O amanh찾 existe A hist처ria de quem transformou a luta contra o c창ncer infantojuvenil no Brasil
renato lemos
coordenação editorial Valéria Lamego editora assistente Janaína Senna produção editorial Priscila Serejo capa, projeto gráfico e diagramação Luciana Facchini revisão Janaína Senna, Débora Castro e Maria Clara Antonio Jeronimo designer assistente Hannah Uesugi reproduções Jaime Acioli fotografia Leo Aversa e Matheus Hypolito / P2W produção gráfica Acássia Valéria Correia da Silva tratamento de imagens Jorge Bastos – Motivo gráfica Pancrom Indústria Gráfica Ltda. créditos das imagens Fotos Leo Aversa — capa, p.9, 39, 66, 67, 68, 69, 72, 105, 155, 163, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176. Acervo Família Neves — p.13, 24, 33,45, 85, 92, 112, 215. Acervo Instituto Ronald McDonald — p.53, 145, 191. Getty Images / Hulton Archive — p.57. Fotos Matheus Hypolito / P2W — p.65, 70, 71. Fotos Mariana de Oliveira Tozzi — p.181. Acervo Edvânia Tolêdo Ignácio — p.197. Reproduções Jaime Acioli — p.13, 24, 33, 45, 85, 92, 112, 215. Todos os esforços foram feitos para creditar devidamente os detentores dos direitos das imagens aqui utilizadas. Eventuais omissões ou equívocos não foram intencionais e serão corrigidos nas próximas edições. O Selo Perfil pertence à Verso Brasil Editora. dados internacionais de catalogação na publicação (cip) (câmara brasileira do livro, sp, brasil) Lemos, Renato O amanhã existe: a história de quem transformou a luta contra o câncer infantojuvenil no Brasil / Renato Lemos. Rio de Janeiro: Verso Brasil Editora, 2014. isbn 978-85-62767-15-9 1. Instituto Ronald McDonald - História 2. Câncer - Doentes 3. Câncer - Prevenção 4. Câncer - Tratamento 5. Câncer infantil - Pacientes I. Título. 14-10595
CDD-362.11
Índices para catálogo sistemático: 1. Instituto Ronald McDonald : História 362.11
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O amanh찾 existe A hist처ria de quem transformou a luta contra o c창ncer infantojuvenil no Brasil
renato lemos
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sumário APRESENTAÇÃO 6 UMA CAUSA, UM LIVRO, DOIS AMIGOS. QUEM PRECISA DE MAIS? por Hélio Muniz
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Prefácio Um bairro, um tempo O desespero não anda em linha reta A casa longe de casa O gringo vai à guerra Tubo de ensaio Se é para sonhar, que se sonhe alto A língua universal da solidariedade Por que não? Palavras O sonho da causa própria Um mascote para o time Os malucos da Tijuca via de mão dupla O tamanho do problema Chico of Snows Por dor ou por amor A tábua das marés A mãe, o filho e os muitos espíritos santos Anjos de um mundo particular
8 10 19 40 47 55 64 82 89 103 106 121 126 136 149 164 178 185 194 208
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Apresentação Uma causa, um livro, dois amigos. Quem precisa de mais?
Um dia, faz quase três anos, eu era um calouro, recém-chegado ao McDonald’s, e me entra na sala um sujeito com o sorriso maior que o rosto, uns pouquíssimos cabelos desgrenhados e uma mochila nas costas. — Você é o Hélio, né? Como é que você já está aqui há tanto tempo e ainda não conhece a Casa Ronald? — disse isso, sentouse na minha frente e começou a falar sem parar. Ficamos amigos naquele segundo. Melhor que isso: eu, naquele mesmo segundo, ganhei uma referência, alguém que, pelo menos duas vezes por semana, me faz pensar: “O que o Chico faria numa situação dessas?”. E uma coisa eu descobri: seja qual for a situação dessas, o que o Chico não faz, nunca fez, foi desistir. E foi não desistindo que esse carioca, tijucano, vascaíno (desculpem a irresistível piada ruim, mas ele é um vascaíno de primeira, artigo raríssimo), junto a um timaço de abnegados, conseguiu mudar, transformar mesmo, os índices de cura do câncer infantil no Brasil. São vinte e cinco anos de sorrisos, de amigos feitos na hora e para sempre, de perdas, algumas derrotas e um monte de vitórias. Vinte e cinco anos de uma causa, um sonho que nunca vai acabar. E não vai acabar graças a esse pessoal. Gente como Chico, Roberto Mack,
a turma do Instituto. E como os médicos e voluntários que compraram essa briga em seus primeiros momentos e hoje mostram que, sim, é possível vencer uma doença grave em um país como o nosso. Basta não desistir. Este livro é apenas um pouco de tudo o que essa turma faz para ajudar centenas de milhares de crianças em todo o Brasil. É a história de um craque na mobilização de gente, de uma equipe que realmente pensa no próximo mais que nela mesma e que, sem dúvida, construiu a maior causa social do país. Para contá-la, surgiu outro craque: Renato Lemos. Um tremendo jornalista, um tremendo escritor e, mais que tudo, outro desses amigos feitos em algum instante de nossas vidas e que se transformam, na hora, em bússolas das quais não podemos nos separar. Espero que esta história, este livro, seja como Chico Neves e Renato Lemos. Vire referência para todos os que sonham que é possível mudar o mundão danado em que vivemos. Hélio Muniz Diretor de Comunicação McDonald’s Brasil
PREFÁCIO
É como um vício. De tempos em tempos, esteja onde estiver, Francisco Neves ergue o braço esquerdo até perto do rosto e olha fixamente para o centro do relógio que traz no pulso. É um objeto comum, um modelo tradicional, que ele não tira nem na hora de dormir: a pulseira feita de um aço escovado e o mostrador de horas com diâmetro de tamanho médio, menor que uma cebola cortada ao meio. Ainda que reiteradamente repita o gesto, Francisco não parece exatamente interessado em conferir as horas. Ele mantém o foco no centro do objeto, como se estivesse procurando alguma outra coisa escondida ali dentro, camuflada por baixo dos ponteiros das horas e dos minutos. No centro do relógio de Chico — como Francisco é conhecido desde a infância — estão as fotografias de seus dois filhos, Carlinhos e Marquinhos. Nas fotos, Carlinhos (o mais velho, que mandou confeccionar e lhe deu o relógio de presente) está com cerca de oito anos, os olhos vivos e o rosto quase sério. Já Marquinhos tem 5 anos, o cabelo repartido para o lado e o olhar tímido. A cada vez que Chico fita de perto o relógio, seus olhos imediatamente se enchem de água — ao mesmo tempo em que se enchem de vida. O retrato de Marquinhos no relógio lembra a Chico, a cada minuto, que não há tempo a perder.
Francisco Neves — um homem de 64 anos, cabelos brancos rareando no alto da cabeça e o físico socado de um goleiro de futebol de salão — é, já há quinze anos, o superintendente do Instituto Ronald McDonald no Rio de Janeiro. São mais ou menos 5.500 dias na função. Ou mais de 130 mil horas. Um tempo que poderia ser contado pelos ponteiros do relógio que traz no pulso. Ou pelo número de crianças que, somado aos dois meninos com o rosto estampado nos retratos que carrega no braço esquerdo, se embaralharam no curso de sua existência. Na vida de Chico, seu filho Marquinhos — o menino de olhos tímidos da fotografia — é, de muitas maneiras, o senhor do tempo.
Relógio de Chico Neves com foto de seus filhos Carlinhos e Marquinhos.
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UM BAIRRO, UM TEMPO
Um tempo.
A Tijuca é um daqueles bairros cariocas que parecem reunir todos os tempos num só. Ali, o passado se mistura com o presente e — numa espécie de tubo de ensaios da vida da classe média carioca — projeta um futuro diferente. Igualmente conservadora e alternativa, a Tijuca, espremida entre os morros e os subúrbios cariocas, é o bairro da tolerância e da convivência. Um bairro com personalidade própria. Mais ou menos como Copacabana, Méier, Urca ou Madureira, lugares que o carioca aprendeu a distinguir tão logo cruza suas fronteiras. São cerca de vinte e cinco quarteirões que abrangem o fim do Largo do Estácio (ou o limite do elevado Paulo de Frontin), envolvem a praça Saens Peña e sobem até a Usina, nas bordas da floresta da Tijuca, a maior floresta urbana do mundo. Em torno desse quadriculado de ruas e praças estão algumas das mais famosas favelas cariocas (Salgueiro, Borel e Formiga) e a subida do Sumaré, que dá no Cristo Redentor. Cerca de cento e setenta mil pessoas moram ali. A Tijuca é um bairro vivo. Quando se está na Tijuca — ou na grande Tijuca, região que engloba, também, alguns bairros vizinhos, de fronteiras bem menos definidas, como Vila Isabel, Grajaú, Maracanã, Andaraí, a Praça da 10
Bandeira, parte do Rio Comprido e o Alto da Boa Vista — a atmosfera do bairro impregna a tal ponto o espírito das pessoas que é impossível não reconhecê-la. A Tijuca — que pode ser entendida também como um vale reunindo rios afluentes que descem pelas montanhas das redondezas e desembocam pelo eixo central de suas ruas, escoando pelo rio Maracanã até alcançar o mar na Baía de Guanabara — é um típico destino da classe média carioca, um bairro do acolhimento e da diversidade. É a comunhão da sofisticação da zona Sul com o estilo da vida simples do subúrbio. Quarteirões de ruas arborizadas são vizinhos de vias expressas, comércio de bairro (quitandas, açougues, padarias) fazem limite com grandes shopping centers. Tudo no mesmo lugar, ao mesmo tempo. Por toda aquela região marcam forte presença duas das maiores paixões do carioca: o samba (com o Salgueiro, a Unidos da Tijuca, o Império da Tijuca e, por que não?, a Vila Isabel) e o futebol, com a sede social do América Football Club e o templo do Maracanã. O morador da Tijuca torce por suas escolas de samba com a mesma intensidade com que torce por seus times de coração. Isso, entre muitas outras coisas, ajuda a dar uma personalidade única ao lugar. Não por acaso, a Tijuca é o único bairro da cidade em que os moradores são conhecidos por um adjetivo que denuncia de pronto sua origem. Quem mora em Copacabana é simplesmente morador de Copacabana. Quem mora na Barra é simplesmente morador da Barra. Quem mora na Tijuca é, antes de tudo, tijucano. São tijucanos — e com orgulho — todos aqueles que, por um motivo qualquer, adotam o lugar. Não importa que não tenham nascido ou mesmo que não continuem morando por lá. Há uma frase, repetida pelas ruas da cidade, que diz que a pessoa pode até sair da Tijuca, mas a Tijuca nunca sairá da alma dela. São, assim, tijucanos, os muitos funcionários públicos que escolheram o bairro para viver. E os comerciantes portugueses, os donos de armarinhos, os frequentadores dos botequins, os militares, os 11
passistas das escolas de samba, os peladeiros de fim de semana, as donas de casa entrando e saindo dos mercados, os músicos de diversos gêneros, os aposentados, as professoras, os bancários, os muitos médicos espalhados por ali, a turma do churrasquinho da esquina, as meninas de barriga de fora e os camelôs da Saens Peña. São tijucanos também, de algum modo, todos os herdeiros da Jovem Guarda, nascida nas reuniões da rua do Matoso frequentadas por gente como Erasmo Carlos, Jorge Ben Jor e Tim Maia. E são tijucanos os ex-alunos do Colégio Militar, do Pedro II e da Escola Técnica Federal. Sem contar as meninas do Instituto de Educação, personagens de anos dourados da vida brasileira. Tudo gente que acolheu ou foi acolhida, que experimentou, de alguma forma, o espírito solidário que se espalha democraticamente pelas ruas do bairro. Gente que, pelo menos durante uma fase da vida, frequentou o lugar e percebeu que ali era um canto muito bom para levar a família para viver. Como Francisco Neves. Chico nasceu em São Cristóvão, pertinho da Tijuca. Não é um bairro qualquer. São Cristóvão foi o lugar escolhido para abrigar a família imperial portuguesa durante todo o reinado. Quando a comitiva de d. João VI, corrida das guerras napoleônicas, desembarcou nas imediações da Praça XV, intuiu que aquela terra plana nos fundos da Baía de Guanabara (onde d. João inauguraria a primeira casa de banhos do Brasil, no Caju) seria o lugar certo para quem estava em busca de paz. São Cristóvão cresceu em torno do palácio (depois transformado em Museu Nacional) e dos jardins da Quinta da Boa Vista. Ainda hoje, o relativamente abandonado conjunto formado pelo museu (antiga residência da família imperial), a Quinta e o Jardim Zoológico seria a principal atração turística na maioria absoluta das grandes cidades brasileiras. Um lugar que junta história, cultura, beleza e diversão. Há quarenta anos, quando Chico batia sua bolinha nos jardins gramados da Quinta, São Cristóvão já era desse jeito. 12
Assim como São Cristóvão e Tijuca, Francisco é um típico representante do jeito carioca de levar a vida. Estudou no Pedro II (do Centro), formou-se em engenharia na UFRJ (no Fundão) e trabalhou boa parte da vida no Serpro, uma daquelas empresas de informática nascidas ainda na época em que os computadores eram chamados de cérebro eletrônico. Esse Chico — que nos fins de semana trocava o formalismo do ambiente de trabalho pelas peladas na Ilha do Governador, pela torcida do Vasco à direita das cabines de rádio do Maracanã e pelo banho no mar quase deserto da Barra da Tijuca — se casou, ao som da tradicional marcha nupcial, com Sonia Cardoso Novais, que ali acrescentaria o Neves ao final de seu sobrenome. Chico e Sonia, marido e mulher. Era o dia 2 de janeiro de 1976. No início de 1976, o Brasil vivia ainda sob as nuvens turbulentas da Ditadura Militar. No interior do país, o Exército jogava duro contra os guerrilheiros da luta armada. O ar era rarefeito. Por toda a cidade, a população vivia numa espécie de vácuo social e político, à espera de novos tempos, novas eleições e novos líderes, além da volta dos exilados. A campanha pela anistia começava a tomar as ruas (“Anistia Ampla Geral e Irrestrita”, era o que diziam os cartazes colados nos muros).
Campeonato dente de leite de 1986. Da esquerda para a direita, Chico Neves, Fernandinho, Bochechinha, Alexandre, Bernardo, Marquinhos, Felipe, Rafael e Bruno.
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Chico havia saído da faculdade e ainda conservava o cabelo comprido (mas com entradas pronunciadas na fronte), as costeletas à Pedro I, o uniforme das camisas xadrez de manga curta e o tênis Bamba nos pés. Era, como viria a ser para sempre, um homem inquieto. A fisionomia, dos olhos fundos e ao mesmo tempo vivos, trazia semelhanças com a de Betinho, o irmão do Henfil, que naquela época ainda estava no exílio e que depois seria uma inspiração para toda a vida. No mesmo ano em que vivia os primeiros tempos de casado, Chico costumava escapar de casa para ver o Vasco da Gama jogar no Maracanã. Às vezes, quando o dinheiro estava curto, entrava no intervalo, depois que os portões eram abertos. O Vasco tinha um timaço: Mazzaropi, Abel, Zanata, Roberto Dinamite, entre outros. Foi essa equipe que venceu o primeiro turno do Campeonato Carioca — numa famosa disputa de pênaltis contra o Flamengo, em que, vejam só, Zico perdeu sua cobrança —, mas foi vice na final, atropelado pela Máquina Tricolor de Rivelino, Carlos Alberto, Doval etc. Ainda assim, o coração vascaíno de Chico passou o ano inteiro embalado pela imagem do gol espetacular de Roberto, após dar um lençol no zagueiro Osmar, do Botafogo, em jogo da semifinal do ano anterior. Um gol antológico. Chico só ia aos jogos com camisa do Vasco e radinho de pilha na orelha para ouvir o flamenguista Jorge Cury e o botafoguense Waldir Amaral, um em cada tempo de jogo. Sonia, que com o tempo aprendeu a torcer para o Vasco também, era professora de matemática em escola pública e usava vestidos na altura do joelho. As obras do metrô começavam a esburacar a praça Saens Peña, mas ela não ligava em dar a volta nos tapumes só para entrar na Sloper em busca dos produtos da Helena Rubinstein, o máximo da beleza naquele tempo. Mais ou menos na mesma época em que se casaram, o Brasil inteirinho andava com os quatro pneus arriados, apaixonado pela morenice da Gabriela de Sônia Braga, e se preparava para se encantar com a atriz 14
outra vez, quando Dona Flor e seus dois maridos, também baseado no livro homônimo de Jorge Amado, chegasse às telas. O filme juntaria quase 13 milhões de espectadores nos cinemas do país. Chico e Sonia estavam entre eles, sentados nas poltronas vermelhas do lendário Carioca, cinema hoje transformado em Igreja Evangélica, da praça Saens Peña. O Brasil de 1976, uma mistura de sufoco e esperança de melhores dias, era um desafio a ser vivido para o casal recém-formado. Foi nessa época de incertezas que Chico e Sonia chegaram à Conde de Bonfim, principal rua da Tijuca. Quem vive na Tijuca tem algumas referências básicas, e a praça Saens Peña talvez seja a maior delas. É em torno da Saens Peña, especialmente pelo eixo da Conde de Bonfim, que o coração da Tijuca pulsa mais forte. Ali estão o comércio, os bancos, os restaurantes, os botequins populares, os camelôs, os consultórios médicos e o trânsito movimentado. Ali estão também o entra e sai do metrô e os pontos de ônibus que sobem em direção à Muda ou descem em direção ao Centro. A Saens Peña é o norte na bússola do morador do bairro. Se você não sabe onde está, basta ir para lá. Mas a Tijuca — ocupada, de início, pelos padres jesuítas na virada do século XV para o XVI, o que talvez sirva para entender o espírito comunitário que passou a dominar o bairro — também é feita de seus pequenos segredos. Há as charretes da praça Xavier de Brito, os caminhos do Alto da Boa Vista, as trilhas para as cachoeiras da floresta da Tijuca, os pátios azulejados do Instituto de Educação e do Colégio São José, o mítico Café Palheta (hoje reduzido a um balcão dentro de uma drogaria), o bochicho na praça Varnhagen, as bênçãos milagrosas da Igreja dos Capuchinhos, as empadas da Salete, os blocos de Carnaval na Muda, os quitutes inovadores do Da Gema e as casas portuguesas do Largo da Segunda-Feira. Tijucano que é tijucano mesmo já experimentou muitas dessas atrações. Mas poucas coisas darão tanto orgulho ao tijucano — e o farão tão 15
típico do lugar que moram — quanto exibir a carteira de sócio do Tijuca Tênis Clube. O Tijuca Tênis Clube é o mais tradicional dos clubes da zona Norte do Rio de Janeiro. Situado num terreno de 48 mil metros quadrados, no lado esquerdo de quem sobe a Conde de Bonfim, o Tijuca é referência para os moradores, comerciantes e frequentadores do lugar. O carioca, por uma questão geográfica, não costuma dar muita bola para os clubes, mas com o Tijuca é diferente. Por estar situado mais ou menos distante do mar, o clube, ali, reúne todas as opções para as pessoas em busca de diversão, relaxamento e vida social. Há oito quadras de tênis, seis piscinas, ginásio para cinco mil pessoas (onde o Flamengo costuma mandar seus jogos de basquete) e um bosque. Francisco Neves começou a frequentar o clube em 1981. A ideia de entrar para o Tijuca veio, fundamentalmente, depois que o primeiro filho, Carlinhos, nasceu, mas só quando o segundo chegou eles tomaram a decisão definitiva. Chico e Sonia queriam um espaço mais confortável para ir com os meninos nas horas de descanso, além de enxergarem ali a chance de maior convívio social e a prática desportiva. Chico via o esporte, especialmente o coletivo, como um agente catalisador, capaz de proporcionar saúde, espírito de grupo e caráter. O espírito que Chico enxergava num simples jogo de meninos é o mesmo que, anos mais tarde, imprimiria no estilo de condução dos trabalhos do Instituto Ronald McDonald: como se todos participassem de uma mesma equipe. Chico acredita que um time tenha que ter bons jogadores em várias posições. “É claro que eu quero o Neymar jogando no meu time, mas não quero ter onze Neymares, quero ter onze guerreiros”, é o que costuma dizer. Os campeonatos de futebol do Tijuca, disputados por meninos de cinco a dezessete anos, foram uma espécie de embrião para sua conduta profissional. Ali, Chico pôde ter noções básicas do quanto vale o esforço coletivo, o planejamento estratégico e 16
a festa como um catalisador das boas ações. Meninos, pais, diretores, torcedores, familiares, todos num mesmo time. O evento ficou famoso em toda a cidade e existe há mais de quarenta anos. É comum a presença de jogadores profissionais para prestigiar os campeonatos. Zico, Bebeto, Mauro Galvão, Edmundo e muitos outros já passaram por ali. Os jogos disputados pelas crianças e pelos jovens do Tijuca são uma mostra do poder de organização dos sócios do clube. São os pais dos meninos que sorteiam os times (buscando o equilíbrio), elaboram a tabela e há até pouco tempo apitavam os jogos. Cada um faz sua parte. Os campeonatos do Tijuca foram também, de certa forma, um dos primeiros trabalhos voluntários de Chico. Em 1966, quando chuvas torrenciais tomaram as ruas do Rio de Janeiro, um grupo de estudantes se juntou para ajudar as vítimas das enchentes. Foram mais de duzentos mortos e cinquenta mil desabrigados na ocasião. O rio Maracanã transbordou e transformou a região que vai da praça da Bandeira a Vila Isabel numa imensa lagoa. Foi ali, com as águas na altura dos joelhos, ajudando famílias a secar as casas invadidas pelas águas e recuperar seus pertences, que Chico teve a noção de tudo o que envolve uma ação como aquelas: “Fazer pelo outro é fazer por você também”, gosta de repetir. Os jogos do Tijuca — em que a união de pessoas diferentes cria algo positivo — eram uma nova representação dessas mesmas ideias. O fato de a cada ano os pais do Tijuca fazerem um novo sorteio de times ajuda a manter a competitividade e a unir ainda mais os meninos. Com a mistura, as eventuais diferenças tendem a ser minimizadas pelo trabalho em equipe, que na maioria das vezes envolve também os pais, transformados em técnicos apaixonados berrando à beira do campo. É esse o espírito. Cada equipe joga com a camisa de um time do Rio. No ano que estreou no torneio, o menino mais novo de Chico e Sonia, Marquinhos, jogou com a camisa vermelha do América. 17
Isso foi em 1986. Marquinhos, que chutava forte com os dois pés (o pai o treinava nos gramados íngremes da Quinta da Boa Vista, fazendo-o chutar insistentemente a bola ladeira acima), tinha 5 anos e um espírito de grupo contagiante. Era rápido e gostava de jogar pelos lados do campo, o que lhe valia o apelido de Mauricinho, ídolo do Vasco (seu time de coração) na época. Mauricinho era um ponta-direita baixinho e louro como ele. Para o Marquinhos jogador, numa mostra do que seria sua vida dali para frente, não havia bola perdida. É esse menino — aguerrido, multiplicador, vivo — que está eternizado no Tijuca Tênis Clube. Logo depois que atravessa a portaria principal do clube, o visitante pode optar por seguir pelo caminho à esquerda, que vai dar nas piscinas e no ginásio coberto, ou subir pelas alamedas do lado direito, que levarão às quadras de tênis e aos campos de futebol soçaite. O campo localizado na parte superior é o destinado aos jogos dos campeonatos de dente de leite, o dos garotos do clube. Era um campo de terra batida, rala-coco, do tipo que não existe mais, hoje substituídos pela grama artificial. Um campo de cinco na linha e um no gol. Nesse campo, no lado oposto à entrada principal, o visitante poderá ver uma placa de ferro cravada na parede: “Campo de Futebol Marcus Novais Neves”. É uma homenagem do clube — dos sócios, especialmente a turma do futebol — ao menino que simbolizaria o espírito de luta de seus frequentadores. Marquinhos, Chico, a Casa Ronald McDonald, o campinho do Tijuca, o Instituto Ronald e todo o bairro da Tijuca têm vários pontos em comum.
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