Árvore

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VICTOR FERRAZ

2014



SUMÁRIO amanhece dentro da casa... faz tempo que o pássaro azul não vem me sussurrar... é a queda na cama de folhas... deslizo a mão arrastada... seriam passos anestesiados... intenção... não é mais a manhã... é um silêncio distante... salta enfim o só do peito... sinto-me agora percorrendo... existe nada além das cercas... vivo outras vidas outras infâncias... tinha um mato lá longe da fazenda que na hora da... do barro surgiram as palavras de força e de peso... enquanto brotava a água da torneira... e me interessam os intermédios... surge do fim...

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DIÁRIO DE BORDO

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amanhece dentro da casa aquela ansiedade ilumina o fim da madrugada a mesma do inverno passado em lentidão em comodidade mas agora me pergunto onde pertenço entre extremidades entre as pontas onde existo vivo no trajeto e me encontro nas janelas riscadas de impressþes digitais borradas encontro durando quatro horas necessårias onde nada mais se encontra fora o vasto e o distante que se encontram em mim

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faz tempo que o pássaro azul não vem me sussurrar deve ter migrado é época bateu asas e voou foi pra qualquer sertão virou carcará e como o sertão me deixou árido pássaro azul agora pega mata e come me deixa com fome rogo carcará mas nem um piu sem você não tem coragem rezo carcará volta pra dentro carcará eu canto pra você eu deixo você voar e que se danem as vendas mas volta carcará temos um pacto lembra agora volta chega vem me aguar eu to seco carcará e eu já disse que vou cantar carcará

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é a queda na cama de folhas o sol que esgueira entre copas o corpo que desmonta em peças é o som abafado o ouvido tapado os olhos que não querem ver as mãos soltas de uma vez pra sempre

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deslizo a mão arrastada pelos retratos que de qualquer jeito ficam empoeirados viro as costas a medida que os viro pra baixo assim me recupero de rachaduras e trincos quando tudo é silêncio de novo respiro fundo anos de poeira enfisema instantânea de memórias enrugadas puxo as cortinas pro chão pra deixar o sol entrar esquentar velharias e antigas fraturas tudo brilha de amarelo inclusive meus cantos que insistiam em ser escuros e úmidos lacrimejo por olhar direto sol e o calor me espera lá fora

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seriam passos anestesiados atados a pisos frios e vazios de sentidos e achares passos rasteados os que caminham corredores os que seguem trechos sólidos se do exterior não aquecesse as chances internas e não permanecesse ao alcance dos pés as extensas quilometragens de viagens de possíveis paisagens

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intenção: me calar onde há ninguém só o sol e a vida quieta só rasteira vida sorrateira

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não é mais a manhã que me instiga estranha ou floreia não vejo o amanhecer nem é na superfície do meu corpo que ele se acomoda em mim sinto minhas escuras nuvens indo oeste a brisa fresca é minha respiração. e na manhã clareio

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é um silêncio distante a calmaria antes e depois são pneus do carro flutuando sobre o asfalto novo sou eu e a estrada somos nós além dos limites dos acostamentos é a luz e a sombra das árvores longas deitadas na terra somos nós deitados na terra e longos braços é um silêncio distante eco restante que lava

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salta enfim o só do peito a distância da ida salta o calor o ardor do suor salta o temor das mãos o tremor salta salta enfim a fadiga salta salta enfim o nó da garganta a ânsia da partida salta o ataque da investida salta salta a escolha da apatia salta salta salta a decisão da covardia salta salta salta a pontada da ferida salta o corte da euforia salta salta salta os pés na vida

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sinto-me agora percorrendo entre vidas enquanto as sombras cruzam a estrada na hora em que tudo brilha laranja

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existe nada além das cercas o que se espera realmente não há quando em meio verde se rasga a estrada de terra o que se espera está dentro quando aos olhos se dá a oportunidade de enxergar amplidão surgindo azul sente-se nos pés o vasculhar superfícies intocadas

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vivo outras vidas outras infâncias de chão de terra de tios na varanda nelas me embrenho em caminhos caudalosos sinto com os pés e no rosto as nuances da tarde sinto as folhas roçarem o vento e o calor na madeira estalando o guincho do balanço parando portão batendo ouço acima conversas dos coqueiros das pedras afirmações águas são volúveis por natureza sou parte terra quando a sola é preta o corpo entardece na despedida imóveis as lembranças das vozes que vão embora com o sol

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tinha um mato lá longe da fazenda que na hora da revoada dos [pássaros alaranjava o verde por natureza era mais ou menos assim da minha altura as folhas que tinham lá e eu era descobridor das formigas colecionador de pedras raras o aventureiro do quintal infinito quando quietavam os pássaros alguma família distante gritava um apelido de nascença e eu voltava correndo em apetite a quentura da mesa era diferente da terra batida era quente por dentro assim como o quente da varanda do colo da rede e cama.

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do barro surgiram as palavras de força e de peso intervalos das chuvas as moldavam macias para as mãos o rio que jorrava da torneira passava logo atrás da velha árvore dele brotavam as mãos no barro. não construí nada que restou até hoje nem com o barro nem com as mãos mas tudo o que construo até hoje leva consigo as mãos e o barro.

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enquanto brotava a água da torneira e regava não somente a barragem de mão mas as tardes que terminavam em banhos minuciosos de barro o toque bastava e com ele o sentimento o abraço o afago as palavras diziam exatamente seu dizer aos anos o quintal se tornou árido e aquela presença eterna que sustentava pereceu aos cuidados distantes a jabuticabeira morreu ervas daninhas cresceram tomaram conta do espaço nosso do espaço que você cuidava do que mantínhamos vivo pra você longe só o mato crescia e a sabedoria longa se confunde agora a nós só toalhas e o perfume antigo que brota da penteadeira. não peço mais que acenda a vela por mim eu que as ascendo por você.

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e me interessam os intermédios onde o sol bate até o horizonte e o único dourado visto é o da última folha alcançando a luz quero os olhos longos até onde começa a terra e termina o dia

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surge do fim sombra longa atinge vastidão braços que alcançam o todo dentro em mim a sombra que caminha milhas me atinge vastidão no fim

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DIÁRIO DE BORDO


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I Caeiro pego a poltrona 26 sentou ao meu lado eu fiquei na janela de pomares vacas placas escapando pra trás da cortininha não puxou assunto não respirou fundo nem olhou pra fora não piscou não bocejou olhava atento o corredor a paisagem oscilava eu seguia as amplitudes e ele pleno e numa dessas minhas curvas esbarrei no seu cotovelo gelado pedi desculpas mas não virou não importou ainda respirava, mas pelo que li havia morrido

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II o motor massageia minhas costas e do lado de fora vidas em movimentos belas vidas em movimentos que sentadas passam e deixam se passar o “mestre” morto ao meu lado sopra: são só homo sapiens. não para mim que desmonto a luz na caneta e ele chacoalha a cabeça em desaprovação e de ré deixamos a estação os eixos as linhas o morto não deixou nada fechou os olhos parou de ver e dormiu. nesse ônibus até ele tem um destino

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III fora dos extremos (os quais me significam diferente) meu Ribatejo é lindo e não passo através e sim por. o sol no meu olho existe eu vejo mas também sinto o calor a estrada corta o rio mas não fica à parte deles por isso meu Ribatejo é outro um em que olho e que sou paisagem do outro aposto que ele não sente saudades são apenas biomas diferentes puras geográficas topográficas gosto do meu caminho. do caminho.

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IV agora as sombras se estendem arrastadas a luz esvai à minha direita quando o morto me começa a conversar ensinando a desaprender a ver com os olhos e anestesiar as imagens me ensina sobre gramíneas artrópodes mamíferos sapiens ou não sobre nada por que não tem o que ensinar me falou da natureza e de como não gosta de rezar quando perguntei da folha que cai ele disse: é, ela cai. respirou fundo e falou que amar é pensar

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V e chegando perto perguntei qual era o seu destino corou e calou internamente forcei o olhar e soltou abafado que seu destino era alguém então o morto nem é tanto ele se justifica por amar é pensar mas condena quem vê além da folha que cai assim eu me justifico também e fico desmontando luzes sentido frios e calores esse é o meu destino a vinte e seis minutos de distância absorvo o que importa desaprendo a desaprender volto a ver sentir assim que as luzes da minha cidade atingem a minha retina os freios rangem o ouvido e que bela contradição sentou ao lado

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