Victor Del Franco
O elemento
subterr창neO
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Capa, projeto gráfico e revisão: Victor Del Franco victordelfranco@gmail.com
1a edição: Demônio Negro, 2007 2a edição: Edição do Autor, 2010
Franco, Victor Del, 1969 O elemento subterrâneO / Victor Del Franco. 2a edição - São Paulo: Edição do autor, 2010. 1. Poesia brasileira
2010 Publicado na Internet
I. Título.
Victor Del Franco
O elemento
subterr창neO
SUMÁRIO
a Expiação............................................................................11 CERNE Gênesis ..............................................................................15 Carne viva..........................................................................16 Escavação ..........................................................................17 Adão e Eva........................................................................20 Asfalto................................................................................21 Cavalo de Troia.................................................................24 Reações nucleares.............................................................25 Cosmogonia......................................................................31 Gestação ............................................................................32 Cor......................................................................................42 Ecos ...................................................................................44 Ícaro ...................................................................................45 Singularidade.....................................................................46 A dantesca via...................................................................47 Vesúvio ..............................................................................48 O elemento subterrâneo .................................................49 História sem fim...............................................................54 O Evangelho de Judas.....................................................55 Clepsidra............................................................................56 Mar Morto.........................................................................58 Angular ..............................................................................60 Lã........................................................................................61 Nag Hammadi ..................................................................62 Anônimo ...........................................................................63 Ivan Karamazov...............................................................72
A arqueologia do Homem ..............................................73 A safira e o caos ...............................................................74 Dispersão...........................................................................76 Pesadelo.............................................................................77 RESÍDUOS A decomposição do pensamento ..................................81 O corpo em decomposição ............................................82 Nihil ...................................................................................83 Acampamento ..................................................................85 w Expiação II........................................................................89
O elemento
subterr창neO
A terra estĂĄ de todo quebrantada, ela totalmente se rompe, a terra violentamente se move. IsaĂas 24:19
EXPIAÇÃO covil de estranho e humano ardil, canil insano, tamanho e vil. no cerne meus vermes deponho. inferno: eterno retorno.
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CERNE
GÊNESIS e disse Deus: haja Lúcifer.
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CARNE VIVA ponho o dedo na ferida não para estancar o sangue mas escavá-la até o osso.
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ESCAVAÇÃO em meio a lugar nenhum, ossos e resquícios de uma história mal contada a cidade que emerge em ruínas revela seus pequenos pecados o fogo cerimonial é aceso para conter a ira dos deuses e o jovem guerreiro oferece o coração em sacrifício sobressalto de uma noite em descompasso falta de ar transpiração e o sol ainda nem despontou na moldura do quarto
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Dédalo ergue paredes tortuosas em sua própria cabeça travessia incerta alucinação a luz a luz a luz travesseiro de pedra ônibus em circulação vomitam carbono sem promessas o dia amanhece e ponto. lavar o rosto, espantar o sono e encarar o fantasma no espelho trinta e poucos anos – sim, estes ossos devem pertencer a um homem de uns trinta e poucos anos
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máscara sagrada de algum ritual, invocação dos espíritos: deuses da chuva deuses da terra deuses de todas as forças da Natureza, abençoai nossas plantações potes de cereais – sim, estes cacos de cerâmica nos dão mostras de uma civilização bem desenvolvida fazer as contas na ponta do lápis e separar o dinheiro do supermercado um quilo de batatas meia dúzia de tomates um pacote de arroz de um solstício a outro a Terra deixa sinais de suas translações.
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ADÃO E EVA entre o suave e o urbano entre o sacro e o profano entre o sábio e o insano na fronteira entre mitos e civilizações a serpente atrevida então con vida: – em meu ventre, entre!
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ASFALTO rígida pele na superfície escura das cidades, rigoroso destino entre os escombros urbanos ensurdecedora fúria de britadeiras revolvendo vias, removendo tudo aquilo que já não serve mais homens trabalhando abrem o caos fecham o caos e o intransitável segue o seu infortúnio sobre as feridas mal ci ca tri za das primeira segunda terceira quarta quinta
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absurdas engrenagens devoram calçadas atropelam faróis regurgitam informações num ritmo insano de condicionamentos mecanizados autômatos em marcha quinta quarta terceira segunda primeira todos eles pontualmente atrasados: mil contratos para assinar, mil assuntos para resolver, mil e-mails para ler compromissos para não cumprir segunda terça quarta quinta sexta
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um dia tudo voltará a resíduo fóssil, betume que jorrou de profundas eras, vísceras e nervos alterados na química lenta e dormente das entranhas homens em marcha autômatos trabalhando todos encerrados numa cadeia de carbonos que move e embriaga o mundo todos em silêncio mudo sábado domingo feriado no asfalto abrasivo das ruas somente os restos mortais no chão de outros mais marcha ré ponto morto
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CAVALO DE TROIA o alicerce de concreto pela dor corro Ădo o corpo de metal pelo asfalto revest ido os olhos de vidro ocultam o vazio indev ido a cidade de agora e sempre em tempos idos na praça central um monumento abriga em segredo um surdo ataque prestes a eclodir ao anoitecer das luzes e da lucidez
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REAÇÕES NUCLEARES I atol de Mururoa sol, mar e... esqueça esqueça não era bem assim que eu gostaria de começar venha, vamos aproveitar o sol enquanto podemos, vamos observar o mar veja, meu amigo, veja como ele está agitado hoje, veja a sua fluida ferocidade veja... parece não conter-se em si mesmo sinta, meu caro, sinta em seus próprios pés a fúria com a qual ele nos quer sugar
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II eletromagnética nuclear fraca nuclear forte e a gravidade da alma que nos derruba que substância ou força impensável seria capaz de aglutinar um amontoado de partículas e dar-lhes vida? que ferida poderia ser curada sem essa mesma força ou substância? a que distância estamos do intangível? chega! o limite da insanidade é sinuoso e quase imperceptível, energias difusas distorções ruídos talvez seja apenas o meu juízo ou a falta de...
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breves tormentos do espírito minam a mente, sementes na aridez da solidão, na escuridão das cavernas porões calabouços esboços da Verdade jamais alcançada chega! em meu líquido abandono algo perturbador me puxa para baixo em tal circunstância onde o oxigênio? III Guerras Santas e Cruzadas residem nas contrações do coração e nada mais pode ser dilacerado com tamanha brutalidade uma pequena fissão aqui, outra ali um pouco mais ao sul e o oceano já não é assim tão pacífico travo uma surda batalha contra indizíveis linguagens e as palavras fogem constantemente
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um ano, um século, um milênio... que diferença faz frente ao infinito? lapsos de percepção alteram meu centro e já não sei onde me apoiar um fungo, uma flor, uma forma de vida... o que determina a função de cada uma das células no organismo? gaivotas deslizam rente às águas em busca de alimento enquanto eu rumino o meu próprio câncer não extirpado IV corro sem chegar, paro e permaneço sem saber vivo no silêncio que em si é minha morte venham, demônios, venham! venham cumprir o seu papel previamente determinado!
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venham, demônios, venham! venham, que de alguma forma serei capaz de devorá-los! não quero perdão nem piedade não quero nenhuma Terra Prometida eu já li a Bíblia do início ao fim e antes de respostas encontrei ali entre Sodomas e Gomorras, entre Egitos e Jericós, entre chamas, pragas e muralhas muito mais mistérios e contradições que em mim já havia encontrado e só por isso não tentem me vender a salvação em troca de ofertas generosas, não tentem me convencer que há uma doutrina exata e infalível eu não quero isso! não quero! V quero somente a minha serenidade, a simples e sedosa serenidade da alma
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VI às vezes o fôlego me falta e então me calo para contemplar o céu sobre o atol de Mururoa o sol ainda brilha, mas no fundo do mar... é melhor me proteger.
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COSMOGONIA
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GESTAÇÃO flutuações no disperso Espaço ou nem isso nada não havia bilionésimos de coisa nenhuma num piscar de olhos menos que flash menos que back menos que Planck anterior ao Tempo ou nada isso não nem havia energia que rompe o vazio e vibra no compasso de cordas e membranas à flor da pele ~
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sopro suave lúmen leve silêncio disforme ~
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ínfima estrutura sem re pouso algum in constante agitação vita ção grave \q / \u / \e / \b / \r / \a /
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queda nas dimensões além de qual quer força ainda em formação ou não isso nem nada havia (+)alvez for(+)e de (+)ão nuclear que fosse a união de par(+)ículas par( )es sem elo encon(+)ram as suas par(+)es: quarks (+) (+) (+) e assim (+)ê-los por in(+)eiro em par(+)icular pedaço e tudo se expande veloz veloz veloz
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instantânea luz infla cionária que é pura oscilação aos con fins do infinito rastro de ruídos por todos os lados numa radiação de fundo sem fundo algum ~
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e um calor extremo pra lá de febril envolve todas as fibras e filamentos des dobramentos de curvaturas e outras forças [m]atureza i[m]terna em fra[m]ca i[m]teração atração r e p u l s ã o atração r e p u l s ã o atração r e p u l s
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e flui enfim pelos dendritos, nervos e nervuras, um magnetismo mais que elétrico entre os corpos ou nada isso não nem havia ~
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um dois três quatro quatro três dois um caudaloso rio de contrastes águas claras escuras matérias {anti- } embate entre opostos que se anulam nas entranhas neutralização e neutrinos
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nêutrons entre cargas contrárias hidrogênio hélio fluxo inflamável no interior de nuvens e aglomerados que se condensam: sangue e plasma e tudo gira ao redor e tudo gira ao redor e tudo gira ao redor e tudo gira embriaguez no abismo da memória ínfima centelha e esferas se incendeiam
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no escuro ventre explode uma supernova e toda a síntese de elementos que então se inicia ou nem isso nada não havia
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COR o sol esmorece no coração e todo o corpo à míngua espessa matéria sobre si mesma em precipício alucinações do infinito e da memória: es gravitações melancólicas do crepúsculo: car resquícios de um céu em chamas: la hemorragia silente do entardecer: te
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sem nenhuma bênção a cidade se ilumina com artérias de né on
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ECOS desliza na manhã um albatroz, aberta envergadura em ventanias de onde avista cardume em águas frias e ávido então mergulha bem veloz. no escuro abismo após a queda atroz o que era voo agora é agonia e o que era canto, agora litanias que ecoam através de estranha voz. um corpo extenuado e terminal nas garras de Satã vira refém de agudo cativeiro sem moral. não há prece no caos nem digo amém, neste covil as flores são do mal e as chamas desta cela, ardente spleen.
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ÍCARO não fosse a insensatez o sol que então farol jamais seria algoz
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SINGULARIDADE habito um território inusitado nem monstro colossal, nem bela musa, nem mesmo fada ou bruxa nesse Nada; cego vácuo onde o som já nasce surdo partículas do Tempo bem ao lado explodem como esferas pelo escuro, oculta dimensão desfigurada onde esconde-se a chave do Absurdo no Espaço-Curvatura em que medito faz-me aflito uma atroz Singularidade pois tudo aqui é efêmero e infinito e tudo está beirando a insanidade – o mistério divino é tão bonito e afinal, onde as auras da Trindade?
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A DANTESCA VIA no escuro da selva e sem direção: avante norte norte norte quem é tua bússola? quem em tua vigília? avante avante avante acaso encontrarás a diretriz? norte norte norte percorrendo terras que nunca dantes avante avante avante mesmo que, para isso, nada encontres.
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VESÚVIO demônios confinados em crânios herméticos destroçam os ferrolhos, grades e cancelas forçam passagens, vias secretas, vielas e todos pelo enxofre impregnados, fétidos. tremores mil num solo rochoso e assimétrico anunciam tormentas, provocam procelas e os loucos ancestrais fogem pelas janelas; são lúcidos e cegos, são tristes, são céticos. imponente Pompeia em sua formosura: claridade nos campos, fontes cristalinas, tão lúdica e tão bela achando-se segura mas a força do túrgido sangue descerra rebeliões ferinas, fúrias intestinas e o inferno explode em lavas do fundo da Terra.
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O ELEMENTO SUBTERRÂNEO a trito a troz a trito a troz a trito a troz a tran quila tarde a trito a troz a tran quila tarde não
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a través a través não há trégua sangue e lava a traves sam o coração das trevas a trito a troz a trito a troz a trito a troz
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á trio corpo e Terra a través a través a traves sia incerta a tran quila tarde trom betas a troar a tran quila tarde não a tacar a tacar
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a troçoar muros e muralhas a tacar a tacar não há trégua o grande Deus a troçar e quem se a treve con trariá-lo? a tacar a tacar
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a trito a troz a trito a troz a trito a troz a trição nas trevas não há trégua a través a través a traves sia tec tônica
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HISTÓRIA SEM FIM repensar escrituras de estrutura milenar remontar o modelo do governo secular céu mutável chão instável reciclar? Deus tamanho ser humano religar?
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O EVANGELHO DE JUDAS ap贸s o beijo, Ele olhou fundo em meus olhos, sorriu em pupilas e ofereceu-me a outra face.
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CLEPSIDRA rebento? jovem? ancião? os estilhaços da Esfinge são agora fragmentos de um mosaico indecifrável imagens da vertigem dos tempos águas em rede moinhos nossos dias são no exato instante e desde sempre antigos? medievais? modernos? princípios de incertezas estopins e paradoxos numa colisão de partículas revelando outras tantas indeterminadas bósons? mésons? fótons? nossas horas contemporâneas já não sabem exatamente o sentido de seu fluxo pré-histórico? pós-moderno? sem saída?
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quiçá voltar ao Verbo para alcançar a redenção da carne o enigma ainda pulsa dentro do peito Pai? Filho? Espírito Santo?
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MAR MORTO fantasmas que deslizam pelas cavernas da alma devoram em silêncio os manuscritos da guerra os filhos das trevas os filhos da luz num conflito final e sem fim a sucessão dos impérios e o eterno desacordo entre eles a violência olho por olho e o ranger de dentes o ferro e o barro nos pés da estátua tudo conforme o esperado pagãos e fariseus: ruminem a linguagem dos profetas soam as trombetas dos anjos guardiões de Qumram
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vulcões, tempestades, terremotos (a fúria da natureza é só um detalhe a mais na estratégia) desígnios e determinismos selam a vitória dos Eleitos e em seu jazigo não há juízo nem juiz.
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ANGULAR da humana bomba feita em estilhaços não sobraram sequer os parcos dentes nem as pernas ou braços renitentes permaneceram firmes em seus traços ao redor tudo está em mil pedaços sagrado altar, colunas e inocentes pois que estavam em preces reverentes e agora choram sangue nos regaços em linhas tortas, rígidas escritas já que a sentença é certa e o homem sofre nos escombros da Terra ensandecida seja em simples capela ou templo nobre igrejas, sinagogas e mesquitas no fim não restará nem pedra sobre.
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LĂƒ des fio o fio da fi na malha no fio da na valha des a fio
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NAG HAMMADI sem beira na eira do nada um passo além queda em palavras espelho de mil frases | faces em estilhaços variações da imagem frente ao intervalo apócrifo onde as tramas do tecido ressecam sobre a relva sol e rama | amarelos elos sem termo Tomé ad infinitum re | v | er para crer
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ANÔNIMO desperta dor dispara banho, terno e gravata um nó na garganta e a corda no pescoço agenda na mão e em dois goles engole o café engole o atraso engole as ruas engole as escadarias do metrô goela abaixo < Paraíso > empurra-empurra empurra-empurra empurra-empurra
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acomodação quase nula em compartimentos restritos e o trem avança e desliza em seu profano dis curso em nome de algum governo devora o vazio devora o túnel devora o aço dos trilhos goela adentro breu em demasia nos intestinos da cidade velozes vagões rompendo barreiras rompendo dimensões rompendo a estrutura temporal do espaço < Ikebukuro > empurra-empurra empurra-empurra empurra-empurra
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hoje e sempre sempre a mesma segunda-feira sempre cheia volta e meia um dia insano além do Sol Nascente dispara dor desperta a Verdade Suprema dá o ar de sua graça e um cego espírito em trajes de monge iluminado sopra o seu antifôlego em química letal fósforo e flúor flutuam livremente em favos e afagos de sarin organismos desintegram-se em espasmos, vômitos e sangramentos
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a turva visão mal consegue divisar o colapso central de um sistema nervoso agonizante corpos retorcidos debatem-se em derradeira asfixia empurra-empurra empurra-empurra empurra-empurra em algum lugar remoto que nem deve estar no mapa, dona Celeste separa os ingredientes de uma receita que aprendeu com a mãe de sua mãe de sua mãe de sua mãe a mesa e as cadeiras em volta do forno à lenha estão impregnadas de estórias assombrosas que são relatadas por séculos a fio no interior das casinhas do pequeno vilarejo mas tudo são farelos de vida sem importância alguma para o fluxo da metrópole que segue viagem em sua urgência estonteante
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rasga o dia rasga a noite rasga as fibras da memória em frágil conserva desperta dor dispara e outra manhã comum como um dia outro qualquer no frio da estação < Paveletskaya > empurra-empurra empurra-empurra empurra-empurra explosão e incêndio lançam fumaça em cabeças destroçadas ao som da balalaica
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o inverno russo que sempre foi um aliado em outros tempos de combate já não tem a mesma serventia contra as atuais desavenças certa feita, quando eu ainda era bem menina – iniciou dona Celeste enquanto preparava a massa de seu pão – ouvi dizer que uma bela moça de olhos lascivos surgia sempre aqui pelas redondezas, bem no meio da noite mais quente do ano, só para enfeitiçar os homens que frequentavam as tavernas. dizia a moça, em voz de veludo, que se entregaria nessa única noite ao mais forte e valente dos homens. eles todos então, alterados pela bebedeira e o inebriante feitiço, esqueciam-se de tudo e partiam para o confronto acirrado até que apenas um deles permanecesse de pé. as más línguas diziam que a tal moça era o próprio sem-nome em pessoa semeando a discórdia entre os homens.
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ora, ora, ora... não se avexe não, meu senhor, não fique com essa cara, isso tudo é lenda que essa gente daqui fica inventando porque não tem mais o que fazer. venha cá, meu rapaz, prove um bocadinho desse pão que eu acabei de fazer agorinha mesmo. dito isso, dona Celeste começou a servir os seus convidados que estavam diante do forno à lenha e então nesse mesmo embalo em que uma estória puxa outra que puxa outra que puxa outra num engate infindo de vagões às portas de uma obscura viagem, a madrugada deixou-se envolver em neblina e incertezas
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< King´s Cross > empurra-empurra empurra-empurra empurra-empurra dispara dor desperta manhã de sol em dia de cão e um mujahidin prepara-se para o que foi planejado enquanto entoa uma canção: “Pleased to meet you Hope you guess my name” meia dúzia de ataques coordenados com pontualidade britânica deixam a cidade atônita as peças já não têm nenhuma ordem sobre o tabuleiro e o avesso explosivo dos fatos põe a realeza em xeque
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fere o peito fere o baço fere o fundo do ventre em chamas e terror entre mortos e feridos a história avança e desliza em seu sagrado dis curso em nome de algum deus < Sé > desembarque pelo lado esquerdo do trem
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IVAN KARAMAZOV salve, salve, Ivan não enlouqueça em juízo até mesmo o Demônio será absolvido Ele: funcionário exemplar dos desígnios de Deus Ele: cumprindo a sua sina com precisão matemática Ele: lucidamente insano brinca à beira do abismo Ele: conduzindo com jeito o coração do Grande Inquisidor Ele: exatamente assim como fora determinado
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A ARQUEOLOGIA DO HOMEM almoça e janta as entranhas da terra enquanto escava as ruínas da própria existência sítio sem fundo aqui uma Pedra de Roseta no rim e um crânio mumificado acolá uma epiderme de manuscritos leprosos e um branco sudário envolvendo um coração pagão quem sabe ainda um farol (de Alexandria?) no fim do túnel.
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A SAFIRA E O CAOS reluz a safira na órbita da noite insana. esfera do Tempo que flutua imperfeita e se perde em voltas no vazio. intangível azul. uma lente suspensa entre cordas apenas observa as dimensões de um Universo elegante. milhões de anos-luz devoram milionésimos de gravidade alguma e continuam em sua infinita expansão. nada é tão mensurável quanto parece. partículas quase imateriais continuam a se chocar em colisões inebriantes. curvas sem direção, zênite sem norte. e então? então um sistema semelhante ao nosso entra em colapso. então um planeta qualquer aguarda a sua descoberta. então uma estrela nasce em Andrômeda e outra morre em Magalhães. vida: exígua luz e mais nada. despertar para um dia que se repete eternamente e ainda assim teimar em torná-lo novo. o café expresso e apressado deixa um amargo no céu da boca sem nenhuma constelação. cidade cidade cidade. sair às ruas, profaná-las, embrenhar-se num emaranhado de armadilhas e labirintos e, no entanto, não esquecer jamais o caminho de volta pra casa. nenhum atalho evita a encruzilhada da via-crúcis. no limite extremo do Universo repousa um menino envolto no eterno mistério, leve e tranquilo é seu sono e agora guardo silêncio para não acordá-lo. no interior de todas as casas, silêncio. nos escritórios e departamentos, silêncio. nas lojas e supermercados, silêncio. guardo silêncio pois o tal Paraíso Primordial já foi devidamente pulverizado e isolado está no deserto qualquer de um sonho. alucinação: insólita arquitetura, frágil pintura da memória. e então? então o vasto absurdo onde corpos cadentes desabam a todo instante não passa de um estranho calvário. então uma indecifrável criatura passeia à beira do abismo recolhendo infernos pra depois dançar à sombra do símbolo sagrado – está consumado?! – então
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no centro desse corpo estilhaçado em apocalipses tanto faz o dia, o mês e o ano; inútil calendário gregoriano, inútil todo e qualquer calendário. no delicado tecido do Universo o menino ainda repousa. e aqui, bem aqui onde os fios do novelo se desenrolam e se embaraçam, uma nuvem desliza, serena e indiferente, sobre o caos urbano.
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DISPERSÃO disparo o tiro certo no peito aberto disfarço a dor que não desfaço desenho o pássaro que passa e desdenho distraído cato a flor cativa que desabrocha no mato que desacato e assim desaba sobre a aba do meu chapéu a estrela do mais profundo céu e se o Sol despertar no azul infinito, o que faço com este coração aflito?
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PESADELO lanço-me à trama de um cego espelho e escavo a lama do mar vermelho na minha cama e sem conselho o céu se inflama e me ajoelho devoro o medo aqui no fundo em sol ardente acordo cedo esqueço tudo e sigo em frente
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RESテ好UOS
A DECOMPOSIÇÃO DO PENSAMENTO sobre as desrazões da vida e a morte inevitável, medito no vácuo e evacuo.
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O CORPO EM DECOMPOSIÇÃO entre as desventuras do dia e a noite insondável, transito no vácuo e evacuo.
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NIHIL resido no vácuo e evacuo: resíduo.
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ACAMPAMENTO guardo a noite em claro no bolso e de algum tempo distante ouço ruídos: silvos? cigarras? sirenas? (silêncio) fico de guarda e aguardo alguma aurora numa semente de girassol.
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EXPIAÇÃO II covil de estranho e humano ardil, canil insano, tamanho e vil. no cerne meus vermes deponho. do inferno eterno, retorno.
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Victor Del Franco nasceu na cidade de São Paulo em 1969. • Editor da CELUZLOSE - Revista Literária Digital ( http://celuzlose.blogspot.com ); • Durante o ano de 1994 participou das atividades do Grupo Cálamo realizadas na Casa Mário de Andrade; • Entre 1995 e 2005, produziu pequenos volumes de poesia chamados FÓTON (edição do autor); • Participou da organização da FLAP! de 2006 a 2008; • Em 2007, fez parte da organização do Tordesilhas Festival Ibero-americano de Poesia Contemporânea; • Colaborou com O Casulo - Jornal de Literatura Contemporânea de 2006 a 2008. • Livros publicados A urdidura da tramA (Giordano, 1998) O elemento subterrâneO (Demônio Negro, 2007) EsfingE (Edição do Autor, 2010). • Participou das coletâneas de poemas Oitavas (Demônio Negro, 2006) Antologia Vacamarela (Edição dos Autores, 2007).
IN HOC SIGNO VINCES