a situação apresentada é bastante complexa e repercute diretamente na dificuldade da regularização fundiária. De acordo com Alfonsín (2000), regularização fundiária é o processo de intervenção pública, sob os aspectos jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de habitação, implicando melhorias no ambiente urbano do assentamento, resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária. O convênio firmado no período de 2009 a 2011 entre projeto de extensão do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Feevale (naquela época denominado Arquitetura e Comunidade) e a Prefeitura de Novo Hamburgo possibilitou o desenvolvimento de projetos de regularização fundiária para cinco áreas precárias do município. Entretanto, a situação do bairro São José é muito mais complexa que as demais estudadas. O poder público tem conhecimento dessa realidade, mas ações tomadas ainda são insuficientes para o encaminhamento da regularização. Até o momento, foram realizados somente o laudo geológico e o levantamento topográfico das áreas de risco, concluídos em 2010, pagos com verba do Orçamento Participativo do bairro São José.

10 Área de Preservação Permanente: área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bemestar das populações humanas (Lei Nº 12.651, de 25 de maio de 2012). 144

Dois empreendimentos do Minha Casa Minha Vida estão sendo propostos, via empresas privadas, em área de um antigo curtume para trazer algum tipo de resposta para essa demanda habitacional, entretanto as soluções arquitetônicas propostas e o local escolhido são muito discutíveis. Buscando contribuir com as discussões da rede (des)bordes urbanos e com a proposição de soluções para essa problemática, o projeto de extensão ARQ+, em conjunto com a disciplina curricular do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Feevale, denominada de Projeto Arquitetônico 7, cuja temática é Habitação Social, propõe: a) uma metodologia aplicável para buscar dar encaminhamento para a regularização fundiária; b) desenvolvimento de projetos de regularização fundiária e habitação social para as áreas irregulares. A proposta de metodologia para a regularização fundiária envolve as seguintes etapas (BRITO; KEHL, 2014): 1. Desenvolver o Plano de Manejo para a APA Norte para definir os graus de proteção e regras de uso da área. 2. Resolver a questão fundiária das terras da cooperativa. 3. Dividir a área em parcelas e desenvolver o Projeto Urbanístico de regularização fundiária e projetos complementares, visando a dar celeridade ao processo. 4. Informar e mobilizar a comunidade a respeito das etapas do processo de regularização fundiária. 5. Levantar/cadastrar as famílias que estão em área de risco e encaminhá-las consensualmente para o Aluguel Social, ou outra forma de moradia. 6. Aprovar os projetos nos órgãos competentes. 7. Aprovar o financiamento. 8. Licitar as obras. 9. Executar as obras de infraestrutura urbana e das unidades habitacionais. 10. Desenvolver trabalho técnico-social junto à comunidade. 11. Registrar o loteamento no Cartório de Registro de Imóveis. 12. Legitimar a posse. 13. Monitorar e fiscalizar o local para que não seja foco de novas ocupações ou venda das unidades. Porém, é importante salientar que os projetos desenvolvidos dentro da disciplina de Projeto Arquitetônico 7 são exercícios acadêmicos que fazem parte do método de aprendizagem e que,


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Figura 4 – Casa implantada em área de encosta. Percebe-se também como é resolvida a questão do esgoto Fonte: Acervo de fotos do Projeto de Extensão ARQ+, 2013

dessa forma, não passam por algumas das instâncias citadas acima. Como se pode ver, o caminho para regularização dos (des)bordes é árduo, oneroso e longo, mas não é impossível, pois existem vários bons exemplos que podem servir de inspiração. Desde os anos 2000, as administrações públicas das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro estão colocando em prática políticas de regularização de favelas que têm transformado (des)Bordes em cidades, em geral, com boa qualidade arquitetônica, urbanística e ambiental, salvo algumas exceções (BRITO; KEHL, 2014). Com base nesses exemplos é que a disciplina de Projeto Arquitetônico 7 busca desenvolver seus projetos. As premissas de projeto são: • todos os moradores da área irregular devem ser contemplados no projeto, isto é, não devem ser realocados para outras comunidades;

• as áreas de APP e de risco de deslizamento devem ser respeitadas; • áreas verdes devem ser remanejadas visando a conciliar preservação e atividades lúdicas e contemplativas ao ar livre para todas as idades; • os projeto de arquitetura devem cumprir os requisitos do Minha Casa Minha Vida; • a arquitetura deve ser de qualidade nos aspectos funcionais, construtivos e formais. A seguir serão apresentadas algumas imagens que servem como sugestão e exemplificação: são dois projetos desenvolvidos pelos acadêmicos Mateus Hillebrand, Ananda Motta, Isaque Schafer e Jorge Stocker Jr. – para a área 14 – e Carolina Becker, Maicon Soares e Rebecca Muller, para as áreas 64 e 65. Os projetos apresentam ótimas soluções funcionais para plantas baixas, além de uma inserção na paisagem bastante apropriada em termos de proporção e 145


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Figura 5 – Ilustrações das possibilidades de U.H. desenvolvidas em estudo da disciplina Projeto Arquitetônico 7 - Área 14 - Nova Esperança

Fonte: Hillebrand, Motta, Schafer e Stocker Jr. (2014)

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Figura 6 – 3D do projeto apresentado para a área do córrego com unidades habitacionais ao fundo sobre o mesmo local da figura 5 Fonte: Hillebrand, Motta, Schafer e Stocker Jr. (2014)

Figura 7 – Ilustrações das possibilidades de U.H. desenvolvidas em estudo da disciplina Projeto Arquitetônico 7 para área 64 e 65- Colina da Mata Fonte: Becker, Soares e Muller (2014)

solução formal, comprovando que se pode fazer boa arquitetura para esse tipo de comunidade. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Segundo Rolnik (2001), mais da metade das cidades brasileiras é constituída por assentamentos irregulares, ilegais ou clandestinos, que contrariam

de alguma maneira as formas legais de urbanização. Assim, a regularização fundiária em áreas de (des) bordes, sejam esses urbanos, sociais ou ambientais, representa um desafio para as administrações públicas e para a nova geração de arquitetos. Muitos são os desafios para transformar os (des)bordes em cidade. As etapas são complexas e 147


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longas e acabam por desestimular o poder público a investir na regularização fundiária, pois os frutos não serão colhidos pela administração pública que a propôs. Entretanto, entendemos que estudar os (des) bordes urbanos de qualquer município é um exercício de reponsabilidade social e é o papel da Universidade, pois o contexto da precariedade e da pobreza requer investigação e reflexão crítica de modo a avançar na proposição de novos caminhos, não só para a para compreensão dessa realidade, como também para investigar possíveis respostas e propostas de intervenção que sejam eficazes e apropriadas.

LORENZO, Pedro. Metodologias de intervención para la mejora del habitat: uma aportación a la red (des)bordes urbanos. In: (Des)bordes urbanos: política, proyecto y gestión sostenible em la ciudad de la periferia. Montevideo. 2013. PREFEITURA MUNICIPAL DE NOVO HAMBURGO. 2010. Plano Diretor Urbanístico e Ambiental. Lei Complementar nº 2.150/2010. Novo Hamburgo, 2010. RED (DES)BORDES URBANOS. (DES)bordes urbanos: política, proyecto y gestión sostenible en la ciudad de la periferia. Vivienda Popular (VP Monografías). Montevideo. 2013. 172 pp. ROLNIK, Raquel. Estatuto da Cidade - instrumento para as cidades que sonham crescer com justiça e beleza. 2001. Disponível em: <http://www.polis. org.br/uploads/814/814.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2014.

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NORMAS GERAIS DE PUBLICAÇÃO

NORMAS GERAIS Os trabalhos deverão ser enviados por e-mail, em extensão .doc (Word). PRÂKSIS - REVISTA DO ICHLA Editor Responsável: Prof.ª Me. Márcia Blanco Cardoso ERS-239, 2755 - Novo Hamburgo - RS CEP 93525-075 - Telefone: (51) 3586-8800 Universidade Feevale - Câmpus II Prédio: Lilás - Sala: 301H E-mail: revistadoichla@feevale.br ARTIGOS Os trabalhos para publicação devem ser inéditos e podem ser apresentados em português, inglês ou espanhol. A seleção dos artigos para publicação toma como referência sua contribuição à Educação e à linha editorial da revista, a originalidade do tema ou do tratamento dado ao tema, a consistência e o rigor da abordagem teórica. Cada artigo é examinado por pelo menos dois membros do Conselho Editorial (ou especialistas ad hoc), sendo necessários dois pareceres favoráveis para que o texto seja recomendado para publicação. Os autores dos artigos aceitos serão informados sobre a data prevista para sua publicação. Os trabalhos deverão ser enviados ao editor responsável pela Revista do ICHLA por e-mail, em extensão .doc (Word), com fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço 1,5. Os artigos devem ter de 08 a 15 laudas incluindo referências bibliográficas, notas e resumo em português e inglês

(com até 200 palavras). A página deve ter tamanho A4 com margem superior de 3,0 cm, inferior de 2,0 cm, esquerda de 3,0 cm e direita de 2,0 cm. Recomenda-se a subdivisão interna do material submetido com indicação de pelo menos três palavras-chave. O autor deve fornecer, também, dados relativos à instituição e à área em que atua, bem como indicar endereço para correspondência com leitores. As referências bibliográficas devem ser incorporadas ao texto, de acordo com as normas vigentes da ABNT; quanto às notas, devem ser explicativas e sempre colocadas ao final do artigo. Os textos que não estiverem de acordo com as normas gerais e com as normas para apresentação dos trabalhos não serão submetidos ao Conselho Editorial. Resenhas bibliográficas: devem focalizar trabalhos significativos com importante contribuição à literatura já existente. Salvo em casos especiais, devem ser revisões críticas que discutam os principais temas tratados em um ou mais livros que tenham a mesma preocupação ou tratem de assuntos correlatos. As resenhas bibliográficas devem ser concisas e não consumir várias páginas descrevendo cada capítulo de determinado livro ou cada ensaio de uma coletânea de textos. É essencial enfatizar e discutir o conteúdo teórico do trabalho em questão. As resenhas deverão ter, no máximo, 8 laudas digitadas. A publicação dos trabalhos está condicionada a pareceres dos membros do Conselho Editorial garantindo o anonimato de autores e pareceristas no processo de avaliação. Eventuais sugestões de modificação de estrutura ou conteúdo, por parte do Conselho Editorial, serão previamente acordadas 149


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com os autores. Não serão admitidos acréscimos ou modificações depois que os trabalhos forem entregues para composição. Não haverá remuneração pela publicação dos artigos, somente cabendo ao autor o direito a receber gratuitamente dois exemplares da Revista.

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Sua distribuição é assegurada às bibliotecas das universidades públicas e particulares do Rio Grande do Sul e aos colaboradores. Os demais pesquisadores poderão adquirir exemplares junto à Secretaria do ICHLA.


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