TFG - Arquitetura da Solidão

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ARQUI TETURA DA SOLI DÃO

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ARQUITETURA DA SOLIDÃO



UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO

ARQUITETURA DA SOLIDÃO

VICTOR LOPES FERRAZ CONSTANTINO Sob orientação do Prof. Dr. Sidney Tamai

BAURU NOVEMBRO 2018


Constantino, Victor Lopes Ferraz. Arquitetura da Solidão / Victor Lopes Ferraz Constantino, 2018 111 f. : 23 il. Orientador: Sidney Tamai Monografia (Graduação)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru, 2018 1. 1. Teoria. 2. Arquitetura e solidão. 3. John Hejduk. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. II. Título.


aos solitรกrios.



Agradecimentos Agradeço aos meus pais por todo o apoio durante meu percurso na faculdade, pela crença e pelo amparo. Agradeço à minha mãe por frequentemente perguntar sobre o TFG, e ao meu pai, por raramente perguntar sobre o meu TFG. Assim, eu sempre pude escolher para onde correr quando precisava de um choque ou calmaria. Agradeço ao meu irmão por me balizar entre esses dois focos. Para um trabalho que se debruça sobre a solidão pode parecer contraditório tantos agradecimentos. Aos meus amigos Mulan e Quiabo pelas boas oportunidades compartilhadas de explicar o que seria meu trabalho e assim me ajudando a entender onde eu queria chegar. À minha amiga Fernanda por dividir as ânsias e correrias do trabalho pelas madrugadas, não só neste trabalho, mas durante a faculdade. Ao Rafa, por contribuir revisando alguns trechos e apontando meus erros de continuidade. À Dr. Elza, que forneceu os primeiros textos de psicanálise, por onde comecei a abordar esse assunto. Agradeço a todos que inadvertidamente, esperando apenas uma “conversa de elevador”, me perguntaram sobre o tema do trabalho. Ao fazer isso, vocês me obrigavam sempre a elaborar melhor os meandros que devia percorrer. Esses agradecimentos mostram que a solidão não é sobre isolamento ou distanciar-se dos outros, mas sim, sobre perceber a própria força dos quereres, tanto os meus, quanto daqueles que decidimos manter ao lado.



Sair Largar o cobertor, a cama, o medo, o terço, o quarto, largar toda simbologia e religião; largar o espírito, largar a alma, abrir a porta principal e sair. Esta é a única vida e contém inimaginável beleza e dor. Já o sol, as cores da terra e o ar azul – o céu do dia – mergulharam até a próxima aurora; a noite está radiante e Deus não existe nem faz falta. Tudo é gratuito: as luzes cinéticas das avenidas, o vulto ao vento das palmeiras e a ânsia insaciável do jasmim; e, sobre todas as coisas, o eterno silêncio dos espaços infinitos que nada dizem, nada querem dizer e nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.

Antônio Cícero A cidade e os livros, p.77.



Resumo Este trabalho final de graduação tem a intenção de elaborar uma premissa teórica para o pensamento arquitetônico - uma chave interpretativa -, a partir da adição e compreensão da chamada “solidão positiva”, ou solitude. Partindo de análises acerca da obra do arquiteto John Hejduk, bem como de suas entrevistas, poemas e desenhos, procuro definir através de semelhanças e diferenças, aquilo que seria a solidão na arquitetura, uma solidão que tem o indíviduo interior como objeto de exploração. Fincando bases na psicanálise e filosofia, pretendo alcançar proposições argumentativas que insirem a solidão nos questionamentos teóricos da arquitetura e evidenciem a potência armazenada de um assunto desacreditado.



ÍNDICE

INTRODUÇÃO

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17

Há um lugar em cima do muro

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“A aberração da euforia”

PARTE UM

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29

Endereçando a solidão

32

Bases psicanalíticas

34

Solidão à terceira margem

36

Uma vaga para o indecifrável

36

O domicílio da solidão

PARTE DOIS

39

41

A impossibilidade de estar só

45

O obstáculo da comunicação

47

Solidão e niilismo

49

Caminhos para a solidão

PARTE TRÊS

53

55

Fenomenologia e arquitetura da solidão

58

Heterotopia e o desvio da solidão

62

As heterotopias de Hejduk

PARTE QUATRO

65

66

Cemetery for the ashes of thought

72

Masques: victims e hanover/lancaster

76

Diamond configuration

82

The house for the inhabitant that refuses to participate

PARTE CINCO

85

87

Solidão em Hejduk

89

A “contrarrepresentação” de Hejduk

93

A construção da luz

94

A ilusão da plenitude e a ficção da luz

CONCLUSÃO 105

103

Solidão que se abre

BIBLIOGRAFIA

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INTRODUÇÃO

[...] The drawn images, the buildings of John Hejduk, represent a re-evaluation of reduction: they have non-architectural plasticity. The written images, the poems, contained in this volume in their exfoliation, are almost non-poetic. While they are in poetic form, they are poetry of another kind. They give a physical existence to the words themselves and an autobiographical dimension to the architect; they are like secret agents in an enemy camp. Walter Benjamin has said that Baudelaire’s writings on Paris were often more real than the experience of Paris itself. Both drawing and writing contain a compaction of themes which in their conceptual density deny reduction and exfoliation for a reality of another kind: together they reveal an essence of architecture itself. Peter Eisenman


HEJDUK, John. Mask of Medusa. New York: Rizzoli, 1985. p, 100

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HÁ UM LUGAR EM CIMA DO MURO Os tempos de crise são aqueles que mais nos impulsionam à reflexão, à avaliação de um contexto antes retilíneo e, que por variados fatores, começa a oscilar. Nesses períodos as certezas são postas em xeque. Contudo, penso que crises não são necessariamente negativas, visto que nós nos atentamos para aquilo que nos cerca quando o entorno se torna um impedimento para o livre exercício do nosso desejo. Evidente que a nossa vontade deve sempre descobrir meios para se afirmar em qualquer situação que se encontre o mundo, mas ela parte de uma recusa da realidade posta, logo, implica em uma vontade que enfrenta barreiras em um primeiro instante. No entanto, ao buscar o apaziguamento, a crença plena e a mitigação de todo o sofrimento do mundo, cria-se um vasto contexto de calmaria que concede uma impressão de aconchego e êxito definitivo. Fornece à existência um compêndio mítico de artifícios que coíbem a vontade de se fazer presente na vida. Isso acontece na esperança de buscar respostas confortáveis que guiem nossas forças por nós, definindo o correto e o incorreto e trocando a suscetibilidade pelo dogma. Com isso, a proposta de se fazer um Trabalho Final de Graduação (TFG) teórico foi se mostrando como a alternativa que melhor respondia aos meus desejos e às questões que nutri – e me nutriram – por toda a vida. O meu processo de crescimento foi sempre permeado por uma forte presença da solidão costumeira, aquela do isolamento. Independentemente de questões sociais e identitárias que serviriam como respostas pragmáticas e simplórias, em retrospecto, são nos momentos de solidão que melhor retorno para perceber o fio condutor dos meus interesses. No ocaso da 18


infância, passava horas, geralmente durante reuniões e churrascos, dentro do meu quarto desenhando mapas detalhados de continentes onde possíveis histórias fantásticas teriam lugar. Se o mundo real era insuficiente eu criava os meus próprios. Após vários eventos que exigiram um posicionamento social da minha identidade, foi a leitura e a escrita que deram fuga para eu poder fincar a minha visão e as minhas mazelas, e por isso a literatura ocupa também um papel importante no meu TFG, remetendo sempre às questões exploradas por autores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Lúcio Cardoso. Ainda que não os tenha explorado efetivamente no trabalho, suas obras foram de relevância perene na tarefa de basear a ocupação da moral, do sofrimento, da angústia e da solidão, temas que a arquitetura também deveria se ocupar. Ao ingressar na faculdade a solidão surgiu novamente. No primeiro ano, quando morava em frente ao campus, num apartamento com vista pra algumas árvores e testada voltada para uma avenida remota aos finais de semana, que surgiu um pequeno lapso do que conduziria apropriadamente meu tema. Imerso em um recente distanciamento do familiar – inclusive do familiar interior – que despretensiosamente busquei “arquitetura da solidão” no Google. Foi assim que cheguei a um artigo sobre John Hejduk, o arquiteto que investigo nesse trabalho. Embora a minha ânsia fosse mais focada na solidão associada à minha recente escolha de graduação do que de fato na arquitetura, soergueu-se do artigo a percepção nada acurada da presença de uma narrativa que permeava os projetos, seus títulos, e sobretudo, os desenhos. Seus croquis – pelo modo despretensioso e “grosseiro” de representação – carregavam boa parte do que a realidade não era tão capaz de acolher. Os traços repetidos diversas vezes, na mesma direção e sobrepostos, reforçando limites e sombras, gritavam sobre uma inquietação. Ainda que o artigo falasse especificamente de projetos que Hejduk submeteu a concursos em Berlim, foi possível perceber – não sem frustrações –, que havia algo de não-dito em suas propostas, que necessitava de uma pausa maior, talvez de um silêncio mais longo. Mais adiante eu voltaria ao mesmo artigo com outra visão, mas, por enquanto, o que tinha me fisgado era ver a possibilidade da criação de uma outra realidade dentro da nossa realidade. Algo entre a fuga neurótica e o massacre cotidiano. Novamente, o fio condutor, o tema comum retornava. Impulsionado com essa descoberta, vasculhei até achar seu livro “Mask of Medusa”, em um sebo virtual. Foi então, com ele nas minhas mãos e intuindo que ali deveriam existir saberes maravilhosos, que depois de folheá-lo rapida19


mente, eu o guardei pelos próximos quatro anos. Nesses quatro anos a arquitetura tornou-se gradativamente uma atividade secundária, assim como a literatura e o desenho. Poucas eram as vezes que me sentia tomado de entusiasmo e exasperação por alguma atividade que envolvesse o ato de projetar, visto que essa expressão era frequentemente posta de lado para que outros assuntos pudessem ocupar esse espaço primário de interesse. Coisas da vida.

Imagem 01 : Montagem com capa do livro Mask of Medusa - Fonte: Arquivo do autor

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E, então, veio o intercâmbio. Após a animosidade do novo a solidão se instaurou novamente, fortalecendo dessa vez um sentimento de pretenso domínio do desconhecido. A rotina se colocava como a única saída para o medo, e uma solidão – que não era apenas aquela associada ao isolamento, mas a do desamparo e da sucessiva fraqueza em relação às minhas vontades –, minava as chances de me colocar presente em um ambiente que era todo novo. Exercícios como o de viajar sozinho expuseram mais falhas que êxitos, e os lapsos de vivacidade eram tolhidos por cismas, amargura e ressentimento, esses eram mais próximos do toque do que a força necessária para qualquer ação.

Imagem 02 : Desenho em nanquim de uma árvore na Grécia enquanto os amigos tomavam sol - Fonte: Arquivo do autor

De retorno ao Brasil, a vontade de equalizar os acontecimentos do intercâmbio surtiram, após algumas sessões de análise, durante o reconhecimento e a aceitação dessa solidão. Através da aceitação do espectro dos sentimentos – que existem como impulsos e são sem moral – foi possível amadurecer as ideias e as lembranças de angústia, que não precisavam ser maturadas pelo ressentir, pela sucessiva expiação da não-ação. Foi então que percebi um dos fios condutores do meu interesse, uma das narrativas que possibilitam o afeto de correr livre. E isso passa pela solidão necessariamente. Não somente pelo seu caráter instrumental, de concentração, silêncio e isolamento “em dois” – como nas sessões de análise – mas também por intuir que a solidão localiza-se em uma parte do espectro do sentir que é legada ao ruim, ao suspeito. Assim, retomei a escrita, retomei o projeto e a arquitetura, impulsionado por essa visão inicialmente social da solidão, mas que foi arranque para esboçar uma intenção de ressignificar a solidão, tirá-la da sombra e da reclusão, da vergonha e levar ao mesmo grau de importância que todos dão à felicidade, ao sol e à reunião. Foi então que, em um texto consegui, esmiuçar aquilo que sentia e aquilo que pretendia questionar. O texto já não serve tanto para o trabalho, mas teve total importância para direcionar os interesses. O mesmo se deu com “A casa do angustiado”, um projeto que tentava elaborar a ideia de que, para admitir a vida, é necessário admitir a morte. Portanto, investigar a solidão como uma forma de alcançar uma interpretação em arquitetura é uma tarefa que necessitou uma busca em diferentes disciplinas e desdobramentos em leituras que pudessem estabelecer não só relações de identidade, mas de diferenças. A solidão perpassa os traumas atuais nos vários campos da arte, e creio que isso ocorra sobretudo na literatura, onde o caráter pessoal, a dedicação individual é tão valorizada, como esperada. Tendo a leitura, em um passado recente, sido uma atividade coletiva e familiar, hoje ela é algo pessoal, frequentemente associada à solidão. 21


Encontrar justificativas culturais e ideológicas para uma experiência diferente da solidão foi a primeira parada, onde a compreensão do estado da solidão no curso da história ocidental me levou à crença de que algo ali pudesse ser compreendido de outra maneira. No entanto, embasar o trabalho em uma justificativa cultural acabou por conduzir a caminhos que eram pragmáticos demais e que não correspondiam com a premissa da solidão como uma capacidade libertadora para o indivíduo e, posteriormente, para a arquitetura. A velocidade da informação, as redes sociais e a comunicação. Todos esses eram temas que se distanciavam demasiadamente de uma explicação que, acredito eu, poderia ser encontrada no indivíduo, com maior êxito por não estabelecer um ponto fixo de conduta correta. Um ponto que, se fixado em bases ideológicas ou sociais, seria muito mais aproximado da moral. Em decorrência dessa escolha, busquei a solidão em outras matérias, que fossem voltadas para o indivíduo e, portanto, encontrei na psicanálise forte fundamentação tanto sobre o surgimento da solidão nos estágios iniciais de vida, quanto sobre a capacidade de experimentá-la, afastando-se das facetas mais comuns e daquelas que apontam para patologias que merecem atenção. Assim, a primeira parte desse trabalho se pauta nas definições da solidão e na retirada de rebarbas para que seja possível apontar com maior acuidade a solidão que transpõe aquela do isolamento social. Busco definir, por meio da apropriação do pensamento helênico pela igreja católica primitiva para definir qual era o papel legado à solidão no início do cristianismo, fato que resultaria em uma longa tradição cultural envolvendo os mitos do mundo para estipular uma vida plena. Assim, a solidão passa a significar um lançamento aos terrenos frágeis, à dúvida, à falta de certezas. A desmistificação do mundo ao cunhar uma identidade própria no indivíduo se faz presente no luto dos ideais para então brotar forte uma moral própria. Logo, como a arquitetura poderia reagir a isso? Arquitetos, que buscam na fenomenologia uma resposta para a sua produção, veem na solidão uma forma de distanciar os estímulos sensoriais que as cidades e os meios de comunicação de massa apresentam incessantemente dos indivíduos transbordados. Logo, a arquitetura possível para a solidão seria uma que passasse a sensação de solidão a fim de filtrar maus estímulos. Além de privilegiar o valor da arquitetura somente a partir de um referencial humano, a fenomenologia também fornece à solidão a utilidade instrumental e pragmática. Então, é com Foucault e suas heterotopias que encontro um 22


outro caminho para melhor entender a solidão na arquitetura, evidenciando dessa forma, uma sublimação no pensamento ocidental, bem como a abertura de um espaço para a expressão. Com isso, a heterotopia possui duas frentes bem definidas sobre a solidão: em uma, ela destitui a exatidão do ponto e privilegia a posição dentro de um espectro que pode ser definido por um tempo específico. Isso é levar a posição para esse espaço em potencial, pra esse espaço da incerteza da sua localização, para a terceira margem; na outra é que a heterotopia abrange a solidão do ponto de vista social quando tratada como desvio. A heterotopia acolhe o desvio pois esses se colocam num lugar na sociedade que subvertem o espaço da própria sociedade, ela está e não está inserida nas estruturas de convívio. O conceito é importante para o trabalho porque fornece aquilo que a solidão busca e também assimila a própria solidão enquanto aspecto social. É aqui que eu retorno a John Hejduk, pois a leitura que eu faço do autor se concentra em ambos os aspectos fornecidos pela heterotopia, sobretudo no primeiro. Seus projetos teóricos, conceituais – como possa ser chamado –, é incutido de tanta realidade, de tanta certeza e força que tais qualidades desestabilizam a própria noção do que pode ser o real. Seus croquis, desenhos técnicos, poemas e narrativas, carregam detalhes com grande gravidade, que as tornam assustadoras, pois como projetos que são tão afirmativos – por vezes autoritários –, e abstratos, podem de fato ocupar um espaço na realidade concreta das cidades para as quais eles são propostos. Isso por si só fecharia o trabalho, pois existe a saída e existe o retorno a ela. Poderia simplesmente fazer a leitura sobre John Hejduk a partir das heterotopias de Foucault, como uma arquitetura que libera a vida. Mas seus projetos, suas estruturas, eram demasiadamente rígidas, formalmente e teoricamente. Eles avançam rumo à vontade livre, mas se deixam prender por uma dualidade moral, da criação de uma segunda via para uma representação de mundo através da arquitetura e, ainda que ele não atribui-se à solidão e a outros atributos do homem um sinal negativo, havia um horizonte que não explorava a capacidade de romper com os mitos que algemam o homem aos seus ídolos. Existe em Hejduk um ideal de controle mesclado aos questionamentos formais próprios do contexto temporal. Entretanto, ele via na sua arquitetura um dever, uma força ao preencher um vácuo acentuado pelo modernismo. O autor chama esse hiato de “arquitetura do pessimismo”, uma corrente que privilegiava espaços abertos, a luz do sol, programas da felicidade, saudáveis, em detrimento de programas para “desvios”. A sua produção deveria se opor à arquitetura do otimismo. 23


Foram esses aspectos percebidos em seus projetos, quando eu simplesmente folheava seu livro ou, então, refletia sobre a solidão, que me aproximaram de Hejduk. No entanto, houve a constatação de que havia, entremeado a esse pensamento de desmontar a ideia de negatividade acerca da solidão, uma linha que buscava reagir ao estado de coisas. As propostas em suas “heterotopias” sempre ressaltam o indivíduo e sua solidão, até mesmo pela ideia de confinamento. Esse autoritarismo tinha de fato um significado em seus projetos, pois eles ressaltavam um momento histórico social. Mas ele contrapunha um pragmatismo ao outro, e o seu deveria ser tão forte e presente para que viesse a justapor aos programas da felicidade, alcançando um equilíbrio idealizado. Hejduk reavalia a situação pós-moderna, mas dela ele tira um posicionamento que exala controle e autoridade, não somente do ponto de vista das suas propostas, mas para o próprio exercício da arquitetura, ainda que concedesse lugar para elementos da vida que foram subalternizados, sua forma de refundar a arquitetura limitava sua expressão por uma outra moral. Portanto, para onde a arquitetura da solidão poderia fluir agora? Tendo encontrado esses relevos, qual caminho ela poderia seguir para não permanecer represada? Algo bastante presente tanto nas entrevistas que existem em seu livro, mas também em vídeos, mostravam um certo embate entre Hejduk e Eisenman. O arquiteto do Memorial do Holocausto por vezes questionava Hejduk por fazer uma arquitetura demasiadamente poética e de explica-la através de metáforas que continham uma beleza, mas que não se traduziam formalmente. Eram metáforas. Procurando entender a causa dessa divergência que me aproximei dos textos de Eisenman. Neles, Eisenman procuram vasculhar as ficções que a arquitetura moderna continuou a criar e reproduzir. É então que, baseado nessas ficções, encaminhei o trabalho para avaliar na arquitetura um momento que considero crucial para esse argumento, que é o da já explorada apropriação do cristianismo e a ressignificação da arquitetura romana. O deslocamento da solidão como valor metafisico, que foi necessário para a parte de filosofia, para entendermos que ela como construção colocada em posição inferior a algo, é também importante para entendermos esses valores na arquitetura. Veja, se a solidão, a experiência do isolamento, se contrapõe a comunhão e a experiência coletiva, e ela teve um início a partir da apropriação de valores e temas romanos, talvez seja possível reconhecer na arquitetura esse mesmo tipo de apropriação. No entanto ressignificar, ou seja, associar a um signo uma série de outros significados, não é necessariamente algo ruim, pelo contrário, um signo não é necessariamen24


te bom ou ruim, mas os significados associados a eles podem mudar, e mudam, conforme gira o mundo. O que faria então da apropriação cristã de signos espaciais e formais (além dos culturais) dos romanos algo que pudesse ser alvo de indagações. São esses os caminhos que percorro na tentativa de reconhecer uma arquitetura da solidão, ou uma arquitetura que consiga se desatar de mais um repertório ilusório que tende a encaminhar o homem à plenitude. Apesar da abordagem messiânica que pareça existir, proponho nada além de uma chave interpretativa, a partir do valor solidão, identificável ao longo das produções de Hejduk e suas investigações no decorrer da vida — objetos que buscarei explorar — e que doto de importância pela singularidade de sua apresentação, mas sobretudo pela força daquilo que é apresentado. Os afetos percorrem trajetos que são misteriosos até que aconteçam e que se notem. Portanto, permitir o livre fluxo desses afetos é conceder mais espaço para a criatividade se fazer presente e desejosa, tanto na vida quanto na arquitetura.

“A ABERRAÇÃO DA EUFORIA” Os projetos residenciais atuais, sobretudo no Brasil, supõem uma casa totalmente iluminada, com momentos de felicidades absolutas. Momentos que se passem em espaços felizes, espaços que acompanhem os dias de sol e a luz plena e sufocante do dia claro. Mesmo os espaços reservados são também para a felicidade, ainda que muito menores que outros cômodos como as salas e cozinhas. Claro que isso se dá, em um âmbito mais prático e técnico, pela circulação, sendo maior nessas áreas comuns e menores em áreas “privadas”, como os quartos e banheiros. Ainda assim as áreas de interesse e trabalhadas com cuidado são as áreas coletivas, as áreas dos almoços, das uniões, das risadas altas, do churrasco, e tudo tocado pelo sol. A suposição de uma felicidade plena e a supressão de qualquer outro sentimento menos eufórico ou “negativo” é a tônica das relações atuais e aquilo que se estimula no indivíduo jogado na massa. Esse ser absoluto de alegria e pleno existe virtualmente nas redes sociais e em fotos compartilhadas, propagando e propagandeando a felicidade como um ideal absolutamente alcançável, o “ser” feliz, que só é possível através da plenitude. No mundo real, no qual as coisas ainda acontecem em espaços projetados, esse ser feliz e pleno perece, e a plenitude só pode ser alcançada no fim derradeiro. Voltando às casas. Por que então não se projeta espaços para a incerteza, angústia, tristeza, para uma gama maior de sen25


timentos que fazem parte do espectro do ser humano real? Acontece então de passarmos para os espaços aquilo que fazemos com esses sentimentos: reduzi-los a ponto de caberem em ambientes pequenos e, como dizem, “íntimos”, sendo o quarto grande demais para isso, chegamos ao banheiro, um espaço frio a princípio, pelos azulejos e totalmente asséptico impessoal. É nesse espaço onde, na maioria das vezes, concedemos aos sentimentos guardados uma ocupação na casa, seu último nível de intimidade. Isso reflete espacialmente a conduta geral: compartilha-se a felicidade e momentos que mostrem o prazer, por menores e íntimos que sejam, além de se esconder a tristeza e a dor como algo que “os outros não precisam saber”. Qualificar quão danosa é essa conduta equivocada para o indivíduo foge do escopo do meu conhecimento, mas para o espaço, projeto e também para a arquitetura em si é uma armadilha bem escondida atrás das paredes, é a extensão para o espaço de uma conduta prejudicial, é estabelecer formalmente, em solidez exposta, que não se deve mostrar tristeza, ou pior, senti-la. A casa, o espaço privado do indivíduo, onde supostamente deveria suprir todas as formas do sentimento humano, ou então equalizá-los, é reproduzido, sem o menor questionamento, o aprisionamento do ser. Projetar para a felicidade é projetar falhando. Projetar para um ser feliz e pleno é projetar para um ideal de humano e não um humano real, e, portanto, incompleto. O domicílio deve proporcionar uma experiência que possa ser completa, da forma mais equilibrada possível, e não transformando os espaços em aberrações eufóricas e reduzir ainda mais o ser completo e os sentimentos que são entendidos como ruins. Ainda que falem que pode se sentir o que quiser onde quiser, e que um choro acontece independente do ambiente, a felicidade deveria poder acontecer também independente de salas enormes e claras, e acontecer em um ambiente pequeno e escuro, por que então o sorrir depende de lugares privilegiados e projetados para serem ininterruptos? A casa, portanto, reflete de tal forma em seus espaços uma afetação inquestionável, que negligência o espectro total das emoções e sentimentos, formalizando assim um estado constante da necessidade de estar feliz. 20 / 04 / 2017

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PARTE UM

Trazer a solidĂŁo para dentro

Diana

The arrow enlarged the heart in the black Diana lowered her bow The string had broke A wind moved her cape covering the face His hand slipped from above boots tipped a branch It without sound became cold sepia John Hejduk


HEJDUK, John. Mask of Medusa. New York: Rizzoli, 1985. p, 101

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ENDEREÇANDO A SOLIDÃO “Inserida no dinâmico processo de tensão e transformação culturais, patologizada e negativada segundo alguns registros do pensamento, a solidão tem sido, sistematicamente, tratada e curada, visando ser reconduzida à normalidade da convivência grupal e social.” 1

Um tema espinhoso como a solidão, ainda que apresentado como uma chave de interpretação, deve ser tratado com a devida importância para que alcancemos uma compreensão assertiva e sem ruídos. Essa necessidade também se dá em razão da solidão estar sendo tratada, em países como Estados Unidos e Reino Unido, como um problema de saúde pública, onde atinge sobretudo a população com mais de 65 anos.2 Esses levantamentos tratam de identificar pessoas que vivem sozinha e que, portanto, são vistas como mais propícias a experimentarem a solidão, ou ainda, desenvolverem doenças como a depressão. Estudos conduzidos pelo cientista John T. Cacioppo, co-fundador da área de neurociência social e psicólogo estadunidense, apontam que o isolamento social acelera o declínio cognitivo e aumenta as chances de mortalidade.3 Essa nova problemática surge e cresce paradoxalmente aos avanços tecnológicos, que facilitam cada vez mais a comunicação e as formas com que estabelecemos nossas relações. Isso decorre também da tônica apresentada nas redes sociais, onde compartilha-se experiências prazerosas em paisagens paradisíacas, podendo afetar a forma como vemos as nossas experiências. Para Christian Dunker, o ideal que temos dessa nova era de conectividade e aproximação entre as pessoas fazem aprofundar o sentimento de isolamento social.4 30

1 MANSUR, Luci Helena. Solitude: virando a solidão do avesso. Revista Ide. São Paulo, 2008. p. 38 2 MONTESANTI, Beatriz. Estamos vivendo uma epidemia de solidão? Nexo Jornal, 2018. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/09/10/Estamos-vivendo-uma-epidemia-de-solid%C3%A3o>. Acesso em: 03 mar. 2018. 3 KHULLAR, Dhruv. How social isolation is killing us. The New York Times, 2016. Disponível em: <https:// www.nytimes.com/2016/12/22/upshot/ how-social-isolation-is-killing-us.html?smid=fb-nytimes&smtyp=cur&_r=0>. Acesso em: 05 mar. 2018. 4 DUNKER, Christian. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu Editora, 2017. p. 28.


Porém, não é recente a maneira inferior e subalternizada com que a solidão é tratada. O psicanalista brasileiro Chaim Katz, em uma análise ideológica e cultural da solidão, identifica em diferentes agrupamentos no curso da história formas pelas quais a solidão é exercida por indivíduos que optam por uma conduta solitária, geralmente contrárias as regras ou convenções de grupos maiores e instituições. As consequências desses tipos de relação com o mundo são expostas através de perseguições ou mesmo exílios voluntários ou não e que contribuem para expor os dogmas e tabus que envolvem a solidão em ações que hoje nos soam banais. Exemplo disso é o modo pelo através do qual se deveria comungar com deus nos primeiros anos do catolicismo, uma atividade coletiva que era vista com suspeita caso o devoto escolhesse uma relação solitária com deus.5

5 KATZ, Chaim Samuel. O coração distante. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 87. 6 DE LIMA, Juliana Domingos. O que é o cinema ‘slow’. E alguns filmes que seguem a tendência. Nexo Jornal, 2018. Disponível em: <https://www.nexojornal.com. br/expresso/2018/08/01/O-que-%C3%A9-o-cinema-%E2%80%98slow%E2%80%99.-E-alguns-filmes-que-seguem-a-tend%C3%AAncia>. Acesso em: 05 ago. 2018. 7 CIMENT, Michel. “The State of Cinema”. Unspoken Cinema, 2003. Disponível em: <http://unspokencinema.blogspot.com/2006/10/state-of-cinema-m-ciment.html>. Acesso em: 05 ago. 2018 8 FLANAGAN, Matthew. “Towards an Aesthetic of Slow in Contemporary Cinema”. 16:9, nov. 2008. Disponível em: <http://www.16-9.dk/2008-11/ side11_inenglish.htm>. Acesso em 08 ago. 2018 9 MILLS, Brenda. Silence and solitude: escaping information overload. Adobe Blog, 2018. Disponível em: <https://theblog.adobe.com/silence-solitude-escaping-information-overload>. Acesso em: 07 abr. 2018.

Ainda que o tema da solidão seja visto distante de uma acepção da questão pública de bem-estar, ele, em um escopo que ruma ao individual mais que ao coletivo, sofre de um forte estigma em torno de si. Pessoas solitárias ou mais reclusas, são frequentemente vistas com suspeitas ou mesmo recebem alcunhas que reafirmam um olhar pejorativo. Isso se dá também decorrente, em grande parte, de outro tema que vem sendo debatido com mais abertura: a depressão. Da mesma fenda que permite uma discussão menos estreita sobre a depressão, desponta também a lentidão e o silêncio como forma de conduta nas mais diversas frentes da vida e produção artística. É o caso do movimento Slow, que surgiu no final do século XX e inicialmente refletia sobre a alimentação rápida, que não se atentava para a procedência nem a qualidade do alimento ingerido. Logo o movimento ganhou ramos fortes e espalhou-se para outras esferas, continuando a promover a lógica da diminuição da velocidade dos atos cotidianos.6 Em um texto de 2003, o crítico de cinema Michel Ciment, em ocasião do 46º Festival Internacional de Cinema de São Francisco, utilizou a expressão “cinema of slowness”, referindo-se a uma forma de contrapor as imagens e sons rápidos que, tanto a televisão quanto o cinema, ofereciam ao espectador.7 Disso decorrem outros artigos sobre o assunto. Em um deles é lançado o argumento de que, os cineastas alinhados com essa nova estética, geralmente falam a favor dela a partir de uma depreciação do “cinema rápido”, portanto estabelecendo a existência de uma posição dominante e reagindo a ela.8 Um outro exemplo mais recente é do artigo de início de março de 2018 no blog da Adobe9, por Brenda Mills, diretora dos Serviços Criativos e Tendências Visuais do Adobe Stock. No texto, ela aponta como tendência para o ano o tema “Silên31


cio e Solitude”.10 A maior causa dessa busca se dá, segunda ela, devido à uma vontade de afastamento dos barulhos da cidade e também de distrações e estresses causados pelas contínuas notificações de aparelhos e por assuntos políticos. Essa busca encontra-se alinhada em um contexto onde a promoção da solitude, ilustrado no Adobe Stock por imagens de tons azulados e constante presença da natureza, surge como alternativa para o aumento da produtividade em agências e escritórios. Apesar dessa mudança de perspectiva recente, que ruma à lentidão, silêncio e solidão, é interessante observar quando algumas dessas relações se estabelecem a partir de um contraponto à chamada “Indústria Cultural”, termo criado pelos filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer em “A Dialética do Esclarecimento.”11 Esses valores são alçados como uma ação reativa a um estado de coisas estipulado, no caso pelo capital. Desse modo, o valor atribuído a esse novo tipo de visão é aquele que melhor se mostra contrário aos valores estabelecidos pela “Indústria Cultural”, estando seu sucesso ligado mais às questões pragmáticas, definidas por aquilo que se combate, do que propriamente pelas escolhas estéticas ou criação de valores e argumentos. Aquilo que é bom – ou ruim – se distancia mais dos valores estéticos e intrínsecos à obra. Foucault, na terceira parte de seu livro “História da Sexualidade”, intitulado “O Cuidado de Si”, ao discorrer sobre o individualismo crescente no período helenístico, propõe uma diferenciação entre três tratos que devem ser entendidos separadamente: “De fato, convém distinguir três coisas: a atitude individualista, caracterizada pelo valor absoluto que se atribui ao indivíduo em sua singularidade e pelo grau de independência que lhe é atribuído em relação ao grupo ao qual ele pertence ou às instituições das quais ele depende; a valorização da vida privada, ou seja, a importância reconhecida às relações familiares, às formas de atividades domésticas e ao campo dos interesses patrimoniais e, finalmente, a intensidade das relações consigo, isto é, das formas nas quais se é chamado a se tomar a si próprio como objeto de conhecimento e campo de ação para transformar-se, corrigir-se, purificar-se, e promover a própria salvação. É claro que essas atitudes podem ser ligadas entre si assim pode ocorrer de o individualismo exigir a intensificação dos valores da vida privada ou ainda que a importância atribuída às relações consigo seja associada a exaltação da singularidade individual. Mas esses vínculos não são constantes nem necessários.” 12

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10 “Silence and Solitude” no inglês. Optei por traduzir a palavra “solitude”, do inglês, também como solitude para ajudar a cunhar o vocábulo existente em português e o caráter similar entre os significados nos dois idiomas, estando a palavra “solidão” mais próxima de “loneliness”. 11 HORKHEIMER, Max & ADORNO, Teodor W. O conceito de Esclarecimento, in: Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 12 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. p. 48


Ainda que esses diferentes tratos de entendimento tenham sido necessários para uma compreensão de certo período histórico, podemos utilizar dessas categorias para insistir em uma abordagem aguçada da solidão, sendo ela a “intensidade das relações consigo”. Trazer uma definição, no sentido de desbastar algumas acepções se faz necessário pela caracterização negativa daquilo que envolve a solidão.13 Portanto, fazer uma abordagem cultural e ideológica da solidão responde, sobretudo, ao apelo de compreendermos as diferentes maneiras com que ela é posta em jogo e suas nuances e preponderâncias, sobretudo no que tange a moralidade, variando de acordo com os interesses. Dito isso, é possível revolver essa narrativa, que se pretende impermeável, mas que cada vez mais descobrimos poros pelos quais conseguimos estabelecer compreensões mais complexas. Também, a escolha desse tema como tendência reforça o caráter latente do assunto, e também uma mudança no modo como o distanciamento social está sendo encarado. Além de apontar uma diferença crucial entre a busca pela solidão (solitude) para “curar-se” dos malefícios da vida cotidiana e a solidão (loneliness) legada pela ausência não desejada de contato social, levando a uma investigação que se aproxima do “eu”. “[…] a solidão se impõe contra a consciência do homem normativo contemporâneo, que só admite a existência social do humano.” 14

É importante dizer nesse momento, que a abordagem escolhida para compor esse estudo não tenta minimizar os efeitos negativos da solidão ou mesmo ignorá-la enquanto sintoma de patologias. Não obstante, procura oferecer uma visão que incide de outros ângulos, distantes de qualquer tipo de presunção que possa ser estabelecida. BASES PSICANALÍTICAS

13 Na dissertação de mestrado de Luiz Carlos Teixeira Bohrer, Solidão Criadora, também há uma remontagem da solidão e da necessidade primária de tirar as rebarbas antes de adentrar no tema em si. Também o faz, mas como o objeto do artigo, Luci Helena Mansur no texto “Solitude, virando a solidão do avesso”. 14 p. 30.

op. cit. O coração distante.

Existem maneiras distintas de alcançar a temática da solidão enquanto objeto de estudo, seja com uma abordagem ancorada na saúde pública, ou pelos efeitos da conectividade e compartilhamento em ascensão ou, então, sintomática da depressão, onde se aproxima do escopo do indivíduo. Nesse nível, a solidão é tratada não a partir da situação de estar só, privado de companhia ou isolado, mas sim da solidão interna, do sentimento de estar só mesmo em companhia de outros. Melanie Klein, psicanalista austríaca nascida no final do século XIX, em “Sobre o sentimento de solidão” diz: “embora a solidão possa ser minorada ou aumentada por influências externas, nunca poderá ser completamente eliminada, porque a ânsia

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por integração, assim como a dor vivenciada no processo de integração, brota de fontes internas que permanecem poderosas no decorrer de toda a vida.” 15

Transpor a abordagem do campo social – onde são necessárias certas assunções ligadas a saúde de uma população –, para a maneira como a solidão é desenvolvida no indivíduo, torna-se um movimento indispensável para a compreensão de sua causa e importância para o amadurecimento do sujeito. A psicanálise muito diz sobre o medo ou desejo de ficar só, maneiras essas que veem na solidão um fruto ou fim das angústias, porém, cada vez mais autores argumentam sobre outras formas de encarar a solidão. Dentre outras, ressalto aquelas que apresentam de maneira objetiva a incapacidade do indivíduo de atingir a “plenitude”, estado esse onde as angústias seriam completamente mitigadas. “[...] a existência de uma plenitude humana é uma criação de certos tipos de pensamento, para afirmar uma “queda” do homem, e a necessidade de “se assumir” enquanto retorno ao paraíso.” 16

A capacidade de estar só desenvolve-se nos estágios iniciais de vida - lactente ou criança pequena –, sendo descrita como um paradoxo, pois surge quando é possível estar só na presença de mais alguém, geralmente a mãe ou figura materna.17 O lactente ou criança pequena não possuiu uma distinção estabelecida daquilo que é si mesmo e o outro. Essa fronteira embaçada de início torna-se mais nítida com o tempo, a partir da relação com a mãe ou figura materna, podendo ser também identificado como objeto bom. Assim, chega um momento em que o indivíduo é capaz de dispensar a presença da mãe.18 Segundo Winnicott (1983) “maturidade e capacidade de ficar só significam que o indivíduo teve oportunidade através de maternidade suficientemente boa de construir uma crença num ambiente benigno”.

Como fruto da introjeção desse ambiente benigno, o indivíduo começa a desenvolver a sua capacidade de estar sozinho. Essa capacidade, bem construída e definida nos primeiros estágios de vida, proporcionam posteriormente uma definição mais clara de sua própria identidade e da definição daquilo que seria o outro sujeito. Para Jean-Michel Quinodoz, o momento onde se elabora a angústia de separação ou perda é um ponto crucial para que a solidão seja “domesticada”.19 Esses processos expõe os sentimentos decorrentes de uma ruptura do sujeito com o objeto. Geralmente, perda tem um caráter definitivo, enquanto separação pode ser compreendido a partir de mudanças ou distan34

15 KLEIN, Melanie. Inveja e gratidão e outros trabalhos (19461963). Rio de Janeiro: Imago Ed. 1991, p. 354. 16 31

op. cit. O coração distante. p.

17 WINNICOTT, Donald Woods. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas. 1983, p. 32 18 Idem. 19 QUINODOZ, Jean-Michel. A solidão domesticada: a angústia de separação em psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas. 1993, p. 23


ciamentos breves. A solidão é colocada no centro da discussão pela sua capacidade de fazer a distinção daquilo que o sujeito entende por “si mesmo” e aquilo que é externo a ele, diferenciando-se, portanto, daquilo que é o outro. No âmbito descrito por Quinodoz, ele argumenta que a solidão deve ser estabelecida como uma maneira de promover a construção de uma identidade, visto que sofrer da angústia de separação ou perda do objeto faz com que encaremos o fato de estarmos só.20 O autor explicita esse pensamento no trecho seguinte: [...] sentir a dor de nossa solidão faz-nos tomar consciência de que existimos como ser só e único em relação ao outro, e que o outro é diferente de nós. É assim que a angústia de separação forja nosso sentimento de identidade, bem como nosso conhecimento do outro [...]. 21

SOLIDÃO À TERCEIRA MARGEM “Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo – a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.” 22

A obra de Guimarães Rosa, além de ser objeto recorrente de estudos literários, é também alvo de estudos psicanalíticos, sobretudo seus contos. O conto “A Terceira Margem do Rio”, entre outras análises, comporta a percepção acerca da angústia de separação do narrador pela partida do pai e suas consequências. 23 Além de possibilitar leituras sobre outras questões, como culpa, ressentimento e castração, o conto também tangencia a solidão, sendo esse o ponto do escrutínio e que compreende também uma análise que a concerne.

20

Ibid. p. 27

21

Ibid. p. 24

22 ROSA, José Guimarães. A terceira margem do rio. In: Ficção completa: volume II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 409. 23 PERRONE-MOYSES, Leyla. Para trás da serra do mim. SCRIPTA. Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 210-217, 1º sem. 2002

No conto, seguimos a narração do personagem do filho. É este personagem que conta a história de seu pai, figura que certo dia resolve mandar construir uma canoa só para si e, sob incompreensões e dúvidas, vai embora sozinho para o grande rio. O narrador-filho desenreda a dinâmica das relações familiares, como a assertividade da mãe e o silêncio do pai – silêncio esse que diz em seu “não dizer” -, o que torna a decisão de ir para o rio um acontecimento singular e espantoso. A solidão tem sua primeira aparição no trecho em que o pai “decide um adeus” para a família. O narrador se aproxima do pai, em um movimento distinto do restante da família e pergunta se ele o levaria junto na canoa. O pai em silêncio dá a benção ao menino e gesticula para que ele voltasse para a mãe. O homem deve ir sozinho nessa canoa. O fato apontado no segundo parágrafo do conto, de que a canoa era pequena, “como 35


para caber justo o remador”, fortalece o entendimento de que essa tarefa é de somente um indivíduo. O que corre no conto, a partir disso, são as reações a esse estranho evento, é também a partir daí, que é o autor começa a definir o que resta na margem e o que resta no rio. A descrição se dá por uma sucessão de fatos que acontecem na margem, com aqueles que ficam, pelo olhar do narrador. É apresentado o revolvimento de uma realidade prática, que incide no contingente do acontecimento tão inusitado. São os familiares, as notícias, as instituições, que vêm averiguar o que se passou. Também são questões táteis as expostas pelo narrador quando refere-se ao pai. A margem é o local de segurança, da realidade prática, onde se pisa em terra firme, das certezas cabais. É na margem que correm os boatos, onde as pessoas se desconcertam diante da partida do pai e devem passar a buscar rearranjos no cotidiano. Como o narrador permanece na margem, pouco se diz sobre o rio, adjetivado no início do conto como “grande, fundo, calado que sempre”. O rio é posteriormente referido também como “o ermo”, contribuindo para a compreensão de um local incerto e misterioso, turvo. Aquilo que resta no rio, portanto, é a “nenhuma parte” descrita no texto, lugar que não existe, onde não se sabe sobre a realidade substancial da existência do pai, como sua alimentação ou paradeiro. Sua existência é posta em suspensão. Também por isso, uma interpretação cabível é a de perceber o rio como o evento da morte. 24 Percebe-se a solidão novamente ao final do conto, quando o filho, já velho, grita ao pai propondo que agora eles trocassem de lugar. O pai voltaria para a margem e o filho ocuparia o seu lugar na canoa. No entanto, quando o pai acena, aceitando e vindo em direção à margem, o filho amedrontado, foge do pai carregando consigo a culpa pelo “falimento”. Fica ainda mais evidente que a ida para o rio é uma tarefa única, pessoal, uma jornada que deve ser vivida por cada um. Ir para o meio do rio é ir para longe dos pontos seguros da exatidão e do discernimento, onde prossegue o viver sem cautela e a vontade encontra vazão, onde se encontra também, a suscetibilidade. A leitura da solidão deve acontecer não como distanciamento da vida prática, ou das ditas distrações do mundo – como se dessa maneira fosse possível alcançar uma acuidade de sentido nas coisas e ações –, mas de um posicionamento nesse local de suscetibilidade, de balanço, que escolhe a realidade singular da canoa vagando pelo rio profundo à realidade prática das certezas coletivas e institucionais. Ser a terceira margem do rio é abrir mão da busca por margens, por solos firmes e amparos irredutíveis. É se lançar, com 36

24 ROSENBAUM, Yudith. Guimarães Rosa: a terceira margem do rio | Yudith Rosembaum. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=82IAeFHc9Pc&t=3s>. Acesso em: 14 ago. 2018.


a certeza de canoa, da dureza de sua madeira, em meio ao “rio adentro, rio afora”. É ter demarcado a aceitação do sofrimento, que certo é infinito, mas não perene. UMA VAGA PARA O INDECIFRÁVEL O conto de Guimarães é passível de uma interpretação rica do ponto de vista da solidão, pois em diversos trechos o autor traz à tona uma relação com o “estar só” muito peculiar. Essas relações, expostas inclusive pelo vocabulário do conto, fornecessem paralelos para um entendimento de outros temas que circundam a solidão, como a dificuldade de comunica-la e a busca por um isolamento. Outro ponto que transparece no conto é aquele que se aproxima do “estranho familiar”, ou Unheimlich. O rio guarda uma proximidade que é geográfica, mas que se confunde com uma proximidade afetiva, mesmo antes do pai adentrar. No entanto, essa proximidade que poderia conferir familiaridade, já vem marcada com ressabio e mistério, sendo o rio tão largo que é difícil ver o outro lado. A falta de nitidez, sua profundidade e seu silêncio, corrobora para que esse elemento salte como um contraponto aquilo que é diretamente familiar na margem. Freud, em “O Inquietante”, sabidamente distingue a capacidade e, de certa forma também, as premissas da ficção em lidar com esse “estranho famíliar”, onde ganha contornos mais acentuados, pois a fantasia na ficção é sua própria realidade.25 Ainda assim, o rio no conto tem força de repressão e castração para o narrador-filho, que sente-se inclusive menos forte, menos homem, pela recusa ao trocar de lugar com o pai. Também por isso, a utilização do conto faz aflorar certas querelas que dizem tanto ao inconsciente, e que são melhor sentidas do que explicadas. Nesse sentido, explorar as capacidades adjacentes à essa interpretação é tocar de outras formas o assunto, a fim de aguçar a compreensão acerca dele. O DOMICÍLIO DA SOLIDÃO

25 FREUD, Sigmund. “O inquietante”. História de uma neurose infantil (O homem dos lobos): além do princípio do prazer e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras. 2010, p. 371.

A solidão está intimamente ligada aos nossos processos de frustração e sentimentos de dor e desamparo, visto que as ocasionais ausências que sentimos nas diversas etapas da vida, solidificam o nosso próprio entendimento de si quando bem manejadas. Em um artigo esclarecedor intitulado “Solitude, virando a solidão do avesso”, Luci Helena Mansur reforça o caráter latente do sentimento de solidão com o seguinte trecho: 37


“Fenômeno universal e cotidiano, indicador da natureza complexa das ligações interpessoais, a dor da separação pode ser reconhecida na linguagem emocionada e espontânea dos momentos de despedida e de reencontro, revelando a importância das relações afetivas e a falta que uma pessoa querida nos faz.” 26

É evidente e válido de ser ressaltado, que não é suprimindo a angústia ou afastando-se de qualquer sentimento doloroso causado por uma perda, que iremos alcançar uma suposta felicidade plena, pois estes eventos ocorrem no mundo, e em nossas vidas, muitas vezes apesar de nossos desejos. Assim, a busca pela felicidade, exibe um valor universal como meta de vida, ainda que não saibamos exatamente os caminhos para o êxito. Mas ela está sendo mapeada.27 Muito além do combate à ânsia pela felicidade, a intenção é argumentar em favor da solitude, da solidão positiva, a solidão que possa ser domesticada e posta a serviço de nós mesmos e nossas vontades. É a solitude que possibilita uma compreensão e exaltação de si, do indivíduo, legando a cada um de nós efeitos positivos e negativos de suas próprias decisões. Expor-se à solitude – ser a terceira margem do rio –, não é necessariamente se lançar ao incerto negativo, à falta de amparo tão somente, ou então abrir mão dos parâmetros morais por mera dirupção, mas sim, nesses momentos, estimular e cultivar a criatividade que nos é inerente, tomarmos nas mãos a condução da nossa existência enquanto indivíduos e, sobretudo, constatar a nossa independência para agir e pensar. “Portanto, a criação de si mesmo, da própria existência, seria a obra fundamental do ser humano, implícita no conceito de self - como contínuo vir-a-ser.” 28

26 op. cit. Solitude: virando a solidão do avesso. p. 39 27 ZIZEK, Slavoj. Felicidade? Não, obrigado! Nexo Jornal, 2018. Tradução por: Artur Renzo. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/ ensaio/2018/Felicidade-N%C3%A3o-obrigado>. Acesso em: 04 mar. 2018. 28 op. cit. Solitude: virando a solidão do avesso. p. 43

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PARTE DOIS

Reaver o tempo sozinho

Bacchus

the stone sea shell envelops a granite window pane the marble Bacchus uplifts the solid goblet arm veins brush the grapes eyes convolute circular incisions made from within Saint Anne contemplates fabrics and limbs disengagement follows voided contours vacuums fill the pores seepage is inevitable John Hejduk


HEJDUK, John. Mask of Medusa. New York: Rizzoli, 1985. p, 101

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A IMPOSSIBILIDADE DE ESTAR SÓ “Apenas uma espécie fatigada precisa, para viver, de crença, de verdade, de instâncias de autoridade que as legitimem e sancionem, ao invés de ser ela mesma legisladora, instauradora, criadora.” 1

Os primeiros séculos do cristianismo foram conturbados, várias formulações controversas se chocavam devido a diversidade de crenças daqueles que eram recentemente convertidos, vindos de tradições diversas como judaicas e pagãs. Nesse período, o pensamento helenístico era um contraponto à nova doutrinação e suscitava embates entre o pensamento filosófico e a insurgente teologia. Pensadores como Aristóteles e Platão foram utilizados para validar o conhecimento e a doutrina cristã, bem como contextualizar e dogmatizar preceitos, sem a preocupação em subverter suas ideias.2 Conceitos como catarse e a separação do mundo entre sensível e inteligível ganharam novas abordagens na tentativa de aproximar a filosofia de um saber divino. Mesmo o entendimento do exercício filosófico passou a ser compreendido de modo diferente, alterando-se para que pudessem examinar esse novo ambiente divino sem ofender a doutrina. Essa formulação foi levantada especificamente pelo teólogo Gregório de Nazianzo (329 – 389), que via na catarse uma purificação da carne, sua domesticação, para que assim, o homem pudesse estar mais próximo das coisas relativas ao espírito, mais próximo ao divino.3 Isso leva a outra subversão da filosofia de Platão: a diferenciação entre o mundo sensível e o mundo inteligível. O primeiro, o mundo sensível, é aquele que onde o mundo é experienciado pelos sentidos, pelo corpo; o segundo, o mundo inteligível, é 42

1 PELBART. P. P. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 edições, 2013. p. 109 2 SPINIELLI, Miguel. Platonismo cristão? Que platonismo?. In:_____ Boletim do CPA, Campinas, nº 15, jan./jun. 2003 p.157 3

Ibid. p. 162


aquele acedemos somente a partir do pensamento, das ideias, pois esse é o mundo que guarda a essência das coisas. A solidão aqui ganha força, pois é pelo exercício reflexivo, estando só e concentrado, que nos aproximamos do local desse conhecimento pleno das coisas. Há, na verdade, um rearranjo de ideais absolutos, e nesse manejo a solidão se desfaz como estado de busca de conhecimento. A ideia de que existe um mundo inteligível, no qual reside a essência de todas as coisas – o conhecimento pleno do mundo, ou melhor, a verdade –, é substituída pelo mundo sobrenatural, divino, que está acima do plano terreno, do mundano, portanto, mais próximo de deus e de um novo absoluto de verdade e conhecimento. No entanto, a busca por esse estado absoluto de conhecimento e verdade – a plenitude –, não se faz mais pela reflexão filosófica, pelo exame racional das coisas, mas pela abdicação dos prazeres da carne, dos pecados, sendo essa conduta a que levaria, na outra vida, ao mundo espiritual, aquilo que Santo Agostinho chamaria de a Cidade de Deus. Assim, ocorre um deslocamento, uma apropriação do estado absoluto da verdade. A solidão perdeu seu espaço, ainda que somente prospectivo, para a devoção coletiva, a comunhão. Também nesses primeiros séculos, transcorreu um aumento significante daqueles devotos que iam para o deserto – éremos em grego antigo. Os eremitas – aqueles que habitam o ermo – abdicavam não apenas dos prazeres da carne, mas também de seus bens, para se dedicar à uma vida ascética no deserto. Foi a partir dessa reunião de pessoas, que viviam regras rígidas, que formaram-se as primeiras ordens monásticas no deserto, onde o silêncio e a comunhão solitária com deus era imprescindíveis. As regras seguidas pelos eremitas eram o celibato, voto de pobreza e obediência, e deviam ser seguidas por toda a vida.4 Esse modo de comunhão ia contra a liturgia estabelecido para os que quisessem fazer parte da Cidade de Deus, pois fugiam às regras estipuladas pela igreja na época. Mesmo os primeiros cristãos, os chamados Pais do Deserto, como São Paulo de Pádua e Santo Antão, pioneiros na vida reclusa no deserto, não são aceitos dentro da instituição da igreja.5

4 GAARDER, J., HELLERN, V. & NOTAKER, H. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das letras, 2000. p, 113. 5 p, 83.

op. cit. O coração distante.

Apesar de constatarmos a solidão na maneira que se comungava com o deus cristão, seguindo ordens rígidas, ela é exercida como um meio extremo, mesmo para os cristãos daquela época, para atingir o divino, o mundo espiritual. Dessa forma, compreende-se que a solidão, dentro da hierarquia da igreja institucional, desapareceu para dar lugar a uma comunhão coletiva, do encontro e da realização pessoal na de43


voção compartilhada em deus. Logo, a supressão daquilo que poderia tornar o olhar para si, para o indivíduo, não somente tornou-se sinônimo de vida pecaminosa, pois estaria olhando para a carne e suas urgências, mas também criou uma coletividade homogeneizada, fortemente moralista, construída sobre uma base dogmática. Por outro lado, mesmo a solidão seguindo o seu caminho pelo deserto, com os eremitas, e posteriormente em monastérios, conventos e claustros, ela ainda não é de fato a solidão, pois é acompanhada da presença de deus. Desse modo, além de ser uma solidão transformada em ferramenta, que procura na negação do mundano uma aproximação ao valor absoluto de verdade, é também uma falsa solidão, pois a presença de deus a impede de ser. Chaim Katz explicita no seguinte trecho: “Se os sujeitos se constituem em e por Deus, a solidão não pode ter características positivas. A solitudo implica também na afirmação de ser ‘único’; mas se estamos em Deus, não há solidão positiva, pois só Deus é Único. A solidão seria, portanto, carência do divino, negativa.” 6

Assim, a existência da solidão é duplamente negada, uma vez que ela é rejeitada sob a ótica da instituição religiosa no período, que a separa da comunhão e também aos olhos dos descrentes, visto que não se está só quando acompanhado de deus. Penso ser interessante notar agora uma particularidade na utilização da palavra “ermo” no conto de Guimarães Rosa para se referir ao rio, uma diferenciação que ilustra as decorrências do ermo do qual deriva a palavra “eremita”, mas que incita uma busca diferente. O ermo para onde vai o pai é o mesmo deserto para onde vão os eremitas. Partem das relações mundanas e silenciosamente caminham rumo a um local solitário. No conto, porém, a mudança para o rio ermo não se dá para um encontro mais próximo com deus, no sentindo de uma devoção maior do pai, mas antes, ela acontece por um motivo mais alinhado ao encontro da solidão como uma forma de se lançar à vida e suas incertezas. A problemática instaurada é, na verdade, aquela legada ao estabelecimento de um estado de plenitude, um ponto último de completa evaporação dos questionamentos, onde as respostas para as perguntas do mundo seriam todas mitigadas e, com ela, o sofrimento decorrente dessa busca. Isso acontece tanto em Platão quanto na apropriação e subversão feita pelo cristianismo de suas ideias. Ou seja, mesmo essa solidão voluntária, baseada na recusa dos prazeres e no isolamento completo, não é de fato solidão. Em seu livro “A Gaia Ciência” (1882), Nietzsche escreve o seguinte aforismo: 44

6

Ibid. p, 82.


“[...] para um homem piedoso não há ainda solidão – fomos nós, os ímpios, os primeiros a inventar a solidão.” 7

Logo, aqueles que se creem distantes de qualquer companhia, exceto a de Deus, não estão de modo algum só. A verdadeira solidão, nesse caso, é fruto daqueles que se distanciam inclusive da ideia de deus, vivendo de fato sós, abdicando da companhia máxima, metafísica, que olha por nós e ouve as preces. É estar sujeito – e também ser sujeito –, em um mundo que depende de si mesmo, sem falsas promessas ou garantias vindouras. Para o filósofo, a solidão ocupa um papel fundamental tanto em sua vida quanto em sua obra, constando logo no início de “Ecce Homo”, sua autobiografia, e no início de “Assim Falava Zaratustra”, linhas acerca da sua importância para o exercício de remover as impurezas da moral, como evidenciado no seguinte trecho: “Mas tenho necessidade de solidão, quer dizer, recuperação, retorno a mim, respiração de ar livre, leve, alegre... Todo o meu Zaratustra é um ditirambo à solidão, ou, se fui compreendido, à pureza...[...].” 8

A solidão possui importância na libertação de um mundo que se distancia da moral, sobretudo da moral cristã, que estabelece uma conduta que privilegia a fraqueza sobre a conduta criativa e, por vezes, combativa. A solidão contrapõe, portanto, a moral gregária, ao guiar o indivíduo para longe das concepções firmadas, das visões de mundo fáceis e objetivas, dos conceitos sobre a verdade, e principalmente distante de uma primazia da condução de vida pelo comprometimento moral. A solidão promove um aprofundamento na incerteza, naquilo que é arriscado, e que, portanto, requer força superior para ser alcançado. O desbravamento ocorre quando se está em solo desconhecido, sendo esse desconhecido um território interno. No trecho seguinte, retirado de um texto que explora o livro “A solidão como virtude moral em Nietzsche” de Jelson Oliveira, é mostrado o papel da solidão no fortalecimento do indivíduo sobre o jugo de uma moralidade arrasadora. 7 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Editora escala, 2006. p, 242, §367. 8 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. São Paulo: Companhia das letras, 2008. p, 14, §8.

“A solidão é chave para a afirmação de si. Ela rompe com a idealização provocada pela moral para dar espaço aos impulsos vitais e fazer o humano retomar para si o pensar, o sentir, e o querer, que a moral havia apagado em nome da implantação de um processo de negação do “eu”.9

9 DE LACERDA, Tiago Eurico. A solidão como virtude moral em Nietzsche. Estudos Nietzsche, Curitiba, v. 1, n. 2, p. 436, jul./dez. 2010

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O OBSTÁCULO DA COMUNICAÇÃO Outra reflexão cabível diante do conto “A Terceira Margem do Rio”, e que serve como introdução ao próximo assunto, é relativo aos seus últimos parágrafos, quando o personagem do filho propõe a trocar de lugar com pai. Esse trecho, como já foi dito, denota a particularidade com que a experiência da solidão é vivenciada, sendo ela específica para cada um, a experiência de estar só é um trajeto percorrido por cada sujeito, pois é vivido a partir da introspecção, do vasculhar ambientes internos. Tamanha é a interiorização ao reconhecer os meandros internos de subjetivação que nos constituem, que comunicar a solidão torna-se uma dificuldade. Em “Assim Falava Zaratustra”, a instrumentalização da solidão pelo isolamento, bem como a dificuldade de comunicar os conhecimentos reunidos a partir de tal encontro consigo mesmo, faze parte estruturante do pensamento, tanto deste mesmo livro, quanto da trajetória de Nietzsche, como em “Ecce Homo”.10 O caminho do protagonista Zaratustra, através do seu exílio solitário na montanha, guarda paralelos com a vida do filósofo, no sentido da busca pelo livramento de si da moral comum e da comunicação dos frutos de sua experiência da solidão.11 Logo no prólogo, quando Zaratustra, após dez anos apartado, resolve levar o conhecimento e a sabedoria às pessoas e começa a descida rumo ao vilarejo, encontra um velho santo ao pé da montanha, que diz lembrar-se do viajante e que este agora está mudado: “Naquele tempo levavas tuas cinzas para os montes: queres agora levar teu fogo para os vales? Não temes o castigo para o incendiário?” 12

As cinzas carregadas são as dos valores despedaçados, da morte de deus, da perda dos absolutos.13 Nos dez anos que se passaram ele transformou essas cinzas em uma “chama clara”. Ousar levar esse fogo aos vales é ousar levar a descrença nos valores comuns a todos, transformar tudo em cinzas para depois, cada um, a partir da experiência compartilhada da solidão, fazer também acender a chama de seus próprios valores.14 No entanto, a incapacidade de as pessoas da aldeia compreenderem o que fala Zaratustra faz com que ele volte novamente para a montanha a espera daqueles que estejam dispostos a se desfazer das crenças comuns, dos valores gregários, e abraçar a desilusão. Mesmo com outras tentativas de comunicação da solidão, a dificuldade que ele encontra nessa tarefa permanece a mesma, o desalinhamento das vivências, como é dito no trecho seguinte: “Na medida em que o personagem inicia sua tarefa comunicativa motivado por vivências radi-

10 LEIDENS, Francisco Rafael. Solidão e Comunicação em Nietzsche: uma tensão na obra “Assim Falava Zaratustra”. 2011. 195 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2011. 11 MARTON, Scarlett. Silêncio, solidão. Cadernos Nietzsche 9, p. 79-105. 2000. p. 82. 12 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. São Paulo: Companhia das letras, 2011. p, 12. Prólogo, §2 13 op. cit. Solidão e Comunicação em Nietzsche: uma tensão na obra “Assim falava Zaratustra”. p. 187 14

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Ibid. p, 160


calmente solitárias, o resultado imediato de sua fala é a inevitável incompreensão do povo. E mesmo ao eleger discípulos, o que diz não repercute adequadamente em seus ouvidos. E ainda, ao intentar ensinar o riso aos homens superiores, a dissonância das vivências entre estes e Zaratustra acaba decretando, por fim, a impossibilidade da comunicação.” 15

É notável também dizer que há em Zaratustra, nenhuma sombra de ressentimento por não ser ouvido, pois quando este é ignorado, volta para outro exílio no alto da montanha. Ele desce para o vale pela primeira vez, não com o intuito de formar seguidores ou aprendizes, com dizeres fáceis e respostas, mas o contrário. Zaratustra leva a sabedoria reunido no exílio para ser compartilhado, fruto de um conhecimento em excesso, portanto, para atear fogo nas fórmulas que procuram fixar parâmetros para uma vida arrefecida. Esse pensamento é explicitado na seguinte análise da pesquisadora Scarlett Marton: “Zaratustra não se propõe a arrebanhar os homens para sobre eles exercer o seu poder; e tampouco se dispõe a reunir os discípulos para deles fazer seus cúmplices ou comparsas. Não é, pois, para invadir espaços ou ampliar esferas de influência que fala.” 16

Essa dinâmica entre a comunicação da solidão e os interlocutores tem um paralelo, levantado por Deleuze, naquilo que se refere ao ensino. Assim como Nietzsche/Zaratustra comunica a solidão para estimular a solidão em cada um, o ensino deveria caminhar nessa direção, pois procura aliciar seguidores, ou discípulos. Peter Pál Pelbart, sobre a entrevista em que Deleuze reflete essa questão, diz: “Não se trata de capturar, suscitar a adesão, persuadir, fazer discípulos ou escolas, mas o inverso: reconciliar o aluno com sua solidão.[...]Afinal apenas certa modalidade de solidão permite que se prescinda das escolas para esposar o movimento, abrindo-nos para os povoamentos inusitados [...]” 17

15

Ibid. p, 186

16 82.

op. cit. Silêncio, solidão. p,

17 PELBART, Peter Pál. Solidão, facismo e literalidade. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 93, p. 1323-1329, Set./Dez. 2005, p. 1323

Esse paralelo traz à tona o fato de que a comunicação se dá, sobretudo, quando algo desperta no sujeito/aluno, sentindo que algo do que é dito lhe serve. Nesse sentido, ensinar a apreciar a solidão, mesmo a capacidade de estar só, é chave para que assim cada um saiba como as coisas o afetam, de quais maneiras, e mais importante, saber identificar o que há de importante no mundo que lhe caiba.

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SOLIDÃO E NIILISMO Desse modo, a solidão é o caminho encontrado pelo filósofo para afastar-se da moral do ressentimento, que diluí toda a força do indivíduo em troca de supostos ídolos que concedem um amparo metafísico para a vida. Ela é colocada como peça em um jogo fino e oscilante, onde necessita-se a coragem para aniquilar mesmo deus e, ainda assim, manter-se estreito diante de um possível embevecimento do ego. “De caráter profilático, a solidão permite a Nietzsche pôr-se à distância do que ocorre à sua volta, afastar-se do desenrolar dos acontecimentos. Com isso, ele adota posição privilegiada para diagnosticar e avaliar a décadence em sua época; mais ainda, coloca-se, no seu entender, acima dela.” 18

Nietzsche, ainda que tenha o cuidado ao não instaurar uma nova vigência de metafísica exterior à vida, confere à solidão instrumentalizada um enobrecimento. Pelo fato da solidão ser aquilo que nos coloca afastados da moral gregária, ela é também o que conduziria as pessoas à voltarem o olhar observador para si após a perda desses valores totalizantes, visto que estes, advindos da fraqueza, são o legado de uma falsa vida. Naquilo que tange a descrença, o seguinte trecho descreve o que ela é para Nietzsche: “É o pensamento mais paralisante, diz o filósofo. Ele nasce com aqueles que perderam, diante do esgotamento da moral cristã, seu lugar e seu valor garantido na ordem metafísica, e que não conseguem conformar-se com sua ausência.” 19

A descrença, portanto, abre o trajeto para a solidão. É no retiro solitário impulsionado pela perda dos valores, no terreno desolado das verdades estruturais, que é sepultado, não apenas a morte de deus, mas de quaisquer outros emblemas absolutos que legam a vida a um sentido exterior a ela. A solidão é meio para o niilismo, portanto, meio para a imanência da vida. Em algumas regiões do mundo é prática tradicional e de grande valor para a antropologia do meio-ambiente, atear fogo em áreas de pastagem, ou mesmo áreas de preservação.20 Ela ajuda a limpar o pasto da matéria orgânica falida, seca, e por meio de um controle para evitar uma longa queima, algo que tornaria o solo pobre de nutrientes, permite que a grama cresça nova e vigorosa. O paradoxo que existe nessa prática existe também na solidão, visto que o mesmo incêndio que frequentemente destrói é também agente de renovação. Afastar-se das ideias que diminuem o homem, fornecedoras de garantias para uma “sobrevida”, mirar a partir da própria solitude os valores que 48

18 80.

op. cit. Silêncio, solidão. p,

19 p, 109

op. cit. O avesso do niilismo.

20 ROUÉ, Marie. Préface. In.: Dumez, R. Leu feu, savoirs et pratiques en Cévennnes. Paris: Éditions Quae, 2010. p, 11


já se desmancham no pasto e, inadvertidamente, atear fogo. O risco de incêndio se estender por tempo indefinido e existir pelo ressentimento está sempre à espreita. O controle que se deve fazer não é limitar o pasto - pois nenhum valor erigido deve ser mantido intocado -, mas sim o tempo de manter o fogo aceso para apagar a moral esturricada de outrora, espezinhada e empobrecida, para que volte a brotar a vida insurgente. Nessa ambiguidade arrasadora, entre o desfazer-se daquilo que se anuncia morto, que remete às memórias esvaziadas, e o estímulo irreverente da criação, é que se instala a solidão. Até que se precise de um novo fogo que faça desaparecer velhos resquícios para se afirmar novamente a vida forte. Lançar-se à solidão é lançar o fogo e a si em uma mesma pira. “O niilismo em Nietzsche tem um caráter sabidamente equívoco. Por um lado, ele é sintoma de decadência e aversão pela existência, por outro e ao mesmo tempo, é expressão de um aumento de força, condição para um novo começo, até mesmo uma promessa.” 21

A solidão para Nietzsche é um instrumento para o niilismo. É a solidão que, advinda da descrença e experimentada tal qual um luto que se escolhe passar, da angústia de perda dos valores, da perda de deus, rasga as certezas do indivíduo e chama-o para destruir a si mesmo como centro dessas certezas. É da morte do homem que faz criar terreno para uma capacidade de criação afirmativa, o niilismo ativo. O niilismo ativo nega a própria necessidade de tudo negar. A recusa nesse momento é também do ato de tudo jogar ao chão, de reduzir ao pó todos os valores. É esse o momento, quando se nega o “negar” que há vontade de criação, da chamada transvaloração de todos os valores. Essa mudança se dá a partir do momento em que os valores perdem a cor e se tornam quebradiços, quando seus paralelos com o real já não encontram mais intérpretes, como afirma Pelbart: “Uma transvaloração de valores só pode realizarse se existe uma tensão de novas necessidades, de novos insatisfeitos, que sofrem da antiga valorização, sem disso tomar consciência”. 22

21 p, 101

op. cit. O avesso do niilismo.

22 PELBART, 2013 apud NIETZSCHE, Friedrich, 1983, p, 56

A questão não é abrir mão dos valores apenas por um gesto vão de rebeldia – mesmo por que os valores anunciam sua derrocada – mas reconhecer intermitentemente a fragilidade e duvidar de todo e qualquer valor, é admirar sua força enquanto há e saber que sua defesa é sobre a criação de algo em um dado momento histórico, podendo ela ser, ou não, pertinente no presente. 49


“Assim, a verdade, a virtude, a beleza, o progresso, cada um desses valores deveria ser concebido como uma perspectiva produzida no tempo antes que se universalizasse, um ponto de vista tanto mais vitorioso quanto faz questão de ocultar o fato de ser um ponto de vista.” 23

Assim como a soberba infla aqueles que se pautam pela moral indulgente e transforma a moral das reações e da fraqueza em uma moral vigente, a solidão como tudo, corre esse risco de ser colocado no altar das devoções. Em um recente artigo do NY Times 24, discute-se a proeminência da “wellness”, (bem-estar), como uma busca que se dá, não de fato pela saúde, mas por aquilo que aparenta ser saudável, substituindo práticas eficazes por uma adesão à um estilo saudável – ainda que “eficácia” também possa ser discutível. Isso aponta para uma outra forma de ideal, mas ainda insistindo em colocar o valor da vida em algo exterior a ela na tentativa de lhe agregar valores positivos. A solidão está inserida nesse aclamado bem-estar, pois, quando estipulada como meta para se distanciar do estresse da cidade, ou então como estética pragmática no cinema, está sendo colocada como ferramenta para esse bem-estar idolatrado. É de profunda importância resguardar a solidão desse tipo de aproximação de caráter messiânico, pois seria apenas conceder à vida um valor extemporâneo, tornando a solidão um novo valor que permite um repouso tranquilo e falsamente acomodado em um significado para a vida. CAMINHOS PARA A SOLIDÃO No entanto, para além da solidão como uma ferramenta – deveras valiosa, que inclusive arrisca ser virtude – ela guarda em si aquilo que pode ser uma antítese importante da construção da metafísica ocidental, o par binário que molda o crescimento da sociedade a partir do rebaixamento do exercício da solidão, preterido em relação à comunhão e à socialização. A própria ideia de comunhão como algo que aproximaria o homem de deus e toda verdade do mundo, não apenas organiza a ideia daquilo que se deve ter como conduta definida e sagrada, ou seja, a ideia de si mesma, mas também organiza o que é a solidão. Desse ponto, à solidão é fornecida o papel de referência do que é negativo. Ela é orquestrada pela incapacidade de ser comunhão, pela da oposição aos valores elevados, em detrimento dos atributos daquilo que pode ser a solidão. Por não haver a solidão com encerramento em si, pensada por si, os aspectos positivados da devoção coletiva, da vida redentora na cidade de Deus e dos dogmas forjados para essa nova 50

23 p, 107

op. cit. O avesso do niilismo.

24 GUNTER, Jen. Worshiping the false idols of wellness. The New York Times, 2018. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2018/08/01/ style/wellness-industrial-complex.html>. Acesso em: 16 ago. 2018


massa de devotos no início do cristianismo, acabam por configurar todo o binômio solidão/comunhão. Com isso, paralela à difusão da metafísica ocidental, a solidão foi atrofiando-se sob a massa asfixiante do dever em sociedade acima dos valores criadores que ela promoveria. A solidão descentraliza a ideia de plenitude, pois esta necessita ser universalizante, não apenas em relação a se tornar uma ideia hegemônica e pretender-se totalizante, mas também universal enquanto cedente de uma proposição completa de valoração, seja ela Deus, a Razão, o Coletivo, etc. Tendo os primeiros anos do cristianismo, entre perseguições e conversões, necessitado agregar uma larga base de devotos, a apropriação da formulação de uma plenitude estimula a concentração de um imaginário específico, identitário e globalizante, colocando a solidão como a outra extremidade desses valores. Portanto, essa característica desestabilizadora da solidão a faz tão indesejada, tanto de um ponto de vista teológico, na construção de um ídolo onipresente, quanto prático, pela necessidade de união por relação de identidade. A solidão não deve permanecer organizada pelo que se entende por comunhão, ela deve ser elaborada dentro de suas próprias propostas e entroncamentos, assim como ambiguidades e ruínas. Em seu valor consta o germe que nos remete ao “entre” das lógicas, à instauração da dúvida. Solidão é a reiteração da força do indivíduo para afirmar-se enquanto tal, é a validação da própria singularidade que retira as coagulações da moral enquanto estimula a coragem de admitir a condição de estar só. Para isso é necessário inverter a hierarquia existente entre os pares de logos, visto que existe uma disparidade entre os dois valores, onde um ocupa um posto superior e de comando em relação ao outro.25 Quanto a essa chamada “fase de inversão” por Derrida, ele diz o seguinte:

25 DERRIDA, Jacques. Posições. Belo Horizonte: Editora autêntica, 2001. p, 48. 26

Idem.

“Dito isso, ater-se, por outro lado, a essa fase significa ainda operar no terreno e no interior do sistema descontruído. É preciso também, por essa escrita dupla, justamente estratificada, deslocada e deslocante, marcar o afastamento entre, de um lado, a inversão que coloca na posição inferior aquilo que estava na posição superior, que descontrói a genealogia sublimante ou idealizante da oposição em questão e, de outro, a emergência repentina de um novo “conceito”, um conceito que não se deixa mais - que nunca se deixou – compreender no regime anterior.” 26

Portanto, mais do que uma conduta a ser seguida para produzir uma desconstrução de termos, é necessário trabalhar 51


nessa inversão de valores, na arqueologia de seus sentidos, nos entroncamentos desses pares, para daí apresentar-se esse novo conceito, sublimado pela hierarquização incisiva do seu par e que agora assume um livre trajeto de possibilidades. Arquitetos como Peter Eisenmann e Bernard Tschumi, inspirados pelo pensamento desconstrutivista de Derrida, começam a levar a arquitetura, teoria e produção – se é que cabe essa distinção – para um campo aproximado da filosofia derridiana. No mais, a solidão é o impulso para os questionamentos, para o desprendimento das tradições, dos dogmas, das acepções que ocupam lugar no mundo, vistas como positivas ou negativas. Ela traz o peso para o embate, para a afirmação de si e o que se cria, legando a igualdade ao que é múltiplo. Fato é que a solidão não iguala por aquilo que se busca, não estabelece um parâmetro de vivência ou produz fórmulas, antes, ela iguala pela possibilidade de o indivíduo pensar do mundo e de si aquilo que quer. Ela estabelece igualitariamente a multiplicidade do pensar, a complexidade das várias existências e as tratando todas com o mesmo peso. Ela retira a igualdade em nome da diferenciação, da multiplicidade de desejos, vontades e existências, reforça a singularidade. E desse ponto a solitude é multiplicadora. O só é a unidade básica. O intuito não é de decretar uma sobreposição errônea à felicidade, mesmo por que a solidão não se coloca contrária a ela, tampouco instituir uma nova conduta beligerante, mas sim, antes de tudo, trazer à tona as dinâmicas que ela carrega, localizá-la no atual estado das coisas e especular suas potencialidades para a arquitetura, mas não somente.

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PARTE TRĂŠS

Uma arquitetura onde o fim possa habitar

Venice

long wait from blackness to the blue anticipation of dawn morning breeze through dark windows chalk white waters frozen moss voices bird and man John Hejduk


HEJDUK, John. Mask of Medusa. New York: Rizzoli, 1985. p, 105

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FENOMENOLOGIA E ARQUITETURA DA SOLIDÃO Havendo fixado o suficiente sobre a solidão, é possível manejar as questões que nos direcionem para compreender o papel da arquitetura da solidão no panorama de abordagens, e assim, servir de arranque para as próximas argumentações. Nesse sentido, a aproximação entre fenomenologia e a solidão ocupa um espaço que deve ser delimitado para melhor localizar aquilo a que ela se propõe, suas intenções e possibilidades. A percepção na arquitetura advém do parâmetro humano para a mesura e compreensão do mundo, visto que é a partir dos sentidos do homem que a arquitetura seria validada, e então ser compreendida como uma “boa” arquitetura ou uma “má” arquitetura. O arquiteto Steven Holl, em um trecho do livro “Questões de Percepção: Fenomenologia da arquitetura” 1, evoca a existência de um contraponto entre experiência e linguagem. Ele afirma que, ao tentar transitar de um discurso ao outro, a arquitetura necessita da linguagem, e nessa transição, de uma condição física, concreta da arquitetura. O significado da arquitetura deve possuir paralelos na palavra, devendo esta, por sua vez, “assumir as silenciosas intensidades da arquitetura”. Para tal, ele diz, só é possível através um apuramento das sensações, encabeçado por um distanciamento que busca transcender os vícios existentes no mundo atual. A solidão é eleita principalmente para aquilo que ela se propõe: solidificar um entendimento de si enquanto existência única. No entanto, essa solidão serviria para um propósito que, a priori, soa de extremo valor. Essa importância é a tomada de consciência de suas próprias sensibilidades, das experiencias obtidas através dos sentidos e, consequentemente, da maneira com que cada 56

1 Igor Fracalossi. “Questões de Percepção: Fenomenologia da arquitetura / Steven Holl”. ArchDaily Brasil, 2012. Disponível em: <https://www. archdaily.com.br/18907/questoes-de-percepcao-fenomenologia-da-arquitetura-steven-holl>. Acesso em: 6 set. 2018.


um refina sua própria percepção acerca do mundo e, nele inclusa, da obra arquitetônica.2 Evidente que isso dialoga com a construção do sujeito, daquilo que o agrada ou desagrada, acolhe ou expulsa, partindo de uma percepção corporal. Apesar do poder construtor que esse discurso concede, para a arquitetura ele se torna bem mais restritivo, pois insere uma conduta para o modo pelo qual ela deve ser pensada e produzida. Também, a liberação do corpo não é voltada para uma percepção que tende ao questionamento e fluidez, mas uma libertação do corpo daquilo que é tido como ruim, afim de ascender à essência da percepção física definida como positiva. O pensamento fenomenológico da solidão acaba por definir parâmetros excludentes naquilo que diz respeito à percepção, pois, admitindo a voracidade do mundo em captar a atenção dos indivíduos para o que ele chama de “enganosos fins comerciais”, estabelece um afastamento necessário para um caminho ideal. Essa voracidade justifica o “fazer sentir” do corpo como elemento fundamental para a elucidação do que seria uma experiência, conduzido o indivíduo aquilo que é essencial. A solidão na arquitetura, portanto, serviria para a apuração da percepção do indivíduo no que diz respeito a essência e a verdade. Essa percepção, que se opõe à linguagem, é tanto física quanto mental, e se pauta no embate entre esses termos, dado um lugar e contexto específico do objeto arquitetônico. Nesse entrave, a chamada “percepção mental” tem um papel secundário em relação à experiência, pois ela está submetida ao propósito, à intenção, ao “fazer sentir”, ao que ele chama de “percepção exterior”. Legando ao corpo, ao humano, a única forma de apreensão da arquitetura, porque mesmo o discurso, a intenção, a proposta, estará também submetido à validação pela experiencia. O corpo passa a ocupar uma posição central e de absoluta importância para a arquitetura fenomênica, pois é ele que irá aferir, preferencialmente com a maioria dos sentidos, o espaço criado. Juhani Pallasmaa, em seu livro “Os Olhos da Pele”, faz algumas observações acerca do sentido da visão e como ele vem sendo usado para propagar uma arquitetura hedonista:

2

Idem

“O olho narcisista vê a arquitetura como um meio de auto expressão e como um jogo intelectual e artístico desvinculado de associações mentais e societárias, enquanto o olho niilista deliberadamente promove o isolamento e a alienação sensoriais e mentais. Em vez de reforçar a expe-

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riência do mundo integrada e centrada no corpo, a arquitetura niilista desconecta o corpo, e, em vez de tentar reconstruir a ordem cultural, torna impossível uma leitura da significação coletiva. O mundo se torna uma jornada individual hedonista, mas insignificante.” 3

A primeira questão, que diverge da proposta de uma arquitetura da solidão, é a “significação coletiva”. Para atingir esse estado é proposto que o parâmetro regulador sejam as experiências dos sentidos, o corpo. Com isso, ele assenta a arquitetura em uma subordinação aos valores humanistas, onde a percepção do mundo através dos sentidos seria o critério universal para erigir uma arquitetura de valor robusto. Se hoje a arquitetura falha em construir uma significação coletiva, é devido aos fatores que tornam os indivíduos alheios aquilo que o corpo experimenta, segundo Pallasmaa, a presença dominante da visão, da estética, sobre os outros sentidos.4 Definindo-se aquilo que são os valores positivos, define-se também o que são os valores negativos, e então, tudo o que que aliena a percepção do corpo e que a distancia de um “real valor”, torna-se indesejado. Logo, o real valor é ditado pelo arquiteto, pela sua intenção posta no projeto para causar algum sentimento, para afetar todos os usuários de uma maneira única, pois atingindo efetivamente aquilo que se estabelece como critério universal dos indivíduos, é que se cria a significação coletiva. Contudo, a investida da solidão é no fortalecimento do indivíduo, não apenas para o desenvolvimento de sua percepção única, mas sim de todo um conjunto de significações que são relevantes e fundadoras para cada um. A segunda questão é o tratamento dado por Holl e Pallaasma que retira da arquitetura a possibilidade de ser linguagem e, portanto, de deslocar seus próprios significados e interagir com outros signos. Quando se afasta da arquitetura a possibilidade de ser expressão e, nesse contexto, a solidão só pode ter uma acepção empregada, a de higienizar os sentidos, e onde niilismo é apenas um artifício nefasto que nega o corpo universalizante. Essa aproximação fenomenológica se firma contrária à solidão que rompe com as certezas e com a criação de arautos da significação da vida plena, pois, aproximando-se da incerteza e dúvida, a solidão repele o fortalecimento de crenças nesses aparatos oferentes de arrimo para uma vida que se deve afirmar também sobre seus aspectos negativados, como o sofrimento e a morte. Cria-se, portanto, duas deformidades afim de se alcançar a experiência pura, distante de estímulos do consumo e que levam o usuário a perceber a essência da arquitetura. Uma delas é 58

3 PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011, p, 22. 4

Idem


a do arquiteto como a figura que decide sobre o controle da sensação causada no indivíduo. Isso instaura uma hierarquia, porque argumenta que a significação só é exitosa caso a percepção perpetrada sobre o usuário também tenha êxito. Esse sucesso é ainda maior quando se consegue alcançar um consentimento coletivo dos significados da arquitetura, através de uma segunda deformidade. Essa outra, é o emprego da solidão para afastar o usuário de estímulos avassaladores do mundo consumista, causando a criação de um instrumento equivocado para a arquitetura, visto que oferece a libertação – ao ensejar a ruptura de um domínio predominante no campo social –, mas converte-se em uma ferramenta de aprisionamento, pois utiliza essa ruptura para refundar valores de significação. Esses aparatos deslegitimam a arquitetura enquanto linguagem e a submetem aos ditames da experiência do homem como fornecedor de parâmetros ideais, pois assume-se que é a partir da percepção física do objeto arquitetônico que chegaríamos a uma percepção refinada do prazeroso e do bom. A investigação que se pauta na solidão é exatamente uma leitura de significação individual, pautada na afirmação da dúvida e da oscilação, de qualquer assentamento que busque contornar o fato incerto que é a vida. Essa chave de leitura fomenta a expressão da arquitetura permitindo diversas e inimagináveis interpretações dos indivíduos, inclusive, circunscreve a percepção da arquitetura através das sensações do corpo como uma das linguagens possíveis da arquitetura. HETEROTOPIA E O DESVIO DA SOLIDÃO “– El Durazno! El Durazno! – berrou Bopp, detendo-se afobado ao lado do senhor Andrade. [...] Os passageiros do El Durazno acenavam de volta. Deviam ser uns cinquenta e estavam todos nus.” 5 “O navio é a heterotopia por excelência. Nas civilizações sem barcos os sonhos se esgotam, a espionagem ali substitui a aventura e a polícia, os corsários.” 6 5 STIGGER, Veronica. Opisanie świata. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p, 113. 6 FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: Foucault, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Fonrense Universtiária, p, 422

Uma boa maneira de iniciar uma abordagem, que caminhe em direção à arquitetura, é partindo daquilo que já destrinchamos: a solidão como um valor subalternizado, rebaixado na hierarquia dialética quando contrastado com a comunhão. Podemos estender essa visão e compreendê-la também como um desvio, com alguns exemplos. Em uma conferência de 1967, Michel Foucault apresentou-se 59


com um texto chamado “Outros Espaços”, que só viria a ser publicado em 1984, dezessete anos mais tarde.7 O autor reflete sobre o que ele define como “a obsessão do século XX”, o espaço. Esse tema, segundo o autor, já havia sido deslocado por Galileu, ao colocá-lo em trânsito, sendo assim, a localização de um objeto seria apenas um “posicionamento” em determinado instante no tempo. É a partir dessa forma de entender o espaço – como um posicionamento em uma rede de relações –, que ele parte sua reflexão, ao sugerir que existem em redes, espaçose e posicionamentos que ainda suscitam ansiedade e que não foram totalmente “dessacralizados”. Espaços estes que ainda mantém um certo nível de oposição, como evidenciado no trecho seguinte: “E talvez nossa vida ainda seja comandada por um certo número de oposições nas quais não se pode tocar, as quais a instituição e a prática ainda não ousaram atacar: oposições que admitimos como inteiramente dadas: por exemplo, entre o espaço privado e o espaço público, entre o espaço da família e o espaço social, entre o espaço cultural e o espaço útil, entre o espaço de lazer e o espaço de trabalho; todos são ainda movidos por uma secreta sacralização.” 8

O espaço sobre o qual Foucault resolve vasculhar é o espaço onde a vida ocorre, que se dá num incessante processo de afirmações e retrações, de escolhas; um espaço que é heterogêneo e não um vácuo preenchido por objetos. Os posicionamentos mais óbvios, como estações de ônibus ou trens, podem ser lidos como uma rede heterogênea, por suas diversas relações, bem como posicionamentos de “parada provisória”. Ademais, ele faz uma ressalva sobre o “espaço interno”, aquele que apreende as qualidades do espaço exterior. Contudo, não é o espaço fenomênico sobre o qual ele desenvolve sua reflexão. O foco do autor é sobre os posicionamentos que se relacionam com os outros de modo que os “suspendam, neutralizem, ou invertam” suas relações, sendo divididos em dois tipos. O primeiro deles é a utopia, que Foucault brevemente diz que é onde os posicionamentos ocupam um espaço irreal. Na utopia, os posicionamentos reiteram ou invertem o “espaço real da sociedade”. O segundo tipo é o que de fato nos interessa também, as chamadas heterotopias. Seriam quase utopias realizadas, pois dentro da configuração da sociedade, as heterotopias são espaços onde “todos os outros posicionamentos reais que se po-

dem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetiva-

60

7

Ibid. p, 411

8

Ibid. p, 413


mente localizáveis.” (FOUCAULT, 2009)

Foucault também diz que há algo entre a utopia e a heterotopia, uma “experiência mista” que é o espelho. Irei recuperar essa definição como argumento mais à frente. Seguindo em uma descrição sistemática sobre o que seriam essas tais heterotopias, Foucault estabelece uma série de princípios definidores. O primeiro princípio é o que mais diz respeito à solidão, pois postula que tomada as diferentes culturas do mundo, em qualquer uma delas, existe a criação de heterotopias. Há, no entanto, uma mudança entre o que ele chama de “heterotopias de crise”, para, nos tempos atuais, “heterotopias de desvio”. Nessas heterotopias recentes, são os comportamentos que se estabelecem como desviantes em relação à uma norma ou à uniformidade da sociedade. Percebemos quando um comportamento – ou dito de outra forma –, postura, é um desvio a partir da compreensão do restante da sociedade como uma anormalidade, algo que não apenas se coloca no mundo destoante da maioria, mas também de uma maneira lida como “incorreta” – ou insuficiente no modo de experienciar o mundo em sua “totalidade” – pelo discurso predominante. A história nos dá exemplos desses desvios sobretudo ao lembrar-nos das ações suscitadas sobre indivíduos desviantes, como na Inquisição. O trecho seguinte reúne alguns diferentes desvios da sociedade medieval usados para a condenação majoritária de mulheres pela Igreja: “As acusações de bruxaria eram geralmente levantadas por vizinhos indispostos contra mulheres específicas: as velhas, as solitárias, as impopulares, as neuróticas, as insanas, as mal-humoradas, as promíscuas, as praticantes de medicina popular ou parteiras, mulheres que, por motivos variados, haviam se tornado alvo do ódio local.” 9

A solidão nesse trecho é também vista como um desvio, uma qualidade negativa e que levanta suspeitas pelo seu modo de existência no mundo, um reforço para os argumentos já levantados no decorrer desse trabalho. Ainda que não tenhamos um exemplo de espaços do exercício do desvio da solidão nesse contexto apresentado, podemos tomar novamente o exemplo do eremita, que vivia o seu desvio em uma localidade suspensa.

9 RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1993. p, 94.

Outro exemplo é o das stugas, cabanas de origem sueca construídas principalmente em madeira. Elas são erguidas em locais isolados, próximos da natureza, mas sobretudo distantes da cidade, onde a presença da solidão exercida seria um elemento disruptivo no manto de um Estado presente. Nesse espaço definido, possível ser localizado, a pessoa pode exercer 61


sua presença, é a permissão concedida, para que a solidão se faça presente. 10 Retomando os princípios estipulados por Foucault – pois servirão de sustentáculo –, o segundo princípio diz respeito as mudanças que podem ocorrer, no desenvolvimento de uma sociedade, da função de uma heterotopia. Para tal ele utiliza o exemplo dos cemitérios, que é espaço que se relaciona com diversos posicionamentos dentro de uma sociedade, pois ali congrega a todos num mesmo lugar, mas que sofreu diversas alterações quanto à sua função no que diz respeito ao tratamento do corpo seguindo a crença em alma e ressurreição. O terceiro princípio diz respeito sobre a sobreposição de posicionamentos em um só espaço real, como no caso do palco de um teatro, que possibilita a locação de diversos posicionamentos sucessivos uns aos outros. O quarto princípio possui extrema relevância. Ele insere o pensamento das “heterocronias”, pequenas fatias de tempo onde as heterotopias ocorrem, quando os indivíduos se colocam nesse breve parêntese estipulado, aberto no tempo tradicional. E novamente utiliza o exemplo do cemitério. No entanto surge também o paradigma da das heterotopias que acumulam tempo, como é o caso dos museus e bibliotecas, lugares fechados onde se tentam guardar todo o tempo. Porém, há também a forma oposta desse acumulo de tempo, algo que é fugaz e repentino, como festivais, circos, que armam e desarmam barracas e picadeiros (uma heterotopia dentro de outra), que irrompem no tempo tradicional e logo após voltam a fechá-lo. O quinto princípio reflete sobre a capacidade da heterotopia ser acessível, de um ponto de vista do movimento. Sua penetrabilidade. O que define se uma heterotopia será hermética ou penetrável concerne uma série de ações que poderá fazer um indivíduo aceder a esse espaço, seja através de ritos de passagem ou até mesmo ações que são ilegais, fazendo com que indivíduo adentre compulsoriamente, como no caso das prisões. Por último, o princípio que encerra, argui sobre o espaço contingente das heterotopias. A função desses espaços que sobram pode ocupar um espectro entre dois extremos: o de criar ilusões, refletindo os posicionamentos dos espaços reais nos quais a vida é dividida, ou o de organizar um outro espaço, que seria sobretudo uma organização aprimorada dos nossos espaços reais que são confusos. Um replicaria a ilusão o outro aperfeiçoaria a realidade. Com isso, a heterotopia se fixa como um espaço para os posicionamentos – momentos de existência em um dado lugar – que são também receptáculos para valores desviantes, e que 62

10 p, 39

op. cit. O coração distante.


dessacralizam a nossa compreensão de espaço, os subvertendo, reafirmando e questionando também suas extensões e desenvolvimentos. AS HETEROTOPIAS DE HEJDUK Heterotopias dizem respeito sobre os entroncamentos de espaços, suas adjacências, no caso espaços para o desvio que é a solidão, mas não necessariamente sobre arquitetura. Elas se colocam apesar de uma intenção arquitetônica, não necessitando de uma formalização material em uma dada localidade, ainda que venham a possuir uma. Contudo, há a criação de heterotopias através da arquitetura, do projeto, do ensejo de um assentamento espacial ligado às questões formais e também narrativas, e que tenham em seu propósito esse deslocamento em relação aos espaços tradicionais. John Hejduk (1929 – 2000), arquiteto estadunidense, é conhecido principalmente pela sua participação no grupo nãooficial chamado New York Five, onde, juntamente com Peter Eisenman, Michal Graves, Charles Gwathmey e Richard Meiers, rediscutiam a forma pura do movimento moderno e as ideias de Corbusier, ainda que suas posições no decorrer do tempo tenham se tornado mais divergentes do que alinhadas. Hejduk, o mais velho dos integrantes, é também a figura menos ligada à proeminência do grupo pelos círculos sociais que o livro chamado “Five Architects”, publicado em 1973, trouxe a eles.11 Não que essa postura “apática” em relação ao restante do grupo valide algo, mas nos leva a perguntar quais eram seus interesses e por que seu conteúdo produzido é hoje, no panorama da arquitetura, relativamente suprimido. Entre 1964 até a sua morte, Hejduk foi professor da Universidade Cooper Union, em Nova Iorque, e foi nela que pôde implementar muitos dos seus pensamentos diagramáticos que permeavam o início de sua carreira, como “The Nine Square Problem”, um instrumento pedagógico para apresentar a novos estudantes os principais elementos da arquitetura, e “Texas Houses”, que buscava a geração de princípios formais e espaciais.12 11 GOLDBERGER, Paul. Architectural view: a little book that led five men to fame. The New York Times, 1996. Disponível em: <https:// www.nytimes.com/1996/02/11/books/ architecture-view-a-little-book-that-led-five-men-to-fame.html?exprod=permalink&partner=permalink>. Acesso em 15 out. 2018 12 HEJDUK, John. Mask of Medusa. New York: Rizzoli, 1985. p, 37-43

Mesmo durante os anos que decorreram da publicação do livro, Hejduk assim como os outros, assentavam suas próprias inquietações e focos, uns enveredaram para a prática da arquitetura enquanto outros debruçaram-se sobre a teoria e o ensino. Eisenman e Hejduk são exemplos desse segundo foco. Amparados por uma postura semiológica frente ao objeto arquitetônico, eles passaram a questionar a posição da forma na arquitetura, sobretudo no discurso empregado pelo movimento moderno, e logo, esses questionamentos os levariam 63


a caminhos distintos. Eisenman iria se dedicar ao processo interno da arquitetura compreendida como linguagem, pelas suas relações sintáticas, o que geraria uma das mais radicais críticas à arquitetura. Também Hejduk começaria a investigar a teatralidade da arquitetura, suas questões simbólicas, voltado tanto para a representação do signo quanto para a estrutura que os conectam.13 A pesquisadora Laís Brostein pontua sobre esse período: “A idéia de subtrair da arquitetura qualquer conotação ideológica, externa à noção de autonomia formal, caracterizou um momento que o recurso à linguística tornou-se um instrumento sobre o qual pensar a disciplina. A vertente deste pensamento em que situamos John Hejduk, e também a obra dos Five Architects de Nova York, singulariza-se pelo recurso ao mecanismo de sintaxe e da experimentação formal, distanciada, portanto, daquelas interpretações de viés semiológico da arquitetura comumente chamada de “pós-moderna”.14 Havendo um desgaste semântico, ou seja, relacionado ao significado formal da arquitetura, os anos 70 e 80 foram marcados por várias tentativas dispersas que, entre múltiplos enfoques, concedeu ao conceito, mais do que à prática da arquitetura, os terrenos para buscar possíveis caminhos que transpusessem a corrente do humanismo ocidental e seu arcabouço histórico e de repertório deslocados pelo pensamento pós-estruturalista.15 Por hora, aquilo que nos interessa é sobre a tomada de rumo de John Hejduk e como seus “projetos de papel” se relacionam com as heterotopias definidas por Foucault e a solidão, seja pela arquitetura ou pelo aspecto narrativo. Os ditos “outros lugares” se realizam não somente no projeto, mas nos elementos que compõe e antecedem o projeto.

13 SOMOL, Robert. Texto sonso, ou as bases diagramáticas da arquitetura contemporânea. Risco, 5. p, 184 14 BROSTEIN, Lais; PASSARO, André. Rua de mão dupla: leituras berlinenses de John Hejduk e Daniel Libeskind. Arqtexto, 2008. p, 100 15

64

Idem


65


P A R T E Q U AT R O

Projetos para os desvios do homem

Medusa

No mythologies can elaborate the pain at the roots your horror comes when the serpents sleep it is then that they become glazed in salt it is then too that your mouth and eyes open simultaneously John Hejduk


CEMETERY FOR THE ASHES OF THOUGHT

HEJDUK, John. Mask of Medusa. New York: Rizzoli, 1985. p, 454

Em seu projeto de 1976, Hejduk elabora aquilo que ele chama de “Cemitério para as Cinzas do Pensamento”, como uma resposta ao cemitério de Modena projetado por Aldo Rossi em 1971. O projeto, como tantos outros de sua autoria, choca não apenas pela narrativa, mas também pela sua assombrosa presença. Localizado em Veneza, ele contaria com a remodelação de um antigo moinho e fábrica – o “Molino Stucky Building”, um prédio de 1895 –, a construção de extensas paredes e uma ilha artificial para um único residente. Assim Hejduk descreve o projeto: “O exterior do Molino Stucky Building é pin-

tado de preto. Os interiores do Molino Stucky Building são pintados de branco. As longas, estendidas paredes do Cemitério para as Cinzas do Pensamento são pretas de um lado e brancas do outro lado. A superfície superior e as laterais das longas paredes estendidas são cinzas. Nessas paredes estão buracos quadrados de trinta centímetros quadrados no nível dos olhos. Dentro de cada um desses buracos de trinta centímetros quadrados é colocado um cubo transparente contendo cinzas. Abaixo de cada buraco na parede tem uma pequena placa de bronze indicando o título, e somente o título de uma obra, como “Em Busca do Tempo Perdido”, “Os Moedeiros Falsos”, “O Inferno”, “Paraíso Perdido”, “Moby Dick”, etc. Nas paredes interiores do Molino Stucky Building estão pequenas placas com os nomes dos autores das obras: Proust, Gide, Dante, Milton, Melville, etc. No lago, em uma ilha artificial tem uma pequena casa para a habitação de um único indivíduo por um período de tempo limitado. Apenas um indivíduo, por um determinado período de tempo, pode habitar a casa, a nenhum outro será permitido ficar na ilha durante sua ocupação. O indivíduo solitário olha através da lagoa para o Cemitério para as Cinzas do Pensamento.” 1

1 80

op. cit. Mask of Medusa. p,

A Itália vivia uma época bastante conturbada devido a uma série de atentados terroristas efetuados por militantes das duas pontas do espectro político. Apesar desse plano de fundo, não fica estabelecido por Hejduk um discurso claro sobre o motivo exato da proposição desses extensos corredores, como um texto literário sem conclusão definida. A exemplo do conto “Casa 67


Imagem 03 : Vista aérea de Veneza, Itália (do arquivo do projeto “Cemetery for the Ashes of Thought”) - Fonte: Canadian Centre of Architecture

Imagem 04 : Perspective for Cemetery for the Ashes of Thought - Fonte: Canadian Centre of Architecture

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Imagem 05 : Cemetery for the Ashes of Thought: Perspectiva, planta e elevação - Fonte: Canadian Centre of Architecture

Imagem 06 : Cemetery for the Ashes of Thought: Implantação - Fonte: Canadian Centre of Architecture

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Tomada”, de Júlio Cortázar, onde os acontecimentos ficam suspensos apesar de existir um contexto social que serviria como canal para uma interpretação, o mesmo ocorre com o projeto. Mesmo em seus desenhos técnicos, faltam informações práticas que são suplantadas pelas descrições narrativas e também por seus esboços. Os espaços que sobram fomentam a ilusão, e as informações que conseguimos extrair nesse sentido vem de entrevistas que Hejduk concedeu a Don Wall, como o propósito das diversas cores da casa da ilha operar pelo contraste ao “monocromatismo” da época. 2 Todo o projeto é uma heterotopia. A parcela de tempo em que o indivíduo habita a ilha artificial e observa as fileiras de paredes onde estão as cinzas dos pensamentos é um intervalo recortado da realidade, uma abertura abrupta onde a observação pode ser feita somente por uma pessoa, que também não se sabe o porquê de ter recebido um consentimento para tal ocupação momentânea. Há aqui o espaço definido para a solidão, o lugar do desvio é também um lugar privilegiado pela permissão concedida, habitado durante uma parcela de tempo em que se pode olhar para um outro rompimento de tempo, o tempo finito do pensamento. O cemitério que guarda as cinzas dos pensamentos desloca o posicionamento do acúmulo das ideias, como em um museu, invertendo a tradição de que os pensamentos permanecem apesar da morte de seus autores. Podendo ser interpretado como uma metáfora para o período de ordenação sistêmica pelo qual a Europa passava, o “Cemitério para as Cinzas do Pensamento”, permite a alguém, em um lapso de vislumbre, olhar os jazigos das ideias. Outros projetos de Hejduk também delimitam o espaço definido para uma pessoa, em um dado momento, como “As Treze Torres de Vigia de Cannaregio”3, novamente localizado em Veneza. Nesse projeto, que conta com um extenso texto sobre as dimensões e descrições, as torres enfileiradas possuem sete andares, e para cada um deles é definido um uso específico como, dormir, banhar-se, comer, etc. Na praça onde estão as torres, ocupariam ainda dois elementos: uma casa pintada de branco suspensa em uma parede pintada de preto e uma mesa de madeira feita com cavaletes, cobertos com um tecido branco. No mesmo campo, o tempo seria mensurado por placas de pedra, começando com mil novecentas e setenta e nove unidades – o ano do projeto –, e ano após ano uma nova placa seria adicionada na praça, acumulando todo o tempo em um só local. A cidade de Veneza então escolheria treze homens para habitar em cada uma dessas torres e um outro seria escolhido para a casa suspensa. Na ocasião da morte de algum dos treze habitantes, aquele que habita a casa suspensa ocuparia seu lugar e Veneza deveria escolher outro para o substituir. 70

2 136

op. cit. Mask of Medusa. p,

3 O título original é “The thirteen watchtowers of Cannaregio”


Ambos os projetos citados acima questionam e agridem, de certa forma, a realidade estipulada pela crítica, de uma certa distinção entre um “abstracionismo” e um “historicismo” demarcada por duas posições antagônicas entre a produção dos Estados Unidos e da Europa, segundo a visão de Hejduk.4

Imagem 07 : Planta para “Cemetery for the Ashes of Thought” - Fonte: Canadian Centre of Architecture

Imagem 08 : Planta para “Cemetery for the Ashes of Thought” - Fonte: Canadian Centre of Architecture

4

Ibid. p, 130

71


Imagem 09 : Perspectiva do projeto “The 13 Watchtowers of Cannaregio” - Fonte: John Hejduk, Mask of Medusa.

Imagem 11: Vista - Fonte: John Hejduk, Mas of Medusa.

Imagem 12: Vista das 13 torres - Fonte: John Hejduk, Mask of Medusa

Imagem 10 : Croqui de “The 13 Watchtowers of Cannaregio” - Fonte: John Hejduk, Mask ofImagem Medusa.13: Corte - Fonte: John Hejduk, Mask of Medusa.

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MASQUES: VICTIMS E HANOVER/LANCASTER MASQUE

Hejduk, em certa altura, começa a desenvolver uma série de estruturas às quais ele associa números, sujeitos e funções. Esses conjuntos de estruturas ele chama de “masques”. Existe, contudo, uma diferenciação necessária na utilização que ele faz da palavra masque, que, apesar de possuir a mesma raiz da palavra mask possui um significado um tanto distinto. Masque está relacionado não ao objeto, mas a festa de máscaras (masquerade), uma parada carnavalesca onde utilizasse da pantomima e da mímica. Já mask é o artefato usado sobre

o rosto, com caráter reconhecidamente representacional. Isso possui um efeito duplo, pois as “masques” criadas por Hejduk são tanto esse evento teatral da convivência dos vários mascarados, quanto cada máscara utilizada por um sujeito, traduzidas como estruturas.1 Logo, o conjunto dessas estruturas, as “Masques”, foram usadas para projetos em diversas cidades/locais como Berlim, Hanover, Nova Inglaterra, Riga, etc. Um desses “catálogos” de estruturas foi apresentado para um concurso elaborado pelo IBA (Internationale Bauausstellung Berlin) em 1983, para os antigos quarteirões no qual localizavam-se os quartéis generais da SS e da Gestapo.2 A proposta chamada Vítimas3 consistia em 67 estruturas numeradas e a elas eram associadas a descrição de um sujeito, a descrição da estrutura (objeto) e desenhos técnicos, croquis e um diário que percorre 128 dias. Essa experiência de Hejduk o afasta de noções mais pragmáticas em relação ao projeto arquitetônico, como programa, funcionalidade, orientação e usuário, que, permitindo-o seguir por um caminho mais próximo de explorações textuais, faz dessas incursões uma maneira de explorar questões sintáticas da arquitetura.4 1 FIREBRACE, William. John Hejduk: Lancaster/Hanover Masque: AA EXHIBITION GALLERY 2–26 MAY 1990. AA Files, no. 21, 1991, pp. 78–85. JSTOR, JSTOR, www.jstor.org/ stable/29543735. 2 op. cit. Rua de mão dupla: leituras berlinenses de John Hejduk e Daniel Libeskind. p, 104 3

O título original é Victims

4 op. cit. Rua de mão dupla: leituras berlinenses de John Hejduk e Daniel Libeskind. p, 105

São presentes nessas incursões distorções no tempo do projeto, uma suspensão que torna indistinto passado, presente e futuro, levando a uma deriva temporal (Brostein & Passaro, 2008). Isso contribui para a criação de lugar que desafia as lógicas regentes da realidade. Apesar de existir um projeto, desenhos técnicos, uma descrição e um memorial, Hejduk consegue estabelecer vínculos com o fantasioso, com algo que não habita a realidade prática. Em um outro projeto, a masque de Hanover/Lancaster, de 1982, Hejduk elabora um conjunto que consistia em uma lista de 68 máscaras/estruturas numeradas, onde a coluna da esquerda mostrava o nome do objeto/estrutura, com uma breve descrição, e na coluna da direita o sujeito, também junto com 73


Imagem 14 : Desenho da estrutura “Security” - Fonte: John Hejduk, Victims.

Imagem 15 : Croqui de “The Suicides House” - Fonte: John Hejduk, Mask of Medusa.

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uma descrição. Junto dessa primeira lista havia uma segunda, composta pelas ações que cada um dos sujeitos dessas estruturas iria executar entre as seis horas e trinta minutos até as dezoito horas e trinta minutos. E finalmente, acompanhando essas duas listas, seguia uma série de croquis das estruturas. Há nesses dois projetos, Vítimas e Hanover/Lancaster Masque, em maior ou menor grau, espaços disponíveis deixados pela falta de plantas, de detalhes que são exigidos pelos incisos e normas de concurso. Eles são substituídos pela poética e pelos detalhes organizacionais e desviantes que por sua vez desafiam a realidade concreta. Há, portanto, um tensionamento que se faz valer dos deslocamentos reais que antecedem o próprio projeto. Tanto naquilo que está fora do projeto, quanto no próprio projeto, a suspensão do espaço, dessa heterotopia, se dá através da subversão dos elementos que arbitram e compõe a concretude da vida corrente, ou seja, daquilo que a torna familiar e reconhecível dentro de uma cultura, por outros elementos, que também compõe uma determinada cultura, mas que são reconhecidos pela exceção. Esses elementos, que ao mesmo tempo insinuam a familiaridade e são desviantes, pressionam a fibra dessa realidade. Eles se fazem valer pela imaginável exequibilidade de um outro conjunto de elementos arbitrando sobre a realidade objetiva, elementos esses que deslocam as posições – as certezas –, em razão de um espectro de presença, de elementos, que por sua vez, infligem um outro roteiro sobre a vida. Assim, o artificio da máscara e da encenação do próprio jogo de máscaras é utilizado como elemento intentando conduzir um sujeito real a encarnar uma outra posição que se admite tão real quanto e nela viver através das atuações impostas às máscaras. Assim, a existência tangível do sujeito é substituída pela representação orquestrada do roteiro, corroborando para sua suspensão, sua sublimação. A familiaridade é recuperada por Hejduk como nos capítulos do trabalho de Walter Benjamin, “Rua de Mão Única”. Nos livros que compõe uma trilogia, em cada capítulo as partes são intitulados com lugares, ofícios ou eventos: Oculista, Vestiário de Máscaras, Notícia de uma Morte.5 Assim também faz Hejduk. Suas estruturas carregam os nomes que são familiares, reconhecíveis em alguma lembrança antiga.

5

Ibid. p, 112.

Não somente a questão do tempo é posta em cheque na introdução ao projeto, bem como no decorrer, mas também a suspensão do próprio espaço, que extrapola não apenas o deslocamento físico, visto que várias estruturas são móveis, mas também encerram um deslocamento da sua presença e se coloca como uma presença/ausência ao evocar a ideia de 75


fantasmas. Hejduk retoma essa presença sobrenatural a partir do traço. Em algumas frases postas, em um quase-poema intitulado “Thoughts of na Architect”, ele afirma que os traços arquitetônicos não são diagramas, são aparições, são fantasmas.6 Que as rasuras são existências passadas. Isso contribui para o entendimento de diferença levantado por Derrida, onde as estruturas são traços que se afastam de um caráter representacional em relação a descrição dos sujeitos e daquilo que seriam seus símbolos.7 Sobre isso Laís Brostein diz: “Nestes espaços, desvanecem as ideias de mimese e de representação, assim como todo mecanismo gerador de significados. Em seu trabalho, a ideia de significado é deslocada para uma categoria de simbolismo desprovida de conotações semiológicas, high tech, kitsch ou revivalistas.” 8

Imagem 16: Croquis de “Hanover/Lancaster Masque - Fonte: John Hejduk, Mask of Medusa.

Assim, os trabalhos intitulados como Vítimas e Masques, são um acervo de heterotopias criadas, é a exploração narrativa e o descolamento das diversas funções relacionadas aos ofícios e aos sujeitos. Em cada uma dessas estruturas ele torna possível questionar ou reiterar o papel dos sujeitos através do conjunto de representações de suas tarefas, transformando o falso e o mimético, em verossímil. Hejduk elabora, portanto, um conjunto de solidões.9

76

6 HEJDUK, John. Victims: a work by John Hejduk (text 1). Architectural Association: Londres, 1986. Thoughts of an architect. 7 op. cit. Rua de mão dupla: leituras berlinenses de John Hejduk e Daniel Libeskind. p, 105 8

Ibid. p, 112.

9 DE CASTRO, Maria Marques. O confim do limite. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) – Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Porto, p. 34. 2012


DIAMOND CONFIGURATION

Os deslocamentos levantados nas obras de Hejduk, em relação a narrativa e projeto, não são os únicos, existe uma outra imagem que ele toma para questionar os posicionamentos. Ela pode ser elaborada a partir de um trecho do texto de Foucault. Voltando ao exemplo do espelho usado pelo filósofo para explicar as heterotopias, é com ele que o autor estabelece o funcionamento de uma heterotopia, pois no momento em que nos olhamos no espelho a partir da nossa posição real, avistamos a nossa imagem virtual no local que não ocupamos. O apercebimento da ausência de nossa posição virtual repercute dessa posição numa percepção do espaço real que ocupamos. “[...] o espelho funciona como uma heterotopia no sentido em que ele torna esse lugar que ocupo, no momento em que me olho no espelho, ao mesmo tempo absolutamente real, em relação com todo o espaço que o envolve, e absolutamente irreal, já que ela é obrigada, para ser percebida, a passar por aquele ponto virtual que está lá longe.” 1

1 op. cit. Estética: literatura e pintura, música e cinema. p, 415 2 62

op. cit. Mask of Medusa. p,

Hejduk utiliza uma ideia exposta no livro “The Failling Distance”, do pesquisador de John Ruskin, Jay Fellows. A ideia, que “fala sobre o fator de olhar em direção à perspectiva”,2 é um direcionamento do olhar que produz a chamada “configuração diamante”. Do ponto do indivíduo, localizado fora do ambiente, se abre a perspectiva até a parede da fachada e, como acontece com a imagem virtual, essa mesma abertura se fecha até o ponto da ausência (virtual), formando um losango, ou diamante. O ponto da ausência, ou a imagem virtual do sujeito, está no interior da casa, interior esse que se transforma na posição virtual, na localidade da falta. Para Hejduk, o momento apoteótico se dá quando a hipotenusa formada por essa perspectiva, é achatada até encontrar-se sobreposta à linha da parede-espelho. Esse momento acontece quando o sujeito alcança a entrada, o elemento intermediário, e chama-o de “momento de presença”. Dessa forma, Hejduk justifica a coloração cinza da parede, elemento central de suas obras, e o interior branco da “Element House” – casa que pensou para explicar à filha os elementos da arquitetura enquanto lia para ela o livro “Babar, o Elefante”. O exterior seria o ambiente preto e o interior, branco, e o momento de encontro entre esses dois ambientes seria marcado por uma fina parede mesclando os dois com a cor cinza. É curioso pensar que esse chamado “momento da presença” se dá no encontro entre a posição real e a posição virtual, o evento singular seria quando as duas posições de fato ocupam 77


o mesmo lugar, o momento onde não somente o real e não somente o virtual, mas ambos, se realizam na presença. Ele também chama esse momento de “momento da morte”, o que faz refletir também sobre a dialética existente entre a presença e a ausência, determinada pela morte. O virtual localiza a morte, portanto a apoteose é também a realização da ausência. No entanto, esse construto não se faz de fato presente, pois não há o elemento que caracterizaria toda essa elaboração que é o espelho. Não é feita, por exemplo, da porta um espelho, ou um vidro com certa reflexão. Portanto, ainda que exista uma utilização espacial, elaborada através do percurso, do elemento da parede e do ambiente interno, essa configuração é extremamente potente enquanto metáfora, sendo dessa maneira que ela se apresenta, como figura de linguagem que sustenta um forte consciência de si no sujeito, tornando latente o jogo entre presença e ausência, entre realidade e ilusão, e utilizando signos do léxico arquitetônico. Hejduk transfere para fora da arquitetura o sentido que caracteriza esse intento, pois é na utilização do cinza, no percurso e na percepção fenomênica de estar no ponto da entrada, todos símbolos para aquilo que ele tenta representar. Isso não torna menor a potencialidade do discurso poético de Hejduk, na verdade é com isso que ele principia um vasto arcabouço teórico que perpassa a maioria dos seus projetos que seguem após seus exercícios diagramáticos.

Imagem 17 : Croquis e maquetes de “The Element House” - Fonte: John Hejduk, Mask of Medusa.

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Imagem 18 : Gráfico sobre “Configuração Diamante” - Fonte: Arquivo do autor.


RESÍDUO_ 01

FATA MORGANA

Imagem 19 : Caderno de anotações - Fonte: arquivo do autor

Fata Morgana é um fenômeno óptico que decorre da acomodação de duas camadas de ar em diferentes temperaturas. Essa separação atua como uma lente refratando a luz, dando assim a impressão de um objeto no horizonte, como barcos ou montanhas, estarem voando no céu. A posição real é apagada e o que se vê é a posição virtual do objeto. É o deslocamento da posição para um local inexistente e suspenso, que é possível enxergar mas não alcançar. Imagem 20 : Croqui de Fata Morgana - Fonte: arquivo do autor

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Fata Morgana desço pelo mar que é cinza sou único a validar qualquer existência do que quer que eu sou eu me tinjo daquele cinza insípido e líquido cinza que verto aos montes aos golpes aos sonhos em todas as horas engolindo o mar de paredes de concreto embarcado no errático museu-habitação com piso de mar eu me arrasto sobre essas águas. uma luta oscila diante um sol morto eclipse improvável pra mover sequer um pesar o museu-habitação erigido no centro do mar também não se move de um outro tempo o vejo do mesmo ponto se transformar em monte enquanto aceno para mim mesmo em outro tempo chamo-me pelo nome “DEUS” e ouço a resposta eterna “sou único a validar qualquer existência”

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THE HOUSE FOR THE INHABITANT THAT REFUSES TO PARTICIPATE

Esse último exemplo integra o projeto já citado “As treze torres de vigia de Cannaregio”. Em uma outra praça de Veneza Hejduk localiza uma torre de pedra. O habitante que se recusou a participar mora em uma casa onde seus ambientes são separados em doze unidades. Essas unidades estariam dispostas suspensas em uma parede, em três fileiras e quatro colunas, cada uma delas numerada de um a doze, sendo a décima terceira unidade a própria parede. Essas unidades são os cômodos separados onde cada um contém um objeto que serve de associação para o ambiente, como pia de cozinha na unidade “1”, um fogão na unidade “2”, na unidade “3” uma mesa de jantar e uma cadeira, etc. A unidade “7”, porém, é vazia. Quando o habitante que se recusou a participar se coloca em pé nessa unidade vazia, logo em frente, ele vê um espelho fixado na torre de pedra na mesma altura da unidade “7”, refletindo a si mesmo. A qualquer cidadão é dada a permissão de subir a escada e entrar na torre de pedra, de onde é possível observar através do espelho – pois este possibilita enxergar dessa face –, o habitante que se recusou a participar em sua unidade vazia. Porém, há o risco de outro cidadão fechar a portar da torre e o deixar observador escondido enclausurado dentro dela. A seguir ele finaliza com o seguinte trecho que fornece continuidade para elaborar o papel da solidão e Hejduk: “Desde 1974 Veneza tem inquietado a natureza do meu trabalho. Ela é um fórum dos meus argumentos internos. Os pensamentos têm a ver com Europa e América; abstração e historicismo; o individual e o coletivo; liberdade e totalitarismo; as cores preto, branco, cinza; silêncio e fala; o literal e o ambíguo; narrativa e poesia; o observador e o observado. E estou em débito com a Itália e com a Cidade de Veneza por provocar o ímpeto de minhas investigações. Eu suspeito que nesses quatro anos passados minha arquitetura se moveu de uma “Arquitetura do Otimismo” para o que eu chamo de “Arquitetura do Pessimismo.”1

1 op. cit. Mask of Medusa. p, 355 83


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Imagem 22 : Perspectiva - Fonte: John Hejduk, Mask of Medusa.

Imagem 21 : Vista superior - Fonte: John Hejduk, Mask of Medusa.

Imagem 20: Fachada - Fonte: John Hejduk, Mask of Medusa.


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PARTE CINCO

Por uma solidĂŁo que cegue luz

Outside Rome

it stopped when sheep shadows mixed with those of cypresses the 39 arches shaded the statues at 60 degrees horse pedestals held bronze hoofs Ardeatine whispers skimmed the earth the photos bled John Hejduk


HEJDUK, John. Mask of Medusa. New York: Rizzoli, 1985. p, 105

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A SOLIDÃO EM HEJDUK Com esses projetos, sobretudo os propostos para Veneza, é possível mostrar o modo com o qual Hejduk dialoga com a solidão que vem sendo tratada no trabalho. Neles, o aspecto que desloca a posição real para uma posição incerta, é o que aproxima da solidão que discutimos, por exemplo, no conto de Guimarães Rosa. Essa posição, que se lança à dúvida e ao combate da realidade prática, aparece nas heterotopias criadas por Hejduk ao tornar incerto os elementos que sustentam as ideias de espaço e sujeito, através de desvios como a solidão. No entanto, as motivações de John Hejduk expõem, além de uma preocupação em compreender e lidar com um ideal moderno falido, um forte ideal assentado naquilo que ele chama de “Arquitetura do Otimismo”. Em sua entrevista para Don Wall, quando questionado sobre a importância da “Element House”, ele responde que ela foi sustentáculo para definir seu pensamento em trabalhos seguintes, como “A casa para o habitante que se recusou a participar” e “As treze torres de vigia de Cannaregio”, pois foi com o projeto dela que Hejduk elaborou uma abordagem que dividia a vida entre aspectos positivos, geralmente relacionados com os semelhantes, e aspectos negativos, que são os diferentes, os outros, relacionando essa dicotomia a uma situação social que ele enxergava.1 Essa reflexão, fruto de uma página do livro de Babar, deu impulso ao que ele chama de “Arquitetura do Pessimismo”. Para Hejduk, o movimento moderno fez tornar hegemônico aspectos formais e um conjunto de programas da arquitetura voltados para o otimismo, como escolas e hospitais. De um outro ponto de vista, a arquitetura moderna privilegiou a luz do sol, os espaços abertos, a pouca privacidade. Ele lega isso 88

1 63

op. cit. Mask of Medusa. p,


ao ideal modernista que atribuía a esses elementos os componentes para uma realização de futuro utópico, necessariamente feliz e coletivo. A partir dessa análise, insiro os programas habitacionais, sobretudo as Unités d’Habitations de Le Corbusier, que agregavam vários aspectos relacionados ao ideal de coletividade inseridos em seus projetos. Suas habitações em Marseille ou Firminy-Vert, para citar dois, tentam reproduzir os aspectos do coletivo juntamente com a ideia de homogeneização do sujeito, que se resumia as questões funcionais. Ricardo Marques de Azevedo discorre sobre esse período: “Vê-se pois que, para os positivos, também o belo progride! O que vale para o objeto, extrapolam, aplica-se extensivamente ao concerto das relações sociais. Uma sociedade bela é justa e medida, nela, como na máquina, as múltiplas interações são nítidas, precisas: sociedade administrada. O arquétipo deste projeto de eticidade estética – nos quadros de uma palingenesia social – é a máquina que, nada concedendo ao simbólico, assim, ao supérfluo, em sua complexa articulação, opera relação causal completa, esférica, sem poros.”2

Os andares são chamados de “ruas”, em uma tentativa de associar seus corredores à via pública; os programas de lazer e serviço são propositalmente coletivos, como a área de estender as roupas e o terraço, este transformado em espaços de educação, como creches e escolas. O homem moderno deveria ser harmonioso em seu convívio, pois, dotado de razão, regrava suas atitudes, dominava suas emoções – em uma falsa dicotomia – e agia devidamente entre seus iguais. Era máquina também no social.3 Contudo, Hejduk segue dizendo na entrevista que não havia durante o modernismo uma oposição cultural que fizesse jus a força desse otimismo como havia na Idade Média. Para ele, existiam programas no período que ofereciam um contraponto para estabelecer-se um equilíbrio. Ele diz:

2 DE AZEVEDO, Ricardo Marques. Metrópole: abstração. São Paulo: Perspectiva, 2006. p, 52 3 op. cit. Metrópole: abstração. p, 51 4 63

op. cit. Mask of Medusa. p,

“Não havia [no modernismo] uma contraforça cultural da mesma forma que tivemos na Idade Média, onde os programas do Pessimismo existiam para desequilibrar os programas do Otimismo.”4

Assim, a segunda metade do século XX seria o início da chamada arquitetura do pessimismo, devido à necessidade de alcançar um equilíbrio alterado pelo modernismo, para que então, um segundo modo de entender o mundo pudesse ser também capaz de avançar e produzir argumentos. 89


A solidão, portanto, está inserida no pensamento de Hejduk como um elemento da arquitetura do pessimismo, dentro de uma argumentação que deveria ser forte o suficiente para se estabelecer como uma outra via de argumentação. Essa via utiliza-se da solidão como recurso formal em sua arquitetura. Por não ser predominante que ela se encaixa tão bem nos trabalhos de Hejduk, ou seja, como característico dos desvios, eles se estabelecem em uma realidade suspensa, sendo isso que os projetos heterotópicos dele abrigam. Nessa concepção, a heterotopia é o meio espacial no qual a solidão poderia existir sem ser necessariamente fenomênica, pois assim ela se estabelece como recurso textual, como elemento sintático, visto que estrutura uma posição de deslocamentos da realidade através do vocabulário arquitetônico e narrativo, transpondo assim a necessidade de ser percebida pelos sentidos. Apesar de isolar os indivíduos, não há nos textos de Hejduk passagens que falam no isolamento do indivíduo com um fim definido, como um sentimento que deva ser impelido à percepção do usuário. O isolamento é dado, é material de expressão. No entanto, John Hejduk toma esse caminho para atingir um ideal, um momento no horizonte de equilíbrio dessas forças. Logo, a arquitetura deveria buscar esse equilíbrio não dentro dela, mas fora dela, ao olhar para a situação do mundo. Ela deveria ser a arquitetura que busca a oposição ao hegemônico, a força que falta para alcançar o peso excedente de um lado ou de outro da balança. E é isso que ele faz. A “CONTRARREPRESENTAÇÃO” DE HEJDUK Diante da dualidade enxergada por Hejduk, ele propõe com seus projetos fornecer uma outra arquitetura que fosse tão forte e incisiva a ponto de parear o estabelecimento da chamada “arquitetura do otimismo”. A força pasteurizante dessa arquitetura, direcionada ao convívio e aos programas positivos, que ganhou força com o movimento moderno, só pode ser equiparada por uma força contrária tão expressiva quanto para que se anulem a fim de alcançar um estado de equilíbrio, uma “contrarquitetura”. Uso esse termo pois ele promove um paralelo de significado com o de “contracultura”, funcionando como uma alternativa que visa não o apagamento da arquitetura ou sua destruição, mas sim sulcar aberturas para que possam fluir uma gama maior de expressões que não são comportadas pelos valores dominantes. A visão do arquiteto imputa uma lógica dualista para a arquitetura, no entanto, não é de forma alguma uma visão maniqueísta. Não há, portanto, uma abordagem do pessimismo como atributos negativos. Não há para Hejduk um paralelo entre a “arquitetura do otimismo” e a ideia de “bom” e a “ar90


quitetura do péssimo” a ideia de “mau”. Nesse sentido, a arquitetura estaria além da moral. A representação moderna, para Hejduk, se baseia no ideal utópico de um mundo otimista e eufórico, comum e coletivo. Logo, partindo do entendimento predominante do “Otimismo”, ele formula através de seus projetos e reflexões, programas e repertórios formais próprios do “Pessimismo”. Esse repertório de representações perpassa os projetos do arquiteto e também as imagens narrativas criadas por ele, sendo, portanto, a sua “contrarrepresentação”. A compartimentação dos espaços que ele propõe, onde cada função é posta em um cômodo separado, é a organização que responde diretamente aos ambientes aglomerados do modernismo. Há aqui a redução das necessidades do homem ao mínimo. Apesar disso, não é a ideia do homem enquanto máquina que domina seus projetos, mas sim, a obliteração da contradição interna do discurso modernista – a contradição da forma submetida a função – que infiltra sua expressão e o leva a delimitar os espaços para as necessidades. Não há uma relação entre a suposta dicotomia “forma e função” para que um paralelo, ou um dito aperfeiçoamento do modernismo, possa ser estabelecido, pois os mesmos cômodos, com as mesmas dimensões, servem a funções diferentes. A forma aqui não segue a função, estando ela muito mais ligada ao enredo argumentativo de Hejduk do que propriamente a um ideal racionalista. Com isso a parede ganha notoriedade ao se tornar o elemento organizador desses vários cômodos, estabelecendo-se hora como um plano que recebe as unidades acopladas, hora como elemento de transição da perspectiva na “Configuração Diamante”. Para os espaços modernos preenchidos pela luz do sol5, Hejduk elabora também sua contraparte. Mesmo utilizando as aberturas em fita, herança de uma possibilidade técnica explorada pelo modernismo, ele estreita essa faixa à altura da visão e com isso aumenta a área das paredes, o que favorece sua ideia de privacidade e reclusão, pois compromete a vista do externo através de uma abertura fina e prolongada.

5

Idem.

Da mesma forma a solidão ocupa um espaço de contrarrepresentação na arquitetura de John Hejduk, pois além de ser vocabulário do desvio, ela faz parte do conjunto de elementos que se opõe ao otimismo. Assim, é também a narrativa que delimita a vivência de apenas um indivíduo em determinado projeto, sendo ela a contraparte da falta de privacidade, a supressão do “eu” em detrimento do coletivo. Logo, os repertórios formais e programáticos de Hejduk são exitosos em expor algumas contradições do movimento moderno e em rebater a predominância de elementos que apesar de não serem de91


finidores da arquitetura moderna, ganharam presença com o movimento. Contudo, a própria necessidade inventada do alcance ao equilíbrio passa a conduzir seus esforços, pois é a partir dessa concepção dualista da arquitetura, ou seja, da fixação de uma meta ideal que se encontra na estabilidade das forças, que Hejduk forja um paradigma que é tanto redutor quanto pragmático para a expressão arquitetônica. A idealização desse plano de fundo organizador, ainda que tenha permitido fazer vicejar toda uma sorte de representações, argumentos e expressões que destoam de um clamor hegemônico, resulta, em uma certa instância, o prolongamento de uma vala para a catalogação simplista da arquitetura. Evidente que definir um plano anterior é estampar uma rede de sentido para a criação, uma trama que seja passível de crítica e interpretação dentro de um argumento definido. Essa delimitação ocorre das mais diversas maneiras e brota de diferentes análises e argumentos. Apesar disso, ao meu ver, algumas análises alcançam um desprendimento maior dos valores pragmáticos que acabam por conceder maior liberdade a expressão. No entanto, penso que para Hejduk, a criação dessa retórica dualista que ruma ao equilíbrio, tenha sido o grande brilho do seu trabalho, pois é a partir dessa compreensão única da situação da arquitetura que ele torna possível ressoar suas ideias e projetos. Dessa forma, o contexto que ele formaliza ao dizer que após o modernismo estaríamos entrando no momento da “Arquitetura do Pessimismo” é, além de uma das tantas narrativas propostas para questionar a produção arquitetônica passada, um potente embasamento para tudo aquilo que deriva da sua vontade. É a afirmação criativa de um estado da arquitetura que é capaz de envolver sua expressão. Levar a obra de Hejduk para além da moldura insuficiente da chamada “arquitetura de papel”, ou seja, encará-la como uma expressão crítica da arquitetura moderna, é possível somente através da aceitação de seus projetos, da qual faz parte a narrativa, como uma real possibilidade no mundo. Um mundo que ele torna plausível a partir de questionamentos acerca de sentimentos e valores tidos como inferiores, em um fenômeno social, que aproxima os semelhantes sob a efígie da bondade e persegue os diferentes que compreendem o que há de negativo no mundo.6 É importante salientar, diante da forma obtusa com que ele lança a crítica ao movimento moderno, que há uma fina linha que impede o discurso da arquitetura de se tornar uma reação ressentida à predominância dos “elementos otimistas” na arquitetura. Essa linha é a crença no equilíbrio das forças. Ela 92

6

Idem.


estipula uma produção pungente para ambos os lados e não uma sobreposição de um valor ao outro, ou a inversão da representação e dos programas. Ainda que o termo utilizado – “contrarrepresentação” – corra o risco de ser ter seu entendimento relacionado a uma representação reativa, sua utilização é consoante com a ideia dialética de oposição entre duas forças, mas não de hierarquia. Hejduk inventa, então, esse embate que ruma à harmonia e define o seu lado nessa trama, dotando assim a sua arquitetura de um propósito que poder ser, em certa medida, conservador e pouco maleável, mas que não se fortalece pelo ressentimento. O arquiteto, então, procura destravar uma parte da produção da arquitetura e tudo aquilo que ela poderia abrigar como expressão – e que ele via como colocada em segundo plano – através do argumento da representação hegemônica e daquela subalternizada. Isso perpassa toda a sua obra, sobretudo após a “Element House”7, concedendo terreno retórico para a exploração dos desvios da sociedade que ficaram marginalizados com a promulgação de uma arquitetura que dirigia-se à apoteose da comunhão. É dessa forma que Hejduk instaura a sua “contrarrepresentação”. É possível, a partir desses aspectos levantados, concentrar os esforços sobre um ponto que reuniria, não sem ruídos, a complexidade estética e projetual de Hejduk, mesmo que a partir de uma obra de vida repleta de diferentes eixos e focos de pesquisa. Assim, como havíamos dito, a arquitetura de Hejduk se debruça sobre a questão semântica, sobre a representação de significados que se opunham a um estado de coisas. Essa foi a fonte de questionamentos que primeiro impulsionou as minhas indagações, e que a mim, surgia como solidão, como o contraponto à felicidade plena. O que para Hejduk é a “Arquitetura do Pessimismo”. Apesar desse impulso inicial, algumas acepções foram sendo rebatidas pela própria ideia de solidão e como ela se coloca contra inclusive a criação e fixação de uma estabilidade ideal, contra a plenitude, conduzindo as questões para um caminho de frustração e êxito contínuo. Apesar da presença da solidão de uma forma até então inexplorada na arquitetura, Hejduk tropeça em não ir além na arqueologia da solidão, nos seus entraves e desdobramentos ao longo da história, um pouco do que foi explorado anteriormente nesse trabalho. Ainda que ele tenha investido na exaltação de tudo aquilo que é negativado pela conduta do mundo, ao ponto de equiparar essas forças em sua produção, há uma lacuna histórica na representação da própria solidão que o enredo de Hejduk não é capaz de atingir. 7

Idem.

Mesmo a próspera produção do arquiteto – analisadas pela ótica das heterotopias que apresentam a solidão de um modo 93


positivo e afirmativas de condições associadas ao sofrimento e a tristeza como valores além da moral –, favorece uma separação binária entre dois termos, quando na verdade a solidão que busco no trabalho é aquela que possibilita o acolhimento da vida como um todo. Contudo, a “contrarrepresentação” de Hejduk da solidão, ainda que insuficiente para de fato destravar a crença em ideais através do conceito de “ser único no mundo” – o conceito de solitude –, abre caminho para se pensar a gênese da luz, da comunhão e da própria ideia de plenitude e valores absolutos que continuam a comprimir uma postura que aceite a vida integralmente. A CONSTRUÇÃO DA LUZ O Édito de Milão, assinado por Constantino I no início do século IV, outorgava a liberdade de culto aos cristãos que até então reuniam-se em catacumbas, formando redes subterrâneas e câmaras nos encontros das galerias. Nos primeiros séculos do cristianismo havia um desenvolvimento pictórico de temas clássicos até uma insípida emergência da iconografia cristã. Somente após a conversão de Constantino e do reconhecimento do cristianismo que surgiu com mais veemência a necessidade de um espaço para que os fiéis se reunissem e realizassem seus cultos. A princípio, a busca por locais para a realização e encontro dos devotos se deu da mesma forma que os elementos pictóricos clássicos – agora pagãos –, ou seja, pela apropriação dos espaços das basílicas romanas, onde anteriormente era reservado às funções públicas e magistrais. A planta da basílica romana, hierarquizada e com capacidade para abrigar um vasto número de pessoas, foi primária para os interesses dos rituais cristãos. As alterações que eram feitas consistiam na substituição de uma figura por outra, pois a configuração desses espaços privilegiava a posição daquele que fala para uma grande audiência, e assim, mantendo a figura central na abside, substituía-se apenas o magistrado pelo sacerdote. Dessa forma, a comunhão começa a aderir ao cristianismo. “A basílica paleocristã confirma a preponderância da ordem axial longitudinal, sobre a qual se dispõe sucessivamente a entrada, o eixo da nave principal e a abside, conjunto em que incide a luz que penetra a rodos pelas altas janelas, sem quaisquer zonas claro-escuras, uma vez que o deus dos cristão se identificava simbolicamente com a apoteose da luz.”8

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8 LLERA, Ramon Rodriguez. Breve história da arquitetura. Lisboa: Editorial Estampa, 2006. p, 34.


Com o formato da basílica privilegiando uma hierarquia axial que culminava em um ponto banhado pela luz, acaba-se por congregar o pensamento do sacerdote como representante de deus na terra, que conduz, através da palavra e das missas, os indivíduos a comungarem com Deus. Assim, toda a simbologia apresentada nos mosaicos ajudava a realçar o caráter transcendental da luz na arquitetura paleocristã.9 As associações continuam. Gregório de Nazianzo, novamente como a figura que subverte os signos e pensamentos pagãos, em 380, cunhou um paralelo entre a forma da planta da Igreja dos Santos Apóstolos, em Constantinopla, e o formato de uma cruz.10 Hoje o formato das basílicas são lembradas pela sua planta cruciforme em decorrência de uma associação que fortalecia um culto inicial à cruz na religião católica. Com isso, a arquitetura religiosa que passa a ser produzida no ocidente, é tanto produtora de estímulos quanto é estimulada por uma liturgia própria e por resoluções práticas de uma religião que iniciava seu domínio. Esses projetos refletem os aspectos simbólicos das crenças católicas e de sua cosmologia, apropriados de elementos de uma arquitetura pagã.11 Assim, se dá uma ressignificação de um vocabulário arquitetônico que já havia se distanciado dos valores de representação oriundos de um tempo específico. Desta forma, a comunhão e a luz passam a ter, na arquitetura, um papel que atende ao transcendental e ao divino, na busca por valores que sejam completos e que distanciam o homem dos sofrimentos da vida. A ILUSÃO DA PLENITUDE E A FICÇÃO DA LUZ

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Idem.

10 VEYNE, Paul. História da vida privada 1: do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p, 314 11 op. cit. Breve história da arquitetura. p, 34. 12 MOSÉ, Viviane. O homem que sabe. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p, 17

“O pensamento é nossa dignidade, porque nos permite vencer o sofrimento, não por meio da eliminação da dor como tem tentado a modernidade, com suas infinitas fábricas de ilusão, mas por meio de uma afirmação da vida em sua totalidade, ou seja, por meio de uma interpretação da vida que inclua o sofrimento. O homem deixa de ser arrastado pelo sofrimento quando o utiliza como impulso em direção a jornadas cada vez mais difíceis. O sofrimento é um impulso para a vida, e o que dignifica o homem é sua capacidade de afirmar aquilo que o aflige, invertendo a direção das forças.”12

A solitude se estabelece na compreensão de estar só no mundo. Não isolado, como um impedimento para a capacidade de se estabelecer relações ou comunidades, mas que a existência individual é a base necessária. Ela distingue-se da solidão por não atribuir a si o peso do sofrimento por estar só, pelo con95


trário, a solitude se fortalece pelo entendimento de si ao colocar o indivíduo desatrelado de condutas coletivas. Contudo, a associação da solidão ao sofrimento é resultante da associação do seu oposto aos valores positivos. O signo negativo da solidão se dá por ele não ser a positiva comunhão, por não estar em contato com aquilo que retorna a Deus. Ou seja, a solidão impede que os indivíduos alcancem o reino divino, das ideias – a plenitude. Platão, em seu livro “Timeu”, elabora uma cosmologia que acabará por permear o catolicismo e o gnosticismo nos primeiros séculos do cristianismo, ainda que de maneiras diferentes. No livro, Platão estabelece que os demiurgos, divindades que são livres de inveja e que produzem sempre a beleza – portanto melhores que os próprios deuses gregos –, trabalham na criação do mundo e auxiliam os homens. 13 A criação do mundo sensível, ou seja, o mundo que experimentamos através dos sentidos, é baseada em arquétipos, que por sua vez existem no mundo das ideias, onde estão as formas verdadeiras dos elementos replicados no mundo. É exatamente por ser a verdade que ocupa o mundo das ideias que as divindades se espelham nele para trabalhar o belo no mundo sensível, pois o belo é aquilo que não muda, o eterno. Assim, o auxílio concedido por essas divindades é em direção ao ordenamento do caos, não de uma criação que deriva do nada, mas que organiza um substrato existente a fim de melhor aproximar o homem e o mundo de suas verdadeiras formas, sua imagem perfeita.14 Quando do início do cristianismo, havia um sincretismo entre concepções gnósticas e cristãs, e dessa aproximação é possível apontar algumas similaridades de relevância para a estruturação da plenitude. Para ambos, a matéria é inferior as ideias, logo, tudo aquilo que se aproxima da carne é inferior as coisas que se aproximam da alma. Assim, no gnosticismo, os demiurgos são vistos como divindades inferiores por agrupar a matéria e selar a alma nos corpos, o que tornaria mais difícil uma apreensão do conhecimento (gnosis).15 O divino no gnosticismo está associado ao conhecimento, pois todo saber verdadeiro é perfeito por ser eterno, e somente aqueles que se separam do mundo material podem unir-se ao todo e estar completo mais uma vez. Esse todo que abriga a totalidade do conhecimento é a pleroma.16 O apóstolo Paulo de Tarso é alvo de grande controvérsia no início do cristianismo pois é acusado de desvirtuar os ensinamentos de Cristo e escrever sua própria visão do cristianismo.17 Há nas epístolas de Paulo uma grande influência do pensamento greco-romano, o que contribuiu para o fortale96

13 PLATÃO. Timeu-Crítias. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011. p, 38 14

Idem. p, 42

15 PAGELS, Elaine. The gnostics gospels. New York: Vintage Books, 1989. p, 37 16

Idem. p, 137

17 VASCONCELOS, Yuri. Paulo: o homem que inventou Cristo. Super Interessante, 2003. Disponível em: <https://super.abril.com.br/historia/o-homem-que-inventou-cristo/>. Acesso em: 22 out. 2018


cimento da religião cristã pois a afastava de uma tradição semita. Em uma dessas epístolas, a chamada Colossenses, Paulo associa Jesus Cristo à plenitude: “Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade.” 18

Sendo Paulo encarado como de fato um gnóstico para alguns estudiosos, a utilização da palavra “plenitude” em sua carta aos colossenses remete à pleroma – que deriva da mesma palavra grega que significa preencher –, portanto, é em Cristo que está toda a verdade, todo o conhecimento verdadeiro, o todo. Logo, Jesus Cristo é o tido como o próprio deus do cristianismo, o mais alto dos anjos e de toda a potência divina19, visto que congrega toda a verdade do mundo sensível, é a própria plenitude. É através da eucaristia, da celebração coletiva da transformação do pão e vinho no próprio corpo e sangue de Cristo, que coletivamente comunga-se com o todo. Assim, o distanciamento, a purificação das almas, carregadas de pecados e matéria se faz através da consagração em Cristo, para atingir o estado pleno de conhecimento e saber verdadeiro. O conceito de plenitude é então forjado na crença da separação entre o mundo material e o mundo espiritual – o reino de Deus –, e que somente através da comunhão, da missa cristã, que podemos expiar os pecados e livrar-nos de todo o mal, de todo o sofrimento que a carne e os sentidos causam ao homem. A vida, portanto, é destituída da sua integridade e a ela imputa-se um crivo moral para o comportamento que melhor se aproxima, nesse caso, através de uma liturgia que abre caminhos para o ideal divino. Deste modo, o homem que se coloca só nega Deus, visto com suspeita caso o isolamento seja por vontade própria ou como um desafortunado caso a solidão seja alheia a sua vontade. Podemos assim, retornar ao exemplo dos eremitas e das ordens monásticas que em um primeiro momento foram excomungados por constituírem uma conduta solitária no encontro com Deus.

18 Cl 2:9

A BÍBLIA. Novo Testamento,

19 Cl 2:10

A BÍBLIA. Novo Testamento,

Contrastando solidão e comunhão, pode-se aferir que a solidão não se coloca apenas como o isolamento do indivíduo contra uma coletividade, mas sim contra a própria formação de um conhecimento verdadeiro e unívoco, de uma sabedoria essencial que é legada somente às almas puras e aqueles que seguem o trajeto do bem. Visto que cada indivíduo é capaz de significar o mundo a partir de suas verdades, a constituição de uma única universalizante é alvejada pela confrontação de uma significação dos diversos símbolos, surgidos à sombra da narrativa que agrega significado moral aos elementos do mundo. Na arquitetura, a solidão foi estimulada em diversos momentos históricos, seja nos monastérios ou na dialética do bar97


roco, utilizada tanto como retórica quanto na materialização concreta de espaços, buscando simbolizar encontros com o divino ou então formalizar uma representação conflitante e dramática entre o distanciamento do divino e a sedimentação dos valores no homem. Entretanto, mesmo o aparecimento da solidão em dados momentos, mantinha-se sujeito a um valor externo a ela, detido em algo que representava tudo que havia de bom. Portanto, tendo sido Deus a representação mais elevada no espectro positivo, aqueles elementos que são associados a ele passam a ser vistos também como bons e belos. Dessa forma, todo um conjunto de signos têm sua simbologia cristalizada pela relação formada com aquilo que remete à plenitude. Assim, a busca da plenitude se traduz também pela apoteose da luz, a ideia etérea de que todas as aflições e preocupações materiais seriam extintas ao aceder-se à Cidade de Deus passa a priorizar diversas condutas e também concedem aos signos que rodeiam essa busca um caráter também positivo, sendo a luz um deles. A utilização da luz é também um valor clássico pois remete sempre ao imaginário divino, algo que o modernismo também não se prestou a questionar, muito embora ele tenha subvertido a luz para adequar-se ao positivismo, a racionalidade e também ao coletivo, pautando-se em uma utopia que suprime a tristeza através de programas coletivos e áreas abertas, como John Hejduk expõe. A ideia de espaços de serviços compartilhados em habitações sociais traduz um pouco tanto da ideia do coletivo enquanto valor positivo, do compartilhado, quando da congregação como esforço coletivo regozijante e prazenteiro. Ela mantém a tradição de simbolizar deus, de evocar o encontro transcendental com o sublime. Quando Hejduk argumenta sobre os “programas do otimismo”, banhados pelo sol, ele faz uma reflexão sobre esse modernismo que falhou em transpor a arquitetura assentada em valores humanos de idealizações absolutas. Há então, no modernismo, a combinação do coletivo, como a moral vigente, com os espaços abertos, não compartimentados e que eram varridos pela luz. Essa é uma maneira de perpetuar a concepção da luz e da comunhão como signos que flutuam no entorno de um valor absoluto e hegemônico, e, novamente, a ideia do bom e do belo no mundo são ligadas aquilo que se apresenta pragmaticamente como positivo universal. No entanto, a luz também não é intrinsecamente ligada à representação da plenitude, mas à sua utilização, ou mesmo sua ausência, refere-se a um entendimento da mesma enquanto elemento que remete ao divino. A exemplo do período barroco, 98


onde a ausência de luz e a dramaticidade realçada na arquitetura expunha o embate entre valores divinos e antropocêntricos. Contudo, a solitude não se opõe a representação da luz, ou da comunhão, na arquitetura, mas ela se opõe a representação que faz perdurar uma significação coletiva e pragmática, por vezes simulada, que é embasada em valores universais que são externos à arquitetura. Assim, a solitude na arquitetura possibilita a livre significação dos vários elementos e vocabulários da arquitetura distanciando-os de acepções moralistas e que buscam uma representação extemporânea daquilo que seria uma “boa” arquitetura.

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RESÍDUO_ 02

CASA DO ANGUSTIADO

Imagem 23 : Caderno de anotações - Fonte: Arquivo do autor

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A Casa do Angustiado permanece, apesar da ausência do sujeito. As paredes destacadas evidenciam a necessidade de seus encontros, mas a falta de alguns centímetros impede o êxito. Por essas frestas passam, em assovios, o vento, inquieto e fugaz, arfando velhos nomes. Colunas cilíndricas marcam as transições em diâmetros pouco menores do que o tronco de uma pessoa adulta, que talvez esteja espreitando. Austera e ubíqua, a Casa do Angustiado suprime os fechamentos e seus diferentes elementos confundem o “hora-dentro-hora-fora”. Os pisos terminam e avançam quando já não existe cobertura. Seus longos corredores encharcam de terra e folhas, prolongando-se além ou aquém, e ecoam meros ruídos que não se decifram. O sofá, com uma velha marca no canto mais usado, fica encostada na única parede menos exposta, mas onde não é possível ver todo o ambiente. A piscina vazia, que ainda remete aos tons azuis, recolhe em si as folhas, reunidas no ralo úmido e mofado. A Casa do Angustiado rememora a ausência e a incerteza. A possibilidade e o risco. O momento infinito entre a dúvida e a certeza.

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C ONC LUSĂƒO

Nature morte

He thought he heard it enter the still life althought the shutters were closed He sat in the wood chair and waited for the return He dreamed of the cliffs of Le Havre The rooms somehow were always permeated in greens and browns Suddenly a lone gull silently flying appeared wings interweaving within the verticals stripes of the wall paper His soul was released inside it became white John Hejduk


HEJDUK, John. Mask of Medusa. New York: Rizzoli, 1985. p, 104

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A SOLIDÃO QUE SE ABRE A proposta desse trabalho surge de indagações etéreas e posteriores ajustes e avanços balizados por aspectos que ofereciam um afastamento necessário para o livre entendimento da solidão que estava sendo tratada. Longe de tentar fixar um entendimento único acerca do tema, esta monografia prima pelo rompimento com sucessivas acepções que tratam da solidão na sociedade com certo estigma, para que então a arquitetura possa se servir de uma nova fonte discursiva. Destacar a solidão de uma organização que não é a dela própria é libertar tanto uma significação que não deve ser vista como negativa, quanto a construção de um valor que tem seu mérito ao questionar a própria instituição de valores absolutos. Portanto, ao ensejar as incertezas e a suscetibilidade, a solidão promove o embate contínuo sobre os modos nos quais nos colocamos diante do mundo e as frustrações decorrentes. Quanto a isso, este trabalho mostrou-se também como uma expressão da busca por esse entendimento. Partir de uma crença que deveria ter sua validade colocada à prova por argumentos foi motivo de diversos episódios de frustração, caminhos sem saída, onde somente o recuo e a formulação de novos entendimentos puderam 106


fazer vicejar este estudo. No decorrer do trabalho, ao debruçar-me novamente sobre o arquiteto, percebi que seu valor residia na compreensão da solidão como um modo de validar um discurso maior. No entanto, essa narrativa, que apesar de proporcionar vazão para que o arquiteto se expressasse livremente, continuava a engessar os significados dos elementos da arquitetura. Questionava suas estruturas recentes para logo em seguida fixar sua própria estrutura. Esse contorno argumentativo concedeu um melhor discernimento da solidão que buscava para o trabalho, bem como identificar os aspectos e meios que estabeleciam relação de identidade com a proposta. Assim, a elaboração seguiu em direção a um posicionamento contrário à plenitude e às verdades “naturais”. Sob o aspecto do confronto, a solidão se aproxima da solitude ao proporcionar uma revisão incessante da moral do mundo. Essa conduta imputa a possibilidade de compreendermos a existência de conjuntos de significações individuais que tanto garantem as ações quanto demarcam seus limites. Assim, as contradições fazem parte da própria vida, pois cada indivíduo aceita e recusa aquilo que lhe é pertinente, ainda que tenha estabelecido para si aparatos morais. Isso não torna menor o indivíduo, mas fortalece o entendimento daquilo que lhe é próprio e que o torna único. É válido de ressaltar que a solidão não busca a dramatização do sofrimento, ou do isolamento, mas sim a afirmação impaciente de uma postura que aceite as derrotas e angústias e que com elas possamos, criativamente, propor novos significados para que a vida se apresente. O desfrute de um novo discernimento acerca do conceito de solitude traz alguns questionamentos e deslocamentos para a arquitetura, sobretudo ao nos faz perceber a vida a partir desse ponto de vista único e despojado de amparos, liberto das certezas e verdades. 107


A chave de interpretação surge da solidão compreendida como processo estendido de criação de valores. Uma arquitetura que se apropria da solidão não o faz para produzir espaços encabulados, retraídos, mas sim para se afirmar livre para buscar aquilo que é de seu desejo. Nesse contexto, libertar a solidão é libertar com ela os signos da arquitetura. Consequentemente, uma teoria prescritiva não faria justiça ao propósito estipulado pela solidão, pois acabaria por fixar elementos do vocabulário arquitetônico que são justamente o alvo da solidão. Efetivamente, a solidão positiva é contrária às conclusõese e aos fechamentos, pois atua na elaboração constante de significações que melhor exprimam a vontade de ser no mundo. Portanto, a solitude – como abertura para o vir-a-ser – abre-se para as possibilidades de significação livre de culpas e de pragmatismos, possibilidades essas que prezam pela liberdade de pensamento e afirmação, tendo seus êxitos e falhas pautados, não por engenhos morais absolutos, mas sim por suas propostas, argumentos e desejo de estar na vida.

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BIBLIOGRAFIA

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