Um Novo Código de Processo Civil?

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Destina-se a todos os estudantes de Direito ou profissionais do foro que ainda não tenham perdido o direito a uma visão crítica das opções legislativas em geral e, em particular, daquelas de que temos vindo a padecer no processo civil. ISBN 978-972-788-908-2

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UM NOVO CÓDIGO DE

A obra que agora damos à estampa promove a análise e reflexão crítica das recentes alterações introduzidas no CPC pela Lei nº 41/2013, explicando, no essencial e, em algumas situações, com alguma profundidade, as alterações que o texto legal sofreu, as soluções legais nele consideradas, ponderando as opções que poderiam ter sido preferidas.

PROCESSO CIVIL?

Poderá a realidade vir a desmentir-nos, mas no momento em que escrevemos estas linhas temos a perceção que a intensa procura legislativa pela produção da decisão no mais curto espaço de tempo possível pode conduzir à diminuição excessiva e desproporcional da proteção das restantes camadas que integram o conceito de processo equitativo. Detetamos em algumas das soluções legais da reforma que o legislador não procura verdadeiramente um tempo razoável, mas um tempo que decorra muito rapidamente, o que não é necessariamente a mesma coisa. É que a velocidade que o legislador imprime ou permite que o juiz imprima ao processo pode ser mesmo desrazoável, sendo suscetível de interferir na construção de um efetivo processo equitativo.

Elizabeth Fernandez

UM NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL?

Elizabeth Fernandez

Elizabeth Fernandez

EM BUSCA DAS DIFERENÇAS

Uma visão geral sobre a reforma A alegação dos factos, os temas de prova e as alterações do direito probatório formal Os incidentes da instância: em particular os incidentes de modificação subjetiva da instância O processo urgente de defesa de direitos de personalidade, processos cautelares e inversão do contencioso A ação executiva Os recursos

Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho desde 1996, responsável pela lecionação de unidades curriculares referentes ao Direito Processual Civil nos primeiro e segundo ciclos de estudos em Direito. É autora de artigos em temas de direito processual geral, civil e administrativo em publicações periódicas científicas. É advogada desde 1993. É, também, a atual Diretora do Instituto de Direito Judiciário (Ius Dicere).


ÍNDICE UMA VISÃO GERAL SOBRE A REFORMA O objetivo central da reforma: tempo razoável ou desrazoável?............................. 9 Gestão, adequação e incongruências.......................................................................... 13 Meios extrajudiciais e judiciais de resolução de litígios: Incongruências.............. 14 Forma de tutela adequada e processo equitativo: algumas negações.................... 17 TEMA 1 - A NOVA TRAMITAÇÃO DA AÇÃO DECLARATIVA COMUM, O DEVER DE ADEQUAÇÃO FORMAL E O DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL As disposições transitórias próprias............................................................................ 19 A nova tramitação da ação declarativa comum......................................................... 22 A previsão de um processo declarativo comum, mas não único..................... 22 A tramitação inicial do processo e a fase dos articulados................................. 23 A fase intermédia da tramitação. Especificamente, a audiência prévia........... 27 A audiência final e a sentença...................................................................................... 34 Restrições ao adiamento da audiência final......................................................... 34 No que se refere à interrupção da audiência...................................................... 35 Gravação obrigatória e oficiosa............................................................................ 36 Alegações de facto e de direito............................................................................. 37 A sentença................................................................................................................ 38 O dever de adequação formal e de gestão processual............................................. 38 O dever de adequação formal............................................................................... 38 O dever de gestão processual................................................................................ 43 Recorribilidade das decisões tomadas ao abrigo do dever de adequação formal e de gestão processual............................................................................... 45

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TEMA 2 - A ALEGAÇÃO DOS FACTOS, OS TEMAS DE PROVA E AS ALTERAÇÕES DO DIREITO PROBATÓRIO FORMAL A – As soluções legais................................................................................................... 48 A alegação dos factos e a enunciação dos temas da prova............................... 48 Alterações no direito probatório formal.................................................................... 57 Momentos iniciais e sucessivos de apresentação de requerimentos probatórios............................................................................................................... 57 Momentos iniciais: o ónus da apresentação de um requerimento probatório inicial............................................................................................... 57 Momentos sucessivos....................................................................................... 58 Alterações na oportunidade de apresentação da prova documental............... 62 Alterações nas regras de produção da prova testemunhal................................ 64 O limite numérico das testemunhas.............................................................. 64 Admissibilidade de testemunhas para além do limite legal........................ 66 Modo de apresentação das mesmas em juízo............................................... 66 Objeto do depoimento testemunhal.............................................................. 68 Poderes inquisitórios do juiz em relação às testemunhas........................... 68 Novos meios de prova (i): as verificações judiciais não qualificadas........ 69 Novos meios de prova (ii): as declarações da parte..................................... 70 B – Apreciação crítica das soluções legais................................................................. 76 1 - Inutilidade e inconveniência da obrigatoriedade de requerimentos probatórios iniciais.................................................................................................. 76 2 - O que não foi objeto de revisão: em especial, a prova pericial................. 79 3 - No que se refere à prova por verificação não judicial qualificada............. 83 4 - No que se refere às declarações da parte....................................................... 86 5 - A inexplicável supressão do despacho de admissão da prova.................. 101 TEMA 3 - OS INCIDENTES DA INSTÂNCIA: EM PARTICULAR OS INCIDENTES DE MODIFICAÇÃO SUBJETIVA DA INSTÂNCIA Alterações na intervenção principal espontânea.....................................................103 Alterações na intervenção acessória provocada......................................................104 Alterações na oposição provocada............................................................................105

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TEMA 4 - O PROCESSO URGENTE DE DEFESA DE DIREITOS DE PERSONALIDADE, PROCESSOS CAUTELARES E INVERSÃO DO CONTENCIOSO Uma breve nota introdutória.....................................................................................107 O processo especial de defesa de direitos de personalidade................................. 122 Um novo arresto especial...........................................................................................128 Outras alterações.........................................................................................................129 A inversão do contencioso.........................................................................................130 O regime legal........................................................................................................130 A transferência do ónus da propositura da ação principal do requerente para o requerido: a relevância da vontade do requerente, oportunidade e efeitos civis................................................130 Pressupostos..........................................................................................................132 Contraditório à inversão.......................................................................................135 Sindicância da decisão proferida quanto à inversão.........................................137 O funcionamento do ónus da propositura da ação pelo requerido. O caso especial da suspensão de deliberação social............................................................141 Que tipo de ação é essa que compete ao requerido propor?.........................142 Efeitos da decisão da ação principal.................................................................. 145 A solução da inversão: visão crítica..........................................................................146 TEMA 5 - A ACÇÃO EXECUTIVA Generalidades e disposições transitórias..................................................................153 O elenco dos títulos executivos e cumulação de execuções.................................. 154 Elenco de títulos executivos................................................................................154 Cumulação de execuções.....................................................................................158 Formas de execução comum: a duplicação de formas de processo de execução............................................................................................................159 Repartição funcional de competências entre o juiz, a secretaria e o agente de execução.........................................................................................160 A nomeação, a substituição e as competências do agente de execução........ 162 Tramitação do processo executivo............................................................................165

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Tramitação comum ao processo ordinário e sumário: o requerimento executivo e possibilidades de recusa pela secretaria.........................................165 Tramitação subsequente.......................................................................................167 O processo executivo ordinário...................................................................167 O processo executivo sumário......................................................................168 A defesa do executado: de novo, os embargos de executado............................... 170 Regimes e regras de penhora.....................................................................................172 Regime da comunicabilidade das dívidas: o incidente...........................................177 Extinção automática da ação executiva....................................................................168 Venda e pagamento.....................................................................................................179 Plano global de pagamentos......................................................................................180 TEMA 6 - OS RECURSOS Generalidades e aplicação da lei no tempo..............................................................181 Elenco das alterações mais importantes..................................................................183 Quanto à recorribilidade de decisões................................................................. 183 Quanto à desistência do recurso.........................................................................185 Quanto ao ónus do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto... 185 Quanto à impugnação da decisão que retenha o recurso no tribunal a quo.185 Quanto às decisões apeláveis...............................................................................186 Decisões finais.................................................................................................186 Decisões interlocutórias.................................................................................187 Decisões interlocutórias não autonomamente apeláveis..........................188 Quanto à junção de documentos em sede de recurso.....................................188 Quanto à restrição de recurso de revista para o STJ: um retrocesso...................188 A decisão de que se recorre.................................................................................189 A afinação do conceito de dupla conforme......................................................189 Uma nota conclusiva final: a alteração da função do recurso de apelação......... 192 Da renovação dos meios de prova............................................................................194 Da produção de novos meios de prova............................................................. 195 Em conclusão...............................................................................................................197 REFERÊNCIAS.............................................................................................................205

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UMA VISÃO GERAL SOBRE A REFORMA O OBJETIVO CENTRAL DA REFORMA: TEMPO RAZOÁVEL OU DESRAZOÁVEL? Entrou em vigor no passado dia 1 de setembro a Lei n.º 41/2013, que procedeu à revogação (artigo 4º) do Código de Processo Civil instituído pelo Decreto-Lei nº 44129, de 28 de dezembro de 1961, e sucessivamente alterado desde então. Apesar de aqui ou ali o novo regime legal instituído pela Lei nº 41/2013 prever soluções normativas que são justificadas pela concretização da obtenção da verdade material no processo1, temos para nós que o fio condutor mais evidente e forte da reforma legal é, inequivocamente, o de pretender acelerar os ritmos processuais. O legislador escolheu – por imposição do Memorando de Entendimento, é certo – a celeridade processual como o valor mais importante do processo civil. Pode ler-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº113/XII que a celeridade processual, indispensável à 1. Registamos como exemplo: a possibilidade de o juiz determinar a inquirição simultânea de duas testemunhas (artigo 604º, nº 8, do CPC); a possibilidade de prestar declarações de parte (466º do CPC) e possibilidade de inquirição de número de testemunhas para além do limite legal fixado por relação com o valor da ação. (artigo 511º, nº 4, do CPC)

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legitimação dos tribunais perante a comunidade e instrumento indispensável à realização de uma das fundamentais dimensões do direito fundamental de acesso à justiça, passa necessariamente por uma nova cultura judiciária, envolvendo todos os participantes no processo, para qual deverá contribuir decisivamente um novo modelo processual civil, simples e flexível, despojado de injustificados formalismos e floreados adjetivos, centrado decisivamente na análise das questões essenciais legadas ao mérito da causa. A primeira conclusão que se pode retirar é a de que o escopo da presente reforma é ganhar em celeridade processual, distanciando-se da reforma de 95/96, que visava procurar a verdade material e manter o processo como instrumento e não como fim em si mesmo. Por isso, na exposição de motivos explica-se que a consagração de um modelo daquele tipo contribuirá para inviabilizar e desvalorizar comportamentos processuais arcaicos, assentes na velha praxis de que as formalidades devem prevalecer sobre a substância do litígio e dificultar, condicionar ou distorcer a decisão de mérito. De facto, o direito à decisão judicial em tempo razoável é um desiderato constitucional essencial que tem concretização no artigo 2º do CPC atual, como, de resto, já o tinha no revogado. Mas convém não esquecer que o artigo 20º da CRP, no seu nº 4, não acolhe como valor processual exclusivo a obtenção da decisão no prazo razoável. O preceito bipolariza o núcleo essencial deste direito fundamental, centrando-o não só no elemento temporal mas também na necessidade de obtenção da decisão mediante processo equitativo. Aliás, para sermos rigorosos, o que nos parece é que a vertente temporal é apenas uma densificação do direito ao justo processo ou ao processo equitativo. Mas a proteção simultânea destes dois valores constitucionais essenciais não é fácil. E não o é porque o carácter equitativo do processo tem inexoráveis implicações na razoabilidade do tempo de espera pela produção de uma decisão. O ponto é que, seja declarativa ou executi10


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va, a tutela judicial tem de ser alcançada em tempo útil para quem dela precisa, mas que, no cálculo do que, em concreto, seja esse tempo útil, há de sempre ter de contar-se com a necessidade de o processo que conduz à mesma ser justo, isto é, ser equitativo. Na densificação do conceito de processo justo ou de processo equitativo podem incluir-se, para além do direito à obtenção de uma decisão em tempo razoável, o direito à igualdade de armas, o direito ao contraditório ou a proibição de indefesa, o direito ao exercício de direitos substantivos ou processuais das partes em tempo razoável com a proibição de prazos exíguos, o direito à fundamentação da decisão, o direito ao conhecimento e à previsibilidade de dados processuais, o direito à prova e, finalmente, o direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas restrições formais2. O que não se pode esquecer é que a exigência do processo equitativo implica primordialmente a previsão de formas processuais informadas pelos princípios materiais da justiça nos seus vários momentos processuais3. Poderá a realidade vir a desmentir-nos, mas, no momento em que escrevemos estas linhas, temos a perceção que a intensa procura legislativa pela produção da decisão no mais curto espaço de tempo possível pode conduzir à diminuição excessiva e desproporcional da proteção das restantes camadas que integram o conceito de processo equitativo. Com efeito, detetamos em algumas soluções legais que o legislador não procura verdadeiramente um tempo razoável, mas um tempo que decorra muito rapidamente, o que não é necessariamente a mesma coisa. É que a velocidade que o legislador imprime ou permite que o juiz 2. Dando conta de todas estas camadas do conceito de processo equitativo, cfr. GOMES CANOTILHO, J. J. E MOREIRA, VITAL- Constituição da República Portuguesa Anotada. 4.ª Edição. ed. Coimbra: Coimbra,vol. 1, págs. 415-416. 3. Neste sentido, GOMES CANOTILHO /VITAL MOREIRA, op. cit.., pág. 415.

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imprima ao processo, pode ser mesmo desrazoável, pois pode interferir com o desiderato de construção de um processo equitativo. Detetamos, por exemplo, algumas soluções legais que visam acelerar a velocidade temporal do processo, garantindo que o mesmo não sofre densificação subjetiva ou objetiva. Com efeito, do ponto de vista da simplificação de sujeitos – como haveremos de dar conta – a coligação ativa sucessiva não é mais permitida, a intervenção de um terceiro como parte acessória (por o réu ter contra ele um direito de regresso) está limitada por uma análise de pertinência e relevância mais acentuada e a oposição provocada só pode ser conseguida por via de consignação em depósito da quantia que o réu aceita estar em débito. Por outro lado, ainda que o autor possa replicar, não lhe é mais possível – como era até 1 de setembro – ampliar ou alterar a causa de pedir ou o pedido nesse articulado eventual4. Percebe-se que, para conseguir que o processo tenha maiores capacidades para cortar a meta (proferir a decisão ou lograr a execução), o legislador teve de fazer opções no material de que é composto o processo, aligeirando-o sobremaneira. Mas não podemos esquecer que esta opção potencia não só precisamente o mal que se pretende evitar, como ainda proporciona um outro diverso. Com efeito, por um lado, se a coligação não é possível por via sucessiva, se um terceiro não puder ficar abrangido pelo caso julgado, quer por via acessória, quer por via de oposição, se uma causa de pedir ou um pedido não puderem ser deduzidos e inseridos no processo, isso implica, desde logo, que aqueles sujeitos e aqueles objetos processuais vão dar lugar a outros tantos processos. E a proliferação de processos – as elevadas pendências de que se queixa a Exposição de Motivos – é uma das principais causas da 4. Não só o autor não tem, como sucede em outras ordens jurídicas – designadamente na Ley de Enjuiciamiento Civil Espanhola –, o ónus de concentrar todas as causas de pedir na sua petição inicial, como ainda está proibido de a alterar na réplica se a ela houver lugar.

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demora do tempo no processo de decisão ou de execução que, é precisamente o que se pretendeu evitar. Por outro lado, o estabelecimento de barreiras processuais ao julgamento global do litígio ou à cumulação de objetos processuais que estão conexos com aquele, para além de não garantir a emanação de uma decisão em tempo razoável, potencia, exponencialmente, o risco de decisões não harmónicas ou mesmo contraditórias sobre o mesmo litígio ou sobre litígios em tudo conexos ou mesmo em tudo idênticos. Temos dúvidas que a reabilitação dos tribunais se possa lograr desta forma, pois duvidamos que o cidadão comum valorize mais a velocidade do que a coerência das decisões judiciais. A diminuição do tempo do processo pode não ser racional, isto é, pode não obedecer a critérios de racionalidade, e, se assim for, pode não estar a obedecer a critérios razoáveis.

GESTÃO, ADEQUAÇÃO E INCONGRUÊNCIAS Para além da simplificação dos objetos processuais, o legislador pretendeu atingir a velocidade temporal que reputa necessária para os processos, conferindo ao juiz o dever de agilização e simplificação processual dos atos processuais. Por outro lado, elevou a tarefa de adaptar a tramitação processualmente aplicável às concretas necessidades e especificidades do litígio em concreto a um dever. A intensificação do case management e a criação ad hoc de formas processuais têm inequívocas potencialidades, mas abalam a previsibilidade das formas processuais, que é, em nossa opinião, um valor processual que integra o processo equitativo. Se a forma é importante – precisamente por ser o instrumento que permite o exercício dos direitos –, então é porque se admite que a previsão de uma dada forma, em detrimento de uma outra, tem influência no exercício dos direitos. E 13


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se assim é, resulta para nós incompreensível – a não ser por motivos de mera estatística processual – que às partes esteja de todo vedada a crítica da forma processual que o juiz escolheu para a prática de determinado ato. Um sujeito processual não pode sindicar a opção judicialmente feita para o caso concreto relativa à forma por que há-de ser praticado um ato processual, o que significa que o legislador admite como toleráveis atos processuais praticados sob forma não agilizada, não simples e, portanto, não adequada, desde que estes não ponham em causa qualquer um dos limites cuja violação admite impugnação (artigo 630º do CPC). Mas, ao mesmo tempo que ao juiz são conferidos estes novos deveres, o legislador subtrai àquele o território privilegiado para que o mesmo os possa exercer. Fazendo aqui uma ligação ao ponto precedente, o que queremos significar é que, se há domínio em que os atos de gestão e de adequação têm potencialidades relevantes, é precisamente no domínio da cumulação de objetos processuais, quer por adição de objetos processuais diferentes de modo originário ou sucessivo, quer mediante a adição ao processo de outros sujeitos processuais que são eles mesmos portadores de outras pretensões merecedoras de tutela. Teria feito sentido a intensificação destes deveres se com isso se ganhasse em tempo, mas também na necessária economia de processos que, por sua vez, garantisse a harmonização de decisões judiciais, o julgamento global do litígio e, ainda, se com isso se impedisse a multiplicação de demandas. MEIOS EXTRAJUDICIAIS E JUDICIAIS DE RESOLUÇÃO DE LITÍGIOS: INCONGRUÊNCIAS Nos últimos tempos temos vindo a assistir a uma intensificação na produção legislativa de meios ditos alternativos de resolução dos litígios. A negociação, a conciliação, a mediação e a arbitragem têm recebido incentivos legislativos para a sua utilização preferencialmente 14


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à utilização dos tribunais públicos como meios de resolução clássicos da resolução dos litígios que opõem os cidadãos ou as empresas. Por isso, o legislador permitiu a suspensão da instância quando o juiz sugira (e as partes aceitem) a mediação, ou quando estas mesmas preferirem subsequentemente resolver o litígio por autocomposição, apesar de terem escolhido um meio de resolução por heterocomposição. Por isso, àqueles que antecipam como possível resolver as suas diferenças pela via da mediação permite-se um benefício em termos de caducidade e de prescrição. A conciliação5 tem no código agora revisto um papel aparentemente mais preponderante como meio de resolução de litígios do que o que constava do código revogado. Apesar de as partes só poderem ser convocadas para esse fim uma única vez – o que em si não é muito compatível com o dever de gestão processual –, compete ao juiz, no exercício dos seus poderes de conciliação, propor uma solução para a resolução do litígio, a qual deve, inclusive, ficar expressa em ata. De notar que a tentativa de conciliação pode ter lugar em qualquer momento do processo, ainda que isso possa implicar o adiamento da audiência final já marcada ou iniciada, o mesmo sucedendo com a mediação.

5. De notar que, apesar de o juiz ter à sua disposição a sugestão da mediação como meio de resolução autocompositiva, o legislador continuou a manter, após a reforma, a competência conciliadora do juiz, intensificando-a, inclusivamente. Devemos fazer notar que esta opção se nos revela como a menos desejável, sobretudo quando o juiz tem uma hipótese de optar por uma via mais eficaz e que não abala a sua neutralidade. Com efeito, a conciliação feita pelo juiz é tendencialmente menos eficaz, sobretudo se o juiz conciliador vier a ser – como é – o juiz julgador e, ainda, a proposta concreta ficar vertida em ata e recusa implicar a transcrição dos motivos que ainda determinam a subsistência do litígio. A atividade de conciliação pressupõe que o juiz perscrute as partes e fique a saber provavelmente contornos não escritos (porque não essenciais) do litígio. Só essa comunicação dialética com as partes lhe permite entender os verdadeiros contornos do litígio e os pontos de eventual cedência e, portanto, de transação possível, por forma a ser possível avançar com uma proposta de transação. Ora, sabendo disto, as partes têm uma tendência humanamente natural a não se abrir perante o juiz, inibindo a sua comunicação com ele, o que vai implicar, necessariamente, que a conciliação, as mais das vezes, se frustre, quando até podia ter potencialidades para singrar.

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Ora, apesar destes sinais claramente potenciadores de uma forma de solução diversa da decisão judicial – e portanto da heterocompositiva –, o legislador da reforma limita inexplicavelmente a negociação como forma de composição extrajudicial de litígios. Com efeito, se a negociação estiver prestes a dar furtos e, portanto, um acordo estiver para ser alcançado, a instância não ficará suspensa, se já tiver sido ultrapassado o máximo prazo de suspensão da mesma, que é de 3 meses, ou se, não tendo o mesmo ainda decorrido, o tempo da suspensão implicar a não realização na data determinada da audiência de julgamento6. Se o que se pretende é incrementar o recurso aos meios não judiciais de resolução de litígios e se para o legislador é efetivamente preferível que, tanto quanto possível, o litígio se decida em autocomposição do que em hetereocomposição, então, não se pode dar aos que podem ter alguma capacidade de influência na escolha desses meios (juízes e advogados) sinais completamente contraditórios, como o que se acabou de detetar.

6. Contraria-se, assim, inexplicavelmente, a resolução autocompositiva do litígio que é sempre a preferencial. De facto, como escreveu COSTA E SILVA, Paula - Acto e Processo, o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, págs. 112 e 133, sendo a resolução de um litígio o fim normal do processo, ele justificar-se-á enquanto não houver uma definição de condutas a adaptar perante uma dada situação de vida. Esta definição não tem de decorrer necessariamente do exercício do poder jurisdicional, ao invés, o legislador dá-nos indícios que nos permitem qualificar a definição da solução do caso concreto através da decisão judicial como um último recurso. Sempre que a solução possa decorrer do acordo das partes, prefere-se este acordo, (....) uma vez que a solução negociada permite um verdadeiro apaziguamento do conflito que eclodiu entre as partes, potenciando-se uma paz social efetiva. Na solução negociada ambas as partes são vencedores, pelo que relações futuras entre as mesmas partes não são prejudicadas. A solução consensual assegura uma verdadeira paz social no pós-conflito, função que não pode considerar-se assegurada pela decisão judicial. O que a decisão garante é o recurso a mecanismos de imposição de uma solução, cuja vigência não depende de as partes envolvidas no conflito a considerarem justa ou injusta.

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FORMA DE TUTELA ADEQUADA E PROCESSO EQUITATIVO: ALGUMAS NEGAÇÕES A reforma com que agora nos ocupamos deu particular destaque ao instrumento da inversão do contencioso como ferramenta para poupar contencioso inútil. Oportunamente, daremos o devido destaque à figura da inversão, explicando no que a mesma consiste e quais os seus efeitos. Como haveremos de constatar, a solução prevista na lei, nos artigos 369º, 370º, 371º e 382º, não representará uma diminuição do contencioso, pensada através da inércia do requerido onerado com a propositura a ação. Contudo, a solução tem algum mérito. Quanto a nós, esse mérito reconduz-se a demonstrar ser afinal possível num processo sumário (de natureza cautelar) criar no juiz uma convicção segura da existência do direito acautelado. Ficamos a saber que o legislador aceita como adquirido que, num processo construído para que o máximo grau de prova atingido pelo julgador fosse o da mera verosimilhança, o resultado probatório pode afinal ultrapassar esta fasquia e produzir prova stricto sensu. Todavia, os efeitos que o legislador retira desta constatação são, a nosso ver, profundamente escassos, pois, apesar de o resultado da atividade probatória conduzir a uma prova de grau máximo, a tutela que o tribunal concede continua a ter de casar com o pedido e não com o resultado da atividade cognitiva atingido pelo tribunal. Por isso, apesar de o tribunal ter atingido – num processo sumário – a certeza sobre a existência do direito, este apenas poderá decretar uma tutela não satisfativa, quando, de facto, estaria legitimado pelas provas a conceder uma tutela satisfativa. Esta solução representa, pelo menos para nós, um evidente e intolerável déficit de tutela judicial, isto porque o requerente não recebe afinal a tutela adequada à proteção do seu direito porque o legislador permite o desaproveitamento do material cognitivo que, entre o mais, teria o condão de evitar efetivamente uma nova demanda, poupando contencioso inútil. 17


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A solução consagrada nos artigos 369º e segs. do CPC é uma negação evidente de uma tutela alcançada e a atribuição de uma forma de tutela que fica aquém daquela que poderia e deveria ter sido atribuída judicialmente. Nesta perspetiva, julgamos poder defender-se a inconstitucionalidade deste regime por violação direta do artigo 20º da CRP, dado que o legislador não tutelou a evidência do direito. A adequação da tutela ao direito a proteger afetado pelo litígio é, ao contrário do que sucede com o princípio do dispositivo, um valor essencial do processo equitativo, mas o legislador continua a dar preponderância ao segundo em desfavor do primeiro. Um processo pode ser equitativo sem que nele vigore o princípio do dispositivo, mas não o poderá certamente ser se a tutela judicial por ele concedida ficar manifestamente aquém da tutela que foi conseguida pelas partes.

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TEMA 1 A NOVA TRAMITAÇÃO DA AÇÃO DECLARATIVA COMUM, O DEVER DE ADEQUAÇÃO FORMAL E O DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL 1. As disposições transitórias próprias A - A nova tramitação da ação declarativa comum 1 - A previsão de um processo declarativo comum, mas não único. 2 - A tramitação inicial do processo e a fase dos articulados. 3 - A fase intermédia da tramitação. Especificamente, a audiência prévia. 4 – A audiência final e a sentença. 4.1 - Restrições ao adiamento da audiência final. 4.2 - No que se refere à interrupção da audiência. 4.3 - Gravação obrigatória e oficiosa. 4.4 - Alegações de facto e de direito. 4.5 A sentença. B - O dever de adequação formal e de gestão processual. 1 - O dever de adequação formal. 2. O dever de gestão processual. 3. Recorribilidade das decisões tomadas ao abrigo do dever de adequação formal e de gestão processual.

AS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS PRÓPRIAS O artigo 5º da Lei 41/2013, de 26 de junho, estabelece as disposições transitórias concernentes às ações declarativas. De uma maneira geral, a aplicação das regras processuais no tempo passa a ser novamente a do tempus regit actum. Quer isto dizer que o regime processual deixa de estar determinado pela data da entrada da ação em juízo, passando, em vez disso, a estar determinado pelo momento da prática do ato processual em causa. Esse ato será praticado em con19


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formidade com o regime processual vigente no momento da sua prática e não em consonância como que estava em vigor à data da entrada da ação em juízo. É o que decorre do nº 1 do artigo 5º da referida lei, razão pela qual o novo regime processual é aplicável às ações pendentes à data de 1 de setembro de 2013. Existem, como, de resto, não podia deixar de ser, algumas exceções. As normas tendentes à determinação das formas do processo só são aplicáveis às ações que deram entrada a partir da data de entrada em vigor da lei. As normas reguladoras dos atos processuais dos articulados da lei revogada – em suma, as normas processuais dos articulados – continuam a regular esses mesmos atos desde que a ação tenha dado entrada até 1 de setembro de 2013. Quer isto dizer que nas ações pendentes à data da entrada em vigor da nova lei processual só se aplicam as regras do novo regime a partir dos articulados, ou seja, após estes terem corrido o seu normal curso. Finda esta fase, a lei determina que as partes sejam notificadas para alterar ou apresentar em 15 dias a contar de tal notificação os requerimentos probatórios, devendo seguir-se os demais termos previstos no Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013. As ações pendentes à data de 1 de setembro que, nessa data, estiverem na fase dos articulados têm, no fundo, duas tramitações. Até aos articulados, a tramitação revogada, em conformidade com a forma processual em causa e, a partir deste momento, a tramitação da ação declarativa comum, apenas interessando se as mesmas apresentam um valor igual ou inferior a 15.000,00 ou superior a este. Às ações que, estando pendentes à data da entrada em vigor da lei, já estejam ou tenham ultrapassado a fase da condensação e saneamento, aplicar-se-á a lei do momento da prática do ato, como regula o nº 1 do artigo 5º da Lei 41/2013. Se a ação estiver pendente à data de 1 de setembro e na mesma tiver sido requerida a intervenção do tribunal coletivo, podem suceder 20


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A obra que agora damos à estampa promove a análise e reflexão crítica das recentes alterações introduzidas no CPC pela Lei nº 41/2013, explicando, no essencial e, em algumas situações, com alguma profundidade, as alterações que o texto legal sofreu, as soluções legais nele consideradas, ponderando as opções que poderiam ter sido preferidas.

PROCESSO CIVIL?

Poderá a realidade vir a desmentir-nos, mas no momento em que escrevemos estas linhas temos a perceção que a intensa procura legislativa pela produção da decisão no mais curto espaço de tempo possível pode conduzir à diminuição excessiva e desproporcional da proteção das restantes camadas que integram o conceito de processo equitativo. Detetamos em algumas das soluções legais da reforma que o legislador não procura verdadeiramente um tempo razoável, mas um tempo que decorra muito rapidamente, o que não é necessariamente a mesma coisa. É que a velocidade que o legislador imprime ou permite que o juiz imprima ao processo pode ser mesmo desrazoável, sendo suscetível de interferir na construção de um efetivo processo equitativo.

Elizabeth Fernandez

UM NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL?

Elizabeth Fernandez

Elizabeth Fernandez

EM BUSCA DAS DIFERENÇAS

Uma visão geral sobre a reforma A alegação dos factos, os temas de prova e as alterações do direito probatório formal Os incidentes da instância: em particular os incidentes de modificação subjetiva da instância O processo urgente de defesa de direitos de personalidade, processos cautelares e inversão do contencioso A ação executiva Os recursos

Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho desde 1996, responsável pela lecionação de unidades curriculares referentes ao Direito Processual Civil nos primeiro e segundo ciclos de estudos em Direito. É autora de artigos em temas de direito processual geral, civil e administrativo em publicações periódicas científicas. É advogada desde 1993. É, também, a atual Diretora do Instituto de Direito Judiciário (Ius Dicere).


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