EsfingE

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Victor Del Franco

E SFINGE


Copyright p 2010 - Victor Del Franco Este livro, integral ou em partes, pode ser usado para fins não comerciais desde que sejam citados o nome do autor, o nome do livro e o link correspondente.

Capa, projeto gráfico e revisão: Victor Del Franco

victordelfranco@gmail.com

Franco, Victor Del, 1969 EsfingE / Victor Del Franco. São Paulo: Edição do autor, 2010. 1. Poesia brasileira

2010 Publicado na Internet

I. Título.


O sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo. Mircea Eliade


fere o fio da navalha no meio-fio da meada cortando as veias de asfalto por onde flui o sangue tenso que escorre aos subterrâneos do turvo medo oculto por detrás de muros imundos e paredes erguidas em concreto armado até os dentes das novas arquiteturas envelhecidas nas alturas de edifícios que arranham os céus carregados de poeira e fumaça por onde vaza a seca luz do Sol insondável

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fere a fina retina dos olhos a luz ilusória das telas que trans figuram os fatos em teatros do real, em cenas e cenários reluzentes que invadem as casas, quartos e salas, todos os cantos e recantos do seu refúgio inviolável a sua poltrona mais confortável a sua atenção mais atônita o seu silêncio mais soturno diante de mosaicos modernos de vidro e violência

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fere a fina pele dos dias a fome voraz dos tempos con tempo râneos metal encravado nos corações que correm ainda mais atrás do tempo sem tempo de ser tempo o tempo que voa veloz em ciclos constantes a re volver o próprio Tempo

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tic ta c t ic tic tac tic tac t ac tic tac tic tac ic tic

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ac tic tac t t c i t ic c t a ac tic tac t t c i t ic ac tic tac tic tac ti t c

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e mais um dia que contém todas as manhãs de um novo dia mais um dia escavando as camadas contidas em muitos outros dias dia após dia sol após sol e um outeiro nasce do oceano primordial dias de uma outra dinastia uma civilização construindo identidade ainda construindo muito mais que moradia dia após dia pedra após pedra alicerces do Antigo Império sob os pés de Menes pequena Mênfis às margens de divinas águas cheia após cheia sol após sol

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Rá, senhor de Maat, proclama soberano: venha junto nessa travessia que corta o céu numa barca até mergulhar no escuro abismo, líquido caos onde Apófis serpenteia o ritual da eternidade navega entre os mortos, litanias para sair à luz e atingir a esfera celeste por onde flui a passagem dos dias sou o supremo Sol, a alma clara e primordial; sou aquele que em clamor criou os deuses todos e as mil feras do mundo inferior; sou o Senhor que sai da escuridão, lá de onde as frias formas da existência fazem cela e severa moradia; sou aquele que vem do limite extremo, sou ontem, hoje e amanhã e ainda tenho o dom de renascer

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salve, Senhor do altíssimo santuário! salve, divino Sol em plenitude! em todos recantos da Terra os homens fazem festa em teu louvor salve, Senhor do altíssimo santuário! salve, divino Sol em plenitude! teu coração se alegra e canta por essa formosura na manhã salve, Senhor de imensa trajetória! derrama a tua bênção sobre mim e que meu coração seja leve agora e na hora em que for posto na balança para receber a inevitável pena salve, Senhor de imensa trajetória! fortalece meus braços e pernas para que eu possa abrir passagem neste covil de feras e demônios

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vou pelos átrios subterrâneos e enquanto meu sangue corre em lava eu avanço entre as garras de todos que se juntam contra mim sou o guerreiro mergulhado em trevas sou o guerreiro nas trilhas de cegas possessões sou o guerreiro tornado breu pronto a enfrentar as batalhas do mundo inferior 11


venha, Senhor do abismo, venha com suas armas, armadilhas e estratégias! venha, Senhor do abismo, com toda a fúria que está em ti! venha, Senhor do abismo, e não adie um só instante a hora do inevitável confronto!



salve, Senhor do altíssimo santuário! salve, divino Sol em plenitude! acolhe então o coração que pulsa e percorre as voltas e revoltas da travessia salve, Senhor de imensa trajetória! pois agora, após as grades da escura cela, o meu espírito alça voo e alcança o azul na presença de teu esplendor sou o guerreiro que agora sai à luz sou o fôlego que incorpora os ventos em ascensão sou a força que renasce em sabedoria e consciência sou a trilha por onde caminho e deixo pegadas sou o filho da terra e aqui minhas sementes germinarão

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sou ontem, hoje e amanhã, desci e entrei no mundo inferior feito homem sem compreensão, renasci com o espírito em fortaleza e assim sempre será na eternidade dia após dia pedra após pedra outro monumento outro templo outro centro outra cidade Eridu Larak Sippar Shuruppak outra realidade entre águas que se espalham pelas margens moradas dispersa diversos povoados que disputam o mesmo espaço

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terra entre rios entre muros e muralhas Suméria: desde o nascer ao pôr-do-Sol Suméria: de muitos rebanhos, leite e mel Suméria: de colheitas em planícies irrigadas Suméria: os deuses todos olham por ti Enki conduz o arado sobre a terra e desenha as artérias dos sagrados sulcos Ninurta estende as mãos sobre os campos e os grãos germinam em flor e fruto Ziusudra humana centelha que acende fogueiras para celebrar a mesa farta de pão e cevada

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na alvorada, Utu desponta em Mashu e conclama: eu sou o esplendor de Dilmun e o Senhor do portal do leste, eu danço no céu e abraço a terra em toda a sua extensão e nessa longa trajetória eu desço às profundezas para renascer através dos séculos do alto de um zigurate ouve-se um clamor: salve, Senhor das alturas! salve, divina luz da imensidão! venho pedir a tua força pois preparo uma jornada salve, Senhor das alturas! salve, divina luz da imensidão! o destino reserva a todo homem o mesmo infortúnio, mas em lápide alguma ainda não foi esculpido o meu nome

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salve, Senhor das alturas! salve, divina luz da imensidão! já ergui os olhos para as esferas do norte, observei os astros do leste, voltei-me às luzes do sul e olhei as nuvens do oeste contemplei o céu por completo e anotei os seus presságios, aprendi a lei das estrelas e de todos os corpos celestes tracei no chão o esboço de mil constelações e marquei com pedras o halo de cada magnitude reflexo inverso, pequeno espelho desconexo eclíptica eclipse equinócio salve, Senhor das alturas! salve, divina luz da imensidão! agora preparo uma jornada para desbravar a caverna onde habita a terrível fera se o temor sondar meu coração e o horror espreitar meu espírito o teu lume será meu escudo e minha fortaleza prevalecerá

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terra entre rios entre guerras e territórios aqui e ali casas vulneráveis aqui e ali um instável domínio aqui e ali a todo instante a batalha se anuncia dia após dia sol após sol e mais um dia acorda e incendeia a cidade a cabeça inerte o corpo inerte a alma inerte inerte cidadela o instante em que o despertar torna-se armamento o seu uniforme impecável dos pés à gravata a bravata na ponta da língua o amargo café engolido às pressas no giro das engrenagens

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tropas em trânsito seguem sua sina pelas ruas ao passo em que o tempo invade os domínios da autarquia devastando um mundo vasto escritórios consultórios diretórios departamentos documentos por favor nome: endereço: telefone: identidade: e o tempo invade as construções e escala os andaimes da cidade e se infiltra pelas frestas das janelas pelos vãos embaixo das portas por todos os poros do seu corpo que lentamente vai e se esvai no fluxo da ganância que corre no sangue e alimenta o moinho das civilizações dia após dia hora após hora

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habitaçþes modestas de argila e tijolos são erguidas em outras cidades vias e ruas de Harappa e Mohenjo-Daro ancestrais que amanhecem e adormecem numa estrutura de castas sacerdotes guerreiros senhores e servos banham-se em rios e em crenças milenares

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Hastinapura em conflito: uma guerra muito mais que física eclode ao redor Arjuna e seu mestre em meditação sobre o campo de batalha, navalha suspensa entre o Bem e o Mal sacerdotes guerreiros senhores e servos seguem o fluxo e purificam-se em águas sagradas 23


ano após ano ciclo após ciclo árduo caminho de mil voltas, veias e artérias na eterna sucessão dos impérios do Nilo ao Indus outra supremacia de Susa a Sardis outro percurso

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o torvelinho do tempo e das águas gira em carne viva e no embalo da manhã expressa o dia se arrasta diante de seus olhos entre divisórias precárias de um rotineiro escritório, ordens de urgência urgentíssima soam exasperadas o prazo é sempre curto pra tanto compromisso (e qual é mesmo a importância de tudo isso?) e-mails e arquivos na memória papéis e relatórios sobre a mesa gira inquieta a monotonia das horas nas salas de trabalho e através das janelas do edifício a vista alcança os limites da Terra fronteira azul em perfeita curvatura gira inquieta a monotonia das horas e numa fração de silêncio o absurdo sentido das coisas ilumina a impermanência

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azulecer

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( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ (.. ..) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ (.. ..) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) fronteira onde o corpo flutua além da percepção, além da razão do próprio corpo. fronteira além do azul, safira repleta. dimensão que se expande ao infinito na leveza que ultrapassa o impossível, alma em translúcida atmosfera, esfera do espírito, dimensão do olhar que alcança o invisível além dos sentidos( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ (.. ..) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( singularidade ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ (.. ..) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( dissolve-se no ar um estado de consciência, vivência no despertar da mente e do coração, a centelha original em completo entendimento, energia que envolve a matéria em constante alteração ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ (.. ..) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ (.. ..) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ )

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azulecer

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fogo celeste samadhi e quietude altitude num voo indizĂ­vel

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azulecer

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voo além do urbano, além do arranha-céu profano

(a n) (t i) (a x) (i s) (m u) (n d) (i

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toca o telefone e o azul desaba 33


outro monumento outro templo outro centro outra cidade outra realidade em torno das águas que se espalham pelas margens Pinheiros e Tietê de Piratininga vila fundada ao som de missas e missões missas no pátio missões no colégio, a catequese em nome de Deus e na Companhia de Jesus Anhangá Anhangá Anhangá

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a doutrina da Igreja e os interesses da Coroa em boa companhia Anhangá Anhangá Anhangá os espíritos fogem do massacre e se abrigam na floresta Anhangá Anhangá Anhangá cabe indagar: canibais sem alma, quem eram? quem são? povoado vila cidade metrópole Amém

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fim do expediente a volta pra casa nas voltas do labirinto, esquinas e travessas da travessia incerta placas e setas que apontam descaminhos, fr谩geis destinos estampados em far贸is, olhos vermelhos que invadem o final de tarde e congestionam a noite em meio ao caos do ocaso

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a concepção de tempo e espaço que envolve a cidade deixa de fluir em sua órbita natural ruas e avenidas encerradas na velocidade imóvel das máquinas nas calçadas deformadas, milhares de pernas apressadas que não chegam a lugar algum 37


na arritmia contemporânea o homem neolítico segue em sua aventura pedestre o homem neolítico ainda cria seus deuses inacessíveis o homem neolítico carrega seu celular com centenas de conexões

( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ (.. ..) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ (.. ..) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ (.. ..) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ (.. ..) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ (.. ..) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ (.. ..) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) _ ) ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ ( _ (..

o homem neolítico permanece incomunicável

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silĂŞncio

os deuses nĂŁo respondem

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o homem desconexo procura algum sinal

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silêncio

não foi possível completar a ligação

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o homem esfacelado procura a sua face, algum rosto que se reconheça no espelho trincado das cidades o homem reduzido a quase nada quase nano quase não nanocircuitos de alguma tecnologia inovadora

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sinapses traduzidas em processos binários, memórias sintéticas com bilhões de giga bytes 0 h0mem d1g1tal1zad0 em t0d0s 0s seus cód1g0s 01000001 - 01010100 01000111 - 01000011 01010100 - 01000001 01000011 - 01000111 o homem de gene rado e a vida reduzida a quase nada quase nano quase não 43


0 h0mem ne0lĂ­t1c0 permanece 1nc0mun1cĂĄvel

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01110011 01101001 01101100 11101010 01101110 01100011 01101001 01101111

a palavra reduzida a quase nada

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e nessa trajetória vista em perspectiva a cidade cresce sem pontos de fuga a cidade cresce sobre camadas de entulho, ossos anônimos e restos esquecidos a cidade arqueológica enterra o seu passado camada por camada e os espíritos de todos os índios indigentes fazem pajelança ao redor de uma oca petrificada

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q

aja ú

j

a ab

iru * moema ja çan arand c a ãg r uar

cotoxó * ipiranga

ja

moo buci cam uá rag

óg or

zes ana i a u

tatuapé mor umbi aim sum * it a r tã é*

pac aem

bu

tan bu

ibirapuera

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ca tucuruv i * imi rim

ito r


a cidade arqueológica enterra o seu passado camada por camada e, no entanto, entre os resquícios da memória o inesperado vem à tona na ladeira da Jandaia e a história se revela em arcos e arcadas a cidade arqueológica sobre vive em obras camada por camada e se alimenta das sobras da estrutura asfalto concreto vidro metal encravado nos corações que correm ainda mais atrás do tempo hora após hora pulso após pulso

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e sem pausa ou descanso a noite imprevisível se oferece em sorrisos de néon representação das trincheiras imundas onde as almas se aglomeram em busca de incertezas a vida só se vale pela Vontade? resposta alguma satisfaz e a primeira dose é bem-vinda nas mesas ao redor o rumor de conversas entrecruzadas ecoam em ressonâncias sem sentidos a seiva do Ser habita o sagrado? resposta alguma é precisa e a segunda dose ainda é pouco

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o olhar vitrificado afoga seu abandono no fundo do copo meio cheio meio vazio no meio da cidade em dissolução a decadência do corpo é a providência do profano? resposta alguma é necessária e a terceira dose não é o bastante um lapso uma fissura uma voz estrangeira e ancestral invade o coração em chamas do homem neolítico por que não embarcar na travessia e mergulhar na madrugada? resposta alguma é suficiente e a quarta dose completa a saideira

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passos embriagados seguem sinuosos enquanto a luz se propaga em linhas tortas ( ) ( ) ruas sem prumo no meio do universo curvo reflexo inverso, pequeno espelho desconexo a vida toda em linhas tortas os deuses n達o respondem os deuses n達o falam os deuses n達o escrevem nem em linhas tortas 51


o homem neolĂ­tico permanece incomunicĂĄvel

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silêncio

a Sé reduzida a quase nada

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escadaria de pedra solidĂŁo em ruĂ­nas marco zero e catedral

o suor impuro escorre pelo rosto e umedece o olhar perdido na distância

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no alto campanĂĄrio os sinos alucinados produzem doze abalos e o som que se espalha sussurra em desafio blem... decifra-me blem... decifra-me blem... decifra-me e o sussurro quase surdo ressoa nos princĂ­pios da incerteza blem... decifra-me blem... decifra-me blem... decifra-me

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no efêmero de cada segundo o Tempo faz-se infinito no cerne de cada milésimo uma parcela da eternidade blem... devoro-te blem... devoro-te blem... devoro-te então a cidade desaba a cada volta dos ponteiros no relógio e o homem definha a cada golpe do destino na memória blem... devoro-te blem... devoro-te blem... devoro-te 57


a torre da catedral nĂŁo esconde as rachaduras e mesmo assim aponta ao imensurĂĄvel

(a n) (t i) (a x) (i s) (m u) (n d) (i

58


silĂŞncio

o centro reduzido a quase nada

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vozes rodopiam em tumulto no labirinto inconsciente: ___(_(____)___ _ não ) _ ) _ há _ seiva _ nem _ sagrado ( ( na _ ( _ ( Vontade _ do _ Ser _ ) _)____(___)_)___(_ ( não _ há _ seiva _ nem ( _ ( sagrado _ ) _ _ ) _ ) na _ Vontade _ do _ Ser _ ( _ ( _ ( não _ há _ providência _ _ _ _ _ ) não _ há _ providência _ ) _ ) _ _)___)_(_(___)_(__ ( e _ o _ profano _ habita _ o ) _ ) cerne ( ) _ do ( _ ( corpo _ que _ se _ inflama ) _ ( não _ há _ seiva _ nem _ ) _ )sagrado ( ) _ _ na _ ( _ ( Vontade _ do _ Ser _ ) __(______(__)_)__ _ ( _ ( não _ há _ seiva _ nem _ sagrado _ ) ( _ na _ Vontade _ do _ ) _ ) Ser ( _ _ ) _ no _ ( _ ( abismo _ do _ corpo _ ( ( a _ cidade _ em _ ) _ ) decadência _ ( _ _(_(__(____)__(_____ _ não _ há _ ) _ ) Providência _ _ _ _ _ _ ( não ( _ ( _ há _ Providência ( ____)__)_)______ e a vida reduzida a quase nada quase nano quase não

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( ) ( ) ( ) ( ) ( ) ( ) (

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na altura do zĂŞnite, uma supernova 62


luz de estrela que explode em remota constelação substância que incendeia o insondável na breve ruptura do espaço luz de estrela que atravessa o tempo e invade as ruínas do homem o horror diante da imensidão que envolve o firmamento, o horror diante do Nada o vazio que se estende para além do desconhecido, resíduo disforme que reverbera em ondas desmedidas o limiar entre dois mundos na imagem que transcende mysterium tremendum hierofania que inaugura a existência, experiência numinosa num pequeno arco de translação

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a cidade deixa-se perceber como Cosmos no instante em que transfigura o Caos o homem percebe-se espírito no instante em que a vida se revela sagrada referência primária do Tempo original quando nenhum tempo ainda havia o Tempo primordial tornado presente numa sucessão de eternidades, a diversidade dos ritmos que o homem vivencia em sua pequena travessia, rito de passagem da substância que volta à origem para renascer: o homem in statu nascendi a cidade in statu nascendi o Sol in statu nascendi

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e nas calçadas da madrugada pouco antes do alvorecer na penumbra dos bares sem alma pouco antes de esmorecer o homem neolítico incorpora pouco antes do alvorecer um pobre diabo transtornado pouco antes de esmorecer um homem louco e embriagado, talvez mais lúcido que a luz deste alvorecer pronunciando seu discurso desafinado pouco antes de esmorecer vida! vida singular e diversa, verso menos que alba, alma menos que sopro, corpo: coisa nenhuma

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vida! vida vivida e por viver a minha vida como este cĂŠu entre claro e escuro mais escuro que claro a minha vida escura se afoga nesse breu se afoga nessa imensidĂŁo disforme, nesse mar de estrelas ardendo no vazio inconstante ritual da passagem dos dias erguer casas templos e cidades, muros e muralhas por todos os lados e em cada canto e em cada canto um pranto aflora em desatino

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nenhuma fonte nenhum oásis nenhum refúgio inviolável garante a paz e a segurança absurdo medo entre paredes, absurdo espanto o meu espanto ofuscado pela luz desta cidade a luz que me absorve e absorve o espelho ancestral que se estilhaça a cada dia respiro o cheiro forte de combustível queimado respiro a podre fumaça que invade os pulmões respiro a poeira de todos os dias dia após dia após dia após dia

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o homem então se cala e o silêncio paira nas calçadas nos degraus da escadaria apenas os degraus nos pontos de ônibus apenas os pontos nas portas das lojas apenas as portas sentado no meio-fio o homem olha ao redor : nada olha a praça : ninguém olha para si mesmo : deita-se no asfalto e fecha os olhos fecha-se para cidade fecha-se por inteiro no fio da navalha deseja a morte e espera _____(fetal)_____

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entre as voltas do acaso o vento se manifesta num sopro furtivo a respiração quase nula enquanto o céu gira ensandecido a secura na boca o suor nas mãos mas a morte não vem os edifícios em silêncio as esquinas em silêncio os orelhões em silêncio parece haver um terno respeito da cidade perante o homem e sua dor silêncio nas placas silêncio nos cartazes silêncio no alvorecer na boca do homem : silêncio mas em seu interior outra voz está em ebulição com o mesmo vigor de instantes

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outra voz que está prestes a nascer com os primeiros raios de Sol explodindo na manhã outra voz que rasga o fino véu sombrio e se infiltra no vazio dos alicerces outra voz que corta o asfalto o concreto o vidro e o metal

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disparo contra a cidade todo res sentimento represado disparo em cada canto em cada banco em cada porta de edifĂ­cio disparo em cada orifĂ­cio que estiver na minha frente disparo no marco zero e no arco da catedral

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disparo em todo excesso de asfalto concreto vidro metal disparo em todo processo de crescimento desordenado disparo contra a cidade toda ang煤stia acumulada disparo a minha agonia dia ap贸s dia ap贸s dia ap贸s dia 73


e o homem em solitário abandono, urinando no meio da praça no meio da cidade, passa a refletir internamente [o asfalto completa o concreto que completa o vidro e completa o metal um completa o outro outro completa o um o asfalto completa o concreto que completa o vidro e completa o metal nem um é o outro nem outro é o um mas todos se completam e apodrecem nos alicerces desgastados um no outro outro no um o corpo da matéria em silêncio apodrece]

74


e o homem com o sexo entre os dedos, sentindo o cheiro da urina que se espalha, olha para o alto surgem as primeiras explosões do Sol que incidem nos vidros e estruturas dos edifícios as primeiras explosões do Sol fundindo luzes e cores em suaves tons inebriantes as primeiras explosões do Sol que causam sensações quase anestésicas no tal homem as primeiras explosões do Sol que há bilhões de ciclos resplandece

75


e ele, mergulhado em seu silêncio reflexivo, fica extasiado com os efeitos de luzes na manhã e seus olhos voltam-se ainda mais para si mesmo e então o homem se reconhece como sendo o Sol que incide no asfalto no concreto no vidro e no metal ele se reconhece como sendo toda essa estrutura em que o asfalto completa o concreto que sustenta o vidro e risca o metal ele se reconhece como sendo uma massa disforme de asfalto envolto pelo concreto com estilhaços de vidro e metais retorcidos em seu interior

76


ele não se reconhece conhece desconhece e não mais conhece o que se conheceu não reconhece o juízo que se perdeu tudo então se mistura num imenso jogo de nuances sem sentido um amontoado de fios e linhas que estão além dos objetos palpáveis tudo se entrelaça nesse emaranhado infinito o corpo ao homem o homem ao mundo o mundo ao universo o universo ao corpo

77


e assim como na cidade os quatro elementos se completam e apodrecem o corpo o homem o mundo e o universo seguem a mesma inevitável trajetória nem um é o outro nem outro é o um mas todos são os mesmos na essência ( ) ( ) e de repente tudo atinge o incerto fluxo do intangível

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Tempo infinito maldito Tempo já que é impossível decifrá-lo venha então me devorar o mesmo vale pra você insignificante metrópole metrópole gigante e ao amanhecer o homem neo lítico prossegue trançando as pernas e vomitando sua áspera náusea vomitando e andando vomitando e andando vomitando em seus passos em falso para evitá-los novamente vomitando e andando vomitando e andando vomitando a sua angústia carnal o seu grito visceral vomitando e andando vomitando e andando vomitando todo asfalto concreto vidro vomitando todo metal ingerido

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pois todo metal tem seu brilho e sua podridão e todo dia tem sua luz e sua treva assim como toda barca que atravessa o céu tem seu inferno e a junção dos contrários encontra morada constante nas camadas da alma humana de onde ergue-se imponente no centro da cidade a fria e insondável ESFINGE

81


Victor Del Franco nasceu na cidade de São Paulo em 1969. • Editor da CELUZLOSE - Revista Literária Digital ( http://celuzlose.blogspot.com ); • Durante o ano de 1994 participou das atividades do Grupo Cálamo realizadas na Casa Mário de Andrade; • Entre 1995 e 2005, produziu pequenos volumes de poesia chamados FÓTON (edição do autor); • Participou da organização da FLAP! de 2006 a 2008; • Em 2007, fez parte da organização do Tordesilhas Festival Ibero-americano de Poesia Contemporânea; • Colaborou com O Casulo - Jornal de Literatura Contemporânea de 2006 a 2008. • Livros publicados A urdidura da tramA (Giordano, 1998) O elemento subterrâneO (Demônio Negro, 2007) EsfingE (Edição do Autor, 2010). • Participou das coletâneas de poemas Oitavas (Demônio Negro, 2006) Antologia Vacamarela (Edição dos Autores, 2007).


IN HOC SIGNO VINCES


( ( ( ( ( ( (

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