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NORMA BRITO

MINHAS BONECAS TRISTES

Norma Brito

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Dias angustiantes. Efeitos nefastos da pandemia. Grupo de risco. Como numa verdadeira cruzada, luto contra meus inimigos: a tristeza e a solidão. Minhas armas são tarefas como cozinhar, arrumar, assistir a bons filmes, ler e escrever. Também ando pela casa para lá e para cá, e depois vou à cozinha. Para adoçar a solidão, faço bolos e doces.

No quarto, olho para a imagem de Cristo acima da cabeceira da cama, e pergunto ao Pai: o que faço hoje? Quase no mesmo instante, avisto minhas lindas bonecas estrangeiras, escondidinhas no nicho, parecendo assustadas, a pedir socorro. Como sou especialista na arte de bavarder, de jogar conversa fora, resolvi bater um papo com elas.

Meninas, não temam; tudo isso vai passar. É só ficarem paradinhas, e esperar o melhor. Então a francesinha falou: o que faço com meu lindo chapéu e as roupas de flâner au soleil aux Champs Elysées? Mon bijou, tira tuas vestes. Esses babados duplos, as rendas, o chapéu com a peninha, isso tudo incomoda. Prende teus cachos, põe um deshabillé, bebe um Bordeaux e tenta dormir.

Logo em seguida, chegou o casal alemão com toda empáfia, e ele falou: não vou permitir que minha mulher dispa-se. Nem vou tirar minha casaca de botões dourados. Sou de uma estirpe que nada teme. Daí saiu todo prosa.

A graciosa muñeca argentina, de boca carnuda, longos cílios, cabelos negros presos com flores, entrou em cena. No meu país ainda podemos dar uma saidinha. Yo voy a bailar un tango con mi chico e beber uma copa de vino. A japonesa, discreta, com seu quimono de barras douradas, um coque elevado na nuca e um turbante enrolado na testa, segurava a filha, toda enroladinha, e nada dizia. Cerrava os olhinhos, já miúdos, para não ver tanta desgraça.

Entra em cena a esbelta vienense, com sua blusa branca de mangas bufantes, saia verde florida e plissada. Também usa um avental de veludo vermelho e um adorno na cabeça que mais parecia uma coroa. Vou colocar um disco de Strauss. E saiu rodopiando no salão.

No meio da conversa, outra boneca alemã, com suas loiras tranças dependuradas no ombro, insinuou-se. Trajando blusa branca, colete preto bordado, avental de renda branca e saia verde com flores. Não aguento mais! Eu vou é tomar uma fassbier, pois ninguém é de ferro! Pegou a caneca gigante e saiu como entrou.

A bonequinha grega se apresenta. De lenço vermelho florido, amarrado na cabeça e que dava voltas no pescoço até cobrir o nariz. Mais parecia turca. Se não fosse pelas cores... A saia era de um tecido brocado em listras azul e vermelho, com listras mais finas amarelas, cinta branca e blusa florida. Segurava um novelo de lã, pendurado no braço esquerdo e, nas mãos, a lã cruzada e esticada. Vou preparar o fio para tecer meus sonhos. Enquanto o inimigo não se aproxima de nós.

Finalmente, como se também buscassem o refúgio do lar, voltaram, uma a uma, ao seu cantinho no nicho. Tentem dormir. Quem sabe vocês acordem num mundo real e mais humano?

Grupo de leitura. Escritoras reúnem-se mensalmente para analisar um livro. Em ambiente acolhedor, na residência de uma das integrantes do grupo, comenta-se o livro, os personagens, o estilo do autor e sua provável intenção. Também se fala do tema, a época em que a obra foi escrita, se a vida do autor interfere na trama, o contexto histórico-social, e outras considerações pertinentes.

Também somos ávidas leitoras. O livro palpável, a textura do papel, as letras que saltam da folha e se escondem nas pupilas dos nossos olhos curiosos, o significado nas entrelinhas. Tudo nos fascina. Por isso, preferimos o livro físico ao ebook.

Ao sairmos, avistamos uma caçamba na calçada com vários livros em meio a caixas de papelão, cimento, concreto e ferros. Jogados ao léu, na penumbra da noite. Indignadas com o destino de preciosos exemplares, de grandes escritores da humanidade, nos aproximamos para resgatar aqueles que nos interessavam.

Devido às nossas mentes férteis, pensamos ouvir um grito de socorro. Vimos então uma Clarice sufocada por pedaços de concreto. Ela, que vivia encerrada numa inflexão intimista, certamente nunca havia imaginado um fim tão trágico. Nem para Macabeia ela traçou tal destino!

Do fundo da caçamba, gemidos abafados são ouvidos. Rapidamente, uma de nós apiedou-se e meteu a mão na caçamba. Era Vitor Hugo, reclamando que os miseráveis não eram os que ele descreveu, e sim, tipos como o malvado do homem que o meteu naquela enrascada. Miséria da alma. Ao lado de Victor, estava Gilbran, de asas partidas, mas com os olhos cheios de gratidão. ‘”Agora sei que existe algo mais alto que o céu, e mais profundo que o oceano; agora sei o que antes não sabia”. Referia-se ao Amor, o mesmo que vira na face da sua salvadora.

De repente, algo se mexeu. Era Kambili. Agarrava ao peito o retrato do avô Papa- Nukwu, achando que o metal, que lhe caía nas feridas expostas, era da fivela do cinto do Papa. Também tinha um hibisco roxo nas mãos.

Um raio fulgiu e nós, temerosas de chuva, apressamos a partida. Não sem antes lamentarmos a insensibilidade de quem jogou no lixo livros tão preciosos, que poderiam ter sido doados a alguma escola ou biblioteca. Sorte nossa!

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