UNIVERSUS N° 05 (2018/1)

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UNIVERSUS

REVISTA DO CURSO DE BACHARELADO EM JORNALISMO DA UNIRITTER | Nยบ 5 | JULHO 2018

PORTO ALEGRE

INVISร VEL


Carta ao Leitor

Expediente

Caro leitor,

Em junho, a revista estava encaminhada, mas ainda faltava o principal: o nome e a imagem capa. Como resolver? A inspiração veio dos versos de Kleiton & Kledir: “Há muito tempo que ando/ Nas ruas de um porto não muito alegre/ E que, no entanto, me traz encantos./ E um pôr de sol me traduz em versos”. A letra, especialmente a segunda frase, dá vida ao sentimento que une as pautas – e as pontas – desta revista. Portanto, o nome desta edição temática da Universus só poderia ser Horizontes. E a imagem da capa não poderia ser outra que não a do campus Zona Sul, de onde se tem uma vista privilegiada da cidade, possivelmente bem parecida com a que inspirou os compositores da música que empresta o nome à essa edição. Desejamos a você, caro leitor, uma ótima leitura. Prof. Mariana Oselame

TURMA DA MANHÃ: Adriana Michelon, Alessandra Vida, Ariel Freitas, Diego Lemos, Ellen Ribeiro, Fabíola Barcelos, Gabriel Borba, Giovanna Kopczynski, Grazielle Corrêa, Guilherme Escouto, Guilherme Telmo, Hiashine Florentino, Jennyfer Siqueira, Juan Pedro Doyle, Larissa Pessi, Leonardo Dias, Leonardo Munhoz, Louise Souza, Luana de Oliveira, Luísa Meimes, Manoela Behar, Marjorie Paula da Silva, Maurício Paulini, Natielle Conceição e Tiago Silveira. Foto: Ariel Aires

O desafio de construir uma publicação diferenciada, criativa e inovadora – e que fosse mais do que um aglomerado de páginas – foi abraçado pelas turmas já nas primeiras semanas de aula. Divididos em grupos, os alunos trabalharam a concepção de ideias e as apresentaram para uma banca formada por dois egressos do Jornalismo da UniRitter: Leonardo Pujol e Fernanda La Cruz, da República Agência de Conteúdo, que escolheram a melhor proposta. A vencedora foi a ideia de produzir uma revista sobre Porto Alegre, explorando os seus desafios e as suas questões ‘invisíveis’. Definido o tema, o próximo passo foi escolher as pautas. Na sequência do processo, após as entrevistas, apuração de dados e idas a campo, foram construídos os textos que ocupam essas páginas. As últimas etapas foram a diagramação da revista impressa e a postagem das matérias no site da Universus (revistauniversus. uniritter.edu.br).

Foto: Guilherme Costa

Você deve estar imaginando que, ao folhear as páginas desta publicação, encontrará apenas textos e fotos produzidos pelos alunos de Jornalismo da UniRitter. Pois eu lhe garanto que há muito mais. Esta segunda edição temática da Universus – a primeira foi a Forasteiros, que tratou do tema da imigração e foi publicada em julho de 2017 – não é uma revista convencional. Mais do que informar, questionar e interpretar, ela é o registro das aspirações de 50 futuros jornalistas que se dedicaram, durante quatro meses, à execução deste projeto. Ela traz em suas páginas as perspectivas de futuro das duas turmas de Produção de Revista – suas inquietações em relação à cidade em que moram, o modo como enxergam os problemas, a percepção do que parece ser invisível aos olhos do poder público. Enfim, os seus horizontes.

TURMA DA NOITE: Alexia Szortyka Rackow, Ana Carolina Pinheiro, Ana Carolina Viera, Andrey da Rocha, Brenda Aurelio, Bruna Jordana, Carla Franco Oliveira, Diego Duarte, Eric Goudinho, Felipe Moraes, Giullia Santos, Guilherme Gonçalves, João Francisco Forbrig, João Pedro Cammardelli, Luiza Brandão, Maíra Bernardo, Matheus Furtado, Matheus Lourenço, Paula Schuster, Paula Fernandes, Pedro Carrizo, Rafael Godoy, Sarah Acosta, Valéria Possamai e William Corrêa.

Este conteúdo foi desenvolvido na disciplina de Produção de Revista, ministrada pela professora Mariana Oselame, no primeiro semestre de 2018 no campus Zona Sul. Revisão: Mariana Oselame, Larissa Pessi, Maíra Bernardo e Ana Carolina Pinheiro Foto da capa: Maíra Bernardo Projeto gráfico e diagramação: Maurício Paulini e Ana Carolina Pinheiro Coordenador do curso de Jornalismo: Leandro Olegário Gerente de Humanidades, Design, Comunicação e Educação: Débora Quaresma Reitor: Germano Schwartz


Sumário “ O PRINCIPAL RESPONSÁVEL SEMPRE É A PREFEITURA”

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À MERCÊ DO TEMPO

6

VIZINHOS DO PRESÍDIO

8

NÃO VAI TER OBRA

11

A LONGA ESPERA PARA SER O PLANO A

12

O ELEFANTE NO CENTRO HISTÓRICO

16

A RUA É MINHA CASA

19

UANDO A PRAÇA NÃO ESTÁ Q PARA BRINCADEIRAS

24

A RESISTÊNCIA CONTINUA

26

SEM SAMBÓDROMO E SEM CARNAVAL

28

PRAZER, ZÉ DA TERREIRA

29

EDUCAÇÃO SUCATEADA

30

COM A PALAVRA, MATHEUS

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ACESSE A EDIÇÃO ONLINE

Imagem de satélite | NASA


“O principal responsável sempre é a prefeitura”

Ex-prefeito mais antigo de Porto Alegre, Guilherme Socias Villela fala sobre os desafios da cidade e as responsabilidades da gestão municipal

Texto e foto: Brenda Aurelio

G

aúcho de Uruguaiana, Guilherme Socias Villela, 82 anos, deixou, após oito anos de mandato como prefeito de Porto Alegre, um legado muito valorizado hoje em dia: o verde. Trinta e cinco anos após o fim de sua gestão, que foi de 1975 a 1983, a marca de sua administração ainda é visível em toda a cidade. Foram mais de 35 novos

parques, entre eles o Marinha do Brasil, além da criação da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, pioneira no país. Economista de formação, Villela exerceu o cargo de prefeito por indicação do governo militar, já que na época não havia eleição direta. Anos depois, em 2012, se elegeu vereador pelo Partido Progressista (PP).

Desde o fim do mandato na Câmara dos Vereadores, em 2016, o ex-prefeito se dedica à família e aos amigos. Ele recebeu a reportagem da revista Horizontes no sofá de casa para uma conversa sobre os desafios enfrentados por Porto Alegre e sobre as responsabilidades que vêm junto com o cargo de prefeito – ou, ao menos, deveriam vir.

Pesquisa: João Cammardelli, Eric Goudinho, Matheus Furtado e Guilherme Gonçalves

1869 Inauguração do Mercado Público, tombado em 1979 como Patrimônio Histórico do Município. mercadopublico.com.br

Arquivo/Carris

26 de março de 1772

Fundação de Porto Alegre (na época era um povoado conhecido como São Francisco do Porto dos Casais). O engenheiro Alexandre José Montanha traça a primeira planta da cidade.

1908 Carris inaugura bondes elétricos. 1944 Parque Saint’Hilaire é comprado pela prefeitura.


Você foi prefeito entre 1975 e 1983. Que tipo de necessidade Porto Alegre tinha naquela época? Era uma época mais relacionada com o cimento, o concreto. Encontrei uma cidade cinzenta. Procurei, através de aulas com o Lutzenberger (ambientalista que participou ativamente da luta pela preservação ambiental nos anos 70, 80 e 90), me conscientizar de que a cidade tinha que ser um pouco mais verde. Então dei ênfase para a construção dos grandes parques: Parque Marinha do Brasil, Parque da Harmonia, que hoje tomou nome de Parque Maurício Sirotsky Sobrinho. E mais: criei a primeira Secretaria do Meio Ambiente do país. Nem o governo federal tinha. Investi muito em árvores nos oito anos. Foram quase um milhão e duzentos mil plantios e replantios (a Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade estima que, atualmente, a cidade tenha 1,3 milhão de árvores em vias públicas). Foi uma revolução grande em matéria verde. É mais fácil administrar a cidade hoje ou naquela época? Hoje existe mais exigência, são duas épocas completamente diferentes. Naquela época tinha só dois partidos, hoje tem mais de 30. Só na Câmara de Vereadores deve ter mais de 20. É uma coisa difícil para os prefeitos, de conciliar essas tendências partidárias diversas. Como era o seu estilo de administrar? Simplesmente fiz o que tinha que fazer. Um exemplo: adotei um sistema de administração por três meses. Eu cheguei a atender, quarta, quinta e sexta-feira, em torno de 80 pessoas por

1959 Inauguração do Presídio Central. Em janeiro de 2017 o nome muda para Cadeia Pública de Porto Alegre. 1977 Criada a Fundação de Educação Social e Comunitária (FESC), que em 2000 muda para Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC). 1981 Criada a Equipe de Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC), responsável por inventariar e tombar prédios de relevância histórica e cultural.

dia. Eu ouvia as pessoas. Eu me dediquei exclusivamente às pequenas coisas. Eu não quero comparar. Eu votei no Marchezan, mas ele passou um ano sem fazer isso. Os buracos estão aí.

Quando olha para a cidade, o que deixa o senhor mais triste? As pichações. Não aquelas artes, mas aqueles códigos.

Como era a relação entre a prefeitura e o governo estadual? Antigamente o link era maior entre a prefeitura e o Estado. Tinha um pouco mais de dinheiro. Hoje o Estado está quebrado e a prefeitura também está ruim.

Nesta edição da revista temos uma reportagem sobre os moradores de rua. Esse é um problema da prefeitura? A questão dos moradores de rua é um problema social grave. O principal responsável sempre é a prefeitura. No meu tempo de prefeito, existia morador de rua, mas não como agora. Naquela época, nós tínhamos um convênio com a PUC para cuidar dos centros comunitários. Criei, por lei aprovada na Câmara, a Fesc, que virou Fasc (Fundação de Assistência Social e Cidadania), que se encarregava muito dessa parte social. Digamos que eu não cheguei a sentir problemas maiores (com relação aos moradores de rua). Hoje, quem passa no viaduto da Borges de Medeiros, dá pena de ver aquele pessoal jogado, atirado, muitos drogados.

Como um prefeito pode driblar as dificuldades financeiras e viabilizar as melhorias que a cidade precisa? Consegui descobrir que existia um plano social no Banco Mundial. Através do governo federal consegui 32 milhões de dólares, sem empréstimo, por doação. Com isso, foram feitos os corredores da Bento Gonçalves, Farrapos, Assis Brasil, Protásio Alves. Eu ia com a minha equipe, com o secretário de planejamento. Viajava para Brasília para buscar dinheiro, mandava olhar o orçamento da União. E o dinheiro federal não era empréstimo, geralmente era doação. Então eu não deixei dívidas. Quer dizer, eu deixei dívidas normais, mas não as excepcionais, porque o dinheiro vinha a fundo perdido. O senhor fica triste por algo que pensou em fazer e não conseguiu? Sim. Não é que eu vá chorar as mágoas, mas a ideia dos corredores da Farrapos não era colocar metrô, porque o metrô é caríssimo. Era trazer bondes como tem em Portugal, na Suíça. Bondes modernos. Mas não tive fôlego para isso.

1988 Aberta, via Constituição Federal, a discussão sobre questões relativas à desigualdade racial no país. Começa a luta das comunidades quilombolas. 2006 Carnaval de Porto Alegre, que começou na década de 1930, é declarado Patrimônio Histórico, Cultural e Turístico do RS. 2011 Parque Saint’Hilaire é descadastrado do Sistema Estadual de Unidades de Conservação (SEUC) e deixa de receber investimento via compensação ambiental.

Você exerceu o cargo de prefeito por indicação do governo militar, já que não havia eleição direta no período (o primeiro prefeito eleito pelo voto direto foi Alceu Collares, do PDT, que governou de 1986 a 1988). Qual a sua avaliação sobre o regime político da época e da democracia que vemos atualmente? Eu ainda tenho esperança de uma democracia honesta. A Constituição de 1988 é uma... (hesita)... eu ia dizer bosta, e vou dizer: é uma bosta. Nós precisamos de uma nova constituição, com uma legislatura exclusiva. Eu acredito na democracia, com um governo forte. E tem que ser honesto.

POPULAÇÃO DE PORTO ALEGRE 1780 = 1.512 1803 = 3.927 1820 = 12.000 1848 = 16.900 1858 = 18.465 1872 = 43.998 1890 = 52.421 1900 = 73.647 1920 = 179.263 2017 = 1.484.941* *10ª cidade mais populosa do Brasil Fonte: IBGE; Pesavento, 2002.


À mercê do tempo Casarões históricos de Porto Alegre sofrem com a falta de manutenção

Texto: Diego Lemos e Grazielle Corrêa Fotos: Grazielle Corrêa

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iz o senso comum que o povo do Rio Grande do Sul é muito apegado aos seus costumes, tradições e cultura. No entanto, basta andar pelo centro de Porto Alegre para se deparar com o patrimônio histórico abandonado, deixado à mercê da passagem do tempo. São casarões antigos, que contam a trajetória da capital gaúcha, literalmente caindo aos pedaços. Registros de outras épocas que hoje ajudam a entender como era a vida no século passado, os casarões preservam a memória da cidade. É

o que afirma o arquiteto Luiz Merino Xavier, da Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC) de Porto Alegre. “Por que a história é importante? Tu a preservar em livros, alguém te contando alguma coisa. Tu a preservar em obra de arte, indo no museu enxergando peças de outras épocas. E tu a preservar na arquitetura para poder ver um pouco como era a forma de viver de uma época”, explica. “Só entrando em uma casa e vendo esses ambientes é que realmente se entende como era viver no passado”, completa.


PROPRIEDADE PARTICULAR Embora alguns casarões tenham sido tombados e adquiridos pela prefeitura – e a dificuldade de manutenção venha da falta de recursos públicos e parcerias – outros prédios históricos de Porto Alegre são apenas inventariados pelo município e, por isso, continuam sendo propriedades particulares. Nesses casos, a manutenção e a restauração é de responsabilidade dos proprietários, que devem pedir à EPAHC para obter a autorização da reforma, pois os imóveis que possuem inventário não podem sofrer alterações sem aval do órgão. Cabe também a EPAHC, a fiscalização e cobrança destes bens para a conservação da memória cultural da cidade.

Com o passar dos anos se tornou comum ver essas casas antigas fechadas, abandonadas e muitas vezes em péssimas condições de conservação. Muitas foram recebidas como herança e os proprietários não têm o intuito de conservar o imóvel, mas sim de vendê-lo. Foi o que aconteceu, por exemplo, na Rua Luciana Abreu, no bairro Moinhos de Vento. Após uma disputa judicial de 14 anos, seis casarões de 1930 foram demolidos, em dezembro de 2016, para dar lugar a um prédio. Houve quem defendesse a demolição, alegando que as casas abandonadas atraíam usuários de droga, assaltantes e focos de infestação de ratos devido à falta de manutenção. Mas também houve quem lamentasse a demolição dos

casarões, entendendo que foi um pedaço de Porto Alegre que veio abaixo às vésperas do Natal de 2016. EPAHC A Equipe de Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC) foi criada em 1981 com o objetivo de gerir os bens culturais de propriedade municipal. Atualmente, a EPAHC é responsável por projetos e obras de restauração em prédios públicos municipais tombados. Além disso, é para lá que são encaminhados os pedidos de tombamento. A equipe ainda faz o inventário de bens imóveis – hoje, o cadastro chega a quase três mil imóveis. Entre eles estão as casas Godoy e Torelly.

Casa Godoy Na Avenida Independência, região central da cidade, um casarão é considerado o marco da paisagem e da vida social na Porto Alegre de meados do século XX. Além de seu valor arquitetônico, um raro exemplar do estilo art nouveau. O projeto é assinado pelo arquiteto alemão Hermann Menchen, que emigrou para o Brasil em 1903. A Casa Godoy foi tombada em 1996 e adquirida pela prefeitura. Desde o restauro realizado posteriormente à aquisição, a casa não passou por grandes reformas. No início de 2018, foram realizados ajustes superficiais no primeiro andar e em algumas salas do segundo para que o prédio pudesse abrigar a Coordenação da Memória Cultural da Secretaria Municipal de Cultura.

Casa Torelly Viver na Casa Torelly era morar em um dos pontos mais requintados de Porto Alegre, procurado pelas famílias da burguesia industrial e comercial de fins do século XIX e início do XX. Firmino Torelly adquiriu o imóvel da Avenida Independência em 1908 – quase 80 anos depois, em 1987, ele foi tombado pelo EPAHC. O projeto de restauração ficou sob responsabilidade da Secretaria Municipal da Cultura, por meio da EPAHC. Completamente reformada, a casa passou a abrigar, em 17 de agosto de 1993, parte da área administrativa da pasta.


VIZINHOS DO PRESÍDIO Texto e fotos: Luísa Meimes

“A vista e o cheiro não são dos melhores, principalmente no verão, mas para morar o lugar é bom.” Lia Sanches, vizinha do presídio

O

relato é de uma moradora do entorno da Cadeia Pública, na zona leste de Porto Alegre. Do quintal de casa, Lia Sanches, que reside na mesma rua há mais de 30 anos, tem a vista para um muro de oito metros de altura. Quem passa pela Vila João Pessoa consegue perceber a ferida aberta que representa, em forma de concreto, a satisfação do desejo de justiça clamado pela sociedade. O antigo Presídio Central, recentemente rebatizado de Cadeia Pública

de Porto Alegre, abarrota homens em condições degradantes que, por consequência, impactam a sociedade no entorno – aquela que não se vê, ou que não se quer enxergar. A nove quilômetros da sede da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, o comércio da rua da entrada do presídio começa a funcionar, nos dias de visita, antes mesmo de o sol nascer. Na calçada, o lixo espalhado faz com que quem caminhe pelo local tenha que desviar das garrafas e dos restos de comida. Em um sábado, no meio da manhã, o caminhão do lixo passa, mas recolhe somente o que é possível carregar: os sacos. “Posso deixar contigo?”, uma moça se aproxima e entrega um cartão para quem estiver na rua. A mensagem é clara: “Você está com problemas? Nós temos a solução!”. A propaganda de um escritório de advocacia resume o que acontece por ali: no entorno, há um comércio paralelo que se nutre do presídio. A vida dos moradores, assim como os estabelecimentos na volta, se adapta aos horários da Cadeia Pública. O presídio fica em área militar, no bairro Coronel Aparício Borges, porém di-

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vide espaço com escolas infantis, igrejas e ruas residenciais. Isso contraria as recomendações do Ministério da Justiça que, embora não determine uma distância específica, orienta existir uma distância considerável entre os muros do presídio e as residências na volta. No entorno da Cadeia, o muro alto se destaca em meio às casas. Na rua lateral, qualquer pessoa desconhecida causa estranheza – e por onde se passa há olhares curiosos. “Está procurando alguma coisa?”, uma senhora pergunta sem hesitar. Lia Sanches é moradora do local há mais da metade de sua vida. Ela e o companheiro se acostumaram com a rotina da Cadeia, mas contam que ainda desconfiam de qualquer pessoa que passa por ali. Do quintal de sua casa – que fica em uma das ruas cinzas e estreitas típicas do entorno do presídio – a vista é para um muro de oito metros de altura. “A gente desconfia de qualquer um, porque vem muita gente tentar jogar droga pelo muro. Mas a gente finge que não vê”, explica. Quem também parece fingir que não vê os problemas do entorno da cadeia é a prefeitura. Os vizinhos do presídio contam que o cheiro de


esgoto fica quase insuportável no verão, e que se deparar com ratos e baratas é algo comum. Pela falta de lugares adequados para a recreação das crianças, no fim da rua, quase todos os sábados, um grupo de meninos joga futebol e usa, como goleira, o muro da Cadeia. O jogo é interrompido quando eles se aproximam para contar para a reportagem como é ser vizinho do maior presídio do Brasil. O pai de uma das crianças, Ezequiel Compagnhoni, diz que a vista não é um problema. Mas, assim como dona Lia, ele conta que é comum o arremesso de drogas pelo muro. “Às vezes vêm uns guris aqui jogar droga, aí os brigadianos dão uns tiros de borracha”, diz. Membro da Associação dos Moradores da Vila João Pessoa, Cleomar Macedo explica que, apesar dos riscos de morar perto de um presídio, a vizinhança é boa. “Claro que há o risco de dar uma rebelião e fecharem as ruas. Sempre tem esse risco. Só que se eles escaparem daí de dentro eles vão tentar se mandar daqui”, afirma o mestre de obras que reside no local desde 2006. Os imóveis da Vila João Pessoa são difíceis de vender e alugar. Quem é de fora tem receio de andar na área. Por outro lado, quem mora ali se sente seguro pela alta rotatividade de carros da Polícia Militar. “As duas ruas lá para trás foram doadas pelo BOE (Batalhão de Operações Especiais) para os brigadianos, então tem muito policial”, conta Ezequiel ao se referir ao Morro da Polícia. A Brigada Militar administra a Cadeia desde a rebelião de 1994 – quando funcionários foram feitos de reféns e 49 presos escaparam do

Rua Gélson da Rosa

No interior do armazém, mulheres alugam roupas para passar na rigorosa revista antes de entrar na Cadeia Pública

Presídio Central. A Brigada foi solicitada para uma força-tarefa que duraria seis meses e, desde então, a presença se tornou permanente. Na prática, é uma administração conjunta com as facções. Em uma sociedade reclusa, a organização é uma forma de sobrevivência. Lançado em março de 2017, o documentário Central – O poder das facções no maior presídio do Brasil, de Tatiana Sager, mostra o quanto o Estado é ciente que da porta para dentro das galerias o comando não é dele. Da porta para fora do presídio, o comando deveria ser do Estado. Mais especificamente, da prefeitura. Segundo o jornalista e doutor em Sociologia Marcos Rolim, quando se constrói um presídio não se pensa na possibilidade de

urbanização do entorno. No entanto, Rolim afirma que é fundamental avaliar o impacto social da obra. “O Presídio Central, quando foi construído, ficava numa área que era praticamente uma zona rural de Porto Alegre. Hoje é uma área densamente povoada. O que agravou a situação é que aquilo que deveria ser uma cadeia pública para presos preventivos – prisões ainda aguardando sentença – acabou misturando tanto presos preventivos quanto presos condenados”, ressalta. A Cadeia Pública sustenta em suas dependências uma população maior do que a maioria dos municípios do Rio Grande do Sul. De acordo com a Susepe, o número de presos fixos (já condenados) é 4,6 mil. Porém, contando com os detentos que estão na triagem, o número pode chegar a mais de 6 mil. Com as visitas, a aglomeração de pessoas no prédio é ainda maior. Segundo o último levantamento da Susepe, em março deste ano mais de 16 mil visitantes circularam na Cadeia. Muita gente no mesmo lugar sem os recursos básicos de higiene só poderia resultar na disseminação de doenças. “Se ali no Central há índices elevados de tuberculose, por exemplo, a chance de os familiares serem contaminados é grande. Isso é um vetor de contaminação para toda sociedade”, afirma Rolim. Na Cadeia Pública, a tuberculose, assim como a manifestação de diversas doenças, é recorrente. O promotor de Justiça responsável pela fiscalização do presídio, Luciano Pretto, conta que, pelas condições insalubres, é impossível isolar o preso com tuberculose. “Isso é um problema gravíssimo de saúde pública, porque o funcionário que trabalha lá, e o familiar que vai visitar, estão expostos”, afirma.

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A juíza da Vara de Execuções Criminais Sonáli da Cruz Zluhan conta que, no momento, três galerias do presídio estão com um surto de sarna. “Já pensou se eles não tratam esse surto de sarna? Daqui a pouco nós vamos ter um surto de sarna em Porto Alegre, porque o visitante que vai lá tem outros contatos”, ressalta. A juíza afirma que encaminhou um ofício para a Secretaria de Saúde e para o próprio presídio solicitando providências. “O Presídio Central tinha um ambulatório que funcionava 24 horas por dia, com médicos cedidos. Só que acabou esse convênio porque o Estado e a prefeitura estão falidos. Agora eventualmente tem um médico lá”, explica Sonáli. As condições de dentro da Cadeia Pública impactam diretamente a sociedade na volta, afetando os moradores, comerciantes e a sociedade geral. É o retrato da ineficácia do poder público, que parece não ter olhos para os problemas da Vila João Pessoa na Zona Leste de Porto Alegre. Guarita da Cadeia Pública. Ao fundo, o Morro da Polícia

Dia de Visita

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o lado de fora dos pequenos comércios, a oferta se adapta à demanda. O aluguel de roupas facilita a vida das visitantes que, muitas vezes, não vão preparadas para as rigorosas regras da entrada na Cadeia. Quando precisam alugar as peças elas se obrigam a trocar de roupas no banheiro dos estabelecimentos da rua da entrada do presídio. “Aqui tem movimento desde quatro, quatro e meia da manhã. A gente chega cedo para atender as mulheres e tenta fazer o melhor possí-

vel”, afirma Josiane Machado, comerciante há sete anos no entorno do presídio. O armazém foi herança de sua mãe e é uma mão-na-roda para as visitantes – assim como outros serviços como escritórios de advocacia que buscam clientes na porta da cadeia. Estabelecimentos com guarda-volumes, aluguel de roupas, venda de sacolas e viandas são encontrados na rua da entrada. Em fila indiana, somente mulheres segurando a carteirinha para identificação e sacolas

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com potes de comida e mantimentos ocupam a calçada da Cadeia Pública. A fila para visita começa a se formar às cinco da manhã e, por volta das sete, já se estende até a esquina. Às sete e meia, com o grito da Brigada Militar para a entrada das primeiras visitantes, começa o movimento. “Entra quinze!”, grita a PM. De quinze em quinze ou, às vezes, de dez em dez, com intervalos significativos entre as chamadas, elas entram para enfrentar mais três filas. Somente por volta do meio-dia conseguirão ver seus parentes. Assim que as primeiras foram chamadas, outra fila se forma ao lado, com mulheres segurando um plástico transparente com dinheiro, cigarros e doces. Por não portarem sacolas, andam mais rápido. Uma mulher desce de um carro com dois rapazes que, do outro lado da rua, a observam até sua entrada na Cadeia, chega ao final da fila menor com dinheiro e uma barra de chocolate na mão. Quando as mulheres com sacolas ocupam a calçada até a esquina, as visitantes têm que se acostumar com o cheiro forte de fezes de animais que ficam no pequeno corredor à esquerda: o canil do Presídio. Quem se aproxima da cerca tem dificuldade de olhar diretamente. O cheiro forte arde os olhos e a sujeira é visível. Ao fundo, os latidos. Mais para o início da fila o cheiro fica suportável quando se mistura ao de cigarro. É assim a rotina de centenas de mulheres que semanalmente visitam a Cadeia Central.


NÃO VAI TER OBRA Moradores das Vilas Nazaré e Tronco reclamam do abandono da prefeitura Texto: Adriana Michelon, Ellen Ribeiro, Gabriel Borba, Guilherme Telmo, Ariel Freitas e Tiago Silveira Fotos: Guilherme Escouto

“E

stamos largados à própria sorte.” O lamento do auxiliar de serviços gerais Gérson Flores, 42 anos, é comum na Vila Nazaré. Localizada na Avenida Sertório, na Zona Norte, a comunidade convive com a possibilidade de realocação das casas para a ampliação da pista do Aeroporto Salgado Filho. Parece distante dos olhos e da preocupação do poder público – e ainda mais distante da vida nova com que os moradores sonhavam quando foram para lá. Fundada a partir de uma ocupação irregular há mais de 40 anos, a Vila Nazaré sofre com a ausência de infraestrutura básica como, por exemplo, saneamento. São 1,6 mil famílias como a de Gérson, morador dali há 20 anos. “A sensação é de abandono”, lamenta. “Nem a imprensa e nem o prefeito dão bola pra gente”. Em dias de chuva, a situação, que já é precária, se torna caótica. Não é raro ver a água adentrando casas trazendo lama, lixo e indignação. Eva Fagundes Mendes que o diga. Vizinha de Gérson, a cozinheira diz que cansou de tirar lama de dentro da pequena casa. “Se não colocarmos as mãos e limparmos, ficamos no meio da sujeira. As ruas são esburacadas, e a prefeitura, quando vem arrumar, coloca resto de asfalto. É óbvio que numa condição assim fica fácil de alagar”, desabafa.

Dias depois da conversa inicial com Gérson e Eva, uma cena impactante foi registrada com um celular. Era um vídeo que evidenciava a realidade da Vila Nazaré. As imagens mostravam Geneci Lacerda, 61 anos, tentando desobstruir o esgoto de sua casa, que alaga quando chove. Com água acima da cintura, no meio do trabalho pesado, Geneci reclamava do descaso das autoridades. Dias depois, conseguimos conversar com Geneci. Moradora da Vila Nazaré há mais de 40 anos, ela criticou duramente a falta de atendimento por parte do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP). “Tu viu o vídeo, né? Tenho 61 anos e não tenho que estar fazendo esse tipo de serviço. Não é minha responsabilidade. Mas, se não fizermos, ninguém faz. Vou deixar a merda entrar na minha casa?”, diz, indignada. IMPASSE Geneci e outros moradores alegam não ser atendidos em virtude do impasse que domina a região. Com a iminente ampliação do Aeroporto Salgado Filho, a Nazaré teria que ser retirada e, os moradores, realocados em bairros como o Sarandi e o Mário Quintana – o que desagrada a maioria. Muitos temem perder o sustento que vem das proximidades da Nazaré. Outros afirmam não ter con-

dições de pagar o aluguel cobrado pela prefeitura. Para estabelecer um controle de quem teria condições para o pagamento, a administradora do Aeroporto Salgado Filho, Fraport, e funcionários do município estiveram no local em uma ação conjunta para verificar a renda dos moradores – o que gerou mais reclamações. “Para isso é rapidinho eles virem aqui,” diz Gérson. “Pergunta quantas vezes eles estiveram aqui para tratar de outros problemas nos últimos meses”, completa. Os outros problemas a que Gérson se refere fazem parte de uma extensa lista apontada pelos moradores. As mais de 20 ruas e vielas que compõem a região carecem de asfalto de qualidade, a única unidade de saúde foi fechada em 2015 e a Escola de Ensino Fundamental Ernesto Tochetto foi desativada há cinco anos. Mas o pior problema parece ser o silêncio. Procurados pela equipe de reportagem, o Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB) e o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) não responderam às questões dos moradores. CENÁRIO PARECIDO Do outro lado da cidade, na Zona Sul, também há reclamação por parte dos moradores e silêncio por parte da prefeitura. Assim

como na Vila Nazaré, quem reside na Vila Tronco também espera por uma solução para as ruas esburacadas e os esgotos a céu aberto. No caso da Vila Tronco o impasse não tem relação com a ampliação da pista do aeroporto, mas com a paralisação das obras que deveriam ter sido concluídas para a Copa do Mundo de 2014. Quando chove, a situação também fica caótica. Os buracos dificultam o deslocamento da pedestres, estragam veículos e provocam acidentes. A dificuldade de acesso diminui o fluxo de pessoas pelo bairro – e, como consequência, prejudica o comércio. Dono de uma borracharia e morador da Vila Tronco há 50 anos, Sandro Pereira viu diminuir o faturamento do negócio. “Muitas pessoas deixam de vir aqui por causa desses buracos. Era muito mais rentável antes, o movimento era o dia todo”, lamenta. Dinarte Campos Oliveira, morador da região há 60 anos, diz que quando a situação já está ficando crítica a prefeitura aparece no local e “arruma” a obra inacabada que causa tantos transtornos. Mas não resolve, de fato, o problema. De “jeitinho” em “jeitinho”, o dinheiro público vai sendo jogado fora para remendar o que não foi terminado. As obras, que começaram em 2012, devem acabar em maio de 2020. Até agora somente 33% foi concluído.

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A longa espera para ser o

plano A

Disputado por duas prefeituras, Parque Natural Municipal Saint’Hilaire perece esquecido enquanto espera soluções Texto: Jennyfer Siqueira e Larissa Pessi

A

s escassas flores que formam o letreiro com a sigla do Parque Natural Municipal Saint’Hilaire insinuam o que será encontrado além dos portões. Sentado em frente à entrada oficial em Viamão, o guarda-parque, responsável pela fiscalização e vigilância, anota manualmente os nomes dos visitantes que passam a pé ou motorizados. Aos olhos dos frequentadores, a estrutura aparentemente parada no tempo não demonstra o intenso debate sobre o futuro da área de preservação dividida entre os municípios de Porto Alegre e Viamão. O parque é alvo de discussões que envolvem diversas instâncias do poder público jogando com o presente e o futuro da vasta biodiversidade de fauna e flora, do manancial e, também, com a própria vida humana. E, em meio à indefinição, definha. O parque está envolto de uma longa lista de entraves. A relevância ecológica do Saint’Hilaire – que em 2003 foi enquadrado no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e classificado como Parque Natural – é o que garante sua proteção

ambiental e determina uma área de lazer para uso público. O Plano de Manejo de 2002 é o único escrito até hoje. Ele define que, entre os 1.148 hectares de terra do parque, 240 sejam para uso recreativo e 908 para a preservação ambiental permanente. Terreno de Porto Alegre, na divisa entre a capital e Viamão, com gestão indefinida. São dentro dessas condições que o parque opera. Atualmente, os limites dentro da unidade de conservação (UC) estão definidos a partir das fronteiras de cada município. A atuação de cada prefeitura, no entanto, continua em aberto. Da propriedade adquirida por Porto Alegre há 74 anos, 88% se encontra dentro do território de Viamão. Isso é motivo para que um grande impasse tenha se instaurado na área, já que estão envolvidos vários órgãos públicos de ambas as prefeituras. No entanto, os investimentos para manutenção continuam sendo custeados integralmente pela prefeitura da capital. Enquanto isso, decisões importantes recaem sobre a Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade (SMAM) de Porto Alegre, órgão responsável pela coordenação, fiscalização e implantação das UC’s no município.

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MOTIVOS PARA SER GRANDE O parque abriga os dois biomas característicos do Rio Grande do Sul segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): Mata Atlântica e Pampa. Esse último ocorre exclusivamente no Estado e ocupa cerca de 63% de sua extensão territorial. Caminhando pelas trilhas, com orientação de um guarda-parque, é possível perceber a grande biodiversidade presente dessa fusão de biomas no Saint’Hilaire. Dentro da área de preservação podem ser encontradas 161 espécies de vegetais, algumas, inclusive, presentes na Lista da Flora Ameaçada de Extinção do RS, como butiazais, corticeira de terra e figueiras. Animais que antes habitavam as áreas do entorno, hoje urbanizadas, fugiram para o parque e se juntaram à biodiversidade do local. Ouriços, gambás, cobras, aves e espécies ameaçadas de extinção também buscam abrigo nas extensas matas. Para Camila Goldas, pesquisadora e doutoranda na área de Ecologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a unidade de conservação é uma ilha de biodiversidade dentro


vação conta com outros 20 funcionários. Nos últimos anos, muitos dos que trabalhavam lá se aposentaram. PERDA DE FORÇAS Em 2011, um golpe atingiu em cheio o Parque Saint’Hilaire. O local foi descadastrado do Sistema Estadual de Unidades de Conservação (SEUC), gerido pela Secretaria do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Sema). Com isso, deixou de receber verba oriunda de medidas compensatórias pagas por empreendimentos que causam impactos ambientais e sociais e cujas obras são licenciadas pelo Estado. O descadastro também diminui o retorno do ICMS Ecológico (imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviço) ao município de Porto Alegre. Apesar de não fazer parte do SEUC, a UC se mantém no Sistema Municipal de Unidades de Conservação (SMUC). Atualmente, a unidade conta com a verba recebida pelo município do Fundo Municipal do Meio Ambiente, coordenado pela SMAM. Foram vários os motivos apresentados pelo Estado para o descadastro. No parecer final os técnicos criticaram a falta de controle do acesso ao parque, a ausência de limitação de quan-

tidade de pessoas por dia (o que pode ter efeitos negativos na conservação do meio ambiente), e o avanço das ocupações irregulares dentro dos limites da unidade. Também foram questionados o cultivo de árvores exóticas como eucalipto e pinus, a presença de um viveiro de mudas e da escola de escoteiros no terreno. Sete anos depois, os problemas identificados pelos técnicos da Sema seguem sem solução. Os nomes dos frequentadores continuam sendo anotados manualmente e as ocupações irregulares avançam sobre o terreno sem encontrar barreiras. Mesmo tendo apenas uma entrada oficial (em Viamão), pessoas seguem acessando o parque por meio das áreas sem cercamento. Os 55 hectares de eucaliptos e pinus continuam no mesmo lugar devido à falta de verba para sua retirada. E até mesmo o contato com o parque está afetado já que o telefone foi cortado há meses por falta de pagamento. A Sema esclarece que, para voltar a ser cadastrado no SEUC, a prefeitura de Porto Alegre deve elaborar e executar um plano de ação para solucionar os problemas apontados no parecer técnico. Também pode questionar as críticas realizadas através de argumentos técnicos. Após resolver as pendências, deve realizar novo pedido de cadastramento apresentanFoto: Larissa Pessi

do ambiente urbano. “O Parque Saint’Hilaire, além de fazer parte da história destas cidades, guarda um imenso tesouro natural, inestimável para a população de hoje e para as futuras gerações”, observa. Camila enxerga a área como importante para o equilíbrio da qualidade do ar da região, assim como para o desenvolvimento de pesquisa e fomento da educação ambiental. Essas são algumas das missões da equipe responsável pelo parque que, com a baixa disponibilidade de recursos humanos e financeiros, precisa priorizar as questões mais urgentes na tentativa de preservar as riquezas ambientais do local. O único Plano de Manejo existente está mais do que vencido. O documento deveria ser revisado a cada cinco anos, mas não é atualizado por falta de recursos. Em 2017, a capital gaúcha investiu no parque R$ 2 milhões dos R$ 51,8 milhões destinados à gestão ambiental. A coordenadora das Unidades de Conservação da SMAM, Marcia Correa, disse à equipe de reportagem que aguarda as prefeituras de Porto Alegre e Viamão resolverem as indefinições quanto à gestão, assim como finalizar o diagnóstico sobre a realidade do parque e de seu entorno, para a aplicação de estratégias. Enquanto isso, Gerson Luiz Mainardi, engenheiro florestal que atua como gestor do Saint’Hilaire, acumula funções de diversos cargos ausentes na administração. Nem sequer sobra tempo para a escolha de um estagiário para auxiliar nas tarefas. Gerson corre atrás de parcerias com universidades para realização de pesquisas, como também de escolas e instituições para participação em projetos de educação ambiental – ambos objetivos do parque definidos no Plano de Manejo. Participa de reuniões sobre o futuro da UC e procura editais que possam financiar melhorias na infraestrutura. “O modus operandi do parque hoje é basicamente para manter ele funcionando”, esclareceu o gestor. E não é apenas na administração que faltam funcionários. Atualmente, além de Gerson, a área de preser-

1898

1926

1944

1976

A Companhia Hidráulica Porto-Alegrense utiliza a água do manancial como unidade de abastecimento da população de Porto Alegre. Na época não existia empresa pública que fizesse tal serviço.

Companhia Hidráulica é encampada (tem a posse mediante compensação) pela prefeitura da capital. O governo começa a fazer o serviço que a CHPA fazia, porém não era dona do terreno.

Porto Alegre compra o terreno para ter domínio da barragem. Em 1947, a antiga área horto florestal passa a ser denominada como Jardim Botânico Municipal e recebe o nome de Parque Saint’Hilaire.

A área passa a ser administrada pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade (Smam) de Porto Alegre. O órgão divide o terreno em áreas de lazer e de conservação.


do documentação que comprove as ações de implementação e gestão da UC. Sobre os projetos futuros para o Saint’Hilaire, a coordenadora das unidades de conservação desabafa: “A gente precisa verificar em que momento vamos conseguir dar início a isso porque é inclusive irresponsável. Esta decisão não cabe apenas à SMAM”. Além disso tudo, outro impasse envolve o parque: a forma de sua gestão. FUTURO INDEFINIDO Na teoria, existem dois parques Saint’Hilaire, divididos pelo arroio Taquara, que passa pelo terreno: um nos limites da capital e outro em Viamão. No entanto, por ser proprietária da área desde 1944, Porto Alegre acaba por arcar com todos os custos da manutenção. A proposta de gestão compartilhada nunca saiu do papel. Foi só a partir de 2015 que a prefeitura do município vizinho demonstrou interesse pela unidade de conservação. O gestor responsável pela porção viamoense, Fábio Mendes, relata que o Plano de Manejo desta área específica está na fase final de revisão e, logo após sua definição, deverá ser promulgado pelo prefeito. Quando questionado sobre o interesse de Viamão no parque, Fábio apresentou dois motivos. O primeiro seria a falta de legitimidade de Porto Alegre legislar sobre um território que está dentro dos limites de Viamão. O segundo, pela maioria dos frequentadores serem do município. O único investimento feito por Viamão até hoje foi no Plano de Manejo – 88% do valor total foi custeado pela Companhia Rio-Grandense de Saneamento (Corsan) por meio de uma compensação firmada com a Sema e a prefeitura viamonense. A prefeitura de Porto Alegre mantém seu interesse na área, devido ali estarem as cabeceiras do arroio Dilúvio, com cerca de 61 de suas nascentes, cujas águas deságuam no lago Guaíba e abastecem toda a capital. “Foi para proteger o manancial que aquela área foi comprada há mais de 40

anos”, justifica a coordenadora Marcia Correa. Ela também ressalta que, mesmo não sendo mais “um plano B” para captação de água, o Saint’Hilaire “continua sendo um plano fundamental para proteção das nascentes e a proteção da qualidade de vida de Porto Alegre e de Viamão”. O parque também abriga a represa Lomba do Sabão, que no passado era utilizada para abastecimento de água em casas de Porto Alegre. A captação foi encerrada em 2013 pelo Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE) devido ao nível de poluição do manancial, que sofre com o esgoto residencial e os resíduos sólidos oriundos das moradias do entorno. Gerson esclarece que o tratamento do esgoto é fundamental não apenas para o Saint’Hilaire, mas também para a melhoria da qualidade da água de toda a bacia do arroio Dilúvio. O departamento informou que instalou redes coletoras (interceptores) nos arroios Taquara, Vitorino e Dilúvio, formando um anel de proteção da represa. No entanto, não esclareceu se há planos futuros de instalação de captação de esgoto adequada nas residências do entorno. As possibilidades para a gestão são várias, mas a definição deve demorar. O assunto voltou a ser abordado apenas no segundo semestre de 2017, com a escolha do secretário do Meio Ambiente – a SMAM permaneceu mais de seis meses com o cargo desocupado. “Enquanto não se definir isso, essa questão fica pendente e o problema fica latente”, desabafa Gerson, gestor do Saint’Hilaire. Em meio à indefinição, os planos de investimento no parque por parte de Porto Alegre, segundo Marcia, seguem estagnados devido à falta de verba que afeta todo o Rio Grande do Sul. Ela já foi gestora das 27 unidades de conservação do Estado e revela que a dificuldade financeira sempre foi “muito grande”. Marcia lamenta a situação: “A gente não quer que ele (o Saint’Hilaire) apenas sobreviva respirando com dificuldade. A gente quer implementar o parque. A comunidade merece”.

O parque recebe anualmente 130 mil visitantes Foto: Larissa Pessi

O campo-escola de escoteiros é uma unidade independente do parque ou de sua administração Foto: Jennyfer Siqueira

Os três guarda-parques do turno, seis ao total, se revezam para fiscalizar os 30 km de estradas internas e 20 km de perímetro | Foto: Jennyfer Siqueira

Apesar dos avisos, a barragem que ocupa 6% do território do parque é utilizada pelos moradores do entorno | Foto: Jennyfer Siqueira

2000

2003

2011

2013

É sancionada a Lei Nº 9.985/2000, que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Até então não existia o conceito de UCs.

Com o cadastro no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, o Saint’Hilaire ganha a denominação de Parque Natural Municipal.

Parque é descadastrado do Sistema Estadual de Unidades de Conservação (SEUC) e deixa de receber investimento via compensação ambiental.

O Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE) encerra monitoramento da barragem Lomba do Sabão.

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Dentro do PNMSH estão as nascentes mais distantes da foz do Arroio Dilúvio Foto: Larissa Pessi

O esgoto residencial do entorno é drenado para dentro do parque e polui arroios Foto: Jennyfer Siqueira

O avanço da urbanização e o Parque Saint’Hilaire

A

moradia digna é um dos direitos mais básicos do ser humano, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Com essa premissa desrespeitada pelo poder público, pessoas desprivilegiadas procuram o abrigo de prédios vazios ou de áreas ainda inabitadas para terem um cantinho para morar. Foi isso que ocorreu há mais de 20 anos na rua Zaire, no bairro Agronomia, em uma das extremidades do Parque Natural Municipal Saint’Hilaire. Sem condições de pagar aluguel, os moradores utilizaram uma parte da unidade de conservação para construir residências e pequenas chácaras. Até hoje a ocupação do local é irregular, com uma prefeitura jogando a responsabilidade para a outra. A área está no território de Porto Alegre, porém a prefeitura da capital diz que, em recente decreto, a área passou a ser de Viamão. Enquanto isso, os moradores tomam a frente e resolvem sozinhos os problemas da vizinhança. Uma das iniciativas foi a construção de um galpão de reciclagem. Uma de suas idealizadoras, Paula Guedes, moradora do local,

explica que o projeto está na etapa final e deve ter início em breve. Com a renda da reciclagem, um dos desejos da comunidade é tampar os canos de esgoto e água expostos, cujo conteúdo é despejado em um dos arroios que alimentam a barragem Lomba do Sabão – dentro do Parque Saint’Hilaire. O nível de poluição do manancial foi um dos motivos para, em 2013, o Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae) ter deixado de cuidar do local. Em resposta à equipe de reportagem, o órgão não esclareceu se há projeto para implementação da captação adequada de esgoto sanitário na área, apenas disse que “o Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) prevê investimentos e ações para universalização do tratamento dos esgotos sanitários na capital até 2035”. Mesmo com um muro e um portão, além de um guarda separando o parque da comunidade, moradores entram na unidade de conservação, se banham e pescam nas águas poluídas. Há, ainda, outros problemas na região, que a comunidade não tem como solucionar sozinha. Paula diz que os assaltos são frequentes, assim

como a falta de luz. Mesmo não sendo mais tão comum, a falta de água também é recorrente. Hoje, a captação é feita pela Estação de Bombeamento de Água Bruta (EBAB) Belém Novo. Até pouco tempo, as águas da barragem Lomba do Sabão eram responsáveis pelo abastecimento. A ocupação irregular não é o único problema envolvendo moradia e o Parque Saint’Hilaire. Ainda hoje há rastros do que um dia foi uma fazenda dentro do terreno. Esse também foi um dos motivos para o descadastro do local do Sistema Estadual de Unidades de Conservação (SEUC). Quando a prefeitura de Porto Alegre comprou a área, muitas famílias não foram retiradas e a expansão urbana continuou avançando sobre o parque. Gerson Mainardi, como engenheiro florestal, diz que não apenas a área não pode ser recuperada, como também não faz sentido retirar as pessoas que lá estão desde a década de 40. Ele apresenta como única ação possível o cercamento de todo o perímetro do parque, na tentativa de frear o avanço da ocupação urbana.

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O elefante no Centro Histórico Em reformas há cinco anos e sofrendo com reviravoltas burocráticas, o Mercado Público de Porto Alegre é o problema que ninguém quer ver

Texto: Sarah Acosta e Paula Fernandes Fotos: Sarah Acosta, Paula Fernandes e Felipe Moraes

“N

inguém vai falar sobre o elefante na sala de estar?”. Certamente essa frase causa estranheza em quem a escuta pela primeira vez. No entanto, seu significado é simples de entender. O elefante na sala de estar é uma expressão que se aplica a determinadas ocasiões que geram constrangimento para as partes envolvidas. Essas situações costumam ser explícitas, mas tendem a ser ignoradas, na expectativa de que todos simplesmente esqueçam o fato. No entanto, o elefante não vai embora até que alguém reconheça a sua presença e tome providências. E então, ninguém vai falar sobre o elefante no Centro Histórico?

O INCÊNDIO Foi na noite de 6 de junho de 2013 que um incêndio de grandes proporções atingiu o Mercado Público de Porto Alegre. Na época, ainda sob a gestão do ex-prefeito José Fortunati, foram mobilizados bombeiros de toda a Região Metropolitana para auxiliar no combate às chamas, que teriam iniciado em uma fritadeira elétrica em um dos restaurantes do segundo piso. Após pouco mais de uma hora e meia, o fogo foi controlado, mas cerca de 30% do prédio estava comprometido. Aberto novamente um mês depois, no dia

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13 de agosto, o Mercado estava com o segundo andar totalmente interditado. Cinco restaurantes que estavam no segundo pavimento foram distribuídos em espaços reduzidos no primeiro. Três não conseguiram se adaptar às mudanças e acabaram fechando as portas, sem receber qualquer tipo de auxílio. CINCO ANOS DEPOIS No segundo andar estão apenas os banheiros, a sede da União Estadual dos Estudantes (UEE), a Secretaria Municipal de Indústria e Comércio (SMIC) e a Associação de Co-


mércio do Mercado Público Central (ASCOMEPC). O único permissionário que povoa o segundo pavimento é Carlos Geneci de Oliveira, 77 anos, dono da Barbearia Central. Há 43 anos no Mercado, ele já presenciou dois incêndios no local, em 1976 e 1979, e diz nunca ter visto reforma tão demorada quanto essa. Isolada no segundo andar, a Barbearia Central passa despercebida aos olhos de quem entra e sai do Mercado. Sua única identificação é uma pequena placa colada pelo lado de fora, pendurada à janela. Carlos afirma que a queda no lucro já chega a 60%. “Agora o meu movimento está em 40% do que era. Sem elevador

e sem escada rolante as pessoas com uma certa idade já não sobem. Não tem como subir”, lamenta. Perguntado se a prefeitura sabe da sua situação, Carlos afirma: “Eu acho que eles sabem né, sabem sim. Não tenho nem dúvida”. BUROCRACIA Todas as obras para reformar o segundo andar foram realizadas ainda na gestão de José Fortunati. Quando o atual prefeito Nelson Marchezan Jr. assumiu, foi sinalizada a falta de verbas para o Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndios (PPCI) e as obras de

acessibilidade. Para evitar uma demora maior, a ASCOMEPC decidiu assumir os trabalhos restantes. No dia 6 de maio de 2018 foi firmado, com aprovação do Ministério Público, um acordo com a prefeitura. Tudo se encaminhava para um desfecho positivo. No entanto, já no dia 8 de maio, após uma reunião com os bombeiros, percebeu-se que o PPCI que a prefeitura havia encaminhado para a ASCOMEPC já estava defasado. O motivo era uma mudança na lei ocorrida em 2016 devido à tragédia da Boate Kiss. Portanto, o projeto assinado em 2013, que seria implantado pelos permissionários, perderia a vali-

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dade em 2019 e precisaria ser readequado no ano seguinte.“Praticamente voltamos à estaca zero”, lamenta Adriana Kauer, membro da diretoria da ASCOMEPC. Ela explica: “Vamos ter que chamar novos projetistas para fazer o PPCI, para apresentar para o Ministério Público, para aprovar e refazer”. Atualmente, devido à mudança de lei, não há uma definição exata do que precisa ser feito. O prazo para reabertura, que seria de um ano, não será mais o mesmo. Adriana afirma que não tinha conhecimento da alteração no PPCI: “Era obrigação da prefeitura, eles que deveriam saber e quando passaram para gente deveriam ter avisado e não avisaram”, diz. E completa: “Agora não sei quanto vai custar”. Enquanto o PPCI não sai do papel, resta a indignação de quem vai ter que arcar com os custos que não deveriam ser seus. Cozinheirachefe do Bar Chopp 26, Janaína Soares Santos, 35 anos, faz parte dos trabalhadores que foram afetados com a troca de andar. O restaurante, que antes tinha um amplo espaço no segundo piso, agora disputa lugar com outros que foram obrigados a descer. Sobre arcar com as obras do PPCI, Janaína questiona: “Onde é que entra o dinheiro de cada loja? Imagina, os permissionários vão ter que terminar a obra porque a prefeitura não tem dinheiro. Para aonde é que vai o dinheiro daqui e para aonde foi o fundo do Mercado?”. FUNDO DO MERCADO Adriana explica: “O Funmercado é uma lei que diz que todos os recursos que provirem do Mercado devem ser recolocados no Mercado. Isso é lei, e é aquela lei pétrea, que não pode mudar”. Logo, todas as receitas geradas dentro do Mercado Público, desde os aluguéis até os

Carlos Geneci de Oliveira, dono da Barbearia Central

valores gerados com eventos, devem ser destinadas ao Funmercado. Conforme Adriana, essa lei não está sendo cumprida. “Estão jogando o nosso dinheiro no caixa único. Isso vem desde a gestão do Fortunati. Quando tu misturas os dinheiros, tu vais usar o meu dinheiro para pagar outras coisas”, explica. De acordo com ela, a ASCOMEPC tem a sua própria contabilidade. “No Mercado sobram 70 mil reais por mês”, afirma. As reformas feitas na gestão Fortunati foram pagas com recursos do PAC Cidades Históricas, do seguro do Mercado e do seguro próprio da ASCOMEPC. “Nós, lojistas, fizemos uma vaquinha, pagamos a fiação telefônica do Mercado e o transformador de luz”, relata Adriana. “Quando tu colocas [o dinheiro] num fundo e esse fundo está dentro do caixa único, se eu pagar um transformador para prefeitura pode ser que não venha, porque está dentro do caixa único. Assim não: nós pagamos o transformador e o transformador veio”, explica. PROBLEMAS NA ESTRUTURA Além da espera de cinco anos para a reabertura do segundo pavimento, os permissionários ainda enfrentam problemas com a estrutura do prédio e a falta de incentivo. Sobre a situação do Mercado, a cozinheira Janaína afirma: “Está largado às traças”. Ela sugere: “Eu acho que o Mercado Público, por ser um espaço cultural, deveria ter mais cronograma, mais coisas que chamassem os turistas”, diz, referindo-se a atividades culturais como, por exemplo, as exposições que costumavam ser realizadas no segundo andar. Quem circula pelo local também precisa tomar cuidado com o piso quebrado e os degraus irregulares. A movimentação de pássaros en-

trando e saindo do Mercado também é grande, o que espalha sujeira próximo aos restaurantes. “Aqui dentro ainda tem goteira, quando chove, alaga. Em dia de chuva se vê transbordar o esgoto”, relata Janaína. Esses problemas existem desde antes do incêndio. A Coordenação do Mercado Público, um setor da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, que afirma ser a atual responsável pelo local, declara ter conhecimento dos problemas no prédio. “Tendo em vista ser um prédio de 148 anos, dentro de nossas possibilidades, conseguimos sanar”, afirma a nota enviada pela Coordenação em resposta aos questionamentos da reportagem. Na área que foi sinistrada pelo incêndio não é feita nenhuma reforma ou manutenção. Ninguém pode entrar lá sem autorização dos bombeiros, nem mesmo para fazer a limpeza ou manter a integridade das reformas que já foram feitas. A parte externa do Mercado, que é tombada, não possui nenhum problema estrutural. A parte interna é responsabilidade do município. ALMA DO MERCADO Mesmo com as dificuldades, os permissionários não perdem o amor pelo Mercado Público. Embora tirar do próprio bolso para pagar pelo PPCI não seja o ideal, a iniciativa da ASCOMEPC trouxe a esperança de que o segundo pavimento possa ser inaugurado mais rapidamente do que se imaginava. Disposta a cutucar esse enorme elefante que se instalou em Porto Alegre, Adriana defende: “O Mercado é um prédio belíssimo, mas as histórias das pessoas são a alma do Mercado. Eu gostaria que ele estivesse mais bonito, gostaria de ver mais, eu gosto de ver o Mercado vivo e acho que essa que é a ideia”.

Janaína Soares Santos, cozinheira-chefe do Bar Chopp 36


A rua é a minha casa REFLEXO DA VIOLÊNCIA URBANA, MORADORES DE RUA TÊM BUSCADO NA CONSTRUÇÃO DE BARRACOS NOVAS FORMAS DE ABRIGO E PROTEÇÃO Texto: Ana Carolina Pinheiro Colaboração: Ana Carolina Viera e Rafael Godoy

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rotina de Ana Beatriz começa cedo. Logo nas primeiras horas do dia, o barulho do tráfego de carros e ônibus na Avenida Erico Verissimo não a deixa mais dormir. Em nosso primeiro encontro, numa manhã de quarta-feira, Ana interrompeu a tarefa de lavar roupas à mão em uma pequena bacia para conversar. Aos 44 anos, ela é uma das milhares de pessoas em situação de rua em Porto Alegre. A dinâmica das ruas ainda é novidade para ela. Criada na periferia, Ana tinha fixado residência num terreno baldio em Canoas, onde foi construindo, aos poucos, um lar para ela, seu marido e três dos nove filhos. Há cerca de um ano, o cumprimento de uma decisão judicial de reintegração de posse despejou a família. As crianças, hoje com 13, nove e cinco anos, vivem em um abrigo. Já Ana Beatriz, sem ter para onde ir, viu nas ruas o único destino possível. Junto com seu marido, Luiz Carlos, instalou-se na Avenida Erico Verissimo. A enorme estrutura chama atenção de quem passa: há espaço para dois varais cheios de roupas coloridas,

Foto: Ana Carolina Pinheiro

uma mini cozinha com panelas e um fogareiro de chão. Apesar de dividirem o mesmo espaço da calçada, cada um tem o seu barraco. Diagnosticado com tuberculose, Luiz prefere ficar sozinho. Engana-se quem pensa que morar na rua é sinônimo de vadiagem. No dia a dia, Ana cuida da casa: cozinha, lava as roupas, varre a calçada, busca água no posto de gasolina próximo, cuida dos horários das medicações dos dois e ainda passeia com a cadelinha Pantera, companheira do casal. Já Luiz, que está em tratamento, tenta manter suas duas ocupações: durante o dia, atua como guardador de carros na redondeza e, no fim da tarde, tenta recolher o que pode de material reciclável – isso nos dias em que a tuberculose não atrapalha e ele consegue sair do barraco. Como muitos carroceiros e carrinheiros da Capital, a família foi bastante afetada pela Lei das Carroças, que desde 2017 proíbe a circulação de carroças e carrinhos de coleta de material para reciclagem. Além dessas funções, Luiz é integrante do jornal Boca de Rua, fato que Ana conta com orgulho empunhando a edição de número 66. A história de Ana Beatriz e de seu marido é apenas uma das muitas que podem ser encontradas em um passeio pelas ruas de Porto Alegre. Para além da região central, cada vez mais bairros distantes também têm se tornado lar de moradores de rua. Esse fenômeno chama a atenção porque, historicamente, os lugares

de ocupação são próximos do Centro, devido à fácil locomoção, ao maior acesso aos serviços públicos e aos conhecidos pontos de distribuição de alimentos. O estereótipo do morador de rua andarilho e solitário já não é o que mais se vê em Porto Alegre. A construção de barracos revela uma busca pela proteção oferecida por uma moradia fixa, seja ela construída de tijolos, madeira ou lona. Entre as causas dessa mudança estão o crescimento da população de rua, a violência urbana, o surgimento de milícias especializadas na queima de barracos e na violência contra moradores de rua, bem como a arquitetura de exclusão das grandes cidades e diversos outros fatores sociais. DADOS CONTROVERSOS Que o número de moradores de rua cresceu em Porto Alegre é visível aos olhos de qualquer cidadão. No entanto, esse índice é alvo de discordância. Em dezembro de 2016, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), divulgou um estudo censitário sobre a população de rua em Porto Alegre. De acordo com o censo, realizado entre os dias 08 de setembro e 10 de outubro de 2016, 2115 pessoas em idade adulta estavam em situação de rua na Capital. Esse número representa um crescimento de 57% em relação ao anterior, divulgado em 2011.

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Ainda segundo o estudo, 25,2% das pessoas ouvidas estavam há menos de um ano em situação de rua, enquanto 27,1% estavam na rua há menos de cinco anos. Na época da realização do censo, Ana Beatriz ainda estava entre as pessoas domiciliadas e, por isso, não entrou nas estatísticas. Assim como ela, boa parte dos moradores de rua afirma não ter sido ouvida pelos pesquisadores do censo. É o que relata a educadora social Veridiana Machado, que trabalha há 17 anos em instituições de assistência para a população adulta em situação de rua. Segundo Veridiana, as equipes do censo não chegaram aos territórios mais afastados do Centro, onde a concentração de moradores de rua tem aumentado. “A gente sabe pelos serviços de consultório na rua, pela abordagem social, pelos abrigos e pelo registro de prontuários de atendimento que o número de pessoas que passaram é bem maior do que esse. A gente estima que o número seja mais do que o dobro, a gente imagina que passe de cinco mil”, afirma a educadora social. RUALOGIA Mais de cinco mil. Este foi o número estimado por todas as pessoas ouvidas durante a construção desta reportagem. A gritante diferença entre o dado oficial e o dado estimado passa pelo conceito de rualogia – o saber da rua. Criado por Carlos Henrique Rosa da Silva, o termo foi usado a primeira vez no jornal Boca de Rua. Segundo os moradores de rua que serviram de facilitadores durante a aplicação do censo, muitas vezes a rualogia – saber que eles dominam – não foi respeitada. “Uma das reclamações de quem foi facilitador é que o saber deles de ‘olha, segunda-feira não dá pra ir em tal lugar porque o pessoal vai estar catando material em outro’ não foi ouvido. Eles se sentiram pouco respeitados e poucos valorizados nesse saber”, conta Veridiana.

Barraco incendiado na Avenida Bento Gonçalves

Barracos de Ana Beatriz e Luiz Carlos

A rualogia ainda é um saber em construção para Ana Beatriz, que desde o despejo já passou por uma internação psiquiátrica e precisa tomar remédios para depressão e ansiedade. Esse saber inclui também conhecer os riscos que envolvem não ter um teto seguro como abrigo. Nesse um ano em que mora na rua, Ana precisou reconstruir sua casa duas vezes. Na primeira, o barraco e todos os seus pertences foram recolhidos por um caminhão de lixo da prefeitura. O casal ficou ao relento. Pouco tempo depois, Ana e Luiz foram vítimas de outro tipo de violência, que tem crescido e passa despercebido na rotina da população domiciliada: a queima de barracos. Do dia do incêndio, Ana lembra com tristeza que resolveu acompanhar o marido na catação por acaso, e prefere nem pensar no que poderia ter acontecido se tivesse seguido a rotina normal: tomar seus remédios e ir dormir. Resolveu também levar a cadela Pantera, que foi acomodada no carrinho. Quando chegaram do trabalho já era tarde: tudo havia sido queimado. O autor do incêndio é desconhecido, mesmo tendo cometido o crime em horário de movimento em uma grande avenida. “Eu quero ir embora, quero sair daqui. Não é que a gente goste de ficar na rua. Eu não gosto. Tu pensa que eu durmo direito a noite? Se por nada já

Foto: Ana Carolina Pinheiro

botaram fogo no barraco. Queimou tudo. Por quê? Por pura maldade. É uma mente diabólica. A gente perdeu tudo. Até os documentos o meu marido perdeu. Pegou fogo até nas árvores. Eu não durmo a noite porque fico pensando: e se eu tomar remédio e pegar no sono, será que eu vou acordar?”, conta. VIOLÊNCIA E QUEIMA DE BARRACOS Há cerca de um ano, um barraco na Avenida Bento Gonçalves chamou a atenção da nossa equipe. Nos painéis que serviam de divisória para os cômodos da casa, era possível ler uma frase pintada em tinta vermelha cercada de desenhos: “+ amor MENOS pobreza”. Pouco tempo depois, o local amanheceu vazio, e as marcas pretas nas paredes eram a prova de que havia sido incendiado. Durante a construção desta reportagem, uma das casas monitoradas, na Avenida Aparício Borges, também foi consumida pelo fogo. Junto com o depoimento de Ana Beatriz, foram três casos de queima de barracos acompanhados pela equipe em um período inferior a um ano. Foi durante uma conversa com Rosina Duarte, jornalista e idealizadora do Boca de Rua, que confirmamos a nossa suspeita: longe de representarem casos isolados, esses três pon-

Maio/2017

Setembro/2017

Foto: Ana Carolina Pinheiro

Captura Google Maps

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tos incendiados servem para ilustrar um dado que nunca é monitorado: o crescimento da violência contra os moradores de rua. Foi também nesse encontro que tivemos acesso à edição de número 63 do jornal, que foi lançada em abril de 2017. Na capa, a manchete “LUTO E LUTA” vem acompanhada do seguinte texto: “Os moradores de rua estão em luto e em luta para acabar com as mortes, agressões, espancamentos, linchamentos e queima de barracos, que aumentaram muito em 2017”. Entre os diversos casos de violência denunciados pelo jornal, a queima de barracos ganhou uma matéria própria. Em um dos trechos, o texto descreve como são os ataques e o medo dos moradores de sofrerem retaliações. “Em segredo dizem que as milícias chegam em carrões, encapuzadas e gritando. Quem não foge apanha muito. Há relatos de pessoas que têm o cabelo raspado. É só olhar com atenção, e podem ser vistas várias paredes queimadas em locais onde antes existiam grupos de moradores de rua”.

Boca de Rua O jornal Boca de Rua foi fundado há 17 anos em Porto Alegre. No começo, apenas um morador deu bola para a ideia. Depois viraram cinco. Atualmente, o jornal está com o número de vagas fechadas, e cerca de 35 pessoas participam de cada reunião. Em todos esses anos, mais de 300 moradores de rua já passaram pelo Boca de Rua. A primeira edição contava com apenas quatro páginas, em preto e branco, e com a tiragem de quatro mil exemplares. Hoje, as edições têm 16 páginas coloridas e a tiragem é de 12 mil. A periodicidade é trimestral. As pautas, embora sigam elementos do jornalismo tradicional, como a ética e a clareza da informação, têm um lado muito claro: o lado do morador de rua.

tradicional estava cada vez mais se afastando do cidadão comum e que a documentação da realidade não estava acontecendo, eu comecei uma busca por um outro tipo de produção de informação. Eu comecei junto com a Clarinha Glock, e a gente foi buscar populações que não tinham representatividade na mídia, ou seja, que não existiam do ponto de vista documental, nem da imprensa, nem da história oficial”, relembra. HISTÓRIAS INVISÍVEIS Todos esses anos trabalhando com a população de rua em Porto Alegre fizeram de Era uma tarde de sábado quando Rosina, Rosina uma observadora atenta. Sobre o cresque também é artesã, deixou de lado por al- cimento do número de barracos, ela explica guns instantes sua banca na feira de artesana- que os moradores de rua sempre buscaram to feirArteira para conversar conosco sobre proteção. No entanto, de uns anos para cá, a o projeto que fundou há 17 anos: a Agência arquitetura das grandes cidades começou a Livre para a Informação, Cidadania e Educa- buscar formas de impedir que eles ocupasção (Alice) e o jornal Boca de Rua. “No mo- sem espaços mais escondidos. Esse fenômemento em que eu me dei conta que a imprensa no, aliado ao aumento da violência e à falta

Foto: Rafael Godoy

Ocupação Aldeia Zumbi dos Palmares Desde 29 de março, um coletivo de cerca de 30 moradores de rua ocupa uma área próxima à Usina do Gasômetro, em um movimento chamado Ocupação Aldeia Zumbi dos Palmares. Em janeiro, a antiga área ocupada por eles no Parque da Harmonia entrou no perímetro de segurança estabelecido no entorno do TRF4 para o julgamento do ex-presidente Lula. “Uma semana antes eles vieram com as máquinas e tiraram todas as barracas que tinham ali. Aí o pessoal veio pra cá. Isso aqui estava puro mato. Terminou o julgamento e o pessoal voltou pra lá. E tiraram todo mundo de novo. Aí a gente se reuniu e decidiu que ia fazer diferente: não ia só ficar no terreno, ia ocupar o terreno. Botamos corrente no portão e ficamos”, explica Fábio. O terreno pertence à prefeitura e está abandonado há mais de 10 anos. A ocupação é a primeira no Brasil exclusivamente formada por moradores de rua, e é organizada pelo Movimento Nacional da População de Rua do Rio Grande do Sul (MNPR/RS).

de investimento em políticas públicas, resultou no crescimento do número de barracos nas ruas. “Antes eles eram escondidos. Tinha os mocós, como eles chamavam. Embaixo do Arroio Dilúvio, por exemplo, tinha quantidade. Na medida em que esses abrigos começaram a ser fechados, isso aí ficou visível. Como eles não tinham mais como se proteger, começaram a montar barracas. E aí criam condomínios, como no Viaduto da Borges de Medeiros, por exemplo”, explica Rosina. VIDA EM COMUNIDADE Vivendo há 12 anos nas ruas de Porto Alegre, Fábio, 41 anos, é especialista em rualogia. Em nosso primeiro encontro, na Ocupação Aldeia Zumbi dos Palmares, Fábio explicou como funciona a rotina da ocupação. Há nove anos militante de movimentos que lutam pelos direitos dos moradores de rua, ele faz parte dos 29,2% de pessoas que, segundo o censo, estão há mais de dez anos em situação de rua. Formar comunidades é uma das estratégias principais para quem precisa fazer da rua a sua casa. “Logo que tu chega, tu não vai querer ficar andando por aí sozinho. Tu não sabe nem os pontos em que tem alimentação, onde pode ir tomar um banho, onde pode ir fazer um documento. Eu procurei ir me adaptando. Hoje faço parte também do jornal Boca de Rua”, conta. Foi pelas mãos dele que nos chegou a edição de número 67, recém-saída da gráfica. Além de vender, Fábio escreve reportagens e faz fotos para o jornal. É dele, inclusive, a que estampa a capa da edição, que aparece creditada como Fábio Boca de Rua/Agência Alice. Para Leonardo Palombini, doutorando em Geografia pela UFRGS e autor da dissertação “Dos subespaços ao território descontínuo paradoxal: Os moradores de rua e sua relação com o espaço urbano em Porto Alegre”, a formação de comunidades e a construção de barracos revela um paradoxo social: enquanto os

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moradores de rua causam medo nos cidadãos domiciliados, são eles, na verdade, os mais desprotegidos. “A sua organização em grupos é uma tentativa de se proteger do entorno, que para eles representa o real perigo por não terem paredes para se proteger. Para compensar essa fragilidade, a organização em comunidades é estratégica. Quanto maior o grupo, maior a rede de proteção”, afirma. AUDIÊNCIA PÚBLICA As denúncias de violência feitas pelo Boca de Rua no ano passado tensionaram a CoFábio fotografa a audiência pública para o jornal Boca de Rua Foto: Ana Carolina Pinheiro missão dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa (CDH/AL), que propôs uma au- GENTE SEM CASA, CASA SEM GENTE uma barraca ajeitadinha é vista de forma difediência pública com o tema O Extermínio, as rente porque a barraca se parece com uma casa, Agressões e a Falta de Políticas Públicas para Segundo dados do IBGE, em 2010 Porto está mais próximo dos valores da classe média, o Povo da Rua. Em maio de 2018 uma nova Alegre registrava 40 mil imóveis potencialmen- do conceito de inclusão, de ordem, de limpeza, audiência foi chamada. te abandonados. Seis mil deles públicos. Tam- de obediência ao sistema. Não choca tanto. É o Era uma tarde de terça-feira quando a nos- bém na Avenida Erico Verissimo, exatamente preconceito dentro do preconceito”, reflete. sa equipe chegou à Assembleia. Principais em frente ao barraco de Ana Beatriz, três caJá era quase meio-dia quando nossa equipe interessados na matéria, os moradores de sas antigas já começam a demonstrar sinais de se despediu de Ana Beatriz. Ainda antes de virua eram esperados na audiência pública. No abandono. “Aquelas casas ali... faz pelo menos rarmos as costas, ela já empunhava a vassoura entanto, antes mesmo de chegar ao local da um ano que eu sei que não tem ninguém. Se tu e começava a varrer a calçada. Assim como os reunião, o Plenarinho, eles teriam que passar olhar, tá horrível... é mato alto, vidro quebrado. vizinhos domiciliados, Ana busca manter a rua por pelo menos dois obstáculos geralmen- Mas eu não posso simplesmente entrar e morar. limpa e organizada. Segundo Palombini, esse te intransponíveis para quem não têm uma Elas estão ali, vazias. E eu aqui, na rua”, reflete. comportamento revela uma tentativa dos moracasa para morar: os seguranças e o balcão de Para Fábio, as atuais políticas públicas são dores de rua de minimizarem os efeitos de sua identificação. Segundo o censo, quase 40% apenas paliativos, e não resolvem efetivamen- presença no espaço. “Não é raro ver moradores das pessoas em situação de rua não possuem te o problema de moradia. “Todo mundo quer de rua varrendo a calçada e organizando seus documentos como RG, CPF e Certidão de uma casa. O problema é que a solução que eles pertences. Isso é uma estratégia para tentarem Nascimento. dão é temporária: ou é abrigo, que resolve só permanecer o máximo de tempo possível em No Plenarinho, a reportagem foi recebida por uma noite, ou é aluguel social, que é entre cada lugar, buscando formas de não impactar por Fábio que, com a câmera fotográfica do seis meses e um ano. Tem gente que consegue o cotidiano das pessoas domiciliadas”, explica. Boca de Rua em mãos, registrava todos os se organizar em um ano para continuar, para paAo mesmo tempo em que buscam não incomomentos. Representando a Comissão de gar o seu primeiro aluguel. Mas tem gente que modar a rotina da comunidade, os moradores de Direitos Humanos, estava a defensora pú- não consegue”, conta. rua também precisam ser reconhecidos como blica Mariana Py Muniz Cappellari, que dumembros pelo entorno para garantirem acesso rante o ano de 2018 está cedida para compor A RUA É A MINHA CASA a itens básicos como água, comida e materiais a assessoria técnica da Comissão. Segundo de higiene. Além disso, esse reconhecimento ela, as audiências públicas servem para dar As ruas de Porto Alegre têm ganhado cada também ajuda a criar uma rede de proteção. espaço aos relatos de pessoas que muitas ve- vez mais endereços que não são vistos – muito Quando a comunidade enxerga e reconhece o zes não são ouvidas, além de servirem como menos reconhecidos – pelos mapas do municí- morador de rua, ele passa a ser um indivíduo ponte para que as denúncias cheguem às ins- pio e pelos porto-alegrenses. Nas calçadas, en- com identidade, e não mais um intruso a ser retituições competentes. “A ideia da audiência tre as fachadas de lojas e portarias de edifícios, movido. pública é chamar representantes de todas as pequenos barracos imitam a estrutura de casas e A rualogia é um saber que implica reconheinstituições. Muitas vezes as instituições do demonstram o desejo explícito de um teto. cer sua existência como paradoxal: ter e não ter sistema de justiça acabam ficando em seus Assim como o barraco de Ana, outras estru- identidade, ter e não ter gostos e escolhas, morar gabinetes devido ao grande volume de pro- turas complexas, organizadas e enfeitadas com e não morar, ser e não ser visto. Enquanto sonha cessos. A grande reclamação dos movimen- flores e objetos coloridos, podem ser encontra- com o dia em que voltará a ter uma casa, Ana tos sociais é que, muitas vezes, o sistema de das em toda a cidade, da Zona Norte à Zona Beatriz vai aprendendo aos poucos a rotina das justiça não tem essa aproximação da realida- Sul. Segundo Rosina, esse cuidado com o espa- ruas e esse conjunto de estratégias que Fábio de dos movimentos. E só quem sabe a reali- ço muda a percepção da comunidade do entor- já conhece tão bem – e que é reconhecido por dade das ruas é quem está nas ruas”, explica no em relação aos moradores de rua. “A pessoa todos aqueles que precisam fazer da rua a sua Mariana. que dorme em uma calçada e a que vive em casa. 22   UNIVERSUS | HORIZONTES | JULHO DE 2018


Mapa Colaborativo Conhecer uma cidade é reconhecer suas características, sua arquitetura e também sua população. A Porto Alegre das pessoas domiciliadas não é a mesma da população de rua. Tanto na região central quanto nas periferias existem endereços que não constam em nenhum mapa – mas existem. Durante o primeiro semestre de 2018, a equipe de reportagem mapeou, de forma colaborativa, esses endereços e as características dessas moradias. Como o movimento dos moradores de rua pela cidade, o mapa não é fixo – e nem tem a pretensão de ser. Busca ser um retrato do processo de territorialização do povo de rua e de seus movimentos pela cidade nos seis primeiros meses de 2018. Busca também servir como ferramenta para que a população domiciliada possa enxergar essa Porto Alegre, muitas vezes invisível.

Foto: colaboração Michele Serafini

Foto: colaboração Luis Fernando Vicente Silva

Na fila da dignidade

Texto: Diego Duarte e Alexia Szortyka

E

le estava sentado no chão desde 16h30min em frente ao número 366 da Avenida Azenha. Elói chegou cedo para garantir uma das 100 vagas do Albergue Noturno Dias da Cruz, mantido pelo Instituto Espírita Dias da Cruz e conveniado com a Prefeitura de Porto Alegre. Foi assim, enquanto aguardava o relógio marcar sete da noite para entrar no abrigo, que ele conversou com a reportagem. Não quis revelar o sobrenome e nem contar muitos detalhes sobre a sua história. Mas a pele surrada e as mãos calejadas davam sinais do que ele passou em 52 anos de vida. “Sofremos muito em época de chuva e frio”,

contou. “Eles podiam abrir uma exceção para esses dias de chuva para o pessoal se acolher mais cedo e descansar, porque já temos um dia difícil”, explica. Seu Elói, como é conhecido, estava ansioso para entrar no abrigo, tomar um banho – obrigatório para quem passa noite ali –, receber a roupa de cama e o pijama e, finalmente, dormir. Afinal, de banho tomado, aquecido, alimentado e com a higiene feita – em outras palavras, com a dignidade resgatada – ele poderia ao menos sonhar com dias melhores. “Aqui ninguém é ladrão, ninguém é bandido. A gente está nessa situação não é porque nós queremos estar, é por uma necessidade”,

Foto: colaboração Luísa Meimes

Foto: colaboração Luis Fernando Vicente Silva

Foto: colaboração Michele Serafini

O mapa completo está disponível no site: revistauniversus.uniritter.edu.br/

Foto: colaboração Luísa Meimes

desabafa. Seu Elói diz ser um caminhoneiro em busca de uma oportunidade de trabalho que não aparece para quem já se acostumou a ser invisível. “Depois de tanto tempo nessa vida, a gente começa a acreditar que realmente somos menos que os outros. Começamos a pensar se temos um espaço, ou se podemos fazer alguma coisa na sociedade. Por isso muitos não procuram mais uma mudança, pois perderam a fé em si mesmos. Mas basta alguém oferecer uma oportunidade que essa pessoa já se sentirá viva novamente”, garante. Neste momento da conversa com a reportagem, a fila, que antes era de 15 pessoas, já abriga 50 – todas trazendo no corpo as marcas de muitos dias na rua: forte cheiro e sujeira. Quem quer passar a noite no albergue não pode estar alcoolizado. Mesmo assim, há cheiro de álcool que, conforme Elói, “ajuda a inibir a fome”. A conversa volta para o tema do preconceito. O descaso incomoda Elói. Com a voz embargada, olhando para o chão, ele diz o que muita gente na mesma situação que ele gostaria de dizer. “Se eu pudesse, estava numa casa, vendo TV de plasma. Não estaria aqui nessa fila. Mas é uma necessidade. Então, vamos ver as pessoas com bons olhos, não discriminar porque ela caminha feio”, diz. “Só por que eu sou desajeitado tu não vai olhar pra mim? Não vai me cumprimentar? Eu sou igual a você. Ficar aqui desde 16h30min para ganhar uma vaga pra dormir? Não é humilhante isso?”, questiona.

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As condições do espaço público influenciam diretamente na qualidade de vida da população Texto: Louise Victória, Natielle Joanna e Maurício Paulini

“P

orto Alegre teve um planejamento passado que permitiu uma paisagem urbana bem arborizada. Era reconhecida como a cidade com melhor qualidade de vida do Brasil. Havia uma cultura de ‘cidade verde, cidade caminhável’. Hoje, infelizmente, estas iniciativas estão sucateadas, substituídas por uma cultura de shoppings e condomínios fechados”. A afirmação do urbanista Leonardo Brawl sintetiza o sentimento da população que circula pelos bairros da cidade. Ruas esburacadas, calçadas em péssimas condições e o trânsito cada vez mais caótico e poluente revelam um círculo vicioso que reflete um município cada vez mais doente. Ao andar pelas ruas da cidade é fácil encontrar praças com grama alta e lixo espalhado pelo chão. Mal cuidadas, algumas passam a impressão de que foram esquecidas, deixadas de lado por quem deveria zelar pelo espaço público.

Brawl sabe do que fala. Ativista social, é co-fundador doTransLAB.URB, um coletivo que promove conceitos de inovação social urbana. “O saudável acesso às praças públicas vai muito além de busca por lazer. Esta ação tem um papel fundamental no desenvolvimento das relações humanas em geral”, explica. UMA CENA COMUM Pelos bairros da cidade, se repete a mesma cena observada na praça Mariana e Marlene Franco Casagrande, mais conhecida como Praça Pedra da Figueira, no bairro Vila Nova. O local que há alguns anos era bem cuidado e frequentado pelos moradores hoje não tem o mínimo de equipamentos para a prática de esportes ao ar livre. A quadra de futebol que vivia cheia de jovens hoje não tem goleira, marcações ou grades de proteção. Os balanços sumiram e a área destinada

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às crianças tem lixo espalhado por todos os lados. Eletrodomésticos foram descartados por ali, colocando em risco a segurança dos moradores. A praça virou lugar para rituais religiosos com sacrifício de animais. Segundo moradores, os animais são deixados por lá, exalam mau cheiro e atraem bichos. Júlio Santos, 47 anos, mora no bairro há onze. Depois de inúmeras tentativas fracassadas de contato com a prefeitura, ele e outros moradores decidiram ajustar o local por conta própria. No tempo livre, com a ajuda de um vizinho, ele tem se dedicado a arrumar a cancha de bocha. “Nossa intenção era iniciar com pequenos reparos e mobilizar a comunidade para realizar serviços maiores. Mas parece que a própria população torce para que não dê certo. Os próprios moradores não valorizam! Eles também têm sua parcela de culpa, por não zelar pelo que é seu. Tem que empreender tempo, dá trabalho”, desabafa.

Foto: Maurício Paulini

Quando a praça não está para brincadeira


Walkability, ou caminhabilidade

A

utilização excessiva de automóveis gera grande rastro ecológico e compromete muito a qualidade de vida nos centros urbanos. Walkability é o termo em inglês utilizado para definir a acessibilidade de um local para quem anda a pé, algo como andabilidade ou caminhabilidade. Para que haja melhoria na qualidade ambiental, redução de emissões poluentes e economia de energia, é fundamental que as cidades deixem de ser concebidas para carros e passem a focar nas pessoas e suas necessidades, relacionadas à segurança, à mobilidade e ao lazer. Medidas que melhorem a integração do transporte público e o acesso de pedestres aos locais tendem a incentivar a redução do uso de carros. E a disponibilidade de espaços públicos humanizados e de qualidade é fundamental para isso. Andar é uma atividade humana básica. As cidades devem ser projetadas para que essa prática seja fácil e agradável. Este paradigma tem sido estudado desde o fim dos anos 80 e é fundamental na busca por cidades mais sustentáveis. O chamado Novo Urbanismo contempla esta e outras questões, visando o

resgate da qualidade de vida e melhor relacionamento da população com a cidade. Circular com conforto e segurança, a pé ou de bicicleta, é um direito. A mobilidade urbana é essencial para cidades mais democráticas e menos excludentes. Todos os pedestres, incluindo crianças, idosos, pessoas com dificuldades de locomoção ou visão, devem ter sua mobilidade na cidade garantida. De acordo com os princípios do Novo Urbanismo, é importante a reconquista da rua como lugar de encontro, estar e convivência entre pedestres. A ideia é transformar a cidade em um local onde eles sejam a prioridade. Reformar e reconstruir calçadas, manter praças limpas e iluminadas, com atenção à acessíbilidade de cadeirantes, idosos e crianças, é caminhar para uma cidade mais humana. Para projetar locais mais acolhedores, é importante pensar na redistribuição do espaço público, o que significa, muitas vezes, na restrição do espaço para automóveis. Plantar mais árvores, construir mais calçadas e ciclovias são ferramentas que impactam em menos congestionamento viário e no estímulo ao uso

de meios de transporte sustentáveis, como as caminhadas e o ciclismo. Ao redor do mundo, diversas cidades têm adotado medidas urbanísticas que priorizam o pedestre e melhoram a qualidade de vida no local. Uma das opções adotadas ao redor do mundo são as praças para pedestres permanentes, onde carros não entram e há forte papel do paisagismo. A simples melhoria de calçadas já influencia tanto no visual quanto no uso dos espaços.

Infraestrutura influi diretamente na mobilidade Foto: Natielle Joanna

O que diz a prefeitura Em Porto Alegre, a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSUrb) é a responsável pela conservação dos espaços públicos. A pasta agrega cinco setores de serviços – Dmae, DMLU, Divisão de Manutenção de Águas Pluviais, Divisão de Iluminação Pública e serviço de Podas e Supressões. O secretário da pasta é Ramiro Rosário, que concedeu a entrevista seguinte por meio de sua assessoria de comunicação.

Um novo contrato está sendo licitado. Prevê, entre outras questões, a periodicidade de capina e manutenção, pagamento por produtividade e aumento das equipes para que o atendimento seja superior às 200 praças e em um período de tempo menor.

Como funciona o serviço de limpeza e conservação das praças públicas de Porto Alegre? Porto Alegre conta com aproximadamente 650 praças. O contrato atual, formulado pela gestão anterior, é insuficiente. Ele consegue atender no máximo 200 praças por mês, e não prevê um período regular de visitas. Paga-se por hora trabalhada, o que por si só não é um bom negócio para a municipalidade.

Qual a previsão para que entre em vigor este novo modelo de contrato? É importante dizer, e é conhecido de todos, que a cidade, assim como o Rio Grande, passa por um período de baixa receita financeira. Os últimos dez contratos para a realização destes serviços foram realizados de forma emergencial, ou seja, sem licitação. Isso torna o trabalho mais caro e com poucos dispositivos para a correta fiscalização. Estamos em fase final da licitação, já existe uma empresa vencedora e estamos cumprindo alguns trâmites burocráticos para que inicie o serviço.

Qual o plano para resolver a questão e melhorar a qualidade do serviço?

O que prevê este contrato? O contrato atua, ao mesmo tempo, em três

frentes. A primeira é de limpeza urbana. Inclui a roçada e limpeza do corte. O outro é de capina. Serão 4,7 mil quilômetros de vias capinadas em Porto Alegre, que inclui roçada e retirada de vegetação. O terceiro contrato é da manutenção das 650 praças. O período para concluir o ciclo está estipulado entre 3 e 4 meses. Ainda não há contrato de manutenção de brinquedos e mobiliários. Na sua opinião, o serviço prestado é satisfatório? Fazemos o possível dentro das dificuldades financeiras pelas quais passa o município. Buscamos alternativas de apoio. O projeto Adote uma Praça, por exemplo. Disponibilizamos um espaço para publicidade de empresas privadas em troca de manutenção de canteiros centrais e rótulas. A Secretaria promove também o coletivo EU FAÇO POA. São trinta e cinco mutirões em que as comunidades locais, através de associações de bairro e ONG´s, participam de ações culturais em praças e locais públicos. Trabalhamos dentro das possibilidades.

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Ilustração: Bruno Ortiz Monllor

A resistência continua

Comunidades quilombolas lutam por garantias de habitação Texto e fotos: Giullia Santos e Hiashine Florentino

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m um espaço de localização privilegiada em Porto Alegre, endereço de 37 famílias, Sérgio Fidelix compartilha a história da comunidade que leva o seu sobrenome. O Quilombo da Família Fidelix, estabelecido no bairro Azenha, é um dos seis da capital gaúcha. Cercadas por prédios residenciais, as casas simples saltam aos olhos. No final da Rua Otto Ernest Maier, uma placa identifica o espaço. Ao fundo, um galpão funciona como sede da organização. Fundado no final da década de 1970, o espaço foi reconhecido como quilombo apenas em 2007. “Desde 2004 já estávamos lá para estudo”, afirma o presidente da associação, Sérgio Fidelix, 58 anos, referindo-se à Fundação Cultural Palmares, órgão do governo federal responsável por formalizar a existência das comunidades quilombolas. O reconhecimento como comunidade de descendentes de africanos escravizados, que se dá por meio do Certificado de Autodefinição, garante de maneira preliminar o direito ao território ocupado. A presença destas comunidades é a marca de luta de um povo que foi oprimido no passado e ainda enfrenta discriminação e preconceito nos dias de hoje. De acordo com a antropóloga Maria Santana, historicamente estas comunidades constituíram-se como locais de refúgio para os povos es26   UNIVERSUS | HORIZONTES |

cravizados. Além disso, também representam “estratégias de resistência a uma nova estrutura social igualmente racista, derivada de uma abolição da escravidão que não deu conta de incluir as populações negras”. Durante os 300 anos de escravidão, o povo negro teve sua dignidade roubada, sua liberdade suprimida e sua cultura destituída. A estrutura física do Quilombo da Família Fidelix, assim como os demais, é simples. As reformas e projetos contam com ajuda de voluntários. As obras para melhoria do galpão que funciona como sede da organização ainda não estão concluídas. O presidente da comunidade comemora a recente implantação dos banheiros e planeja a construção de uma biblioteca comunitária. “Como o nosso quilombo é mais central, é oportuno termos uma biblioteca”, reflete Sérgio. O objetivo é contar com um acervo voltado para as questões quilombolas e a luta do povo negro. A demora nos projetos do galpão da Família Fidelix é o reflexo da ausência e ineficiência das políticas públicas voltadas para a população quilombola. Elisete Moretto, 56 anos, é assistente social com especialização em gestão e coordenadora do Povo Negro da Secretaria Municipal dos Direitos Humanos. “Nosso desafio é fazer um trabalho forte dentro dessas comunidades”, afirma Elisete, que reconhece: “A gente precisa fazer mais”. JULHO DE 2018

Em um cenário oposto ao da Família Fidelix, o Quilombo dos Alpes, localizado no bairro Glória, se encontra cercado pela natureza. A comunidade desfruta de vasto espaço de terra para cultivar hortas, ervas e especiarias. “Essas riquezas que temos aqui queremos preservar”, destaca Rosângela da Silva, 70 anos, presidente do quilombo. Janja, como é conhecida, salienta a importância do espaço ocupado pela comunidade. “É um tesouro”, afirma, “mas é um tesouro que não queremos guardar só para nós, queremos expor, mostrar para as pessoas”. A comunidade dos Alpes foi certificada pela Fundação Palmares em 2005 e, no mesmo ano, iniciou o processo de regularização fundiária junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em 2016, o espaço obteve a portaria de reconhecimento e, no mesmo ano, mais uma conquista: o Diário Oficial da União publicou um decreto, declarando a área de 58,2 hectares como de interesse social para fins de desapropriação. Atualmente, cerca de 80 famílias residem no local. PROGRAMA BRASIL QUILOMBOLA Lançado em 2004, o Programa Brasil Quilombola pretendeu consolidar as políticas do governo federal para as áreas remanescentes dos quilombos. O programa prevê que as comunidades quilombolas devem ter a sua história


e cultura preservadas. “Seguimos essa diretriz, trabalhando com os CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e atendendo essas famílias dentro de seus territórios, respeitando sua forma de organização”, explica a assistente social Elisete Moretto. Sérgio Fidelix reconhece a ajuda trazida pelo programa. “Nossa associação chegou à conclusão que deveríamos iniciar o processo de retomada do nosso território”, afirma. Entretanto, aponta algumas falhas do projeto como, por exemplo, a demora nos processos de titulação. “Se a lei fosse cumprida, se os quilombos já estivessem titulados, poderíamos estar trabalhando outras questões urgentes dentro das comunidades”, reflete Sérgio. A falta de investimento é, também, um problema constante para os quilombos. A LUTA PELA TITULAÇÃO De acordo com site oficial do Programa Brasil Quilombola, o processo de regularização das terras quilombolas se inicia com a certificação das comunidades e se encerra com a titulação. A lentidão recorrente é a principal crítica de quem ainda busca a regulamentação. “A nossa luta, de fato, é o direito à terra”, argumenta Sérgio. Atualmente existem seis comunidades organizadas como quilombo na capital gaúcha. Além do Quilombo da Família Fidelix e dos Alpes, há o Quilombo da Família Silva, o Areal da Baronesa, o Quilombo da Família Flores e o Quilombo da Família Machado. Destes, apenas o Quilombo da Família Silva já está com o processo de titulação finalizado. No Rio Grande do Sul, a diferença entre o número de comunidades reconhecidas e o número de tituladas é gritante: 129 são reconhecidas, enquanto apenas quatro estão oficialmente tituladas. Ubirajara Toledo, 59 anos, é secretário geral do Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombos (IACOREQ-RS) e membro convidado da Comissão da Verdade sobre a Escravidão do Negro no Rio Grande do Sul. Atuante na causa da população negra – ele também é membro do Conselho de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra (Codene) e do Conselho Estadual dos Direitos Humanos –, ele identifica o atraso na entrega dos títulos. “Os processos de titulação são extremamente demorados”, afirma. Na esfera federal, “o Incra tem a responsabilidade de fazer todos esses processos, desaguando na titulação”, explica, salientando que a condição orçamentária impede que o instituto proceda de maneira eficaz.

Para Sérgio, a demora nos processos remete, ainda, ao racismo. “Por mais que os órgãos públicos criem leis, não deixam a gente avançar porque o preconceito é algo institucional”, lamenta. Outro fator que afeta a titulação são as questões burocráticas, pois o processo demanda estudo, pesquisa e apresentação de documentos para comprovação da descendência quilombola. “Temos que provar que é mesmo um espaço de remanescentes de escravos e que essas famílias tiveram antepassados quilombolas”, explica Elisete Moretto. O reconhecimento e a titulação garantem às comunidades o acesso a direitos e programas básicos de apoio, por isso são tão importantes. Para depois da titulação, Sérgio Fidelix faz planos: “Queremos mesmo é a auto sustentabilidade, produzir aqui dentro, viver com nossa cultura”. Segundo Elisete, “quando eles (os quilombolas) têm a posse do território, se tem condições de buscar melhorias, de buscar parcerias, então eles ficam mais fortes”. Além disso, o reconhecimento das áreas inibe a pressão imobiliária para aquisição das terras. Com a titulação, “a comunidade recebe um documento afirmando que aquele espaço é deles, que a prefeitura fez a doação, que o Incra reconheceu e que eles têm direito de morar ali”, explica Elisete. Quilombos inseridos em locais de alto valor comercial correm o risco de enfrentar pressão para venda de suas terras. “Corre-se o risco, muitas vezes, de fazer a famosa higienização para tirá-los dali”, completa Elisete. IDENTIDADE QUILOMBOLA As comunidades remanescentes de escravos vivem a cultura de seus antepassados. A organização e o cotidiano de luta são as principais

características herdadas. “A articulação destas comunidades é a primeira forma de resistência do negro diante do sistema vigente, que era a escravidão”, analisa Ubirajara Toledo. São espaços que, ainda hoje, representam a luta desta população. Quando questionado sobre o que significa ser um quilombola, Sérgio Fidelix responde com orgulho: “Eu me sinto uma pessoa resistente”. Mesmo nos dias de hoje, a luta do povo negro continua, pois o racismo e o preconceito instalados na sociedade agridem cotidianamente esta população. São ofensas, olhares, julgamentos e estereótipos que reforçam a desvalorização da cultura do povo negro. “Por mais que tenha essa lei que coloca na cadeia, ninguém é preso por racismo”, critica Sérgio. É preciso reconhecer e, acima de tudo, valorizar a contribuição do negro na perspectiva histórica da cidade. É o que afirma Ubirajara: “Temos que colocar no mesmo pé de igualdade a população negra na construção desse país, porque não tem como discutir Brasil escondendo mais de 300 anos de trabalho escravo”. O negro não foi apenas escravo, “ele foi herói e está sendo herói até hoje”, enfatiza Elisete. A cultura negra enriqueceu a composição do cenário nacional. Na capital gaúcha, os quilombolas seguem vivendo em condições precárias, invisíveis para o poder público e seus lentos processos burocráticos. Continuam “enfrentando o racismo do Estado e da sociedade brasileira, demonstrando que existe possibilidade de organização social, econômica, política e cultural”, destaca a antropóloga Maria Santana. Seguem com seu cotidiano de lutas, seguem resistindo. Afinal, a resistência é a marca e a herança destas comunidades históricas.

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Sem sambódromo

e sem carnaval

Há dois anos, Porto Alegre não celebra a maior festa da cultura popular brasileira Texto: Carla Franco, Pedro Carrizo e Willian Corrêa

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esde que a verba destinada ao carnval desapareceu, as escolas de samba de Porto Alegre e da região metropolitana buscam novas alternativas para que a celebração renasça ainda mais magnífica. Sem amornar a luta por recursos, a Liga Independente das Escolas de Samba (Liespa) e a União das Entidades Carnavalescas do Grupo de Acesso (UECGAPA) colocam na possível parceria com a iniciativa privada as esperanças para a volta da festa

popular. Enquanto isso, o sambódromo definha com furtos na rede elétrica e nos barracões. Após 70 anos de desfiles consecutivos, hoje o Complexo Cultural do Porto Seco tornou-se ponto de venda de drogas, atalho para moradores da Vila Amazonas, no bairro Sarandi, e muitas outras atribuições que nada tem a ver com samba. “Nossa cidade só carrega alegria no nome. O cerceamento do acesso à cultura popular reduz o pertencimento das camadas mais vulneráveis da população. Isto contribui diretamente para o processo de degradação da nossa cidade”, diz a rainha de bateria da Escola Imperadores do Samba, Fernanda Aguilhera. O desmonte começou em janeiro de 2017 quando, em reunião com as entidades carnavalescas e presidentes das escolas de samba, o prefeito Nelson Marchezan Jr. anunciou o fim da destinação de recursos para o carnaval. Na ocasião, ele justificou a atitude na falência das contas públicas e indicou que priorizaria despesas com atendimento básico à população, como medicamentos e merenda escolar. O presidente da Liespa, Juarez Gutierrez, lembra que os repasses federais para a educação, providos pelo Fundeb, e para saúde, através do Fundo Nacional da Saúde, são intransferíveis. Os repasses do poder público à cultura seguem a mesma lógica. “O discurso do prefeito é falacioso. Primeiro que o problema de gestão da prefeitura deve ser resolvido pela prefeitura. Segundo

que a própria Constituição Federal de 1988 traz no artigo 215 a obrigação do estado em fomentar a cultura, prioritariamente as de origem negra e indígena”, explica Gutierrez. Para o presidente da UECGAPA, EricoLeoti, é “descabível” que o poder público cobre das escolas a manutenção do sambódromo sem aporte nenhum. Ele afirma que o modelo imposto pela prefeitura é inédito no Brasil. “Imagina se eu escrevo uma peça teatral e busco concretizá-la, contrato e ensaio com os atores. Também vou precisar de iluminadores e técnicos de sonoplastia. Compro o figurino e todos os detalhes. Porém, não conheço relatos sobre quem tenha que construir ou reformar um teatro para poder se apresentar. Isso nunca existiu”, exemplifica Leoti. O Complexo Porto Seco ainda é propriedade da prefeitura, mesmo sendo ela a que impôs a cedência do local para que as escolas de samba façam a administração. A Liespa e a UECGAPA lançaram o projeto Carnaval de Porto Alegre 2018-2022. A ideia é, através de permuta, ceder o local para que empresas privadas utilizem o sambódromo para eventos fechados, comprometendo-se em arcar com os custos da infraestrutura para os desfiles. “Se dentro de um período de dois a quatro anos nós não conseguirmos dar um norte para o carnaval, verdadeiramente ele passa a correr grandes riscos. Temos que nos reinventar à força”, adverte Gutierrez.

Foto: Pedro Carrizo

O PREÇO DO CARNAVAL De acordo com levantamento da União das Entidades Carnavalescas do Grupo de Acesso (UECGAPA), o carnaval de Porto Alegre movimenta dois mil empregos diretos entre confecção de fantasias, alegorias, enredo e segurança. Também gera cerca de cinco mil empregos indiretos, das indústrias de artigos para carnaval até o trabalho de taxistas e frentistas que aumentam seu rendimento durante a festa. O público chega a 280 mil pessoas, sem contar os que acompanham os desfiles pela televisão. Com a avenida iluminada, o comércio ao redor

do Porto Seco se movimentava e Tânia Regina Soares, agora sem passarela, podia sambar. “Eu não consigo entender como uma capital não tem desfile de escola de samba. É uma celebração da cultura brasileira, da cultura negra, une e dá alegria à população. Existe uma verba para a cultura e ela precisa ser aplicada no carnaval”, diz a mulher de 59 anos que há 38 participa da Escola Bambas da Orgia, a mais antiga da cidade. “O carnaval na avenida é um teatro ao ar livre. É uma maneira de colocar todas as religiões, etnias, vontades e momentos de um povo em enredo e arte”, argumenta.


PRAZER,

ZÉ DA TERREIRA!

Foto: Valéria Possamai

Ator do grupo Ói Nóis Aqui Traveiz mora na Casa do Artista Riograndense e, como muita gente que tenta viver de arte em Porto Alegre, enfrenta dificuldades financeiras

Texto: João Forbrig e Valéria Possamai

P

elo lado de fora, quem olha o muro branco com uma cerquinha de ferro enferrujado nem imagina a história que reside no casarão ao fundo. Ali, no número 280 da Rua Anchieta, no bairro Glória, moram artistas que marcaram a cena cultural gaúcha nas décadas de 50 e 60. Um dos dez moradores da Casa do Artista Riograndense é José Carlos Gonçalves Peixoto da Silva, ou Zé da Terreira, de 73 anos. Natural de Rio Grande, o ator relata que decidiu ser artista ainda na infância quando ia ao cinema. “Era algo muito mágico”, lembra. Aos 17 anos, por vontade do pai, veio para Porto Alegre e começou a estudar Geologia. Mas nunca esqueceu a arte. Oito anos depois, Zé começou o curso de teatro no Centro de Artes Dramáticas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Permaneceu ali por um ano, onde participou da montagem da peça A menina e o vento, de Maria Clara Machado. Mais tarde, Zé da Terreira resolveu buscar novos ares no Rio de Janeiro, onde se envolveu com arte e música. Atuou em diversos espetáculos, entre eles Hair, peça remontada da ópera rock composta nos Estados Unidos na época do movimento hippie. Com o falecimento da mãe em 1984, o ator retornou a Porto Alegre. Na mesma época conheceu a tribo Ói Nóis Aqui Traveiz

para onde ir”, explica. A Casa do Artista, fundada em 1949, abriga outros artistas gaúchos na mesma situação. O local oferece gratuitamente moradia, alimentação e atividades que visam proporcionar condições de bem-estar, lazer e cultura a quem tanto contribuiu para a cena artística de Porto Alegre. Uma vez por mês, a Casa sedia o Sarau dos Artistas. O encontro reúne a velha guarda para reviver os grandes momentos do passado e para ouvir de novo os aplausos do público. Calouros também têm a oportunidade de subir ao palco e mostrar sua arte, sobre os olhares atentos de quem ainda tem muito a contribuir com o show. Zé sinaliza problemas quanto a assistência oferecida aos artistas em Porto Alegre. Alguns dos principais teatros da CASA DO ARTISTA capital se encontram fechados e o orçaZé da Terreira vive na Casa do Artista mento da Secretaria Municipal de Cultudesde 2001 devido a dificuldades financei- ra é escasso. “Essas instituições públicas ras. “Se eu não vier pra cá, eu não tenho são quem viabilizam as produções. O artista de Porto Alegre não tem condição de contratar um espaço privado”, diz. Além disso, o ator também alerta sobre a necessidade do contexto cultural na sociedade: “Educação e cultura no Brasil, neste momento, estão com dificuldades. E isso é ruim, porque aumenta o exército de pessoas que não têm nada. Isso é Zé da Terreira, artista perigoso para a sociedade”. e se uniu ao coletivo de artistas formado no fim da ditadura. O grupo teatral, que completa 40 anos em 2018, tem como sede o espaço cultural Terreira da Tribo, na Zona Norte de Porto Alegre. Ao lado dos colegas da tribo, o ator participou dos primórdios do Teatro de Rua, levando a arte para todos os públicos por meio de apresentações artísticas públicas pela cidade. Atualmente, Zé atua na peça Cartagena. Em sua performance solo, interpreta a história do andarilho Rubião, que, a partir da descoberta de um livro, passa a ser assombrado pelos fantasmas de dois marinheiros do período das grandes navegações. Mesmo fazendo outros trabalhos, Zé não consegue viver de sua arte. Uma realidade comum, compartilhada com outros artistas.

“Educação e cultura no Brasil, neste momento, estão com dificuldades. (...) Isso é perigoso para a sociedade.”

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Escolas sofrem com a falta de continuidade em projetos do governo municipal Texto: Fabíola Barcelos, Marjorie Paula e Manoela Behar

I

magine uma escola pública com a estrutura necessária para o aprendizado e que disponibilize um turno integral com atividades pedagógicas, professores, espaço suficiente e suporte para a construção social dos alunos. Imagine uma escola que aposte no turno integral para manter o aluno comprometido com o aprendizado. Essa escola que você está imaginando não reflete a realidade das escolas municipais de Porto Alegre, que sofrem com a falta de continuidade de projetos, especialmente na educação de turno integral. Porto Alegre conta com 99 escolas, 4 mil professores, 900 funcionários e mais de 50 mil alunos em todos os níveis educacionais. O turno integral faz parte apenas das escolas de ensino infantil e fundamental. O projeto é desenvolvido para manter as crianças nas escolas durante o período inverso ao das aulas. Dispõe aos estudantes, além de refeições, atividades extracurriculares, como utilização de laboratório de informática, oficina de artes e reforço nas disciplinas curriculares. Um exemplo da falta de continuidade dos projetos é a Escola Municipal de Ensino Fundamental Neusa Goulart Brizola, no bairro Cavalhada, que já foi considerada modelo em educação integral e hoje caminha para o sucateamento. No passado, a escola oferecia aos alunos oficinas de música, artes e mosaico no turno inverso às aulas. Hoje faltam professores, materiais e equipamentos essenciais para a realização das atividades. A supervisora e atual vice-diretora da escola, Patrícia Muller, conta que ao longo dos anos o investimento da prefeitura foi diminuindo. “Começou a acontecer já no final da outra gestão. Aí a coisa começou a ficar meio capenga. (O recurso financeiro) entrava um trimestre, depois ficava dois trimestres sem entrar. Depois

começou a atrasar, atrasou tanto que teve um ano que a gente estava recebendo (verba) do ano anterior. Atrasava, mas vinha. Agora, nem mais o planejamento se faz”, conta. O investimento que já chegou a ser de R$10 mil por trimestre, hoje não passa de R$7 mil. A escola não tem custos com alimentação, mas precisa cobrir gastos com produtos de limpeza, materiais pedagógicos e manutenção de salas. Patrícia diz que a Secretaria Municipal de Educação (SMED) desconhece as reais necessidades de escolas como a Neusa Brizola. “Na época da Cleci Jurach (secretária entre 2009 e 2017), ainda com o Fortunati, nós tínhamos reuniões com frequência, existia uma assessoria da SMED. Ela vinha para a escola, existia a presença. Ela cobrava, ajudava. Nós tínhamos o apoio deles. Hoje nós temos uma preocupação muito grande (por parte do governo) em relação à cobrança de ponto. Só cobrança. Não nos enxergam mais como parceiros”, lamenta. A diretora de Formações Sindicais do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (SIMPA), Roselia Simberg, explica que a relação com a SMED é praticamente nula. “Eles não vão nas escolas. (...) Eles não têm assessoria pedagógica, não têm assessoria para atendimento da rede”, declara. Ela afirma que, mesmo sofrendo alterações a cada mandato, as últimas duas gestões ainda cumpriam uma mesma linha de ideias, já que todos seguiam o Caderno Número 9, criado em 1998. O documento estabelece um modelo pedagógico e foi construído em diálogo com educadores e SMED. O Caderno serviu de modelo para a criação do turno inverso, considerando diretrizes para a construção das atividades e também as cargas horárias disponíveis de cada

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educador. “Marchezan foi o primeiro prefeito a não reconhecer mais”, conta Roselia. PROMESSA NÃO SAIU DO PAPEL Ainda como candidato à prefeitura de Porto Alegre, o atual prefeito Nelson Marchezan Júnior lançou como uma de suas propostas a educação em tempo integral. Quase dois anos após a eleição, o plano ainda não saiu do papel. De acordo com a SMED, a promessa de Marchezan está em fase inicial de execução. No momento, existe apenas um edital de chamamento para novos parceiros. A secretária explica que o projeto terá um novo formato. A carga horária das turmas do turno integral será fixa, com 15 horas semanais, e o enfoque das atividades será dividido entre letramento (desenvolvimento da leitura e escrita), numeramento (pensamento lógico-matemático), iniciação científica (desenvolvimento da criatividade e do pensar) e educação do sensível (esportes e artes). Entretanto, o sociólogo José Sturza acredita que, para haver uma boa educação integral, é necessária uma educação de qualidade na carga horária mínima: “É importante primeiramente garantir o acesso universal à Educação Infantil antes da ampliação de turno”. “O Rio Grande do Sul tem carência de mais de 1 milhão de vagas nesse nível. Além disso, especialmente nas séries finais do Ensino Fundamental, há de se buscar conquistar quem estuda, para que seja prazeroso estar na escola”, conta. Até o fechamento desta reportagem não conseguimos contato direto com a SMED para comentar as alegações dos entrevistados.

Foto: Fabíola Barcelos

Educação sucateada


Com a palavra, Matheus

Repórter da revista Horizontes narra o caminho de um autista em busca de apoio na rede pública de saúde

N

asci em 18 de fevereiro de 1995 no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Me chamo Matheus Lourenço Oliveira e Silva e tenho Asperger – um transtorno do espectro autista. Tudo começou quando comecei a ler aos três anos e minha mãe, Elisiane, percebeu que eu tinha algo diferente. Minha parte intelectual era muito avançada para uma criança da minha idade. Eu fazia contas de porcentagem, sem estímulo algum. Mas as partes motora e social não acompanhavam. Aos poucos foram aparecendo outras dificuldades: usar talheres, desenhar, recortar e pintar. Minha mãe me levou a psicopedagogos, médicos e outros especialistas. Nada resolvia. Fui a um neurocirurgião pediatra, que fez diversos exames e não constatou problemas neurológicos. Com seis anos fui para a Escola Estadual Ceará. Eu já sabia ler. Minha mãe sempre era chamada na escola porque eu me metia em confusão – não conseguia brincar com meus colegas. Nessa época tive ajuda de uma psicóloga, que por meio de um teste de personalidade constatou que eu tinha baixa tolerância à frustração – e só. Fiz a primeira série no Ceará e com oito anos fui para a Escola Cristã da Brasa, colégio particular que pertencia à igreja que eu frequentava. Com nove anos eu produzia meu próprio jornal e vendia perto de casa. Comprava o Diário Gaúcho, selecionava o que me chamava a atenção, recortava as informações e fazia um jornalzinho de uma página escrito à mão. Conforme o dinheiro que tinha eu fazia cópias para vender. Sempre fui muito bom em matemática e conseguia ter um lucro de 50% nas vendas. Na época eu não tinha nem ideia de que tinha Asperger, mas desde aquele tempo eu sabia o que queria: trabalhar com comunicação. Uma conhecida da minha mãe, que é enfermeira em um posto de saúde da Zona Sul me indicou para o Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi), lá fui diagnosticado com Asperger logo no primeiro dia. A psiquiatra lamentou o diagnóstico ter sido tão tardio, em setembro de 2009, quando tinha 14 anos. Mas pouco adiantaria ter sido diagnóstico antes, já que a rede pública não consegue atender os portadores de autismo, já que lá não existe

acompanhamento específico para atender casos como o meu, apenas em clínicas particulares. O diagnóstico foi um alívio para a minha mãe – e o fim de uma busca que durou mais de dez anos. Eu ia uma vez por semana no CAPSi. No início eu não aceitava muito bem. No fundo, achava que podia ser “normal”. Meu irmão, Elio, frequentava psicóloga e conseguiu ter alta – e eu não entendia porque eu não conseguia. O acompanhamento do CAPSi também não era adequado para a minha síndrome. Existiam muitas crianças, com diversas patologias, juntas no mesmo tratamento. E o que eu fazia lá? De oficinas de culinária a aulas de futebol, mas nada que me ajudasse a lidar com o Asperger. Uma vez por mês eu ia à psiquiatra. Com 17 anos, fui tirado das oficinas. Com 18, atingi o limite de idade e saí do CAPSi. E aí fiquei num limbo: o CAPS adulto trata pessoas com transtorno bipolar, dependência química e outras doenças, mas não trata autismo. Fiquei sem acompanhamento dos 18 aos 20 anos, quando fui atendido no Hospital Psiquiátrico São Pedro. Lá, eles confirmaram o diagnóstico de Asperger. Fiz exames e fui medicado. Os médicos recomendaram fazer uma avaliação genética no Hospital de Clínicas, mas não pude fazer por causa da minha idade, visto que a avaliação é apenas para crianças. Eles não queriam me dar alta sem me encaminhar para um especialista, mas não acharam ninguém na rede pública – e eu não tinha condições de pagar na rede particular. Hoje em dia, não tenho nenhum acompanhamento médico. Eu vivo com Asperger. Já consegui uma certa indepen-

dência, mas tenho muito medo de frustração. Prefiro não tentar para não ter o risco de não conseguir. Apesar disso, tenho facilidade na aprendizagem e absorção dos conteúdos. Não estudo para as provas, apenas presto atenção na aula. Aliás, não estudei para nenhum dos dois ENEM que prestei e nem para a Olimpíada de Matemática, em que ganhei certificado de Menção Honrosa por ter ficado entre os 50 mil melhores do país. Meu problema é na parte social. Na parte acadêmica posso dizer que o Asperger até me ajuda. Hoje eu aceito a minha síndrome. Estou no sexto semestre de Jornalismo e tenho o sonho de um dia ser um grande comunicador. Geralmente autistas têm dificuldade na parte social, muito por não querer se comunicar. Eu sou o contrário. Eu quero me comunicar, mas não sei como. Tem autistas que são para dentro, eu digo que sou para fora. Não lamento o diagnóstico tardio e nem a falta de preparo da rede pública para acolher, orientar e desenvolver as habilidades de quem tem Asperger. Mas tenho certeza de que se tivesse encontrado esse apoio já teria ido muito mais longe.

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Foto: Luíza Brandão

Texto: Matheus Lourenço Oliveira e Silva


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