PREFÁCIO Debaixo do sol nordestino, dentro de um quarto abafado com cheiro de suor e nanquim barato algo belo foi criado. Eu não sei como escrever um prefácio. Estou realmente orgulhoso do Victor por ter finalmente terminado um projeto – algo que eu nunca consegui. Talvez quando você veja seus desenhos e leia seus poemas entenda o nome dessa revista.
MIRAGEM. s.f. Fenômeno óptico próprio dos países quentes. Fig. Ilusão. Engano dos sentidos. Decepção. Se o artista poupou sua revista de palavrões, eu direi: do caralho. Pra quem fazia tiras de memes no paint até que o Victor chegou longe; e continua indo.
Gabriel Barretto
Poesias Marinheiro de vácuo Navegante de mares isolados. Ao alto-mar havia se lançado. Dengoso, o mar se rebela. Ondas impetuosas o atingem como fera. Aguacento em seu rústico navio. O oceano primitivo o devora. Nanico em imenso mar. Astronauta só em espaço oceânico . Dentre destroços, peixes e corais Adormece no azul. Abraço forte Pra sentir teu Corpo colado ao meu . Meu coração No compasso do teu. Me aceite, Julieta Como teu Romeu. De tanto ficar confuso Hoje me tornei Um monge recluso. De tanto ficar recluso Já não sei
Presumiu que iria chover. Saiu sem guarda-chuva, mesmo assim. Na estação, começou a trovejar. Olhou, triste, o céu a lacrimejar. Raios e trovões sob o manto cinza. O trem fora do horário. O paletó a molhar. Poças e goteiras na estação. Deprimido, sentiu-se derreter. Começou então a derramar. Lágrimas se confundiam a chuva. E em uma poça veio a desaguar. Na mesa do bar Um copo meio cheio de tristeza. Meio vazio, bebeu de um gole Um rei sem realeza. Em cima da arvore Filosofa a salamandra Se é certo ou errado Viver essa vida malandra. O sol abre uma ferida no céu. Capa assombrosa nublada. E faz o celeste sangrar de luz. Gotas de chuva molhada. -
Não me venha com essa De que um buquê é o bastante. Pra mim, um mar de rosas É o que mereces, minha amante. Para ti, meu livro de poesias. Cheio de dores e amarguras. Repleto de amores e doçuras. Todas as suas manias. Por ti, meu bem. Eu sonho de olhos abertos. Já que os sonhos, ao dormir. São sempre tão incertos. Amava como um cachorro Latia de alegria, Grunhia e mordia. Quem se atreveria A amar esse cão algum dia? Delírio amoroso, Ó, como odeio Esse sonho rochoso.
CORVOARIA O corvo engaiolado no coração se revolta. Na negritude de suas penas E na brasa ardente de seus olhos se vê a ira e o temor que desmorona. Grasnando vorazmente, por entre seus bicos de diamante, suplicando a desejada liberdade. Bicando, como um machado cortando lascas de uma arvore, as grades da gaiola. Até que por fim, o seu carcere é destroçado. E o corvo voa pela imensidão do céu sem mais está aprisionado. – O coração reclama puto: “Nunca saio, desse zero absoluto.” -
Balões brancos no céu afiado previam de cara o tufão revoltado. Sem pudor vinha a toda velocidade destroçando prédios e casas por toda a cidade. E ainda insaciado fora até o céu e de lá arrancou estrelas do teu negro véu. Jasmins desabam em choro. Pranteando amores perdidos em coro. Na metrópole, ao meio-dia. Só estardalhaço. Meia-noite depois, A cidade está só o bagaço. Aquela flor turquesa Me remetia a lembrança daquela anciã tristeza de caminhar só por linhas vazias, por palavras sem vida. A dor mais doida.
Você deixou estilhaços do meu amor jogados ao chão. Varro, recolho tudo para reciclar meu coração, minha paixão. Carambola rola como bola. Do fruto caído perdido brota na rota horta um pé de estrelas pentelhas. -
Anti-herói Esmurro muros a procura de razões. Quebro o gelo procurando por alguém. Devoro livros aprendendo a lições. Sovo mandíbulas para amadurecer. Decifro pinturas em troca de ternuras. Vejo sorrisos, mas acabo perecendo. Navego por lagrimas que rumam a tristezas. Soletro palavras para o vendaval levar e com sorte, um ciclone virá a se tornar. Enterro-me em amores procurando por um chão. Pulo de torres sem me lamentar. Morro então, para então viajar E em meu berço, pedir perdão. -
Aviões de papel voam no azul ocular do teu céu. Mascaras que não caem depois do carnaval, continuam a esconder a verdade carnal. O gosto de maresia permanece na boca seca por pura teimosia. Leva na mochila Lápis e caderno, estojo e borracha, livro e apontador. E lá no fundo da mochila, uma resma de amor. Respingo de café Farelo de bolacha. No desastre, o sentido que não se apaga com borracha. -
Advento, ai de vir no certo momento um abraço do vento. Mascavo Os pés enraizados ao chão de concreto. E o mundo era visto por suas pérolas dos olhos. E assim era feito, por simples decreto. As paredes cegas não lhe diziam simplesmente nada. Pois além de cegas Eram mal-amadas. Das esquinas, floresciam frutos amargos Que amadureciam e apodreciam E serviam de alimento aos que pereciam. Alto-falantes crocitavam auras dissonantes. E no topo da redoma, se via A paisagem cósmica de um viajante. - A esmo, pelas moscas Velhas folhas de jornal. Nada de interessante na seção mundial. -
Latitude Daqui de cima desse fio de alta-tensão. Eu posso ver teu mundo em destruição. Pairado aqui no nível dessa latitude. Posso finalmente perceber A magnitude Do que um ato não premeditado pode fazer a um pobre coitado. Morto vivo ou vivo morto? Esse é o perpetuo dilema de um pobre zumbi e de um homem sem lema. Morto não se vive, apodrece e desaparece Só morto vive em folhas soltas de lembranças. Vivo, porém, morto vive. parado na inercia da preguiça. Só vive da sua própria Inépcia.
O COVEIRO DE BORDEAUX O rangido ranzinza da carroça sobre o chão lamacento era o único som que se escutava naquela manhã, naquele lugar em particular. As mulas magrelas que guiavam o carro estavam já cansadas de tanto andar. A viagem estava sendo longa. O coveiro se cerze no banco da carroça e atiça os bichos para que apressem o trotar. O céu límpido não mostrava o menor indicio de chuva, muito menos de nuvens, só umas três ou quatro se atreviam a andar solenes ali. Olhou por cima de um ombro para o caixão que levava na carroceria. Um caixão de uma madeira nobre, de cor negra. Era simples, sem detalhes. Uma pedra passa sob uma roda, fazendo o coveiro trepidar no banco e voltando sua atenção a estrada. Ele tinha um rosto magro, os seus maxilares tinham certa visibilidade. Tem a barba por fazer Os lábios secos de sede, a face desgastada pelo tempo. Seu coração já fora brasa, fora fogo, mas hoje não passava de restos de uma fogueira que resplandecerá plenamente em tempo passados. Seu passado o condenará a aquela ventura. Coloca a mão na traseira da carroça e de lá tira uma garrafa de vodka. Com os dentes tira a rolha e beberica em goles longos. Já estavam se aproximando do lugar. As mulas ofegam. Calma! Calma! Falta pouco. Nuvens surgiam tímidas do horizonte. Toma mais um gole longo, sentindo o liquido descer ardendo pela garganta e fecha a garrafa, jogando-a de volta a carroceria. As rodas sugerem que a qualquer momento vão vacilar e travar na estrada barrenta. Atiça mais ainda as mulas, mas elas já exaustas, parecem que vão parar a qualquer minuto. Faltavam poucos metros para chegar ao cemitério. Olha para o muro em ruinas do cemitério e os portões enferrujados entreabertos. A carroça passa por um nível muito lamacento e atola. As mulas caem fatigadas. O coveiro incita mais ainda elas, mas elas não se movem, só urram de cansaço. Pula furioso da carroça caída e vai até a parte de trás; Puxa uma alavanca e a portinhola se abre. De lá tira um bolsão, a pá velha e o caixão.
Arrasta o caixão por uma corda firme pela estrada de barro. Vê os portões entre abertos do cemitério e apressa o passo. Olha para trás e vê as mulas tirando um cochilo. Sente-se furioso, pensa em quando voltar dá pazadas nelas até que fiquem na carne viva e quase a beira a morte. Mas assim que chega a frente aos portões, essa ideia some de sua cabeça. O céu agora estava repleto de nuvens. O cemitério é neblinoso. Sente a nevoa entrar em suas botas e gelar seus dedos. Arrasta o caixão agora em um solo mais estável, o que facilita sua locomoção. O bolsão nas costas, a pá no bolsão, a corda em suas mãos. Passa por entre túmulos e mausoléus. Desconhecidos. Alguns nem tem seus nomes gravados em sua lapides, sequer alguns tem lapides, só uma cruz jaz em certos túmulos. Talvez por vergonha. Talvez por medo. Outros conhecidos, amigos e parentes, alguns deles enterrados por ele. No inicio era doloroso, ver um ente ou amigo querido ser enterrado por ele, desaguava em lagrimas quando isso acontecia. Mas com o tempo se fortalecerá, se tornará uma espécie de montanha. Finalmente encontra um terreno livre com uma lápide caída e coberta por lama. Arrasta o caixão até lá e solta a corda, pega a pá no bolsão e a finca para ter certeza que é aquele lugar mesmo. Faz isso varias vezes até que ele tem certeza. Era ali. Começa a cavar o túmulo. A terra lamacenta facilita o trabalho, mas se suja mais do que o esperado. Um manto de nuvens cobre o céu. Para de cavar quando acha que já está fundo o bastante. O rosto sujo de barro. As mãos doloridas. Toma impulso para sair do buraco, mas se vê preso ali. Com a terra lamacenta, tornasse difícil subir. Cada tentativa o terreno cede mais e mais. E quanto mais tenta, mais se suja. Droga! Senta-se no canto do buraco, percebe o quão irônico seria se ele morresse ali, na cova que cavará para um morto qualquer. Levantase e conta até três. Corre e dá um impulso tocando com o pé em um canto, fazendo mais terra cair, consegue se agarrar a raízes na superfície, que começam a se partir assim que ele as agarra. Começa a mover os pés como um louco, tentando subir, mas quanto mais tenta mais o terreno cede e mais as raízes se rompem. Agarra as raízes com mais força e finca os pés na parede lamacenta do buraco, começa a escalar meio torto e consegue chegar a superfície no ultimo segundo.
Sente a raiva fluir por suas veias. Só pensa em ir embora logo dali. Puxa o caixão com um solavanco até a ponta do buraco e caminha bronco até a lápide caída e coberta. O coveiro pega a lapide e a crava no solo. A terra que havia sobre ela cai como a neve cai das arvores. A inscrição nele se revela. Ele não acredita no que vê. Uma lagrima escorre lenta pelo seu rosto sujo de lama. Cai de joelho e esmurra o chão. Pergunta-se o porquê daquilo. Por que havia escolhido aquele caminho e não outro. Por que tudo tinha que acabar daquele modo. Contem o choro e se levanta de forma mecânica. Era o fim. Vai até o caixão e o arrasta para a cova. Pega o bolsão e o vasculha. De lá, tira chorosa uma rosa. Bela e viva. De pé, diante do tumulo, segura a rosa com as duas mãos. Baixa a cabeça e soluça querendo chorar. Controla-se. Olha para o caixão ali na cova e pensa em que está lá. Joga a rosa para ela. E não aguenta. As nuvens choram em luto.
BIRITA Um filme em preto e branco passava na tevê. Ele estava ali, no meio da sala, sentado na velha e empoeirado poltrona que pertencerá ao seu pai. Com uma mão, segurava uma lata de cerveja, com a outra, acariciava seu cachorro mudo. Na verdade, o cão não havia nascido assim, latia como qualquer outro cachorro, quando mais jovem. Latia com qualquer bobagem, de borboletas a transeuntes. Emudeceu depois da morte do pai. Ao vê-lo morto, deitado, babando, na sala de estar de seu apartamento em que vivia. Latirá com tanta intensidade naquele dia que perdera a capacidade de latir. Afaga o cão por entre as orelhas caídas e toma goles curtos de cerveja. Sente os olhos pesarem, o corpo amolecido e cansado, mas mesmo assim não consegue dormir. Tinha insônia. Podia deitar na cama, exausto e destruído, que não iria conseguir pegar no sono. O dialogo interno em sua cabeça nunca cessava. Virava de um lado para outro na cama por toda a noite sem conseguir descansar. Por isso, toda noite tomava cerveja até ter um porre e desmaiar. Começa a chover. Goteiras por toda a casa começam a cair em baldes estrategicamente colocados no chão. Já estava na decima quinta cerveja e começava a sentir seus efeitos. Na tevê, um homem em seu cavalo fugia de bandidos, armados e encapuzados, floresta adentro.
A única coisa que ele conseguia ver na tevê era um borrão acinzentado em movimento trêmulo. Uma lagrima escapa do seu olho. Pensa em desistir. Desistir daquela vida sombria. Desistir de tudo. Tudo por conta da insônia. Tudo por conta de seu pai. Pega a latinha e a ergue. Um brinde a você, pai. Toma todo o resto da cerveja em um só gole e arrota como um ogro. Apoia-se nos braços da poltrona e se levanta com certa dificuldade, as pernas trêmulas, os braços também. Sente uma pontada nas costas e grita de dor, mas não acha sua voz. Caminha a passos lentos até a cozinha. A chuva fica mais forte. Um barulho de algo se espatifando no chão vindo da cozinha acorda o cão, que vai até o dono embriagado. O coração obeso palpita loucamente, tenta apressar o passo, mas seu corpo debilitado o impede. Mil pensamentos vêm em mente. Quando finalmente chega a cozinha o barulho cessa. Olha diante da penumbra da cozinha, mas não enxerga quase nada, a vista turva dificulta mais ainda. Apalpa a parede a procura do interruptor. O cão observa a escuridão com aparente ansiedade. Liga a luz do lugar, e a única coisa que se escuta em seguida na casa é um baque seco, o som de tiros vindo da tevê e um latido estridente e ensurdecedor.
CANINO
A rubra maça doce a fazia salivar a cada mordida. Salivava que quase babava, dando imensas mordidas aproveitando o curto intervalo de tempo que tinha para lanchar. Logo, escutaria o toque e teria que voltar parar a sala. Ela não queria mais. Não queria ficar afogada no mar de pó de giz. As aulas eram tão dispersas e desinteressantes com a Sra. Joana que ela preferia estar trabalhando no campo, com os pais, do que estar ali. Mas eles não permitiam isso. Teria que estudar e lutar, para ter uma vida digna e sustentável. Dá uma ultima dentada na maçã e joga o resto na lixeira. Resolve dar uma breve volta pelos corredores do colégio. Meninas de camisas branca, já amareladas pelo tempo e o desgaste, com o emblema do colégio, usando saias listradas, de um tecido semelhante ao jeans, por todos os cantos dos corredores e no pátio. Seja comendo, seja brincando, seja lendo, seja conversando. Vai até Carmen, que está sentada em um banco, lendo um livro sobre a historia da América do Sul e pergunta o que
ela vai fazer a tarde. Não sei. Nada, eu acho. Talvez ler. Por que? A convida para fazer algo. O que, por exemplo? Diz não saber sobre o que. Sugere cozinharem um doce, talvez. Carmen se cala. Volta o olhar para o livro. Parece olhar fixo, pensativa, acha que ela a havia ignorado. De repente, ela fala de modo monótono e preguiçoso, com um tom de desinteresse: Ok. As duas estarei lá em sua casa. Esboça um sorriso. O sinal toca. Na saída, entre tumulto e falatório, ela sai pelos portões de ferro e toma rumo pelas ruas. Sobrados e casebres de pintura simplória trazem um tom monotonamente alegre ao meiodia. Sentia-se brandamente triste a esse horário, ao saber que os pais não estariam em casa. Ainda estariam no campo. Só estaria seu avô, que já dava sinais de estar em seus últimos dias. Não servia mais para nada, só ocupava espaço na casa e gastava dinheiro para sobreviver com remédios caríssimos que consumiam boa parte do dinheiro que os pais conseguiam no campo, fazendo com que seus pais trabalhassem mais e mais ainda.
Voltando todos os fins de tarde exaustos e desgastados para o próximo dia fazer tudo de novo. Ainda lembrasse-se de quando era mais nova, o via sempre, sentado no alpendre, em sua cadeira de balanço, dizendo que seu pai não trabalhava o suficiente e nunca ia conseguir dinheiro o bastante para abandonar aquela vida humilde, beirando a miséria. Insistia bronco. Sempre falando com um sotaque arrastado, falando por entre os dentes, mascando erva. Era um inútil, um imbecil que só pensava, e engrandecia seu próprio ego, sempre reclamando. Caminhando por uma calçada íngreme e malcuidada, com grama alta, chuta um pedregulho ao longe, com ira do avô, e ouve um latido doido. Surpreendida, vai até o local, andando a passos acuados, com um medo receoso do que viria a seguir. Ali, entre a grama, estava um cachorro moribundo. Deitado de lado, com o olhar choroso, respirando lenta e forçosamente, a cada suspiro demorado, uma pontada afiada como agulha em seus pulmões feridos, soando um som baixo pelas narinas por conta da expiração. O corpo tremia. Ela se acalma, e suspira. Sente dó. Tenta se comunicar com o cão, movendo calmamente a mão em direção a barriga do cachorro. O
animal grunhe fracamente e desiste. Não há mais forças para se defender. Toca a barriga do cachorro e sente o frio gélido que precede a morte. Sente um calafrio na espinha. Sente pena e culpa. Culpa por ter judiado, mesmo sem querer, de um bicho indefeso. Mas, ao mesmo tempo, sente um tipo de afeição esquisita por ele. Quer leva-lo para casa, mas sabe que não ia adiantar. Estava nos últimos suspiros. Se levanta e parte, tristonha. Em casa, o único som que se escuta é o ronco de dor do avô deitado em seu quarto. Havia chegado e feito um mingau para ele. Mingau de aveia. O olhar penoso a enojava. Abria a boca lento, mostrando os poucos dentes restantes em sua boca. Não mostrava o menor esforço para querer comer. Empapava o mingau como quase que mascando uma goma. Termina de alimenta-lo e a agradece com uma flatulência. Queria encontra-lo morto a qualquer dia, assim que voltasse do colégio ou da cidade, não servia para nada mais. Agora estava na cozinha, silenciosa, lendo receitas de doces e salgado, e ouvindo o ronco. A qualquer momento Carmen chegaria e não havia escolhido o que fazer. Pensou em uma torta ou um bolo, mas
queria fazer algo diferente, queria surpreender a menina. Carmen, com seus longos cabelos castanhos, era uma de suas únicas colegas. A maioria das pessoas que considerava serem suas amigas eram filhos de amigos distantes de seus pais ou uns poucos colegas no colégio. Conhecera Carmen a pouco tempo e queria surpreende-la, causar uma boa impressão. Tinha aquela necessidade. Necessidade das pessoas a acharem uma boa pessoa, não ter inimigos, ser adaptável, afável. Escuta a campainha e corre até a porta. Era ela, com uma tiara azul prendendo o cabelo, um vestido floral e uma cara apática, mascarada por um sorriso. Oi. A convida a entra. Obrigada. E então? Decidiu algo para fazer? Diz que estava pesquisando, procurando, alguma receita, mas não havia escolhido nada até então. Que tal brigadeirada? Tô com uma vontade de comer chocolate. Ela concorda em fazer, mas se sente arrependida pela decisão tão simples e nada surpreendente. Reúnem os ingredientes e começam a fazer. Enquanto misturava, Carmen pergunta
da onde vinha aquele ronco. Explica a situação do avô doente. Tá com o pé na cova, não é? Ela concorda com a cabeça, movendo-a lentamente, e Carmen pede condolências adiantadamente. Diz que está tudo bem, e que o médico que tinha visitado eles e consultado o avô havia dito a seus pais que ele não duraria mais um mês. Mas no fundo, ela queria rir, não sabia ao certo o por quê , mas queria rir. Põem a massa no fogão e continuam a misturar. Quinze minutos depois está feito. Deixa eu provar primeiro. Agarra a colher de pau e pega uma quantidade generosa de brigadeiro. A boca de Carmen fica toda lambuzada. E sorrir com os dentes sujos. Ela pega a colher e recolhe uma quantidade transbordante de chocolate derretido. O leva até a boca e dá uma mordida. Os lábios sentem a massa doce escorrer na boca, mastiga o chocolate derretido como quase que mascando. Fecha os olhos sentindo o chocolate, quase babando. Carmen a observa surpresa. Pergunta o que houve e ela aponta á colher de pau. Seu dente! Fita a colher. Lá, encravado no chocolate, está o dente, o canino direito.
Com seu brilho fosco amarelado, uma estrela solitária no céu achocolatado. Na manhã seguinte, a caminho do colégio, toma a mesma trilha de sempre. As mesmas ruas de pedras, os mesmos sobrados e barrados, as mesmas pessoas... Dobra em uma rua com uma calçada desnivelada e malcuidada. Lembra-se do dia anterior, a companhia com Carmen e o modo teatral como ela se portava, do dente caído que havia colocado debaixo do travesseiro a noite, na esperança de que pela manhã, haveria em seu lugar uma moeda, encontrando-o, porém, o dente no mesmo lugar ao amanhecer. É tomada por um vazio no peito. Sentia-se como um cão solitário e vira-lata. É, então, tomada de surpresa, percebe onde estava. Recua alguns passos e olha por entre a grama ainda com gotas de orvalhos sobre elas, e o cão já não estava mais lá.
Ao Pedro Cobiaco, a Nicole Koutsantonis, ao Jopa Moraes, por me terem feito ver, e acreditar, que é possivel seguir em frente com projetos e todo meio de arte. Ao Gabriel Barretto por ter aguentado quase 5 anos, desde quando eu comecei com tiras feitas no paint até aqui. A Wagner Michael e a Wendell Cavalcante por me mostrarem que existe um sub-mundo dos quadrinhos nessa cidade. Enfim, agradeço a todos que leram e viram, ou até mesmo espiaram de forma timida, algo que eu faço. Obrigado.
Victor H ĂŠ aspirante a escritor e a desenhista. Mantem dois blogs, um de textos ( http://toureiropsicodelico.blogspot.com.br/ ) e outros de desenhos( http:// thevictorh.blogspot.com.br/ ). Mora em Natal/RN. Participa da Loki, um coletivo de jovens artistas de todo o Brasil.