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ele sabe viver bem Jan Gehl
O urbanista dinamarquês especializado em planejar “cidades para pessoas” aponta caminhos para melhorar os centros urbanos brasileiros por Natália Garcia
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arquivo pessoal
Jan Gehl durante a conferência Velo City Global 2010, em Copenhague. Ao lado, dois de seus livros e capacete para ciclistas, símbolo de mobilidade consciente
na reGiÃo central de Copenhague, em um prédio do século 18 com tijolos aparentes e enormes janelas ornamentadas, funciona o Gehl Architects, escritório de urbanismo mais requisitado do mundo. Foi onde o dinamarquês Jan Gehl, urbanista que se tornou famoso por querer planejar as cidades para as pessoas, concordou em me receber para esta entrevista. Logo na minha chegada, admirei-me ao ver a enorme porta de madeira com deta-
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lhes dourados aberta, sem balcão de recepção, nem segurança – estava acostumada ao controle excessivo para a entrada em prédios comerciais de São Paulo. Caminhei pelo hall central até um daqueles elevadores antigos, com a estrutura visível – desativado, infelizmente. À esquerda, uma placa dourada indicava que o Gehl Architects ficava no 4º andar, para onde subi a pé por uma larga escadaria revestida com um tapete vermelho e servida por um corrimão de madeira maciça e detalhes talhados
a mão. Já no pavimento, toquei a campainha de um dos dois apartamentos, esperando ser atendida pela secretária de Gehl. Mas a moça que abriu a porta parecia nova demais para exercer a função, usava um robe e trazia na boca uma escova de dentes em plena operação. Eu me apresentei e avisei que estava lá para entrevistar o arquiteto Jan Gehl. “É na porta ao lado, esta é a minha casa”, disse-me ela, achando graça da minha confusão. Antes mesmo da minha conversa
com o urbanista, constatei, na prática, algumas das suas recomendações teóricas. Segundo ele, as funções de uma cidade – habitação, serviços, trabalho, lazer etc. – devem ser misturadas, e não segmentadas, para que em curtos deslocamentos se possa ter acesso ao que se precisa. Jan Gehl foi possivelmente o primeiro urbanista do mundo a afirmar que as cidades deveriam ser pensadas para as pessoas. O conceito veio por influência de sua mu-
“É preciso
coragem
política
lher, uma psicóloga, que o motivou a deixar de ser “um obcecado pela forma” (como ele se refere aos seus colegas urbanistas) e a trazer para seu trabalho uma preocupação com as pessoas e os espaços públicos. Desde os tempos da faculdade, o casal organizava saraus interdisciplinares. “Foi quando entendi que planejamento urbano precisa estar a serviço das pessoas que moram
na cidade”, conta. Graduado em 1960 pela The Royal Danish Academy of Fine Arts, ele se inspirou na jornalista e ativista norte-americana Jane Jacobs para se contrapor à corrente modernista que dominava a disciplina do planejamento urbano até então. Para Gehl, ao contrário do que pregavam na época, a cidade deveria ser pensada para ser percorrida a pé, pelas pessoas, e o adensamento demográfico deveria oferecer uma enorme oferta de serviços, habitação e lazer, misturados
em diversos núcleos. Autor de diversos livros, sendo Cities for People (Cidades para Pessoas, sem tradução para português) o mais recente, Gehl dedicou 50 anos de carreira ao planejamento urbano a serviço das pessoas. Sua obra foi minha maior inspiração para criar o projeto Cidades para Pessoas e sair em uma viagem de volta ao mundo tentando entender como melhorar as cidades para seus habitantes. Minha jornada, claro, começou por Copenhague, para que eu pudesse conhecê-lo em primeiro lugar. Os problemas das cidades brasileiras são cada vez mais numerosos e complexos. É possível transformar centros urbanos caóticos em cidades para pessoas? Certamente sim. Pense no seguinte: uma criança
para priorizar as pessoas.
em médio
e longo
prazo, a cidade
sai ganhando”
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“Com planejamento,
é possível limpar rios e
construir mobiliário
urbano que permita a permanência
das pessoas”
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nunca pede de Natal um brinquedo que não conheça. Da mesma maneira, ninguém pedirá para sua cidade algo que não esteja em seu repertório. É preciso que as pessoas conheçam exemplos de cidades onde é possível utilizar outros meios de transporte, como a bicicleta, caminhar a pé, nadar em rios que não estejam poluídos, ter opções públicas de lazer, acessibilidade para todos etc. O primeiro passo é melhorar o repertório do que é uma boa cidade para que, então, as pessoas exijam as coisas certas. Defina uma boa cidade. Repare, nós sabemos tudo sobre o habitat ideal de qualquer mamífero da face da Terra, menos sobre o do Homo sapiens. E pior, alcançar o melhor lugar possível para as pessoas viverem está longe de ser o norte de crescimento e desenvolvimento das cidades pelo mundo. Infelizmente, na disciplina do urbanismo, a forma dos espaços públicos muitas vezes se sobrepõe ao uso que as pessoas farão deles. Temos que pensar em projetos que contemplem a escala humana.
Rua arborizada com bancos em Copenhague: “As pessoas precisam conhecer exemplos de cidades onde é possível caminhar a pé e ter opções públicas de lazer"
O que é a escala humana? Após a Segunda Guerra Mundial, com o advento da indústria automobilística, as cidades começaram a ser pensadas para os carros, para serem percorridas em alta velocidade e vislumbradas sempre à distância. A escala humana é o contrário. É pensar em locais agradáveis para caminhar a pé, em prédios feitos para serem contemplados “do chão”, da altura dos olhos das pessoas. Em meu livro Cities for People, eu dedico um capítulo ao que chamo de “Síndrome de Brasília”. A capital do Brasil é incrível quando vista do céu, planejada em forma de avião, com um lindo eixo monumental e várias obras do arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer. Sem dúvida, um belo projeto, mas que não foi feito para ser contemplado da escala humana. É difícil locomover-se a pé ou de bicicleta pela cidade, e a setori-
zação em áreas residenciais, comerciais etc., praticamente obriga todos os moradores a se deslocarem de carro. Resultado: uma cidade de apenas 60 anos com altos índices de trânsito e má qualidade de vida. Por falar em trânsito, o senhor acha que o carro é um “vilão” das cidades? A jornalista e ativista americana Jane Jacobs, que inspirou muito meu trabalho, diz, em seu livro Morte e Vida das Grandes Cidades, que o carro não é o causador dos problemas de uma cidade, mas um sintoma deles. O excesso de trânsito acontece quando as cidades são planejadas tendo no carro o meio de transporte central, fato que se torna insustentável. Repito, com a indústria automobilística, as cidades passaram a ser
planejadas priorizando as locomoções individuais, ou seja, de carro. O crescimento das cidades americanas, por exemplo, priorizou os subúrbios, zonas integralmente residenciais com grandes casas circundadas por ruas e avenidas, onde é necessário se locomover de carro. Enquanto isso, no centro, diversos viadutos foram construídos, aumentando a velocidade de locomoção e diminuindo o número de pessoas nas ruas. O Brasil se inspirou nesse modelo rodoviarista americano, e o resultado são cidades domi-
nadas pelos carros, com espaços públicos quase vazios de pessoas. Nesse sentido, medidas que impeçam o uso dos carros, combinadas com melhores meios de transporte público e segurança para a utilização de não motorizados (como a bicicleta ou mesmo caminhar a pé), são necessárias. Restringir o uso dos carros soa bem impopular no Brasil. Mas o senhor passou por um processo semelhante em Copenhague, na década de 50, de transformação de uma grande avenida
em via de pedestres. O que as cidades brasileiras podem aprender com a sua? No livro Life Between Buildings (A Vida entre os Prédios, em tradução livre, sem versão para o português), eu documento um exercício que fiz e julgo que todos os urbanistas deveriam fazer. Eu me sentei durante meses no mesmo lugar, todos os dias, e fiquei observando o uso que as pessoas faziam dos espaços públicos. Observava e fazia anotações. O lugar que escolhi para fazer isso foi a Stroget, uma importante avenida no centro de Copenhague que foi con-
vertida em via de pedestres. A decisão foi de um prefeito muito corajoso, que se inspirou nas ruas de pedestres holandesas e quis trazer essa ideia para cá. Mas a imprensa e os comerciantes dessa avenida foram duramente contra a medida. “Somos dinamarqueses, não italianos, precisamos dos nossos carros para nos locomover”, dizia o jornal The Copenhagen Post em 1962. Hoje, 50 anos depois, temos uma das ruas de pedestres mais famosas do mundo e onde as grifes mais caras da moda
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fotos: divulgação
Prédios baixos na capital dinamarquesa respeitam a escala humana: "Prédios feitos para serem contemplados do chão”
“o brasil
se inspirou no modelo americano. resultado:
Mesas espalhadas pela Times Square, em Nova York: transformação recomendada pelo escritório Gehl Architects
cidades dominadas
por carros e espaços
pÚblicos
vazios”
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brigam por um espaço para abrir suas lojas. Ou seja, a mudança foi ótima para as pessoas, os negócios e a cidade. É preciso ter coragem, politicamente falando, para priorizar as pessoas. Em médio e longo prazo, a cidade sai ganhando, sem dúvida. Qual é o papel do planejamento urbano nesse processo? Fazer uma cidade para as pessoas é uma decisão política. O poder público precisa priorizar os moradores da cidade em detrimento de grandes indústrias e fábricas. Claro que é importante crescer economicamente, mas a qualidade de vida das pessoas deve estar em pri-
meiro lugar. Além do mais, boas cidades para se viver atraem gente e empresas criativas, além de lógicas de trabalho mais saudáveis. Em meu livro Cities for People, eu digo que “primeiro moldamos as cidades, depois elas nos moldam”. O urbanismo, ao moldar um lugar, está criando possibilidades de encontros, trocas de ideias e efervescência cultural nos espaços públicos. Com planejamento, é possível limpar rios para permitir que as pessoas nadem neles, construir mobiliário urbano de qualidade e espaços que permitam a permanência das pessoas e a prática de esportes. Criar esse ambiente para uma vida de mais qualidade é a melhor forma de nortear o crescimento de uma cidade.
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