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EDITORA E DIRETORA RESPONSÁVEL VICTÓRIA CÁSSIA

EDITORIAL

DIRETORA DE REDAÇÃO VICTÓRIA CÁSSIA DIRETORA DE ARTE VICTÓRIA CÁSSIA REDAÇÃO VICTÓRIA CÁSSIA

O PRECONCEITO É PECADO

REVISÃO VICTÓRIA CÁSSIA

“Não façam cortes em seus corpos por causa

EDITORA DE PESQUISA VICTÓRIA CÁSSIA

dos mortos, nem marcas em si mesmos. Eu

CAPA VICTÓRIA CÁSSIA

sículo bíblico que foi usado para classificar

DIRETORA FINANCEIRA VICTÓRIA CÁSSIA

igrejas tradicionais ainda seguem essa in-

ASSISTENTE FINANCEIRA VICTÓRIA CÁSSIA

ção corporal. Porém, nas igrejas ‘modernas’

GERENTE DE ASSINATURAS VICTÓRIA CÁSSIA

mais utilizada, pois faz parte de um capítu-

EXECUTIVA DE CONTAS VICTÓRIA CÁSSIA

povo específico e não para o mundo. Fora a

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sou o Senhor.” (Levítico 19- 28.) É esse vercomo pecado o uso de tatuagens. Muitas terpretação e condenam qualquer modificaessa interpretação do versículo isolado não é lo em que Deus ordena tais coisas para um condenação de marcas no corpo, Deus também ordena a esse povo que não coma carne, entre outras coisas. A nova igreja condena o julgar pela aparência justificando que Deus olha para o coração. Os amantes da tatuagem procuram símbolos, frases, desenhos que de alguma forma fazem parte da sua vida e dizem algo sobre ela, e muitos expressam sua fé através de suas tatuagens. Alguns tatuadores se especializaram no tema e estúdios segmentados abriram uma nova aba para o mercado das modificações. Estas mudanças são importantes para todos os tatuados. Ser preconceituoso é que é pecado e nossa sociedade vem caminhado, mesmo que lentamente, para este entendimento. Boa leitura,

Débora Vaz março 2015 | www.ink.com.br

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TATUADOR DO MÊS

CÁSSIO SCHNEIDER

O TATUADOR AUTODIDATA BRUNELLA NUNES TEXTO

Com um traço único, marcado por formas geométricas, aquarelas e toques de cor, o artista plástico autodidata Cássio Magne Schneider é tatuador desde 2008, em Vitória, Espírito Santo. Os desenhos, que eram antes uma “terapia” para ele, acabaram se tornando profissão e ficam eternizados na pele de muitas pessoas em busca por uma tattoo fora do comum. Para encontrar inspiração, Cassio busca referências em artistas como Banksy, Mathiole e Dalí, na música e no Pinterest, painel online cheio de novidade. Animais, flores e rostos ganham formas diversificadas pelo traço rabiscado do artista, conhecido como “grunge art“. A tatuagem, para o artista, deve sim ter um significado precioso, não estando relacionado a coisas e pessoas passageiras. Ou seja, é o tipo de tatuador que aconselha que os clientes realmente reflitam sobre o que gostariam de marcar na pele por uma eternidade. Com desenhos desses, dá pra ter um baita orgulho.

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SUMร RIO

marรงo 2015 | www.ink.com.br

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SÍMBOLOS

TATUAGENS DO CÁRCERE

O CÓDIGO POR TRÁS DA ESTÉTICA BIBIANA DIONÍSIO TEXTO | CHRISTIEN TINSLEY FOTOGRAFIA

Desejadas ou impostas, as tatuagens feitas na cadeia contam a história do tatuado. Conheça essa linguagem, marcada na pele para sempre

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As tatuagens nos corpos dos detentos das

Se você modificar escondido essa tatuagem e

unidades prisionais revelam o histórico cri-

eles descobrirem, é capaz de arranquem com

minoso de cada um e estabelece qual será

bisturi, com gilete, com estilete, se não te ma-

a hierarquia dentro da prisão. Feitas preca-

tarem”, diz Werzbitzki.

riamente dentro das penitenciárias, elas são grosseiras e revelam o crime cometido, o nú-

Werzbitzik tem cerca de mil tatuagens catalo-

mero de vítimas e, assim como um DNA, diz

gadas, incluindo variações. Este levantamen-

quem é quem. É o que explica o perito da

to de uma década se transformou no livro

Polícia Científica do Paraná Jorge Luíz Werz-

“Linguagem de Cadeia”, que deve ser lançado

bitzki que há dez anos estuda a comunicação

em Curitiba março. Este trabalho tem como

entre os presos dentro do sistema carcerário

intuito auxiliar o departamento de inteligên-

do estado.

cia da polícia.

É uma relação de poder, estipulada a partir da

“Para a inteligência da polícia é muito impor-

tatuagem, que cria uma hierarquia para saber

tante conhecer esta linguagem para se anteci-

quem manda e quem obedece, inclusive, fora

par a um crime, porque esta linguagem nunca

da cadeia. “A coisa funciona assim: ninguém

vai acabar. O que pode acontecer é modificar

numa cadeia pode ser mais do que é. Ao con-

o significado, até para que a polícia não en-

trário da nossa sociedade que a pessoa com-

tenda. Mas, no final a gente descobre, sempre

pra um carro zero e mora em uma meia-água.

tem alguém que fala”, contou o perito.

MÓ VISU

DATAS

COBRA

Muitos presos se tatuam por razões estéticas mesmo, evitando as ligadas ao crime. Mas malandro descolado não entra em modinha.

Muitos presos costumam tatuar na pele datas consideradas importantes para eles, como as de fugas e mortes de companheiros e inimigos.

Esta o cara é obrigado a fazer, para que todos saibam que o dono é dedoduro e traíra.

SEPULTURA

X PONTILHADO

SÃO SEBASTIÃO

Significa que o tatuado tem a boca “fechada como um túmulo”, qualidade valorizada na prisão. Outro significado é ter o corpo fechado.

Tatuado nas costas ou no peito, indica que seu dono é chefe de quadrilha. Esta tatuagem caiu em desuso: dá muita bandeira.

Gays e travestis exibem sua opção sexual com a imagem do santo, borboletas coloridas ou um coração trespassado por uma flecha.

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HISTÓRIA

À FLOR DA PELE

DA ARTE AO GRITO SILENCIADO MARIANA MELLO TEXTO | MARC GARANGER FOTOGRAFIA

A tatuagem pode ser tanto uma manifestação artística quanto um símbolo de rebeldia. Conheça seus vários significados ao redor do mundo, ao longo dos tempos e na vida das pessoas

O lugar é asséptico, limpíssimo. Paredes

existe desde que o mundo é mundo. O Ho-

brancas, espelhos, aparelhos de esterilização,

mem de Gelo, um corpo congelado encontra-

luvas descartáveis, gavetas com seringas la-

do na Itália em 1991, que se supõe ter vivido

cradas e cadeiras de dentista. Num balcão fi-

há cerca de 7 300 anos, tinha vários desenhos

cam expostos os tubos de tinta colorida.

sobre a pele. A múmia da princesa Amunet, de Tebas, exibe desenhos feitos de pontos e

O ambiente seria tão silencioso quanto um

linhas que certamente chamaram a atenção

hospital não fosse o som psicodélico que

dos egípcios há mais de 4 000 anos.

agita os corajosos que circulam pela casa em

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busca de uma das poucas coisas definitivas na

Não se sabe o que aquela tatuagem signifi-

vida: uma tatuagem. No estúdio Led’s Tattoo,

cava para os nossos ancestrais. Mas é muito

do paulista Sérgio Maciel, 38 anos, cerca de

provável que ela não tenha sido desprovida

50 pessoas são tatuadas todos os dias. Com

de sentido. “O corpo foi um dos primeiros

o verão, que naturalmente coloca barrigas,

instrumentos manipulados pelo homem para

costas e pernas de fora, esse número cresce.

expressar um significado”, afirma a antropó-

“Tatuagem hoje é status, como se fosse uma

loga Lux Vidal, especialista em pinturas cor-

jóia. Significa que você é moderno. É sinôni-

porais da Universidade de São Paulo. “Tatua-

mo de personalidade”, diz Maciel. A tatuagem

gens, pinturas, mutilações e cortes de cabelo

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são modos de transformar o corpo para que

Acreditava-se que a impressão definitiva de

ele comunique códigos, relações sociais e va-

desenhos na pele tinha propriedades mági-

lores.” As motivações que levam uma pessoa

cas. Quando a região foi dominada pelo Isla-

a se tatuar são quase infinitas. Índios de vá-

mismo do profeta Maomé, tatuagens e qual-

rios países costumam se pintar para, entre

quer alteração no corpo passaram a ser vistas

outras coisas, assinalar classificações de sta-

como pecado.

tus entre os membros da tribo. O primeiro registro literário da tatuagem data Como em seu local de origem, dispensam as

de 1769. Trata-se do relato do navegador in-

roupas com que o homem branco sinaliza seu

glês James Cook sobre o que viu ao chegar

poder aquisitivo e valores estéticos, é com

ao Taiti, na Polinésia: os nativos usavam es-

tinta e formas impressas no corpo que eles

pinhas de peixe finíssimas, ou ossos de pas-

se diferenciam. Os peles-vermelhas, da Amé-

sarinho, para perfurar a pele e injetar um

rica do Norte, cobriam o corpo com pinturas

pigmento feito à base de carvão e ferrugem.

em situações de luto ou para ir à guerra. Já na

Data daí também a palavra tattoo, versão

região que hoje corresponde aos países ára-

para o inglês do taitiano tatu (pronuncia-se

bes, as tatuagens eram feitas para “proteger”

tatau), que quer dizer, adivinhe, desenho na

o corpo de doenças e trazer prosperidade.

pele. Ao longo da história as tatuagens tammarço 2015 | www.ink.com.br

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bém têm sido freqüentemente associadas à

tatuagem acabou virando a marca de pesso-

punição e a comportamentos marginais. Os

as marginais, diferentes do resto da socieda-

bretões, povo bárbaro que habitava a região

de”, diz Mirela Berger, mestre em Antropolo-

da atual Grã-Bretanha, pintavam o rosto com

gia pela Universidade de São Paulo.

várias cores para intimidar invasores. No Império Romano, os escravos eram tatuados.

Hoje isso mudou. Alguns grupos marginais ainda utilizam a tatuagem como código,

Na França do século XVIII, criminosos ga-

como os mafiosos japoneses da Yakuza, que

nhavam uma pintura na pele – às vezes uma

tatuam grande parte do corpo como prova

marca com ferro quente – registrando o cri-

de coragem e de fidelidade à gangue. Além

me que tinham cometido. Prostitutas, piratas

da tatuagem, é muito comum membros do

e marinheiros também se tatuam há séculos,

grupo terem falanges decepadas como pu-

como sinal de valentia e para demarcar seus

nição por traição. Mas a tatuagem, principal-

grupos sociais (na primeira década deste sé-

mente nas últimas décadas, deixou de signi-

culo, todo navio que partia da Europa leva-

ficar desencaixe social. Para muita gente – e

va a bordo um tatuador). Sereias, caravelas,

gente formadora de opinião, com alto poder

mulheres, âncoras e sinais patrióticos sempre

aquisitivo e boa bagagem cultural –, tatua-

foram os desenhos mais escolhidos entre os

gem pode ser apenas uma forma de arte e

marinheiros. Era comum também as prosti-

diversão. “Perdi a conta de quantas vezes

tutas levarem uma marca de seus cafetões,

me perguntaram se eu vendo drogas. Infe-

como um atestado de propriedade.

lizmente a tatuagem ainda é vista como sinônimo de irresponsabilidade”, diz a analista

Em presídios do mundo inteiro, os próprios

de sistemas Katia Marcolino, 32 anos, toda

detentos se tatuam para diferenciar a facção

tatuada.

à qual pertencem. O desenho do punhal cravado num coração significa “assassino”. É co-

Essa réstia de preconceito em relação a quem

mum também os presos marcarem o número

se tatua pode explicar a tremenda irritação

do crime que cometeram (o número 288, por

que análises psicológicas geram na maioria

exemplo, é o artigo referente ao crime de for-

dos tatuados de hoje. Clubbers, roqueiros,

mação de quadrilha no Código Penal Brasilei-

skatistas, surfistas, lutadores de jiu-jitsu, ou

ro). Antigamente, era a própria polícia que os

simplesmente aquela gatinha que tatuou

tatuava.

uma flor de lótus no tornozelo, todos eles detestam ser tratados como excêntricos ou

Na Inglaterra, cravavam-se as iniciais “BC”

anormais. “Não gosto que me rotulem por-

– bad character, mau caráter em inglês – na

que não sou lata de óleo nem vidro de maio-

pele dos condenados. “Ao longo do tempo, a

nese”, diz Katia. março 2015 | www.ink.com.br

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CAPA

ZOMBIE BOY

TATUADO DE CORPO E ALMA NATALIA OLIVEIRA TEXTO | JOSEPH LAWRENCE FOTOGRAFIA

Rick Genest, vulgo Zombie Boy (Garoto Zumbi), apelido dado por amigos durante a adolescência, é um modelo canadense, conhecido por suas tatuagens que o fazem lembrar um cadáver

Ele nasceu em Châteauguay, subúrbio de

Em uma entrevista, Zombie Boy diz à respeito

Montreal. O mais velho de dois irmãos, sua

das escolhas de suas belas e dramáticas tatu-

mãe diz que, em respeito a ela e a seu pai,

agens, “Eu uso minhas tatuagens como veto-

Rick esperou até os 16 anos para fazer sua

res de uma mensagem expressando o que eu

primeira tatuagem (um crânio e ossos cruza-

sinto. Existem várias razões para a minha es-

dos em seu ombro esquerdo). Ele foi morar

colha. Primeiro, o mito do zumbi com origem

sozinho aos 17 anos e aos 19 já estava com-

em pessoas enterradas vivas no tempo da

prometido com seu projeto de tatuar o cor-

peste ter sido algo verdadeiro para mim em

po todo, mas esperou até os 21 para procurar

minha infância. Eu fiquei seriamente doente,

Frank Lewis, responsável pela maior parte de

fui afetado física e mentalmente… Eu parecia

suas tatuagens.

um zumbi. (…) Além disso, essas criaturas são muitas vezes vistas na arte literária e cine-

Em um processo de seis anos, ele gastou

matográfica como um símbolo da xenofobia

muito dinheiro (cerca de $ 17 mil) para se tor-

latente. Isso também se aplica a mim, já que,

nar uma “obra de arte” que, para ele, retrata

durante a minha adolescência, fui rejeitado,

“o corpo humano como um corpo em decom-

odiado e incompreendido muitas vezes. Fi-

posição, a arte de um cadáver apodrecendo”.

nalmente, o zumbi encarna a rebelião contra

E ele continua modificando o seu corpo!

o consumo excessivo, contra as próprias leis março 2015 | www.ink.com.br

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da natureza. A este respeito, gostaria de ci-

ter sido descoberto por Formichetti e ter seu

tar o filósofo William James Durant, que disse

nome promovido por Lady Gaga, você pode

“Uma grande civilização não é conquistada de

ver o clipe abaixo e uma foto do desfile em

fora, a menos que ela seja destruída por den-

seguida. Em 2011, Zombie Boy participou de

tro”. Com suas modificações, ele tornou-se

uma campanha publicitária para os produtos

uma figura popular no cenário underground,

de maquiagem da Dermablend, sem nenhu-

mas acabou passando por grandes dificulda-

ma tatuagem.

des financeiras e até virou um sem-teto, você

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acredita? Em 2010, no entanto, foi criada uma

No comercial, que possui a assinatura “Go

página no Facebook sobre a sua escolha de

Beyond The Cover”, “Vá além da capa” (tra-

tatuagens. Rick foi descoberto pela Mugler,

duzido), ele aparece tirando a camisa e viran-

empresa da qual Nicola Formichetti, diretor

do para a câmera, logo depois ele pega uma

de moda de Lady Gaga, é diretor criativo, e

esponja com removedor da marca e passa no

entrou em um desfile não programado após

corpo e rosto, revelando as suas tatuagens.

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O vídeo também mostra o processo que Rick

vida. Ele literalmente pulou do deck do Cei-

passou para cobrir as suas tatuagens. As pes-

fador e começou uma vida nova. O garoto ro-

soas se perguntam onde se esconde o rapaz

dou pelas ruas de Montreal, teve sua primeira

nascido em Quebec, uma múmia de tatu-

tatuagem e se tornou obcecado por modifi-

agens que cobre 80% do seu corpo e o que

cação corporal. Aos 21 anos, ele foi rebatiza-

está em sua mente para colocar o imortal em

do como “Rick, the Zombie Boy”. Junto com o

sua pele. Mas o corpo em tinta, só faz sen-

tatuador aposentado Frank Lewis, o príncipe

tido para Rick Genest, o Zombie Boy. Diag-

masoquista e obcecado pela morte, se tortu-

nosticado com um tumor cerebral benigno

ra com tatuagens dolorosas e entra em uma

potencialmente fatal, aos 15 anos Rick foi

constante batalha com seus demônios inte-

submetido a uma cirurgia em que muitos não

riores. Seu exterior é uma chocante expres-

sobreviveram no passado. Entre cegueira ve-

são da sua luta interna entre o bem contra o

getal, vida ou morte o Todo Poderoso não lhe

mal da vida e a anarquia da morte contra a

deu nenhuma das opções a cima, lhe deu a

autoridade”.

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MUNDO

NAVALHA NA CARNE

CONHEÇA A BODY MODIFICATION EMILIANO URBIM TEXTO | ERIK SPRAGUE FOTOGRAFIA

Línguas partidas ao meio, testas enfeitadas com chifres, corpos suspensos por fios de aço enganchados na própria pele. Esses são só alguns exemplos do que uns definem como movimento, outros como um desvio: body modification, ou bod-mod para os íntimos. O termo em inglês engloba um grande número de procedimentos cirúrgicos voluntários que deixam marcas no corpo – a maior parte delas, irreversíveis e dolorosas

Os motivos que levam pesso-

INFLUÊNCIAS

as – grande parte delas com

Se levarmos ao pé da letra, a modificação do corpo huma-

vidas e rotinas tão comuns

no começou no dia em que o primeiro homem se depilou ou

quanto a sua – a transformar

na noite em que a primeira mulher passou maquiagem. São

sua aparência são bastante

ações simples, mas que intervêm no projeto original.

diversificados. O que todas

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têm em comum é a certeza

Mas, deixando o pé da letra em paz, nossa história começa

de que são donas de seus

com as grandes navegações, quando os europeus passam a

corpos e, por isso mesmo,

ter contato com tatuagens da Oceania, escarificações da Áfri-

podem fazer o que quiser

ca, enfeites perfurantes e rituais de suspensão da Ásia e da

com eles. Mas o que isso nos

América. Essas tradições milenares vieram dar nas praias da

diz sobre a sociedade em que

Europa e, até o meio do século 20, eram coisa de marinhei-

vivemos?

ro, prostituta e outros freqüentadores das zonas portuárias.

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Nos anos 1960, o clima de “bicho grilo” e a valorização da cultura oriental teve como reflexo a maior aceitação das tatuagens. No final dos anos 1970, punks ingleses e gurus californianos (Fakir Musafar foi e ainda é o maior deles) introduziram

as

perfura-

ções no repertório. Nos anos 1980, os yuppies decretaram tudo um nojo e só no início dos anos 1990 o movimento começou a ganhar corpo novamente. A essa altura, algo muito maior do que um renascimento da tatuagem e dos piercings estava acontecendo. “A body art começou a ser empregada por pessoas que não se consideravam parte da turma dos tatuados e de maneiras que teriam causado consternação mesmo entre os fanáticos por tatuagem”, escreveu a socióloga americana Victoria Pitts, no livro In The Flesh - The Cultural Politics of Body Modification (“Na carne – As políticas culturais da modificação corporal”, sem tradução em português). Segundo ela, nessa época, coincidiram a março 2015 | www.ink.com.br

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explosão de estilos e perfor-

lhos pagãos – a alquimia da modificação corporal”, sem tradu-

mances, a ascensão de estú-

ção em português), a psicóloga americana Maureen Mercury

dios especializados e o surgi-

explica que, para esse grupo, a transformação estética deve

mento de revistas, websites,

ser acompanhada de transformação psíquica. Mais do que

exposições e livros celebran-

uma escolha, esses rituais seriam uma necessidade. “A vida

do e debatendo essas práti-

em uma sociedade dessacralizada requer medidas drásticas

cas. Tudo isso, segundo Pitts,

para restaurar nosso balanço com o cosmos”, escreveu. Já os

acabou culminando no sur-

ciberpunks batem de frente com esses ideais. Ele formam o

gimento de um movimento,

grupo empenhado em realizaros sonhos (e pesadelos) que a

a body modification.

ficção científica elabora desde os anos 1960. Eles implantam chips que conectam o sistema nervoso à internet, instalam

SEXO, FÉ E CHIPS

câmeras que filmam o interior do corpo e substituem osso

Dentro do movimento, Pitts

e carne por metal e plástico. Ou seja, buscam confundir as

destaca

fronteiras entre homem e máquina.

três

tendências

principais: gays e lésbicas, que usam suas modificações

OUTRA BELEZA?

para sublinhar sua opção se-

Fora desses três grupos, sobra uma motivação bem mais

xual; “modernos primitivos”,

simples para encarar agulhas, ferros quentes e tesouras:

que desejam alcançar trans-

grande parte das pessoas que integram o movimento da

cendência

por

body modification quer se sentir mais bonita. No site cana-

meio de provações físicas;

dense bmezine.com (Body Modification E-zine), modificados

e “ciberpunks”, que buscam

de todo o mundo trocam experiências e imagens. Os partici-

romper fronteiras tecnológi-

pantes contam a história de cada alteração e os planos para

cas usando o próprio corpo.

investidas futuras. Há um clima explícito de exibicionismo.

espiritual

Línguas bipartidas são sexy, escarificações dão inveja e im-

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A tribo dos “modernos primi-

plantes bem-feitos despertam admiração. Exatamente da

tivos” se inspira em rituais e

mesma forma que piercings no umbigo fazem sucesso entre

costumes de civilizações ar-

adolescentes, tatuagens em forma de estrela viraram fetiche

caicas. Para eles, tatuagens,

na era pós-Gisele Bündchen e peitos de silicone são cada vez

cicatrizes, perfurações e sus-

mais comuns entre homens e mulheres. “Os bod-mods não

pensões (veja o glossário na

são diferentes de mulheres exageradamente vaidosas, que

página ao lado) são uma ma-

procuram cirurgiões famosos. Tem quem pague uma fortuna

neira de entrar em contato

para ser atendido pelos modificadores top de linha quando

com o divino. No livro Pagan

eles vêm ao Brasil. Nos dois casos, é um sinal de status”, diz

Fleshworks – The Alchemy of

a artista plástica Priscilla Davanzo, que faz mestrado sobre o

Body Modification (“Traba-

assunto na USP.

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