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Foto: 2ª Conferência Nacional das Cidades, Brasília | Paula Santoro.
Capítulo 2 A construção social das políticas urbanas Apresentação Este segundo módulo tem como objetivo compreender os atores sociais envolvidos na luta pelo direito à cidade e à moradia e seu papel relevante na construção de leis, de institucionalidades e dos espaços participativos propostos no processo de democratização que o país viveu nos anos 1980. Para isso, o capítulo se organiza em uma primeira parte que aborda a trajetória dos movimentos sociais e da articulação em torno do tema da Reforma Urbana; os conteúdos incorporados na Constituição Federal de 1988 sobre Política Urbana; as recentes conquistas no campo institucional e das leis; e o tema da municipalização e do pacto federativo no que tange a organização dos recursos públicos para o financiamento do desenvolvimento urbano. A articulação em torno da Reforma Urbana O primeiro capítulo desta apostila já mostrou que o próprio processo de urbanização do país gerou desigualdades socioterritoriais. Em contraponto a esse processo formou-se uma organização social em torno de lutas em prol da igualdade nas cidades. É importante mencionar o período da Ditadura no país que, do final dos anos 60 até o início dos anos 80, havia desmobilizado a sociedade civil
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que lutava por grandes reformas sociais, dentre elas a urbana, e estruturado o setor do planejamento territorial de forma centralizada e tecnocrática. Mas a partir da década de19 80, com a instauração do processo de redemocratização, o Brasil começou a discutir seu novo marco legal, a Constituição Federal aprovada em 1988. O período que antecedeu a Constituição foi de grande importância para o reconhecimento mútuo dos atores sociais comprometidos com o ideário da reforma urbana e com o direito à moradia e à cidade. Os movimentos sociais e de luta por moradia, as ONGs, representantes de setores profissionais, universitários e técnicos do governo comprometidos com a democratização do planejamento e da gestão, uniram-se em uma ampla coalizão denominada “Movimento Nacional pela Reforma Urbana”. O Movimento era então composto principalmente pela Igreja Católica (Comissão Pastoral da Terra e das Comunidades Eclesiais de Base), que já trabalhava nas comunidades organizando-as frente a lutas específicas (creches e transportes, entre outras), os sindicatos, universidades e pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Essa articulação potencializou a discussão de temas como a legalidade urbanística, a necessária gestão participativa por meio de processos democráticos, e interviu no debate constituinte enviando um projeto de lei de iniciativa popular, conhecido como Emenda Popular da Reforma Urbana, com mais de 250 mil assinaturas. Esse projeto provocou os constituintes e logrou a inserção de um capítulo sobre política urbana com dois artigos que tratam de temas como o cumprimento da função da propriedade e da cidade e da obrigatoriedade de se fazer planos diretores para municípios com mais de vinte mil habitantes (art. 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 que apresentaremos no próximo capítulo).
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O Movimento originou uma rede chamada “Fórum Nacional pela Reforma Urbana”8 que desde a aprovação da Constituição tem sido um dos principais espaços de colaboração entre os diversos movimentos de luta por moradia, e de interlocução de suas principais lideranças com outros segmentos da sociedade e com o poder público 9 .
Esse é um momento importante pois há uma nova visão sobre a cidade, no qual a ideia de troca de favores e de clientelismo perde forças frente ao que se entende por Estado Democrático de Direitos, que seria consolidado com a participação popular 10. Segundo Nelson Saule Jr., a ideia é muito simples: “não preciso mais pedir favor, é um direito meu pertencer e viver a cidade”. As forças sociais conquistaram que o texto constitucional incorporasse o direito à cidade e o direito à moradia.
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O Fórum existe desde 1987, é coordenado atualmente pelos quatro movimentos nacionais que o compõe, encabeçados pela União Nacional por Moradia Popular (UNMP), com sede em São Paulo. É composto pelas instituições: Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE); Confederação Nacional de Associações de Moradores (CONAM), Central de Movimentos Populares (CMP), Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), União Nacional por Moradia Popular (UNMP), Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), Centro de Defesa dos Direitos Humanos (Bento Rubião), Centro de Assessoria à Autogestão Popular (CAAP), Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (COHRE Américas), Conselho Federal do Serviço Social, Habitat para Humanidade, Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), Federação Nacional das Associações de Empregados da Caixa Econômica (FENAE), Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (FENEA), Federação Interestadual dos Sindicatos de Engenharia (FISENGE), Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), Pólis – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais (Instituto Pólis), Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo (ABEA), Observatório das Metrópoles, Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social, Terra de Direitos. Para saber mais sobre o Fórum de Reforma Urbana, conhecer seus princípios, plataformas e encontrar essas instituições, visite o site http://www.forumreformaurbana.org.br. 9
CYMBALISTA, Renato e MOREIRA, Thomás. “Política Habitacional no Brasil – a história e os atores de uma narrativa incompleta”. São Paulo: Instituto Pólis, 2004, p.7. (mimeo). SAULE Jr., Nelson. Novas perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro – Ordenamento constitucional da política urbana. Aplicação e eficácia do Plano Diretor. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, p.30.
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“Em síntese, o Direito à Cidade compreendido no conjunto das propostas defendidas pela emenda popular de reforma urbana visava: • assegurar e ampliar os direitos fundamentais das pessoas que vivem na cidade; • estabelecer o regime da propriedade urbana e do direito de construir, condicionando o exercício do direito de propriedade à função social como fundamento na garantia dos direitos urbanos, ficando ainda subordinado ao princípio do estado social de necessidade; • efetivar o direito à cidade mediante a adoção de instrumentos eficazes de política urbana como a desapropriação para fins de Reforma Urbana, visando assegurar que a propriedade urbana atenda a sua função social; • assegurar que a cidade atenda a suas funções sociais como a de promover a justa distribuição dos bens e serviços urbanos e de preservar o meio ambiente; • conferir ao município a competência e o dever de aplicar de acordo com a realidade local, os instrumentos de política urbana, devendo para cada situação concreta utilizar o instrumento mais adequado; • estabelecer os instrumentos de participação popular visando assegurar a gestão democrática da cidade como forma de exercitar a cidadania”. (Saule Jr., 1997, p. 31).
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Para os operadores do direito foi uma significativa alteração na compreensão dos direitos por parte dos movimentos sociais e na luta pela sua implementação. Os anos 90 foram um período de pressão para a aprovação de uma regulamentação do capítulo de política urbana da Constituição, que se deu por meio de projetos de lei que originaram o Estatuto da Cidade (Lei Federal no 10.257/2001) e a Medida Provisória 2.220/2001, aprovados de forma rápida, que superou as rejeições emergidas do processo legislativo e aprovou por unanimidade uma lei considerada capaz de municiar a reforma urbana em muitos de seus propósitos11. Reconhecimento do Movimento de Reforma Urbana como importante ator social Ao revisitarmos alguns dos autores que descrevem o processo de aprovação dos marcos legais do planejamento urbano no Brasil, encontramos: “Durante o processo de consolidação da Constituição de 1988, um movimento multissetorial e de abrangência nacional lutou para incluir no texto constitucional instrumentos que levassem à instauração da função social da cidade e da propriedade no processo de construção das cidades. Retomando a bandeira da Reforma Urbana, esse movimento atualizava, para as condições de um Brasil urbanizado, uma plataforma construída desde os anos 1960 no país. As tentativas de construção de um marco regulatório no nível federal para a política urbana remontam às propostas de lei de desenvolvimento urbano elaboradas pelo então Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano nos anos 1970, que resultaram no PL no 775/83. Como resultado dessa luta, pela primeira vez na história, a Constituição incluiu um capítulo específico para a política urbana, que previa uma série de instrumentos para a garantia, no âmbito de cada município, do direito à cidade, da defesa da função social da cidade e da propriedade e da democratização da gestão urbana (artigos 182 e 183).
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BASSUL, José Roberto. Estatuto da Cidade: quem ganhou? Quem perdeu?. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005
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Iniciou-se, então, na esfera federal, um período de mais de uma década de elaborações, negociações, idas e vindas em torno de um projeto de lei complementar ao capítulo de política urbana da Constituição. Esse projeto de lei (Projeto de Lei no 5.788/90), que ficou conhecido como o Estatuto da Cidade, foi finalmente aprovado em julho de 2001, e está em vigência desde de 10 de
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outubro desse mesmo ano” (Instituto Pólis, 2002, p.21). Reafirma essa concepção, o texto de Fernandes (2007), quando afirma que “desde os anos 1980, há novidades no Brasil: um importante processo de reforma urbana começou, de forma lenta, mas consistente, no país (...)”12. “Um movimento nacional pela Reforma Urbana emergiu então, envolvendo um número de movimentos sociais já existentes, sindicatos e organizações acadêmicas, que começaram a ganhar fôlego no momento do processo de abertura política que tinha como objetivo a redemocratização do país” (idem, p. 179). “Envolvendo um largo espectro de organizações locais e nacionais e movimentos, o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) foi instrumental na promoção da bandeira e da agenda da reforma urbana nacionalmente” (idem, p. 181).
De fato, é muito difícil encontrar autores cuja descrição destoe dessa construção política e social, e que associe o processo de democratização à construção dos marcos legais urbanísticos brasileiros mais atuais. Instrumentos para a gestão democrática no Estatuto da Cidade Considerando o processo de democratização em andamento, a aprovação do Estatuto da Cidade trouxe Você sabe o que é o Estatuto da Cidade e sua importância?
instrumentos para a gestão democrática no país, consolidando no texto da lei algumas experiências em andamento. Essa inclusão foi importante uma
vez que é frequente a interpretação de que plano diretor, zoneamento, entre outros instrumentos do ordenamento territorial, são peças técnicas, construídas e compreendidas exclusivamente por técnicos, sob as quais os cidadãos não têm conhecimento nem controle. Essa concepção está atrelada a processos clientelistas instaurados, pelos quais os habitantes necessitam de favores ou consultorias 12
FERNANDES, Edesio. Implementing the urban reform agenda in Brazil” In: Environment & Urbanization. International Institute for Environment and Development (IIED), Vol 19(1): 177–189, 2007, p.177.
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para aprovar projetos ou processos frequentemente associados à vulnerabilidade dos esquemas de favor, suscetíveis a processos de corrupção e de informalidade. Romper com esse ciclo significa construir coletivamente e disseminar o conteúdo da regulação urbanística, discuti-lo em arenas representativas ou não, pactuá-lo com os diversos atores envolvidos no processo de desenvolvimento urbano, criar instrumentos de fácil monitoramento e controle, que possam munir os cidadãos de instrumentos e conhecimento para participar dos espaços democráticos e efetivamente exercer sua cidadania.
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Estatuto da Cidade é uma lei federal que define as diretrizes gerais da política urbana, os instrumentos destinados a assegurar que a propriedade urbana atenda a sua função social, os instrumentos de regularização fundiária e os instrumentos de gestão democrática da cidade. Os instrumentos são ferramentas que o poder público, em especial o Município, deve utilizar para implementação da política urbana e para a gestão de seu território.
Há, portanto, o reconhecimento, a partir da lei do Estatuto da Cidade, de que planejar não é um ato isolado da gestão e de processos de decisão democrática. Para isso, o Estatuto da Cidade destaca em vários pontos a necessidade da gestão democrática da cidade e de seu planejamento. No entanto, instaurar processos democráticos é uma medida que encontra resistências e críticas. O Estatuto da Cidade inspira-se em processos de democratização da gestão já existentes, como é o caso, dos Orçamentos Participativos (OPs), instaurados a partir de 1989 em Porto Alegre, Rio Grande do Sul (RS), com “o objetivo de transferir o poder para a classe trabalhadora organizada”13, e disseminados por todo o país.
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CARVALHO, Maria do Carmo Albuquerque; TEIXEIRA, Ana Claudia C.; ANTONINI, Luciana; MAGALHÃES, Inês. Orçamento Participativo nos municípios paulistas: gestão 1997-2000. São Paulo, Pólis, 2002, p.5. (Cadernos Pólis, 5).
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Recente trabalho de Avritzer e Wampler 14 mostrou que, mesmo como uma experiência inicialmente identificada com o Partido dos Trabalhadores em Porto Alegre (1989-2002), o OP ultrapassou em muito essa dimensão e até hoje continua em expansão. Segundo Avritzer, no período entre 2005 e 2008, cerca de 200 municípios no país ainda
desenvolviam o OP. Tal expansão esteve relacionada a um primeiro esforço de romper com uma relação tradicional entre as associações de bairro e o Estado por meio de uma concepção diferente de cidadania15, que parte da necessidade de mobilização para uma forma de ativismo democrático. Há uma espécie de transferência de poder para as bases, tornando-as agentes da deliberação dos recursos, mesmo que ainda, um balanço mostre que ainda envolvem um volume muito baixo. Essa forma democrática apostou na organização das comunidades
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e no processo democrático no âmbito local. Pode-se afirmar que a Constituição de 1988 também apostou na democratização na esfera local, expressa, por exemplo, no pacto federativo que delega ao município diversas atribuições, dentre elas a de legislar sobre o planejamento de seu território. Descentralização é a tônica desta Constituição.
O Estatuto da Cidade reforça a idéia de descentralização municipal e delega aos municípios o dever de elaborar seu plano diretor envolvendo suas áreas urbanas e rurais. Sendo o plano diretor o principal instrumento da política urbana, a gestão democrática dar-se-ia na sua construção, gestão e monitoramento, e para isso, estabelece princípios, diretrizes e instrumentos, tais como: os conselhos de política urbana; debates, audiências e consultas públicas; conferências de 14
Avritzer, Leonardo e Wampler. The expansion of participatory budgeting in Brazil. Report to he world BankIns, 2009. 15
Avritzer, Leonardo. “O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico”. Disponível em www.democraciaparticipativa.org
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desenvolvimento urbano; iniciativa popular de projetos de lei e planos; entre outros que podem ser utilizados para esse fim, como por exemplo, Estudo de Impacto de Vizinhança 16 .
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Conselho de Desenvolvimento Urbano é um órgão composto por representantes do governo e de vários setores da sociedade civil de forma equilibrada, no qual a sociedade civil participa do planejamento e da gestão da cidade. Embora o Estatuto da Cidade não detalhe como devem ser os conselhos, algumas resoluções do Conselho das Cidades orientam que sejam equilibrados – sem mais participantes de um setor ou de outro – e que sejam deliberativos, isto é, que tenham poder de decisão e não apenas façam recomendações em relação aos temas que são discutidos no seu âmbito. Eles também podem ser Conselho das Cidades, nome que surgiu na construção de processos democráticos do Ministério das Cidades, criado após a aprovação do Estatuto da Cidade.
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Conferências de Política Urbana, ou Conferências das Cidades são amplos encontros nos quais são discutidas plataformas municipais, estaduais e federais de política urbana. São momentos onde os cidadãos podem participar em um processo de democracia direta, diferentemente da representativa, em que os participantes são representantes da sociedade civil, por exemplo. O Ministério das Cidades realizou Conferências das Cidades binualmente, desde 2003.
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Debates, consultas e audiências públicas são momentos de apresentação, debates e explicitação de conflitos envolvendo temas específicos, tais como projetos urbanos ou mesmo o processo de construção de planos diretores ou leis que detalham instrumentos urbanísticos.
Em relação aos Planos Diretores o Estatuto da Cidade exige que sejam feitas audiências públicas com o objetivo de informar, colher subsídios, debater, rever e analisar o conteúdo do Plano. Elas podem ser chamadas a qualquer momento e há recomendações específicas detalhadas nas resoluções do Conselho das Cidades no 9/2005 e no 25/2005 (em especial art.10) que orientam como deve ser a participação nesses espaços. As audiências representam o momento em que a discussão do plano é ampliada, por isso são muito importantes para reverter a visão de que os planos são instrumentos técnicos, muito detalhados 16
BRASIL. Estatuto da Cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2001.
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e concebidos por um grupo menor de representantes, e para ampliar para a sociedade os processos de participação, capacitação e empoderamento para fazer parte das decisões sobre sua cidade. Para serem efetivamente espaços de decisão devem divulgar com antecedência o conteúdo a ser debatido, não apenas no formato de projetos de lei, mas por meio de materiais didáticos para que todos possam compreender o conteúdo. Isso significa que audiências que debatem texto de planos diretores sem mapas, apenas com diretrizes gerais, não têm suas manifestações traduzidas em respostas e justificativas de incorporação ou não incorporação ao texto, são audiências que podem ser reclamadas como “não participativas”, inviabilizando a aprovação do plano diretor. As audiências também devem ser em locais de fácil acesso, em regiões atendidas por transporte público, que abriguem confortavelmente a quantidade esperada de pessoas, em número que possa atender as diversas regiões da cidade, e que aconteça em horários fora do horário de trabalho, preferencialmente noturnas ou nos finais de semana. Preocupações específicas, tais como: garantir a diversidade dos participantes; garantir espaços para que as mulheres possam participar e, eventualmente, levar seus filhos (por exemplo, atividades simultâneas para crianças, ou mesmo a sua realização em horários compatíveis com a jornada feminina) cuidar do espaço de discussão, para que não haja hierarquias entre os participantes que estão em cima do palco com o microfone e o poder de fala (os que estão na platéia
apenas escutando e sem conseguir opinar) e propiciar
espaços menos inibidores para que todos sintam-se à vontade para se manifestar (evitar microfones, gravações em vídeo, e utilizar trabalhos em grupos. Não há regras específicas, mas os prazos estabelecidos entre audiências e aprovação dos projetos e planos em debate devem ser suficientes para que a população possa
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se mobilizar, compreender o conteúdo debatido e envolver-se de forma eficaz. Promover atividades de capacitação faz parte da construção democrática de forma que, a utilização dos instrumentos e espaços democráticos criados façam parte de um processo de formação e de exercício de cidadania. Conquistas institucionais e legais Nos anos 2000, a luta pela democratização e municipalização pós Constituição Federal de 1988 balizou a construção de uma plataforma política para o movimento da reforma urbana que culminou em inegáveis avanços em termos institucionais e de regulação. Esses avanços trouxeram novos desafios: construir espaços democráticos como conferências e conselhos com pauta estruturada a ser debatida e deliberada; implantar a participação cidadã, ocupando espaços institucionais criados e alimentando-os de conteúdo, propostas e formas de gestão que colaborem para que a participação efetivamente se realize; criar sistemas de políticas, estruturados por secretarias, conselhos, fundos, conferências, em processos de participação direta e indireta; entre outras formas de gestão participativa. A sociedade civil organizada preparou-se para ocupar esses espaços, qualificandose em termos de construção de conteúdo; procurou se articular em rede, principalmente em torno do Fórum Nacional de Reforma Urbana; buscou recursos para exercer esse papel a contento, pautando a agenda urbana. Da mesma forma, os movimentos sociais engajaram-se na construção da pauta nacional, aproximando-se das políticas articuladas em torno do Ministério das Cidades e seus temas – habitação, programas urbanos, saneamento e mobilidade e transporte urbanos. Os municípios também, de certa forma, apostaram nessa agenda e se estruturaram, na expectativa de obterem mais recursos e apoios federais e estaduais para o seu desenvolvimento urbano. Pesquisas como a MUNIC de 2008 mostram que os municípios produziram planos diretores, criaram conselho das cidades ou de desenvolvimento urbano; criaram cadastros de
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demanda habitacional, conselhos e fundos de habitação (ver Relatório do Estado das Cidades Brasileiras, 2010). Diversas reestruturações políticas modificaram o cenário de forças desses agentes sociais. Rearticulações políticas mudaram os gestores do Ministério das Cidades, reorganizando os espaços, forças sociais e, principalmente, as apostas no processo democrático.
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As avaliações sobre esse processo são pouco animadoras. Há, por um lado, visões otimistas que elencam as conquistas obtidas e da capacitação como uma medida de construção de conceitos e compreensões comuns para efetivamente se atingir os objetivos propostos nos princípios e diretrizes do Estatuto da Cidade 17. Mesmo reconhecendo os limites e os pífios resultados obtidos, ainda acreditam nesses processos e investem neles, ocupando tais espaços. Há, por outro lado, visões pessimistas e críticas, que não reconhecem os processos de elaboração de planos diretores como participativos e sim como montagens de uma participação artificial e com cidadãos desempoderados e não capacitados 18 .
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Recentes conquistas no campo institucional e legal O país, como já foi exposto no capítulo anterior, sofreu nos anos 1960 uma importante estruturação de sua política de desenvolvimento urbano com a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e do Serviço Federal da Habitação e do Urbanismo (SERFAU), durante o regime militar. Baseado em uma política centralizadora e setorial (dividida principalmente em recursos para habitação e saneamento), essa política esteve estruturada principalmente por meio da gestão financeira de empreendimentos e projetos. Utilizavam como recursos, principalmente, os do FGTS I e do SBPE II. Diz-se que a política foi centralizadora pois privilegiava decisões federais e estatais, que continham as decisões de transferências de recursos, privilegiando a transferência para companhias estatais em detrimento das municipais.
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Um dos materiais didáticos que segue com este objetivo é a Cartilha Participar é um Direito! que visita as resoluções do Conselho das Cidades e organiza uma cartilha/manual para orientar os municípios sobre como fazer um processo democrático de plano diretor. Ver SANTORO, Paula F. e CYMBALISTA, Renato (coord.). Plano diretor: participar é um direito!. São Paulo: Instituto Pólis, 2005. (cartilha). Disponível no site do Instituto Pólis: http://www.polis.org.br/obras/ arquivo_195.pdf. 18
Para conhecer uma visão bem crítica, ver VILLAÇA, Flavio. As ilusões do Plano Diretor. São Paulo, 2005. Disponível no site do autor e no site do Labhab: www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. I
FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) é uma poupança compulsória de parte dos salários formais, que é até hoje a principal fonte de recursos de financiamento do desenvolvimento urbano do país. II Os recursos do SBPE (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos) são constituídos pelas cadernetas de poupança voluntárias.
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A política de desenvolvimento urbano baseava-se, nesse período, em planos nacionais, elaborados na década de 1970, como o Plano Nacional de Saneamento (PLANASA) e o Plano Nacional de Habitação Popular (PLANHAP), que possuíam metas significativas de produção. O término do BNH, em 1986, ocorreu com a incorporação do Banco à Caixa Econômica Federal, no entanto, sem grandes mudanças na estrutura de financiamento fortemente centralizada no governo federal. É comum ouvirmos sobre o período pós-BNH, anos 1980 e início dos anos 1990, como “a década perdida”, face à desaceleração e suspensão de processos, projetos e recursos, à crise econômica que atingiu o país, com altas da inflação, e que conseqüentemente culminou em contingenciamento dos recursos do FGTS, base para as intervenções em desenvolvimento urbano. No entanto, uma avaliação da área de saneamento mostrou que houve interrupções significativas entre 1992 e 1994, mas que aos poucos houve uma retomada das contratações com recursos do FGTS em uma ainda inicial reestruturação do FGTS nascida no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Rezende e Heller (2002)19, ao estudarem a política de saneamento do país, afirmam que foi um período que envolveu a criação e discussão (nem sempre aprovação) de diversos projetos rumo à privatização – o Projeto de Modernização do Setor de Saneamento financiado pelo BIRD, a Lei de Concessões (Lei Federal no 8.697/1995) que permitia a prestação de serviços pela iniciativa privada, entre outros. Mas, segundo os autores, em 1998 o processo de retomada de empréstimos foi interrompido, mostrando-se instável e, novamente, em 1999, o governo dá mais um passo na direção da privatização e firma acordo com o FMI comprometendose a acelerar e ampliar o programa de privatização e concessão dos serviços de água e esgoto.
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REZENDE, Sonaly Cristina e HELLER, Léo. O saneamento no Brasil: políticas e interfaces. Belo Horizonte: UFMG, Escola de Engenharia da UFMG, 2002.
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Com o fim do BNH, a política de desenvolvimento urbano esteve subordinada a sete ministérios ou estruturas administrativas diferentes, o que caracterizou um período de descontinuidade e ausência de estratégias em relação ao setor 20.
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Os anos 2000 trouxeram inegáveis avanços em termos institucionais – com a criação do Ministério das Cidades (2003), realização das Conferências das Cidades (2003, 2005 e 2007), criação e composição do Conselho das Cidades (2004), do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – e de regulação – aprovação do Estatuto da Cidade (Lei Federal no 10.257/01), instauração do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (2005) e sua regulamentação (2006) 21 .
A criação de um Ministério específico para o desenvolvimento urbano que articulava secretarias e os temas habitação, saneamento, mobilidade e transporte e programas urbanos, em 2003, sinalizava um passo importante para a integração de políticas até então tidas essencialmente como setoriais. O Ministério também significou uma vitória no campo da Reforma Urbana com a retomada da agenda urbana nacional e a instauração de instâncias participativas que contam com a participação dos movimentos sociais, entidades de classe, sociedade civil organizada, nos quais os processos decisórios deveriam ser tomados. Em 2003 foi realizada a 1ª Conferência Nacional das Cidades, que envolveu os mais variados segmentos do setor público, empresarial e da sociedade civil, 20
Em 1985, o Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (MDU), que havia incorporado as funções do Ministério do Interior, foi transformado em Ministério da Habitação, Urbanismo e Desenvolvimento Urbano (MHU), apoiado pela Caixa Econômica Federal como gestora dos recursos. Em 1988, o MHU foi transformado em Ministério da Habitação e do Bem-Estar Social (MBES), ficando responsável pela política habitacional, mas desvinculado da política de saneamento que passou para o Ministério da Saúde. Em 1990, governo do Presidente Collor de Melo, é criado o Ministério da Ação Social, em que passaram a funcionar as Secretarias Nacionais de Habitação e Saneamento, o PLANASA foi extinto e foram criados um novo plano e alguns programas habitacionais. No governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2000) o MBES é extinto e a gestão da política federal de desenvolvimento urbano foi transferida para o Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO) sob encargo da Secretaria de Política Urbana (SEPURB) que buscava a articulação entre as políticas de habitação, saneamento e urbana. 21
Em 2004 dá-se a criação do Sistema Nacional de Habitação – SHNIS e Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS (Lei Federal no 11.124/2004) e, com estas institucionalidades, o reconhecimento das cooperativas e associações como agentes promotores de habitação e participação da sociedade civil e movimentos sociais por meio do Conselho do FNHIS e do planejamento dos projetos.
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com destaque para os movimentos de luta por moradia. Tal conferência foi precedida por conferências municipais e estaduais, resultando na eleição do Conselho Nacional das Cidades, com expressiva participação de movimentos sociais. O Conselho, empossado em 2004, aprovou as propostas de políticas nacionais, elaborou resoluções, acompanhou o processo dos planos diretores participativos, animado pela inovação desse espaço e potencialidade do processo democrático. Outras conferências realizaram-se de dois em dois anos: em novembro e dezembro de 2005, a 2ª Conferência; em novembro de 2007, a 3ª Conferência; e em julho de 2010, a 4ª Conferência das Cidades, cujo conselho eleito ainda será empossado em 2011 22. O tema central foi a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano – PNDU. Diversas mudanças importantes aconteceram no percurso do Governo do Presidente Luis Inácio Lula da Silva (2003-2010) que mostram que, mesmo com instâncias participativas, ainda há muitos desafios a serem enfrentados para a instauração de processos democráticos no país. Em relação às conferências, um dos desafios diz respeito ao não envolvimento de diversos Estados na realização, como é o caso, por exemplo, do Estado de São Paulo, cujas conferências estaduais foram realizadas apenas a partir da pressão dos participantes das conferências municipais e não foram empoderadas pelo governo, que também não criou o Conselho Estadual das Cidades. Outro desafio está no próprio processo participativo, pois é difícil mobilizar eleitos no país inteiro para encontros de quatro dias em Brasília, processo custoso que deve envolver uma metodologia que efetivamente promova discussões sobre o conteúdo das plataformas resultantes desses encontros. A 4ª Conferência exibiu plenárias esvaziadas e grandes articulações prévias visando prioritariamente a eleição de conselheiros e em segundo lugar a discussão dos conteúdos. Isso se dá, principalmente, pelo fato de conteúdos das conferências anteriores terem sido pouco utilizados na concepção das políticas propostas pelos governos federal ou estaduais. 22
Ver materiais resultantes, fotos e descrição do processo disponíveis no site do Ministério das Cidades: www.cidades.gov.br
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Essa questão também consta no conteúdo debatido no Conselho Nacional das Cidades, que reclama a deliberação de políticas relevantes ao país, como por exemplo, a aprovação e discussão do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC ou do Programa Minha Casa Minha Vida, pauta importante da política que não foi concebida nesse âmbito participativo.
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O novo Programa Minha Casa, Minha Vida, concebido em um contexto de mudanças macroeconômicas, deflagradas pela crise internacional de 2007, com rebatimentos no país, trouxe alterações no campo habitacional. Criado em 2009, reavivou o modelo de produção de moradia com recursos federais para incentivar a produção privada para todas as faixas de renda e a compra de novas unidades habitacionais pelas famílias com renda mensal até dez salários mínimos. É fruto de uma conjuntura macroeconômica na qual o governo federal adotou uma série de medidas de estabilização da oferta de crédito, assim como medidas para evitar os efeitos da crise econômica internacional na nacional, por meio da rápida geração de empregos e crescimento econômico, além de fomentar o mercado de habitação no país.
Os resultados em 2010 mostram um país cujo crescimento imobiliário é grande e em franca expansão, cujos processos de urbanização e regularização têm sido frequentemente ameaçados por contextos de grandes obras imobiliárias, ou grandes projetos urbanos, tais como os de Operações Urbanas em São Paulo, os das Olimpíadas e Copa do Mundo no Rio de Janeiro e outras capitais, medidas que demandam retirada de população cuja relocação não tem sido garantida. Se, por um lado, o país aparenta pujança econômica – fortemente calcada na opção pela política urbano-habitacional federal –, assiste-se a uma intensificação da atividade privada imobiliária que acirra e provoca fortemente os que lutam pelo direito à cidade e garantia de acesso à terra em locais com infraestrutura na direção da superação de desigualdades sociais. Para completar esse quadro, os anos de 2009 e 2010 marcam claramente um momento na vida das organizações da sociedade civil brasileiras de redução de recursos e de projetos, dificultando seu envolvimento nas instâncias participativas. Nesse sentido, cada vez mais torna-se
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importante que a política, programas e ações passem pelos conselhos, embora mostra-se mais desafiadora a permanência desses agentes nesses espaços – ora descrentes do processo, ora sem recursos financeiros e humanos para participar com qualidade. Rápida avaliação da estruturação de instâncias de participação do desenvolvimento urbano Numa primeira avaliação quantitativa, pode-se afirmar que “a participação da sociedade ampliou-se para a atuação na esfera pública como: a participação direta nos governos municipais como os orçamentos participativos; os conselhos de políticas públicas estabelecidas constitucionalmente e outros tipos de conselhos locais, comitês, e em fóruns próprios da sociedade civil, que articulam lutas e o controle social das políticas públicas. Nesse último aspecto, destacam-se os espaços de articulação na área da moradia e da reforma urbana, em torno dos quais se constituíram diversos movimentos e organizações de âmbito nacional, que têm hoje assento no Conselho das Cidades”23. A Pesquisa MUNIC do IBGE, nos anos 2001 e 2008, investigou a disseminação dos instrumentos e das instâncias ligadas ao desenvolvimento urbano. A partir desses dados, o Relatório das Cidades Brasileiras (2010)24 afirmou que: • Cerca de 980 municípios responderam ter plano diretor em 2001 e em 2008 esse número subiu para 1878; • Em 2001, aproximadamente 1260 municípios afirmaram possuir lei de zoneamento, número que aumentou para 1810 em 2008; • Apenas 334 municípios possuíam conselho de política urbana em 2001 e em 2008 esse número aumentou consideravelmente e chegou a 1065 municípios.
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MARTINS, Maria Lucia Refinetti (coord.). Acesso ao solo e à habitação social em cidades de regiões metropolitanas da América Latina e da Europa. Programa URB-AL, projeto comum R7-A3-03. Pesquisa e desenvolvimento técnico: LabHab-FAUUSP. São Paulo: URB-AL/PMSP/MR/IMPSOL/Regione Toscana, 2007, p.45. 24
Ver Relatório do Estado das Cidades Brasileiras 2010, disponível em www.relatoriodascidades.org.
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Percebe-se pelos números que os canais de participação aumentaram, pressionados por políticas de incentivo do Ministério das Cidades, ou mesmo pela expectativa de alguma contrapartida pela estruturação, tais como maior repasse de recursos federais. No entanto, uma avaliação dessa evolução em termos qualitativos é muito difícil e ainda não foi realizada em âmbito nacional, apenas em âmbito municipal, em que o processo participativo pode ser avaliado nas suas dimensões que garantem a efetiva participação cidadã, como já comentado anteriormente.
Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social Em 2005, após 13 anos da proposta de Projeto de Lei no 2.170, foi aprovado o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), pela da Lei Federal no 11.124/2005. O SNHIS compõe-se de uma instância central de coordenação, gestão e controle, representada pelo Ministério das Cidades, pelo Conselho Gestor do FNHIS, por agentes financeiros – recursos são geridos pela Caixa Econômica Federal – e por órgãos e agentes descentralizados que têm que aderir ao Sistema. Sua ações objetivam promover habitação para a população com rendimentos de até três salários mínimos, que compõe grande parte do déficit habitacional do país. O Conselho do FNHIS é composto por movimentos sociais, entidades de classe e, universidades, compondo uma gama de agentes da sociedade civil.
A adesão ao SNHIS por estados e municípios é voluntária e se dá a partir da assinatura do termo de adesão, por meio do qual os estados e municípios se comprometem a constituir fundos de natureza contábil para habitação de interesse social e a elaborar um plano de habitação. Esse desenho espelha a estrutura institucional e financeira montada no âmbito federal e permitiria a obtenção de recursos do FNHIS. Recente pesquisa realizada no âmbito do Relatório das Cidades Brasileiras (2010) mostrou, a partir da Pesquisa MUNIC do IBGE, que entre os anos 2001 e 2008 houve uma forte estruturação em torno da expectativa de fazer parte do SNHIS e receber recursos, apresentada pelo avanço na criação de órgãos, conselhos e fundos de habitação: • Cerca de 1749 municípios, pouco mais que 30% dos municípios do país, afirmaram possuir órgão de habitação em 2001, e em 2008 este número ampliou-se para
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3914, cerca de 70% dos municípios brasileiros; • Em 2001, apenas 628 municípios possuíam conselho de habitação e em 2008 este número subiu para 1708; • Apenas 258 municípios em 2001 afirmavam possuir fundo de habitação, o que em 2008 subiu para 1722 municípios. Essa estruturação sinaliza uma expectativa por recursos que ainda não ocorreu, pois as transferências fundo a fundo ainda não se realizaram, ficando os recursos do FNHIS, assim como os dos demais programas, sujeitos a apresentação e aprovação de propostas à Caixa Econômica Federal (CEF) e Ministério das Cidades. Mostra-se, portanto, um processo inconcluso de implementação do sistema, mas que efetivamente parece ter gerado conseqüências importantes em termos de
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estruturação da gestão. Importante ainda lembrar que, além dos recursos do Fundo, o SNHIS opera com recursos de diversos fundos públicos ou de gestão pública como o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
Recentemente, o Programa Minha Casa Minha Vida alocou recursos para habitação e estabeleceu metas relativas à construção de 1 milhão de moradias, destas, 400 mil destinadas a famílias com renda familiar entre 0 e 3 salários mínimos. Para isso, destinou 1 bilhão de reais a serem investidos, e destes, o maior volume de recursos está destinado para a produção privada de habitação por meio de empreendimentos privados ou de recursos para o beneficiário final, e um volume menor para entidades. De acordo com o Relatório de Gestão 2009 do FNHIS, foram abertas inscrições para: - elaboração de Planos Locais de Habitação de Interesse Social (PLHIS), com 20 milhões de reais em recursos; - Produção Social da Moradia (PSM), com 50 milhões de reais; - Assistência Técnica (AT), com 20 milhões de reais; - Urbanização e Assentamentos Precários (UAP) e
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- Produção de Habitação de Interesse Social, realizada somente com emendas parlamentares não inseridas no PAC Habitação, somando 1,2 bilhões de reais. Percebe-se pelos números que a estruturação de repasse de recursos à esfera local possui valores muito menores que os recursos para os projetos do governo federal, como por exemplo, para o PAC. Mais informações sobre o SNHIS serão apresentadas no capítulo 4. Financiamento do desenvolvimento urbano Embora já tenhamos tratado desse tema nos itens anteriores, é importante problematizar o desafio do financiamento do desenvolvimento urbano nos municípios brasileiros. Os recursos de que os municípios dispõem para gerir o desenvolvimento urbano passam necessariamente pelas suas receitas orçamentárias municipais, geralmente compostas por:
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• receitas tributárias-recursos obtidos com a cobrança de impostos, taxas e contribuições26 ; • receitas de transferências constitucionais, legais e voluntárias - Dentre as constitucionais estão as do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), da cota-parte do Imposto Territorial Rural (ITR), da cota-parte do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), entre outros. Dentre as legais, encontram-se as provenientes do Sistema Único de Saúde (SUS), do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Básico e de Valorização dos Profissionais (FUNDEB), entre outros. E dentre as voluntárias, encontram-se os convênios da União, dos estados e dos municípios e de outras instituições públicas (transferências correntes e de capital). • e por outras receitas - Compostas por contribuições patrimoniais, industriais, de instituições privadas pessoais ou do exterior, receitas da dívida ativa, multas e juros de mora, indenizações e restituições.
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Como impostos citamos Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto sobre Serviços (ISS) e Imposto sobre Transmissão de Bens Intervivos (ITBI); como taxas, os recursos cobrados a partir de prestação de serviços que podem ser territorializadas e quantificadas na sua unidade, e sobre as quais é fácil exercer poder de polícia e fiscalização, tais como a taxa de lixo que foi cobrada por um tempo em São Paulo; e como contribuições há a Contribuição de Melhoria e a Contribuição para o Custeio da Iluminação Pública.
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Segundo Bremaker 27, em 2008 a receita orçamentária dos municípios brasileiros era constituída em média por 16,34% de receitas tributárias (ou seja, tributos que o município arrecada diretamente e ali permanecem), 68,21% de transferências (constitucionais e voluntárias, tanto do governo estadual como do governo federal) e por 15,45% de outras receitas. O instrumento tributário mais utilizado nos municípios brasileiros é o Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU). Ao estabelecer valores das propriedades, representados em uma planta genérica de valores, estes servem de base para a cobrança do IPTU. No entanto,
no Brasil, mesmo o ganho gerado pelo IPTU não é cobrado com eficácia e equidade, por vários motivos: muitos municípios nem cobram o imposto ou possuem grande volume de isenções; a planta genérica de valores, base da cobrança, estão com os cadastros desatualizados, obsoletos ou incompletos; há fortes resistências políticas a uma cobrança justa, como conseqüência há dificuldade de aprovação de atualização de valores pela Câmara; os prefeitos não querem ficar marcados como os que aumentaram impostos; existem interpretações jurídicas que obstruem alterações; falta de confiança no sistema tributário; ineficiência na arrecadação causado por altos índices de inadimplência. Tais razões mostram porque, mesmo sendo o instrumento tributário mais disseminado, o IPTU não consegue sequer tributar bem e o volume de recursos obtidos procura dar conta das necessidades de serviços públicos que essas áreas requerem, sem sobrar recursos para maiores intervenções ou projetos 28.
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BREMAEKER, François E. J. A importância do FPM para as finanças municipais e seu papel na equalização das receitas. Estudo Técnico no 105. Salvador, julho de 2010. (mimeo). Disponível em www.oim.tmunicipal.org.br 28
SANTORO, P.F; COBRA, P.; BONDUKI, N. Cidades que crescem horizontalmente: instrumentos para o ordenamento territorial justo da mudança de uso rural para urbano em municípios do interior paulista. In: Cadernos Metrópole no 24. Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ, 2010. (no prelo)
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O IPTU geralmente é mais bem cobrado pelos municípios mais populosos, uma vez que a geração do imposto está associada ao grau de urbanização e a uma organização institucional própria para viabilizar uma cobrança mais justa do imposto. Uma exceção a esse comportamento dá-se nos municípios que desenvolvem atividades turísticas que geralmente superam a média nacional em termos de receita tributária.
As receitas de transferências compõem o maior volume de recursos. Em especial as transferências voluntárias, repasses de recursos provenientes dos Estados ou da União, são viabilizadas por meio de convênios ou contrato de repasses e corresponde a uma fonte de recursos mais significativa para os investimentos em urbanização dos municípios. Destacam-se as transferências constitucionais do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) que redistribui aos municípios os recursos de 23,5% da arrecadação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto de Renda (IR). Sua distribuição dá-se da seguinte forma: • .10% do FPM para as capitais, com distribuição maior ou menor em função de critérios populacionais e de inverso da renda per capita do Estado; • dos 90% restantes, 4% são retirados para constituir um fundo de reserva distribuído aos municípios com população acima de 142.633 habitantes, segundo os mesmos critérios adotados para as capitais; • o restante (86% destes 90% ) é distribuído em função da população de cada município, inclusive para aqueles que participam do fundo de reserva, de forma que os municípios com menor porte populacional recebem per capita valores mais elevados. Mesmo com o aumento dos recursos do FPM obtidos após a Constituição Federal de 1998 (era 17% do IPI e IR) e com esse aspecto redistributivo do recurso – municípios com menor população recebem um valor per capita maior – os recursos auferidos são muito baixos, o que dificulta a promoção de obras de porte mais significativo dos municípios.
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Baixa arrecadação com impostos próprios e baixos valores obtidos por transferências constitucionais e legais termina por restringir a autonomia de promoção do desenvolvimento urbano dos pequenos municípios brasileiros que, para fazerem suas políticas, dependem de transferências voluntárias da União ou dos Estados 29. Ao invés de descentralizar as políticas e dar maior autonomia
aos municípios, os efeitos dessa forma de distribuição de recursos reforçam o poder centralizador dos governos federal e estaduais e restringem a autonomia dos municípios, que, por sua vez, reclamam do aumento de suas obrigações após a Constituição Federal de 1988. Os repasses do Orçamento Geral da União são geralmente obtidos por meio de programas, criados e avaliados pelo Ministério das Cidades, cujos recursos são operacionalizados pela CEF. Há também a possibilidade de acesso a esses recursos por meio de emendas parlamentares, logo após a aprovação do orçamento federal pelos parlamentares, sem consulta prévia, mas necessariamente enquadrado em algum programa proposto pelo governo federal. Por isso, os municípios que têm pouca capacidade de investimento procuram se articular politicamente com parlamentares e com os governos federal e estaduais procurando, por meio de alianças e apoios, conseguir os recursos pelas emendas parlamentares. Como já foi exposto nos capítulos anteriores, grande parte dos recursos para o desenvolvimento urbano são oriundos de repasses feitos com recursos do FGTS, nos moldes propostos pelo Sistema Financeiro da Habitação (STF) instituído em 1964. Mesmo após a extinção do BNH, em 1987, esses recursos compõem a maior parte daqueles voltados aos programas de desenvolvimento urbano, principalmente nas áreas de habitação e saneamento.
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Muitas vezes não adquirem empréstimos pois não tem recursos que possam ser associados ao financiamento (contrapartida exigida em muitos casos).
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Considerando a relevância dos recursos federais e estaduais nessas políticas, resta aos municípios o desafio de buscar maior autonomia, seja por meio de uma melhor estruturação para a cobrança de impostos, ou por meio da recuperação da valorização da terra dada pelo próprio desenvolvimento urbano, como abordaremos quando tratarmos de instrumentos do Estatuto da Cidade, no próximo capítulo.
Indicamos a leitura opcional do texto base: • CYMBALISTA, Renato. “A trajetória recente do planejamento territorial no Brasil: apostas e pontos a observar”. In: Revista Paranaense de Desenvolvimento. Curitiba, n.111, p.29-45, jul./dez. 2006. Disponível no site do IPARDES: http://www.ipardes.gov.br/webisis.docs/rev_pr_111_renato.pdf
Indicamos também a leitura dos textos complementares: • M ARICATO, Ermínia. “Nunca fomos tão participativos”. Algumas reflexões sobre os movimentos sociais urbanos por ocasião da realização da 3ª Conferência Nacional das Cidades em Brasília. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3774 • MARICATO, Ermínia. “O desenvolvimento urbano democrático como utopia”. Entrevista Revista ANPUR, vol 6, nº 2, 2005. Entrevista concedida à Ana Clara Torres e Henri Acselrad, em Porto Alegre. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/equipe/do02.html • VILLAÇA, Flávio. As Ilusões do Plano Diretor. São Paulo, 2005. Disponível em http://www.flaviovillaca.arq.br.
Certamente a leitura desses textos ajudará a refletir sobre todo o processo descrito neste capítulo, além de conhecer o que pensam alguns dos mais destacados pensadores do tema no país. Para quem se aproxima do tema pela primeira vez, indicamos como leitura: • SANTORO, Paula e CYMBALISTA, Renato (coord.). Plano diretor: participar é um direito! São Paulo: Instituto Pólis, 2005. Disponível em (http://www.polis.org.br/obras/arquivo_195.pdf).
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Como vídeos complementares sobre esse tema, sugerimos: • Entrevista com Prof. Dr. Nabil Bonduki: O que fazer com as cidades brasileiras? Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=2cKVn-ovs1k • Entrevista com Prof. Dr. Nabil Bonduki sobre especulação imobiliária para o site Isso não é normal. Disponível em: http://vimeo.com/12444812 • E ntrevista com Prof. Dr. Nabil Bonduki sobre o governo federal e os recursos públicos. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=KskcHadgNa8&feature=related