Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes
Ano XII - Volume 1 - Janeiro de 2015
ISSN 1807-1112
9 771807 111008
África e América: discursos e culturas
Associação Pró-Ensino Superior em Novo Hamburgo - ASPEUR Universidade Feevale
Prâksis Revista do ICHLA Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes —ICHLA—
Ano XII - Volume 1 - Janeiro de 2015
Editora Feevale | 2015 |
Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes
PRESIDENTE DA ASPEUR Luiz Ricardo Bohrer
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PRÓ-REITORA DE ENSINO Denise Ries Russo PRÓ-REITOR DE PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO Alexandre Zeni PRÓ-REITOR DE PESQUISA E INOVAÇÃO João Alcione Sganderla Figueiredo PRÓ-REITORA DE EXTENSÃO E ASSUNTOS COMUNITÁRIOS Gladis Luisa Baptista DIRETORA DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES Cristina Ennes da Silva COORDENAÇÃO EDITORIAL Denise Ries Russo EDITORA FEEVALE Celso Eduardo Stark Graziele Borguetto Souza Adriana Christ Kuczynski
- CAPA E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Adriana Christ Kuczynski - REVISÃO TEXTUAL Valéria Koch Barbosa Daniel Conte - REALIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes - ICHLA - TIRAGEM 300 exemplares, Gráfica Impressul - Jaraguá do Sul/SC - INDEXAÇÃO ICAP - Indexação Compartilhada de Artigos de Periódicos (Disponível em: <http://www.pergamum.pucpr.br/icap/ index.php>); LATINDEX (Disponível em: <http://www.latindex.unam. mx/>); Qualis - CAPES (Disponível em: <http://qualis.capes.gov.br/ webqualis>).
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Classificação
- EDITOR CHEFE Márcia Blanco Cardoso - COMISSÃO EXECUTIVA Cristina Ennes da Silva Márcia Blanco Cardoso Valéria Koch Barbosa - CONSELHO EDITORIAL Alfredo Veiga-Neto (UFRGS) Antonio Novoa (Univ. de Lisboa) Cláudia Schemes (Universidade Feevale) Everton Rodrigo Santos (Universidade Feevale) Juracy Assmann Saraiva (Universidade Feevale) Lisiane Machado de Oliveira Menegotto (Universidade Feevale) Luciana Néri Martins (Universidade Feevale) Magali Mendes de Menezes (UFRGS) Marisa Vorraber Costa (UFRGS) Mauro Augusto Burkert del Pino (UFPel) Nélio Vieira de Melo (UFPE)
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EX PED I ENTE
REITORA DA UNIVERSIDADE FEEVALE Inajara Vargas Ramos
- PARECERISTAS Daniel Conte Marinês Andrea Kunz Norbero Kuhn Júnior Paulo Roberto Pasqualotti Rodrigo Perla Martins Rosi Ana Grégis Roswithia Weber Simone Moreira dos Santos
Qualis (CAPES)
Estrato
Área de Avaliação
B2
PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL / DEMOGRAFIA
B3
LETRAS / LINGUÍSTICA
B3
INTERDISCIPLINAR
B4
EDUCAÇÃO
B5
HISTÓRIA
B5
ARTES / MÚSICA
B5
CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS I
B5
SERVIÇO SOCIAL
B5
SOCIOLOGIA
B5
PSICOLOGIA
B5
FILOSOFIA/TEOLOGIA: subcomissão TEOLOGIA
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SUMÁRIO
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EDITORIAL
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APRESENTAÇÃO
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CULTURA E LITERATURA AFRICANA DE ANGOLA: DIÁLOGOS ININTERRUPTOS Ana Paula Teixeira Porto
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DESTERRITORIALIZAÇÃO E COSMOPOLITISMO EM ASSANDO BOLOS EM KIGALI (BAKING CAKES IN KIGALI, 2009) Cristina Mielczarski dos Santos Ana Lúcia Liberato Tettamanzy
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DA REPRESENTAÇÃO DA MULHER À REPRESENTAÇÃO DA ÁFRICA NA ESCRITA DE FRADIQUE MENDES Bárbara Silva Botelho Gustavo Henrique Rückert
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EVA, A RELATIVIZAÇÃO DA VERDADE Jane Tutikian
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A TERRITORIALIDADE E A LUSOFONIA NA CRIAÇÃO LITERÁRIA DE AGOSTINHO NETO E ANTÓNIO JACINTO Luís Fernando da Rosa Marozo Yanna Karlla Gontijo
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UMA REFLEXÃO SOBRE O CONTO “NAS ÁGUAS DO TEMPO” DE MIA COUTO Neiva Kampff Garcia 3
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A POÉTICA KNOPFLIANA: A ÁFRICA E O OCIDENTE COMO ESPAÇO DE DEVANEIO E MEMÓRIA Paula Terra Nassr
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MARIA: EMOÇÕES, PERDAS E AÇÕES DE UMA CATIVA EM SÃO LEOPOLDO Magna Lima Magalhães Evandro Machado Luciano
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A RESISTÊNCIA DA ORALIDADE PELA CULTURA: EXPERIÊNCIAS E PRÁTICAS DE UMA GRIÔ Denise Marcos Bussoletti Vagner de Souza Vargas Cristiano Guedes Pinheiro
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ARTE E CULTURA: AFRICANIDADES NO ENSAIO DA OBRA DE CARLOS ALBERTO DE OLIVEIRA Mara E. Weinreb
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LITERATURA E HISTÓRIA: A TRANSPOSIÇÃO DE DISCURSOS EM O ELEITO DO SOL, DE ARMÊNIO VIEIRA Ana Lúcia Montano Boéssio Jaini da Porciúncula
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“VIRANDO O JOGO” COM O CLUB PENGUIN Conie Smolinski
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TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. 7 ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. Patrícia Fontes Marçal Dinora Tereza Zucchetti
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NORMAS GERAIS DE PUBLICAÇÃO
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EDITORIAL
O Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Feevale apresenta, à comunidade científica, o primeiro volume da Revista Prâksis, em seu décimo segundo ano de publicações. Nesse primeiro volume de 2015, a temática escolhida foi “África e América: discursos e culturas”. A Revista Prâksis tem um caráter multidisciplinar e seu principal objetivo é fomentar as discussões acadêmicas, através da apresentação de pesquisas concluídas ou em andamento, e que possibilitam reflexões a respeito de temas complexos e abrangentes. Nesta edição, os treze artigos selecionados constituem um olhar multifacetado sobre a temática proposta e que contribuirão para a produção de conhecimento nas áreas das Ciências Humanas, Letras e Artes. Os sete primeiros artigos apresentam reflexões sobre a África a partir da Literatura. São artigos de pesquisadores sobre o tema, que apresentam distintos olhares sobre a África, os africanos e o papel da dominação europeia nessa construção. Os artigos são: Cultura e literatura africana de Angola: diálogos ininterruptos, de Ana Paula Teixeira Porto; Desterritorialização e Cosmopolitismo em Assando bolos em Kingali (Baking Cakes in Kingali, 2009), dos autores Cristina Mielczarski dos Santos e Ana Lúcia Liberato Tettamanzy; Da representação da mulher à representação da África na escrita de Fradique Mendes, dos autores Bárbara Silva Botelho e Gustavo Henrique Rückert; Eva, a relativização da
verdade, da autora Jane Tutikian; A territorialidade e a lusofonia na criação literária de Agostinho Neto e Antônio Jacinto, de Luis Fernando da Rosa Marozo; Uma reflexão sobre o conto “Nas águas do tempo”, de Mia Couto, da autora Neiva Kampff Garcia e, ainda, A prática knopfliana: a África e o Ocidente como espaço de devaneio e memória, de Paula Terra Nassr. Em seguida, o artigo Maria: emoções, perdas e ações de uma cativa em São Leopoldo, escrito por Magna Lima Magalhães e Evandro Machado Luciano, apresenta uma reflexão histórica sobre a escravidão a partir da microanálise. O nono artigo tem como título A resistência da oralidade pela cultura: experiências e práticas de uma griô, de Denise Marcos Bussoletti, Vagner de Souza Vargas e Cristiano Guedes Pinheiro. Esse artigo apresenta uma reflexão sobre as práticas do Núcleo de Artes, Linguagem e Subjetividade (NALS), da Universidade Federal de Pelotas, envolvendo a questão da oralidade como forma de manutenção de conhecimentos tradicionais. O décimo artigo, de Mara E. Weinreb, apresenta uma análise do importante artista plástico gaúcho conhecido como Carlão. O artigo tem como título Arte e Cultura: africanidades no ensaio da obra de Carlos Alberto de Oliveira. Os dois artigos seguintes: Literatura e História: a transposição de discursos em O eleito do sol, de Armênio Vieira, de Jaini Porciúncula, e “Virando o jogo” com o Club Penguin, de Conie Smolinski, 5
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são artigos de tema relacionado à área de Ciências Humanas, Letras e Artes, mas de tema livre, nesta edição. Por último, apresentamos uma resenha da obra TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. 7. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007, realizada por Patrícia Fontes Marçal e Dinorá T. Zucchetti Ao apresentarmos esta edição, esperamos que ela possa contribuir de forma efetiva para a
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divulgação da produção acadêmica na área de Ciências Humanas, Letras e Artes, fomentando novos olhares e reflexões sobre os temas aqui apresentados. Boa leitura e até a próxima edição. Prof.ª Me. Márcia Blanco Cardoso Editora Científica Coordenadora do curso de História
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APRESENTAÇÃO
A LITERATURA COMO DENÚNCIA Longe das apologias nacionalistas e dos discursos totalitários, as literaturas da África e da América colonizadas seguem, à revelia daqueles que insistem em agarrar-se aos cânones europeus, perpetuando e organizando o sistema do patrimônio cultural de seu povo. Sua materialidade ficcional contemporânea rediz as narrativas de fundação - escrituras do poder colonial - que marcaram a expansão e a sedimentação da empresa colonizadora pela práxis da violência e da dominação. As produções nacionais refratam o imaginário coletivo que as conforma e pensá-las é refletir sobre a condição do sujeito histórico colonizado e sobre os discursos que compõem a imagem que ele tem de si. É, ainda, entender que trazem uma representação livre do peso da pretensa exatidão dos registros históricos e de sua oficialidade, possibilitando um olhar que transita entre o acontecido-presenciado e o registro dos fatos. Dessa forma, pode-se afirmar que a literatura tem a capacidade de engendrar efeitos de sentido desde lugares e de vozes pouco comuns à literatura dos grandes centros de poder europeus. Ademais, desfaz as estratégias que tendem a legitimar o discurso que homogeneíza as diferenças. No mundo contemporâneo, espaço em que se redimensionou as posições de enunciação dos sujeitos e onde existe uma acentuada facilidade de comunicação, as estruturas de poder político-econômico apresentam-se com uma maleabilidade ilusória. Essa estética simula uma aldeia desfronteirizada que oferece o “conforto”
de contrações convulsivas, espasmos da igualdade social, que não passam, enfim, de novas formas de dominação disfarçadas. À contracorrente, as vozes trazidas pelas narrativas literárias se erguem com mais solidez, evidenciando o existir da margem e a subjunção de um outro lugar. É nesse espaço de esquecimento que as identidades flutuam e o redizer da cultura é fundamental, como é essencial que se entenda seus processos e suas manifestações, a fim de que não se permita que o Outro habite um lugar de ausência, permaneça à margem das decisões do poder político e construa em sua invisibilidade um silêncio que o torne coadjuvante de sua própria história. O fazer literário da América e da África conduz à ressignificação do arranjo simbólico dominante, marca o ato enunciativo como produtor de identidades e mostra que em vez da tolerância ao Outro, é melhor a aceitação e o entendimento. O que quero dizer é que o lócus do sujeito na ossatura social passa por seu ato enunciativo, pois é esse movimento semântico do discurso que lhe vai reinscrever na ordem simbólica do social e reivindicar prioridades nos processos de significação, rompendo o ostracismo das identidades instituídas pela “autoridade cultural”. As literaturas desses continentes logram, no exercício figurativo de seus discursos e de seus atores, colocar o sujeito histórico em um patamar de audibilidade social no novelo ideológico resultante dos paradoxos constituintes da empresa colonial, do nascimento das nações e da ilusão pós-moderna da desfronteira. Oferecem ao sujeito partícipe 7
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das esferas sociais despossuídas, marginais, uma consciência de sua história que o leva à desejada emancipação imagética. A emancipação que carrega a possibilidade do diálogo, da subversão do poder manipulador e da articulação estratégica de uma nova caligrafia de sua própria história.
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Essas literaturas veem sua história com plasticidade heterogênea e conduzem à baila atores sociais antes relegados ao silêncio das coxias do palco colonial. Prof. Dr. Daniel Conte Professor do curso de Letras e do PPG em Processos e Manifestações Culturais
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CULTURA E LITERATURA AFRICANA DE ANGOLA: DIÁLOGOS ININTERRUPTOS
Ana Paula Teixeira Porto1 RESUMO Este estudo apresenta reflexões acerca dos diálogos entre literatura angolana e cultura, objetivando mostrar como obras de autores como Manuel dos Santos Lima e Castro Soromenho realizam esse diálogo. A função dada pelos escritores e intelectuais angolanos à literatura é a de um instrumento de registro histórico e linguístico e de perpetuação cultural do país, para além de denúncia e contestação de regimes de opressão vivenciados nesse espaço. Palavras-chave: Literatura angolana. Cultura. Manuel dos Santos Lima. Castro Soromenho. ABSTRACT This study presents reflections on the dialogue between Angolan literature and culture, aiming to show how works of authors such as Manuel dos Santos Lima and Castro Soromenho perform this dialogue. A given by writers and intellectuals Angolan literature is the role of an instrument of historical and linguistic register and cultural perpetuation of the country, in addition to the complaint and defense schemes of oppression experienced in this space. Keywords: Angolan literature. Culture. Manuel dos Santos Lima. Castro Soromenho.
1 Mestre e Doutora em Literatura Brasileira (UFRGS). Realizou estágio pós-doutoral sobre literatura africana de Angola na UFRGS. É professora do Mestrado em Letras da URI de Frederico Westpahen. E-mail: anapaula@uri.edu.br.
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As discussões teóricas sobre cultura sinalizam, assim, nitidamente, uma tendência a entendê-la como saber coletivo produzido por processos cognitivos e comunicativos heterogêneos, em função dos quais os indivíduos definem as suas esferas de realidade. Essa situação refletese de forma potencializada nos diálogos com uma dimensão igualmente complexa: a literatura. (OLINTO; SCHØLLHAMMER, 2008, p. 7).
Ao considerarmos que o texto literário é também produto de uma determina cultura, uma vez que, conforme salienta Secco (s.d), a literatura, assim como as artes plásticas, encontrase estreitamente ligada ao seu lugar de enunciação, é relevante pensarmos em que medida o discurso literário dialoga com os substratos culturais dos quais se origina, constituindo e reconstituindo uma determinada cultura. Nesse sentido, não há como negar o contato que uma obra de arte estabelece com seu contexto mesmo que este seja apenas um pano de fundo para a produção artística sem profundas articulações com o meio. Essa é uma perspectiva que se justifica porque fatores geográficos, históricos, culturais, antropológicos, étnicos, econômicos, políticos, perpassam os discursos artísticos, estando em íntima correlação com as estruturas sócio-culturais. Os “saberes locais” podem, desse modo, ser apreendidos tanto nas malhas metafóricas dos textos literários, como nas metáforas cromáticas presentes na pintura. (SECCO, s.d., p. 1).
Também é igualmente importante refletirmos sobre o diálogo que a literatura – nosso objeto central de análise – pode empreender com seu povo, sua língua, suas tradições, sua história. Independentemente de ser elaborada oralmente ou por escrito, ser considerada clássica ou marginal, ser engajada socialmente ou apolítica, uma manifestação literária ou literatura propriamente dita sempre permite ao leitor conhecer o lócus que fundamenta a sua criação literária, dada a especificidade da linguagem, a construção peculiar de um tipo humano, a descrição do ambiente ou do tempo narrativo, as temáticas selecionadas, etc. Esse diálogo que a literatura estabelece com sua cultura é, portanto, universal e inerente ao processo criativo 10
literário, cabendo uma discussão sobre como essa articulação transcorre e que leituras podem ser feitas a partir de um diálogo tão fecundo e promissor. Interessa-nos pensar nessas articulações no campo do discurso literário angolano. Assim como em qualquer lugar de mundo, na África “afrolusitana” também percebemos como a cultura e a literatura dialogam e como a formação de uma está entrelaçada a outra. Nesse contexto de inter-relações culturais e literárias, é importante frisar que países que formam o PALOP (designação dada aos cinco países africanos que têm a língua portuguesa como a oficial), como Angola, tiveram sua cultura local mesclada com a do colonizador em um processo marcado por conflitos e guerras até a derrocada do português branco das terras africanas por ele colonizadas, o que ocorrera apenas no século XX. Tais conflitos desencadearam, no campo cultural e da imprensa, uma luta constante de artistas, jornalistas e intelectuais em um processo de luta e resistência contra a invasão, expansão e dominação do colonizador. Em Angola, por exemplo, que teve seu processo de colonização iniciado, conforme Amorim e Paladino (2012, p. 47), em 1483, quando “Diogo Cão, um navegador a serviço da Coroa Portuguesa, chegou à Foz do Rio Zaire [...] e fixou no local um padrão de pedra com o brasão português”, a independência política, a última dos países do PALOP, foi alcançada somente em 1975 depois de mais de 25 anos de luta armada. Durante todo período colonizatório, os angolanos, através de textos jornalísticos e literários publicados em jornais, oportunizaram aos leitores – mesmo que reduzidos dado o alto índice de analfabetismo angolano conhecer sua cultura e seu projeto de constituir a sua Ngola, mais tarde simplesmente Angola. Para um debate acerca das relações entre cultura e literatura, tomemos como ponto central a cultura e a literatura de Angola, especificamente a produzida a partir da segunda metade do século XX, objetivando discutir como sua literatura possibilita a expressão de uma cultura africana peculiar que sobrevive apesar dos longos anos de dominação e aculturação portuguesa. Se pensarmos na cultura africana de Angola, que reflexões podemos estabelecer sobre a literatura produzida nesse país quando ainda era colônia portuguesa? Como a literatura tornou-se instrumento de difusão de uma cultura que estava sendo apagada pelo invasor português? Que papel essa literatura teve no sentido
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de lutar pela tradição, costumes e a cultura de seu povo? Um primeiro indício do processo cultural em Angola, quando pensado em sua correlação com as letras, fundamenta-se na ação imposta pelos portugueses relacionada a mudanças da vida social de sua maior colônia na África, especialmente depois de ter perdido a colônia brasileira no século XIX. Uma das medidas adotadas nesse sentido referese ao acesso de grupos africanos a poucas escolas existentes na região, pois dessa forma Portugal objetivava “investir em uma ‘ação civilizadora’, tornando o africano um assimilado” (AMORIM; PALADINO, 2012, p. 48). Além disso, a língua portuguesa foi sendo implementada aos poucos em escolas e instituições públicas, sendo reprimido o uso dos idiomas locais. Como destaca Boaventura Cardoso (2010), com o Decreto nᵒ 77, de 9 de dezembro de 1921, assinado pelo Alto Comissário da República Portuguesa, o qual orientava para o ensino da língua portuguesa e não o de qualquer outra língua estrangeira, assim como para a restrição ao uso da língua indígena, permitida apenas em catequese como língua auxiliar ao ensino da língua portuguesa, acentuou-se um desprestígio das línguas locais e uma supervalorização do idioma do colonizador. No entanto, esse apagamento das línguas locais não foi plenamente incorporado no campo literário, uma vez que, de acordo com o que apontam Amorim e Paladino (2012), escritores como Joaquim Cordeiro da Matta destacaram a necessidade de perceber a diferença cultural em relação ao colonizar e de valorizar o africano, o que ocasionou por parte deste escritor a composição de poemas na língua quimbundo, além da composição de versos que enaltecem a mulher negra, por exemplo, como em “Negra”: “Negra! negra! como a noite/d’uma horrível tempestade, /mas, linda, mimosa e bella,/ como a mais gentil beldade!/Negra! negra! como a asa/do corvo mais negro e escuro,/mas, tendo nos claros olhos,/o olhar mais límpido e puro!”. Ao se negar a usar exclusivamente a língua portuguesa, culturalmente a obra de vários escritores cumpriu uma importante função: a de manter vivas as línguas angolanas como forma de resistência ao apagamento da identidade angolana, considerando a língua como elemento imprescindível à constituição do sujeito. Escritores como Boaventura Cardoso, atentos à discriminação social imposta pelo uso
da língua, também tomaram “consciência de que a insubordinação ao regime colonial dominante passava também pela desconstrução do portuguêspadrão a partir do modo particular dos angolanos expressarem as suas mais profundas aspirações.” (BOAVENTURA CARDOSO, 2010, p. 35). Dessa forma, além de mesclar o uso das línguas locais com a portuguesa, também se investiu em um processo de descumprimento aos “apertados códigos do português”, como salienta Boaventura Cardoso (2010, p. 36), o qual resultou, no caso do texto deste escritor, em “morfossintaxes, semiologias, semióticas africanas, que não se conformam com o narrar do português-padrão” (BOAVENTURA CARDOSO, 2010, p. 37). Outro aspecto dessa associação entre literatura e cultura está relacionado ao fato de que, conforme pontua Mourão (1978), as fases da literatura angolana, em sua sucessão cronológica, estão relacionados ao processo de colonização do país, como se a produção literária dos autores tivesse um “compromisso” de “registrar” a história da nação, denunciando e criticando o processo colonizatório, defendendo a negritude ou ainda contribuindo para a construção de nação. Diferentemente do que ocorrera em outros países colonizados pelos portugueses, tal como no Brasil, onde a literatura nasceu moldada pelos padrões de escrita europeus tanto nos aspectos formais quanto temáticos, havendo continuidade desses diálogos durante séculos, em Angola a literatura surge e se desenvolve com o olhar local, voltada para a realidade de seu país. Esse ponto de vista sobre a literatura é definido por Agostinho Neto (1978, s. p) em discurso, em 1975, no ato de fundação da União dos Escritores Angolanos, ao afirmar que “A literatura angolana escrita surge assim não como simples necessidade estética, mas como arma de combate pela afirmação do homem angolano”. Essa afirmação cultural angolana através da literatura é ratificada quando críticos discorrem sobre possibilidades de definir tendências ou fases da literatura angolana e agrupam essa produção em momentos que aludem ao processo histórico do país e ao papel desempenhado por intelectuais e escritores. Exemplar dessa tendência é a abordagem proposta por Ferreira (1989) que aponta quatro fases da literatura de Angola: a primeira de alienação; a segunda de expressão que denota uma percepção da realidade, exprimindo a dor de ser negro, o negrismo 11
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e o indigenismo; a terceira, voltada à consciência de colonizado num processo de desalienação da obra e do escritor; e a quarta, correspondendo à fase histórica da independência, é marcada pela reconstituição da identidade do negro africano. Sem entrar no mérito das classificações cronológicas atribuídas às produções literárias como processo de leitura da literatura, não há como negar a relação entre a cultura angolana e sua história e literatura. Nessa perspectiva, o romance teve um papel singular: o de mapear o cenário cultural angolano, como defende Chaves (1999, p. 21): Pela trilha aberta por Assis Jr., iriam seguir Castro Soromenho, Óscar Ribas, José Luandino Vieira, Pepetela, José Eduardo Agualusa, entre tantos outros que, valendose do gênero, empreenderiam projetos de investigação que ajudam a mapear a fisionomia multifacetada do cenário cultural angolano.
Compartilhando a tese dessa relação entre literatura e cultura, como podemos perceber essa materialização nos textos? Desde sua origem, a literatura angolana apresenta traços que a aproximam linguisticamente da oralidade, algo que pode ser explicado em parte por suas raízes na tradição oral, tendo em vista que o processo de alfabetização e letramento é muito posterior à produção dos primeiros textos de natureza literária. Estes, baseados na tradição oral, são pautados em narrações de histórias fabulosas e fantásticas, havendo ainda textos de instrução e de ludicidade, referência aos provérbios que sintetizam a representação da “filosofia da nação ou tribo, no que toca a seus costumes e tradições” (SANTILLI, 1985, p. 7). Além disso, essa literatura também se ocupou em abordar canções e adivinhas, enfim, uma produção da comunidade ágrafa africana e de sua cultura. Mas como a literatura local se manifestou em termos linguísticos? De um lado, havia escritores, usando as línguas crioulas de diversos grupos angolanos, preservando seu instrumento de comunicação, de outro, produções em língua portuguesa, língua calcada ao status de oficial, sendo explorada nos seus traços orais e “mesclada” com o linguajar angolano, o que se constitui em uma possibilidade de “reinvenção” da língua portuguesa, uma vez que 12
se a língua portuguesa foi introduzida como língua oficial em Angola, ela será, como diz Alfredo Margarido, “... influenciada pela língua autóctone e determinará a criação - não do que se chama o português do colonizador - mas de uma forma híbrida, mais negra do que portuguesa” (JORGE, 2006, p. 9).
A literatura escrita é iniciada com a literatura de viagens, feita por portugueses que, em crônicas, poesias e depoimentos, registraram suas impressões sobre a natureza exótica da África ao chegarem ao continente para colonização e expansão do território português. É nesse contexto uma literatura com olhar do europeu sobre o país, em que se observam pontos de vista eurocêntricos e o negro africano como sujeito inferior ao branco europeu. Através da literatura de alguns escritores, difunde-se um processo peculiar dos portugueses em Angola: o de minimizar a figura do negro africano, conduzindo-o a um patamar subalterno, pois o pensamento dos colonialistas em Angola foi um dos mais redutores. Ao mesmo tempo que na esfera econômica procuravase reduzir o homem africano ao simples papel de produtor de mercadorias, de que o colonialismo tinha necessidade, na esfera social, ele reduzia o africano ao simples papel de sujeito, no sentido de submetido (JORGE, 2006, p. 4).
A literatura nacional começa a se desenvolver apenas no final do século XIX e início do XX e, conforme Chaves (2003), do século XIX aos tempos atuais, a literatura angolana apresenta, entre outras funções, a de “fazer e refazer a história de um território e seus povos que, despedaçados e rejuntados pela ordem colonial, têm no horizonte a unidade ainda interditada pelas circunstâncias do presente” (CHAVES, 2003, p. 373). Essa literatura é motivada pelos movimentos da chamada “Negritude”, voltado à valorização dos direitos do homem de cor, e ser divulgada em jornais e revistas com o objetivo de colaborar no projeto de construção da identidade angolana, como exemplifica o romance de Antônio de Assis Júnior, o Segredo da morta, de 1929, o qual também traz a língua quimbundo como elemento caracterizador da identidade angolana, sendo considerado por Armando (1986) o primeiro romance angolano. Nessa perspectiva, salientam-
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se os romances de Castro Soromenho, que narra confrontos entre tribos angolanas e o processo de assimilação da cultura do colonizador, estimulado pelos próprios angolanos. Com Castro Soromenho, a literatura angolana torna-se um registro mais literário de um processo histórico de dor e violência do homem branco ao negro angolano, o que inclui referências às vítimas indefesas formadas por mulheres negras e multadas à mercê dos homens brancos. Referências que, em parte, devem-se à “convivência, experiência e conhecimento plenos do meio social, principalmente Lunda” (SOARES, 1983, p. 66). É nessa perspectiva que o romance Viragem narra formas de como os negros angolanos eram vistos pelo colonizador e como culturalmente o conflito entre as raças era estimulado, pois o texto de Soromenho apresenta uma “denúncia de um sistema colonial extremamente opressor, que não apenas colocava brancos contra negros, mas também negros contra os próprios negros” (CROSARIOL, 2010, p. 183), como pode ser percebido no trecho a seguir: - Eu gosto da África, mas é em Luanda – disse D. Joana. – Aquilo é outra coisa; tem cinema, igrejas e até praia. [...]. - É fácil. O Nogueira que arranje transferência. - O Afonso só gosta de viver no mato – interveio Paulina. – Habituou-se a isto e não quer outra coisa. Diz que é ele quem manda aqui, não é mandado por ninguém. - Manda nos pretos, olha a grande coisa... – atalhou D. Joana. – Ainda se mandasse em brancos, vá lá. Em Luanda é que se vive bem. Todos os dias o criado da pensão me lia o jornal. O Alberto era um bom rapaz. Um preto de Cabina, esperto como um branco. E não era abusador. Ele ate sabia rezar como os brancos, não é verdade Paulina? - Paulina sorriu-se e disse: - A África seria boa sem pretos, sem mosquitos e sem bichos... - A senhora o que queria era uma África sem África... E o Alves deu uma gargalhada. (SOROMENHO, 1957, p. 58-59).
Essas primeiras obras da literatura angolana impressa dão vazão ao diálogo fecundo entre a literatura e o processo de colonização do país, representando personagens símbolo da cultura local
e enfatizando um movimento contínuo de luta, violência, dor e sofrimentos percorrido pelos sujeitos de Angola. Como o movimento “Vamos descobrir Angola”, intelectuais, jornalistas e escritores, a partir dos anos 40 do século XX, fortalecem a resistência cultural ao colonizador. Surgem, então, especialmente na segunda metade do século XX, as obras literárias em prol da independência da colônia num movimento anticolonial e de referência a sujeitos proletários que vivem sem as míninas condições de sobrevivência, como o fez José Luandino Vieira em A cidade e a infância e em Luuanda. As mazelas sociais e econômicas e a busca pela valorização local, na qual se inclui uso dos dialetos portugueses e tribais em detrimento do português de Portugal, são expostas nas composições de diversos escritores angolanos. Nas obras desses autores, a literatura assume um papel de resistência à dominação e aculturação europeia em defesa de um país nacional, e há uma “busca da cultura popular com o olhar centrado na própria maneira de ser de Angola, afastando-se, enfim, do padrão eurocêntrico” (ABDALA JÚNIOR, 2006, p. 213). Ainda na primeira metade do século XX, “Ao lado da realidade cultural africana, vai criar-se uma cultura europeia que será, pouco a pouco, dominante” (JORGE, 2006, p. 3), algo que é registrado na literatura que, nesse contexto, busca “prosseguir a obra de contestação pacífica do projecto cultural do colonialismo português, dentre os quais, Assis Júnior, no início do século, será o principal representante, e vão radicalizar, cada vez mais, as suas reivindicações culturais” (JORGE, 2006, p. 4). Nessa perspectiva, a partir dos anos finais de 1950, o foco de muitas obras é a representação dos sujeitos que vivem em musseques, pequenas casas de barro, e esses textos “terminam por funcionar como referência na representação do universo do colonizado, já nessa época, um excluído na periferia da antiga cidade colonial” (MANTOLVANI, 2007, p. 4) e por representar a dor e o sofrimento de angolanos diante da ditadura salazarista. Jofre Rocha, Manuel Rui, Antonio Cardoso e Jorge Macedo exemplificam essa tendência, que denunciam a resistência ao colonizador e a morte iminente na vida de cada angolano, ou seja, nessas raízes a literatura angolana cultua uma de suas funções: registrar sua história e resistir aos percalços a que é submetido o seu povo, enfim um papel 13
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que parece acompanhar essa literatura até os anos recentes, como comprova a narrativa de João Melo, muito relacionada ao processo de independência do país. Angola foi a última colônia africana a libertarse de Portugal em 11 de novembro de 1975 quando Agostinho Neto proclamou a independência, e a literatura também se propôs a representar esse processo social e histórico. Em textos poéticos e em prosa, é possível perceber a imagem de um país pós-colonial que, em termos sociais, culturais e econômicos, ainda prescinde de desenvolvimento e superação de antigos problemas, como a violência, a corrupção e a desigualdade social que o acometia quando ainda era colônia portuguesa e lutava, em 14 anos de guerra, contra o exército português. Esse contexto sócio-histórico é intensamente representado na literatura angolana pós-75, caracterizada “como o lugar de denúncia, de negação ao sistema colonial e, principalmente, como lugar sugestivo de afirmação de uma identidade nacional” (DINIZ, 2012, p. 9). Um contexto que subsidia tanto a literatura produzida antes do processo de emancipação, como nas narrativas de Castro Soromenho que denunciam as agruras do país ainda fatigado pelo colonizador europeu, quanto a feita após a independência quando a busca pela identidade angolana e pela construção de nação torna-se tema fecundo nas obras poéticas e narrativas. Um processo similar tanto nos textos produzidos em língua portuguesa quanto nos elaborados com os idiomas nativos. Considerando os exemplos de discursos literários acima citados, que projeções culturais angolanas essa literatura revela? Primeiramente uma função da literatura que não vemos com tanta intensidade em outros países de colonização portuguesa, haja vista a função dada pelos escritores e intelectuais angolanos à literatura como instrumento de registro histórico e linguístico e de perpetuação cultural do país, para além de denúncia e contestação de regimes de opressão vivenciados nesse espaço. Isso explica, pelo menos em parte, a contribuição de poemas e narrativas para a formação crítica, para a reflexão, para resistência ao colonizador e especialmente para a constituição da nação angolana com sua tradição, sua cultura. Por isso a presença em textos literários de expressões típicas dos idiomas locais, como exemplificam contos de João Melo em Filhos da Pátria. Se há, por 14
parte de alguns escritores, como Manuel dos Santos Lima em As sementes da liberdade, um excesso de denúncia e tendência documental na composição narrativa, há também o esforço de fazer do discurso literário um objeto de veiculação cultural. Na composição de poemas e enredos narrativos, fragmentos são marcados pelo hibridismo de pelo menos duas culturas: a dos tecidos culturais genuinamente africanos e os do português europeu, como um mosaico de infinitas associações, que oportunizariam a configuração de uma terceira cultura: afroportuguesa angolana. Mesmo que percebamos o esforço da literatura em resistir à aculturação portuguesa, não há como separar algo que também naturalmente se mesclou. Textos de Castro Soromenho, como Viragem, Terra morta e A chaga, podem ser apontados como expoentes dessa tendência.
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DESTERRITORIALIZAÇÃO E COSMOPOLITISMO EM ASSANDO BOLOS EM KIGALI (BAKING CAKES IN KIGALI, 2009)
Cristina Mielczarski dos Santos1 Ana Lúcia Liberato Tettamanzy2 RESUMO Este texto tem como objetivo discutir a presença de elementos pós-coloniais da obra Assando bolos em Kigali (Baking cakes in Kigali), da escritora africana Gaile Parkin (2009). Por intermédio dos conceitos de territorialização e desterritorialização de Deleuze & Guattari (1997), bem como do conceito de cosmopolitismo de Kwame Anthony Appiah (2007), procuramos ressaltar esses mecanismos simbólicos e narrativos que permitem ressignificar as adversidades do tempo presente enfrentadas por países africanos frente a guerras, genocídios e violências de gênero. Palavras-chave: Literatura africana. Territorialização. Desterritorialização. Cosmopolitismo. ABSTRACT This paper aims to discuss the presence of post colonials elements in the literary work Assando Bolos em Kigali (Baking cakes in Kigali), of the African writer Gaile Parkin (2009). Trough Deleuze & Guattari’s (1997) concepts of territorialization and deterritorialization, as well as Kwame Anthony Appiah’s (2007) concepts of cosmopolitanism, we aim to highlight these symbolical and narrative mechanisms who allow the reframing this time of adversity faced by African countries facing war, genocide and gender violence. Keywords: African literature. Territorialization. Deterriotorialization. Cosmopolitanism.
Doutoranda da área de Literaturas Portuguesa e Luso-Africanas (PPG-UFRGS). E-mail: crismielczarski@yahoo.com.br. Professora de Literaturas Portuguesa e Luso-Africanas da UFRGS. E-mail: atettamanzy@terra.com.br.
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Os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais. (Provérbio árabe). Es preciso advertir que el cosmopolita valora la diversidad cultural por lo que ésta hace posible para la gente. En el corazón del cosmopolitismo moderno está el respeto por la diversidad de la cultura, no porque las culturas sean importantes em si mismas, sino porque las personas son importantes y la cultura les importa. (KWAME ANTHONY APPIAH).
1 A DESTERRITORIALIZAÇÃO DAS LITERATURAS AFRICANAS NO ESPAÇO PÓS-COLONIAL Assando bolos em Kigali (Baking cakes in Kigali, 2009) é o primeiro romance da escritora africana Gaile Parkin, nascida na Zâmbia. Além de livros infantis, também escreveu When Hoopes Go To Heaven (2010). Parkin viveu dois anos em Ruanda, trabalhando como voluntária, professora e conselheira de estudantes com HIV/AIDS e de mulheres e meninas que sobreviveram à guerra. Muitas das histórias do livro que aqui será abordado são inspiradas em experiências que ela ouviu ou presenciou. Nessa narrativa estão implicados variados processos de desterritorialização. Num sentido mais amplo, desterritorializar é tirar o território a alguém ou o caráter territorial a algo, ou ainda retirar do território ou do contexto habitual.3 Pode ser definida como uma quebra de vínculos, um afastamento de território, havendo, assim, uma perda de controle das territorialidades pessoais ou coletivas ou do acesso a territórios econômicos e simbólicos. Quando esta mudança no vínculo que une ao território acontece se está perante um processo de desterritorialização.4 Segundo Octavio Ianni (1996, p. 169) “o sujeito do conhecimento não permanece no mesmo lugar, deixando que seu olhar flutue por muitos lugares, próximos e remotos, presentes e pretéritos, reais e imaginários”. Partindo da ideia de que território é aquele espaço de estabilidade e organização, a ação de desterritorializar é uma ação de desordem, de 3 Conforme definição disponível em: <http://www. priberam.pt/dlpo/desterritorializa%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 01 mar. 2014. 4 Conforme definição disponível em: <http://www. dicionarioinformal.com.br/desterritorializa%C3%A7%C3 %A3o/>. Acesso em: 01 mar. 2014.
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fragmentação para buscar saberes menos instituídos, adotando uma percepção diferenciada que está pronta para descobrir novas ideias além das previstas. No caso das literaturas africanas (e também das latino-americanas), os processos levados a cabo pelo expansionismo europeu desde meados do século XV impuseram condicionantes às formas de apropriação, pelos sujeitos das terras colonizadas, de seus espaços geográficos e simbólicos, ocasionando desterritorializações. Como explica Edward Said (1990), as perspectivas narrativas e epistemológicas “orientalistas” filtraram um conhecimento ocidental sobre o Oriente ao proporem representações distorcidas de culturas e povos. O empreendimento imperial da Europa e dos Estados Unidos nos séculos XIX e XX implicava a confirmação de estereótipos e a anulação moral e existencial do oriental, sobretudo do árabe, por não se encaixar nos conceitos de civilização impostos como universais. Sendo assim, os “olhos imperiais” se encarregaram de carregar de exotismo e selvageria as paisagens e as gentes expostas à aventura do Ocidente e à sua narração que se pretendia global ou planetária quando, em verdade, se tratavam de “zonas de contato”: nos termos de Mary Louise Pratt (2011, p. 33), estas envolvem o espaço compartilhado por pessoas separadas geografica e historicamente, sob relações que implicam coerção, desigualdade radical e conflitos intoleráveis. Até mesmo o cinema, desde seu surgimento, em grande medida “uniu narrativa e espetáculo para contar a história do colonialismo sob a perspectiva do colonizador” (SHOHAT; STAM, 2006, p. 159), contribuindo para a sistemática bestialização e anulação de povos e culturas em conformidade com as fantasias imperiais. Se isso vale para as “ficções” que se estabeleceram sobre esses lugares do planeta, despojados de si mesmos ou silenciados pelas lentes do etnocentrismo, o mesmo conflito percorre as literaturas que surgem terminados (em tese, ao menos) os processos coloniais. Sobre as literaturas africanas em língua portuguesa, Inocência Mata (2003, p. 49) entende que estas se encontram numa dupla encruzilhada entre a catarse dos lugares coloniais (ainda não totalmente processados) e a revitalização de novas utopias que pluralizem o corpo da nação e ao mesmo tempo repensem o projeto monolítico de nação e de identidade nacional. A desconstrução o imaginário do centro e do império passa, então, a ser central nas escritas e
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nas criações pós-coloniais que surgem em práticas linguísticas e discursivas que recuperam o silenciado nessas culturas, desde a autoimagem até o encontro de um lugar no mundo. Trata-se de desterritorializar práticas consolidadas (no caso, as referidas acima sobre as fantasias e projeções imperiais) e reterritorializar sujeitos e coletividades terminada a experiência traumática do colonialismo, que passa a ser mediada por relações de poder e legitimação em escala planetária. Em tal contexto global, contrariamente ao que se poderia supor, as possibilidades de diálogo entre mundos conectados por redes virtuais e comerciais de larga escala são muitas vezes atravessadas por irracionalismos, intolerância e tribalismos regressivos. O ganês Kwame Anthony Appiah discute as dificuldades atuais em viver eticamente como “cidadão do mundo”, ou seja, como alguém que age de maneira cosmopolita e considera os interesses dos que lhe são desconhecidos: “Nos insta a conocer la situácion en que se encontran los demás, y después usar la imaginación para ponernos en su lugar” (2007, p. 99). Outro aspecto importante nessa relação com a diferença diz respeito ao papel que Appiah atribui às histórias, fossem elas lidas ou recitadas na vida cotidiana: “Si una comunidade no tuviera historias, si sus integrantes carecieran de imaginácion narrativa, no la reconoceriamos como una comunidade humana” (2007, p. 60). Além de humanizar as relações, “evaluar historias junto con otras personas es uma de las maneras más importantes en que los seres humanos aprendemos a alinear nuestras reacciones ante el mundo” (idem). Sendo assim, a leitura que segue sobre o romance de Gaile Parkin fundamenta-se no potencial das histórias para o compartilhamento das experiências humanas, condição para o cosmopolitismo. 2 O COSMOPOLITISMO QUE RETERRITORIALIZA EM ÁFRICA No romance Assando bolos em Kigali, a narradora e protagonista Angel Tungaraza, que nasceu em Bukoba, localizada na Tanzânia5 ocidental, vai morar em um condomínio em
A Tanzânia foi colônia alemã de 1880 a 1919. O país também foi colônia britânica de 1919 até 1961. A Alemanha na Primeira Guerra Mundial perde esta colônia que passa às mãos do Reino Unido. 5
Ruanda, mais precisamente na cidade de Kigali6, onde seu marido, Pius, trabalha no KIST - Instituto de Ciência e Tecnologia de Kigali. Pius Tungaraza desenvolve projetos de sustentação ambiental na universidade. Angel, juntamente com seu marido, após a morte de seus dois filhos, Joseph e Vinas, passa a criar os cinco netos. Assim, de Joseph, que foi morto em casa por uma bala de um assaltante, ficaram os netos Benedict, de treze anos, Grace, de onze anos, e Moses, de seis anos. Por outro lado, de sua filha Vinas possuem um casal de netos, Faith e Daniel. Para sobreviver, Angel prepara bolos, que poderíamos chamar de arte açucarada pela delicadeza no preparo e singularidade nos temas com os quais arquitetonicamente produz as coloridas iguarias. Para cada cliente que recebe em sua casa, prepara um chá e, enquanto ele preenche o “Formulário de pedido de bolo”, a doceira procura conhecer um pouco sobre sua vida, para saber como elaborará o bolo. Um avião? Um telefone? Uma bandeira? Um microfone? Depende da backstory 7 da pessoa. Através dessas íntimas histórias, o leitor tem acesso à situação de muitos homens e mulheres que vivenciaram a guerra e que ainda sofrem as consequências do genocídio ugandense. De acordo com o que afirmara Appiah (ano), para que não se viva num mundo de estranhos, as histórias podem ser um caminho de identificação que permite a essas vidas danificadas recuperar algum grau de humanidade. Nisso também podemos identificar um processo de construção um novo território, tanto físico como simbólico, para substituir o vazio legado pela guerra e pelo exílio. Resumidamente, afirma-se que a desterritorialização é o movimento pelo qual se abandona o território, “é a operação da linha de fuga”, e a reterritorialização é o movimento de construção do território (DELEUZE; Kigali foi fundada em 1907 sob domínio colonial alemão, tendo-se tornado capital do Ruanda na época da independência em 1962. Com início em sete de abril de 1994, a cidade foi palco do Genocídio de Ruanda, com cerca de um milhão de tutsis mortos pelas milícias hutus e pelo exército de Ruanda, e de intensos combates entre o exército (dominado por hutus) e a Frente Patriótica de Ruanda (dominada por tutsis). Apesar de danificada, a estrutura da cidade foi recuperada posteriormente. 7 Backstory, conceito utilizado por Linda Seger, referindose à história do passado das personagens. 6
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GUATTARI, 1997, p. 224); no primeiro movimento, os agenciamentos se desterritorializam; no segundo, eles se reterritorializam como novos agenciamentos de corpos e coletivos de enunciação. Deleuze e Guattari (1997, p. 41) propõem ainda a distinção de dois tipos de desterritorialização, a desterritorialização relativa e a desterritorialização absoluta: Pode-se mesmo concluir [...] que o menos desterritorializado se reterritorializa sobre o mais desterritorializado. Surge aqui um segundo sistema de reterritorializações, vertical, de baixo para cima. [...] Em regra geral, as desterritorializações relativas (transcodificação) se reterritorializam sobre uma desterritorialização absoluta.
A desterritorialização relativa refere-se ao próprio socius, é o abandono de territórios criados nas sociedades e sua concomitante reterritorialização. A desterritorialização absoluta remete-se ao próprio pensamento. No entanto, como veremos mais adiante, os dois processos se relacionam, um perpassa o outro. Além disso, devemos ressaltar novamente que, para os dois movimentos, existem também movimentos de reterritorialização relativa e reterritorialização absoluta.8 No romance o condomínio, metonímia de Uganda, abriga histórias e estórias formando um microcosmo da sociedade local, onde se encontram pessoas das mais variadas partes do mundo: Somália, Inglaterra, Estados Unidos, Egito, Japão, todos muito empenhados na re(construção) do país e envolvidos em diferentes processos de reterritorializações dados os distintos contextos e origens dessas pessoas e as adaptações que precisam realizar na sociedade de destino. O principal leitmotiv do romance é o genocídio perpetrado pelos Hutus sobre os Tutsis. Os Génocidaires empregavam a desculpa para o
8 Para uma maior compreensão sobre estes conceitos, ver artigo A desterritorialização na obra de Deleuze e Guattari, de Rogério Haesbaert e Glauco Bruce, disponível em: <http://www.uff.br/geographia/ojs/index. php/geographia/article/viewFile/74/72>. Acesso em: 25 mar. 2014.
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genocídio alegando que os Tutsis teriam vindo do Egito: “Os Tutsi eram árabes e não africanos” 9 . Nesse quadro de conflitos étnicos violentos, ocorrem reterritorializações verticais: são vários os grupos deslocados de sua origem, mas uns acabam por se impor a outros, legitimando outras formas de dominação e até mesmo a desterritorialização absoluta, a do pensamento, já que opera um argumento duvidoso para justificar a matança generalizada. O genocídio atingiu todos os membros das famílias Tutsis, das crianças aos velhos. Para os sobreviventes restaram as consequências e os traumas, assim como a difícil tarefa de reconstruir suas vidas. Tal é a história de Françoise, que possui um pequeno restaurante, o Chez Françoise. A mulher conseguiu salvar seu filho mais novo, Gérard, pois estava com ele amarrado às suas costas; contudo, assistiu ao assassinato de seu marido e de seu outro filho no portão de sua casa, sem poder fazer nada para impedir. O casal escondia pessoas fugidas da matança no teto de sua casa; quando descobertos, foram todos liquidados: Deixe-me dizer uma coisa a respeito da sobrevivência, Angel. As pessoas falam de sobrevivência como se fosse algo bom, uma espécie de benção. No entanto, pergunte por aí aos sobreviventes e você vai descobrir que muitos admitirão que sobreviver nem sempre é a melhor escolha. Há muitos de nós que desejam todos os dias não ter sobrevivido. (PARKIN, 2009, p. 227).
Toda a massacrada, vida sobre recordações
família de Françoise havia sido restava a ela (re)construir a sua os destroços, convivendo com que ainda assombram seus sonhos
9 O antropólogo Jean Hiernaux alega que os tutsis são uma raça à parte, com uma tendência de “cabeças longas e rostos e narizes estreitos”, outros, como Villia Jefremovas, acreditam que não há diferença física discernível e as categorias não foram historicamente rígidas. Na Ruanda pré-colonial, os tutsis eram a classe dominante, da qual os reis e a maioria dos chefes foram derivados, enquanto os hutus eram agricultores. O atual governo desencoraja a distinção Hutu/Tutsi/ Twa e removeu essa classificação das cédulas de identidade.
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e sua memória. Como conviver com a lembrança dessas atrocidades? Ao modo das duas formas de desterritorialização da cartografia de Delleuze e Guattari, esses sobreviventes vivenciam, num primeiro momento, o afastamento físico dos que foram dizimados, e, posteriormente, a fragilidade extrema do pensamento condenado a negar a memória individual e a coletiva, posto que feitas de violação e barbárie. Assando bolos em Kigali destaca outro tipo de desterritorialização na trajetória de Angel e de outras personagens femininas. No caso, a complexa situação da mulher na África Oriental, mais especificamente em Uganda, suas dificuldades e conquistas perante um mundo destroçado pelo massacre, assolado pela Aids e fragmentado econômica e socialmente. A autora destaca a violência na forma da prostituição feminina, revelada na figura de Jeanne d´Arc, profissional do sexo. A menina, com apenas dezessete anos, cria dois irmãos menores (Solange, com idade entre onze e treze) e um menino pequeno, Muto: “Tenho sido mãe deles desde 1994.” (PARKIN, 2009, p. 252). Foi obrigada a seguir esse meio de sobrevivência após a morte dos membros de sua família na guerra, quando foi estuprada pelas milícias e, como tal, ficou “estragada” para o casamento. Violência esta que também marcou o caso da amiga da Dra. Rejoice, a enfermeira Odile, que trabalha no Centro Médico-Social, em Biryogo. Odile e o irmão foram os únicos sobreviventes de sua família no genocídio. Ela ficou impossibilitada de conceber filhos após sofrer tortura: “No genocídio, eles cortaram as partes dela com um cutelo, as partes femininas” (PARKIN, 2009, p. 248). A enfermeira trabalha em um bairro periférico que abriga pessoas infectadas e tenta orientar essas pessoas para uma profissão com que possam sobreviver. A AIDS ainda é assunto tabu, a questão não é discutida abertamente, tanto é que a protagonista só ao longo da narrativa vai assumir o fato de que seu filho Benedict, a esposa deste e também sua filha Vinas foram contaminados. A educação feminina é outro tópico sobre o feminino abordado na narrativa. A professora Sophie conta para Angel a respeito do projeto Girls Who mean business, em que as meninas vão receber aulas de empreendedorismo com o professor Pillay, da Universidade.
Está bem, deixe-me explicar. Este ano todo, tentei encorajar as meninas em minha escola a pensarem no futuro delas. Elas não sabem a sorte que têm por freqüentarem uma escola secundária – a maior parte das moças em Ruanda não passa do nível primário. Sim, e não apenas em Ruanda. Pergunte a qualquer pessoa que você encontrar de qualquer país africano e ela vai lhe dizer que será a mesma coisa na casa dela. (PARKIN, 2009, p. 148).
O empreendorismo é incentivado porque, para as mulheres africanas, segundo a personagem, não há investimento em educação por parte dos pais, pois elas não ficam na família quando casam. As oportunidades para essas mulheres fora do casamento são escassas, uma saída criada para elas é a criação de novos empregos, novas formas de sobrevivência. Aqui vemos mais uma forma de reterritorialização, que passa por assumir sociabilidades geradas nesse novo contexto, em que os modos tradicionais são permeados de contribuições trazidas por práticas e instituições estrangeiras. Por outro lado, também ocorre a não-aceitação das práticas milenares pelo sujeito feminino, como através da simulação da cerimônia de mutilação feminina – a circuncisão: “Cortar e costurar as partes íntimas de uma menina para lhes dar uma aparência mais atraente para os homens com certeza não era algo racional de se fazer.” (PARKIN, 2009, p. 272-3). A menina Safiya, Angel, a doutora Rejoice, Odile e Amina, a mãe da menina, fingem realizar a cerimônia para enganar Vincenzo, o pai de Safyia (PARKIN, 2009, p. 290). Outras personagens também são representativas das mobilidades que estão a ocorrer nessa sociedade, como a Sra. Wanyika, esposa do embaixador da Tanzânia em Ruanda. A embaixatriz representa o poder externo e o silenciamento de assuntos tabus como a AIDS. Amina e Safiya são da Somália; Ken Akimoto é do Japão; Sophie e Catherine são voluntárias americanas feministas que lecionam para mulheres. Tanta diversidade sugere uma ampliação do que se entende por território, que passa a ser um conjunto de “projetos e representações” de novos sujeitos que buscam se sentir “em casa”: A noção de território é entendida aqui num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que dela fazem a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam
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segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos. (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 323).
Seguem outros exemplos dessas apropriações subjetivas de território. O guarda Modeste, que assistiu toda sua família ser massacrada, casa com Leocadie, cuja mãe está presa por participar dos “génocidaire”.10 Esse casamento simboliza a união de dois lados da guerra na política ruandense de reconciliação11. Leocadie é mãe de Beckham, que ganhou esse nome porque chutava a barriga antes de nascer, e sobrevive gerindo um pequeno negócio. Modeste trabalha com Gaspard, ambos são guardas diurnos do condomínio. Patrice e Kalisaos são os guardas noturnos, e Prosper é quem administra o condomínio. A igreja se faz presente na figura do Padre Benedict, que ajuda Kayibanda Tharcisse Dieudonné (cujo nome significa dado por Deus) a obter uma bolsa de estudos em Nairóbi, para estudar contabilidade. A trajetória de Dieudonné constitui um exemplo de famílias separadas no período de guerra que, contudo, conseguem se reencontrar após longo período de busca nos tempos de paz. A corrupção governamental é refletida na fala dessa personagem: Os líderes dos governos não pensam duas vezes antes de pegar dinheiro emprestado das grandes instituições financeiras, porque eles só terão de pagar num prazo de quarenta anos – em quarenta anos, já não será responsabilidade deles, já outro governo estará no poder. E quem se incomoda com a poluição da atmosfera e a destruição do planeta? Nós não vamos Na prisão, ocorre a super lotação dos espaços. No local que pode abrigar 600 detentos, possuem seis mil. (PARKIN, 2009, p. 68). 11 Foi estimado que praticamente 800.000 pessoas foram massacradas em 1994. 10
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ter de viver com as conseqüências disso. (PARKIN, 2009, p. 244).
O cenário de muitos acontecimentos retrata a localidade de Uganda para além do condomínio: a cidade de Gikongoro, capital do distrito de Nyamagabe, na Província do Sul, o Lago Kivu12, o Hotel Du Lac, o rio Rusizi13 e a cidade de Cyangugu, localizada ao sudoeste de Ruanda, junto à fronteira da República Democrática do Congo, ao lado do Lago. São descritos ainda os locais por onde Angel transita: Place de La Constitution, Office Rwandais du Tourisme et des Parcs Nationaux, Place de l`Indépedence, Banque Commerciale du Rwanda. Observa-se que os nomes que se referem aos espaços públicos são africanos, já os espaços privados, aqui entendidos como prédios e instituições, quer sejam governamentais quer sejam particulares, são nomeados na língua do colonizador. Fica clara a dominação colonial que prevalece para além dos tempos de dependência. A isso acrescenta-se também a questão da diversidade linguística, sobressaindo-se como língua oficial a língua do colonizador, mesmo que em ambos os países – Tanzânia e Uganda, o idioma swahili seja oficial, juntamente com o inglês, sendo que em Uganda ao mesmo tempo é falado o francês, resquício da colonização belga. Sobre esta questão Angel pronuncia-se: Bem, eu olhei no dicionário das crianças e lá diz que bilíngüe quer dizer que você sabe falar pelo menos duas línguas: kinyarwanda e francês, ou kinyarwanda e swahili, ou outras duas. No entanto, quando nosso presidente fala sobre ser bilíngüe, ele quer dizer apenas inglês e francês – idiomas wazungus. Será que ele
O Lago Kivu é um dos maiores lagos de África. Está situado na fronteira entre a República Democrática do Congo e o Ruanda. O lago Kivu desagua no rio Ruzizi, que segue para o sul e, por sua vez, desagua do lago Tanganica. O lago ficou conhecido como o local onde muitas das vítimas do genocídio de Ruanda em 1994 foram jogadas. 13 O Ruzizi forma a fronteira sul entre Ruanda e a República Democrática do Congo, e, junto com o Lago Tanganica, forma a fronteira entre a República Democrática do Congo e o Burundi. 12
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que dizer que nossas línguas africanas não são línguas? (PARKIN, 2009, p. 189)14.
Vítima de mais uma desterritorialização, nesse caso linguística, Angel reconhece que sua língua materna não é suficiente para viver nesse novo país habitado por distintas etnias, costumes e nacionalidades, para tanto necessita aprender uma nova língua, o francês, que representa uma permanência da violência do passado colonial. 3 OS BOLOS COMO PRÁTICA COSMOPOLITA Angel representa o sujeito que passa pelo processo de desterritorialização na trajetória de deslocamento Tanzânia-Uganda, sofrendo na própria pele a diáspora. No entanto, não se entrega inativamente ao destino, tenta criar novas raízes, mesmo que apenas temporariamente. Constrói junto aos seus netos e marido e também junto à comunidade uma colcha de retalhos de origens múltiplas – um novo território, no qual a esperança deve reinar, porque sempre há motivos para comemorar e celebrar a vida, a união. As ações de Angel junto ao condomínio são uma iniciativa que parte do privado, mas que acabam influenciando também no espaço público através de projetos e deslocamentos de sentidos em novas práticas como a conscientização através da educação dos perigos e precauções com a AIDS ou a educação profissional com preparação técnica para as mulheres. Há, portanto, uma reterritorialização nessas ações se pensarmos na noção de território como o conjunto “dos projetos e das representações” de um determinado grupo transformado por relações interpessoais em que novos laços são elaborados.
A principal língua do país é kinyarwanda, que é falada pela maioria dos ruandeses. Os principais idiomas europeus durante a era colonial eram o alemão, e depois francês, que foi introduzido pela Bélgica e mantevese como língua oficial e falada após a independência. O afluxo de refugiados de Uganda e de outros lugares durante o século XX criou uma divisão linguística entre a população anglófona e o restante dos francófonos do país. Kinyarwanda, inglês e francês são línguas oficiais atualmente. Kinyarwanda é a língua do governo e o inglês é o principal idioma utilizado no meio educacional. O suaíli, a língua franca da África Oriental, também é amplamente falado, particularmente nas áreas rurais. Além disso, os habitantes de ilha Nkombo falam amashi, um idioma intimamente relacionada com o kinyarwanda.
Mais do que isso, ao interessar-se pela diferença representada nas histórias de vida dessas pessoas desorganizadas afetiva e espacialmente, Angel efetiva a reterritorialização através do sentido ético esperado de sociedades globais que, como tal, são resultantes de múltiplas culturas e etnias. De acordo com o que sustenta Kwame Appiah, “una verdad que sostenemos es que cada ser humano tiene obligaciones con todos los demás. Todos son importantes: esta es nuestra idea central” (2007, p. 191) Os bolos individualizados pelas histórias que os inspiram, pelo que representam como festa e capacidade de criação de vínculos, constituem uma aposta na reconciliação africana e na vivência de experiências produtivas de compartilhamento e tolerância, não obstante o rescaldo do colonialismo e das guerras civis e mesmo dos conflitos que, infelizmente, persistem não só neste continente.
REFERÊNCIAS APPIAH, Kwame Anthony. Cosmopolitismo la ética en um mundo de extraños. Buenos Aires: Katz Editores, 2007. ______. Mi cosmopolitismo. Barcelona: Katz Editores e Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, 2008.
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DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma Literatura Menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977. ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 5. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996. IANNI, Octavio. Teorias da globalização. 3 ed. Rio Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. 23
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MATA, Inocência. A condição pós-colonial nas literaturas africanas de língua portuguesa: algumas diferenças e convergências e muitos lugarescomuns. In: LEÃO, Ângela Vaz (Org.) Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. PRATT, Mary Louise. Ojos imperiales literatura de viajes y transculturación. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011. PARKIN, Gaile. Assando bolos em Kigali. Trad. Helena Londres. São Paulo: Globo, 2009. SAID, Edward W. Orientalismo o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. SEGER, Linda. Como criar personagens inesquecíveis. Trad. Maria Silvia Junqueira, Marisa de Siqueira Lopes. São Paulo: Bossa Nova, 2006. SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. Trad. Marcos Soares. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
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DA REPRESENTAÇÃO DA MULHER À REPRESENTAÇÃO DA ÁFRICA NA ESCRITA DE FRADIQUE MENDES 1
Bárbara Silva Botelho2 Gustavo Henrique Rückert3 RESUMO Este trabalho tem como foco de análise o romance Nação crioula: a correspondência secreta de Fradique Mendes, do escritor angolano José Eduardo Agualusa. A estrutura do texto é formada pelas cartas que a personagem Fradique Mendes, apropriada por Agualusa do escritor português Eça de Queirós, escreve a partir do momento em que desembarca em Angola no século XIX. Interessa-nos, particularmente, a representação que Fradique faz das personagens femininas nessas cartas, bem como a importância de seus discursos para a formação do discurso do protagonista, que passa de colonial para pós-colonial. Assim, as representações das personagens angolanas Gabriela Santamarinha e Ana Olímpia são entendidas como metonímias das representações que o protagonista faz da África em suas cartas. Palavras-chave: Nação crioula. Agualusa. Pós-colonialismo. Discurso. Mulher. ABSTRACT This study analysis the novel Nação crioula: a correspondência secreta de Fradique Mendes, by the Angolan writter José Eduardo Agualusa. Letters written by Fradique Mendes (character that Agualusa appropriated of Portuguese writer Eça de Queirós) when landed in Angola in the nineteenth century form the structure of the text. The representation of female characters by Fradique in this letters, as well as the importance of his discourses to the formation of the discourse of the protagonist, which changes from colonial to postcolonial, are especially important for this paper. Thus, the representations of Angolan characters Gabriela Santamarinha e Ana Olímpia are understood as metonymy of representations that the protagonist makes of African in his letters. Keywords: Nação crioula. Agualusa. Post-colonialism. Discourse. Woman.
Este trabalho resulta de estudos produzidos no grupo de pesquisa “Os discursos literários das nações africanas”, coordenado pelo Prof. Dr. Luís Fernando da Rosa Marozo com a colaboração do Prof. Ms. Gustavo Henrique Rückert. 2 Acadêmica do curso de Letras Português/Espanhol da Universidade Federal do Pampa. Bolsista do Programa de Iniciação à Docência. Pesquisadora voluntária do grupo “Os discursos literários das nações africanas”. 3 Professor substituto da área de literatura na Universidade Federal do Pampa. Doutorando em Literaturas Portuguesa em Luso-Africanas pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Colaborador do grupo “Os discursos literários das nações africanas”. 1
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Nação crioula: a correspondência secreta de Fradique Mendes, publicado originalmente em 1997, é o terceiro romance do escritor angolano José Eduardo Agualusa. De estrutura epistolar, a narrativa é constituída a partir de cartas que a personagem Fradique Mendes, um viajante português, envia à sua madrinha, Madame de Jouarre, residente na França, seu amigo Eça de Queirós, Portugal, e Ana Olímpia, Angola. Por fim, após a morte de Fradique, há uma última carta, esta escrita por Ana Olímpia e endereçada a Eça. É importante ressaltar que Fradique Mendes é uma personagem criada por Eça de Queirós, Antero de Quental e Jaime Batalha Reis na segunda metade do século XIX. Tratava-se de um poeta satânico, viajante do mundo e de grande requinte que servia como porta voz de ideias do grupo que estavam na contramão do senso-comum da sociedade portuguesa. Agualusa apropria-se dessa personagem da literatura portuguesa para levá-la a Angola, no ano de 1868, e, assim, representar os discursos colonial e pós-colonial que vão surgindo nas descrições que faz do país africano, bem como de seus hábitos culturais. Segundo Ana Mafalda Leite (2003, p. 17), “[...] as variáveis do colonialismo europeu produziram uma continuidade e similaridade de situações, manifesta nas formas e práticas de escrita”. O narrador português de Nação crioula, Fradique Mendes, traz essas variáveis na escrita de suas cartas, claramente perpassadas pelo discurso colonial. Com o passar do tempo e a partir das vivências em Angola, o discurso colonial vai sendo gradativamente desconstruído, dando lugar ao discurso pós-colonial em sua escrita. Cabe ressaltar aqui que o termo póscolonialismo, embora em suas primeiras utilizações pelos historiadores ingleses depois do término da Segunda Guerra Mundial estava ligado à ideia de pós-independência das antigas colônias, tendo um valor, portanto, cronológico, é aqui utilizado em outro sentido: o epistemológico. Para Ana Mafalda Leite (2013, p. 12), “o termo pós-colonialismo pode ser entendido como incluindo todas as estratégias discursivas e performativas (criativas, críticas, teóricas) que frustram a visão colonial”. Assim, quando afirmamos que o discurso de Fradique altera de colonial para pós-colonial, nos referimos ao seu modo de entender a própria situação do colonialismo, passando da assimilação de seus discursos e práticas para a produção de reflexões críticas sobre esses mesmos discursos e práticas. 26
Outro aspecto importante para esta leitura é a noção de discurso. Apoiamo-nos nas reflexões de Michel Foucault para entendê-lo de modo estreitamente relacionado ao poder e ao desejo. Para o filósofo francês, “o discurso [...] não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (2010, p. 10). Sendo assim, mais do que uma simples produção de entendimentos sobre as coisas, o discurso forma a própria noção das coisas a partir de interesses específicos na relação de poder e desejo entre o enunciador e o objeto enunciado. Por isso sua importância tão grande e sua configuração como um objeto de disputa. No decorrer da escrita de suas cartas, Fradique se apossa do discurso de outras personagens com quem convive ou conviveu para expor ideias e perspectivas com relação à colonização e à escravidão. Essas personagens são portuguesas, francesas, brasileiras, angolanas, moçambicanas etc. A apropriação do discurso, mais especificamente, das personagens femininas, sempre carregada de significados, é de suma importância para a transição que ocorre em seu próprio discurso, de colonial para pós-colonial, como vamos analisar nas linhas que seguem. Logo em sua primeira carta, destinada à madrinha, Madame de Jouarre, Fradique descreve sua chegada em Luanda. Desembarcado às costas de dois angolanos da região de Cabinda, o que simbolicamente define sua posição enquanto colonizador, demarcando seu locus discursivo, faz uma descrição do solo africano a partir dos aromas que sente. Eis a primeira impressão de Fradique em relação a Luanda. Respirei o ar quente e húmido, cheirando a frutas e a cana-de-açúcar, e pouco a pouco comecei a perceber um outro odor, mais subtil, melancólico, como o de um corpo em decomposição. É a este cheiro, creio, que todos os viajantes se referem quando falam de África. (2001, p. 11).
O choque inicial, causado pela abismal diferença cultural do dândi europeu em relação à África, ao invés de provocar sua curiosidade e a vontade por compreender a cultura local, provoca a negação do outro a partir de sua representação por signos como o cheiro ruim, a sujeira e a melancolia. “Havia deixado para trás o próprio mundo” (2001,
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p. 11), lamenta Fradique na mesma carta. Não por acaso, Boaventura de Sousa Santos, em seu artigo intitulado Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade (2010), mostra justamente que os mesmos símbolos eram utilizados pelos demais europeus para representar os portugueses. Entre eles, Boaventura traz como exemplos o sociólogo francês Paulo Descamps, que fala sobre a propensão do português para a melancolia e o saudosismo (BOAVENTURA, 2010, p. 255), e o poeta inglês Lord Byron, que descreve em carta o aspecto de sujeira da terra lusa e de seus habitantes: Palácio e cabana são igualmente imundos; seus morenos habitantes educados sem asseio; e ninguém, fidalgo ou plebeu, cuida da limpeza do casaco ou da camisa [...] os cabelos por pentear, mal asseados, indiferentes (BYRON apud BOAVENTURA, 2010, p. 253).
Dessa forma, o discurso presente na representação que Fradique faz de Angola, logo em seu desembarque, é uma forma de reivindicar uma identidade a partir do signo da civilização para Portugal. Podemos entender essa estratégia discursiva típica da colonização europeia, que é a negação dos valores do outro para a autoafirmação identitária, como uma espécie de mecanismo de compensação, já que o português ocupou esse lugar do outro frente à Europa. Posteriormente, também em carta destinada à madrinha, Fradique narra sua participação em um tradicional baile da alta sociedade luandense. No evento, ele é apresentado à Gabriela Santamarinha, a primeira personagem feminina citada em suas cartas. Pode-se perceber a importante relação entre essa figura e Luanda (e ainda o entendimento que Fradique faz do local), pois “[...] ser apresentado a ela é quase como um ritual iniciático [...]” (2001, p. 22). Essa relação fica evidente quando Fradique descreve suas características, que remetem aos signos com que descreveu Luanda em seu desembarque; e faz comparações. “Ao vê-la recordei-me de uns versos do poeta brasileiro Gregório de Matos, descrevendo uma negra crioula: <<Boca sacada com tal largura/que a dentadura/passeia por ali desencalmada>>” (2001, p. 22). Também fala do seu odor, assim como se referiu ao odor da África. “<<Mas nunca perdeu o fedor original, e por isso
também lhe chamam o Abominável Monstro das Retretes>>” (2001, p. 22). Ainda na mesma carta, ele descreve Ana Olímpia, a segunda personagem mulher a quem é apresentado no Baile, também importante para a sociedade local. Ana Olímpia é uma negra, ex-escrava, casada com um homem poderoso na sociedade luandense. Dele recebeu ampla formação em relação à cultura ocidental. No entanto, seu conhecimento era híbrido culturalmente, pois não se limitou a essa formação e estudava profundamente as culturas africanas. É através da constituição de sua imagem que ele passa a reconstituir sua primeira impressão do local. A partir do contato com Ana, o narrador assume uma nova posição, a posição de curiosidade, de busca pelo entendimento e pelo conhecimento. Assim, as descrições prévias a partir da negação de uma identidade que o português reivindicasse para si, com suas considerações do outro como objeto definido e definível, vão dando lugar à consideração do outro como potencialidade significativa de um sujeito. “Ao vê-la – à mulher mais linda do mundo – logo naquele momento me reconciliei com a humanidade e os meus olhos se abriram com outro interesse para este país e as suas gentes” (2001, p. 23). Posteriormente, quando Fradique escreve para Ana Olímpia, por quem nutre profunda admiração e interesse, ele revela que a lembra ao pensar na África. “[...] procuro entender os segredos da África. E penso em si. Penso muito em si. No meu espírito desorganizado a sua imagem de alguma forma me esclarece e anima” (2001, p. 29). Se Ana passa a ser uma representação metonímica da África para Fradique, o encanto e os sentimentos que dirige a ela passam a ser dirigidos também ao local anteriormente despido de qualidades nas descrições à madrinha em sua chegada. Em outra passagem do romance, em uma nova carta à Madame de Jouarre, Fradique cita uma “rancorosa tese” da madame Kirkovitz, personagem feminina do romance que conhecera no passado, que ele descreve como uma tentativa de explicação científica para as suas desilusões empíricas, já que no Brasil vira tantos homens, entre eles seu marido, trair suas esposas com as negras e as mulatas. “<<Há no sangue das negras um principio acre que primeiro cativa e depois atrofia e destrói o coração dos homens brancos>>” (2001, p. 35). O narrador contrapõe a imagem das negras e das mulatas à da própria madame, descrita por ele com 27
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os seguintes adjetivos “loira, fria e amarga” (2001, p. 35). Fradique já está suficientemente próximo de Ana, consequentemente de Angola, para concordar com o discurso colonial da madame, amparado no cientificismo, na animalização e na hipersexualiação do colonizado. Contudo, relembra da tese por perceber que está profundamente ligado sentimentalmente à Ana e à sua cultura. À medida que convive com Ana Olímpia, Fradique vai compondo uma nova imagem da África em suas cartas, pois o discurso da angolana, apenas interdito nas cartas, influencia seu discurso. Ana é representada em correspondência à madrinha como uma “mulher lúcida, forte e com opiniões” (2001, p. 39). Foi assim também que ele passou a enxergar o país, através dos olhos dessa personagem. Fradique faz uma comparação entre as ações de Gabriela Santamarinha e Ana Olímpia e, através dessa comparação, apresenta duas visões sobre a escravidão, já que as duas chegaram a ter escravos (a primeira por prática; a segunda por herdá-los do marido, embora não concordasse com esse sistema e os libertasse): e acrescenta que “é justo reconhecer, porém, que os luandenses são normalmente menos cruéis que os Portugueses.” (2001, p. 40). Já Gabriela Santamarinha goza de justa fama de bruta. Eu próprio a vi, certa vez, castigar uma infeliz criança batendo-lhe nas costas das mãos com uma palmatória, e com tal violência que o sangue saltou manchando o vestido da senhora. A pequena foi então amarrada a um pau, inteiramente despida, e Gabriela marcoulhe o dorso a chibatada.” (2001, p. 40). Ao libertar os trabalhadores das suas fazendas Ana Olímpia conseguiu demonstrar uma das principais teses do movimento emancipador – a de que qualquer homem trabalha mais e melhor em liberdade, sendo o pagamento dos salários compensados pelo aumento das colheitas.” (2001, p. 40).
Após deixar Angola para ir à Europa, Fradique passa a remeter cartas à Ana Olímpia. Por meio delas, fica evidente ao leitor do romance o relacionamento entre ambos. Em uma dessas cartas, ele, o viajante aventureiro, desapegado de pertencer e estabelecer sua vida a partir de territórios, revela um sentimento de pertença a Angola. O discurso de Ana Olímpia, assim como seu sentimento por ela, fizeram com 28
que visse esse país com outro olhar, assumindo assim um discurso sobre a colonização a partir da pertença ao país africano. “Hoje sei que estava a tua procura. Sei que és o meu destino, a minha pátria, a minha igreja. Sei que ao deixar Luanda fez-se Dezembro e que desde então o Inverno ronda como um lobo esfomeado a minha volta” (2001, p. 44). A representação de seu país e de sua cultura também sofre alterações com a transição de sua forma de entender o mundo, que passa de uma visão colonial para uma visão pós-colonial: Pretende Darwin que os homens descendem do macaco e na maior parte dos casos será assim – foram descendo. Creio, porém, que com minha família aconteceu o inverso, e ela se foi erguendo desde esse símio original até o rude lusitano. Veio depois Afonso Henriques, vieram gerações de marinheiros e navegantes, os Açores foram descobertos e povoados, e nasci eu.” (2001, p. 44).
Depois do seu intenso convívio com Ana, Fradique revela que a ideia inicial da África e dos africanos não era como parecia e, através de Ana Olímpia, percebe o quão relativa era a ideia de civilização que continha o discurso colonizador. Quando escreve “e nasci eu” (2001, p. 44), ele mostra certa oposição à linhagem lusitana, embora a inevitável descendência. Esse é o entre-lugar crítico apropriado à crítica pós-colonial, como ressalta Ana Mafalda Leite (2003, p. 22): “entre o culpado, que personifica a imagem do colono, e a vítima, que encena o colonizado, haverá certamente um lugar mais distanciado e, provavelmente, mais neutro de encarar os factos da história e os da literatura”. Em uma das cartas que destina à Ana Olímpia, Fradique relata a nova condição de Gabriela Santamarinha: “[...] está ainda mais feia (nisto eu não acredito porque não é possível!), e a tal ponto enlouquecida que já ninguém se relaciona com ela.” (2001, p. 112). Como analisado anteriormente, Gabriela poderia ser entendida como uma metonímia da primeira Angola de Fradique, a do preconceito do colonizador que a caracteriza pelos signos da sujeira, do cheiro ruim e da melancolia. Assim, figurativamente, é possível compreender que aquele discurso foi completamente superado por Fradique, já não sendo visto como dotado de qualquer razão ou passível de qualquer relação consigo.
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A importância das personagens para a constituição de um discurso pós-colonial em Fradique fica mais evidente no nível simbólico com o nascimento de sua filha com Ana Olímpia, Sophia, que carrega na etimologia do próprio nome o conhecimento. Conhecimento esse que não é aquele dos tradicionais pre(con)ceitos cientificistas do colonizador, tampouco de reações de igual proporção dos colonizados, mas símbolos da cultura híbrida típica do entre-lugar do sujeito pós-colonial. Receio que Sophia seja igual a mãe. Aos três meses já grita pelos seus direitos, e com tal vigor que afugenta os pássaros e alarma os cães;[...] Sophia é uma criança forte, saudável, com grandes olhos negros, intensos, atentos à vida em seu redor, e um sorriso confiante, de quem se prepara para conquistar o mundo. Há de conquistá-lo.” (2001, p. 129-130).
Já ao final de sua trajetória, Fradique relata em carta para Eça de Queirós (o próprio escritor português, um dos criadores de Fradique, é uma personalidade da qual se apropria Agualusa, tornando-o um amigo pessoal de Fradique) um debate entre ele e Ana Olímpia sobre o colonialismo português. A partir da imagem de um cavaleiro que observam, constroem uma metáfora sobre o tema: O homem deixava-se levar pelo animal, quase deitado, quase caindo, o chapéu tombado sobre os olhos. E por instantes acreditei que estivesse morto ou adormecido. <<Incrível”>>, comentei para Ana Olímpia, <<já reparou como aquele homem vai montado?>>
já que a intersubjetividade precede a subjetividade, fica evidente a importância das palavras interditas das personagens femininas, sobretudo Ana Olímpia, para o aprendizado por que passou Fradique, alternando de uma visão colonial para uma visão pós-colonial. Seu discurso pós-colonial é formado, portanto, por discursos alheios coloniais e pó-coloniais, embora nem sempre apareçam explicitamente em suas correspondências. Dessa forma, a África, metonimicamente representada em suas mulheres, que era vista inicialmente como um mero objeto, fixo, estável, passível de descrição e de apropriação por Fradique, atua ativamente na sua formação crítica, colonizando assim o discurso do próprio colonizador.
REFERÊNCIAS AGUALUSA. José Eduardo. Nação crioula: a correspondência secreta de Fradique Mendes. Rio de Janeiro: Gryphus, 2001. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Sampaio. São Paulo: Loyola, 2010. LEITE, Ana Mafalda. Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais. Lisboa: Edições Colibri, 2003.
– Montado? – estranhou a minha amiga – chamas àquilo montar?! Ele vai é depositado!...
QUEIRÓS, Eça de. A correspondência de Fradique Mendes. Lisboa: Livros do Brasil, 1999.
Penso naquele cavaleiro como sendo Portugal montado em África. Montado, não, depositado. A nossa presença em África não obedece a um princípio, a uma ideia, e nem parecer ter outro fim que não seja o saque dos africanos. (2001, p. 132).
RÜCKERT, Gustavo. Nação crioula: o Caliban no Próspero, o alheio no próprio. In: Anais do Seminário Internacional Sul de Literatura Comparada. Disponível em: <http://wwlivros.com. br/Vcoloquio/artigos/GustavoHenriqueRuckert. pdf>. Acesso em: 15 jul. 2014.
Ao se comparar essa leitura que Fradique faz do colonialismo português com a inicial descrição que faz do solo africano, fica evidente a transformação pela qual passou o seu discurso. Se Bakhtin (1986) nos ensina que um discurso é formado, inevitavelmente, pelo discurso dos outros,
SANTOS, Boaventura de Sousa. Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e interidentidade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos da identidade. Porto: Afrontamento, 2002. 29
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EVA, A RELATIVIZAÇÃO DA VERDADE
Jane Tutikian1 RESUMO O trabalho analisa EVA, do escritor cabo-verdiano Germano Almeida, dentro do conjunto de sua obra, a partir do ideário da revista Ponto e Vírgula e como continuação de uma proposta apresentada em O Meu Poeta, primeiro romance nacional de Cabo Verde: a literatura pensada como o espaço de expressão da identidade cultural, desvendando o momento, o espaço e o elemento definidor dessa identidade. É a repensagem da independência 28 anos depois, indo ao encontro do espaço dos exilados, os “Catchor de dôs pé”. Palavras-chave: Germano Almeida. Literatura. Identidade. Cabo Verde. ABSTRACT The following work analyses EVA, of the Cape-Verdian Germano Almeida, within the totality of his work, starting from the ideals of the magazine “Ponto e Vírgula” and as the continuation of the presented proposal in “O Meu Poeta”, first national novel from Cape Verde: the literature thought as the space of cultural identity expression, unmasking the moment, the space and the definer element of this identity. Is the rethinking of the Independence 28 years later, reaching out to the outcast space, the “Catchor de dôs pé”. Keywords: Germano Almeida. Literature. Identity. Cape Verde.
1 Doutora em Literatura Comparada e professora PPG-Let UFRGS. Diretora do Instituto de Letras da UFRGS. E-mail: jtutikian@via-rs.net.
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Mostrei-lhe que há sempre dois lados, que toda a verdade é relativa e que a de hoje não será necessariamente a de amanhã... (Eva, Germano Almeida).
A movimentação histórico-cultural e a redefinição de fronteiras das últimas décadas fazem com que o conceito de nação se fixe nos fundamentos de identidade2, na recuperação de certos valores autóctones, com o intuito de resgate da tradição ou de construção de uma nova tradição. Busca-se uma idéia mais próxima de homem e de nação diante das movimentações do nosso tempo. Em ambos os casos, seja recuperando, seja criando uma nova tradição, há a revisão do passado, a “territorialização ideológica e a ancoragem no futuro (espécie de utopia ideológica.)”3, como quer Leenhard. É aí também que o dialogismo torna-se a marca da literatura contemporânea, o que, segundo Maria Lúcia Lepecki (1998), corresponde a um traço epocal. Nesse diálogo com a História, a verdade histórica e a verdade da ficção, a segunda presentifica e critica a primeira, no resgate da identidade, produzindose o que Fletcher chamou de “fingimento do fato”4 pela produção de um efeito histórico-documental. Diante desse quadro, de que não passam à margem as nações africanas de língua portuguesa, questões como nacionalismo e identidade ocupam espaço em textos dos mais diversos estatutos, a partir de suas especifidades sócio-históricas, através de reflexões e abordagens estéticas próprias. Em Cabo Verde, o grande nome do chamado pós-colonialismo é, sem dúvida, Germano Almeida. Verdade é que a situação caboverdiana é uma situação particular dentro do colonialismo, uma vez que, aos poucos, a administração, e é Manuel Ferreira5 quem afirma, vai passando para as mãos dos caboverdianos. Além disso, diferentemente, por exemplo, de Angola e de Moçambique, a independência constitui-se numa verdadeira revolução, no sentido de desenvolvimento, para o arquipélago, que de 75 a 90 modifica o panorama colonial. Entretanto, a falta de experiência com a Independência e com a autogestão termina levando Segundo o pensamento de Ruggiero Romano, 1994. Jacques Leenhardt, 2002. p. 33. 4 Angus Fletcher, 1976. p. 124. 5 Manuel Ferreira, 1977. 2
à privatização dos bens, a estrutura econômicofinanceira, de alguma forma, retorna a Portugal, e os problemas continuam os mesmos: a fome, a miséria, a evasão. Do ponto de vista literário, a perplexidade embute a criação e, logo a seguir à independência, a produção praticamente estaciona: de 75 a 81, há um vazio. É quando surge a revista Ponto e Vírgula, criada por Germano Almeida, Rui Figueiredo e Leão Lopes. Ponto & Virgula coloca-se à margem e contrária ao regime monopartidário; tem o papel de preencher o espaço literário esvaziado pelo regime, lutar pela autonomia da arte e, dentro da tradição literária caboverdiana, abrir caminhos políticos outros. Segundo Almeida, ao referir-se à Ponto & Vírgula: [...]É verdade que continuamos a dormir à sombra dos louros da «Claridade», como se isso nos bastasse. Não tentamos ultrapassar, continuar a experiência «claridosa». E nem houve ruptura entre essa geração e as actuais; a viagem literária que eles fizeram fi-la eu 50 anos depois, veiculado a um meio mais urbano...6
Foi ele o introdutor do humor na literatura caboverdiana, marcada desde o Movimento Claridoso (anos 30) por temas caracterizadores dos problemas nacionais, como a fome, a seca e a emigração. O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo (1989) já pode ser paradigma desta afirmação, quando a paródia se evidencia no engano que leva à compra dos dez mil guarda-chuvas. A Família Trago (1998), por sua vez, a reafirma com sua ironia dirigida à Igreja Católica e às “coisas sagradas”. Por meio de estórias encadeadas umas às outras e relatadas ora por um narrador adolescente, ora pelo testemunho de pessoas que conviveram com Pedro Trago, o escritor devassa o passado do fundador da família Trago, recuando até a proclamação do Estado Novo, a 26 de Maio de 1926, quando os excluídos dessa nova ordem são deportados para Cabo Verde, constituindo o início de um novo ciclo de mestiçagem, a dos desterrados acrioulisados. De certa forma, As Memórias de Um Espírito (2001) vem na mesma linha: a obra retrata a sociedade caboverdiana com o mesmo lado satírico, através das pessoas vindas
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Germano Almeida, 1998.
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de outras ilhas e que lutam, em São Vicente, através meios lícitos e iliícitos, pela sobrevivência. Segundo José Carlos Gomes dos Anjos7, ao tratar da revista Ponto & Vírgula, o pólo de contraposição mais visado por ela, dentro do processo de autonomia da arte, é o intelectualpolítico-partidário que troca a produção literária por um cargo político e perde a capacidade de denúncia. É, de fato, a grande premissa à criação de O Meu Poeta, o primeiro romance nacional caboverdiano, que reafirma todas as qualidades das obras anteriores e posteriores de Germano Almeida. Nesta obra, a partir de um caricato poeta-político, o autor faz um retrato satírico dos governantes e das elites culturais caboverdianas, no pós-colonialismo, criticando, também, o entendimento da cultura e da literatura pelo viés da política, posição defendida pelo Partido pela Independência de Cabo Verde (PAICV) no governo. Joga um Cabo Verde real, constituído por uma sociedade marcada pela estagnação, contra um Cabo Verde talvez possível, produzindo uma análise paródica daquela sociedade do pós-independência, onde a própria discussão da liberdade é proposta pelo viés irônico, na medida em que ela é construída pelo contraditório, pelo inusitado. A grande crítica à literatura caboverdiana é também a da estagnação, e nesse sentido, Germano Almeida vai a um dos elementos mais caros à tradição literária do arquipélago, o Movimento Claridoso, quando alerta para a passividade da sociedade, e a necessidade de escrever sobre ela: Aliás quem de futuro quiser escrever terá de aprender não só a observar como também a analisar, sob pena de nossa literatura nunca mais sair do purgatório claridoso de que tem vivido até agora. Por exemplo, já tentaste explicar a nossa presente desmotivação política, comparada com os tempos eufóricos da luta pela independência?8
caboverdianas, alicerces da identidade nacional e do nacionalismo, ao dessacralizar suas instituições, símbolos e representações. É a proposição de um novo tempo, um novo ver-se e um ver Cabo Verde com outros olhos: os críticos, os da ruptura com o velho, com o “cotidiano oficial”. Nessa perspectiva, o romancista faz devolver, já em O Meu Poeta, à personagem Dura, devolvendo, assim, aos caboverdeanos, o que ela diz sentir falta: “passados tantos anos sobre a independência, ainda ninguém se abalançou a tentar traduzir em termos literários esta vivência, esta nova realidade em romances, novelas ou simples contos. Até agora tem sido como se ainda estivéssemos na noite colonial”9. Considerando que dentro do ideário de Ponto & Vírgula, a literatura é pensada como o espaço de expressão da identidade cultural, e a ela cabe desvendar o momento e o elemento definidor dessa identidade, pode-se afirmar que o projeto de Almeida não se esgota em O Meu Poeta: tal qual desejado por Dura, ele prossegue em Eva (2006)10. O romance é construído sobre o diálogo entre dois homens – o narrador e Luís Henriques – a respeito da mulher que amam: Eva, uma portuguesa que emigra para Cabo Verde a fim de casar com o segundo, mas ele jamais foi ao seu encontro. É onde entra a habilidade de Germano Almeida na construção de um diálogo fascinante, um duelo de palavras construído com fluidez, inteligência e humor; o diálogo provocatório, de táticas, ataques e defesas, pequenas vitórias, humilhações e ciúmes. O livro chega ao leitor através de um narrador que conta – interferindo com a inserção de seu pensamento, imaginação e julgamento – o encontro com Luís Henriques, o grande rival, de cuja existência chegara a duvidar, e que, em contrapartida, ajudara a construir a imagem de Eva como confidente, a doce Eva, “o meu amor e o passar dos anos me levara cada vez mais a fantasiar de uma inocência quase mítica”. 11
O escritor combina o que se nega e o que se afirma, promovendo a desmitificação, e o faz resgatando a vida individual cotidiana, abrindo-a para uma perspectiva coletiva, revisando, criticamente, as identidades política e cultural
De tanto ouvir a Eva falar desse Luís Henriques, dei comigo a brincar com ela, primeiro apenas para a fazer calar-se ou mudar de assunto, depois num esforço consciente para a afastar da obsessão por
Germano Almeida, 1992. p. 163. Germano Almeida, 2006. 11 Idem. p. 13. 9
José Carlos Gomes dos Anjos, 2006. p. 231. 8 Germano Almeida, 1992. p. 188. 7
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um homem de quem o passar do tempo mais parecia aproximar. Propositadamente comecei a acusá-la de ter inventado e estar a falar de um fantasma como se de facto se tratasse ou tivesse sido uma pessoa viva e com história como toda a gente [...] porque de tanto ouvir dele eu pura e simplesmente tinha acabado de mitificar12.
e depois, ao vê-los adormecidos e indefesos, diz apenas que “Amanhã é mais um dia!”15. É admirável a construção desse D. Juan de saias, que se apresenta como total transgressão. Para Eva, D. Juan não é um alarve hedonista de apetites insaciáveis. Ele foi criado numa época em que a honra era o valor supremo, e só a desonra da mulher era troféu que interessava e lhe acrescentava a glória. Precisamente por isso, e no sentido mais próprio, D. Juan é um sedutor, e seduzir significa levar para o lado, isto é, desviar, corromper, desonrar, subornar, desafiar os deuses, a moral e os costumes. Para o sedutor, só as dificuldades de uma conquista são actrativo. Como um verdadeiro caçador, ele encontra e esgota o prazer no momento em que, depois de difícil perseguição, tem finalmente a presa na mira, imobilizada e vencida. Premir o gatilho é o primeiro momento do anticlímax16.
Achava, pois, a Eva capaz de comportamentos mais bizarros e insólitos, incluindo esse de inventar um homem e dotá-lo de vida e história, mesmo metêlo na sua vida de forma tão presente que muitas vezes cheguei a acreditar na anormalidade daquele estranho comportamento, certamente a merecer tratamento do foro psiquiátrico13.
Se o diálogo vai revelando suas vidas, ele também reproduz relatos e confissões feitos pelo marido traído, o juiz Zé Manel, típico caboverdiano de comportamento morabe, tímido, humilde e simples, com quem Eva casara porque estava cansada de uma espera vã, de três anos, por Luis Henriques. Ainda que sejam trazidos à narrativa os relatos de Eva, ela continua sendo apenas uma personagem referente, entretanto, entre seres ficcionais tão bem construídos, sua construção é perfeita. Vai se fazendo aos poucos, no leitor, a história dessa jovem portuguesa comunista, idealista, revolucionária, que queria mudar o mundo e que, agora, é uma empresária. O real e o irreal, a verdade e o inventado se mesclam, naquilo o que dizem os homens. A única verdade, entre eles, parece ser Eva, embora se possa pensar que ela também tenha inventando suas estórias, por que não? A verdade é que assim como ela se constrói para o leitor, ela se constrói para os dois homens, ela se desconstrói para o narrador. E são duas as razões: ainda que confidente, Luís Henriques sabe mais sobre ela do que o narrador, e a doce Eva, de inocência quase mística, se desvenda como a “aberração”, a mulher que escolhe amar vários homens desconhecidos, traduzindo-se nas “inúmeras mulheres de que sou feita, muitas adormecidas ou reprimidas, tornam possibilidades e muitas vezes realidades, e nelas eu vivo novas vidas.”14 Ama-os
Na verdade, Eva é todo ele um livro de transgressão. Diferentemente das obras anteriores, o espaço escolhido pelo autor, é Lisboa, o palco da ação do presente, mas é, também, a Cidade da Praia e a Lisboa do passado, do tempo de “causas por resolver”. Quer dizer, essa discussão de dimensão humana se estende para a discussão ideológica quando, indo ao encontro do desejo de Dura, em O Meu Poeta, Germano Almeida faz a leitura da independência de Cabo Verde. E o faz através do narrador, jornalista, que testemunhara “esse processo ao mesmo tempo exaltante e doloroso”17 e que está em Lisboa para entrevistar 12 caboverdianos, entre aqueles que haviam sido silenciados, ameaçados, reprimidos, taxados de reacionários, exilados, os “catchor de dôs pé”, vinte e oito anos depois. Aqueles “que durante toda a vida souberam e sentiram Cabo Verde como parte integrante de Portugal e, de repente se tinham visto desmamados e perdidos, porque abandonados pela Mãe Pátria e entregues a terceiros pelo próprio governo do país que era o deles”18.
Idem. p. 274. Idem. p. 185. 17 Germano Almeida, 2006. p. 15. 18 Idem. p. 21. 15
Idem. p. 33. 13 Idem. p. 40. 14 Germano Almeida, 2006. p. 163. 12
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O doutor Rocha era um deles, Fernando Macedo que cometeu o suicído ao ver “seu amado arquipélago entregue pelos portugueses aos novos usurpadores que chegavam da Guiné”, era outra vítima da intolerência dos radicais que queriam a independência, assim como o tenente, em Lisboa, a narrar a violência do ostracismo do banido. Trata-se, enfim, daqueles que deixaram ou foram obrigados a deixar o Arquipélago, naquela altura, por se sentirem mais portugueses, ou por medo do comunismo, ou porque não acreditavam na viabilidade de Cabo Verde, os que defendiam a simples adjacência em relação a Portugal, ou quando muito a autonomia. Pois esses caboverdianos – diferentemente do povo desenraizado, miserável, que fugiu para não morrer de fome nas ilhas, impelido aos ghetos para sobreviver à nostalgia – são assim categorizados: 1. Aqueles que fizeram a vida em Portugal e que se sentiam em casa tanto quanto em Cabo Verde, e, portanto, se sentiam inteiramente caboverdianos e inteiramente portugueses. (Não sendo, portanto, nenhum). 2. Aqueles desenraizados que, em terra hostil, não sabiam se ali permaneciam por vontade ou pela simples vergonha de retornar à pátria, que não conseguiam reconhecer sobre si próprios uma identidade em que se afirmar. 3. Aqueles que saíram de Cabo Verde ainda crianças, acompanhando os pais, e sonham, ainda, com a terra da infância por se sentirem estranhos na terra imposta. Se a afirmação da identidade está incorporada ao território, à imagem primeira do arquipélago sobrepõe-se uma outra, traçada apenas pela geografia humana e pelo exílio. Na prática discursiva de Germano Almeida, o pacto realista transforma as particularidades num caráter coletivo. As estórias individuais são pretexto para reflexões outras, e a reconstituição da verdade histórica busca reconstituir a identidade no território da não pertença. Encerra-se aqui, definitivamente, a tradicional Pasárgada caboverdiana, como se configurava a terra longe, cheia de promessa, diante de um mar caminho e obstáculo, um espaço determinante da temporalidade porque a terra longe é sempre futuro, e o futuro, melhor do que o presente. Diferentemente do espaço utópico, ela é hostil e condena ao abandono e ao estranhamento o presente e o futuro.
Estamos diante da grande questão contemporânea em que ao lado de novas comunidades e novas organizações, de que o primeiro grupo pode bem ser paradigma, se acentua não a diferença – sempre produtora – mas apenas se reconhece e mal ou preconceituosamente a diversidade, provocando a fragmentação das identidades, quando o que fala mais alto já não é sequer a “mitologia doméstica” a que alude Eduardo Lourenço, quando afirma, “ Quando se emigra toda a pátria emigra conosco”, transportam-se “como Enéias, os deuses lares para as novas terras.”19 Para Germano Almeida, a independência trouxe a impossibilidade da emigração: Enquanto «portugueses», os caboverdianos podiam emigrar para a Europa; depois da independência, não - passaram a ser africanos. Muitos pensaram: «Esta gente que trouxe a independência prejudicounos.» E é então que esse sentido de portugalidade, que nunca se tinha feito sentir porque não era preciso, veio ao de cima. É a minha opinião. Também por isso é grave o que se passa hoje entre nós, ao não se valorizar aspectos primordiais da nossa independência, não se desenvolvendo a autonomia económica, não tratando de dar à sociedade uma estrutura progressiva, fazendo-a mesmo regredir20.
Mais ainda, afirma o escritor que fala-se na globalização da economia que interessa a certos países, mas não a Cabo Verde que só tem gente para exportar. Temos gente a mais nas ilhas e não temos trabalho para eles, porém não nos querem como emigrantes. É neste sentido que um país como Cabo Verde, sem uma economia de estado forte, fica numa situação extremamente difícil21.
Entretanto, é preciso considerar que, se em sua terra natal os caboverdianos são um povo, agora, na antiga metrópole, não o são. Primeiro, porque são de fato uma minoria, e a minoria não é só numérica, a minoria corresponde a uma representação cultural Eduardo Lourenço, 1994. p. 142. Germano Almeida, 2003. Acessado em: 15 dez. 2006. 21 Idem. 19 20
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diversa da cultura majoritária. Mas, mais do que isso, estão desterritorializados e são discriminados. Observa José Carlos Venâncio (1998), em seu estudo sobre etnicidade e nacionalidade, que a afirmação cultural (onde se inclui literatura, música, artes em geral, enfim) da etnia europeizada conflui com “franjas” da sociedade de acolhimento, num processo de osmose cultural ou de interlocução. São as chamadas margens deslizantes do deslocamento cultural. É importante esta observação porque, de acordo com o grau de confluência sofrido, há a fragilização do sentimento de pertença. Ora, sendo a literatura resistência, resultado e reinterveniência no tempo histórico, pela sua força como matriz geradora e definidora do social, tornando-o aberto à ação, as narrativas que dão voz aos migrantes, colonizados ou exilados, ocupam espaço cada vez mais relevante, criando uma nova (e mais real) imagem discursiva na confluência entre a História e a Literatura, possibilitando que seja lida de um outro modo e que a identidade nacional (política e cultural) ganhe outra face, novos signos. Este é o ponto. E a inscrição dessa existência fronteiriça habita uma estranheza de enquadramento que “cria” a imagem discursiva no cruzamento entre História e Literatura. É, justamente, deste espaço da estranheza que Germano Almeida busca recuperar suas gentes, devolvendo-lhes uma outra possibilidade de caboverdianidade. Em Eva, a partir das entrevistas e profundamente tocado por elas, o narrador começa a sonhar com a realização de um livro que seja ao mesmo tempo uma homenagem àqueles que optaram por permanecer em Cabo Verde, assumindo os riscos e as incertezas de uma independência “problemática e na qual o mundo não acreditava”22, mas também uma espécie de desagravo àqueles que, pelo radicalismo de outros, tinham sido impedidos de se manifestar e de viver em paz na sua terra natal. É como, ao longo do diálogo e da relação estabelecida pela mulher com os dois homens, emerge o resgate crítico da história, ao lado da abertura de um espaço para a voz das minorias, na medida em que discute a situação dos exilados caboverdianos em Portugal. Nesse sentido, a História de Cabo Verde é a própria da memória do narrador, do que viveu, do que experenciou, do que soube, do que percebeu, do que imaginou, na medida em que esses
movimentos não se excluem e a grande revelação é a já apontada por Helder Macedo23, quando afirma: Sim, é claro, e se calhar a Literatura foi inventada para isso mesmo. Mas está a tornar-se também a da História, como História, refletindo todo um novo relativismo que virá, entre muitas outras razões, do colapso das hierarquias tradicionais, do deslocamento dos antigos centros do poder político, da globalização da economia, da emancipação das mulheres, tudo, em suma, acontecimentos que têm a ver com o nosso tempo e que, por isso, permitem ver o passado com um equivalente relativismo. As mulheres também passaram a ter direito à História,[...] e os povos colonizados, cuja história é oposta à história dos colonizadores; e as comunidades periféricas [...] A História deixou de ser apenas a História do poder político, ou da força militar, ou do controle econômico [...].
Pois esse livro sonhado se realiza em Eva e, neste processo, a questão da identidade está presente e, de forma especial, aliada à repensagem do pós-independência que, longe de significar um esforço meramente historiográfico de reconstituição documental do passado, significa aqui a abertura de possibilidades de discussão do processo histórico e da ideologia envolvida na sua representação oficial. O que é verdade transforma-se em ficção e a ficção se faz verdade. A seguir à independência, houve muitas pessoas que saíram de Cabo Verde ou porque não acreditavam num país independente, ou porque eram ou se sentiam de facto portugueses. Mas depois chegaram aqui e constataram que são caboverdianos”, diz o autor. “É injusto não reconhecermos que para muita gente a independência foi uma violência. Para essas pessoas que viveram sempre como portuguesas e que viam Cabo Verde como mais um pedacinho de Portugal, a independência representou de facto um corte, uma violência psicológica. Nós só faremos as pazes com a História no dia em que aceitarmos que essa gente também tem lugar na nossa sociedade”, afirma Germano Almeida24. 23
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Germano Almeida, 2006. p. 21.
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Helder Macedo, 1999. p. 92. Germano Almeida, 2006, p. 138.
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A TERRITORIALIDADE E A LUSOFONIA NA CRIAÇÃO LITERÁRIA DE AGOSTINHO NETO E ANTÓNIO JACINTO
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Luís Fernando da Rosa Marozo2 Yanna Karlla Gontijo3 RESUMO Agostinho Neto e António Jacinto, ambos angolanos, utilizaram-se da criação literária como instrumento de conscientização cultural. Seus poemas denunciam a opressão econômica, política e social que sofre a antiga colônia portuguesa e revelam a necessidade de desenvolvimento de uma consciência crítica. Essa consciência, entretanto, para Agostinho não se restringe apenas ao espaço Angolano, mas sim à África e às Américas, onde estão seus “irmãos de cor” e de sofrimento; enquanto António Jacinto busca o elemento de identificação nacional em relação à natureza física. Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo refletir sobre a ideia de angolanidade, na produção dos escritores Agostinho Neto e António Jacinto tendo o uso da língua portuguesa como instrumento de diferentes estratégias para a representação das identidades póscolonial, pois enquanto o primeiro utiliza o português sem o acréscimo de vocábulos regionais, o segundo procura inserir em sua poesia termos que remetam a dialetos locais. Palavras-chave: Angolonidade. Língua portuguesa. Agostinho Neto. António Jacinto. ABSTRACT Agostinho Neto and António Jacinto, both Angolans, used the literary creation as an awareness cultural instrument. Their poems expose the economic, political and social oppression suffered by the former Portuguese colony and unmask the requirement of building a critical conscience. This conscience, however, to Agostinho, doesn’t restrict itself just into Angolan space, but to Africa and America, where his “brother of color” and suffering are; while António Jacinto looks for the element of national identification regarding the physical nature. In this sense, the following article aims to reflect about the idea of Angolanity, in Agostinho Neto and António Jacinto’s production, which use the Portuguese language as a tool that has different strategies to represent the post-colonial identities, while the first uses the Portuguese without increasing regional words, the second seeks to insert into his poetry terms which refer local dialects. Keywords: Angolanity. Portuguese language. Agostinho Neto. António Jacinto.
Esse trabalho é resultado dos estudos do grupo de pesquisa “Discursos literários das nações africanas” coordenado pelo Prof. Dr. Luís Fernando da Rosa Marozo com a colaboração do Prof. Ms. Gustavo Henrique Rückert. 2 Professor Adjunto da Universidade Federal do Pampa. E-mail: luis.marozo@gmail.com. 3 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Literatura da Universidade Federal do Rio Grande. Email: yannakarlla1@hotmail.com. 1
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1 INTRODUÇÃO Stuart Hall (2001) propõe três concepções de identidades: a do sujeito iluminista, século XVII e XVIII; a do sujeito sociológico, século XIX; e a do sujeito pós-moderno, século XX e XXI. A noção nacionalista vinculada à perspectiva do século XIX está ligada a um sujeito sociológico e se contrapõe à Cosmovisão Iluminista, na qual o Homem era visto a partir de uma universalidade e impessoalidade, não na sua especificidade local. Essa perspectiva sociológica marca uma abordagem romântica na qual boa parte das literaturas de países europeus e dos estados pós-coloniais reforçou o que seria relativo, específico a cada povo, região e cultura. Na Europa, os países procuravam criar uma cultura local buscando na Idade Média índices culturais como a língua, o território, a religião, etc que possibilitassem instituir uma genealogia para as jovens nações. Entender a construção das identidades das colônias portuguesas na África é diferente de entender como ocorreu esse processo no Brasil, cuja independência se deu no século XIX. Ocorre que as independências das nações africanas são posteriores a “Revolução dos Cravos” e consequentemente remetem a um período histórico no qual podemos denominar de pós-moderno. Hall (2001) explica que no século XX as identidades possuem uma construção provisória e mais aberta, diferentemente da construção do sujeito do Iluminismo e do sujeito do Romantismo, cujas identidades apresentavamse de modo fixo, essencial ou permanente. Essas identidades entendidas como plena, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ainda defende que a identidade não é definida pelo gene, mas sim no interior da representação. Essa transitoriedade pode ser entendida a partir do reconhecimento, como defende Ortiz, de que toda identidade é uma construção imaginária, pois “não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades, construídas por diferentes grupos sociais, em diferentes momentos históricos.” (ORTIZ, 2006, p. 8). Diferentemente do Brasil que teve sua independência a partir de uma visão sociológica, na qual os escritores utilizaram a figura do índio como sendo o “verdadeiro” brasileiro; os autores africanos apresentam a conscientização da diferença, ou seja, do reconhecimento da heterogeneidade cultural,
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pois seu surgimento se dá numa tensão entre os paradigmas da metrópole e da colônia. Nesse âmbito, os estudos de Boaventura Souza Santos esclarecem uma perspectiva relevante para refletir sobre o modelo de colonização portuguesa. Santos (2002) defende a especificidade do modelo colonial português a partir de três hipóteses: a primeira, social, é que a hibridez e a ambiguidade entre colonizador e colonizado não é uma reivindicação pós-colonial, mas uma prática portuguesa do próprio processo colonizador; a segunda diferença, antropológica, está no fato de que o crítico pós-colonial reivindica o corpo como um espaço, assim o mulato seria o espaço intervalar. Como o modelo português se deu por assimilação, a questão racial, sob a forma da cor da pele, é trivial. A terceira diferença, econômica, é que Portugal é centro em relação às colônias, mas periférico em relação ao colonialismo britânico. O que esse teórico demostra é que a dupla ambivalência das representações (Portugal/ Colônias; Portugal/ Europa) afeta a identidade do colonizador e consequentemente a do colonizado. Entendemos, portanto, que tais características interferem nas representações estéticas e ideológicas. Nesse sentido, o presente trabalho busca perceber as identidades “imaginadas” na escrita de Agostinho Neto e Antonio Jacinto no processo de conscientização cultural e na construção da angolanidade, destacando a questão do uso da língua portuguesa em relação com o território. Essa ideia aponta para a diferença não apenas em relação ao continente africano, mas também em relação aos países de língua portuguesa, mais especificamente o caso de Angola. Segundo Jose Venâncio (1992, p. 23) “o processo de desalienação das elites urbanas na África lusófona tem fundamentalmente lugar em três centros urbanos: Mindelo, Lisboa e Luanda.” Essa diferença encontra respaldo no fato de que as consequências e as reações à colonização não aconteceram, igualmente, em todos os países colonizados. Desse modo, encontramos particularidades no discurso literário produzidos em cada um dos países que vivenciaram esse processo, bem como dentro do mesmo país. Focaremos, aqui, no grupo de Luanda representado por Antonio Jacinto e no grupo de Lisboa representado por Agostinho Neto. Venâncio em relação a esses grupos, diz que
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Enquanto o grupo de Lisboa, formado por intelectuais oriundos doutras colónias, para além de Angola (exceptuando Cabo Verde), se sentirá bastante ligado ao panafricanismo, por um lado, e ao movimento Negritude, com sede em Paris, pelo outro, o grupo de Luanda, de motivações políticas mais concretas, circunscrito ao espaço político de Angola, sentir-se-á mais ligado ao modernismo brasileiro e porventura [via Castro Soromenho?)] ao neo-realismo português (VENÂNCIO, 1992, p. 19).
Para exemplificar esses traços na construção da angolanidade, utilizaremos os aspectos linguísticos e os aspectos territoriais em poemas de António Jacinto e de Agostinho Neto, ambos situados no espaço Angolano. Por angolanidade entendemos conceito que apresenta paridade com o de cabo-verdianidade, entendo o resultado da maneira muito específica de os intelectuais angolanos, a começar pelos «Novos Intelectuais»…, de os dirigentes políticos, apreenderem o espaço geopolítico herdado do colonialismo e a consequente predisposição de o quererem transformar em espaço nacional por meio da sua (des)alienação em relação às sociedades periféricas, às sociedades tradicionais (VENÂNCIO, 1992, p. 21).
Existe um elo entre os dois poetas, pois ambos lutaram pela independência de Angola e ocuparam cargos representativos na nova nação. António Jacinto, cujo nome completo é António Jacinto do Amaral Martins, nasceu em Luanda em 1924 e faleceu em 1991. Destacou-se como poeta e contista da geração Mensagem e foi preso no campo de concentração do Tarrafal, Cabo Verde, onde cumpriu pena de 1960 a 1972, em consequência de seus envolvimentos políticos. Neste ano, foi transferido para Lisboa, em regime de liberdade condicional. Fugiu em 1973 e foi integrar a luta pela independência de Angola, participando das frentes militantes do MPLA. Após a independência foi Ministro da Educação e Secretário de Estado da Cultura de Angola, co-fundador da União de Escritores Angolanos, membro do Movimento de Novos Intelectuais de Angola. António Agostinho Neto, por sua vez, nasceu em Icola e Bengo em 1922 e faleceu em Moscovo em 1979. Estudou medicina em Portugal e fez parte da geração de estudantes africanos que viria a
desempenhar um papel decisivo na independência dos seus países naquela que ficou designada como a Guerra Colonial Portuguesa. Em Lisboa, Agostinho Neto, de parceria com Amilcar Cabral, Mário de Andrade, Marcelino dos Santos e Francisco José Tenreiro fundam, clandestinamente, o Centro de estudos Africanos, que tinham finalidades culturais e políticas orientadas para a afirmação da nacionalidade africana. Foi preso pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a polícia política do regime Salazarista então vigente em Portugal, e deportado para o Tarrafal, sendo-lhe depois fixada residência em Portugal, de onde fugiu para o exílio. Assumiu a direção do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), do qual já era presidente honorário desde 1962; foi o primeiro presidente da nova república e membro fundador da União dos Escritores Angolanos, criada em 10 de Dezembro de 1975. Foi o primeiro Reitor da Universidade Agostinho Neto e Presidente da Assembleia Geral da União dos Escritores Angolanos, cargo que desempenhou até a data do seu falecimento. Agostinho Neto e António Jacinto utilizaramse da criação literária como instrumento de conscientização cultural. Suas produções mostram uma forma de reação contra a opressão econômica, política e social, ao mesmo tempo em que revela a necessidade de desenvolvimento de uma consciência. Essa consciência, entretanto, para Agostinho não se restringe apenas ao espaço Angolano, mas sim à África e às Américas, onde estão seus “irmãos de cor”; enquanto António Jacinto busca o elemento de identificação nacional em relação à natureza física. 2 AGOSTINHO NETO Agostinho Neto, no poema “Voz do Sangue” deixa claro a identificação pela cor da pele e não pela nacionalidade: “Ó negro de África/ negros de todo o mundo”. Aqui, a expressão “de todo o mundo” nos direciona a um processo identitário que transcende o conceito de território material. Haesbert (2005, p. 1) explica que “desde a origem, o território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão próximo de terra-territorium quanto de térreo-territor (terroraterrorizar).[...]”. Portanto, território refere-se tanto ao espaço político e nacional quanto ao espaço cultural que rompe com as limitações físicas. 41
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O mesmo sentido está presente no poema “Aspiração”, no qual o elo está no sentimento de libertação, independente do espaço territorial em que “as pessoas” se encontrem. “Ainda o meu canto dolente/e a minha tristeza/ no Congo, na Geórgia, no Amazonas”. Essa dispersão também é demonstrada em “Voz do Sangue”: Ó negro esfarrapado do Harlem/ ó dançarino de Chicago /ó negro servidor do South. A partir desses poemas é possível perceber que Agostinho Neto trata de “múltiplos territórios”, no conceito defendido por Haesbert (2005), ou seja, o poeta apresenta uma multiplicidade de espaços físicos (sentido material) distintos, como os destacados em negrito, que partilham de uma mesma situação social (sentido simbólico). Assim, a tristeza e o canto dolente do eu-lírico está em sintonia com os sujeitos de outras partes do mundo que vivem a situação periférica. Em “Noite” o eu-lírico não especifica o espaço angolano, mas um espaço periférico que pode ser encontrado em qualquer país cujo desenvolvimento social é precário: Eu Vivo Nos bairros escuros do mundo Sem luz nem vida
A referência são os bairros do mundo onde as pessoas não vivem, sobrevivem. O título do poema reforça a ideia, pois a noite é escura em todos os lugares, uma relação direta com a cor da pele. O poema denúncia a situação marginalizada do negro no mundo como fica evidente no último verso através do advérbio “também” que expressa a condição de equivalência ou similitude entre a cor da pele, a situação social e o momento do dia: “Também a noite é escura”. Agostinho Neto tem essa postura, pois está ligado ao grupo de Lisboa, formado por intelectuais oriundos de outras colónias, além de Angola, e nessa medida sentir-se-á ligado ao pan-africanismo, por um lado, e ao movimento Negritude, com sede em Paris. Essa característica fica latente em “Bamako” cuja epígrafe esclarece: “Depois de uma conferência pan-africana em Bamako”. Datado de 1954, a anáfora “Bamako!”, repetida no início de cinco das sete estrofes do poema, refere-se a capital do Mali, onde houve a conferência na qual muitos chefes de Estado de países asiáticos e africanos que haviam 42
conquistado recentemente sua independência da Europa decidiram se reunir para pressionar o mundo pelo fim da colonização de seus vizinhos de continente. Esse evento é muito representativo porque marca o combate que os africanos travaram para sair da colonização e da escravidão. No poema, após o substantivo próprio “Bamako”, há adverbio de lugar “ali” que aponta para um espaço cosmogônico onde se deu o início de uma mudança: Bamako! ali nasce a vida e cresce e desenvolve em nós fogueiras impacientes de bondade Bamako! ali estão nossos braços ali soam nossas vozes ali o brilho de esperança dos nossos olhos se transforma imenso numa força irrepreensível da amizade secas as lágrimas choradas nos séculos na África escrava de outros dias (...) Bamako! fruto vivo da África de futuro germinado nas artérias vivas de África (...) Bamako! ali venceremos a morte e o futuro cresce – cresce em nós na força irresistível do natural e da vida connosco viva em Bamako.
A mensagem do poema remete à necessidade de continuar a luta para que aquele momento não se interrompa, pois os esforços de igualdade e solidariedade devem refundar a ideia de união para construir outro mundo. Nesse sentido, para Agostinho Neto não importa o espaço territorial, no sentido material do termo, pois para o eulírico o importante é a união de todos aqueles que compartilham do mesmo sofrimento de aprisionamento cultural. Em “Aspiração” quando o eu- lírico declara: “Ainda o meu canto dolente/e a minha tristeza/ no Congo, na Geórgia, no Amazonas”; o advérbio “ainda” reforça o caráter de esperança expresso pelo poema. O africano encontra-se neste poema
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disperso em todo mundo, não apenas em Angola ou no continente africano. A angústia e a tentativa de se fazer ouvir por todos são reforçadas pela sinestesia tanto visual como auditiva: E sobre os meus cantos os meus sonhos os meus olhos os meus gritos sobre o meu mundo isolado o tempo parado
Esse caráter “universal”, cuja identificação se dá marcadamente pela cor da pele e pela condição social, se estende ao corpo linguístico, pois Agostinho Neto se apropria da língua do “outro” para manifestar a condição periférica do negro em relação às condições de vida sub-humana. 3 ANTÓNIO JACINTO António Jacinto terá uma atitude diferente em relação à linguagem, pois sua poesia metaforiza em si a hibridez da configuração colonial portuguesa. Em “Alienação” explicita o sentimento de aprisionamento da expressão diante do colonizador. É possível observar um cenário de instabilidade e indecisão, no qual o eu-lírico não possui os meio de propagar seus sentimentos: Eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema o grande poema que sinto já circular em mim
É possível apreender a estratégia perversamente instituída pelo colonizador que processou e instituiu no interior do instrumento comunicativo seus valores e sua cultura. O sentimento interior não se traduz em poema, pois a passagem do interior para o exterior sofrerá perdas. Entretanto, o eu-lírico expressa sua denuncia apropriando do português, porém com a inserção de palavras que remetem aos dialetos locais, tais como “tué tué tué trr arrimbuim puim puim”, “monangambééé”, o que evidencia uma estratégia de transformação nativizante para nomear seu espaço, indício de reação contra a hegemonia do colonizador que buscou ”civilizar” as colônias, primeiramente, por meio da linguagem. Os termos que pertencem no dialeto local aparecem sempre entre aspas, o que pode nos remeter a uma interpretação de que não é algo totalmente aceito,
com significado relativo e restrito a um espaço territorial físico. Neste sentido, existe uma tentativa de conciliar a língua do outro ao meu espaço para que seja possível a tradução e exteriorização do sentimento interior: “o meu poema sou eu-branco/ montado em mim-preto”, ou seja, “o desvio ao padrão linguístico do português como necessidade de dar expressão a um mundo semântico diferente, a uma dimensão cultural angolana.” (VENÂNCIO, 1992, p. 30). Em “Carta dum contratado” a alienação cultural que direciona os povos colonizados ou recém-independentes a uma dependência política e econômica retorna como denúncia. O eu-lírico demonstra, poeticamente, os problemas que essa alienação causa ao sujeito, pois como diz: Eu queria escrever-te uma carta... Mas, ah, meu amor, eu não sei compreender por que é, por que é, por que é, meu bem que tu não sabes ler e eu - Oh! Desespero - não sei escrever também!
Os versos acima apontam para a importância da escrita para construção de uma identidade. Apesar de o poema tratar da impossibilidade do eu-lírico de comunicar-se com sua amada pelo motivo de ambos não dominarem o código escrito, o que fica implícito é o desespero desse sujeito que procura exteriorizar seus sentimentos, mas não conseguirá preencher a distância que os separa porque não aprendeu a ler nem a escrever. O poema sugere que o eu-lírico está oralizando seus sentimentos e que alguém registrou essa experiência potencialmente simbólica. Ana Mafalda Leite (2003) defende que a avaliação e o valor da literatura pós-colonial tem que ser diferente das apreciações que, secularmente, evocam a pertença a uma tradição escrita. Ela argumenta que é necessário reconhecer traços de modelos que são específicos do que chamará de oratura, ou seja, literaturas que não possuíam o código escrito e se incorporarão à escrita portuguesa. A intersecção entre a tradição escrita e uma tradição oral produzirá uma transculturação, uma identidade híbrida. Nesse sentido, “Carta dum contratado” não remete somente a um problema individual, mas representa essa identidade transcultural no qual o sentimento expressado oralmente é reconhecido como poético por alguém que domina o código escrito. 43
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Em relação à representação da nação o poema sugere a impossibilidade dos contratados de escrever a sua própria história, cabendo essa empresa aos que dominam o código escrito. Os escritores terão então a função de traduzir esse sentimento de desespero, pela ausência de voz, para aqueles que não conhecem tal realidade. O poema trata da questão da linguagem como reivindicação formal e resultante não só da pertença a uma tradição cultural, parcialmente silenciada, como também da necessidade de criação de estratégias de apropriação do conhecimento do outro para expressar meu mundo. Assim, é necessário ao mesmo tempo reconhecer, mas também subverter a linguagem do colonizador na busca por uma identidade mais especificamente angolana. Tal assertiva se comprova, pois António Jacinto restringe-se ao espaço físico da África, mais especificamente, a Angola. Em “Carta dum contratado” o território não é mencionado, mas é possível delimitá-lo pelos elementos naturais descritos. Encontramos animais, frutos e vegetação que mostram a diversidade da flora e da fauna angolana: “tacula”, “onça”, “jambos”, “capôpa”, “Kilombo”, “hienas”, “dilôa”, “maboque, “macongue”. Essa atitude aproxima António Jacinto dos modernistas brasileiros. Oswald de Andrade, por exemplo, propõe em seu “Manifesto Antropofágico” e no livro “Pau-Brasil” uma literatura vinculada à realidade brasileira, a partir de uma redescoberta do Brasil. Em relação à linguagem procura abolir os arcaísmos e a erudição, criar neologismos e inserir a contribuição milionária de todos os “erros” da fala coloquial. Oswald utiliza o modo como falamos e o nosso espaço. O angolano também busca o seu espaço e a influência da oralidade para criar sua poesia. Em “Carta dum contratado” a “pessoa” amada, a qual o eu-lírico tenta escrever, pode em alguns fragmentos ser compreendida como metáfora da própria terra (território). Como por exemplo: Eu queria escrever-te uma carta amor, uma carta que dissesse deste anseio de te ver deste receio de te perder deste mais que bem querer que sinto deste mal indefinido que me persegue desta saudade a que vivo todo entregue...
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Neste fragmento o eu-lírico expressa a distância do ser amado, do anseio de vê-lo, do medo de perdê-lo. Esse sentimento também pode ser estendido a Angola. Em “O rio da nossa terra” António Jacinto trata do Kiaposse, rio que passa na região de Golungo Alto, município da província do Cuanza Norte, onde está localizada uma importante reserva florestal de Angola. Apesar de sua pequenez, o poeta ressalta seu valor sentimental: É o maior rio dos rios pequeninosos há por lá outros no grande maiores mas é o maior na grandeza dos sentimentos que o sentimento tem de invioladas infâncias
Jacinto parte de sua terra para então pensar o mundo, movimento oposto ao de Agostinho Neto. No mesmo poema isso fica evidente quando o eulirico explica: Kiaposse de doce alumbramentação terna ternura tem dentro o inteiro-vivo do Golungo natural natureza de ser rio na vida que a vida devém rio, vida e mistério, nasce no Golungo na sua modéstia disfarça-se noutros para chegar ao mar e chega e vai longe, tão longe que esfuma em nenhum a noção de longe e quando chega à Europa ou à América coitados! chamam-lhe Oceano Atlântico Elezinho, inteligente, sorri do mundo e corre todamente lento indiferente no Golungo.
O modo como o eu-lírico expressa o sentimento de afeto remete a enunciação de uma textualidade oral cujas palavras são adaptadas para descrever a intensa emoção como em “doce alumbramentação”. A hibridação surge com a recriação lexical e a recombinação linguística que resulta e ritmos alternantes, ritmos esses passíveis também de ser visto pela variação da extensão dos versos. O termo “Elezinho” reforça ainda mais o paradoxo grande/ pequeno, pois sua grandiosidade está relacionada ao elemento sentimental e não ao físico. António Jacinto, portanto, ressalta as características da sua terra natal, de seu povo
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e de seus costumes pelo olhar de quem a habita. Existe uma relação direta do território na construção da identidade, ou seja, “perder seu território é desaparecer” (HAESBAERT, 2005, p. 4). Assim, é possível percebermos o conceito de “multiterritoraliedade”, ou seja, o eu-lírico enuncia de e sobre um espaço físico (Angola), porém pensando na heterogeneidade territorial, no sentido simbólico, que perpassa a construção da nação. A adequação da oralidade em relação à escrita pode ser entendida como reconhecimento desse código para expressar a identidade, bem como denuncia da situação do analfabetismo para determinadas classes sociais, uma das consequências impostas pelo processo de colonização. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho procurou apresentar dois modos de apropriação da língua para executar diferentes registros de enunciação textual da cultura angolana. A análise desses poetas nos faz refletir sobre os diferentes conceitos que o termo território pode nos direcionar. Essa reflexão se torna ainda mais rica quando a relacionamos com a ideia de Haesbaert (2005) de que Numa visão mais tradicional, o lugar, como o território e o próprio espaço, era associado à homogeneidade, ao imobilismo e à reação, frente à multiplicidade, ao movimento e ao progresso ligados ao “tempo”. Uma consciência global do lugar, defendida por Massey, embora não possa ser vista como boa ou má em si mesma, é a evidência de que hoje não temos mais espaços fechados e identidades homogêneas e “autênticas”. Nossas vidas estão impregnadas com influências provenientes de inúmeros outros espaços e escalas. A própria “singularidade” dos lugares (e dos territórios) advém sobretudo de uma específica combinação de influências diversas, que podem ser provenientes das mais diversas partes do mundo. (HAESBAERT, 2005, p. 17).
Essa multiplicidade de construção e/ou apropriação do território pode ser percebida nos poemas apresentados. A visão de António Jacinto e de Agostinho Neto apresenta um descentramento do conhecimento preestabelecido pelo poder hegemônico, o que nos permite olharmos para suas produções sem a dicotomia centro/periferia apesar de a relação estar presente em suas poesias.
Agostinho Neto, relacionado com o grupo de Lisboa, aproxima-se de intelectuais oriundos de outras colónias, para além de Angola e sua poesia demonstrará um universalismo ligado ao pan-africanismo e ao movimento Negritude. Sua preocupação é as condições sociais dos negros e, apesar do uso da língua proveniente do colonizador, utiliza-a de maneira crítica para reivindicar direitos e denunciar as desigualdades. Em António Jacinto, relacionado ao grupo de Luanda, a enunciação faz-se através de uma geologia que atinge o léxico e a sintaxe e resulta no ritmo da textualidade oral. Sua poesia se alimenta do modernismo brasileiro e possui motivações políticas circunscritas ao espaço de Angola. Ambos os poetas colaboram para a representação da angolonidade com influências provenientes de inúmeros outros espaços e escalas. Isso fica evidente também em relação ao uso da língua portuguesa, pois enquanto Agostinho Neto a utiliza sem o acréscimo de vocábulos regionais, António Jacinto procura inserir em sua poesia termos que remetam a dialetos locais.
REFERÊNCIAS BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila; Eliana Lourenço de Lima Reis; Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. HAESBAERT, Rogério. Da desterritorializaçao à multiterritorialidade. 2005. HALL, Stuart. A identidade cultural na pósmodernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. LEITE, Ana Mafalda. Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais. Lisboa: Colibri, 2003. VENÂNCIO, José Carlos. Literatura e poder na África lusófona. Lisboa: Ministério da Educação. Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992. 45
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UMA REFLEXÃO SOBRE O CONTO “NAS ÁGUAS DO TEMPO” DE MIA COUTO
Neiva Kampff Garcia1 RESUMO Ao elaborar narrativas que imbricam água e tempo, Mia Couto oportuniza a percepção de múltiplos movimentos que aproximam e miscigenam oralidade e escrita. Ana Mafalda Leite, ao falar da contística de Mia, afirma que ele “manifesta uma conflitualidade dialógica na tematização das tradições e seu confronto com a modernidade” (LEITE, 2003, p. 45). O próprio escritor diz que “não existem fórmulas feitas para imaginar e escrever um conto” (COUTO, 2005, p. 47). Segundo ele, ouvir histórias, observar as pessoas a sua volta e captar detalhes do cotidiano são os recursos que utiliza no seu processo de criação literária, os quais combina com os elementos que construirá e que intentam despertar a compreensão e a emoção dos leitores. Verificamos que tais considerações são pertinentes ao conto “Nas Águas do Tempo”, publicado em 1994, no livro Estórias abensonhadas. Buscamos reconhecer a presença de simbologias na tessitura do enredo e na constituição das personagens, especialmente na água e no tempo, considerando sua importância temática e as linguagens que os identificam. Palavras-chave: Mia Couto. Simbologia. Tempo. Água. ABSTRACT When create narratives that imbricate water and time, Mia Couto allows the perception of multiples movements that approximate and mix orality and writing. Ana Mafalda Leite, when analyses the Mia’s short stories, affirms that he “manifesta uma conflitualidade dialógica na tematização das tradições e seu confronto com a modernidade” (LEITE, 2003, p. 45)”. The writer himself says that “não existem fórmulas feitas para imaginar e escrever um conto” (COUTO, 2005, p. 47)”. Accordingly him, listen stories, watch the people around and capture details of daily life are the resources used in the process of literary creation, which combines the elements that build and attempt to awake emotion and understanding of readers. We verified that these considerations are pertinent to the short story “Nas Aguas do Tempo”, published in 1994, in the book “Estórias Abeçonhadas”. We tried to recognize the presence of symbology in the writing of the plot and the characters in the constitution, especially in water and time considering its thematic importance and languages that identify them. Keywords: Mia Couto. Symbology. Time. Water.
1 Doutoranda, bolsista CNPq, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul na área de Estudos de Literatura, especialidade Literaturas Brasileira, Portuguesa e Luso-Africanas, tendo Especialização em Literatura Brasileira pela mesma universidade. E-mail: nkg316@gmail.com.
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o que é utópico, o que é sonho. (COUTO, 2009c)2.
Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem (COUTO, 2003, p. 14).
1 INTRODUÇÃO O conto “Nas Águas do Tempo”, que abre o livro Estórias abensonhadas do moçambicano Mia Couto, publicado em 1994, situa um percurso temático recorrente na produção desse autor: a relação simbólica entre o tempo e a água, e que, neste caso específico, dialoga com a morte. Cabenos salientar que é bastante significativa a posição inicial deste conto, dentro da narrativa pois, ao percorrermos a obra, percebemos o predomínio desses elementos simbólicos aliados a outros, com os quais eles estabelecem um diálogo permanente. Mia Couto conta suas histórias instituindo narradores locais que empreendem viagens ao passado através da tradição, enquanto fornece a outros a voz do futuro e, a outros ainda, delega um percurso identitário tanto no aspecto individual quanto no coletivo. Em nosso olhar, o primeiro conto do livro propicia a leitura panorâmica da obra, sem se ater a elementos específicos, como a denominação de personagens e localidades geográficas, mas realiza uma espécie de convite a uma percepção de significados mais do que a uma compreensão de palavras. A estratégia de construção literária de Mia Couto é o de assumir o papel de um contador de estórias, como a de um griô atualizado pela escritura, que ouve, reflete e (re)conta o imaginário (passado e presente) do seu universo cultural. As suas diversas linguagens e os diálogos que promove entre ficção e realidade, retomando simbologias e espaços mítico-temporais, constituem a arquitetura narrativa de nosso recorte. Como ele próprio afirma: Acho que não existe simplesmente ficção. Todo texto sempre tem essa relação de fronteira mal desenhada entre o que é real e o que é ficcional. O escritor brinca com isso, e ele próprio não sabe o que é. Fica confuso, mas, pelo menos, é verdadeiro nessa declaração de que não está dizendo algo inteiramente verdadeiro. Estou convidando as pessoas a brincarem nesse terreiro em que não se sabe o que é real,
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2 DESENVOLVIMENTO Em “Nas águas do tempo”, a palavra é situada como complementar pela personagem do avô, que faz do silêncio, do ato de meditar e da comunicação gestual os veículos fundamentais para a transmissão de sua religiosidade e sabedoria. Sobre isso, fala-nos o narrador iniciando a história: Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado. – Mas vocês vão aonde? Era a aflição de minha mãe. O velho sorria. Os dentes nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem. – Voltamos antes de um agorinha, respondia (COUTO, 2003, p. 13).
Ao apresentar a personagem, o narrador parece sugerir que acompanhemos com atenção redobrada o que nos dirá o velho avô, buscando em outras linguagens as suas falas. O papel do silêncio está situado como a reflexão interior, a busca pelo elemento transcendental das crenças ancestrais, que nos falarão, a seguir, da comunicação entre homens e espíritos: Naquelas inquietas calmarias, sobre as águas nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que preponderávamos. Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no suave embalo. O avô calado, espiava as longínquas margens. Tudo em volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas da própria luz, fosse ali a manhã eternamente ensonada. Ficávamos assim,
Entrevista com o autor por Natalia da Luz. G1-Globo. com, Editoria Pop & Arte. 26. Jul. 2009. Disponível em <http://g1.globo.com/Noticias/PopArte /0,,MUL12079467084,00.html>. Acesso em: 10 mai 2010. 2
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como em reza, tão quietos que parecíamos perfeitos. De repente, meu avô se erguia no concho. Com o balanço quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado, acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com decisão. A quem acenava ele? Talvez era a ninguém. Nunca, nem por instante, vislumbrei por ali alma deste ou de outro mundo. Mas o avô acenava seu pano. – Você não vê lá na margem? Por detrás do cacimbo? Eu não via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos. – Não é lá. É láááá. Não vê o pano branco, a dançar-se? Para mim era a mais completa neblina e os receáveis aléns, onde o horizonte se perde. Meu velho, depois, perdia a miragem e se recolhia, encolhido no seu silêncio. E regressávamos, viajando sem companhia de palavra (COUTO, 2003, p. 14).
O narrador, também personagem, leva o leitor ao tempo da sua infância, relatando a história da morte do avô. Os personagens não são nomeados e atuam diretamente na representação de papéis, o do neto, da mãe e do avô, retratando diferentes gerações imbricadas pela vertente da religiosidade. O diálogo entre eles se funda na compreensão das diferentes sabedorias, o que é uma das características de muitas culturas do continente africano, onde os velhos exprimem um saber, que soma à vida presente o conhecimento ancestral, significando a permanência da história, da religiosidade e da continuidade cultural. Os jovens são os receptáculos desse legado e os conectores dele com o futuro. Intermediando tal segmentação está o papel da mãe que, no conto, busca presentificar o que sabe adaptando ao viver cotidiano apenas os conhecimentos utilitários. Tal relação nos parece identificável no seguinte trecho: Em casa, minha mãe nos recebia com azedura. E muito me proibia, nos próximos futuros. Não queria que fôssemos para o lago, temia as ameaças que ali moravam. Primeiro, se zangava com o avô, desconfiando dos seus não-propósitos. Mas depois, já amolecida pela nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira:
– Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda ganhávamos vantagem de uma boa sorte... O namwetxo moha era o fantasma que surgia à noite, feito só de metades: um olho, uma perna, um braço. Nós éramos miúdos e saíamos, aventurosos, procurando o moha. Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu avô nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude, se tinha entrevisto com tal semifulano. Invenção dele, avisava minha mãe. Mas a nós, miudagens, nem nos passava desejo de duvidar (COUTO, 2003, p. 15).
O fantasma de que nos fala o narrador, desacreditado pela razão, temido pela curiosidade e reavivado pela conveniência, traz consigo a divisão dos mundos, tão reafirmada na literatura de Mia Couto, e que aponta para o encontro do moderno com o tradicional, onde o diálogo se efetiva numa fronteira muito tênue, a da tradição. Se as crenças ancestrais são difundidas pela voz dos mais velhos, é nos ouvidos dos mais jovens que elas sedimentam a sua continuidade. É uma noção de continuidade do que conhecemos como tempo e que pode assumir diferentes sentidos em diferentes culturas. Encontramos, na teoria literária atual, noções de fronteiras instáveis, líquidas, porosas, invisíveis, e tantas outras designações – da chamada pósmodernidade –, que nos fornecem a ideia de um entremear, de um imbricamento entre culturas, crenças, etnias, povos, países. No conto em análise, há uma instância exemplar disso, revestida de um sentido recorrente na obra desse autor, que fala do encontro de tempos diversos num mesmo povo, cultura, etnia ou país. A origem está no homem que, concomitantemente, procura a sua identidade e busca se localizar enquanto coletividade, objetivando uma situação de permanência. O africanista Patrick Chabal (1994, p. 23) conceitua essa nova cultura como “fusão transformativa do tradicional e do moderno” e é, nessa formulação, que inserimos a obra de Mia Couto, desde seus poemas, crônicas, contos, romances, peças teatrais e os textos que ele denomina de intervenções, e que trazem a posição de um ficcionista, de um cidadão moçambicano e de um homem contemporâneo. A possibilidade de agregar passado e futuro, no presente da história – da literatura/da nação –, é a oportunidade maior 49
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das literaturas africanas, enquanto gestadas no colonialismo histórico e (re)nascidas no período a que Homi Bhabha (2003, p. 20) chama de “deslizamento do prefixo pós”. Pleiteamos que Mia Couto faz uso dessa oportunidade e se registra como um inequívoco representante de uma literatura moçambicana, considerando-a (re)nascida no período colonial – tomamos por medida a formalização da ideia de nação – e consolidada na contemporaneidade – esta no sentido de redefinição dos espaços culturais. Sobre tal atualidade, seguimos Bhabha quando ele propõe que: O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um “entrelugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passadopresente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver (BHABHA, 2003, p. 27).
No conto “Nas Águas do Tempo”, o passado, o presente e o futuro formam um movimento contínuo e circular, não havendo uma linha temporal, como conhecemos nas culturas brancas europeias. A morte nos parece o parâmetro ideal para esta leitura. A história que nos conta o narrador é a da passagem do velho avô do mundo dos vivos para o dos mortos, efetivada na travessia de uma margem do lago para outra. Esse acontecimento se dá através de uma neblina, num andar sobre um pântano, sinalizada pelo desfraldar de panos brancos e vermelhos. A presença do simbolismo é o fundamento de cada elemento da referida travessia, e a substituição da racionalidade da palavra pelo entendimento de sinais e silêncios parece demonstrar que conhecer e crer são basilares em culturas que se manifestam precipuamente através da oralidade, como no caso da moçambicana e, segundo apreendemos, em uma grande parcela da africana. A oralidade favorece a transmissão do simbolismo enquanto se alia a outras linguagens próprias desse conteúdo. Ao percorrer o diálogo entre a memória sensorial e a memória invisível 50
– no sentido de inconsciente – do indivíduo, a palavra falada se revigora nos elementos desse percurso. Citamos, como exemplo, um trecho do conto em que a personagem do avô fala ao neto sobre o comportamento humano, analisando-o na pluralidade e na singularidade de sua cultura, assumindo a sua sabedoria como função transmissora: Ao amarrar o barco, o velho me pediu: – Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém, ouviu? Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos. – Me entende? (COUTO, 2003, p. 16).
A religiosidade é um elemento fundamental para compreendermos o percurso do homem na história, tanto no olhar para si mesmo quanto no situar-se culturalmente. Nação, povo, etnia ou qualquer designação que dermos ao objeto de qualquer revisitar histórico, aos mais diversos agrupamentos humanos, levar-nos-á sempre ao estudo de suas crenças e destas a religiosa é altamente esclarecedora. Na cultura moçambicana, onde a formação nacional passa por uma origem política colonial, o encontro de diferenças é basilar na compreensão dessa sociedade. Considerando que, no período de formação política do país, houve uma tentativa de apagamento de elementos culturais nativos como parte do processo colonial, e a religião sofreu forte interferência do catolicismo português, compreendemos que a busca das tradições, presentes no imaginário coletivo, é parte importante da formação, ou re-formulação dessa sociedade. Essa busca é, em nossa opinião, uma das propostas literárias de Mia Couto, ao estabelecer as temáticas de sua obra e ao assumir o papel de contador das
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histórias do seu povo, revestindo a palavra da sua oralidade primordial. No conto em análise, há a localização formal dos espaços geográficos, os personagens se deslocam por cenários da natureza que atua como uma forma de linguagem pelo viés simbólico. O rio, o lago e o pântano por onde circulam personagens, simbologias, crenças e onde ocorrem os fatos, são locais no plano real – localizáveis, temporal e geograficamente, pelo senso comum – e no imaginário, em que cada ouvinte-leitor pode estabelecer sentidos próprios. Essa ambientação é o fio condutor dos acontecimentos porque abarca dois níveis da narrativa refletindo um imaginário imemorial aqui localizado, traduzindo a busca do homem dentro e fora de si mesmo, o que é uma característica universal. O plano real tem a função de fornecer ao consciente do homem uma imagem, que, por sua vez, desperta seus outros níveis de conhecimento, os quais podem determinar uma formalização de imagens diferenciadas diante do mesmo objeto. Se o lago é, para a comunidade de que fala o conto, um local misterioso – onde ocorrem os contatos entre dimensões diferentes –, para outro grupo, poderá ser simplesmente um local geográfico onde haverá, ou não, o alimento na primavera. Encontramos, em Gaston Bachelard (2000), a ideia de que a memória do passado se presencializa no espaço físico. Diz ele: É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas permanências. O inconsciente permanece nos locais. As lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto mais bem espacializadas (BACHELARD, 2000, p. 29).
O lago é, sob esse ponto de vista, um elemento primordial de sustentação da memória individual e da coletiva, tanto para ativar o registro memorial do passado, quanto para gerar o do futuro. Propomos, em nossa reflexão, uma interpenetração entre o real/o físico, a imaginação e a oralidade, como elementos de fixação da história, da religiosidade e da cultura que fundamentalmente gerariam a memória futura. Tal situação se delineia, em nosso entendimento, nas idas ao lago das personagens do velho avô e do neto.
O pensamento simbólico está unido intimamente ao ser humano de tal modo que está manifesto antes da própria comunicação entre os homens. A compreensão do mundo real é um desafio a partir dos elementos simbólicos no homem, que busca explicar o que sente e pressente, o que intui antes de racionalizar. Os dois trechos que reproduzimos, a seguir, exemplificam nossa explanação, ao situarem o percurso das personagens pelo espaço físico que espelha o imaginário, enquanto lhes permite a reflexão sobre essa sobreposição de significados: Depois viajávamos até ao grande lago onde nosso pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventava de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre água e terra (COUTO, 2003, p. 14). Certa vez, no lago proibido, eu e vovô aguardávamos o habitual surgimento dos ditos panos. Estávamos na margem onde os verdes se encaniçam, aflautinados. Dizem: o primeiro homem nasceu de uma dessas canas. O primeiro homem? Para mim não podia haver homem mais antigo que meu avô (COUTO, 2003, p. 15).
Ao mesmo tempo em que conta o ocorrido, o narrador situa o espaço físico e explica o sentido dele no plano simbólico. A natureza é o repositório da memória ancestral que se revitaliza na transmissão desse conhecimento. O menino sabe, previamente, desses sentidos e abre a possibilidade do não-conhecimento pela menor vivência formal, e que, na relação com o avô – detentor da idade que lhe permite ser conhecedor das tradições –, será assimilada em todas as suas possibilidades. Há também o saber intuído pelo homem que está no menino como um sentido pregresso, de registro invisível ao plano real onde ele exerce o seu papel. É esse o conhecimento que a sabedoria do “velho”, como o avô é denominado muitas vezes pelo narrador-personagem, adquiriu ao longo dessa existência e que ele transmite através das suas linguagens. A esse respeito, recorremos a Mircea Eliade (2002) quando trata de simbolismo e psicanálise e nos fala da presença do pensamento simbólico no ser humano. Diz ele:
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O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser. [...] Cada ser histórico traz em si uma grande parte da humanidade anterior à História (ELIADE, 2002, p. 9).
As considerações desse autor estão presentes neste conto inaugural de Estórias abensonhadas, bem como nas outras narrativas que compõem o livro e, na obra contística de Mia Couto, de Vozes Anoitecidas (1987) até Fio das Missangas (2004). Ao referir os recursos utilizados por Mia Couto nos reportamos ao elemento mítico, que, em “Nas Águas do Tempo”, parece-nos claramente registrado, especialmente, em duas passagens. A primeira, quando o narrador-personagem reflete: “Dizem: o primeiro homem nasceu dessas canas.” (COUTO, 2003, p. 15) e, também, em parte da fala do avô, em que ele afirma: “Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades.” (COUTO, 2003, p. 15) Em ambos os trechos está presente o mito da criação – a origem do homem – e o da eternidade ou do tempo sagrado, que fundamentam a história contada. O mito, implícito na linguagem simbólica da água e do tempo, em nossa leitura, traduz na ficção o que Eliade (2002) nos propõe na teoria, quando sentencia: [...] é importante lembrarmos [...] as relações íntimas existentes entre o Mito em si, como forma original do espírito, e o Tempo, pois, além das funções específicas que cumpre nas sociedades arcaicas [...] o mito é importante também pelas revelações que nos fornece sobre a estrutura do Tempo. Como se admite hoje, um mito narra os acontecimentos que se sucederam in principio, ou seja, “no começo”, em um instante primordial e atemporal, num lapso de tempo sagrado. Esse tempo mítico ou sagrado é qualitativamente diferente do tempo profano, da contínua e irreversível duração na qual está inserida nossa existência cotidiana e dessacralizada. Ao narrar um mito, reatualizamos de certa forma o tempo sagrado no qual se sucederam os acontecimentos de que falamos (ELIADE, 2002, p. 53).
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É ultrapassando a linguagem do profano e agregando o significado do sagrado, que a personagem do neto alcança um significado universal para as crenças que lhe são repassadas pelo avô, comunicando ao receptor da história a crença de que é portador. Desvanece-se, desse modo, a linha divisória entre quem conta e quem ouve e entre quem escreve e quem lê. Os tempos não são, portanto, separáveis, mas se tornam contínuos. Ainda nos escritos de Eliade (2002), encontramos uma referência sobre a relação direta entre mito e tempo: [...] um mito retira o homem do seu próprio tempo, de seu tempo individual, cronológico, “histórico” – e o projeta, pelo menos simbolicamente, no Grande Tempo, num instante paradoxal que não pode ser medido por não ser constituído por uma duração. O que significa que o mito implica uma ruptura do Tempo e do mundo que o cerca; ele realiza uma abertura para o Grande Tempo, para o Tempo Sagrado (ELIADE, 2002, p. 54).
Verificamos a presença dessas proposições no conto, quando, no trecho final, a personagem do neto, já situado em outra época de seu tempo cronológico, reporta-se ao sagrado para contar a reflexão que fez no passado – após a travessia do avô – e como essa ocorrência ficou registrada no seu consciente e inconsciente, respectivamente, no seu tempo histórico de contagem cronológica, e no seu tempo memorial, sagrado e oriundo da ancestralidade: Enquanto remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos gémeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos da outra margem (COUTO, 2003, p. 17).
Mircea Eliade (2002, p. 55) relaciona a veracidade do mito com a sua característica de sagrado, nos seres e nos acontecimentos a que reporta, quando afirma que: “narrando ou ouvindo um mito, retomamos o contato com o sagrado e a
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realidade, e dessa maneira ultrapassamos a condição profana, a ‘situação histórica’”. Acreditamos ser isso o que ocorre com a personagem que narra o final da história, conforme registrado na citação anterior. A temporalidade da vivência real foi ampliada pelo conhecimento do mito, pela capacidade de a personagem, na figura do menino, ouvir o relato da personagem avô e de repetir essa narração, no presente atual, agora no papel de pai. Com isso, há o transpor do tempo histórico, atingindo o “Grande Tempo” de que nos fala Eliade: A recitação periódica dos mitos derruba os muros construídos pelas ilusões da existência profana. O mito reatualiza continuamente o Grande Tempo e dessa forma projeta quem o ouve a um plano sobre-humano e sobre-histórico que, entre outras coisas, proporciona a abordagem de uma realidade impossível de ser alcançada no plano da existência individual profana (ELIADE, 2002, p. 56).
Lembramos que outra personagem, a mãe, situa-se na ausência dessa reatualização, ao permanecer apegada ao discurso da realidade que nega o elemento transcendental do conhecimento. No conto em pauta, temos a presença do ‘namwetxo moha’, fantasma das metades, que lido pela ótica da mãe se mostra como uma possibilidade de uma metáfora, sobre a divisão entre o compreender a realidade histórica – profana – e o temer a possibilidade do transcendente – o sagrado. A personagem caracteriza o ‘moha’ como uma ameaça, pela sua aparição noturna, o que simbolicamente fala da escuridão do desconhecido. Além disso, por ele ser composto de apenas uma metade do corpo, remeter à divisão do conhecimento de que nos fala Eliade (2002). Com a mãe, a linguagem tem predominantemente um caráter profano, ao passo que o avô possui a abordagem do sagrado. Os tempos que se interpõem, no transcorrer da história contada, são relatados por fatos de um momento descrito, pela presença atuante e testemunhal da natureza – referimo-nos ao rio e ao lago – e pelas crenças reavivadas nos diálogos da palavra e do gestual. Tais afirmativas nos parecem claras em trechos como: Antes de partir, o velho se debruçava sobre um dos lados [da canoa] e recolhia uma
aguinha com sua mão em concha. E eu lhe imitava. – Sempre em favor da água, nunca esqueça! Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem (COUTO, 2003, p. 14). Acontece que, dessa vez, me apeteceu espreitar os pântanos. Queria subir à margem, colocar pé em terra não-firme. – Nunca! Nunca faça isso! O ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assistira a um semblante tão bravio em meu velho. Desculpei-me: que estava descendo do barco mas era só um pedacito de tempo. Mas ele ripostou: – Neste lugar, não há pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades (COUTO, 2003, p. 15).
A memória do universal, a do divino, a da tradição e da personagem dialogam num único sentido simbólico, despertadas pela presença do elemento água, que une o tempo conceitual ao significado de continuidade, elementar e inexorável. A vida, qualquer que seja a forma, tem o infinito como horizonte e os elementos da natureza como registro memorial. O lago com seus mistérios, o rio como passagem permanente, e o pântano com sua inconstância, uma espécie de fronteira entre água e terra, são registros compreensíveis do mágico, do mistério e do extraordinário. O registro memorial ocorre através da imagem no sentido dado por Eliade (2002), pois estabelece a ligação entre o real e o transcendente estabelecida pelo significar simbólico que o olhar das personagens reconhece. O conto, em questão, traz em si os conteúdos culturais de uma coletividade, mas que são compreendidos e assumidos pela individualidade dos seres que a vêm compondo ao longo do tempo histórico. Em Bachelard (2000), temos uma explanação sobre o poder das imagens da vida real sobre a imaginação, o que nos remetem ao “olhar para dentro” de que falou a personagem do velho avô. Esse ato se vivencia na solidão e se projeta no sonho, sendo uma espécie de registro de permanência a imagem, como entende Bachelard: 53
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As grandes imagens têm ao mesmo tempo uma história e uma pré-história. São sempre lembrança e lenda ao mesmo tempo. Nunca se vive a imagem em primeira instância. Toda grande imagem tem um fundo onírico insondável e é sobre esse fundo onírico que o passado pessoal coloca cores particulares. Assim, é no final do curso da vida que veneramos realmente uma imagem, descobrindo suas raízes para além da história fixada na memória (BACHELARD, 2000, p. 50).
Propomos que a imagem, revestida de símbolos universais e locais, integra o homem – as personagens, no caso – ao seu conteúdo espiritual único, particular –, ao seu histórico cultural e aos sentidos primordiais. Deste modo, ocorreria um reconhecimento, no plano da realidade geográfica, da humanidade do ser através da adequação do olhar. Seria esse o “olhar para dentro” referido pela personagem do avô ao falar da cegueira dos que veem apenas o que existe no plano real. Essa perspectiva é também proposta por Eliade: Se as Imagens não fossem ao mesmo tempo uma “abertura” para o transcendente, acabaríamos por sufocar qualquer cultura, por maior e mais admirável que a supuséssemos. [...] As Imagens constituem “aberturas” para um mundo trans-histórico. [...] graças a elas, as diversas “histórias” podem se comunicar (ELIADE, 2002, p. 174).
Ao transitarmos pelos significados simbólicos da água, Chevalier e Gheerbrant (1996, p. 15) dizem, no seu Dicionário de Símbolos, que “podem reduzir-se a três temas dominantes: fontes de vida, meio de purificação, centro de regenerescência.” Considerando a amplitude dessa temática, é viabilizada uma leitura de universalidade, mesmo tendo em vista a diversidade de civilizações, pois ao tratar da criação, da vida, o elemento água se reveste de caráter mítico. Na leitura de “Nas Águas do Tempo”, percebemos as temáticas referidas. Primeiramente, no sentido da dualidade entre começo e fim, como encontramos em Chevalier e Gheerbrant: [...] a água, como, aliás, todos os símbolos, pode ser encarada em dois planos rigorosamente opostos, embora
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de nenhum modo irredutíveis, e essa ambivalência se situa em todos os níveis. A água é fonte de vida e fonte de morte, criadora e destruidora (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1996, p. 16).
A vida e a morte estão presentes nas águas do lago que, na história contada, é tanto fonte como divisor, permitindo ao ouvinte-leitor apropriar-se de uma ou outra imagem e, igualmente, perceber a travessia do velho avô como uma temporal regenerescência, isto é, uma continuidade entre ambas as ideias. Na narrativa, entendemos tal duplicidade ao acompanharmos a personagem do avô que, ao atingir a outra margem do lago, acena o seu pano propondo, em nossa leitura, um sentido de permanência da vida, de superação e/ou de renascimento. O pano passa da cor vermelha para uma espécie de lento apagamento e ressurge claro e visível na cor branca, como sendo a designada a quem está do outro lado: Na tarde seguinte, o avô me levou mais uma vez ao lago. Chegados à beira do poente ele ficou a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual demora. O avô se inquietava, erguido na proa do barco, palma da mão apurando as vistas. Do outro lado, havia menos que ninguém. Desta vez, também o avô não via mais que a enevoada solidão dos pântanos. De súbito, ele interrompeu o nada: – Fique aqui! E saltou para a margem, me roubando o peito no susto. O avô pisava os interditos territórios? Sim, frente ao meu espanto, em seguia em passo sabido. A canoa ficou balançando, em desequilibrismo com meu peso ímpar. Presenciei o velho a alojarse com a discrição de uma nuvem. Até que, entre a neblina, ele se declinou em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com muito espanto, tremendo de um frio arrepioso. Me recordo de ver uma garça de enorme brancura atravessar o céu. Parecia uma seta trespassando os flancos da tarde, fazendo sangrar todo o firmamento. Foi então que deparei na margem, do outro lado do mundo, o pano branco. Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô na visão do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho do
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meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então, lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram até que se poentaram as visões (COUTO, 2003, p. 17).
Em diálogos anteriores, avô e neto refletiram, cada um ao seu modo, sobre a visibilidade e significado dos panos, buscando onírica ou racionalmente acessar aos conteúdos míticos sagrados da sua constituição memorial. Não devemos esquecer os significados das cores presentes nesses panos, que potencializam as simbologias encontradas no elemento água. O vermelho é “universalmente considerado como o símbolo fundamental do princípio de vida, com sua força, seu poder e seu brilho [...]” (CHEVALIER; GHEERBRANT 1996, p. 944), e também reconhecido como ambivalente, podendo ser iniciático ou fúnebre, passando pelos sentidos de amadurecimento e regeneração, de homem universal, de condição de vida, de ação e vitalização. O branco também tem significados e vida e morte, de transitoriedade, de limite: [...] o branco pode situar-se nas duas extremidades da gama cromática. Absoluto [...] ele significa ora a ausência, ora a soma de todas as cores. Assim, coloca-se às vezes no início e, outras vezes, no término da vida diurna e do mundo manifesto [...] Mas o término da vida – o momento da morte – é também um momento transitório, situado no ponto de junção do visível e do invisível e, portanto, é um outro início. [...] É uma cor de passagem, no sentido [...] dos ritos de passagem: e é justamente a cor privilegiada desses ritos, através dos quais se operam as mutações do ser, segundo o esquema clássico de toda a iniciação: morte e renascimento (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1996, p. 1411. Grifos dos autores).
Retomando os significados da água, num segundo momento, percebemos o acesso ao sagrado através da purificação, que ocorre no momento em que o avô supera o lodo abismal do pântano e caminha sobre ele adentrando na neblina, apropriando-se do sonho e da miragem para percorrer o espaço sagrado. Entendemos o significado da neblina de acordo com o exposto por Chevalier e Gheerbrant (1996, p. 634. Grifo dos autores) sobre o nevoeiro, isto é, como sendo “Símbolo do indeterminado,
de uma fase da evolução: quando as formas não se distinguem ainda, ou quando as formas antigas que estão desaparecendo ainda não foram substituídas por formas novas precisas.” A alusão ao sonho parece-nos complementar à simbologia da neblina, se compreendido como “iniciatório [...] carregado de eficácia mágica e destinado a introduzir o homem num outro mundo por meio de um conhecimento ou de uma viagem imaginários.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1996, p. 845). O neto alude à margem da miragem, que compreendemos como a sua própria travessia, o seu processo de aceitação – a qual referirá ao final – das crenças que o ritual de passagem do avô lhe transmitirá. Assim, as duas personagens ultrapassariam os limites do conhecimento purificador, superando os limites humanos de saber e crer. Num terceiro significado da água verificamos, no conto, o sentido de eternidade, o símbolo cosmogônico, quando o neto reflete sobre o surgimento do primeiro homem nas margens de canas verdes. A cor que “é o despertar das águas primordiais, [...] é o despertar da vida.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1996, p. 939). A reflexão, à margem do lago, leva a personagem ao sentido da origem, ao primordial do ser e reafirma o simbólico dessa cor que “esconde um segredo, [...] simboliza um conhecimento profundo, oculto, das coisas e do destino.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1996, p. 941). A linguagem dos símbolos mescla o real e o onírico numa proposital busca pela ampliação de significados, atualizando o que possa ser considerado uma memória antiquada, pois o menino – receptor das histórias do avô – que já presentifica uma geração de outros valores pode, através disso, apropriar-se dos significados antigos e atualizá-los, agregando-lhes, ou não, novos sentidos. Ocorreria assim, uma abertura para um processo de permanente atualização da tradição embutida nas manifestações culturais. Aquilo o que chamamos de manifestações culturais se inclui no que Eliade (2002, p. 9) designa como memória “a-histórica” do homem que permanece nele enquanto ser historicamente condicionado, passível de reavivar-se permanentemente através do simbolismo imagético, num contato contínuo com o seu ser memorial: Quando um ser historicamente condicionado [...] deixa-se invadir pela 55
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sua própria parte não-histórica [...] não é necessariamente para retroceder ao estado animal da humanidade, para descer às origens mais profundas da vida orgânica: inúmeras vezes, ele reintegra pelas imagens e símbolos que utiliza um estado paradisíaco do homem primordial (qualquer que seja a existência concreta deste último, pois esse “homem primordial” apresenta-se sobretudo como um arquétipo impossível de “realizar-se” plenamente em uma existência qualquer). Escapando à sua historicidade, o homem não abdica da qualidade de ser humano para se perder na “animalidade”; ele reencontra a linguagem e, às vezes, a experiência de um “paraíso perdido”. Os sonhos, os devaneios, as imagens de suas nostalgias, de seus desejos, de seus entusiasmos etc., tantas forças que projetam o ser humano historicamente condicionado em um mundo espiritual infinitamente mais rico que o mundo fechado do seu “momento histórico” (ELIADE, 2002, p. 9).
O reavivamento contínuo do ser humano é um processo memorial aberto que permite olharmos para a formação identitária como um movimento também contínuo, que não se completa, mas se expande. O passado constrói o presente e o futuro, e o presente modifica o passado, agregando-lhe novos sentidos e havendo, nessa relação, traços de oposição e de continuidade. O homem trabalha essa dialética através do pensamento, da reflexão que é capaz de elaborar no presente. Na história de Mia Couto, as personagens do neto e do avô executam esse movimento. O avô atualiza as crenças coletivas ao guiar o neto pelos rituais de passagem desta vida para outra, através da morte, enquanto o neto absorve o conhecimento dessa memória antiga e o funde com elementos da sua realidade, do seu presente. Dialogam assim o tempo da tradição e o da modernidade. Ao contar essa história, o neto já assume o futuro onde encontramos o seu filho, que recebe dele o resgate do passado distante e do passado próximo. Há um movimento contínuo de passado-presente-futuro de igual natureza, embora possam existir profundas diferenças socioculturais entre as três gerações. O passado é reatualizado no tempo cronológico e, a cada vez que é recontado, reveste os símbolos de significados atuais, e os mitos ali contidos são novamente experenciados, o que lhes agrega novos valores, em uma progressiva atualização. 56
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Finalizando nossa reflexão sobre “Nas Águas do Tempo”, destacamos algumas características que são representativas da construção ficcional de Estórias abensonhadas e que se destacam exemplarmente nesse conto inicial do livro. Chama-nos a atenção a interpenetração do real com o mágico na constituição das personagens, desde a sua nomeação, as suas caracterizações e os seus percursos de ação. Elas trazem a tradição e a modernidade em si e fundam a noção de futuro como potencial, como um percurso atual e autoral. As personagens são as portadoras da temática e trazem à tona os mitos, fundamentalmente através dos rituais, que são despertados pelos elementos da natureza e estes, por sua vez, são visitados pelo viés da simbologia. As noções eurocêntricas do inusitado e do estranho são substituídas pela concretude que envolve o homem com a credibilidade da diferença. O tempo é subjetivo e é concreto, pois é vivenciado pelas personagens tanto na concretude da realidade presente quanto na subjetividade da reflexão interior. Lemos a ficção e a realidade dialogando no individual e no coletivo, buscando os caracteres próprios dessas identidades. O imaginário, o onírico e a tradição oral são elementos de sustentação da memória passada que, agregados à realidade presencial das personagens, propõem sentidos de “refazimento”, isto é, “re-ver”, “re-nascer”, “re-começar”, “re-vitalizar” e outros, numa linha ficcional que pode promover a “recomposição” do indivíduo e de sua sociedade. Ao trazer uma noção conceitual de tempo aberta e ao apresentar o conhecimento do passado associado à morte, como proposta de travessia para outro estágio – um futuro em construção no presente, onde os tempos e temáticas dialogam –, o conto mescla o sonho com a realidade, propondo um contato de gerações menos influenciado pela noção de tempo ocidental, linear – “tempo do relógio” –, e mais adequado ao olhar de infinitude temporal. Tal perspectiva, também presente em várias das histórias do livro, faz da temática da passagem um constituinte e não fim em si mesma. A água dialoga com a noção de origem e o tempo situa a permanência e a continuidade, ambos visitados pela simbologia da morte que é, em nossa leitura, uma metáfora do eterno recomeço.
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A POÉTICA KNOPFLIANA: A ÁFRICA E O OCIDENTE COMO ESPAÇO DE DEVANEIO E MEMÓRIA
Paula Terra Nassr1 RESUMO Este artigo apresenta a poética do escritor moçambicano Rui Knopfli, que escreveu parte da sua obra em Moçambique, porém após o período de independência em 1975, vê-se deslocado de seu tempo e espaço, devido ao seu modo diferenciado de representar os ideais políticos do período pós-colonial. É um sujeito que transita entre o ser africano e o buscar culturalmente influência nos cânones ocidentais, o que conferiu a seus versos uma expressividade inusitada. Palavras-chave: Rui Knopfli. Moçambique. Entre-lugar. Poesia. ABSTRACT This article presents the poetics of Mozambican writer Rui Knopfli, who wrote part of his work in Mozambique, but after the period of independence in 1975, sees himself displaced from his time and space, due to his different way of representing the political ideals of the post-colonial period. He’s a subject that moves between the African being and the seeking of culturally influence in Western canons, which gave to his verses an unusual expressiveness. Keywords: Rui Knopfli. Mozambique. Between-place. Poetry.
1 Mestre em Teorias do Texto e do Discurso e doutoranda em Literatura luso-africana pela UFRGS. Bolsista de aperfeiçoamento da Universidade Feevale.
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1 RUI KNOPFLI Rui Knopfli é caso singular na produção poética de Moçambique, sendo um dos raros escritores de ascendência europeia nascidos nesse país e cuja obra, publicada em grande parte em sua terra natal antes da independência em 1975, deverá ler-se dentro da complexa relação póscolonial luso-moçambicana. Sua poética vai conter, então, presságios da queda do colonialismo, bem como, irá versar no intuito de restituir à África o legado cultural e geográfico que foi esfacelado pela colonização. Vive a circular em dois mundos, o ocidental e o africano, o que por vezes, gerou-lhe um caráter de sujeito sem lugar, estando em dois e em nenhum espaço, uma vez que a crítica da época não aceitava que em sua condição de ator social anticolonialista, fosse buscar influência em escritores ocidentais para sistematizar sua escritura. Ademais, era inaceitável que fosse um escritor que não mergulhasse no discurso panfletário e engajado que estava vinculado ao discurso de libertação vigente naquele momento da História. O fato de estar deslocado de seu tempo e, posteriormente, de seu espaço, visto que após a independência seguiu o rumo da diáspora, constitui o tom da sua poética, por vezes, melancólica e saudosista. Publicou de 1959 a 1997 uma profícua e intensa obra na qual refletirá sobre sua condição de exilado das terras africanas e da escolha de impregnar-se dos ares da cultura europeia como forma de encontrar-se, também, como um sujeito que, mesmo sendo africano de pátria e cultura, tem o direito de mesclar-se, usando os mecanismos da literatura para descobrir-se a si mesmo e para evidenciar-se nos outros. Contudo, não há como – nesse processo criativo e de revelação subjetiva – não passar por sensações e devaneios, que vão moldando sua obra que tem a capacidade de ser paradigmática quando pensamos a empreitada de elucidar a condição do sujeito emergido nos espaços colonial e pós-colonial. Este último, não vinculado a um tempo fechado, de fronteiras definidas, mas a uma condição sócio-política que trouxe confrontos, desencontros e um importante espaço de permeabilidade cultural. A pretensão primeira deste estudo é versar sobre o caráter híbrido de Rui Knopfli, um autor inquieto e muito diverso dos escritores de sua época e que escapa à obviedade temática de seus contemporâneos.
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2 A POESIA SEGUNDO BOSI O sujeito poético de Rui Knopfli em seu constructo discursivo apresenta uma significativa relação com os espaços que lhe sedimentaram: África e Europa, caracterizando a materialidade histórica constitutiva de sua linguagem. As subjetivações que o levaram ao exílio são as mesmas que o fizeram permanecer no imaginário poético africano ressignificando sua malha simbólica desde as primeiras leituras, ainda na infância e na adolescência, o que aponta para os deslocamentos íntimos de sentido. Esses movimentos conduziramno à inserção na funcionalidade dos signos culturais do Outro, o europeu, quando no exílio, engendrando elementos idiossincráticos de seu hibridismo. E, sobretudo, potencializando sua condição marginal, seu deslocamento que edificará sua poética, uma vez que poesia trabalha, consoante Bosi (2010), a linguagem de um tempo passado, uma metáfora de desejo, o texto do inconsciente, a grafia do sonho, recompondo um universo mágico que os novos tempos renegam, além do que, não se limita a refazer por dentro a percepção do Outro, ela nomeia o mundo que nos cerca e nosso espaço de vida. É assim que Knopfli recria-se, recriando seus espaços, seus mundos através de versos que compõem uma poética desveladora da condição de desterritorialização, do não-espaço. Na sequência, dois poemas que expressam significativamente o poeta em busca de uma identidade, acentuadamente conflituosa e pluri-imagética: Naturalidade Europeu, me dizem./ Eivam-me de literatura e doutrina/ europeias/ e europeu me chamam./ Não sei se o/ que escrevo tem a raiz de algum/ pensamento europeu./ É provável ... Não. É certo,/ mas africano sou./ Pulsa-me o coração ao ritmo dolente/ desta luz e deste quebranto./ Trago no sangue uma amplidão/ de coordenadas geográficas e mar Índico./ Rosas não me dizem nada,/ Caso-me mais à agrura das micaias/ e ao silêncio longo e roxo das tardes/ com gritos de aves estranhas./ Chamais-me europeu? Pronto, calo-me./ Mas dentro de mim há savanas de aridez/ e planuras sem fim/ com longos rios langues e sinuosos,/ uma fita de fumo vertical,/ um negro e uma viola estiolando (KNOPFLI, 2003, p. 59).
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E, ainda: Auto-Retrato De português tenho a nostalgia lírica/ de coisas passadistas, de uma infância/ amortalhada entre loucos girassóis e folguedos;/ a ardência árabe dos olhos, o pendor/ para os extremos: da lágrima pronta/ à incandescência súbita das palavras contundentes,/ do risco claro à angústia mais amarga./ De português, a costela macabra, a alma/ enquistada de fado, resistente a todas/ as ablações de ordem cultural e o saber/ que o tinto, melhor que o branco,/ há-de atestar a taça na ortodoxia/ de certas virtualhas de consistência e paladar telúrico./ De português, o olhinho malandro, concupiscente/ e plurirracial, lesto na mirada
No poema Naturalidade, percebe-se a expressão de um sujeito cindido e identificado com dois espaços de autor-epresentação. No que se refere à expressão e representação emotivas, exalta o espaço africano, e com relação ao espaço intelectual, vincula-se à tradição literária e de pensamento portuguesa e ocidental. Esse duplo espaço de identificação torna a poesia de Knopfli singular dentro do contexto das literaturas de língua portuguesa em África, visto que, vai na contramão dos demais discursos dos intelectuais africanos da época. Esse discurso poético-híbrido representa um sujeito em um movimento autoconstrutivo e de desconstrução, simultaneamente, que lança um olhar crítico sobre a projeção que lhe incutem de uma identidade exclusivamente europeia. Ao distanciar-se, criticamente, o sujeitopoeta manifesta em seu discurso a identidade que tanto reclama – a africana (“mas africano sou”). No outro poema, Auto-Retrato, o autor apresenta uma expressão mais irônica quanto à sua condição de sujeito híbrido e consciente de seu influxo cultural, como forma de expressar seu descontentamento em relação à postura impositora dos que lhe negaram, inicialmente, a inserção nos círculos da poesia de Moçambique, pelo fato de buscar inspiração na literatura ocidental e de não se engajar no discurso libertário anticolonial. Podemos pensar que esse recurso estilístico da ironia vem reforçar ainda mais o seu desejo de libertar sua voz cerceada, visto que a ironia
segundo Orlandi (1983) estabelece uma região significante em que simulações, alusões e rupturas de significação podem ser desenvolvidas com o intuito de possibilitar um jogo entre as formas de mundo já dadas (mundos fixados, senso-comum) com outros estados de mundo, causando eco e ruptura. O discurso irônico possibilita ao sujeitopoeta colocar em causa as convicções acerca do ideológico, cultural, linguístico, político, etc. Dessa forma, a ironia pressupõe a congruência e a solidez dos discursos instituídos e aproxima elementos com sentidos incongruentes, produzindo, assim, um discurso poético com efeito dissonante. A ironia, ainda pensando nos estudos de Orlandi (1983), contempla a literalidade e, simultaneamente, desloca-a, produzindo um estranhamento, portanto, é um modo de significar que constitui o processo em que, na linguagem, o sujeito-poeta se nega e se reconstrói, e nesse processo de reconstrução a ironia assume um efeito de discurso crítico. A condição de sujeito submerso em um espaço pós-colonial reflete uma interação complexa entre língua, história e meio ambiente denunciando em regra um senso de deslocamento e inadequação linguística da parte do sujeito de escrita pós-colonial, em particular quando as origens culturais e geográficas desse sujeito não se encontrem no espaço colonizado onde se realiza essa escrita (ASHCROFT apud MONTEIRO, 2003, p. 53).
Não obstante, em Knopfli, essa relação de deslocamento espacial se dá em um sentido inverso, ou seja, vai surgir da poetização do sujeito com sua escrita que se relaciona com o espaço de proveniência do colonizador, e não da poetização da relação entre o sujeito de escrita e o espaço colonizado. Essa reversão espacial reflete o propósito de redimir o espaço colonizado (Moçambique) de um estatuto de marginalidade e relocalizá-lo em relação ao mundo geográfica e historicamente. Ao mesmo tempo, esse modo de exaltar a sua pátria de origem, faz com que esse sujeito, de escrita historicamente relegada à marginalidade discursiva, recoloque-se também como sujeito poético dentro de seu espaço e de seu tempo de condição póscolonial. Muitos de seus poemas vão ilustrar bem essa condição e essa relação do sujeito knopfliano com seu espaço, principalmente, representada pelo meio-ambiente e pela natureza de Moçambique 61
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(colonizado) comparado ao espaço europeu (do colonizador). Os poemas abaixo evidenciam essa ideia: Hidrografia São belos os nomes dos rios/ na velha Europa./ Sena, Danúbio, Reno são/ palavras cheias de suaves inflexões,/ lembrando em tardes de oiro fino,/ frutos e folhas caindo, a tristeza/ outoniça dos chorões./ O Guadalquivir carrega em si espadas/ de rendilhada prata,/ como o Genil ao solpoente,/ o sangue de Federico./ E quantas histórias de terror/ contam as escuras águas do Reno?/ Quantas sagas de epopeia/ não arrasta consigo a corrente/ do Dniepre./ Quantos sonhos destroçados/ navegam com detritos/ à superfície do Sena?/ Belos como os rios são/ os nomes dos rios na velha Europa/ Desvendada, sua beleza flui/ sem mistérios./ Todo o mistério reside nos rios/ da minha terra./ Toda a beleza secreta e virgem que resta/ Está nos rios da minha terra./ (...)/ Toda poesia oculta é a dos rios / da minha terra./ (...)/ Rios, seiva, ebuliente,/ veias, artérias, vivificadas/ dessa virgem morena e impaciente,/ minha terra, nossa Mãe! (KNOPFLI, 2003, p. 121).
E segue: Ilha Dourada A fortaleza mergulha no mar/ os cansados flancos/ e sonha com impossíveis / naves moiras./ Tudo mais são ruas prisioneiras/ e casas velhas a mirar o tédio./ As gentes calam na/ voz/ uma vontade antiga de lágrimas/ e um riquexó de sono/ desce a Travessa da Amizade./ Em pleno dia claro/ Vejo-te adormecer na distância,/ Ilha de Moçambique,/ e faço-te esses versos/ de sal e de esquecimento (KNOPFLI, 2003, p. 76).
Knopfli, no poema Hidrografia, apresenta um discurso que permite, na linguagem poética, a “reapropriação” do espaço colonial e sua restituição ao colonizado, ademais aproxima-se do discurso da poesia brasileira, de Gonçalves Dias2 ao exaltar a natureza de sua terra; e da poesia espanhola, de
2 DIAS, G. Poemas Escolhidos. Rio de Janeiro: Editora Nacional, 1981.
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García Lorca3, ao cantar os mistérios do “rio da minha terra” como faz o poeta espanhol com o Rio Guadalquivir. Tal direcionamento dialógico mostra a busca da consolidação de uma identidade nacional. Vai desconstruir, simultaneamente, a imagem da glorificação épica como modo de questionar a autoridade moral da história do europeu e deslegitimizar o empreendimento colonial de devastação das colônias. Ao contrastar dois mundos o sujeito-poético pretende construir uma relação de identificação com o espaço pós-colonial como forma de afirmar sua africanidade, de transformar o ato poético em um ato discursivo de denúncia da história colonial e de mostrar-se sujeito ativo dentro dessa história. Com um tom elegíaco, em Ilha Dourada, o sujeito poético se confunde com o próprio espaço: “Tudo mais são ruas prisioneiras/e casas velhas a mirar o tédio”. O sujeito poético é que se sente assim, prisioneiro, velho e devaneando sobre o sentimento de tédio e tristeza que lhe invade. Desse modo, como observa Bachelard (1998, p. 206), “dar seu espaço poético a um objeto é dar-lhe mais espaço do que ele tem objetivamente, ou melhor dizendo, é seguir a expansão de seu espaço íntimo”. O poema apresenta um discurso de lamento mútuo, compartilhado entre o sujeito poético “faço-te estes versos/de sal e de esquecimento” e o sujeito colonizado nele representado por “as gentes calam na voz”. Esse lamento expressa o sentimento de entendimento pelo sujeito de sua condição de exilado na sua pátria e que se vê invadido pelo colonizador, explicitado no poema pela fortaleza. 3 OLHARES, MAZELAS E CURIOSIDADES Foram constituídas, historicamente, as relações entre Brasil e África, por olhares que deixavam evidenciar mazelas de curiosidades, seja pelos processos de habitação das colônias por parte de Portugal, seja pelos traumas plantados em terras invadidas ou por seus imaginários esfacelados. O Brasil ergue-se como referência neste espaço onde se transita amputado de anseios. As manifestações da cultura africana nas teias da funcionalidade cultural brasileira são inúmeras e evidentes. A projeção das imagens do Brasil para a efetivação dos pensamentos LORCA, F. G. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977.
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nacionalistas da África, principalmente a lusófona, contribuiu, sobremaneira, para a conscientização da intelectualidade que empreendeu a luta de resistência, e que foi responsável pela organização do sistema literário. Aos olhos dos africanos, o Brasil despontava como um espaço em que se efetivaram os sonhos de uma sociedade marcada pela exclusão e violação colonial. Chaves (2005) registra que como decorrência da circulação de ideias e informação, ou apoiados simplesmente nos planos das sugestões ditadas pela afetividade, setores intelectualizados ou segmentos populares buscavam no Brasil traços de inspiração e/ou elementos de compensação para as insuficiências do cotidiano. Fermentadas pela distância, as imagens se multiplicavam no imaginário, e muitas faces eram incorporadas e reinventadas num processo que acabaria por apresentar resultados muito diversos (p. 276).
Somado a esse estado imagético capilarizado e constituidor da rede imaginária da África, as décadas de 40 e 50 trazem o romance social do Brasil como vetor de verticalidade producente, de matriz estética. Entre os africanos começam a circular com mais fluência Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Vinícius de Morais. E Rui Knopfli não escapa ao influxo desse labirinto lusófono. A condição híbrida ou de entre-lugar do sujeito-poeta knopfliano também é representada, em alguns poemas, sob a forma de influências de discursos literários europeus e brasileiros. O poeta ora identifica-se com Camões, Pessoa, Shakespeare, entre outros escritores representantes dos cânones ocidentais, ora busca inspiração e dialoga com escritores brasileiros tais como Gonçalves Dias, Manuel Bandeira e Drummond, de modo a identificar-se, também, com o discurso de um país colonizado. Isso reflete a necessidade do sujeito lírico de buscar sua própria identidade, de reerguerse dentro desse espaço que lhe foi negado e de romper com as definições de sujeito sem lugar, carregador de uma [des]naturalidade. É importante destacar a definição de lugar e nãolugar, segundo Augé (1997, p. 169), para se entender a relação do poeta com seu espaço de produção poética. Explica ele que por lugar e não-lugar
designamos (...) espaços reais e a relação que seus utilizadores mantêm com esses espaços. O lugar será definido como identitário (no sentido que um certo número de indivíduos podem se reconhecer nele e definir-se através dele), relacional, (no sentido que um certo número de indivíduos, os mesmos, podem ver aí a relação que os une uns aos outros) e histórico (no sentido que os ocupantes do lugar podem encontrar nele os rastros diversos de uma implantação antiga, o sinal de uma filiação). Dessa forma, o lugar é simbólico triplamente (no sentido que o símbolo estabelece uma relação de complementaridade entre dois seres ou duas realidades): ele simboliza a relação de cada um de seus ocupantes consigo mesmo, com os outros ocupantes e com a história comum. Um espaço no qual nem a identidade, nem a relação e nem a história sejam simbolizados será definido como um não-lugar.
Para alguns críticos contemporâneos ao poeta, Knopfli estava inscrito em uma tradição literária europeia e, para outros, fazia parte de uma geração literária moçambicana pós-colonial com grande influência europeia. Dessa maneira, não era considerado um escritor lusófono contundente e, tampouco, um escritor moçambicano engajado. Considerado pela parca crítica como um poeta sem lugar, busca vincular-se a discursos outros, como um modo de encontrar-se não só como poeta, mas como sujeito. Este sujeito que se representa em dois mundos tão controversos passa a ocupar um entre-lugar. É significativo recuperar Bhabha (2007) quando caracteriza o “entre-lugar” como um espaço de elaboração de estratégias de subjetivação que leva à produção de novos signos de identidades. É neste entre-lugar que se encontra toda a confluência das diferenças culturais estabelecedora da organização dos novos signos que sedimentarão uma identidade outra, já reencenada e que faz do presente um tempo a ser construído. Nos poemas abaixo, observa-se a influência de um discurso de várias vozes, como ensina Bakthin (2004), este discurso polifônico já não é um discurso sobre si mesmo ou seu contexto imediato, mas termina revelando-se como um discurso sobre a relação do sujeito com o mundo e com os agentes formativos desse mundo e desse sujeito, já que não é possível que haja uma voz que não venha povoada 63
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de outras vozes; o diálogo que faz ressoar várias vozes em busca da descoberta do sentido da vida e da definição de uma nova existência, numa espécie de criação de espaços possíveis, espaços habitados de sentido para a percepção de uma nova identidade que carrega em si o Outro. Esta é a condição de produção discursiva que permite ao poeta ter o status de estar no entremeio, no entre-lugar, e a partir dessa posição ressignificar as imposições conceituais do imaginário no qual se insere. Hereditariedade Por trazer os olhos, a risca do cabelo e a gravata, / onde os demais o usam habitualmente,/ não se descortina logo em mim o anjo caído,/ o anjo só traído por certa fixidez/ quase imperceptível do olhar, o anjo/ que, em mim, perigosamente se dissimula./ Esse que faz de mim um descendente/ em linha sinuosa de François Villon/ poeta maldito, ladrão e assassino,/ nosso santo padroeiro; do Bocage/ de olhar parado/ e face lombrosiana,/ do divino marquês, de todas as taras suserano,/ do Shakespeare, pederasta e agiota,/ de Charles Baudelaire, corruptor e perverso/ e pulha, do Voltaire etilizado,/ do Pessoa idem e do/ Laranjeira/ suicidado. Parente, primo e colateral/ do Genet ratoneiro, desleal, corrécio/ e paneleiro, de Ferlinghetti,/ de Ginsberg e de Burroughs,/ flores aberrantes de um braçado de maricas,/ canteiro onde só por acaso não floresci. / como só um fortuito jogo de circustâncias/ evitou que afogasse esta mágoa/ estrangulada/ em brandies ou no sono dos alcalóides./ O meu lenitivo procuro-o no lazer,/ no tépido e/ moreno recolhimento que se acha/ entre as pernas de uma rapariga,/ lá onde o tempo pára e recomeça,/ onde a metafísica realmente se anula,/ lugar por excelência desse olvido,/ de que o corpo magro de um efebo,/ o álcool, a coca e certas taras,/ são outras tantas razões plausíveis/ de sermos o tal anjo caído e maldito/ que em mim se dissimula no trazer,/ onde o trazem os demais, os olhos,/ a risca do cabelo e a gravata (KNOPFLI, 2003, p. 248).
E o outro: Contrição Meus versos já tem o seu detractor sistemático:/ uma misoginia desocupada 64
entretém os ócios/ compridos, meticulosamente debruçada sobre / a letra indecisa de meus versos./ em vigília atenta cruza o périplo das noites/ de olhos perdidos na brancura manchada do papel, progredindo com infalível pontaria/ na pista das palavras e seus modelos./ Aqui se detesta Manuel Bandeira e além/ Carlos Drumond de Andrade também/ Brasileiro. Esta palavra vida/ foi roubada a Manuel da Fonseca/ (ou foi o russo Vladimir Maiacovsky/ quem a gritou primeiro?). Esta,/ cardo, é Torga indubitável, e/ se Deus Omnipresente se pressente,/ num verso só que seja, é um Deus/ em segunda trindade, colhido no Régio/ dos anos trinta. Se me permito uma blague,/ provável é que a tenha decalcado em O´Neill/ (Alexandre), ou até num Brecht/ mais longínquo. Aquele repicar de sinos/ pelo Natal é de novo Bandeira (Porque não/ Augusto Gil,/ António Nobre, João/ De Deus?). Estãome interditas,/ como certos ritmos, certas palavras. Assim,/ não devo dizer flor nem fruto,/ tão-pouco utilizar este ou aquele nome próprio,/ e ainda certas formas da linguagem comum,/ desde o adeus português (surrealista)/ ao obrigatório bom dia! (neo-realista)./ Escrevendo-os quantos poetas sem os saber,/ mo interditavam apenas a mim; a mim, perplexo/ e interrogativo, perguntando-me, desolado:/ - E agora, José?, isto é, - E agora, Rui?/ Felizmente, é pouco lido o detractor de meus versos, senão saberia que também furto em Vinícius, Eliot, Robert Lowell, Wilfred Owen/ (...)/ Que, em suma, roubando aos ricos para dar a este pobre, sou o Robin Hood dos Parnasos e das Pasárgadas (...) (KNOPFLI, 2003, p. 210).
No poema Hereditariedade, o sujeito poético apresenta um jogo de espelhos, em termos de identidade, que acaba por tornar a mesma identidade enigmática e quase indecifrável; surge a voz de um sujeito que se insere, em termos de ascendência, entre aqueles que elege, membros da mesma família, dos “anjos caídos” da cultura europeia: François Villon, Bocage, Charles Baudelaire, Pessoa, Laranjeira entre outras figuras relevantes da literatura. Há aqui certa identificação com uma postura de “queda”, como forma de representar-se um dos “anjos caídos” nesse espaço desagregador dos colonizadores, entretanto, há uma desvinculação por parte do sujeito deste lugar que o faz buscar da sua condição não europeia.
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Ao procurar dar poeticamente voz à sua africanidade, Knopfli apropria-se do discurso dos cânones europeus, busca com essa apropriação uma forma de subverter um discurso eurocêntrico colonizador. Isso não quer dizer que inexistam uma identificação com a obra desses autores e um respeito ao trabalho criador deles, todavia utiliza-se dos seus discursos para pôr em marcha a desconstrução do discurso europeizante e, posteriormente, a reconstituição de um discurso africanista na forma de um novo discurso histórico-poético. O poeta apresenta, uma vez mais, no poema Contrição, alguns escritores nos quais buscou inspiração para os seus versos, mas desenha esta apresentação em um leve tom irônico, visto que a ironia, de acordo com Brait (1996), é uma construção discursiva em que existe a presença de um significante recobrindo dois significados, e, portanto, pode assumir entre outros sentidos, o de crítica. O vocabulário empregado denota claramente esta criticidade irônica: “Meus versos já têm o seu detractor sistemático”; “roubando aos ricos para dar a este pobre”. Nesse recurso discursivo em que substitui a ideia de inspiração por furtar, subtrair e roubar dos ricos a palavra interdita para seu uso próprio, o coloca em um lugar de quem, mesmo estando à margem, tem o direito de defesa da sua já tão ciciada voz. Como não existe discurso sem o entrelaçamento de outros, para instaurar o seu dizer, o sujeito busca nessa “misoginia desocupada” a fissura por onde seu discurso poderá ecoar. E o ato de escrever poemas, que é o seu labor primordial dentro do intento de fazer-se sujeito de sua história, vai apresentar-se, trazendo à luz a descrição de Octavio Paz (1993), como um nó de forças contrárias, no qual sua voz e a voz do outro se enlaçam e confundem. As fronteiras desse entrelaçamento se apagam, e o seu discurso se transforma insensivelmente em algo que o sujeito poético não pode dominar completamente. O seu “eu” cede lugar a um pronome sem denominação, que tampouco é um tu ou um ele, mas é o espaço do entremeio (entre-lugar), em suma, o espaço da inspiração criadora e da revelação imagética. Os poemas que seguem vão apresentar uma vez mais este espaço de delito, em que o autor ousa furtar discursos e versos alheios, como forma de montar um caleidoscópio discursivo em que os possíveis matizes dão o tom à sua obra poética.
Regresso dos Lusíadas Vela parda, barca sem leme/ ao leme da aventura desventurada,/ à praia original regressamos: granito/ e basalto, livor de estátuas perfiladas,/ friagem de sono sem sonhos./ As chagas do tempo e da febre,/ as cicatrizes da ausência e do olvido,/ emprestam à madeira ardida/ dos rostos a pintura de estrangeiros,/ incómoda memória sangrada/ em silêncio, ao longo da noite perplexa,/ à praia original regressamos:/ surda e endurecida no gosto/ da cobiça, não concede a pátria/ o favor que havia de acender/ o engenho. E a magra tença,/ se mal resguarda o corpo enfermo,/ menos resguarda o inverno da alma./ Em cinzas e sombras ao abismo/ baixaremos: esconjuros e autos-de-fé/ não logram corromper a árdua/ incomborência do testemunho/ que somos; mais que a fria/ laje da hipocrisia, durará/ o remorso desta voz enrouquecida (KNOPFLI, 2003, p. 352).
E, na sequência: Terra de Manuel Bandeira Também eu quisera ir-me embora/ pra Pasárgada,/ também eu quisera libertarme/ e viver essa vida gostosa/ que se vive lá em Pasárgada/ (E como seria bom, Manuel Bandeira,/ fugir duma vez pra Pasárgada!)./ Entanto tudo me prende aqui/ a este lugar desta cidade provinciana./ Como deixar ao abandono o olhar/ Luminoso dessa mulher que eu amo?/ Quem responderá às inquietas/ Perguntas de minha filha pequena/ (cabelo curto, olhos de sonho)?/ Quem, no sereno da noite, para as beijar/ com ternura e nos braços acalentar?/ E esta vida, este sítio,/ E estes homens e estes objectos?/ E as coisas que amei e as que esqueci?/ E os meus mortos e as doces recordações,/ as conversas de café e os passeios noentardecer fusco da cidade?/ E o cinema todos os sábados, segurando/ com força a mão de minha mulher?Eles nem são amigos do rei/ e a entrada lá é limitada./ Por isso é que eu não fujo/ duma vez, pra Pasárgada (KNOPFLI, 2003, p. 44).
O poema O Regresso dos Lusíadas, como o nome já faz referência, é uma intertextualidade com Camões; parodiando Os Lusíadas desperta uma imagem poética de ressonância funesta, que 65
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atualiza e subverte a épica camoniana. Neste poema, o sujeito poético está identificado com um coletivo (“ao abismo baixaremos”; “testemunho que somos”), que devaneando sobre a função histórica, acaba por voltar-se a si mesmo num gesto de nostalgia e arrependimento pelo exílio da pátria já transmutada pelo intento do colonizador (“mais que a fria laje da hipocrisia, durará/o remorso desta voz enrouquecida”; “as cicatrizes da ausência e do olvido,/emprestam a madeira ardida dos rostos a pintura de estrangeiros,/incómoda memória sangrada”). Parodiando uma obra épica, que tem como uma de suas características apresentar ações as quais se pode dar um caráter subliminar e heroico, o poeta passa a criticar tal feito grandioso, subvertendo-lhe a ideia original que um poema épico pode apresentar, passa a exprimir um tom mais trágico do que heroico. Knopfli se apresenta, ao longo de sua obra poética, como um sujeito cindido entre o binarismo que lhe atormenta: herança europeia colonial e herança moçambicana pós-colonial. Nessa inconstância identificadora, busca inspiração, como antes referido, em alguns escritores brasileiros, como forma de acender um desejo ufanista e nacionalista que lhe foi subtraído com a diáspora. No poema, apresentado anteriormente, Terra de Manuel Bandeira, o poeta se vale novamente de um tom parodístico e dialógico “(E como seria bom, Manuel Bandeira,/fugir duma vez pra Pasárgada!)” que vem expressar o seu apego à pátria e à família (“Entanto, tudo me prende aqui/a este lugar (...)/Como deixar ao abandono o olhar/luminoso dessa mulher que amo?/Quem responderá às inquietas perguntas de minha filha pequena(...)?”). A dialogia, no sentido amplo, é entendida apenas como conversa, depois como nos ensina Orlandi (1990), passa a ser referida como interação e pode ser entendida como confronto. Não há mais solidão possível dentro do campo da linguagem, a relação com o Outro pode vir a regular, preencher e explicar tudo, tanto o sujeito como o sentido. Dessa maneira, o poeta dialoga com o outro poeta apresentando sua ideia de poder fugir de um espaço que não lhe convém permanecer, devido às inconveniências históricosociais. O outro sujeito poético (Bandeira), que por apresentar circunstâncias melhores “lá sou amigo do rei/terei a mulher que quero na cama que escolherei”, encontra no seu espaço imaginário um bom lugar para se refugiar (“Vou- me embora pra Pasárgada”). Já 66
o sujeito knopfliano, devaneia expressando o desejo de também ir para este espaço imaginário de conforto e regalias, porém as circunstâncias históricas não são as mesmas. (“Eles não são amigos do rei/e a entrada lá é limitada./ Por isso é que eu não fujo duma vez, pra Pasárgada.”). Curiosa é essa forma de expressão, uma vez que mostra o processo de identificação com o Outro como forma de falar de si, de seu lugar, instaurando um processo de autoconhecimento e de justificação da condição de sujeito deslocado do seu tempo e do seu espaço. 4 DA CONDIÇÃO DIASPÓRICA Rui Knopfli recria-se na condição diaspórica como forma de ir revelando nos seus versos o silêncio desabitado, buscando uma condição de sujeito capaz de devanear, produzir sentidos outros num tempo em que ao sujeito só lhe restava o silenciamento. O poeta consegue apresentar, a seu modo, a denúncia de um tempo em que ao “ouvir as vozes que se forem surdindo do esquecimento... “algo sem voz grita e no eco que se desdobra soluçante, recuperamos... o resíduo salino de uma humanidade perdida” Debruçar-se sobre a poética de Knopfli contribui, sobremaneira, para o entendimento de um sistema lusófono de não-pertencimento, da sensação de estar sistemicamente “fora do lugar”. É nessa recuperação do imaginário afro-lusitano, especificamente o moçambicano, que se organizam as possibilidades de transpor essa rede simbólica para a relação colonizador/colonizado que constitui o sujeito cindido e híbrido que se formou a partir do pós-colonialismo. Na poética do autor, apresentase um vetor de contraponto à imposição histórica de conceitos culturais puramente herdados do colonizador. Pode-se observar, desse modo, como se dá esse entrecruzamento cultural, em que não é o Eu-colonizador nem o Eu-colonizado que se representa, mas é o espaço dissonante entre os dois que irá constituir a zona de produção de sentidos da obra knopfliana e que permitirá compreender essa relação da literatura com a história, como forma de se reconhecer a formação sócio-cultural do sujeito pós-colonial.
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MARIA: EMOÇÕES, PERDAS E AÇÕES DE UMA CATIVA EM SÃO LEOPOLDO
Magna Lima Magalhães1 Evandro Machado Luciano2 RESUMO Este artigo tem por objetivo apresentar algumas reflexões acerca da análise de um processo-crime que acusa a crioula Maria, uma escrava nascida no ano de 1853, em São Leopoldo, de ter incendiado a casa de seu ex-amásio, Manoel. O trabalho pretende, a partir da perspectiva da microanálise, acionar trajetórias individuais como um caminho possível para refletir sobre uma complexidade histórica. Nesse sentido, o estudo busca, a partir dos personagens Maria e Manoel, trazer à tona aspectos históricos, os quais envolvem uma sociedade escravagista, seus atores sociais e suas sensibilidades na São Leopoldo do século XIX. Palavras-chave: Processo-crime. Escravidão. Sensibilidade. História. ABSTRACT This article intends to present some reflections about the analysis of a criminal case which accuses the Creole Maria, a slave born in 1853 in São Leopoldo, of having burned the house of her ex-lover, Manoel. The work intends from the perspective of microanalysis, trigger individual trajectories as a possible way to reflect on a historical complexity. In this sense, the study seeks, from the characters Maria and Manoel, bring up historical aspects, which involve a slave society, its social actors and their sensitivities in São Leopoldo of the Nineteenth Century. Keywords: Criminal Proceedings. Slavery. Sensitivity. History.
Docente do Curso de História e do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais. Pesquisadora e líder do grupo de pesquisa Cultura e Memória da Comunidade da Universidade Feevale. E-mail: magna@feevale.br. 2 Acadêmico do Curso de História. Bolsista voluntário do projeto História, Memória e Cultura Negra no Vale do Rio dos Sinos. Bolsista PIBID - Universidade Feevale. E-mail: evandromachado2@feevale.br. 1
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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Não é de hoje que historiadores concordam que a escravidão na província de São Pedro não se diferencia das outras províncias no que tange ao regime escravocrata. A ideia de uma escravidão mais branda que amenizava o peso e o incômodo dos grilhões há muito tempo não encontra mais legitimidade. Ao contrário do que apregoava a historiografia tradicional sobre a constituição histórica do Rio Grande do Sul imperial, o regime escravocrata, nas terras gaúchas, foi tão violento quanto em outros locais do Brasil. O imaginário constituído gradativamente, respaldado na ideia de um estado libertador e republicano, dificultou a desconstrução do mito da escravidão branda no estado sul-rio-grandense. Sandra Pesavento (1993) provoca nossa reflexão ao afirmar que a História jamais deixou de ser um conglomerado de discursos, em eterna disputa para consolidar a representação de uma realidade que já não existe mais, que ficou no passado. Portanto, considerando correta essa afirmação, deparamonos com o fato de que as reconstruções do cenário social gaúcho, no período escravocrata, foram fruto de uma historiografia que lutava pela exclusão dessa mancha que foi a escravidão brasileira. Segundo Moreira (2008): O processo de desvanecimento da invisibilidade dos cativos no RS é gradual; em um primeiro momento, a historiografia aceitou a existência de escravos, mas em pequeno número. Depois, o uso das estatísticas provou que sempre existiram amplos contingentes demográficos de cativos, mas a historiografia defendeu que existiam, mas estavam concentrados em pequenas propriedades e cidades, e eram mais bem tratados do que no restante do país. Finalmente, nos últimos anos, a historiografia regional tem aceitado o fato da abundante presença de escravos no RS e do seu uso em praticamente todos os ofícios, incluindo os rurais, como campeiros e peões etc. (MOREIRA, 2008, p. 54).
Uma questão que merece reflexão é a consolidação do discurso que apontava uma ausência da mão de obra escrava nos espaços de atuação dos imigrantes estrangeiros no estado. Trabalhos como o de Alves (2004) e de Oliveira (2006), entre outros, apontam o contrário e 70
indicam que os escravos, em maior ou menor quantidade, estavam presentes em atividades da lavoura, no comércio, em trabalhos domésticos, em áreas de imigração europeia. O mito do estrangeiro europeu libertador também corrobora a solidificação do eurocentrismo nas relações sociais do microcosmos imperial. Os europeus que aqui chegaram - segundo essa linha de pensamento - não estariam acostumados com o “crime-hediondo”3 da escravidão, sendo assim, prescindiram da mão de obra cativa, utilizando apenas o modo de produção que melhor lhes convinha: o próprio braço. A região que hoje é denominada Vale do Rio dos Sinos, situada nas proximidades da metrópole gaúcha, Porto Alegre, vem sendo alvo de estudos sobre a história da escravidão. Hoje – e não sem resistência historiográfica – podemos compreender que a construção histórica dessa localidade é balizada na multiplicidade de mãos: cativas, livres e libertas. Mas ainda há muito por fazer. Ainda é necessário esmiuçar as relações entre esses sujeitos sociais, para que a elaboração do conhecimento nos aproxime mais do passado e da história dessas localidades até a chegada da Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888, que aboliu a escravidão nas terras brasileiras. É sobre a região do Vale dos Sinos, mais especificamente sobre a colônia de São Leopoldo4, que elaboramos algumas reflexões sobre as relações de poder e os laços familiares entre negros cativos, libertos e brancos. Para tal, valemo-nos da microhistória – também chamada de microanálise – como uma abordagem historiográfica que tem auxiliado para (re)pensarmos a história da escravidão. Nesse sentido, lançamos mão da percepção de Revel, ao apontar que “a abordagem micro-histórica deve permitir o enriquecimento da análise social, torná-la mais complexa, pois leva em conta aspectos diferentes, inesperados, multiplicados da experiência coletiva (REVEL, 2000, p. 18). Assim chamou o Senador Henrique Alves em uma carta denominada “Manifesto dos Abolicionistas” enviada à Câmara de São Leopoldo em 1880. MHVSL (Fundo Correspondências recebidas – Brasil Imperial). Número: 1279. 11 de agosto de 1884. 4 Foi em 1824 que o governo imperial decidiu pela criação de uma colônia de alemães na Feitoria do Linho Cânhamo, que, a partir de 31 de março daquele ano, ficava extinta. É importante destacar que a presença de escravos na Feitoria já se fazia presente antes da chegada dos imigrantes alemães. 3
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Trabalhamos com a ideia de que o historiador deve assumir a postura de um detetive, procurando dar atenção aos detalhes de uma sociedade, atraindo seus olhares para os meandros sociais, para aquilo que acontece longe dos holofotes e das grandes decisões políticas e econômicas, sem, contudo, esquecer os acontecimentos de amplitude nacional e mundial, alinhavando fatores discursivos em diferentes espaços, ou desvelando ideias inconsonantes. O método detetivesco aposta nas relações possíveis e em um diálogo intertextual. É um método que presta atenção aos detalhes, aos sintomas e aos indícios secundários, com propostas de versões explicativas (PESAVENTO, 2008, p. 17). Assim, aproximamo-nos dessa perspectiva historiográfica ao pensarmos as questões centrais deste artigo. A história de um casal “amasiado” que se separa em determinado momento de sua vida. Para tanto, lançamos mão do processo-crime como fonte histórica, cotejando-o com outros documentos, como as cartas de alforrias e um inventário. Ao trazer à luz tais documentos históricos, temos o intento de apresentar ao leitor um exercício de reflexão sobre a escravidão e suas agruras na região dos Sinos, a partir de fragmentos que reunimos sobre a história de Maria e Manoel. Maria, nascida em 1853, vivia sob a condição de escravizada e, no ano de 1879, foi acusada de incendiar o rancho de seu ex-amásio, Manoel. Este, por sua vez, fora escravo em terras vizinhas e aproximou-se da escrava, vivendo amasiado com ela por certo tempo. O que nos chama atenção é o envolvimento dos escravos em discussão jurídica que possibilita a denúncia de um caso de amor, traição, negociação e relação de poder variável. A participação dos atores sociais negros – cativos, livres e libertos –, no que concerne à construção histórica da sociedade brasileira, é imensurável. O olhar microanalítico pôde nos revelar as estratégias políticas que esses sujeitos utilizavam para sobreviver da maneira mais digna dentro de seus próprios arranjos. Assim sendo, as tensões entre os relacionamentos desses seres humanos podem nos servir de base para pensarmos a história de uma forma diferente. Mesmo com o advento de abordagens inovadoras, como a micro-história, a historiografia brasileira levou certo tempo para pensar os escravizados como homens e mulheres de fato. O signo “coisificador” atribuído
a essas pessoas por uma historiografia tradicional, gradativamente, foi sendo questionado e combatido. Sobre o (re)pensar a escravidão na história do Brasil, Chalhoub (2011) assevera: A violência da escravidão não transformava os negros em seres ‘incapazes de ação autonômica’, nem em passivos receptores de valores senhoriais, e nem tampouco em rebeldes valorosos e indomáveis. Acreditar nisso pode ser apenas a opção mais cômoda: simplesmente desancar a barbárie social de um outro tempo traz implícita a sugestão de que somos menos bárbaros hoje em dia, de que fizemos realmente algum progresso dos tempos da escravidão até hoje (CHALHOUB, 2011, p. 49).
Em outros termos, é impossível pensar no escravo como um sujeito com níveis de passividade exacerbada, sem reação – a não ser a violência categoricamente representada nos clássicos da historiografia brasileira. O intuito central do texto que apresentamos é o de fornecer, aos personagens envolvidos nessa trama, uma face humana, como a face de quem erra, acerta, ama, odeia, ou seja, pretendemos levar em consideração as sensibilidades dos nossos personagens, posto que “a sensibilidade traz-se em sensações e emoções, na reação quase imediata dos sentidos afetados por fenômenos físicos ou psíquicos, uma vez em contato com a realidade” (PESAVENTO, 2008, p. 14). Nesse sentido, informamos que nosso trabalho apresenta somente um fragmento de um estudo que está sendo desenvolvido no projeto Memória e Cultura Negra no Vale do Rio dos Sinos5, mas que desejamos socializar com o leitor. Portanto, começamos o desenrolar de “nossa” história apresentando o processo-crime de número 33906.
O projeto é coordenado pela professora Magna Magalhães e tem parceria com a Fundação Scheffel. O estudo está vinculado ao grupo de pesquisa Cultura e Memória da Comunidade da Universidade Feevale. 6 APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul). Processo-crime número 3390. Maço 61, Estante 71. Auto de interrogatório da “crioula” Maria. São Leopoldo, 1879. 5
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2 TRAJETÓRIAS, PERSONAGENS, HISTÓRIAS CRUZADAS Quando Maria foi chamada a depor na delegacia de polícia do “lugar denominado Taimbé, Morro dos Bois”7, primeiro distrito de São Leopoldo, no dia 23 de abril daquele ano (1879), respondeu ao Tenente José Manoel Pereira da Silva dizendo ter “vinte e seis anos de idade, ser solteira, filha de Jozepha, natural desta Província, profissão do serviço doméstico de casa de sua senhora”. Questionada se tinha alguma relação com o crioulo Manoel, disse que “com ele teve relação, porém, deixando depois de continuar a tê-la”. O Tenente Pereira da Silva foi mais longe. Perguntou à interrogada sobre a queima do rancho pertencente a Manoel, se ela sabia quem tinha queimado ou mandado queimar. A resposta foi categórica: “Respondeu que sabe que esse rancho foi queimado, porém, não sabe quem o fez”. Pereira da Silva ainda a questionou sobre uma discussão que teria ela travado com seu antigo amásio, em que era acusada de ameaça de morte. Respondeu ela em sua própria defesa: “disse ao Crioulo Manoel que se ele a metesse na cadeia, ele também havia de ir para a cadeia”. O Tenente, então, fez a fatídica pergunta: questionou se “ela, respondente, nunca disse a alguma pessoa, escrava ou livre, que havia de mandar queimar o rancho do Crioulo Manoel”. A resposta foi sucinta e precisa: “Não”. Mas o oficial não desistira, aquelas perguntas ainda não eram suficientes para ele. Perguntou à Maria: se “ela, sendo solteira e tendo filhos, dizendo que vivia amasiada com o Crioulo Manoel, se depois que este a deixou, tem algum outro e qual seu nome”. A resposta foi curta e objetiva: “Não”. O auto de perguntas tinha seu fim. Maria, essa mulher aparentemente calma, fora acusada por seu ex-companheiro, o “crioulo Manoel”8, de ter incendiado seu rancho. No auto de perguntas direcionadas à acusada, que acima transcrevemos, pode-se notar várias falas da personagem, as quais revelam nas entrelinhas informações importantes. A escrava não deixa pistas do porquê de ter se separado de Manoel, apenas informou não viver mais com ele, tendo sua fala complementada mais abaixo pelo oficial, que afirma que ele “a deixou”. E Atual município de Novo Hamburgo, parte do bairro rural Lomba Grande – RS. 8 Crioulo era uma indicação para os cativos nascidos no Brasil. 7
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se deixou é porque, um dia, com ela esteve – assim diz a lógica. No entanto, a união de cativos não era algo tão extraordinário quanto se pensava até pouco tempo atrás pela historiografia. Muito antes, pelo contrário, as relações no cativeiro eram comuns (SLENNES, 1988, p. 192). O excerto que trazemos à luz neste texto omite, mas o que se encontra em outros fragmentos – e que em outra oportunidade mostraremos ao leitor – é que, após ter deixado Maria, Manoel “casou-se” com outra negra liberta, cujo nome ainda se encontra obscuro para nós. Nesse sentido, podemos dizer que a própria constituição familiar era uma segurança para os escravos e os libertos, podendo ser um dos motivos que levou à separação dos dois, gerando um triângulo amoroso com uma mulher que não devia mais satisfações ao sistema escravagista. Constituir uma família significava, principalmente ao homem, a obtenção de propriedades, como a moradia (LOTT, 2003), o que, nesse caso, foi comprovado, visto que o processo nos apresenta que Maria teria “mandado incendiar o rancho de Manoel”. Também está presente, no texto processual, uma nítida tentativa de diminuição da figura feminina, o que podemos atribuir a uma visão conduzida por uma moral característica da sociedade da época por parte do oficial. A promiscuidade dos sujeitos escravizados – principalmente das mulheres – era um tema relevante na sociedade colonial e imperial de nosso país. Gilberto Freyre (1990, p. 426), em sua análise clássica sobre as relações entre negros e brancos, reitera que a depravação sexual das mulheres negras se dava por conta de um sistema econômico e familiar: o patriarcalismo. A própria prostituição, majoritariamente protagonizada por negras, fora fruto da exploração do homem branco. A imagem da mulher negra promíscua dava o contraste com a pureza da mulher branca, preservando, assim, o sistema escravocrata e legitimando-o ainda por essa porta. O fato de Maria pertencer ao que Graham (2005) chamou de “elite escrava”9 não a livrava de ser tachada de impudica. Portanto, as perguntas 9 Sandra Graham (2005), em seu texto Caetana diz não, afirma que alguns escravos gozavam de um favorecimento, trabalhando na Casa Grande, longe das lidas com a lavoura. Esse favorecimento pode ser lido como uma hierarquização do trabalho.
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direcionadas à escrava não podem ser lidas simplesmente como um mero diálogo, mas como um quinhão importante do discurso formulado pelo Tenente Pereira da Silva para garantir um fim digno ao processo: Manoel, um negro (um homem) que teve seu rancho incendiado por uma mulher negra (uma escrava) depravada em sua essência. Mas, para que possamos dar um desfecho satisfatório a esta narrativa, é necessário que voltemos alguns anos nessa nossa história: antes de Maria e Manoel se conhecerem. Voltemos ao ano de 1865, quando Maria era uma “negrinha” da família Silva. O ano de 1865 foi fatídico para a família Silva, do Morro dos Bois. O patriarca e escravocrata Selestrino José da Silva, dono de 12 negros, entre eles, africanos e crioulos (nascidos no Brasil), partia dessa vida e deixava uma certeza: seus bens deveriam ser partilhados entre os nove filhos e a esposa, Constantina Rosa da Conceição. A prática era quase automática: aquele sujeito que não deixasse um testamento regulamentado por escrito teria suas posses materiais (e, aí, entram seus escravos) inventariados para a devida partilha entre seus descendentes. Caso não houvesse descendentes diretos, seus ascendentes poderiam ser comunicados e beneficiados com a partilha. Mas o fato é que, no ano de mil oitocentos e sessenta e cinco, dentre todos os bens materiais de Selestrino, doze pessoas foram partilhadas. Seriam eles: “José, africano, de idade presumida 38 anos; Manoel, de idade presumida 37 anos; Raimundo [de idade não identificada]; João, de idade 14 anos; Feliciano, cinco anos; Vicente, de idade um mês; Josefa, africana, de idade presumida 44 anos; Margarida, parda, de idade 44 anos; Maria, crioula, de idade 12 anos; Inês, de 11 anos; Leonor, com idade de sete anos”, e um outro crioulo de 18 anos, cujo nome não foi possível encontrar10. “Maria, crioula de idade 12 anos”, a que nos referimos logo acima, é nossa personagem principal, protagonista da trama que aconteceria anos mais tarde. Nascida em 1853, pouco tempo depois (três anos) da extinção do tráfico africano
APERS. Inventário de Selistrino José da Silva. Auto 26. Maço 1. São Leopoldo, 1985.
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(1850).11 Não há como defender que os escravos que aparecem no plantel de Selestrino tinham parentesco com Maria, já que as fontes analisadas até o momento não nos permitem tal afirmação, no entanto, como bem menciona Mattoso (1990, p. 125), “Na África, ser primo ou irmão não implica qualquer vínculo consanguíneo. Os membros de uma mesma etnia consideram-se geralmente irmãos. O que define a família africana é o antepassado comum”. Sabemos que as famílias de escravos que se constituíam nem sempre estavam ligadas por laços de consanguinidade, mas também por laços de proteção, apadrinhamento e compadrio. Redes de solidariedades eram constituídas entre os escravos, o que auxiliava na compra das alforrias, em momentos de negociação e intervenção sobre os castigos destinados a algum membro da família, bem como em outros aspectos que cercavam o cotidiano dos escravos. Antes de analisar alguns aspectos da vida da “ré piromaníaca” de nosso processo e tecer alguns comentários sobre sua existência, precisamos mostrar ao leitor como os laços de convivência entre escravos poderiam ser rapidamente desfeitos na década de 1860. A viúva Constantina foi agraciada com a partilha, já que, dos escravos de seu marido, ficou com cinco: Margarida, Maria, Vicente, João e José. Josefa e Manoel foram enviados a Zeferino José da Silva, herdeiro legítimo do falecido. Os outros foram distribuídos entre os filhos restantes. O que nos cabe analisar neste ponto é o seguinte: segundo a própria Maria - no momento em que se defendia da acusação de ter mandado incendiar o rancho de seu ex-amásio - sua mãe se chamava Josefa. Em 1865, no momento da partilha,12 Josefa foi destinada a Zeferino, escravocrata que vivia na Freguesia dos Anjos13. Em abril de 1866, o mesmo Zeferino libertou sua escrava, sob o pagamento de 1:100$, entregues pelo “preto forro José”. Exatamente, amigo leitor. Essa também foi a nossa Segundo a Lei Eusébio de Queiróz, de 1850, a importação de escravos era um ato de pirataria e estava sujeita à punição. No mesmo ano, ocorreu a emancipação da colônia de São Leopoldo e sua posterior mudança administrativa de capela curada para vila (ALVES, 2004). 12 Em 1869, foi proibida a prática de separar os grupos familiares nas partilhas e vendas de cativos. 13 Parte do atual município de Sapiranga (RS). 11
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surpresa ao encontrar as cartas de alforria de nossos personagens, ligados uns aos outros mesmo após a separação geográfica desses atores sociais. Como José teria libertado Josefa? E por quê? Inspirados na ação detetivesca que o historiador pode assumir, procuramos resolver esse imbróglio que nos assolava dia após dia. A conclusão a que chegamos é plausível e explica as conclusões subsequentes: José, agora escravo de Constantina, conseguira juntar uma quantia considerável de dinheiro e comprara sua liberdade em 13 de outubro de 1865. Menos de um ano depois, o liberto José entregava o suado dinheiro conquistado a Zeferino, para alforriar sua parceira Josefa de infortúnios (ambos eram africanos). O fato que motivara essa profunda necessidade de libertar a mulher: José e Josefa constituíram, ao longo dos anos, uma família; viviam amasiados. Obviamente, como nos lembrou a historiadora Sandra Graham, “um casamento entre escravos não é algo que se espere” (GRAHAM, 2005, p. 50). Mas a mesma autora, mais à frente em sua dissertação sobre a vida matrimonial escrava, admite que a constituição de uma família patriarcal, dentro dos moldes esbranquiçados e europeizados da época, era também um fator de segurança (GRAHAM, 2005). A união de José e Josefa, ao que tudo indica, foi profunda, a ponto de aquele, após ter tido sua liberdade conquistada a um custo bem significativo, voltar ao submundo geográfico-simbólico da escravidão para libertar sua companheira do cativeiro. Linda história, que avaliamos como profunda! Mas, como não estamos falando de fábulas quixotescas, mas, sim, de uma história que envolve uma sociedade escravocrata e seres humanos violentamente escravizados, teremos de deixar o romantismo para outro momento. Debrucemo-nos sobre a vida de Maria, neste instante. Se José foi realmente amásio de Josefa, logo, existem muitas chances de Maria ter sido fruto desse amor transcontinental, o que não deveria interferir em nossa história, não fosse pelo fato de que os amores e as perdas de Maria começaram nesse momento. Vejamos: se a dama ou o cavalheiro que está lendo este texto prestou muita atenção na partilha de bens de Selestrino José da Silva, pôde notar que Josefa foi entregue a Zeferino (morador da Freguesia 74
dos Anjos); José, assim que possível, comprou sua liberdade e deixou a propriedade de sua senhora. Todos os seus Josefa – possíveis – irmãos foram entregues a outros senhores, dentro da mesma partilha (com exceção de um recém-nascido e João, de 14 anos de idade). A única presença familiar que lhe restou foi Margarida, liberta em 1865, sob a condição de servir a Constantina por toda a sua vida. Conforme Karasch (2000, p. 461), “a alforria condicionada exigia certos serviços de um escravo, com freqüência até a morte do dono. Em particular, mulheres idosas que temiam a doença, a idade e a morte recorriam à alforria condicional para proteger uma escrava favorita de seus herdeiros e motivá-la a cuidar delas até a morte”. As fontes silenciam sobre Margarida, não conseguimos rastrear informações sobre a sua vida, ao menos não até o presente momento, mas pensamos na possibilidade de que ela talvez tenha servido como figura materna para Maria nesse ínterim de perdas afetivas. Aos 13 anos de idade, Maria via-se na seguinte conjuntura: escrava de uma senhora viúva que libertou condicionalmente a única escrava adulta; uma mulher que deveria lhe servir de madrinha; um bebê de colo, recém-nascido, que certamente ela teria que auxiliar nos cuidados, e um irmão mais velho. Além disso, José, que, conforme nossa interpretação, era o pai de Maria, depois de livrarse do cativeiro, deixou de conviver com ela. Maria era uma criança e via-se em um cotidiano cruel sem muitos de seus familiares ao seu lado. Não há muitos estudos que primem pela análise da criança escrava e seu cotidiano. Sobre o tema, podemos indicar que a criança escrava prestava serviços desde os 7-8 anos. Nesta idade já se dá conta de sua condição inferior em relação às crianças livres, e este é seu primeiro choque importante [...]. A criança terá que criar suas próprias defesas e, mesmo assim, será ferida em sua afetividade (MATTOSO, 1990, p. 129).
Costumamos encontrar na racionalização do mundo uma explicação louvável para tudo, vítimas que somos do cientificismo sério e antissentimentalista. Mas não podemos esquecer que, quando falamos de escravizados (ou de outros atores sociais), estamos falando de seres humanos
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que constroem afinidades, criam laços de proteção, familiares e sociais. O mínimo que deveríamos fazer ao olhá-los é prestar atenção a suas vidas como homens e mulheres. O que fazemos neste instante é olhar para Maria desta forma: uma criança que se via sozinha no mundo violento da escravatura. Ainda que tenhamos já citado o caso como uma espécie de abandono familiar – tendo José libertado Josefa, e não sua filha, é importante entender alguns aspectos em relação à compra da alforria no “mundo escravagista”. Podemos pensar que José “optou” pela compra da liberdade de sua companheira por amor, por temer pelo seu destino e pelos infortúnios os quais ela enfrentaria. Mas também é importante destacar que as escravas, geralmente mais velhas, tinham o preço mais em conta. Outro aspecto que deve ser mencionado é a preferência pela compra das mulheres para que seus filhos nascessem livres (KARASCH, 2000). Sendo assim, “libertar mulheres do cativeiro era a certeza da geração seguinte nascer livre” (SCHERER, 2008, p. 29). O “preto forro” José negociou a compra de Josefa, pagando 616$ e o restante de 484$ foi “firmado em documento”, porém a “dita escrava” [Josefa] tinha que continuar a “servir o tempo de seis meses”, somente após a carta de alforria teria validade14. Josefa ainda teria que trabalhar mais e ficar à mercê do domínio senhorial por mais algum tempo. A compra da alforria e a conquista da liberdade não eram nada fáceis no mundo escravagista. E quanto a Manoel, aquele que ao ser alforriado deixou Maria? Manoel, crioulo de 25 anos, era cativo de Albino José de Mello, também morador de Morro dos Bois. O escravo conseguiu comprar sua liberdade, em 14 de outubro de 1878, mediante ao pagamento de 600$ e “em virtude de sua capacidade e me merecer atenção”15. Não podemos esquecer que Manoel morava no rancho que ficava em terras de seu senhor, o que nos leva a pensar que Manoel continuou trabalhando para ele após pagar pela alforria, e ainda podemos entender que o “merecedor” seria digno de confiança, um bom trabalhador, fiel ao seu senhor. E, tendo constituído APERS. Carta de Alforria .073. Fundo Tabelionato de São Leopoldo. Livro 13, p. 49. 13 ago. 1865. 15 APERS. Carta de Alforria . 073. Fundo Tabelionato de São Leopoldo. Livro 2, p. 205. 16 out. 1878. 14
família com uma forra, tornava-se mais confiável e um melhor trabalhador, a família (mais braços) poderia trabalhar nas terras do senhor. Maria já crescida e adulta, muito provavelmente, tinha expectativas em relação a Manoel e a sua nova condição. Quais seriam as expectativas de Maria em relação a Manuel? E é a esse ponto-chave que queríamos chegar desde o início, mas que não seria possível fazê-lo sem o delineamento da história de vida da crioula. Quais sensibilidades afloraram em Maria quando seu amásio conseguiu a liberdade? Imaginava ela que agora, com a ajuda de Manuel, também teria a oportunidade de ser livre? Não podemos afirmar absolutamente nada, no entanto podemos entrar no “campo de possibilidades” e elaborar alguns questionamentos e hipóteses sobre nossa personagem. Maria perdera muita coisa ao longo da vida. Perdera a mãe e o pai. Distanciou-se daqueles que convivia a partir da partilha que ocorreu quando ainda era uma criança. Talvez não compreendesse muito bem o ato do pai de comprar a liberdade de Josefa, e não a sua. Sem amigos, irmãos, parentes que lhe confortassem em meio a um mundo de desilusões, depositava sua própria vida em Manoel. Já este, ao se tornar livre dos grilhões do cativeiro, rompeu também com qualquer forma simbólica que lembrasse a escravidão, sendo assim, distanciouse de Maria, sua amásia escrava. Certamente, o distanciamento gerou o descontentamento da ex-amásia, que teve seus sentimentos e suas perspectivas frustradas. Neste momento, retomamos a pauta principal no processo-crime: Maria incendiou o rancho de Manoel? O processo-crime não responde à questão proposta. Não intencionamos olhar para o passado como profetas e, a partir das circunstâncias históricas, sentenciar um ator social através de uma justiça imaginária e retroativa. Mas objetivamos procurar estabelecer algumas reflexões que possam tornar compreensíveis as ações desses sujeitos em meio a uma complexidade histórica. Sendo assim, consideramos positiva a resposta, argumentando com elementos da trajetória de Maria. Em estudo recente, Wissenbach (1998) informanos que, antes de afirmar que escravos e negros(as) libertos(as) cometiam crimes, precisamos arrolar as suas concepções de justiça e de normativas sociais. Segundo a autora, as acepções acerca do que era crime e do que era de natureza justa eram muito 75
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diferentes do que era sancionado socialmente. É claro que não podemos perder de vista que a norma condutora de um regime de escravidão é a violência cotidiana. E esse fator é representativo no que tange às próprias relações sociais, quando as disputas de poder e de espaços de dominação eram igualmente vivenciadas diariamente. Não obstante, outro fator de imensa relevância é que não eram raras as ocasiões em que “escravos e parceiros livres disputavam mulheres cativas ou libertas, nas alterações nos jogos de valentia, nos preconceitos raciais e sociais que perpassavam suas relações” (WISSENBACH, 1998, p. 50). No contraponto deste excerto é que se torna possível enxergar a autonomia de Maria e sua força ao enfrentar a sociedade patriarcal na qual estava inserida. Se aceitarmos que o rancho de Manoel foi incendiado por sua ex-companheira, teremos margem para crer que a ação incendiária não foi mais que uma estratégia de disputa de poder. Uma atitude desesperada de quem está imerso em um mundo de violências físicas e psicológicas, de perdas familiares traumáticas e de constante tensão e que, em último instante (no nosso entendimento), mais uma perda se concretiza, impõe-se pela violência concreta. A ação de incendiar o rancho esconde a problemática central que é o drama de vida da escrava Maria e as sucessivas quebras dos laços afetivos. A força dos cativos em resistir ao regime escravocrata pode ser encontrada em muitas faces, dentre elas, a de Maria. Não nos enganemos ao pensar que, dentro da sociedade escravista, os cativos se submetiam a toda e qualquer degradação sem responder a elas. O fato de o homem se sobressair nas relações de poder só faz aumentar os níveis de resistência. Afinal, da mesma forma com que o poder só existe nas relações sociais, inexiste sem resistência (FOUCAULT, 2003). Maria, ao incendiar o rancho de seu ex-companheiro, agia e se contrapunha a uma situação estabelecida, mostrava seu descontentamento e expunha suas sensibilidades. É a resposta de que, talvez, a escrava Maria direcione ao abandono sofrido pelo companheiro, Manoel, que, ao conquistar a liberdade, afastouse dela e “casou-se” com outra mulher forra. Poderíamos pensar nas sensibilidades de Maria, já que suas emoções (tristeza, frustração, raiva) lhe rendiam, provavelmente, além do sentimento de 76
abandono, a perspectiva de ter sido trocada por outra mulher, uma forra. Maria continuava no local de nascimento, sob o domínio de uma senhora e, ao que tudo indica, distante da liberdade, abandonada pelo seu amásio. No campo das relações sociais, o historiador deve sempre pensar na reconstrução de relações de pessoas em sentido vertical e horizontal (GRENDI, 2009). Portanto, não podemos perder de vista que as fraquezas de Maria não se devem apenas às ações de opressão às quais era submetida diariamente, mas também à inexistência de familiares que lhe trouxessem firmeza ao galgar a felicidade em suas relações afetivas e sociais. Se, para as relações familiares entre negros escravizados, a família sempre teve papel fundamental (SLENNES, 1988), precisamos conjecturar as poucas referências familiares de Maria como um fator predominante para suas sensibilidades (emoções), que também podem tê-la levado a cometer o crime e, provavelmente, vingar-se do abandono de Manuel. Compreendemos, dessa forma, que não havia um motivo específico para a ação de incendiar o rancho de Manoel, mas uma conjuntura de fatores, que, se analisados junto à trajetória de vida da cativa Maria, ajudam os expectadores da história a construir possibilidades de encontrar razões cientificamente estabelecidas para atos de emoção e de impulsos passionais. O que certamente fica nítido é que a cativa Maria, mesmo passando por tantas agruras, se posicionou, mostrou que, apesar dos “grilhões”, ela buscava sua autonomia a partir de brechas do sistema vigente. Mostrou seu descontentamento e indicou que o cativeiro não inibiu o seu potencial de reação, de fazer escolhas, de burlar regras e de transgredir o que para muitos era impossível de ser transgredido, ou seja, a violência e os infortúnios de uma sociedade escravocrata. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nossas reflexões acompanham a esteira de uma perspectiva historiográfica que percebe o sistema escravagista permeado por uma complexidade histórica. Sendo assim, distanciamo-nos da percepção do escravo vitimizado. A crueldade, a violência e a tentativa de desumanizar homens, mulheres e crianças em uma sociedade escravocrata estiveram presentes em diferentes momentos e com requintes diversos, não há como negar tal fato em nosso processo histórico. No entanto, procuramos
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valorizar a agência dos cativos, suas ações, seus pequenos atos, suas negociações, suas pautas, ou seja, entendemos que os cativos tinham uma percepção do mundo que os cercava e acionavam uma série de estratégias para lidar com as agruras e os infortúnios de uma dura realidade cotidiana. Propomo-nos, a partir de algumas reflexões e especialmente dos personagens Maria e Manuel que apresentamos ao leitor, revisitar velhos temas, porém sem incorrer em regras de modelos homogêneos e generalizantes. Lançamos mão da microanálise e de dados empíricos como forma de trazer à tona personagens comuns, mas que nos auxiliam a pensar a constituição histórica de São Leopoldo e sua relação com o sistema escravocrata, bem como suas singularidades locais e regionais. Procuramos humanizar nossos personagens no intuito de “atingir” suas sensibilidades. Ao nos depararmos com Maria, fomos aguçados pelo desejo de conhecer mais, de buscar, no fundo do passado, quem era a menina cativa que se tornara uma mulher acusada de cometer um crime, o de incendiar o rancho de seu ex-amásio. Maria tornouse encantadora, já que nos instigou a tentar buscar um fio condutor para nossas reflexões e entender as particularidades do mundo do cativeiro em São Leopoldo no século XIX. Certamente não conseguimos nos aproximar dela e dos demais personagens como gostaríamos, pois as fontes históricas silenciam em diferentes momentos, desafiando-nos e propondo o exercício imaginativo contínuo, mas também nos propondo um campo de possibilidades acerca do cenário e de nossos protagonistas. Elaboramos e propomos ao leitor um pequeno fragmento de nossos estudos que estão sendo desenvolvidos no projeto História, Memória e Cultura Negra no Vale do Rio dos Sinos, certos de que, através de Maria, trazemos à luz outras tantas meninas-moças e outros tantos sujeitos que outrora tinham um único desejo: a liberdade. O significado da liberdade, seus limites e condicionamentos dependiam de uma série de aspectos (sociais, políticos, econômicos, regionais, entre outros) presentes no cenário escravagista, bem como de seus atores sociais e suas lutas para alcançar a liberdade.
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A RESISTÊNCIA DA ORALIDADE PELA CULTURA: EXPERIÊNCIAS E PRÁTICAS DE UMA GRIÔ
Denise Marcos Bussoletti1 Vagner de Souza Vargas2 Cristiano Guedes Pinheiro3 RESUMO As narrativas orais ainda não têm recebido o devido reconhecimento nas políticas públicas do Brasil. O Núcleo de Artes, Linguagem e Subjetividade (NALS), da Universidade Federal de Pelotas, desenvolve várias atividades acadêmicas e ações culturais na cidade de Pelotas/RS. Uma parte dessas ações é desenvolvida por uma mestra griô. O objetivo deste trabalho é apresentar algumas das atividades desenvolvidas pela griô junto aos projetos do núcleo, como mecanismo de resistência da oralidade pela cultura. As atividades desenvolvidas pela griô vêm ao encontro das propostas de Pedagogia da Fronteira e Estética da Ginga defendidas pelo NALS. A maneira como a griô mantém a ancestralidade viva promove um outro olhar para o processo educativo, não como uma determinação acadêmica formal institucionalmente fixada, mas como uma maneira sensível, popular e cultural de manter essas tradições inesquecíveis. Palavras-chave: Educação. Pedagogia da Fronteira. Estética da Ginga. Griô. ABSTRACT Oral narratives have not yet received due recognition in public policy in Brazil. The Nucleus of Arts, Languages and Subjectivities (NALS), from Federal University from Pelotas (UFPEL), develops several activities academically or through cultural actions in Pelotas/RS, southern Brazil. The aim of this work is to present some of the activities undertaken by a Griot in the projects of the NALS, as a mechanism of resistance of the orality through culture. The activities developed by the Griot come with the proposals of the Border Pedagogy and Aesthetics of Ginga defended by NALS. The way as the Griot keeps the ancestrality alive, promotes another look to the educational process not as a formal academic determination institutionally fixed, but as a sensible, popular and cultural way to keep these traditions unforgettable. Keywords: Education. Border Pedagogy. Aesthetics of Ginga. Griot.
Doutora em Psicologia, Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação. Faculdade de Educação. Universidade Federal de Pelotas. Pró-Reitora de Extensão e Cultura da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: denisebussoletti@ gmail.com. Endereço: Rua Alberto Rosa, 154. Campus das Ciências Sociais – 2º andar. CEP 96.101-770 Várzea do Porto - Pelotas – RS – Brasil. Phone/fax: (53) 3284 55 33 e 3284 55 41. 2 Doutorando em Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas, Bolsista CAPES Ator, Licenciado em Teatro. E-mail: vagnervarg@yahoo.com.br. 3 Doutorando em Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas. Diretor/ Presidente da Fundação de Apoio Universitário (FAU/UFPEL). E-mail: cgptapes@gmail.com. 1
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1 INTRODUÇÃO A valorização das narrativas orais ainda não possui um respaldo consolidado nas políticas públicas de nosso país. Apesar de o Brasil possuir uma importante riqueza e diversidade étnico-cultural espraiadas entre as vastas regiões geográficas que compõem seu território, imprimindo peculiaridades e singularidades típicas de cada região, a proteção do patrimônio imaterial de onde nascem essas pessoas e suas histórias, considerando-as como expressões de múltiplos conhecimentos e de resistência de uma memória que se alicerça nas narrativas orais, ainda se mostra bastante discreta nas ações políticas efetivamente ativas. Mesmo com seus quinhentos anos de história, no que tange às políticas públicas, a valorização das narrativas orais como patrimônio imaterial é bastante recente no Brasil. A implementação da convenção da UNESCO (da qual o Brasil é signatário), a previsão constitucional dos direitos culturais (BRASIL, 2011, Art. 215-216) e a implementação de políticas referentes ao reconhecimento e à valorização do patrimônio cultural brasileiro (a instituição do Registro dos Bens Culturais Imateriais Brasileiros e o Plano Nacional de Cultura4) que possibilitaram e prometem também promover a salvaguarda do patrimônio imaterial no país foram algumas das atividades que vieram a legitimar as narrativas orais como patrimônio imaterial em nosso país. O Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão vinculado ao Ministério da Cultura (MinC) do Brasil, é a instituição responsável pelo inventário, pelo registro e pela elaboração de planos de garantia e proteção do patrimônio imaterial no País (PINHEIRO, 2013). A diversidade e a riqueza do patrimônio imaterial brasileiro manifestam-se de diferentes formas, dentre elas, salientamos a necessidade de ressaltarmos as narrativas e os narradores de histórias orais, oriundos tanto das grandes cidades quanto de pequenos povoados em localidades remotas do território brasileiro. Nesse sentido, podemos incluir aí uma infinidade de “conhecedores”,
O Plano Nacional de Cultura, aprovado pela Lei Federal nº 12.343, de dezembro de 2010, teve suas metas definidas em dezembro de 2011. São, ao todo, 53 metas a serem implementadas até 2020 (BRASIL, 2010; MINC, 2011). 4
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mestres, contadores de histórias, saberes e expressões populares e tradicionais que não estão sob a proteção dos instrumentos legais, nem amparados por políticas públicas de valorização, reconhecimento e melhoria das condições de vida. Porém, esses sujeitos, suas histórias, suas tradições e seus aspectos culturais existem e persistem, estão nas cidades, nos bairros, nas pequenas e grandes comunidades. O Núcleo de Artes, Linguagem e Subjetividade (NALS), da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) desenvolve várias atividades acadêmicas e ações culturais na cidade de Pelotas/RS. Uma parte dessas ações é desenvolvida pela griô Dona Sirley. O trabalho de Dona Sirley, em associação ao NALS, consiste em contar histórias sobre seus ancestrais africanos e a sua história pessoal, encadeada com lembranças e memórias de lugares e eventos por ela vividos, mantidos e repassados aos ouvintes por meio de uma metodologia própria. Durante o desenvolvimento dessas atividades, a memória acontece como experimentação e celebração, em um contexto em que podemos vivenciar a potencialidade e a força das narrativas populares e, especificamente, da oralidade como fonte de acesso aos registros de importância singular. O objetivo deste trabalho é apresentar algumas das atividades desenvolvidas pela griô Dona Sirley junto aos projetos do NALS, como mecanismo de resistência da oralidade pela cultura. Além disso, também exporemos, brevemente, alguns dos preceitos teóricos do NALS que encontram pontos de identificação com as abordagens realizadas pela griô. 2 A GRIÔ, SUAS HISTÓRIAS, SEUS SABERES, SUAS MEMÓRIAS E AS NARRATIVAS QUE PASSA ADIANTE Para podermos descrever as atividades da griô Dona Sirley junto ao NALS, inicialmente, precisamos compreender o significado do termo griô. Essa terminologia tem origem africana e, segundo KiZerbo (1982, p. 27), os griots são “velhos de cabelos brancos, voz cansada e memória um pouco obscura, rotulados às vezes de teimosos e meticulosos”, mas que são responsáveis pela manutenção da história oral. Esse autor também refere que, ao concentrarem grande parcela do conhecimento e das tradições africanas, cada vez que falece um desses guardiões
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dos saberes populares seria como se uma fibra do “fio de Ariadne” se quebrasse. Os contadores de histórias mantêm em sua memória saberes e fazeres culturais, passados de geração em geração, ensinados de pais para filhos, de avós para netos, de velhos para jovens (PINHEIRO, 2013). Na história africana, segundo Ki-Zerbo (1982), as fontes para o seu conhecimento sustentam-se sobre três pilares: os documentos escritos, a arqueologia e a tradição oral. Esse autor considera ainda que, junto com o testemunho escrito e o arqueológico, a história oral tem se transformado numa importante fonte para a história africana. Amadou Hampâté Bá (1982) ressalta a importância da oralidade para a manutenção da história da África. Segundo esse autor, seria impossível tratar da cultura, sem fazer referência à importância da tradição oral na África. Nesse sentido, os griôs ou griots (segundo a terminologia francesa), atuariam como elementos mantenedores de aspectos culturais e históricos importantíssimos de suas localidades e que, nem sempre, aparecem nos livros de histórias oficiais. Esses mestres da cultura popular desenvolveriam suas atividades por meio de diferentes abordagens metodológicas, sejam elas por contações de histórias, atividades artísticas ou festejos populares nas localidades por onde passem (PINHEIRO, 2013). Desse modo, podemos, a partir de agora, considerar as relações desenvolvidas pela griô Dona Sirley em consonância com as origens dos griôs africanos. Dona Sirley, a mestra griô, faz parte do movimento negro da cidade de Pelotas/RS. Uma contadora de histórias de 77 anos, que desenvolve seus trabalhos contanto histórias de sua ancestralidade pelas antigas charqueadas pelotenses e de suas próprias vivências pelo carnaval da cidade, cenário a partir do qual emerge a maior parte de suas memórias. Dona Sirley é uma costureira aposentada que mora na periferia de Pelotas. Além de griô, é uma ativista cultural, atuando ativamente em diversos grupos de promoção e valorização do negro, do idoso e de trabalhos com crianças, além de ser uma reconhecida carnavalesca pelotense. Juntamente com o NALS, Dona Sirley desenvolve oficinas de contação de histórias. A contação de histórias é um termo que adotamos a partir das ações formativas de comportamento leitor, especialmente, daquelas que se amparam não
apenas em textos literários. As oficinas de contação de histórias decorrem, assim, da compreensão da centralidade do papel das narrativas orais e dos narradores na luta contra o empobrecimento da experiência, tal como Walter Benjamin (1984) sugeriu ao referir a narrativa como experiência, ou como luta contra o empobrecimento desta pelas atividades que foram sendo implementadas no marco industrial capitalista. Em resumo, podemos dizer que essas atividades são estratégias de formação e valorização das identidades sociais no diálogo com a cultura, em sua pluralidade significativa, tendo a memória como fio condutor na compreensão de que os sujeitos possuem ou podem possuir tanto de si quanto do mundo. Os participantes das oficinas pertencem aos mais diferentes grupos, e o ambiente é escolhido de acordo com os objetivos específicos de cada atividade que será desenvolvida. Desse modo, existem oficinas que acontecem em instituições de assistência social para crianças, jovens e idosos, outras que são realizadas nas escolas, nas praças, no calçadão da cidade, em eventos acadêmicos e culturais, em livrarias, cafés e outros que são escolhidos de acordo com as necessidades das ações pretendidas. Além dessas atividades locais, Dona Sirley também representa o NALS em eventos fora do município. Como exemplo, podemos citar a “Teia”, encontro nacional dos Pontos de Cultura, e encontros nacionais das entidades que integram o Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, através da Secretaria da Diversidade Cultural e que, em 2014, aconteceu na cidade do Rio de Janeiro, para onde Dona Sirley foi com um estudante da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), membro do NALS, para ser uma das duas representantes do Rio Grande do Sul (RS) nesse evento. Também em 2014, a griô participou do Fórum Latino-americano de Memória e Identidade, que aconteceu em Montevidéu, no Uruguai, ao qual, mais uma vez, foi acompanhada, tendo sido protagonista das apresentações do NALS. Salientamos que, em suas oficinas e nas demais atividades, Dona Sirley costuma chamar os participantes para fazerem parte de suas performances, para, então, começar a tramar os primeiros fios de suas histórias, relatando fatos, mitologias recriadas, traços, lembranças e características culturais de seus ancestrais africanos, histórias dos tempos das charqueadas (parte da 81
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história local) e da própria tradição do carnaval no município de Pelotas. Por meio das suas histórias aparentemente simples, Dona Sirley ressalta questões das diferenças de etnia, gênero e de formação social da região sul do RS. Além das histórias, Dona Sirley compõe músicas, nas quais imprime essas questões perpassadas por fatos históricos através de sua interpretação e autoria. Essas músicas são utilizadas durante as oficinas como meio e elo de integração com os participantes. Além de contar e cantar suas histórias, Dona Sirley ressalta particularmente o valor na lembrança de uma Pelotas negra, geralmente, esquecida de ser valorizada pela “história oficial” através da tradição europeia acentuada nos registros históricos escritos locais. A mestre griô, durante suas atividades, também organiza o que podemos considerar como sendo um ritual em que são confeccionados objetos e executadas atividades com o intuito de ir tecendo as histórias e as músicas em algo material, como uma colcha de retalhos, por exemplo. Entre uma história e/ou uma música e outra, a griô Dona Sirley convida os participantes para dançarem e/ ou encenarem o que está sendo contado naquele momento. Facilmente, os participantes entram nesse universo lúdico que a mestra vai criando lentamente ao longo da oficina. Na oficina de fuxicos5, a griô ensina a técnica de confecção de fuxicos e de como construir outros objetos e vestimentas a partir deles. Mas, ela vai além disso, estimulando os participantes a trocarem histórias para cada novo fuxico criado. Essas oficinas, normalmente, são constituídas de três momentos: a apresentação, a troca de histórias e a despedida. Na apresentação, ocorre a entrada da griô utilizando uma canção escolhida, cantada por ela e ensinada no decorrer aos participantes. Tais canções, na maior parte das vezes, são canções populares e, em cada uma, uma lembrança é evocada e partilhada com o grupo. Logo após, as histórias vão sendo 5 O fuxico é uma técnica artesanal que aproveita sobras de tecidos para fazer uma pequena trouxinha de pano. Sozinho, o fuxico pode ser utilizado como adorno, costurado um a um, pode cobrir almofadas, bolsas, roupas e uma infinidade de outros objetos. Segundo o conhecimento popular, o fuxico surgiu nas senzalas, quando as escravas, ao costurarem os retalhos desprezados pela casa-grande, ficavam conversando sobre o dia a dia (FAJARDO; MATHIAS; AUTRAN, 2002, p. 74).
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trocadas durante a construção dos fuxicos feitos por todos. Por fim, a saída da griô acontece através de um canto coletivo caracterizando a despedida e a finalização do trabalho. Outras atividades desenvolvidas por Dona Sirley são as oficinas com as crianças, como parte do projeto da Confraria do Fuxico, em que, além de contar as suas histórias e de ler outras histórias, as crianças vão ajudando a griô a costurar uma saia com fuxicos, à qual cada uma adiciona um fuxico e, dentro dele, insere uma palavra relacionada a uma história que conheça. Para cada nova história, uma palavra e um fuxico são adicionados. Nesse trabalho, a relação entre a música e a literatura se fazem fortemente presentes. Entre as leituras preferidas, estão as crônicas do escritor Eduardo Galeano, como, por exemplo, a “A casa das palavras”, do Livro dos Abraços. Outras atividades se caracterizam por Oficinas de confecção de bonecas de pano ou abayomi. As bonecas aqui criadas fogem aos estereótipos das bonecas vendidas pelo comércio em geral, com as tradicionais características caucasianas, e remontam a uma tradição quase perdida e/ou esquecida de confeccionar bonecas com traços de identificação étnico-cultural com os participantes da oficina. Cada boneca confeccionada pelo grupo surge a partir de uma das histórias contadas durante a oficina. Cabe salientar que essas bonecas são criadas com traços e características relacionados à cultura de matriz africana. Durante a confecção das bonecas abayomi, Dona Sirley conta aos participantes as histórias relacionadas às origens dessas bonecas, quando eram criadas a partir de retalhos de tecidos rasgados. Essas bonecas são costuradas sem olhos, nem boca, mantendo a tradição que as mulheres negras realizavam durante o período de escravidão brasileiro. Segundo Dona Sirley, essas bonecas, apesar do aspecto lúdico e alegre do brinquedo criado, também trazem uma mensagem de opressão pela falta dos olhos e da boca. Já nas oficinas de Histórias de amor e carnaval, a griô Dona Sirley insere e revive os elementos do carnaval, com os participantes vestindo indumentárias relacionadas a personagens típicos dos carnavais antigos, como, por exemplo, as baianas, os mascarados, os palhaços, entre outros. Nessas atividades, o foco são as histórias de carnaval relacionadas à formação histórica da
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cidade de Pelotas, intercaladas por momentos em que são cantadas e dançadas algumas marchinhas dos antigos carnavais. Em outras atividades, Dona Sirley, juntamente com os integrantes do NALS, realiza o Cortejo Griô. Nessas ações, reúnem-se vários agentes sociais e culturais da cidade, em especial, representantes do movimento negro, para desenvolverem atividades itinerantes pelo centro histórico da cidade, divulgando a cultura de matriz africana, como rodas de capoeira, sambas de roda, apresentações de dança, exposição de fotografias que trazem imagens das antigas charqueadas e dos primeiros africanos a chegarem ao RS e também exposição de estandartes e camisetas históricas de várias escolas de samba locais. Todas essas atividades possuem o mesmo fio narrativo e fluem na perspectiva da contação de histórias referida anteriormente. O caráter informal das atividades desenvolvidas pela griô Dona Sirley manifesta-se nas experimentações e possibilita ao participante transitar entre espaços e conceitos que algumas formalizações mais institucionalizadas poderiam dificultar. Além disso, suas atividades conseguem abordar e tocar os participantes de uma maneira leve, simples, rápida e envolvente, trazendo todos para o universo vibrante de suas histórias. Com o seu carisma, Dona Sirley consegue estimular o público para que todos contribuam, ao trocarem e acrescentarem suas histórias em um jogo prazeroso, ressaltando na forma final o valor da riqueza da diversidade cultural brasileira. 2 ALGUMAS PROPOSTAS DO NALS E AS ATIVIDADES DA GRIÔ: TEORIA ENCONTRANDO A PRÁTICA O NALS desenvolve todas as suas atividades respaldado em preceitos teóricos que se propõem a buscar novas alternativas de pensamento/ posicionamento ético, estético e pedagógico. Nessas propostas, são considerados e respeitados os diversos agentes formadores de nossa história, suas histórias e vozes, além de haver a compreensão, o valor e o respeito de que muitos grupos sociais desenvolvem pedagogias próprias que não se enquadram nas normatizações políticas oficiais contidas nas abordagens e metodologias caucasianas, europeias e elitizadas. O NALS busca os sujeitos que, muitas vezes, não têm oportunidade de receber reconhecimento
acadêmico e, muito menos, de ter a sua própria condição existencial considerada pelos órgãos oficiais. Entretanto, para realizar essas atividades, o NALS propõe que outras pedagogias sejam criadas e/ou reconhecidas, com o intuito de mostrar a pluralidade de ações desenvolvidas em nossa sociedade, que nem sempre estão visíveis aos órgãos midiáticos, políticos e governamentais, como detentoras de uma validade em si, desvinculada das normatizações das propostas pedagógicas tidas como oficiais. Sobre esse assunto, destacamos o que Arroyo (2014) refere ao dizer que: Ao se afirmar presentes como sujeitos políticos, sociais exigem o recontar dessa história pedagógica que os segregou como sujeitos e os relegou a meros objetos, destinatários das pedagogias hegemônicas. Exigem que sua história seja reconhecida, ou melhor, que as narrativas da história oficial das teorias pedagógicas sejam outras (ARROYO, 2014, p. 12).
O NALS busca uma pedagogia que foque seu compromisso para o restabelecimento da formação pedagógica, mantendo o espaço para perguntas, mais do que para respostas conceituais e finalizadas, amparando a experiência radical da diversidade e da diferença, aproximando-se e diluindo as linhas que às vezes separam e criam fronteiras, muitas vezes, pensadas como intransponíveis. Esse posicionamento é assumido pelo NALS como Pedagogia da Fronteira (BUSSOLETTI; VARGAS, 2013). A origem desses conceitos surge a partir de embasamentos nas teorias de Pedagogia de Fronteira proposta por Giroux (1992) e de Identidade de Fronteira referida por McLaren (1999). Ao compreender esse processo dentro desses referenciais teóricos, acabamos por revelar estéticas emergentes derivadas de uma mestiçagem e os cenários com os quais a interculturalidade lida, configurando o que nós também defendemos como Estética da Ginga (BUSSOLETTI; VARGAS, 2013). A Estética da Ginga desenvolve-se a partir do trabalho conceitual de Hélio Oiticica (1939-1980). Oiticica buscava o que está além da arte, a qual ele denominou “intervenção”, assumindo que todo participante da obra não seria um mero espectador, passivo, mas que teria a possibilidade de intervir, agir e criar a obra que estava sendo proposta naquele momento (BUSSOLETTI; VARGAS, 2013). Oiticica 83
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transfigura espectador em “participador”, esse sujeito que dança no espaço e atravessa o tempo dando plasticidade à obra, que, dessa forma, pode ser reconhecida também como experiência coletiva. Participador e obra tornam-se, assim, inseparáveis, produtos e produtores de outra premissa estética (BUSSOLETTI; VARGAS, 2013). A partir da experiência artística de Hélio Oiticica, podemos retirar aspectos que nos possibilitam reconhecer as potencialidades de todos os sujeitos intervirem nas ações sociais, propondo outras alternativas ao que havia sido previamente concebido. Com base nisso, o NALS, defende a possibilidade de experimentação artística pela educação, como uma teia que é realizada por entre as fronteiras. Nesse sentido, o NALS propõe “exercícios para um comportamento”, como referido por Oiticica, operacionalizados através da participação e da transmutação do espectador em narrador, cuja autoria é manifestada pela vivência, como uma manifestação de vida na direção da criatividade ativa. Essa proposta desterritorializa comportamentos e possibilidades suprimidos e/ ou escondidos, encaminhando o espaço educativo no sentido de transgressão e resistência de práticas alternativas, não submissas aos conceitos adquiridos a partir da tradição histórica e política mantida pelo culto das regulares estabilidades consumíveis como produtos de uma forma contestável (BUSSOLETTI; VARGAS, 2013). Relacionado a isso, destacamos o que Arroyo (2014) refere ao dizer que: Reconhecer que esses povos têm Outras Pedagogias produtoras de saberes, de modos de pensar, de se libertar e humanizar, desestabilizaria a própria autoidentidade da pedagogia hegemônica. Essa, tem sido, ao longo da história de resistências às pedagogias colonizadoras, uma das funções dos movimentos sociais: desestabilizar a pedagogia hegemônica nas bases de sua auto-identidade [...] Os movimentos de resistência a toda forma de subalternidade até pedagógica não se limitam a criticar e desestabilizar as bases da pedagogia hegemônica, mas constroem e afirmam Outras Pedagogias (ARROYO, 2014, p. 30).
Para que aconteça uma ruptura com os modelos de produção dos silenciamentos impostos, é necessário focar na procura das vozes e dos
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conceitos silenciados, mergulhando na identificação de suas diferenças e nas problemáticas de suas adversidades, com o intuito de que as possíveis distâncias não afastem ainda mais as alteridades. Assim, nós estaríamos minimizando as dificuldades em estabelecer propostas pedagógicas eficientes, capazes de gerar identificação e significação nos mais diferentes grupos sociais. De acordo com o princípio de Estética da Ginga, referido por Jacques (2003), tendo como base o trabalho de Hélio Oiticica, a mistura e a interlocução de diferentes aspectos são capazes de gerar uma nova informação que, pelo trânsito e movimento, como na cadência de um samba, permitem que as trocas e os intercâmbios possam acontecer, se manterem ativos e constantes em sociedade (BUSSOLETTI; VARGAS, 2013). Portanto, podemos pegar apenas esse aspecto da Estética da Ginga para conceber que ela propiciaria aos indivíduos alcançar um estado em que o prazer, a alegria, o divertimento e a felicidade fossem gerados pela aceitação e percepção de que as diferenças existem, mas que se abrem para possibilidades de movimento e trocas entre elas, gerando um novo colorido, o qual apenas enriquece as características e as relações sociais frente a um estado de respeito e apreciação de todo o espectro de matizes que constituem a identidade dessa população (BUSSOLETTI; VARGAS, 2013). Ao assumir esses preceitos, os integrantes do NALS sabem que estarão propondo outras alternativas socioeducativas, o que vem ao encontro do que Arroyo (2014) refere ao dizer que: Para repensar-se, as teorias e pedagogias sócio educativas terão que repensar as formas como têm sido pensados os diversos e os diferentes em classe, raça, etnia, gênero, campo, periferia. Mas, também repensar o Nós como a pretensa síntese da humanidade, da cultura, da civilização (ARROYO, 2014, p. 59).
O NALS traz essas premissas como suas propostas, com o objetivo de resgatar, reconhecer, identificar e propor outras alternativas éticas, estéticas e pedagógicas. Para que isso ocorra, as artes funcionam como o local de fala/ação das atividades realizadas pelos diversos integrantes do NALS, dentre eles, a griô Dona Sirley.
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS As atividades desenvolvidas pela griô Dona Sirley, junto ao NALS, não apenas revelam uma importante parte da história brasileira que foi silenciada ao longo do processo de colonização europeu no RS. Os trabalhos dessa griô expõem e também servem como denúncia do silenciamento e à castração de costumes, culturas, hábitos, religiosidades, mitologias e tradições que ocorreram ao longo dos séculos no Brasil. As narrativas orais mantidas pelos griots funcionaram e continuam exercendo o seu papel através de Dona Sirley como um elemento imprescindível à manutenção dessas histórias de geração em geração, em um lugar onde os livros de história escritos pelos colonizadores caucasianos não as permitiam. A griô Dona Sirley transgride quaisquer limites, outorgando-se a liberdade poética de sua prática narrativa. Por meio da contação de histórias, ela desenvolve uma pedagogia que transita através das fronteiras e comportamentos impostos pelas normatizações historicamente imputadas. Dona Sirley desenvolve suas atividades com o intuito de manter a memória viva, promovendo outras perspectivas, através da arte de contar histórias, que insiste e persiste na luta contra o esquecimento e contra o aniquilamento da experiência narrativa. Ao contar suas histórias e realizar as suas oficinas, a griô promove percepções e significações sobre conceitos de diferença, diversidade, heranças culturais, como características favoráveis que constituem nossa sociedade e, por meio disso, o reconhecimento de que todos esses matizes criam a identidade da nossa população local. Além disso, Dona Sirley desenvolve uma abordagem educacional que transita por entre/através das fronteiras, normas e comportamentos impostos pelas normatizações sociais, lidando com esses aspectos não como uma “divisão ou linha delimitante, mas como características que necessitam ser borradas. A maneira como ela mantém a ancestralidade viva promove um outro olhar para esse processo educativo, não como uma determinação acadêmica formal institucionalmente fixada, mas como uma maneira sensível, popular e cultural de manter essas tradições inesquecíveis. Portanto, ressaltamos que as atividades desenvolvidas pela griô Dona Sirley vêm ao encontro
de todos os objetivos do NALS, uma vez que esse núcleo almeja outras alternativas para promover a educação em uma outra perspectiva, buscando abordagens diferenciadas das tradições acadêmicas desenvolvidas em diversas localidades brasileiras. Nesse sentido, o campo das artes funciona como terreno para viabilizar a realização de todas essas atividades. Além disso, também se faz necessário “ re-enfatizar” que o NALS também trabalha como um centro para a resistência ao fornecer o espaço de que uma griô necessita para preservar uma importante parte da história brasileira.
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ARTE E CULTURA: AFRICANIDADES NO ENSAIO DA OBRA DE CARLOS ALBERTO DE OLIVEIRA
Mara E. Weinreb1 RESUMO Nosso artigo visa a contemplar um panorama da arte e da cultura afrobrasileira, com distinção especial para Carlos Alberto de Oliveira, artista afro-brasileiro, morador da cidade de Novo Hamburgo e falecido em agosto de 2013. O cenário da arte afrobrasileira ocupa lugares ainda por serem descobertos, temos uma ocupação flutuante e muitas vezes periférica, em que sociólogos como Canclini e Hall oferecem um lastro teórico necessário as essas discussões, e Cattani, com sua abordagem sobre a mestiçagem nas artes. Também nos valemos do discurso de Emanoel Araújo, diretor do museu Afro Brasil, em São Paulo, um porta-voz da defesa pela arte e cultura afro-brasileiras. Essas discussões oferecerão um suporte necessário para a melhor compreensão da trajetória artística de Carlos Alberto de Oliveira. Palavras-chave: Arte. Cultura. Afro-descendência. ABSTRACT Our article aims to encompass an overview of Afro-Brazilian art and culture, with special distinction for Carlos Alberto de Oliveira, Afro-Brazilian artist, a resident of the city of Novo Hamburgo, and died in August 2013. Scenario of Afro-Brazilian art occupies places to be discovered, we have a floating occupation and many peripheral times where sociologists like Canclini and Hall offer a theoretical ballast necessary to our discussions, and Cattani, with his approach to mixing in the arts. We also use the speech Emanoel Araujo, director of the museum Afro Brazil, in São Paulo, one spokesperson, the struggle in defense of the art Afro-Brazilian culture. These discussions need to offer a better understanding of the artistic career of Carlos Alberto de Oliveira support. Keywords: Art. Culture. African descending.
Psicóloga e atualmente docente da Universidade Feevale, no curso de Artes Visuais. Atua em projetos de extensão, como em cursos de Pós-graduação Lato Sensu desta Universidade. Concluiu o mestrado em 2003 e o doutorado em 2009, no departamento de Artes Visuais da UFRGS, com ênfase em História, teoria e crítica da arte. Realizou pesquisa relativa à questão da Arte e loucura, bem como arte marginal, com publicação de livro e artigos sobre o tema. E-mail: maraew@gmail.com. 1
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1 O ARTISTA EM QUESTÃO Em 2005, intencionávamos fazer uma análise crítica da produção artística de Carlos Alberto Oliveira, afrodescendente, morador da cidade de Novo Hamburgo e falecido no ano de 2013. Iniciamos um levantamento fotográfico (ver anexo) e algumas entrevistas com o artista, mas o início do doutorado interrompeu nossa abordagem, a qual gostaríamos de retomar agora. Carlos Alberto de Oliveira, conhecido como “Carlão”, nasceu em Novo Hamburgo em 1951. Filho de operário em curtume, desde menino gostava de desenhar. Em 1968, ganhou uma bolsa para estudar arte na Escola de Belas Artes em Novo Hamburgo. Ali surgiram as primeiras figuras com contornos pretos, uma de suas marcas registradas. Em 1974, expôs sua obra pela primeira vez no Centro de Pesquisa de Arte e obteve a primeira classificação em dois concursos promovidos em Novo Hamburgo. Em 1975, participou de seis exposições em Porto Alegre e do IV Salão do Jovem Artista do Rio Grande do Sul. Desde então, Carlos Alberto de Oliveira vinha participando de dezenas de mostras individuais e coletivas em salões do Rio Grande do Sul e de outros estados brasileiros. Participou do movimento Casa Velha, ao lado de Flávio Scholes e Marciano Schmitz. Também expôs na Galeria Cavalo Azul, em Novo Hamburgo, e em Porto Alegre. Desde então, passou a desenvolver temas com preocupação social envolvendo sua cultura afrodescendente. Carlos Alberto de Oliveira também participou de diversos eventos artísticos, em âmbitos nacional e internacional, como nas Bienais de Arte Naif de Piracicaba, em São Paulo. As redes sociais e a mídia eletrônica referem-se a ele como sendo um artista naif ou primitivo, denominações com que não concordamos, mas que serão discutidas posteriormente na busca por uma visibilidade mais adequada. Carlos é citado no “Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro”, de Lélia Coelho Frota, de 2005, como artista popular; a autora ainda refere sua participação na exposição Art in Latin America, em 1980, com a curadoria de Daw Ades, e quando foi prêmio-destaque na Bienal Naif, em 1994, organizada pelo SESC São Paulo, com as obras “Carnaval” e “Centro da cidade”. Assim, a presente proposta busca contemplar o panorama da arte e da cultura afro-brasileira, tendo como foco o resgate da trajetória artística de
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Carlos Alberto de Oliveira, como uma manifestação antropológica, artística e histórica, que ocupa lugares, muitas vezes, incertos no âmbito da cultura e das artes. 2 ARTE, CULTURA & AFRICANIDADES A qualificação de nossa abordagem inicia com fatos relevantes aos afrodescendentes no estado do Rio Grande do Sul: Bem sabemos que os negros de todas as áreas África, vieram ter com raras exceções, ao Rio Grande, mercado de negros soldados, operários da indústria do charque ou agricultores, colonos de braços principalmente na plantação do trigo... as culturas negras que resistiram no Brasil. Culturas sudanesas (Eubá, Ketu, Ioruba), Nigerianos, da Costa do Marfim, Serra Leoa, Libéria, e Angola (LAITANO apud FLORES, 1980, p. 11-12).
Segundo Laitano (1980), a derrubada das matas e a construção das estradas eram feitas por escravos africanos, assim como as charqueadas de Pelotas e Porto Alegre, também as plantações de trigo de Bagé e Piratini utilizavam o braço escravo. O Rio Grande do Sul era considerado uma espécie de purgatório dos negros, o que tornava o estado assustador era a manutenção das fronteiras, que foram importantes durante a Revolução Farroupilha. Os negros participaram da Revolução Farroupilha como lanceiros na troca pela sua liberdade. Desse período surgiram lendas, das quais os negros faziam parte, em especial, a lenda do Negrinho do Pastoreio, que até hoje é venerado como protetor dos objetos perdidos. Essa lenda faz parte das tradições gaúchas, e chegamos a uma questão crucial, quando se fala da cultura afro-brasileira, que é a miscigenação, o sincretismo fundamental à história e à cultura brasileira. Uma cultura que se dá pela fusão de culturas tão diversas, como a luso, a indígena e a africana. Parece quase impossível definir nossa tradição a partir de um só ponto de vista, processo similar à exuberante paisagem e à vegetação brasileiras e sua biodiversidade, paisagem essa que chamou a atenção de artistas como Franz Prost e Émile Taunay, no século XVIII, holandês e francês, respectivamente, que no período colonial a retrataram em telas, causando impacto nas cortes europeias.
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Importante ressaltar o sincretismo ocorrido entre o africano e o português, especialmente na religiosidade. Assim, em Porto Alegre, a celebração a Nossa Senhora dos Navegantes (ver anexo), no dia dois de fevereiro, une religiosidade africana e católica, é a festa popular mais significativa da cidade, sendo comemorada em Portugal desde o século XV, como protetora dos marinheiros. Com celebrações no rio, hoje proibidas, a procissão volta-se à cidade, com comidas e festas. Conforme Flores (1980), a Sociedade Partenon literário, fundada em 1868, que congregava intelectuais de Porto Alegre, voltada a iniciativas abolicionistas, comprou uma gleba de terra e a dividiu-a em chácaras, com a sua venda, alforriava escravos e, em meados de 1831, a imprensa gaúcha, através do jornal “O Noticiador”, apresentou um programa de extinção do tráfego negreiro. Apesar de todas essas iniciativas libertadoras, refere o autor que a Lei Áurea foi um processo utilizado pelos senhores de escravos para se livrarem, sem indenização, de uma mão de obra cara, pois o dono dava aos escravos comida, roupa e remédios, enquanto o italiano e o alemão trabalhavam por um ordenado e, muitas vezes, endividavam-se ao depender da compra de seus mantimentos. Sabemos que a injustiça social com o afrodescendente ainda se mantém, mas o cativeiro, os maus-tratos e a posse de um ser humano pelo outro era algo insuportável, apesar dos motivos não tão nobres, essa fase de nossa história terminou. O médico e escritor baiano, Raimundo Nina Rodrigues (1982), nascido em 1862, desenvolveu uma extensa pesquisa sobre a herança africana no Brasil e foi um dos primeiros escritores baianos que indagou e investigou, muito próximo ao período da escravatura, a condição dos negros no Brasil. Segundo o autor, a língua, a religião e a tradição estão profundamente interligadas no povo africano e, como escravos, trouxeram essa tradição. Pelo ano de 1810, os negros crioulos do Recife eram geralmente os obreiros de todas as artes... alguns têm conseguido ajuntar grande soma de dinheiro e comprado seus escravos, aos quais ensinam seus ofícios... Esses escravos trabalham para seus senhores e proporcionam-lhes grandes rendimentos. O mestre pintor de igreja e de imagens mais afamado em Pernambuco é um preto de muito boas maneiras, com
ares de homem de importância e muito orgulhoso de seus dotes (RODRIGUES, 1982, p. 170).
Canclini (2000), quando se refere às culturas e seu processo de colonização violenta, complementa nossas análises anteriores. Refere que, durante a leva de povos para o trabalho escravo, os países que assim o fizeram foram invadidos ou tomados por suas culturas. No Brasil a herança africana passou a ser uma característica forte da cultura brasileira, como um efeito bumerangue, de modo semelhante aconteceu com a invasão do Marrocos pela França. Esse processo gerou sincretismos, mestiçagens culturais e sociais. A mestiçagem, pertencente ao repertório da Antropologia, é parte integrante das negociações culturais, permanece como testemunha de uma relação que denuncia as diferenças entre culturas, provocando inclusões simbólicas através dos discursos culturais. Estamos diante de uma necessidade de negociação cultural, ao procurarmos contextualizar nosso artista, Carlos Alberto de Oliveira, de seu local e sua tradição particular com o contexto da cultura impessoal. Teríamos então um sincretismo cultural, como uma forma de participação que questiona as mudanças dos significados do senso comum. Já Stuart Hall (2003) fala de uma luta contínua e desigual das culturas dominantes, criando as culturas da exclusão. Na verdade, não podemos falar de culturas autônomas, elas se constituem de formas contraditórias, como que em um jogo de forças, e não podemos esquecer como a vida cultural tem sido transformada pelas vozes das margens. Como exemplo de inserção, lembramos que Arthur Bispo do Rosário, afrodescendente, viveu, após a descoberta de sua obra, um deslocamento imediato de sua condição de interno esquizofrênico para a de artista. Mas, como ele mesmo dizia, seu trabalho se revestia de uma missão sagrada, com um discurso de uma poética da “desrazão”, bordou, com o fio azul de seu uniforme, o “Manto da apresentação”. Hidalgo (1996) lembra que Bispo cresceu em um local (Japaratuba, SE) impregnado de festas e procissões, que lhe povoaram o imaginário. Suas assemblages, seus mantos, estandartes e fardões percorreram e percorrem o mundo em exposições, provocando os conceitos da arte, da loucura, como na Bienal de Veneza de 1995. 89
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Temos que referenciar, ainda, Mestre Didi e Rubem Valentim, importantes representantes da arte afro-brasileira, no Brasil e no exterior. Mestre Didi, falecido em outubro de 2013, artista baiano e sacerdote da religião afro-brasileira, é detentor de uma obra que remete aos Orixás, com uma leveza de formas orgânicas, a partir da palha, do búzio e da cabaça, dedicando-as às divindades. Rubem Valentim, com esculturas totens, geométricas, inclusive na pintura, traz uma complexa representação simbólica dos Orixás, com um resultado elaborado e harmonioso. Os processos perversos da exclusão e de neutralização criados pela globalização, para Cattani (2004), terminam por enriquecer a cultura, as artes e os conceitos já estabelecidos. O eu mestiço constitui-se [...] por oposição ao outro e ao próprio lugar. Ao mesmo tempo, esse eu problemático necessita do olhar do outro para reconhecer-se, enquanto igual ou diferente. No caso da mestiçagem, [...] segundo Laplantine e Nouss, a convivência jamais é resolvida [...] mas sim a confrontação, o diálogo (CATTANI apud FARIAS, 2004, p. 66-67).
A autora entende por mestiçagem a manifestação da presença simultânea dos elementos que a constituem, estes não desaparecem, estão presentes em uma relação de tensão ambivalente. Tensão que se faz presente nas pinturas de “Carlão”, nas quais se encontram pessoas de vários tons de pele, interagindo todas muito juntas em cenários urbanos e de festividades, como a de Nossa Senhora dos Navegantes, na pintura em anexo, uma expressão de ideais mestiços e sincréticos Sally Price (2000), pesquisadora e antropóloga, chama a atenção para a forma como a arte africana, descoberta pelo colonizador, chamada de exótica e primitiva, não recebia um tratamento digno, pois, durante o século XIX, era reconhecida somente pelo nome do colecionador, pouco importando sua origem, usurpando assim seu direito a uma legitimidade. Em relação à clandestinidade da arte afro-brasileira, houve dois momentos que lhe resgataram a visibilidade e o reconhecimento, como a criação, em janeiro de 1982, do Museu Afro-brasileiro de Salvador. A então Diretora do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), Dr.ª Yeda Pessoa de Castro, realizou um acordo entre os 90
Ministérios das Relações Exteriores e da Educação e Cultura do Brasil, o governo da Bahia, a prefeitura da cidade do Salvador e a Universidade Federal da Bahia. Trata-se de uma instituição que se propôs a estudar e a divulgar tudo o que se relaciona com temas afro-brasileiros. Para esse fim, dispõe de uma coleção de peças de origem e inspiração africana, objetos de origem brasileira relacionados com a religião afro-brasileira, incluindo um conjunto de talhas em cedro de autoria de Carybé, composto de vinte e sete painéis, representando os orixás do candomblé da Bahia. E o Pavilhão Manoel da Nóbrega, inaugurado em dezembro de 1953 e projetado por Oscar Niemeyer, hoje sede do Museu Afro Brasil, de São Paulo, com direção de Emanuel Araújo, seu idealizador. Inaugurado em 2004, com o compromisso social de revisitar a história sob a perspectiva do negro, apresenta a cultura africana, a cultura afro-brasileira e a cultura popular brasileira. Seu acervo conta com três mil obras relacionadas com a temática do negro, entre pinturas, esculturas, gravuras, fotografias, livros, vídeos e documentos de artistas brasileiros e estrangeiros, em especial, os baianos Mestre Didi e Rubem Valentim. Para Araújo (2000), todos os africanos que firmaram raízes no Brasil trouxeram consigo uma memória, presente na arte brasileira, da qual fazem parte. Diante desse breve panorama, vemos que a arte afro-brasileira ganhou nome no século XX e passou a ser reconhecida como uma manifestação artística visual nos cenários socioculturais dos segmentos negros e culturais do Brasil. Mas, segundo Conduru (2010), o pesquisador encontrará pouco, ou praticamente nada, da cultura material dos terreiros, seja em galerias comerciais dedicadas à arte, seja nas lojas focadas na dita arte popular. Para encontrá-la, o pesquisador deverá ir aos grandes mercados, como o São Joaquim, em Salvador, o Ver o Peso, em Belém, o São José, em Recife, o Mercado Público de Porto Alegre e o Mercadão de Madureira, no Rio de Janeiro. Lembra ainda que a falta de documentos das produções dos afrodescendentes contribuiu para dar invisibilidade a uma tradição afro-brasileira. Na zona intermediária do sistema, para a qual imigrou por motivos históricos, situamos o nascimento da arte afro-brasileira, uma arte que, além das características africanas, está sempre em processo de criação, recriação e reinterpretação. Na periferia cultural, situam-se obras de artistas que, sem reunir
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todos os atributos das artes africanas tradicionais, receberam algumas de suas influências, sejam do ponto de vista formal, temático ou simbólico. Em um território abstrato, unem-se pelo imaginário África e Brasil, de tal forma que aqui se pode viver a África em toda sua intensidade e se crê reconhecer o Brasil na África. Qual é a alma brasileira que buscamos na África. Nesse território, como deve ser considerado o que vem se colocando como “arte-afro-brasileira? Da década de 70 para cá, identifica-se a valorização da identidade negra, seja na tradição religiosa ou na artística (ARAÚJO, 2000, p. 5).
Segundo Featherstone (1997), para se traçar um quadro de comunhão local-global, é preciso novas competências culturais, étnicas e sociais, que questionem a ideia de lugar e de território, sendo substituídas por um discurso de inserção.Vemos que existem histórias plurais e particulares, e a noção de que o mundo é uma localidade impõe a necessidade de uma relação de escuta. Uma forma de escuta acontece atualmente, através das leis nº 10639/2003 e nº 11645/2008, que tornam obrigatório o ensino da História afro-brasileira e Indígena nas escolas do País. Em relação às questões apresentadas, pensamos que a investigação sobre a trajetória e a inserção artística de Carlos Alberto de Oliveira trará indicadores que poderão contribuir para a arte e a cultura brasileira. 3 CONCLUSÕES É nessa relação mestiça e transformadora que converge nossa breve discussão sobre o panorama da arte e da cultura afro-brasileira, articulada nas dimensões artística, histórica e antropológica. Mesmo que o discurso atual não admita mais fronteiras sociais e culturais, correntes de pensamento ainda produzem a exclusão, mas com uma nova configuração, atuando, sem que se perceba, com novos disfarces, em ações individuais, não mais tanto no âmbito grupal. Vemos, hoje, que Carlos Alberto de Oliveira é homenageado pela cidade de Novo Hamburgo, dando seu nome à escola de arte da SMED (Secretaria de Educação e Desporto), bem como receberá um memorial, que terá a guarda de seu acervo, composto de pinturas, desenhos e documentos.
Essas homenagens representam uma significativa inserção do artista na comunidade em que viveu. Conhecemos as pinturas de Carlos Alberto de Oliveira em 2005, foi um momento repleto de questionamentos, mistérios e encantamento, quando figuras emergiam em profusão de uma cidade imaginada ou sonhada, onde espaços são ocupados quase que totalmente, interagindo e vibrando em meio a um cenário repleto de cores e tramas. Encontramos também imagens ancestrais, representações inacessíveis, ilhas de códigos que remontam possivelmente às tradições africanas, como nas pinturas chamadas de “Cabeças” pelo próprio autor. Essas seriam provavelmente o início de uma investigação, que faz de sua trajetória uma indissolúvel urdidura de arte e vida. Concluímos com a necessidade emergente de uma pesquisa que possa traçar um panorama cultural e artístico afro-brasileiro, discutindo, em especial, as heranças rio-grandenses e da cidade de Novo Hamburgo, de forma ampla e específica, para melhor contextualizar o lugar do artista em questão no cenário cultural brasileiro.
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ANEXOS
Carlos Alberto de Oliveira. Viva o tetra. Acrílico s/tela. 40cm x 50cm. 1995 Fonte: Arquivo pessoal
Carlos Alberto de Oliveira. Festa de Nossa Senhora dos Navegantes. Acrílico sobre tela. 60 cm x 80 cm. 2001
Fonte: Arquivo pessoal
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Carlos Alberto de Oliveira. Cabeças. 90 cm x 90 cm. 2003. Acrílico sobre tela
Fonte: Arquivo pessoal
Carlos Alberto de Oliveira. Cabeças. 90 cm x 90 cm. 2003. Acrílico sobre tela Fonte: Arquivo pessoal
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LITERATURA E HISTÓRIA: A TRANSPOSIÇÃO DE DISCURSOS EM O ELEITO DO SOL, DE ARMÊNIO VIEIRA
Ana Lúcia Montano Boéssio1 Jaini da Porciúncula2 RESUMO O objetivo deste trabalho é analisar alguns aspectos da construção narrativa em O Eleito do Sol, de Armênio Vieira (1990), e de que modo o autor se vale do discurso histórico como recurso para essa construção, que discurso seria esse e de que modo se configura ao longo da narrativa. Para tanto, partimos de conceitos dos estudos culturais, da literatura como “ato socialmente simbólico”, e dos conceitos de ironia intertextual e double coding, propostos por Umberto Eco, assim como da análise de algumas estratégias formais, buscando desvelar os implícitos, portadores de outros discursos contidos na referida obra literária e chamar a atenção para o papel do crítico literário como desvelador dessas transparências. Palavras-chave: Literatura comparada. Literatura de língua portuguesa. Discurso histórico. ABSTRACT The aim of this work is to analyze some aspects of the narrative construction in O eleito do sol, by Armênio Vieira (1990), and the way the author makes use of the historical discourse as a resource for that construction – what discourse would it be and how it becomes evident throughout the narrative. Therefore, the analysis is based on the cultural studies concept of literature as a “socially symbolic act”, and on Umberto Eco’s concepts of intertextual irony and double coding. It will be also analyzed some formal strategies, in order to unveil the implicit elements which carry other discourses within the literary work, highlighting the role of the literary critic as the one who unveils those transparencies. Keywords: Comparative literature. African Portuguese literature. Historical discourse.
Professora Adjunta do Curso de Letras (UNIPAMPA – campus Jaguarão) na área de Teorias Literárias e Literatura, líder do Grupo de Pesquisa Línguas e Literaturas na Fronteira cadastrado no CNPQ, coordenadora do LALLI – Laboratório de literatura e outras linguagens. E-mail: anaboessio@unipampa.edu.br. 2 Pós-graduanda em Metodologia do Ensino de Língua e Literatura (UNIPAMPA – campus Jaguarão). E-mail: jainipaz@ hotmail.com. 1
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1 INTRODUÇÃO Ainda hoje, observa-se uma carência de estudos envolvendo a temática das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, especificamente sobre as obras do autor cabo-verdiano Armênio Vieira. Como é sabido, além de integrante da geração de 1960 da poesia cabo-verdiana, a qual tinha por marca a revolta e o combate ao governo colonial português da época, Vieira teve participação direta na luta pela libertação da nação cabo-verdiana, o que lhe rendeu dois anos de prisão. Sendo assim, por perceber-se na obra a presença implícita e, às vezes, explícita de elementos tanto autobiográficos quanto histórico-sociais, este trabalho pretende analisar, em especial, a utilização do discurso histórico como recurso para a construção narrativa em O Eleito do Sol (1990). Para tanto, terá por base os conceitos de ironia intertextual e double coding propostos por Umberto Eco, além da análise do uso do rípio, que é utilizado como estratégia formal na composição da narrativa literária – todos elementos desveladores de aspectos histórico-sociais. 2 AS ESTRATÉGIAS DA FORMA EM O ELEITO DO SOL Como é sabido, o discurso literário, através de seus implícitos e do uso de uma estratégia narrativa picaresco-fantasmagórica, como acontece na obra de Vieira, torna-se um espaço rico de possibilidades de ironia intertextual e crítica. O autor de O Eleito do Sol provoca o que Laurent Jenny (1979) chama de determinação intertextual dupla, uma espécie de construção abismal (mis-en-abyme) que dificulta a determinação do grau de intertextualidade da obra. Esse é o caso da paródia, que se relaciona “em simultâneo com a obra que caricatura e com todas as obras parodísticas constitutivas do seu próprio gênero” (1979, p. 06). Nesse tom, como uma colcha de retalhos irônicos e debochados, o texto inicia com o relato de uma visão em sonho que o narrador teve do faraó Akenaton, tendo como estratégia o seu pedido ao narrador para que contasse a sua história mais antiga, de quando era escriba no Egito – de contador para contador, a perpetuação de uma história constantemente atualizada. E, como toda obra literária, a narrativa é permeada pela fusão de outros textos em um processo de assimilação, transformação e diálogo, que ocorre por meio de um jogo de colagens oníricas, em que se confundem lembranças, realidade e representações. Nesse processo de construção, alguns recursos merecem destaque, pois sustentam a 96
hipótese interpretativa deste estudo, que é o desvelar de transparências de um outro discurso oferecido através da narrativa: um discurso denunciador de aspectos sociais, culturais e históricos. De uma perspectiva comparatista, entende-se que esta obra está em permanente diálogo com outros textos e que estes servem de instrumento e suporte para que o autor construa seu discurso próprio, ora citando, ora adaptando, transformando e (re)dizendo o que antes já fora dito. Utilizando-se de referências presentes, em especial, na literatura, na sociologia, nos textos religiosos, na filosofia e na História, é tecida uma teia em forma de paródia, contendo “uma encenação fictícia” (JENNY, 1979) que se utiliza do deboche e da ironia para recuperar discursos, adaptálos e, até mesmo, pervertê-los num jogo intertextual. Esse jogo, em um primeiro momento, é divertido e ingênuo, mas, numa visão mais atenta, permite o reconhecimento de uma forte crítica implícita, uma linguagem de protesto, através do jogo de contradições de discursos que aparentemente afirma, rompendo-os. Para tanto, o autor utilizase de estratégias compositivas que, somadas, dão origem a um enredo fantástico. E, assim, tem início o desenrolar de uma série de peripécias marcadas por pequenas histórias que, juntas, compõem o todo da narrativa. Nesse processo de construção da trama, o autor faz uso de alguns recursos de escrita que, à primeira vista, podem passar despercebidos pelo leitor como simples expressões de preenchimento ou “remendos evidentes”, mas que são de grande relevância para a questão interpretativa objeto deste estudo – os rípios. Estes funcionam como emendas necessárias ao andamento do conjunto da obra e são resultado de uma estratégia compositiva bem elaborada da parte do autor, a qual leva o leitor a inferir a existência de algo subliminar em um texto aparentemente cômico, marcado pela colagem de várias referências histórico-literárias, inclusive bíblicas, como, por ex.: “A música de fundo era o Cântico dos Cânticos, entoado pelas ninfas do Nilo” (OES, p. 36). Não fossem esses rípios, muito da narrativa e dos personagens ficaria deslocado e sem compreensão. Em um outro exemplo, pode-se identificar uma referência indireta aos doze trabalhos de Hércules, nome latino dado ao herói da mitologia grega, Héracles: “Inúmeros serão os teus trabalhos. Para que não enlouqueças, nós, deuses imortais, ofertamos-te a imaginação e o riso. O AUTOR” (OES, p. 8). Essa
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citação está colocada antes do prólogo, como uma espécie de dedicatória do autor ao escriba egípcio (seu personagem heroico) que, durante a narrativa, enfrentará vários momentos nos quais terá que vencer muitos desafios e obstáculos tendo como “armas” apenas a imaginação e o riso. Antecipando ao leitor algumas pistas do que virá a seguir, essa epígrafe funciona como um rípio, que contribui para que identifiquemos outros níveis de leitura, além de influências literárias presentes na obra. Vale ressaltar também que o rípio provoca na obra uma dupla transparência, uma vez que ele próprio se configura como um elemento histórico implícito nela, devido a sua origem, usos e significados: na arquitetura grega, os rípios eram aquelas pequenas pedras usadas para preencher os vãos entre as grandes pedras das paredes e que serviam de sustentação; na poesia grega, representavam aquelas palavras que eram acrescentadas ao poema com a função de compor a rima ou a métrica. Outros exemplos de rípios são aquelas expressões colocadas no início ou ao final de frases ou parágrafos, que, aparentemente, não servem para nada além de ocupar um espaço vazio, mas que, para o leitor atento, indicam situações, características, pensamentos, sensações que o levarão a compreender melhor a trama e seus códigos. Pode-se citar o início da história, quando o escriba é apresentado ao leitor: “O escriba egípcio – um jovem, diga-se de passagem – caminhava sem pressa...” (OES, p. 11). A expressão “um jovem, diga-se de passagem” seria desnecessária para a compreensão da frase e do parágrafo, mas fornece uma informação primária para a interpretação, pois sugere uma crítica, apesar do tom humorístico, a uma suposta inexperiência em se tratando de vida e até mesmo de conhecimentos, que se revela o oposto, conforme avançamos na leitura. Expressões como “passemos adiante”, “exclamou o sujeito”, “repetiu o escriba”, “o escriba cogitou” auxiliam a marcar o tempo e o andamento da obra, evidenciando a presença de um contador de histórias que, nesse caso, é o narrador. E é através dessas expressões que se percebe os tons de deboche, ironia, as tiradas de imaginação e se fica sabendo o que se passa na cabeça do escriba, mesmo quando ele não revela seus pensamentos às pessoas com as quais se encontra nas diversas situações. Além das marcas intertextuais, encontram-se também algumas das características que, conforme
Umberto Eco (2003), marcam a narrativa pósmoderna; entre elas, o dialogismo, o double coding e a ironia intertextual. Aqui, o objetivo é verificar como se relacionam e servem de meio para estruturar a obra e dar vida a um discurso de ficção e de crítica social, permeado por referências a diferentes períodos históricos. Quanto ao dialogismo, ele se faz evidente no texto em vários momentos: como quando o autor não cita expressamente a referência, mas dá um nome e alguma informação que evidenciam tal relação, o que, segundo Eco (2003), é uma forma de citação intertextual. Em O Eleito do Sol, são várias as passagens que marcam o constante diálogo entre os textos das mais distintas épocas e culturas – religiões, personagens historicamente famosos e até mesmo seres mitológicos, como a Esfinge presente em Édipo Rei, de Sófocles; da literatura infantil, os contos de fadas e as fábulas; referências a escritores mundialmente conhecidos, como Lewis Carroll, e Caedmon, o mais antigo poeta sacro da Inglaterra de que se tem conhecimento; bem como das ciências, entre elas, a matemática. Os personagens que compõem a trama são historicamente reais, pertenceram à sociedade egípcia, alguns como faraós, outros como sacerdotes, vizires – o próprio escriba é um personagem comum, como classe, na história dos povos antigos. Talvez seja esse um dos motivos pelo qual ele não revele seu nome, pois, ao longo de séculos, pode ser tantos e qualquer um em várias partes do mundo, não só no Egito, que, nessa obra, é o contexto geográfico onde acontece a história, com suas cidades, construções que até hoje resistem ao tempo. Partindo desse ponto de vista, observa-se um dialogismo com a história, através da recuperação desses personagens e de citações, conforme mencionado anteriormente. Logo adiante, Vieira migra para as referências literárias – os contos de fadas –, referindo-se ao encanto que pôs para dormir por cem anos a mulher do governador, como na história da Bela Adormecida: “Ramósis de amante aguilhoado pelo ciúme, e a veneranda senhora de Bela Adormecida fantasiada de travesti” (OES, p. 69). Diante dessas evidências de dialogismo, percebese que a obra está permanentemente renovando seus significados e (re)significando os textos com os quais dialoga. No entanto, considera-se que, para perceber esse (re)significar, será necessário que o leitor leia nas entrelinhas e faça as relações de sentido com os tantos discursos presentes na narrativa; que perceba 97
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e decifre o double coding, essa entre-palavra, o implícito entre os explícitos, para que assim possa compreender a ironia intertextual que permeia toda a história do escriba. Segundo Eco (2003), o leitor não perderá o sabor do texto se não captar o double coding; poderá certamente saciar sua fome com “a incrível história do escriba egípcio” e suas incontáveis aventuras; porém o leitor que captar o double coding, que perceber a piscadela do autor com sua linguagem sutil, irá fartar-se ainda mais com um incrível e saboroso banquete reservado àqueles que buscam desvendar os mistérios da obra, seguindo cada pista, procurando as relações entre o que está dito e o que está implícito, o que está sob o véu das estratégias compositivas. A esse leitor, sim, o texto se revela mais profundamente e com mais possibilidades, permitindo que possa partilhar da ironia intertextual que ali está colocada pelo autor, como uma apetitosa iguaria à espera de algum faminto que seja capaz de escavar as muitas camadas do texto para encontrá-la e, então, saboreá-la. Como exemplo, encontra-se a história dos unicórnios e bicórnios que o escriba explica ao governador Ramósis, pois esses animais vivem num mundo oposto ao nosso. O que é importante para os humanos – as riquezas, o poder, o capital acumulado durante a vida –, para os unicórnios não é e, apesar disso, eles, em seu mundo, têm comportamentos muito semelhantes aos seres humanos: dominam, escravizam, são preconceituosos com o que é diferente, tanto é que são inimigos dos bicórnios somente porque estes possuem um chifre a mais. De fato, refletindo e captando essa linguagem paralela, encontra-se uma porção generosa de ironia intertextual, pois os unicórnios, segundo o imaginário popular e as lendas que se contam sobre eles, são símbolos de pureza, de virtude; portanto, não deveriam estar associados à imagem de seres que dominam o inimigo, que o escravizam e que não toleram a diferença. Nessa história dos unicórnios e bicórnios, vê-se a humanidade como um todo, com suas práticas opressoras, escravagistas, o domínio pela força, pelas armas, o preconceito e a discriminação a tudo que seja diferente, a tudo que represente oposição; valores e costumes nada nobres, nada condizentes com a simbologia do unicórnio. Essa ruptura representativa revela a condição de fragilidade do ser humano, a sua dualidade em um único ser. Talvez a batalha entre unicórnios e 98
bicórnios seja uma referência à batalha interior dos seres humanos contra si mesmos, um combate em que trevas e luz se confrontam, em que o homem, na intimidade do seu ser, decide sobre os valores que vão orientar sua vida. Mas, pode também funcionar como uma alegoria da sociedade humana, na qual, uma vez que os papéis se invertam, que oprimido vire opressor, o modus operandi será o mesmo; aqui, pode-se, como críticos, fazer uma leitura do autor por trás da obra e a sua descrença numa mudança real no sistema sociopolítico humano – o tempo passa, os reis são depostos, os regimes mudam, mas as regras permanecem as mesmas. Ao ser mencionado o autor da história dos unicórnios e bicórnios, por meio de uma nota de rodapé, o leitor é esclarecido de que se trata de Amenemop, um matemático e autor fantástico que teve várias reencarnações, sendo que na última delas foi o inglês Lewis Carroll: “* nota de rodapé: Amenemop – matemático e autor fantástico que passou por sucessivas metempsicoses. A sua última reencarnação foi o inglês Lewis Carroll” (OES, p. 107). Nesse fragmento, fica evidente a referência ao autor de Alice no país das maravilhas e, assim, Vieira vai tecendo a sua trama entre ficção e realidade que, certamente, enredará o leitor descuidado, de primeiro nível, como define Eco (2003). 3 A INSERÇÃO DE REFERÊNCIAS HISTÓRICAS NO DISCURSO LITERÁRIO A literatura, em vez de ser um espaço de representação da realidade, apresenta-se como um espelho que reflete as imagens da sociedade (MAGALHÃES, 2002); nesse caso, O Eleito do Sol configura-se como espaço de reflexo da sociedade contemporânea, através de uma escrita marcada pela fronteira entre realidade e ficção. Esse espaço vazio entre fronts é o lugar da história na literatura e, sobretudo, o espaço preenchido pelo autor por meio da ironia intertextual, no qual ele constrói seu jogo narrativo, mesclando as muitas camadas ficcionais, suas várias colagens literárias, em que o contar ganha também uma dimensão onírica e misturase com as diversas referências histórico-culturais que permeiam todo o texto. Eis por que, conforme Belmira Magalhães, [...] nenhuma obra de arte pode ser estudada sem o auxílio da História, pois a verdadeira arte é um fazer história na
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medida em que é um refletir do ser social sobre sua própria existência. Não é história porque o autor resolveu contar o seu tempo, mas porque ele reflete sobre o seu tempo e as possibilidades de ultrapassá-lo (MAGALHÃES, 2002, p. 70).
Somente através de um processo escavatório na obra literária pode-se perceber como se dá a construção do discurso histórico e que conceitos ele revela – um processo de colagem que vai mesclando e escondendo a ficção na realidade e vice-versa. Aliás, uma estratégia muito presente na arte contemporânea e que não apenas revela a biblioteca pessoal do autor, mas provoca, pelo deslocamento de referências, um olhar político mais crítico da parte do espectador-narratário. Como citado, entre as estratégias de composição, encontramos a ironia intertextual e o double coding, que fornecem os elementos necessários para a percepção de como o histórico está imbricado no literário. Desse modo, percebe-se então na narrativa um sentido histórico do que é passado e do que ainda permanece entre nós desse passado, o que alguns autores chamam de “fósseis culturais”, possibilitando ao leitor e ao crítico atualizar a obra. Apesar de a narrativa transcorrer num tempo historicamente antigo, as questões levantadas para reflexão são muito atuais, pois envolvem os questionamentos do homem pós-moderno, numa sociedade líquida (BAUMAN, 2001) em processo contínuo de derretimento das suas tradições, dos seus limites. Esses fósseis culturais podem ser encontrados desde o início da narrativa, quando são apresentados o enredo e os personagens, sabendose de antemão que tudo se originou de um sonho. O narrador-escritor sonhou e decidiu contar o seu sonho, que se passa num país distante, localizado no continente africano. Porém, apesar de esse continente ser considerado de terceiro mundo, o Egito é reconhecido pela História como sendo uma nação berço de várias ciências e de admirável desenvolvimento intelectual. A partir daí, embarcase numa viagem que leva a conhecer não somente a fantástica história de um escriba egípcio, mas também reconhecer a presença de referências a uma história mundial no desenrolar de suas aventuras. O fato de ser um sonho já apresenta uma fluidez na imagem e no discurso dos personagens, nos cenários e no próprio desenvolvimento da
narrativa, gerando uma via dupla: ao mesmo tempo que provoca o distanciamento do leitor, uma vez que ele sabe que se trata de um sonho, puxa-o para dentro da história através dessas muitas referências plantadas nas rugas do texto. O escriba, com suas tiradas de humor e grande imaginação, com sua forte presença de espírito, é como um líquido a escorrer por entre fendas e rochas; ele desliza por entre as situações mais inusitadas, assustadoras e difíceis, com uma maleabilidade e destreza surpreendentes, procurando garantir sua existência por mais tempo, até que volte de escriba suspenso às suas funções como letrado e passe a ser novamente “alguém” naquela sociedade. Essa fluidez com que o autor apresenta esse jovem, vivendo num tempo aparentemente distante, revela a dimensão de uma sociedade e de um tempo no agora, em que as coisas acontecem com muita velocidade e com grande mobilidade, logo se desfazendo. Por meio da narrativa do escriba egípcio, percebe-se a temática que envolve o homem desde que o mundo é mundo: a busca pela sobrevivência, o desejo de não ser esquecido, o desejo de imortalidade, de permanência no tempo e através dele. Como afirma Bhabha (1998, p. 19), a literatura apresentase como “um momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão”. Isso é o que se pode identificar em O Eleito do Sol: o escriba sem nome, rebaixado e suspenso de suas funções, foi expelido pelo sistema e encontra-se à margem da sociedade, num limite entre o que havia sido e o em que havia se tornado, um excedente humano, aguardando o momento no qual seria novamente o que era e, ao mesmo tempo, buscando saber sua origem, sua identidade. Aquilo que o escriba tinha por identidade foi desfeito e tornou-se necessário empreender uma nova busca a fim de se recuperar no tempo e construir uma nova imagem para si mesmo, uma possibilidade de um novo rosto, de uma reconstituição como sujeito social constituído de espaço e, principalmente, de voz. Essa é a imagem, como diz Bhabha (1998, p. 20), dos seres sociais que se encontram nos “entrelugares”, “nos excedentes da soma das ‘partes’ da diferença”, buscando formar novas identidades a partir dos interstícios. Forma-se a partir daí um novo homem, um ser híbrido, mistura do que era e do que se descobrirá e virá a ser. O jovem vai à busca de 99
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sua origem, obrigado pelo faraó que o ameaça de morte e, durante sua penosa jornada, descobre-se como um homem predestinado a um futuro glorioso, pertencente a uma linhagem nobre e, ao mesmo tempo, rebelde, pois sua família descendia do líder da rebelião contra o faraó Amenófis XXVIII e, segundo revelação da Esfinge, o escriba seria a reencarnação do faraó Akenaton, que em breve assumiria seu cargo de líder do Egito. Verifica-se, ainda, através do processo de colagem textual na obra, que essa é uma alegoria ao processo de hibridismo cultural e ao homem contemporâneo na sua luta pela sobrevivência e ao terror provocado pelo medo do desaparecimento no tempo. O escriba é o protagonista de uma sátira da vida real nos dias de hoje e, ao mesmo tempo, nas mais distintas e remotas épocas, conforme aparece no prólogo, na fala do faraó Akenaton – “fui homem de todas as raças” –, pois a narrativa rompe a barreira do tempo, não existe um tempo determinado, lógico, corrente, nem uma única nação, um único e específico povo. O protagonista, através de seu discurso, percorre o mundo, de forma que Oriente e Ocidente se misturam no túnel do tempo, diversas culturas mesclam-se, tornam-se uma e outra, para contar a saga do eleito do sol. E, ao mesmo tempo que há uma mescla, há também uma fragmentação interna de conceitos preestabelecidos, uma ruptura de tradições, de padrões estéticos, comportamentais, morais, éticos, políticos, geográficos, econômicos e religiosos, como, por exemplo, a descrição física do faraó: “Sua Majestade Amenófis XXVIII era zarolho, pequenino e muito gordo. Tinha uma cabeçorra calva (se bem que disfarçada por uma monumental peruca) e ostentava uma grande verruga na ponta do nariz” (OES, p. 15). 4 O TEXTO LITERÁRIO COMO UM ESPAÇO DE DESVELAMENTO DO DISCURSO POLÍTICOSOCIAL Sob o véu da ficção literária, encontra-se um solo fértil no qual germina a semente do discurso político como “horizonte absoluto de toda leitura e de toda interpretação” (JAMESON, 1992, p. 17). Partindo desse pressuposto, percebe-se que a obra O Eleito do Sol, além de narrativa ficcional, presta-se como instrumento de manifestação social, como “ato socialmente simbólico”, pois aborda temas universais presentes nas diversas sociedades humanas e revela
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os modos de ser, pensar e agir da humanidade ao longo de sua existência. E, por meio da história do escriba egípcio, constata-se que, como afirma Jameson (1992), a história de todas as sociedades que já existiram é a história da luta de classes: homem livre contra escravo, patrício contra plebeu, senhor contra servo, mestre da corporação contra artífice assalariado – em suma, opressor contra oprimido – em constante oposição um ao outro, sempre em luta ininterrupta, ora velada, ora declarada, uma luta que sempre terminou ou na reconstituição revolucionária da sociedade em geral ou na ruína comum das classes em oposição (MARX apud JAMESON, 1992, p. 17).
A luta de classes à qual se refere Jameson está presente ao longo de toda a narrativa, pois o Egito vive sob o poder totalitário e dominador do Faraó Amenófis XXVIII, que utiliza todos os recursos necessários para se manter no poder, inclusive a opressão através do uso da força física, de modo a abafar toda e qualquer possibilidade de revolta popular. Um exemplo é quando o escriba se deteve junto a um enorme cartaz que dizia: “O Faraó, nosso Imperador e Guia, tem um olho sempre aberto, mesmo quando dorme. Tende cautela, conspiradores, os crocodilos do Nilo adoram carne humana” (OES, p. 12). É a luta do senhor absoluto e incontestável contra os servos (súditos) que buscam liberdade e, nessa busca, organizam uma rebelião contra o império que, nessa narrativa, termina com a queda de Amenófis XXVIII e a ascensão do escriba ao trono de faraó. Acredita-se que “nada existe que não seja social e histórico – na verdade, de que tudo é, ‘em última análise’, político” (JAMESON, 1992). Sendo assim, a arte literária, entre outras coisas, é política, por isso, necessita de um “horizonte político” como toda possibilidade de leitura e interpretação. Para tanto, faz-se necessário que o crítico literário atue como desvelador das possibilidades de leitura e dos processos e mecanismos interpretativos, reafirmando e evidenciando que os textos culturais são sociais e políticos. Afirma-se, quanto a isso, que é “quando trazemos para a superfície do texto a realidade reprimida e oculta dessa história fundamental, que a doutrina de um inconsciente
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político encontra sua função e sua necessidade” (JAMESON, 1992, p. 18). Nesse ponto, o crítico torna-se o responsável por fazer a mediação entre os níveis de leitura e “a possibilidade de adaptação das análises e descobertas de um nível para outro” (JAMESON, 1992, p. 35). Através das atitudes, do pensamento e das falas do escriba, nota-se que seu pensamento difere do que suas palavras proclamam. Na verdade, internamente, ele possui um discurso dominador, também favorável à repressão, porém, externamente, ele manifesta um discurso comum às autoridades com as quais se relaciona durante a história – um ser alienado da própria fala, um mero repetidor do discurso político que comanda aquela sociedade. Na verdade, a obra apresenta um sistema social rigidamente estruturado, sendo que todo aquele que tenta ir contra o sistema é expelido ou assimilado por ele. No caso do escriba, assim como do antifaraó Akenaton, ele foi expelido pelo sistema. Pode-se perceber, por meio do discurso literário, a presença da crítica à hipocrisia social refletida nas ações dos personagens. Alegoricamente, a hipocrisia está representada no faraó Amenófis XXVIII, com sua busca incansável pela verdade, não permitindo nenhuma sombra de dúvida, porém, a verdade é aquela que convém a ele que está no poder, no comando e, quando necessário, utiliza-se de meios escusos e da força para fazer valer sua vontade como sendo a única verdade absoluta. “Aqui no Egipto Sagrado ou há certezas ou não há. Toda dúvida é uma ofensa aos deuses, de um dos quais eu, vosso Imperador, sou a encarnação” (OES, p. 16). O próprio escriba demonstra sua ambivalência, pois seus pensamentos revelam um desejo oculto de, no dia em que voltar a ser quem era, dominar e se vingar de todos aqueles que o destrataram. Desse modo, vê-se que o poder muda de mãos, mas a forma de governar se mantém a mesma, por meio da força, da repressão. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando se fala em contexto de produção, ainda que não seja propriamente um “biografismo”, é necessário, para efeitos de interpretação e desvelamento de possibilidades, que se levem em consideração alguns aspectos do contexto cultural, histórico e social do autor da obra. Esses aspectos não serão determinantes, mas, certamente,
auxiliarão o crítico/leitor na captação das referências que sustentarão suas hipóteses de que a literatura exerce um papel fundamental como espaço de transposição de discursos e como manifestação de atos socialmente simbólicos. Por isso, para auxiliar no processo de análise deste trabalho, utilizaram-se algumas informações sobre o contexto de produção de Armênio Vieira, encontradas em reportagem já mencionada na Revista Africanidades: foi integrante da geração dos anos 1960 da poesia cabo-verdiana. Geração marcada por uma poesia de revolta e combate ao governo colonial português, à época sob a ditadura salazarista, tendo participado do histórico suplemento “Seló” (1962). Pelo seu envolvimento com a luta de libertação da nação cabo-verdiana amargou dois anos de enclausuramento nas cadeias da PIDE, a polícia política portuguesa (AFRICANIDADES, 2009).
De acordo com o fragmento da reportagem acima, pode-se inferir que entre o criador e o personagem existem algumas semelhanças, pois Vieira escritor não deixa de ser uma espécie de escriba, um letrado, homem detentor de amplo conhecimento sobre diversos assuntos; assim como o escriba, também é um contador de histórias, que esteve suspenso de suas funções durante dois anos, quando esteve preso nas cadeias da PIDE – ou seria o “forte de Karnak”? Viveu sob o peso de uma ditadura, sob os desmandos de um déspota, assim como o jovem egípcio, e também se envolveu na luta pela libertação de seu país. O que talvez os distinga seja a possível descrença de Vieira na real mudança da situação quando o poder muda de mãos, pois o escriba, por meio de seus pensamentos e suas palavras, declara abertamente suas intenções quando chegar a faraó, ou seja, manter um governo dominador, que, por sua vez, castigará os inimigos. Do mesmo modo, existe uma certa influência do contexto de recepção na interpretação e nas possíveis análises do texto literário, pois cada leitor sofre as influências do meio em que vive, ainda que inconscientemente. Devido a isso, ampliam-se as possibilidades de atualizar a obra e (re)significar seus vários sentidos, permitindo suas muitas leituras e mantendo a obra viva ao longo do tempo, como um texto inacabado que permite ao crítico/leitor construí-lo, pois, conforme Said (1995, p. 34), “nem
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o passado, nem o presente, como tampouco qualquer poeta ou artista, tem pleno significado sozinho”. Diante do exposto, pode-se ler O Eleito do Sol como uma obra aberta a múltiplos significados, contendo uma riquíssima transposição de discursos que a tornam um excelente instrumento de manifestação social e de reflexo do viver de uma e várias sociedades (ao mesmo tempo), comprovando, assim, o poder de ação e a necessidade de perceberse a literatura como ato social e político, do mesmo modo que, atrelado a isso, apresenta-se a figura do crítico/leitor como um “operário do texto”, ou seja, aquele que trabalha em função de buscar, desvelar, revelar, mostrar, trazer à superfície do texto seus múltiplos significados encobertos pela ficção. Esse trabalho escavatório no texto literário traz à tona outro aspecto relevante dos estudos literários, que é o de provocar o contato e um olhar interessado em outras literaturas de língua portuguesa, principalmente dos países africanos de língua portuguesa, que possuem tantos pontos de proximidade histórica e cultural com o Brasil, pois acredita-se que, conhecendo sua literatura, é possível conhecer um pouco da sua história e da sua cultura, minimizando as distâncias e, pelo menos, tornando-nos um pouco mais sensíveis e atentos a novos e/ou diferentes modos de experienciar a condição humana. Aprofundar os estudos de OES pode configurarse como uma oportunidade de repensar a forma como nos constituímos historicamente como sujeitos sociais, culturais e políticos num processo de apagamentos e colagens de todas as experiências significativas do homem em seu ambiente social. A obra de Vieira pode ser lida como uma alegoria do sujeito contemporâneo, que possui uma estrutura, uma forma que o identifica; mas, assim como não é possível marcar, delimitar o nível de intertextualidade na obra (ECO, 2003), também não é possível demarcar no indivíduo onde começa e onde termina a influência do passado, dos fósseis culturais em sua identidade. Sabe-se que existe essa influência como parte constitutiva que o identifica, porém, devido ao seu hibridismo, à ambiguidade e à liquidez restam apenas diversas possibilidades de reconhecer as influências, sem, contudo, marcá-las com início e fim. Portanto, “em última análise, tudo o que existe, aqui como em qualquer outro ponto do Universo, tanto pode ser realidade como pura fantasmagoria, de maneira que ninguém sabe quando é que está desperto ou a sonhar” (OES, p. 58). 102
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“VIRANDO O JOGO” COM O CLUB PENGUIN
Conie Smolinski1 RESUMO A tecnologia e seus aparatos trouxeram práticas diferentes ao nosso quotidiano, inserindo a instantaneidade e a multimodalidade até em tarefas simples, como o brincar e o estudar. As crianças nascidas imersas nessa nova cultura potencializam seu desenvolvimento cognitivo e desenvolvem novas habilidades. O artigo que segue analisou as aulas particulares de inglês (L2) de crianças gêmeas, de seis anos, tendo o jogo eletrônico Club Penguin como base para o desenvolvimento linguístico. Os resultados mostram que a inserção do jogo ampliou as possibilidades de aprender e usar a L2, superando o oferecido pelo livro didático devido ao uso imediato e efetivo da língua e proporcionando sua prática continuada. Além disso, as novas características de aprendizagem evidenciaram-se e revelaram um aprendizado mais independente e personalizado do que o aprendizado tradicional e centralizador que tínhamos até então. Palavras-chave: Club Penguin. Segunda língua (L2). Jogo eletrônico. Cibercultura. Nativos digitais. ABSTRACT The technology and its gadgets have brought up different practices to our quotidian, adding instantaneity and multimodality even to simple tasks, such as playing and studying. The children born in this new culture potencialize their cognitive development and grow new abilities. The article that follows has analyzed the private English (L2) classes of six-year-old twins, based on the electronic game Club Penguin. The results show that the introduction of the game has increased the possibilities of L2 learning and usage, overcoming the possibilities offered by the book due to the immediate and effective use of the language, and enabling its continued practice. Besides that, the new characteristics of learning have become evident, and have revealed a more independent and personalized learning, compared to the traditional and centralized one we have had so far. Keywords: Club Penguin. Second language (L2). Electronic game. Cyberculture. Digital natives.
1 Mestre em Linguística Aplicada (Unisinos 2012). Especialista em Linguística Teórica (Feevale 2009), Graduada em Comunicação (Feevale 2006) e em Letras (Unisinos - em fase conclusiva). E-mail: coniehs@hotmail.com.
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1 INTRODUÇÃO “Um dos aspectos mais impressionantes de nossa espécie é o de que usamos ferramentas para quase tudo”, declaram os autores Veen e Vrakking (2009, p. 20), referindo-se ao telefone, ao rádio, à televisão e à internet, ou seja, ferramentas físicas que o avanço tecnológico nos permitiu desenvolver e que nos proporcionam interação rápida e acesso à informação, tudo através da associação destas com a ferramenta simbólica linguagem. Portanto, dispomos hoje de um espaço composto por computadores, telefones celulares, i-pods2, páginas, ambientes virtuais e avatares3 que estimulam o desenvolvimento de uma nova cultura, com práticas próprias, como navegar na internet - mantendo o controle sobre o curso da pesquisa, trabalhar em rede, zapear4 na televisão e absorver informações multimodais. Desenvolvemos novas ferramentas, novas habilidades e adequamos outras à cibercultura. Conforme explica Levy: O ‘ciberespaço’ (que também chamarei de rede) é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Quanto ao neologismo ‘cibercultura’, especifica aqui o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos, de pensamentos e de valores que se desenvolvem com o crescimento do ciberespaço. (LEVY, 1999, p. 17)
O comportamento das pessoas modifica-se como resultado da interação com essa nova cultura, moldando-se ao novo contexto social que emana
I-pod é um aparelho portátil para reprodução de mídia digital, principalmente usado para tocar músicas em mp3, desenvolvido e comercializado pela Apple. (VEEN; VRAKKING, 2009, p. 127). 3 Avatar: “representações de jogadores de algum lugar do mundo” (VEEN; VRAKKING, 2009, p. 41). 4 Zapear: “processo de troca de um fluxo de informação para outro, como se faz, por exemplo, com o controle remoto de uma televisão quando se troca de canal” (VEEN, VRAKKING, 2009, p. 131). 2
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dela. A geração nascida a partir do final da década de 1980 já veio ao mundo imersa na cibercultura e não reconhece a sua instantaneidade, a sua multimodalidade e os seus aparatos tecnológicos como parte de uma cultura nova, pois são aspectos rotineiros e comuns em suas vidas. Uma única interação na cibercultura pode conter a linguagem escrita, em vídeo e em áudio, todas agindo juntas para garantir a informação integral. Retomo aqui a definição de Prensky (2001) para essa geração, a quem chama de “nativos digitais”5, que, por serem nativos, dominam as minúcias da linguagem digital, característica da cibercultura: Eles estão acostumados à instantaneidade do hipertexto, a músicas baixadas, a telefones em seus bolsos, a uma biblioteca em seus laptops [...], e a mensagens instantâneas. [...] Eles gostam de processos paralelos e multitarefas. [...] Eles funcionam melhor quando estão ‘em rede’. Eles prosperam com gratificações instantâneas e prêmios freqüentes. Eles preferem jogos a ‘trabalho sério’ (PRENSKY, 2001, p. 2, 3)6.
Essa definição vem ao encontro do que Veen e Vrakking identificaram como Homo Zappiens, mas que também é conhecido como “geração da rede”, “geração digital”, “geração instantânea” e “geração ciber” (VEEN; VRAKKING, 2009, p. 28): crianças que cresceram usando vários aparelhos tecnológicos, o que lhes possibilitou controlar o fluxo de informações a que têm acesso, mesclarem ambientes virtuais e reais, comunicarem-se e colaborarem tanto com amigos virtuais quanto com vizinhos e fazerem tudo isso de forma não linear, direcionando sua atenção, descobrindo e
5 Apesar da determinação de data para se definir o “nativo digital” ser questionável, pois nem todos os nascidos na década de oitenta têm os hábitos e as características descritos como próprios dos “nativos digitais”, o termo é mantido neste trabalho, uma vez que os participantes da pesquisa são nativos prototípicos. 6 “They are used to the instantaneity of hypertext, downloaded music, phones in their pockets, a library on their laptops […] and instant messaging. […] They like to parallel process and multi-task. (…) They function best when networked. They thrive on instant gratification and frequent rewards. They prefer games to ‘serious’ work” (PRENSKY, 2001, p. 2-3).
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experimentando de maneira livre, uma vez que o computador lhes dá a oportunidade de testar, começar e recomeçar indefinidamente. Uma vez imersos na cibercultura, os nativos digitais também brincam de uma nova forma. Conforme aponta Tapscott: “o fato de que os nativos digitais parecem desenvolver-se mais rapidamente do que gerações anteriores não significa o fim da infância, como deploram algumas pessoas. Na verdade, eles têm um novo mundo para brincar” (TAPSCOTT, 1999, p. 7). O brinquedo tornou-se instantâneo e interativo e, assim, permitiu uma ampliação do conceito sociocultural de jogo simbólico: Nos jogos de faz-de-conta as crianças imitam os papéis que viram os adultos desempenhar; descartam um e adotam outro com a mesma facilidade com que trocam de roupa. Em nenhum lugar existem mais papéis disponíveis para serem explorados do que no ciberespaço. (TAPSCOTT, 1999, p. 8).
Da mesma forma que as gerações anteriores potencializaram seu desenvolvimento cognitivo interpretando papéis sociais e brincando com um cabo de vassoura como se fosse um cavalo, os nativos digitais aprendem brincando com jogos de computador. As crianças de hoje brincam e aprendem quando imergem em um jogo adotando um avatar, ou seja, um papel que o jogador escolhe desempenhar enquanto joga, e assumindo a personalidade do seu avatar, agindo de acordo com suas características e engajando-se em atividades de investigação e descoberta. “Para o homo zappiens, a aprendizagem começa com uma brincadeira e se trata de uma brincadeira exploratória por meio dos jogos de computador” (VEEN; VRAKKING, 2009, p. 36). Além disso, assim como o jogo simbólico ensina a criança a migrar entre sua fantasia e o mundo real, no jogo eletrônico, ela aprende a transitar entre o mundo virtual e o mundo físico: “O universo ficcional acaba com o fim do jogo, mas sendo uma atividade de cooperação e em grupo, as relações entre os jogadores continuam” (FRAGA; PEDROSO, 2006, p. 5). A cibercultura também instituiu novas formas de aprendizagem e de ensino. Os nativos digitais desenvolveram a capacidade de se concentrarem em multitarefas e em vários estímulos paralelos, gerenciando seu nível de atenção conforme lhes
convém. Com isso, as suas estratégias de aprendizagem também mudaram, há mais informações disponíveis a partir das quais se pode criar conhecimento, e o ensino tradicional parece não os desafiar o suficiente a aprender. Eles deixam seu mundo multifacetado e entram em uma sala de aula em que o professor é a única fonte de informação e é centralizador do conhecimento, na qual eles não estão no controle de sua aprendizagem, não podem se comunicar livremente e tudo tem um caráter obrigatório. Na sua perspectiva, esse ambiente é extremamente pobre de estímulos, pouco atraente e nada desafiador. Os professores devem atentar para o fato de que são responsáveis pelo desenvolvimento dessa geração de nativos digitais, e que os alunos de hoje urgem por uma adaptação do ensino à sua realidade. “Freqüentemente, do ponto de vista dos nativos digitais, seus instrutores imigrantes digitais fazem seus ensinamentos não serem merecedores de atenção se comparados com tudo o que eles experienciam”7 (PRENSKY, 2001 p. 4). A sociedade desenvolveu-se, está tecnológica, digital, no entanto muitos professores insistem em transferir o conhecimento como se fazia na sociedade analógica em que cresceram. O papel do professor não é mais o de detentor do conhecimento, mas, sim, de um agente instigador do senso crítico e da autonomia do aluno, guiando-o em suas descobertas e facilitando sua aprendizagem. Afinal, não queremos crianças navegando aleatoriamente na internet, com todas as informações do mundo ao seu dispor, mas sem saber exatamente para onde ir. Os professores devem estar ao lado de seus alunos, presentes e atuantes nesse mundo virtual, para dar orientação e suporte sobre o que e como aprender. Acreditamos que os jogos eletrônicos podem ser uma grande oportunidade para esses professores interessados em ampliar o conhecimento dos seus alunos de forma consistente e os engajarem no processo, tornandoos responsáveis pelo seu desenvolvimento. Soma-se a isso a identificação do “edutainment”, uma mescla das palavras “education” (educação) e “entertainment” (entretenimento) proposta por Purushotma (2005), propondo, assim, uma mistura
“Often from the Natives’ point of view their Digital Immigrant instructors make their education not worth paying attention to compared to everything else they experience.” (PRENSKY, 2001, p. 4). 7
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Figura 1 Fonte: TAPSCOTT, 1999, p. 139
de propósitos educacionais com o divertimento do brincar infantil. Ressaltamos aqui que a palavra “divertimento” não se refere a um ensino descompromissado e imprudente, cujo único objetivo é divertir, mas, sim, a um ensino que possibilite “desfrutar a experiência do aprendizado” (TAPSCOTT, 1999, p. 143). Podemos observar que, em um jogo eletrônico, há frustrações, o avatar perde, morre e tem que recomeçar. Isso não é engraçado nem agradável para o jogador. No entanto, a criança persiste, aprende, testa truques e ultrapassa a fase em que morreu anteriormente. Isso caracteriza o “edutainment”, um aprendizado que não é fácil nem leviano, mas que possibilita o progresso aliado à diversão de aprender. Don Tapscott identificou as transformações que ocorreram no aprendizado dessa geração de nativos digitais e propôs o quadro abaixo, pontuando as diferenças entre a cultura de “aprendizado transmitido”, que se tinha, e a atual cultura de “aprendizado interativo”8, trazida pela cibercultura. Percebemos que os jogos eletrônicos e seus estímulos hipermidiáticos envolvem as crianças na construção do aprendizado, motivando-as de
forma divertida, criativa e produtiva. Dentro do jogo eletrônico, o aluno tem controle sobre o que aprender e a melhor forma para fazê-lo, usando seus talentos pessoais para potencializar seu aprendizado e o auxílio do professor para guiá-lo nessa descoberta. A imersão e a motivação trazidas pelo jogo eletrônico são fundamentais para uma aprendizagem vitalícia: “Ao entrelaçar o jogo e a aprendizagem, podemos ir ao encontro da fantasia das crianças, o que, por si só, já é um fator que instiga a criatividade” (VEEN; VRAKKING, 2009, p. 71). Assim, trazer o jogo eletrônico para a sala de aula torna a aprendizagem mais dinâmica e o conteúdo menos artificial, o que transforma o tempo de instrução formal em diversão. O aluno constrói e vivencia o conhecimento recém-adquirido no ambiente virtual, podendo avaliar o conteúdo e considerá-lo, ou não, para sua vida fora da tela. Portanto, analisamos, neste artigo, aspectos típicos do “edutainment” e da aprendizagem na cibercultura, como as mudanças do aprendizado transmitido ao aprendizado interativo apresentadas no quadro acima e as características dos nativos digitais apontadas por Prensky, Veen e Vrakking.
Termo mantido conforme proposto pelo autor (TAPSCOTT, 1999), apesar de o considerarmos impreciso, dando a impressão de a interação ocorrer exclusivamente na cibercultura. No entanto, conforme a teoria sociocultural, toda aprendizagem pressupõe interação, envolvendo ou não a cibercultura.
2 METODOLOGIA Este artigo é um recorte da dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada, intitulada “My Penguin Pal – O Desenvolvimento da Proficiência Linguística através do Jogo Eletrônico Club Penguin” – em que realizamos um estudo de caso, dentro de
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uma perspectiva participativa de pesquisa, uma vez que há envolvimento direto da professora e dos alunos na coleta e análise de dados (MOREIRA; ROSA, 2009, p. 17). Os participantes da pesquisa são meninos gêmeos, bivitelinos, de sete anos, que, além das aulas particulares de inglês (L2) a domicílio com a pesquisadora, também frequentam uma escola regular bilíngue (português/inglês). Foram analisadas 37 aulas particulares, sendo cada aula com duração de uma hora. A coleta de dados ocorreu no segundo semestre de 2010 e uniu técnicas de observação, gravações de áudio e vídeo, relatório detalhado das aulas, bem como os exercícios e os jogos desenvolvidos pelos participantes e pela pesquisadora, dentro e fora do ambiente virtual. As gravações de áudio e vídeo foram transcritas na íntegra, e seus excertos foram destacados no momento da análise. Para realizar essa transcrição, usamos as Convenções de Transcrição Jeferson (LODER; JUNG, 2008, p. 168), uma vez que objetivávamos analisar o conteúdo das interações, e não os pormenores do modo como se dava a conversa. A professora-pesquisadora é representada na transcrição pela letra C (referindo-se à inicial do nome: Conie), e as letras M e V correspondem aos participantes da pesquisa, que têm seus nomes nas interações aqui apresentadas alterados para Marco e Victor. O jogo eletrônico escolhido para a pesquisa foi o Club Penguin (www.clubpenguin.com), que é um ambiente virtual lançado em 2005, atualmente administrado pela Disney, em que crianças de vários países podem se encontrar e interagir na forma de pinguins coloridos. Em todos os lugares da “ilha” do Club Penguin, o pinguim tem opções de jogos, basta selecionar o lugar para onde deseja ir ou o jogo do qual quer participar. Com isso, o jogador pode dançar, participar de competições e missões, conversar com os demais pinguins presentes, comprar seu próprio iglu e mobiliá-lo, fazer um livro interativo, ler o jornal com novidades do jogo, criar puffles9 como mascotes e até mesmo voar, proporcionando, assim, uma exposição à L2 em contextos práticos e envolventes.
Puffles são “bichinhos” coloridos que os pinguins podem criar como mascotes. O nome é mantido “puffles” mesmo quando o jogo está em português.
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O engajamento suscitado pelo jogo chamou minha atenção quando vi Victor, um dos participantes da pesquisa, vidrado na tela do computador, memorizando todo o auxílio que eu lhe dava na L2 para conseguir participar dos jogos ou superar suas etapas. Aliou-se a isso a identificação de frases e vocabulário passíveis de serem empregados no dia a dia, possibilitando o desenvolvimento de um inglês bem mais aplicável a situações reais. Resolvi, então, explorar mais as possibilidades do jogo, dessa vez, invertendo-se os papéis: eu sendo assessorada pelo aluno. Essa inversão de papéis se repetiu por diversas vezes depois dessa aula, permitindo que a professora ‘imigrante digital’ aprendesse com seus alunos ‘nativos digitais’, o que também foi observado por Prensky quando apontou que os imigrantes adultos deveriam aceitar o que não sabem e deixar as crianças ajudá-los a aprender e se integrar a esse novo mundo tecnológico (PRENSKY, 2001, p. 3). Uma vez inserida no contexto da pesquisa e na análise dos dados, devido à minha posição como professora dos participantes e como pesquisadora, estou ciente da impossibilidade de separação entre sujeito e objeto da pesquisa que minha condição provoca e do consequente problema de viés que essa condição pode acarretar. Diante disso, faz-se necessário um empenho controlado para conter a tendência à subjetividade, o que observei constante e exaustivamente, em um ininterrupto “fazer do familiar um estranho” (HEATH; STREET, 2008, p. 32), conhecendo todo o possível sobre o assunto pesquisado, mas sempre mantendo um certo estranhamento, visando ao detalhamento objetivo do que está acontecendo. 3 ANÁLISE DE DADOS Começamos nossa análise com um pequeno aspecto quantitativo da pesquisa, visando não apenas a justificar o uso do jogo Club Penguin para o desenvolvimento do inglês, como também mostrar como a cibercultura pode contribuir para ampliar esse desenvolvimento. Assim, comparamos as frases e o vocabulário oferecidos pelo Club Penguin – e utilizados como ponto de partida para desenvolver a proficiência em L2 nas aulas pesquisadas – com as\ estruturas previstas no livro Interchange Third Edition (2005), visando a ilustrar que o insumo de estruturas linguísticas e vocabulário oferecido pelo jogo se equipara ao 107
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mesmo conteúdo oferecido por um livro educativo. Com essa análise comparativa, concluímos que mais de 70% das estruturas e do vocabulário fornecidos pelo Club Penguin estão previstos até a lição 7 do livro elementar do Interchange Third Edition, ou seja, praticamente a metade do conteúdo do livro básico, em termos de estruturas linguísticas e vocabulário, pode ser igualmente desenvolvida através do jogo eletrônico, confirmando a possibilidade de o jogo ser um fornecedor de insumo. No entanto, observamos que o uso do Club Penguin supera os limites impostos pelo livro (no qual a L2 é tratada como um conjunto de estruturas e vocabulário com um pouco da cultura anglofalante sendo apresentada no seu decorrer), uma vez que oferece insumo multimodal, com estímulos visuais contextualizados na cultura da L2 não sendo apenas apresentados, mas, sim, fazendo parte das ações, das interações e dos valores dos pinguins dentro do jogo. Além disso, o Club Penguin possibilita o uso prático da L2 como mediadora da aprendizagem sobre um terceiro elemento, que é o jogo propriamente dito e suas regras. Ou seja, os alunos não apenas estavam aprendendo as estruturas gramaticais e vocabulares do inglês e colocando-as em prática imediatamente com outros jogadores – cabe aqui ressaltar que não em um role play10 na sala de aula, mas em situações reais com outros jogadores reais, ainda que em ambiente virtual – mas também estavam-nas usando para aprender como jogar, como superar fases e desvendar os mistérios do próprio Club Penguin. A língua que estavam adquirindo através do jogo já servia de instrumento para ampliarem seus conhecimentos sobre o próprio jogo. Além disso, considerando-se os conceitos do quadro de Tapscott apresentado anteriormente (Figura 1, TAPSCOTT, 1999, p. 139), ilustramos as limitações do uso do livro didático frente à cibercultura. Enquanto o livro nos apresenta uma sequência linear de estruturas a serem transmitidas aos alunos, que absorvem temporariamente a instrução passada pelo professor da mesma forma para todos, o jogo permite a construção do conhecimento vitalício, em que o aluno tem controle sobre o que e como Exercício muito praticado em sala de aula de língua estrangeira, em que cada aluno assume um papel e o desempenha em uma conversa simulada, usando as estruturas estudadas na lição.
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aprender, podendo fazer uso dos diversos meios (áudio, vídeo, escrita...) disponíveis no ciberespaço, podendo começar e recomeçar o estudo até ter suas necessidades satisfeitas. Saímos da imposição do professor transmissor (“hoje faremos listening / role play...”) para a diversão com o processo de aprendizagem, em que o professor não sabe tudo o que vai acontecer na aula, mas, sim, contribui com o seu conhecimento para o aluno se desenvolver, permite-se aprender com o aluno e torna-se o pesquisador junto com o aluno quando nenhum dos dois puder contribuir para a solução de um problema. No decorrer da pesquisa, eu fui professora quando contribuí com meu conhecimento linguístico para desenvolver a L2 dos alunos, mas fui aluna deles aprendendo como usar o jogo e todas as atividades que nele poderíamos desenvolver; pesquisamos juntos como superar desafios e completar novas atividades, ou até algum vocabulário que fosse desconhecido para mim e para eles. Um outro aspecto quantitativo da pesquisa que consideramos relevante abordar é o número de horas de prática da língua-alvo que o jogo propiciou, caracterizando a ocorrência do “edutainment” (PURUSHOTMA 2005, p. 80), termo que denota um entretenimento com propósito educativo, gerando um conhecimento mais vivo do que a simples memorização de listas de vocabulário e frases. Em conversa com uma das babás dos participantes, descobri que, durante a semana, eles passavam por volta de uma hora diária no Club Penguin. Portanto, a união de propósitos educativos ao jogo eletrônico estava expondo os participantes da pesquisa a, no mínimo, cinco horas semanais de estudo/uso extraclasse da língua-alvo, de forma produtiva e autêntica, em situações que eles realmente experimentavam no ambiente virtual. Como já mencionamos, para este estudo, o jogo Club Penguin ou o seu conteúdo foi utilizado em 37 aulas de uma hora cada, totalizando 37 horas de prática em classe da língua-alvo através do jogo, direta ou indiretamente. As aulas ocorreram de junho a novembro de 2010, período que compreende 26 semanas. Considerandose a prática semanal extraclasse, declarada pela babá dos participantes, de cinco horas semanais, tivemos, no período da pesquisa, 130 horas de estudo/uso da L2 fora do contexto formal de aula, o que resulta em três horas e meia de estudo extraclasse para cada hora de aula e por iniciativa dos próprios alunos. Conseguir que o aluno jogue videogame na língua-alvo é muito
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mais produtivo e consistente do que fazê-lo memorizar estruturas da L2, uma vez que a exposição à língua no jogo é autêntica, o aluno é desafiado a interagir e a fazer conexões e interpretações o tempo todo. A inserção do jogo eletrônico nas nossas aulas transformou não apenas a maneira como o processo de ensino-aprendizagem ocorreu, mas também a minha posição como professora e a postura dos alunos frente ao que recebiam e frente às potencialidades dessa nova forma de aprender, muito mais ávidos e envolvidos com o processo de aquisição e de uso efetivo do conhecimento que estavam adquirindo. Com essa redefinição do contexto da aula, muitas das características próprias dos nativos digitais, conforme Prensky (2001), Veen e Vrakking (2009), bem como do “aprendizado interativo”, proposto por Tapscott (1999), se manifestaram e são examinadas na análise de cunho qualitativo que segue. O gerenciamento da atenção dos participantes da pesquisa na execução de multitarefas e de processos paralelos, típico dos nativos digitais em aprendizagem não linear, aparecia com frequência. Na aula 29, por exemplo, cada participante da pesquisa estava jogando o Club Penguin do wii11 em um aparelho diferente, em jogos diferentes, e quando direcionei ao Victor uma pergunta sobre o seu videogame, quem me respondeu foi o Marco, que, por sua vez, estava “concentrado” em nivelar e em jogar o seu jogo, conforme excerto 1 que segue. Excerto 1: 6. C: […] Victor, isn’t it possible to put your wii in English? 7. V e M: [Yes.] (enquanto Marco escolhia entre “easy”, “normal” e “hard” para seu jogo) 8. C: It’s possible to put Victor’s wii in English!? 9. V: Yes. 10. C: Then why is it in Spanish? 11. M: Por que é louco! Às vezes lá nos Estados Unidos eles botam um jogo em espanhol. 12. V: É que alguns jogos aparecem em inglês. 13. M: Sabia que eu já ganhei em hard? 14. C: Good [...]
Percebemos a inserção de Marco já na primeira pergunta direcionada ao Victor sobre o seu wii (linha 7). Ressaltamos que essa inserção aconteceu enquanto Marco escolhia entre os níveis “easy” (fácil), “normal” (normal) e “hard” (difícil) para seu jogo. Posteriormente, quando questionei a razão de o jogo do Victor estar em espanhol, novamente tivemos a resposta do Marco antes do irmão (linhas 10 a 12), dessa vez, enquanto ele já jogava o “snowball battle” (batalha de bolas de neve). E, logo depois, ele mudou o assunto e chamou a minha atenção sobre o fato de ele já ter ganhado o jogo que estava em andamento no nível mais difícil (linha 13), o que não estava acontecendo nesse momento. Ou seja, ele estava gerenciando sua atenção entre o jogo e as minhas perguntas ao Victor e operando em multitarefas, tais como ler e responder ao que o jogo perguntava sobre o nivelamento, enquanto paralelamente ouvia e respondia às minhas perguntas, além de me informar sobre seu desempenho anterior enquanto ainda jogava. Mais um exemplo do gerenciamento de atenção e execução de multitarefas aconteceu na aula número 35, quando cada participante escolheu um dos livros desenvolvidos durante a pesquisa para contar. Enquanto Victor narrava o livro escolhido, permiti que Marco jogasse videogame. Novamente, tivemos inserções do Marco em dois momentos da narração (conforme excerto 2, linhas 10 a 14 e 17), sem que ele precisasse interromper seu jogo de videogame em nenhum momento. Excerto 2: 8. V: […] And then – “as luzes apagaram” é como? 9. C: In English: “as luzes”? 10. V e M: [the lights] 11. M: Turn off. 12. C: No, not “turn off”. “Queimar”, remember? 13. M: Burn out. 14. C: Yes, burnt out! 15. V: Burnt out. And he is going to the lighthouse and after he is going to an alien house and the alien is a girl. The alien take a yellow bag and started to run away. 16. C: Run away? Run to: where? 17. M: To the stadium. […]
Jogo de videogame, hoje conhecido pela sua marca: Nintendo wii ou simplesmente wii.
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Figura 2 - Catálogo de Janeiro de 2012, com os “new arrivals” (últimos lançamentos). Logo abaixo do catálogo, a informação de quantas moedas (“coins”) o pinguim tem
Outra característica da geração de rede, segundo Prensky (2001), é a sua preferência por jogos a “trabalho sério”. Por diversas vezes, quando eu propunha aos alunos largarem o computador para fazer alguma atividade que eu havia desenvolvido, ainda que esta fosse baseada no Club Penguin, a reação dos participantes era um sonoro “aaaaa!” de desapontamento (como trecho da aula 28 transcrito abaixo – excerto 3), ou “só mais um pouquinho, deixa eu só ganhar esse jogo”, ou ainda inventavam alguma coisa nova para me mostrar no jogo ou começavam algum diálogo novo, na tentativa de permanecerem no Club. Excerto 3: 31. C: Hey boys, let’s stop wii a little and play one game of ours inside the tent, OK?12 32. M e V: [Aa:!]
Eles haviam montado uma barraca na sala, onde iríamos jogar.
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Primeiramente, interpretei isso só como envolvimento que o jogo causava nas crianças. Depois, com as leituras específicas, percebi que minhas atividades eram o “trabalho sério”, ainda que fossem todas brincadeiras, só que não dentro da rede, na qual eles realmente queriam estar. Além do mais, as atividades que eu trazia eram lineares e exigiam a sua atenção exclusiva, muito diferente do mundo multimodal a que estavam acostumados, no qual gerenciavam a atenção entre os vários estímulos que apareciam na tela. As gratificações instantâneas, características da cibercultura e impulsionadoras dos nativos digitais (PRENSKY, 2001, p. 2,3), estavam sempre presentes, desafiando os jogadores a progredirem dentro do jogo em troca de moedas (“coins”). Todas as atividades dentro do Club Penguin dão moedas aos participantes, independentemente de vencêlas ou não, e essas moedas podem ser usadas para comprar artigos de um catálogo virtual, encontrado na loja de presentes (Gift Shop) e constantemente atualizado com novos itens (ver figura 2). A motivação gerada pelas constantes gratificações em moedas ficou bem clara em um
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momento da nossa pesquisa em que Victor estava ansioso por participar de todas as atividades dentro do Club Penguin na tentativa de juntar dez mil moedas. Infelizmente não tenho esse momento gravado, mas lembro que, quando perguntei a ele o porquê disso, ele falou “só para chegar a dez mil...eu estou quase chegando”. Continuei, então, perguntando o que ele faria depois que tivesse juntado as dez mil moedas, ao que ele respondeu “vou comprar coisas”. Ou seja, ele não almejava algum item do catálogo para o qual precisasse de dez mil moedas, nada mudaria em seu status de pinguim dentro do jogo; ele queria prosperar no jogo simplesmente para atingir esse valor de moedas. Na verdade, interpreto isso como uma meta a que o próprio aluno se propôs. Como um nativo digital, Victor está acostumado ao clima competitivo de ultrapassar fases e avançar constantemente característico dos jogos eletrônicos e, como no Club Penguin isso é feito através de moedas, o aluno buscou a sua realização propondose uma meta, em moedas, a ser vencida. Mais uma evidência da motivação que os prêmios constantes geram nos nativos digitais aconteceu na aula número 29, em que constatei que o jogo de videogame do Club Penguin (wii) também dava moedas aos participantes e que isso os estimulava a jogar cada vez mais, apesar de eles não saberem como usar as moedas do wii, conforme excerto abaixo. Excerto 4: 27. C: O que vocês fazem com as “coins” que ganham no wii? 28. M: Não sei. 29. C: No computer, vocês podem comprar coisas, né?! 30. M: Aqui dá para comprar, mas a gente não sabe como.
Tapscott aponta para a construção da aprendizagem através da descoberta constante como uma característica do aprendizado interativo, o que também apareceu durante a aula 29. O “testar, começar e recomeçar” apareceu quando Marco jogava Snowball Battle (batalha de bolas de neve) no wii e foi atingido pela bola de um outro pinguim, o qual caiu ao arremessar essa bola certeira. O excerto destacado abaixo ocorreu a partir daí. Excerto 5:
M: Bem feito, ele também caiu! (e coloca para recomeçar o jogo no botão “pause”, que dava as opções de “restart the game”, “return to island”, “instructions” e “back”) C: (lendo o que apareceu na tela) “Are you sure you want to restart this game from the beginning?” M: Yes. (recomeça o jogo) Tá, agora eu vou conseguir.
Mas, a mudança mais marcante trazida pela introdução da cibercultura nas nossas aulas – também descrita no quadro de Tapscott (figura 1) – diz respeito a minha posição como professora, que passou de uma transmissora tradicional de insumo linguístico para uma facilitadora do processo de aprendizagem da língua-alvo e de sua cultura, tendo em vista seu uso imediato para agir no mundo. E não apenas isso: essa alteração de papéis se deu dentro de um contexto até então desconhecido para mim, o que fez com que, de facilitadora da aprendizagem, eu também passasse a aprendiz dos meus alunos, cada um contribuindo com o que dominava para a construção de um aprendizado integral. Posso afirmar que o meu “permitir-se aprender” foi de essencial importância nesse processo, que fez de mim uma aprendiz dos alunos em aula e uma estudante em casa, procurando descobrir tudo o que podia sobre o Club Penguin, para poder atuar como parceira virtual dos alunos nas atividades que realizávamos em aula e para encontrar no jogo formas de potencializar seu desenvolvimento linguístico. Diante da minha experiência de “educação invertida”, concordo com Toffler quando afirma que “os analfabetos do século XXI não serão os que não souberem ler ou escrever, mas os que não souberem aprender, desaprender e reaprender” (TOFFLER, A. apud VEEN; VRAKKING, 2009, p. 99). 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A inserção do Club Penguin ampliou os horizontes da aula, fazendo com que os alunos se empenhassem em aprender o máximo possível sobre a L2 e sobre a sua cultura. Chamo atenção para o episódio em que o aluno se autoestabeleceu uma meta de moedas e canalizou toda a sua atividade no jogo para atingi-la. Em geral, não vemos alunos se colocando metas, no ensino tradicional, por iniciativa própria; até pelo contrário, normalmente 111
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os vemos trabalhando sem muito esforço para atingir o mínimo possível do que foi solicitado pelo professor. O mais importante para este estudo é que, ao estabelecer a tal meta, no jogo, o aluno teve que usar a L2 para realizar as ações previstas (completar o livro virtual, responder às perguntas que o jogo fazia em cada tarefa, por exemplo), o que multiplicou as oportunidades de aprender e de usar a língua-alvo. Além disso, comparando-se as possibilidades de desenvolvimento linguístico oferecidas pelo Club Penguin com as proporcionadas por um livro didático, verificamos que o jogo supera o oferecido pelo livro devido ao insumo multimodal e à possibilidade de uso imediato da língua para agir no mundo virtual, construindo um conhecimento muito mais concreto e vitalício. A prática continuada, tão almejada por professores e crucial no aprendizado de uma segunda língua, foi outra característica ampliada pelo jogo. Verificamos que o envolvimento com o Club Penguin propiciou aos participantes da pesquisa mais de cem horas de prática extraclasse da L2 durante o período da pesquisa (um semestre), o que, em contexto digital, significa mais de cem horas de uso efetivo da língua para praticar ações e interagir no mundo virtual. No processo de ensino-aprendizagem com o jogo eletrônico, verificamos que novas características do aprender emergem da cibercultura: o gerenciamento de atenção e a execução de multitarefas; a preferência dos nativos digitais pelos jogos a ‘trabalho sério’; a motivação renovada por gratificações instantâneas; o aprender através da descoberta; e a descentralização do papel do professor, que se torna um especialista, contribuindo com sua área específica e guiando os alunos em suas descobertas. Observamos, também, que essa nova forma de aprendizado não deixa a desejar para o aprendizado tradicional que tínhamos até então, pelo contrário, todas as suas características agem como potencializadoras de um aprendizado muito mais independente, personalizado e produtivo, em que o aluno vive o que estuda e, por isso, gera um conhecimento vitalício. O aproveitamento dos participantes da pesquisa superou as minhas expectativas dentro do proposto. Faço essa ressalva, pois tenho ciência de que características do ensino tradicional ainda estavam presentes nas atividades que desenvolvi 112
para os alunos. Atualmente, informada sobre a cibercultura e familiarizada com a tecnologia, eu proporia mais atividades dentro do ambiente digital, explorando suas potencialidades, como a possibilidade de ensino a distância ou de uso dos recursos multimodais para o desenvolvimento das quatro habilidades (ler, escrever, ouvir e falar), a fim de ampliar ainda mais a aprendizagem dos alunos. Equiparando-se esta pesquisa a um jogo eletrônico, podemos, todos, dizer que “viramos o jogo”13: os participantes da pesquisa se apropriaram de conhecimento linguístico e hoje transitam bem em contextos bilíngues. Eu me apropriei de conceitos tecnológicos e hoje transito bem nos mundos físico e virtual. Eles, nativos digitais, imigrantes na L2. Eu, proficiente na L2, imigrante digital. Hoje, ambos menos imigrantes e mais aprimorados com o processo aqui apresentado.
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Expressão usada pelos participantes da pesquisa quando superavam todas as etapas de um jogo. “Eu já virei jogo tal” significava que ele já havia vencido todas as suas etapas.
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MOREIRA, M.; Rosa, P. Pesquisa em Ensino: Métodos Qualitativos e Quantitativos. Porto Alegre: UFRGS, 2009. PRENSKY, Marc. Digital Natives Digital Immigrants. On the Horizon, v. 9, n. 6, NBC University Press, 2001. PURUSHOTMA, R. You’re not studying, you’re just… Language, Learning & Technology, v. 9, p. 80 (17), 2005. RICHARDS, J.C. Interchange Third Edition. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. TAPSCOTT, D. Geração Digital – A Crescente e Irreversível Ascensão da Geração Net. São Paulo: Makron Books, 1999. VEEN, W.; VRAKKING, B. Homo Zappiens: Educando na era Digital. Porto Alegre: Artmed, 2009.
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TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. 7 ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.
Patrícia Fontes Marçal1 Dinora Tereza Zucchetti2 Anísio Teixeira, em seu livro ‘Educação não é Privilégio’, publicado no ano de 1957 e tendo sua 7ª edição em 2007, merece ser objeto de releitura. Importante intelectual brasileiro, o autor elaborou, na época, uma análise da escola brasileira, identificando-a como medieval, aristocrática e que servia somente aos interesses das elites. A partir daquele modelo de escola, buscava compreender as aspirações modernas da escola universal para todos, proclamada na Convenção Revolucionária Francesa como um novo estágio da humanidade. Diante do exposto, objetiva-se, com esta resenha, uma reaproximação com os estudos de Anísio Teixeira3, especialmente, procurando verificar as condições em que a escola para todos tem sido possível no nosso país nos dias de hoje. Busca-se, também, resgatar o pensamento de um grande jurista e pedagogo, pouco divulgado nos meios acadêmicos e educacionais atuais. Comprometido com a inovação da educação no Brasil e por discordar de um modelo educacional autoritário e inoperante, em determinada época da história brasileira, sofreu com as intransigências da ditadura brasileira. Grande idealizador das mudanças ocorridas na educação no século XX, implantou escolas públicas e gratuitas para todos, experiência realizada em Salvador, denominada de Escola Parque, que persiste como uma aposta na educação integral até os dias de hoje. De início, em sua obra, admite que, antes da Convenção Revolucionária Francesa, toda a escola brasileira consistia na especialização de alguém, cuja (con)formação já havia sido feita pela sociedade,
Professora. Mestre em Direito pela Universidade de Brasília e Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social da Universidade Feevale, Novo Hamburgo, RS. E-mail: pfmarcal@gmail.com. 2 Professora do Programa de Pós-graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social da Universidade Feevale. Pesquisadora do Cnpq. E-mail: dinora@feevale.br. 3 Anísio Teixeira nasceu em 12 de julho de 1900, em Caetité (BA); cursou Direito no Rio de Janeiro. Diplomou-se em 1922 e, em 1924, já era inspetor-geral do Ensino na Bahia. Viajando pela Europa, em 1925, observou os sistemas de ensino da Espanha, Bélgica, Itália e França e, com o mesmo objetivo, fez duas viagens aos Estados Unidos entre 1927 e 1929. De volta ao Brasil, foi nomeado diretor de Instrução Pública do Rio de Janeiro, onde criou, entre 1931 e 1935, uma rede municipal de ensino que ia da escola primária à universidade. Perseguido pela ditadura Vargas, demitiu-se do cargo em 1936 e regressou à Bahia – onde assumiu a pasta da Educação em 1947. Sua atuação à frente do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos a partir de 1952 valorizou a pesquisa educacional no País. Com a instauração do governo militar em 1964, deixou o instituto – que hoje leva seu nome – e foi lecionar em universidades americanas, de onde voltou em 1965 para continuar atuando como membro do Conselho Federal de Educação. Morreu no Rio de Janeiro em março de 1971. Disponível em: <http://educarparacrescer.abril.com.br/aprendizagem/anisioteixeira-306977.shtml>. Acesso em: 30 ago. 2014. 1
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a rigor, pela “classe” à qual pertencia. Nesse sentido, Teixeira equipara as “classes” a castas, em que a educação era devida na medida de suas “linhagens”, em que a religião e a família eram instituições modeladoras de práticas pedagógicas e formavam o homem para o trabalho, ou seja, moldavam o homo fabris. Também não existia uma política de universalização das escolas existentes, muito pelo contrário, os interesses determinavam a função da instituição escolar. O autor, na sua obra, reafirma o propósito da Convenção Revolucionária Francesa que se formulou embasado em um ideal de educação escolar voltada para todos os cidadãos, cuja influência pretendia romper com a concepção de uma sociedade em que os privilégios, o dinheiro e a herança não existissem e o indivíduo pudesse buscar na escola a sua posição na vida social. “A escola viria a dar a cada indivíduo a oportunidade de ser na sociedade aquilo que seus dotes inatos, devidamente desenvolvidos, determinassem” (TEIXEIRA, 2007, p. 44). Ainda sobre a realidade francesa pós-convenção, Teixeira salientou que esses novos conceitos não se concretizariam imediatamente. Mas, que, lentamente, a escola comum se emanciparia dos modelos intelectualistas para dar lugar à escola moderna, prática e eficiente, com um programa de atividades, e não de matérias/disciplinas. Uma escola iniciadora das artes e do pensamento reflexivo, ensinando o aluno a viver inteligentemente e a participar responsavelmente da sua sociedade, formava os pressupostos que estimulavam o pensamento na construção de uma nova escola, de comum acesso. Para Teixeira, a escola era a oficina do conhecimento racional que não estava mais bastando ao novo programa de mundo que surgia. Os velhos métodos da escola medieval necessitavam ser superados, porque se mostravam inadequados. Crítico, buscou pensar um novo modelo para superar a escola arcaica, tradicional. Em uma de suas citações, Teixeira afirmou: Em face da aspiração de educação para todos e dessa profunda alteração da natureza do conhecimento e do saber (que deixou de ser a atividade de alguns para tornar-se, em suas aplicações, a necessidade de todos), a escola não mais poderia ser a instituição segregada e especializada de preparo de intelectuais ou “escolásticos”, mas deveria transformar-se na agência de educação dos trabalhadores comuns, dos trabalhadores qualificados, dos trabalhadores especializados em técnicas de toda ordem e dos trabalhadores das ciências nos seus aspectos de pesquisa, teoria e tecnologia (TEIXEIRA, 2007, p. 49).
Grande idealizador da Escola Nova, Teixeira amalgamou ciência teórica com empirismo, crendo que somente uma teoria nova do saber poderia produzir a escola brasileira. Intransigente, afirmou que as escolas não foram criadas para renovar a sociedade, mas para perpetuá-las e, portanto, a sua relação com as estruturas sociais de classe teria de ser mais estrita. Ou seja, em seu pensamento no que diz respeito ao desenvolvimento da sociedade, afirmou que esta foi formada através de uma escola rígida, formadora também de pessoas rígidas, com conceitos tradicionais, e que esse modelo educacional impactava a ideia da Revolução Francesa, que tendia a uma escola comum ou pública, ou seja, de forma igual e para todos. Para Teixeira, sobrepor à educação o conceito de classe seria a maior revolução de todos os tempos. Prover uma educação destinada a todos os indivíduos sem a intenção ou o propósito de distinguir as pessoas constituía um grande ideário. Criticou, em sua obra, que o projeto consolidado na Revolução Francesa consistia em uma educação que permitia ao “pobre” poder participar da elite, entretanto: Ora, a ideia de ‘educação comum’, da escola pública americana ou da école unique francesa, não era nada disso. Não se cogitava dar ao pobre a educação conveniente ao rico, mas antes, de dar ao rico a educação conveniente ao pobre, pois a nova sociedade democrática não deveria distinguir, entre os indivíduos, os que precisavam dos que não precisavam trabalhar, mas a todos queria educar para o trabalho, distribuindo-os pelas ocupações, conforme o mérito de cada um e não segundo a sua posição social ou riqueza (TEIXEIRA, 2007, p. 60).
Teixeira, no seu livro, trouxe também dados estatísticos demonstrando a incompetência do modelo educacional arcaico que se instalava no País. Anexou à obra o plano Nacional de Educação da época e finalizou questionando como restaurar o sentido democrático da expansão educacional brasileira. 116
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A aceleração do processo histórico sob o impacto do progresso material, ignorância generalizada em virtude das deficiências e perversões do processo educativo e clima de conservadorismo, se não reacionarismo social, estão, assim a criar no País condições particularmente difíceis à nossa ordenada evolução educacional (TEIXEIRA, 2007, p. 99).
De forma geral, é possível afirmar que, para Teixeira, a escola pública tinha também como função a aproximação social e a destruição de preconceitos, prevenindo toda a ordem de exclusão. Segundo ao autor, a escola pública, sem ser uma invenção socialista nem comunista, necessitava traduzir os singelos e esquecidos postulados da sociedade capitalista e democrática do século XIX (TEIXEIRA, 2007, p. 103). Nesse diapasão, segundo Teixeira, a escola brasileira deveria promover um novo modelo de instituição que fortalecesse o desejo de oportunidades educacionais a todos, libertando-se das rígidas prisões legais em que se encontrava e que convidavam à fraude escolar. Estimular iniciativas honestas e sérias e um modelo de escola embasada na eficiência do ensino e numa pedagogia que estabelecesse ampla equivalência entre os diversos tipos de escola, não mais uma escola de “classes”, e que medisse sua qualidade embasada no número de anos de estudo do aluno, nos resultados obtidos e na eficiência demonstrada compunha o ideário de escola que se distanciava dos modelos uniformes e rígidos. Teixeira aduzia, ainda, que diretores, professores e alunos ajustariam as escolas às condições locais, produzindo uma administração mais eficiente, com flexibilidade no processo educacional. Esse era o projeto inicial de Teixeira para o campo da educação brasileira. É certo que houve uma delonga na implantação das ideias de Teixeira, quiçá elas sequer se concretizem. Também, porque, ao longo da história brasileira, tivemos o governo autoritário de Getúlio Vargas e, mais tarde, uma longa ditadura de 25 anos que impactou na forma de retrocesso à execução das propostas do pensador. Daí que, atualmente, resgatar as ideias de Anísio Teixeira é levar adiante o legado de um grande brasileiro que tinha como pretensão a melhoria e a igualdade no ensino, buscando, com isso, contribuir para minimizar as desigualdades de um país que manteve sempre seus olhos voltados para a elite, esquecendose dos menos favorecidos. O tempo está propício para esta releitura; não há dúvida de que vivemos uma época em que o Estado e a sociedade brasileira demonstram querer recuperar experiências de educação que produzam efetividade social. A Educação Integral, bandeira de Anísio Teixeira, é uma delas.
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(com até 200 palavras). A página deve ter tamanho A4 com margem superior de 3,0 cm, inferior de 2,0 cm, esquerda de 3,0 cm e direita de 2,0 cm. Recomenda-se a subdivisão interna do material submetido com indicação de pelo menos três palavras-chave. O autor deve fornecer, também, dados relativos à instituição e à área em que atua, bem como indicar endereço para correspondência com leitores. As referências bibliográficas devem ser incorporadas ao texto, de acordo com as normas vigentes da ABNT; quanto às notas, devem ser explicativas e sempre colocadas ao final do artigo. Os textos que não estiverem de acordo com as normas gerais e com as normas para apresentação dos trabalhos não serão submetidos ao Conselho Editorial. Resenhas bibliográficas: devem focalizar trabalhos significativos com importante contribuição à literatura já existente. Salvo em casos especiais, devem ser revisões críticas que discutam os principais temas tratados em um ou mais livros que tenham a mesma preocupação ou tratem de assuntos correlatos. As resenhas bibliográficas devem ser concisas e não consumir várias páginas descrevendo cada capítulo de determinado livro ou cada ensaio de uma coletânea de textos. É essencial enfatizar e discutir o conteúdo teórico do trabalho em questão. As resenhas deverão ter, no máximo, 8 laudas digitadas. A publicação dos trabalhos está condicionada a pareceres dos membros do Conselho Editorial garantindo o anonimato de autores e pareceristas no processo de avaliação. Eventuais sugestões de modificação de estrutura ou conteúdo, por parte do Conselho Editorial, serão previamente acordadas
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