vida secreta REVISTA DE LITERATURA E IDEIAS
líria líria porto porto
Expediente Direção geral João Gomes Assistência editorial Amanda Vital Taciana Oliveira Edição e projeto gráfico João Gomes Foto da capa Carlos Magno Sena Fotos do miolo Líria Porto e Carlos Magno Agradecimentos Adriane Garcia Revista Mirada Sugestões, críticas e anúncios: vidasecretacontato@gmail.com Instagram: @revistavidasecreta
Carta ao leitor No ano de 2014, depois da publicação da 1ª edição da Vida Secreta, recebo uma mensagem de Líria Porto no site: "parabéns pela revista como faz para participar? gracias! elos a palavra é ponte entre mim e o mundo para atravessá-la posso demorar ela é sobre o mar", oficialmente a segunda mensagem enviada a um editor de primeira viagem com a graciosidade de uma poeta mineira. Veio a 2ª edição, de escritores e poetas brasileiros, para logo em seguida, o lançamento da 3ª edição, uma publicação em homenagem à Clarice Lispector. Nesse espaço de crescimento, faltava o encontro com Líria. Era preciso conquistar isso. É quando descubro Tanto mar, blog assinado por ela, repleto de ondas de puro corte em versos de desassossego. Dessas leituras e do envio de textos surgia, em 2019, o e-book A sede do rio não cede. Com a chegada da pandemia, a quarentena nos obriga a sobreviver entre o tédio e o descontentamento. Líria, no seu isolamento social, não parou de produzir. Nesta edição, apresentamos um diário organizado de janeiro a setembro de 2021, assim como a reprodução de seu acervo fotográfico que ilustra toda a revista. Esta seção, batizada De luzes e sombras, por hoje é sol é uma forma de retribuir à Líria Porto o percurso que atravessamos juntos na quarentena. "Criativa & combativa", como escreveu a poeta e editora Silvana Guimarães, Líria é o personagem principal da quarta edição comemorativa desta revista. Convidamos o leitor a "invadir" este espaço e compartilhar da existência de um dos nomes mais importantes da poesia brasileira em nossa época. Boa leitura a todas, a todos e todes!
João Gomes Recife/PE
Obra completa "Borboleta desfolhada" , editora Canto Escuro 2009, Portugal "De lua", Corpos editora 2009, Portugal "Asa de passarinho" , editora LÊ, 2014 "Garimpo", editora LÊ 2015, finalista do Prêmio Jabuti "Cadela prateada", editora Penalux, 2016 "Olho nu", editora Patuá, 2017 "A sede do rio não cede", Vida Secreta, 2019 "quem tem pena de passarinho é passarinho", editora Peirópolis, 2021
Sumário líria porto por ela mesma,
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Redes e tramas de duas escritoras, Ana Elisa Ribeiro "A vida é muito curta para ódios e mediocridades" , João Gomes Lírios em forma de trovas, Almir Zarfeg
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Líria lírica, 28 Silvana Guimarães Depoimento da testemunha nº incontável, Giselle Ribeiro Parágrafo-depoimento, Amanda Vital
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Depoimento lírico, Nic Cardeal
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Líria, forte e leve como sua poesia, Rosângela Vieira Rocha Líria Porto me traz o Brasil, Chris Herrmann Perguntas da plateia, Diário da líria porto,
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Depoimentos: Adri Aleixo e Adriane Garcia, 65 Adrienne Myrtes, 66 Deborah Dornellas e Sérgio de Castro Pinto, De luzes e sombras, por hoje é sol, fotografias de Líria Porto
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líria porto por ela mesma sobre o milho minha reza é outra não a das igrejas que exploram os pobres e abençoam os ricos minha reza inclui ateus comunistas gays loucos e putas marginalizados toda e qualquer vítima do capitalismo minha reza é por nós pela natureza mas sem egoísmo fazer muito amor proteger a terra repartir o trigo : amem-se
nasci em araguari, minas gerais, em outubro de 1.945. segunda filha de joão ferreira arantes e mundina mundim porto, tive oito irmãos. aprendi a ler sozinha, antes dos cinco anos, o que deixou meus pais desesperados, só se podia frequentar escolas a partir dos sete anos de idade. a sorte foi haver na cidade um jardim de infância, no externato santa terezinha, onde fui matriculada. minha atração pelas letras, palavras, livros, começou muito cedo. estudei depois no colégio sagrado coração de jesus, de freiras, até completar os cursos normal e de contabilidade - ia à escola pela manhã e à noite, participava de movimentos literários e estudantis. concursada, fui professora primária por um período relativamente curto. casei-me em 1967, mudei-me para belo horizonte e lá vivi por mais de quatro décadas. tive quatro filhas, passei a cuidar das crianças, deixei de lecionar. e lia muito. o brasil vivia o período da ditadura militar, engajei-me no movimento pela redemocratização do país, filiei-me ao pdt, de leonel brizola, e participei dos movimentos tortura nunca mais, diretas já, contra as privatizações. atualmente sou filiada ao pt. só no final da década de noventa retornei à escrita e de lá para cá escrevo todos os dias. tenho dois livros publicados em portugal (borboleta desfolhada e de lua), dois publicados no brasil pela editora lê (asa de passarinho e garimpo - finalista do prêmio jabuti). tenho outros livros preparados para publicação, entre os quais cadela prateada, publicado recentemente pela editora penalux. participei de diversas antologias, entre elas dedo de moça e memórias embaralhadas. sou autora do blogue tanto mar e participo de vários sites e revistas na internet, como germina literatura e escritoras suicidas. mudei-me para araxá - interior de minas - em 2011. tenho dois netos - maria luiza e francisco.
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Redes e tramas de duas escritoras por Ana Elisa Ribeiro
Em 2009, fazia seis anos que eu escrevia regularmente para a revista eletrônica Digestivo Cultural. Para minha imensa sorte, Líria Porto era leitora, não sei se contumaz, daquela coluna que me garantia ali uns bons momentos de prazer (e ainda garante). De certa feita, provavelmente por conta de um texto chamado “Projetando um leitor”, Líria Porto achou de me escrever, ali mesmo, pela caixa de mensagem do site. Esse comentário dela foi parar dentro do meu e-mail, ainda o “escrevaquerida”, no dia 27 de julho de 2009, às 11h40 da manhã, e eu li isto: à leitura. meu pai era comerciante, nenhum livro de literatura em nossa casa - no vizinho havia! encantei-me muito cedo pelos poetas portugueses, tinha lá uma antologia com poemas de bocage, camões, guerra junqueiro, fernando pessoa... sempre fui apaixonada pelas palavras, pelas letras, até mesmo antes de conhecer seus significados! dar livros de presente às filhas se tornou um hábito - resultado: ótimas estudantes, gente que gosta de pesquisa e de leitura! vivemos cercadas de livros por todos os lados! tem companhia melhor?? risos - não substituem as pessoas, mas são fortes concorrentes! gosto de te ler! ah, meu livro "borboleta desfolhada" foi lançado no último dia 17 na quixote, savassi. inté! A esse simpático contato da Líria eu respondi com uma dúzia de palavras receptivas e admiradas, já que ainda não a conhecia e não sabia do lançamento de sua Borboleta desfolhada em Belo Horizonte, minha cidade natal.
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Alguns meses depois, Líria novamente resolveu me cutucar, desta vez diretamente, sem a intermediação do site. Ela pedia o seguinte, assim mesmo, com tudo em minúsculas, aos 9 de setembro de 2009, 14h52, provavelmente numa tarde quente: olá, ana elisa entrei num concurso literário em portugal - fui uma das selecionadas para publicação de livro, recebi o comunicado na véspera do feriado prolongado. devo reenviar o material até dia 30 de setembro, pois a publicação se dará em outubro. a pergunta, na maior cara de pau, é - terias coragem de prefaciar meu livro? se não puderes, não quiseres, tudo bem, continuamos amigas... risos segue anexo o arquivo do livro. besos líria porto Obviamente, continuamos amigas. E eu, também obviamente, aceitei prontamente o que me pareceu uma proposta irrecusável, no mesmo 9 de setembro de 2009, às 22h43: Olá, Líria não é preciso ter coragem! Fico muito honrada com a lembrança, com o convite, com tudo. E feliz pela sua conquista. Ter livro é
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bom. Ser lido é melhor ainda. E se eu puder ajudar, terá sido sensacional. Me dê um prazo e algum parâmetro de tamanho para que eu escreva seu prefácio. E se você não gostar do que vai ler, tenha a liberdade de me dizer e de ignorar o texto. bj. ana elisa Precisamente 33 minutos depois, Líria Porto me devolveu a seguinte resposta: oi, ana elisa, obrigada, achei que nem me responderias e o fizeste tão prontamente - então, preciso enviar tudo dentro de uns 15 dias - pensei que o prazo era dia 30, verifiquei depois que é dia 25 - fui avisada mesmo em cima da hora - não tenho muita idéia do tamanho, escreve o que sentires ao ler os poemas - e seja o que deus quiser! risos se quiseres saber alguma coisa sobre mim, é só perguntar. besos Eu não sabia sobre ela, não sabia quase nada sobre seu texto, mas me arremessava ao seu livro com a certeza de que encontraria boa poesia naquelas páginas de Word. De fato, confirmei minha intuição. Tive a honra de escrever o prefácio ao livro de lua, que Líria publicava fora do Brasil, e que depois ganhei como exemplar de arquivo, um dos tesouros das minhas prateleiras.
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Mantive Líria no radar; e ela a mim. Conversamos pelo Digestivo, por e-mail; nos vimos algumas vezes em eventos para os quais ela vinha, em BH, e também a vi em Araxá, onde ela vive, com direito a visitas a lojas de doces e compotas. Líria foi poeta da coleção Leve um Livro, que editei com Bruno Brum por três anos/temporadas com fomento da lei de incentivo municipal de BH. Participou com um livro tão bom quanto todos os seus outros e fez sucesso entre leitores e leitoras pouco habituados à leitura dos versos. Líria seduziu e conquistou pessoas com suas rimas e antirrimas. Tenho alguns exemplares dos livros dessa poeta em minhas estantes, todos juntos, enfileirados, coisa que se sustenta quando há regularidade de produção e de publicação. Líria Porto me conquistou como leitora – e prefaciadora honesta – porque verte versos incisivos, irônicos, faz poesia com ponta de chicote no ar, gabaritada escritora antiprincesesca, ferina e delicada, numa só tacada. Lírica porto, não tive dúvida. É assim que duas escritoras se conhecem? É assim que elas começam suas trocas? Nem sempre foi, mas há algumas décadas já é. Tramas urdidas pelas redes e infovias, abertura e disposição para a conversa. E cá estamos, celebrando essa poeta que minha avó elogiaria dizendo “de mão cheia”. Eu prefiro meu juvenil “do caramba”, e não me custa um pouco de recato, né, Líria? Ana Elisa Ribeiro é autora de vários livros de poesia, prosa e infantojuvenis. Mora em Belo Horizonte, onde nasceu, em 1975. É professora, doutora em Linguística, colunista das revistas Pessoa e Digestivo Cultural.
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a vida não é justa — é plissada, franzida, godê — e é curta líria porto
"A vida é muito curta para ódios e mediocridade" por João Gomes fotos de Carlos Magno
Líria, como é ser poeta depois dos 70? E a idade contribui ou atrapalha ser escritor num país que dá tão pouca importância ao trabalho artístico? “a morte não chega / a vida não basta” é o que lemos no seu poema limitações. creio que o poeta é poeta desde sempre – a sua forma de olhar e ver o mundo se manifesta muito cedo. escrever poemas já é outra coisa, pode acontecer precoce ou tardiamente... no meu caso, no tempo do colégio, eu gostava de ler poesia e escrevia pequenos poemas, mais como forma de ironizar as freiras, questionar aquela estrutura rígida e religiosa da escola de garotas, que de toda forma tentava nos doutrinar, transformar-nos em mulheres dóceis... comigo, inutilmente! o movimento estudantil era efervescente, as mudanças de comportamento social da década de 60
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movimentava a juventude... e houve o golpe militar! embora eu tenha nascido numa família absolutamente dentro dos padrões, desobedecia e atuava nesse cenário meio proibido às mocinhas de família. casei-me em 1967, eu esperneava e brigava muito para ser, e era, a dona do meu nariz... mudei-me do interior para a capital, tive filhos, deixei de lecionar e por muitos anos fiquei acompanhando o crescimento e o estudo da meninada e os encargos familiares... consequência – nenhum verso por mais de três décadas! depois veio a luta pelas eleições diretas, o grupo tortura nunca mais, a militância partidária! só após os cinquenta anos retornei à escrita... se a idade ajuda ou atrapalha? no meu caso ajudou – com filhas crescidas e separada do marido, passei a viver sozinha! vinculo muito a possibilidade de escrever a ficar co-
migo mesma, movimento e solicitação externa interferem, distraem os sentidos...
bém estabelecer um limite entre ser escritora de livros infantis e de poesia?
Qual é o prejuízo que se percebe quando se tira as asas de um poeta, por meio da censura ou do impedimento de chegar num leitor por falta de acesso à educação?
não fiquei nas salas de aula por muitos anos, morávamos em belo horizonte e fiz um acordo em casa por uns tempos, eu cuidava da parte doméstica, o fábio na medicina, foi possível fazer isso... quando votei a trabalhar fora, não foi mais em escolas - trabalhei no banerj e depois numa editora... o público para quem escrevo é sempre o mesmo, a editora é que considerou que entre o que eu escrevo há textos que podem ser publicados também em livros infanto juvenis...
toda censura é abominável, mas a gente sabe usar metáforas, dizer as coisas de forma que a burrice não compreenda – e assim a arte sobrevive, com mais dificuldades, claro, mas sobrevive... Sua poesia é um destaque na vasta produção contemporânea. Com dois livros publicados em Portugal, quatro aqui no Brasil, um finalista do prêmio Jabuti e contribuições em revistas onlines e jornais, como foi se aposentar da sala de aula e se tornar uma poeta? Como foi tam-
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Alguns versos seus viralizaram (“a vida não é justa - é plissada, franzida, godê - e é curta” mas ser feliz nunca é demodé e “eu moro em mim, mas ô casa bagunçada”) chegando a ser canção de Estrela Lemisnki. Escre-
" eu não sei vender meu peixe, sou tímida para alardear o que esteja fazendo... então escrevo, escrevo, escrevo..."
ver versos curtos, precisos e contundentes, possibilita a “popularização” nas redes, e como consequência da viralização nasce o plágio ou a falta de se creditar o autor. Seus livros inicialmente foram publicados para encerrar este atenuante? não sei dizer sobre o que agrada o público, tenho poemas que considero muito melhores e os que “viralizam”, para mim, nem têm tanto apelo literário... no entanto isso acontece... um dia a estrela leminski pediu para usar um desses poeminhas para o estribilho da música, desenvolveu o restante da letra e gravou-a – ficou ótima! – e nós nos tornamos parceiras... quanto à publicação dos livros tudo aconteceu de forma natural! fiz oficinas com o paulo bentancur, não por causa da forma de escrever, mas para que ele organizasse meus livros, ele era bom nisso e eu um desastre...
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depois que o paulo morreu, embora eu tenha muuuuito material escrito, fico enrolando para selecioná-lo e mandar novos originais às editoras... É justo o que se paga a um poeta com a possibilidade de ser bestseller? Ou tudo é somente ilusório? a literatura, a gente escreve poemas por não conseguir viver sem fazê-lo, mas há muita ilusão e o mercado editorial é complicado, as grandes editoras têm suas panelas, as pequenas têm pouca divulgação... além do mais, eu não sei vender meu peixe, sou tímida para alardear o que esteja fazendo... então escrevo, escrevo, escrevo... Seu último livro se chama Olho nu, mas sua poesia é de limpar a vista e perturbá-la, como escreveu o crítico e poeta Amador Ri-
beiro Neto na orelha do seu Cadela prateada: “Sua poesia é um misto de emoção, celebração (e cerebração) do verbo.” Tudo o que pretendes dizer já está em sua poesia?
sei vender meu peixe nem levo jeito para o palco...
não acho que tudo está dito, digo o que sinto, outros o fazem também... e vamos, por intermédio da palavra, nossa arma de luta, tentando modificar, ou pelo menos discutir as aberrações e as maravilhas desse mundo maluco.
as redes sociais são uma boa vitrine, se bem que, no meu caso, a militância, lado a lado com a escrita, tem afastado os leitores - quem não gosta da minha opção de esquerda, deixou de ler o que escrevo!
Poderíamos falar a respeito de autopromoção e formação do escritor? Oficinas contribuem em algum sentido quando se deseja publicar livros de poesia? acredito plenamente na leitura, que é o que fazemos, como meio de aprimoramento... sou meio bicho do mato, participo pouco de eventos de poesia, como disse anteriormente, não
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Estar nas redes sociais é o grande agente literário do escritor contemporâneo?
Gostaria que falasse da importância de ser verdadeira sobre o que pensa (você é declaradamente de esquerda, faz militância por direitos humanos, grita Lula Livre e se coloca como ateia) sem ocultações. Sempre foi assim? Sente-se em algum momento perseguida? sempre foi assim, sempre defendi o que acredito, embora ultimamente esteja sem paciên-
"não acho que tudo está dito, digo o que sinto, outros o fazem também..."
cia para polêmicas. o diálogo de alguma forma se inviabilizou... Além de seu próximo e-book, A sede do rio não cede, que sairá por Vida Secreta Publicações, quais são os próximos projetos? sou mesmo bagunçada, não faço muitos planos, gosto mesmo é de escrever, a publicação é uma consequência e tenho consciência de que sou um tanto displicente com ela... Aproveitando essa liberdade de pensamento, qual recado você mandaria nos altos dos seus 73 anos para esta nação tão equivocada por muitos?
nasci em 1945, em outubro completo 74 anos, o que eu queria mesmo é que o brasil voltasse à normalidade democrática, que a justiça fosse justa, que as pessoas tivessem oportunidades e salários, que a educação e a leitura se desenvolvessem de forma saudável, que não houvesse preconceito de qualquer espécie! a vida é muito curta para ódios e mediocridade!
*Entrevista publicada em 08 de março de 2019, na Revista Mirada: miradajanela.com
João Gomes (Recife, 1996) é poeta e escritor, editor da revista literária Vida Secreta.
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Lírios em forma de trovas por Almir Zarfeg
Toda vez que leio um verso de Líria Porto, mais me convenço que ela é o anjo torto de saia de que fala Drummond no “Poema das sete faces”. Para LP, aliás, “todo dia é dia de poesia e de drummond”. Como tenho encontro marcado com ela todo santo dia no Facebook, o bendito gauche se tornou presença constante, onipresente mesmo, em minha precária virtualidade. Que continue assim até o juízo final. Como anja torta, LP não tem me decepcionado, uma vez que seus poemas, cunhados em versos curtos e certeiros, à guisa de pavios curtos, fazem a alegria de gregos e troianos, cativam mineiros e baianos, como Bita e eu. Mas fazem pensar também, porque, se por um lado, são divertidos e irônicos; por outro lado, perturbam e denunciam o circo e os palhaços em que o Brasil se transformou nestes tempos fake e reacionários. A seguir, algumas facetas que extraí, via rede social, de sua produção recentíssima: Uma dose de humor em “finitude”: puta que me pari eu não sou de ferro nem de pedra nem de aço : e carne apodrece
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Uma pitada de irreverência em “bilboquê”: a vida é um brinquedo dos mais antigos do mundo sobe com dificuldade na maioria despenca quando acerta é pau no cu Um grito de revolta em “preso político”: depois de me sequestrarem levarem-me à solitária (essa é a pior masmorra pois que distante do povo) emparedarem meu corpo calarem minhas palavras arrancarem-me dos meus eu fui atirado às feras (feras do judiciário) : sobrevivo como ideia agora eu sou pensamento a consciência que paira sobre o país de meu deus Eis aí o poema a serviço do que a vida tem de mais urgente e inadiável: as demandas pelo belo, pão, roupa, remédio, liberdade, pelo sim e pelo não, enfim, pela dignidade, pelo sagrado direito de sermos gente brasileira.
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O poema que, de tão despojado de superficialidades, soa como um lamento e/ou se impõe às consciências como um provérbio, um abraço ou um dia ensolarado. Um toque que, desprovido do lirismo (farto em Adélia Prado) e da construção metafísica (farta em Drummond), atinge o leitor como um lírio (Pra não dizer que não falei das flores) ou um soco (Nunca conheci quem tivesse levado porrada). Enfim, como linguagem certeira. Estamos diante da poética do cotidiano, das coisas e situações de somenos importância... lírica. Erótica não, porque, no final, a ternura anda de mãos dadas com o absurdo e o escroto. Basta um desvio de personalidade ou de sentido e... voilà! De tão imprevisível e original (quem disse que esses conceitos são excludentes?), LP nos conquista também com frases de efeito irresistíveis, diante das quais não nos resta alternativa senão capitular e admirar. Senão, vejamos: “Não acredito no poder de fogo, mas creio fielmente no poder do afago”. “Quando ele dizia saudade de comer goiaba, ela abria as pernas”. “Espírito natalino é o próprio espírito do porco com maçã na boca”. “Não acredito no poder de fogo, mas creio fielmente no poder do afago”. “Quando ele dizia saudade de comer goiaba, ela abria as pernas”. “Espírito natalino é o próprio espírito do porco com maçã na boca”. “Pessoas: sou ateia e não gosto de natal! Parem de mandar
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mensagens inbox, que vou bloquear!”. “Entre mandar mensagens e ligar, eu prefiro... #LulaLivre”. Portanto, seja no verso ou na prosa, LP dá um show para os sentidos (superiores e inferiores), se vocês me compreendem, usando e abusando da síntese, de posse de um texto poético imagético, visual e cubista. Impossível não voltar às origens modernistas da poesia brasileira, que fique claro, no que ela apresentava de coloquial, econômico e bem-humorado. Com seu lirismo (quem falou em lirismo?!) libertário, construído e envolvente, a anja torta vai se impondo com jeito e maledicência às necessidades e gostos mais exigentes, de modo que bota o dedo na ferida da moral, da política, da intolerância e da cafonice. Porque LP é poeta, sim senhor, e mulher, sim senhora. Os incomodados que se retirem e se cubram. Ou se phodam, porque toda tradição, ainda que malsã, é bem-vinda. Por último, mas não menos importante, uma trovíssima: Lírios perfumados Para Líria Porto! Versos defumados Para o anjo torto! Almir Zarfeg é poeta e jornalista baiano. Preside a Academia Teixerense de Letras.
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líria lírica
por Silvana Guimarães Somos amigas. Ainda assim ou por isso, fico à vontade para falar bem da poeta líria porto (em minúsculas, como ela gosta), a que sofre de incontinência poética e faz mágica com o lugarcomum, por meio de um lirismo bem-humorado. Às vezes, nostálgico e sentimental. Outras, erótico. Seus enigmas surgem às claras, em metáforas que se apropriam de fenômenos e fulgores da natureza para expressar sonhos, solidão, vida & morte. Construída, em geral, a partir de episódios do cotidiano, sua poesia manifesta-se frontalmente indignada e comprometida com os desvarios éticos e morais do Brasil de hoje, e comprova seu perfeito domínio vocabular, além de expressivo comando da linguagem, que pode ferir com sutileza. Especialmente, quando se refere às angústias da mulher e ao machismo. Ou quando revela sua comiseração pela miséria e as desigualdades sociais. Falo de alguém que sente a dor do outro e a enfrenta com versos de puro espanto & encantamento. Criativa & combativa, líria porto é dona de uma desmedida coleção de poemas dedicados & atentos à rotina, misticismo, religiosidade, tristeza, júbilo, sarcasmo, tormento, a maioria deles, acometidos de irrepreensíveis bom humor & beleza:
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escola no meio da página tinha umas letras tinha umas letras no meio da página : com elas aprendi palavrinhas e palavrões cu e pindamonhagaba poliglotas estou mais para troglodita mal sei usar minha língua e o português — ai meu deus aqueles bigodões aquelas sobrancelhas aquele peito peludo
façanha poema metalinguístico faz o meu amor quando fecho os olhos e abro as pernas
Ave, líria! E avoa.
Silvana Guimarães é editora da Germina — Revista de Literatura & Arte e do coletivo Escritoras Suicidas. O corpo inútil (no prelo) é o seu primeiro livro de poesia. Provavelmente, o único.
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Depoimento da testemunha nº incontável por Giselle Ribeiro
Feito um preâmbulo dos fatos narrados, no processo foram disponibilizados os autos para consulta, ao tempo em que consignou-se o comprometimento da testemunha em dizer a verdade, sendo advertida da penalidade de falso testemunho. Sendo questionada, respondeu que: Como eu cheguei até aqueles escritos poéticos, eu não lembro, só sei que descobri Líria Porto no Facebook. No começo, eu tive muita resistência com esse lance de tecnologia, de leitura digital, etecetera e tal. Tenho atração maior por livro físico, gosto de cheirar, tocar, sentir a camada das páginas, descobrir as luzes apagadas que um bom livro poético tem pra oferecer. Mas, depois que entrei, percebi que essa rede social parecia uma aranha mãe, tecendo suas teias. Líria foi uma dessas teias, para dizer a verdade, acredito que ela faz parte do novelo de ouro, dessa aranha mãe. Subi a escala da amizade virtual da poeta e de acompanhar suas postagens, notei que a sua escrita, ali naquele espaço, se metamorfoseava com fluidez, ora ela falava o dialeto das crianças, quando empurrava o neto Zezim para o centro da página, ora falava tão bem com a minha adultice, quando salpicava a tela com poemas dos seus livros Cadela prateada, Olho nu entre outros poemas “impublicados”, até a última ordem.
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Não estou aqui para ser jugada por empregar palavras que não foram dicionarizadas, aprendi com Líria que arriscar é viver, por isso me arrisco a dizer palavras descomprometidas com a lógica. O fato é que, depois desse contato virtual, eu precisava passar pela experiência do contato com as suas publicações e comecei a comprar os livros, os que já citei e os que agora lhes digo: Garimpo e Asa de passarinho. O caso se complicou quando chegou em casa o livro Asa de passarinho. Tudo nele me agradava, a capa com a cor de um sol luminoso, a ilustração com restos de lápis apontados, dando asas aos passarinhos, o pontilhado das letras me apresentando o nome do livro, a dedicatória alertando que netos não têm tamanho e lá estavam os netos, montados nos passarinhos. Cada vez que arrastava as páginas, era como se abrisse uma janela para deixar o sol entrar, me surpreendia com a ilustração em perfeita sintonia com os poemas. Notei que aquele livro me provocava estados eufóricos, me vi indo e vindo com ele nas mãos, e quando pensava em alguma aventura, ele reaparecia num salto, quase mortal, da biblioteca até a cama. Foi ele que me empurrou para aquele delírio. Um dia acordei com uma menina deitada no lado esquerdo da cama. Ela parecia estar com os brônquios inflamados e fazia um esforço grande para ter aquela respiração curta. Decidi encostar meu ouvido no peito dela para escutar os ruídos internos. Ali eu ouvi: publique. Cantava algum passarinho ali dentro me dizendo, naquele ruído interno, que era preciso fazer chegar a voz da Líria em outros portos. Depois disso, A menina com semente de Líria no pulmão levantou voo e saiu contando a história do amor possível entre uma leitora e um livro. Mas foi só isso. Juro que foi só isso. Giselle Ribeiro é poeta, professora de Teoria Literária na UFPA.
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Parágrafo-depoimento por Amanda Vital
A poesia de Líria Porto foi uma das minhas primeiras leituras do “lado de fora” daquilo que estudei em literatura contemporânea na escola. Eu estava sedenta por ler quem estava produzindo atualmente, fui procurar e conheci seus poemas no final do Ensino Médio, em revistas literárias eletrônicas da altura. Tudo aquilo me marcou por completo e me deixou com vontade de acompanhá-la. Foi um divisor de águas ver a possibilidade dessa reunião dentro da poesia: o estilo conciso, a preferência de temas que dizem muito a mim e à realidade ao meu redor, sobretudo na convivência com outras mulheres (o que ainda me era inédito em literatura, ver a mulher como o estilo de protagonista que é a mulher de Líria, irreverente e corajosa), os jogos de palavras criativos – sem cair em clichês –, a acessibilidade da linguagem e esse baque que fica, e fica sem pedir permissão. Líria Porto carrega mundos em um arranjo preciso no encadeamento das palavras. Para além de uma surpresa em literatura, foi um presente enquanto figura forte e certeira, e o é através do seu verbo em primeiro lugar. Essa sensação de descoberta de novas possibilidades em poesia que tive lá atrás, em minhas primeiras leituras, se preserva até hoje. É como se quem a lê nunca parasse por ali: é impossível fechar uma análise, porque outra se abre quase de imediato. Me interessa o contínuo e o vício de ler Líria. Amanda Vital é assistente editorial da editora Patuá, autora do livro Passagem.
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Depoimento "lírico" por Nic Cardeal
A poesia de Líria Porto é como um rio que sonha o mar e, mesmo antes de alcançá-lo, já o exercita em funduras, amplidão ou até em mansas águas. Sua palavra veste a simplicidade do rio, ao mesmo tempo em que transborda ao leitor a profundidade oceânica dos sentidos. Líria também é porto, onde a palavra se segura ao cais, então escapa, navega, voa, sobrevoa, até pousar. A gente se atira, a gente afunda, a gente se afoga, a gente se diverte, depois retorna à beira, como um peixe 'emboscado' no anzol da sua poesia. O humor, mesmo quando sutil, é diálogo constante com a mensagem deixada por sua palavra nas entrelinhas. Ela aponta no alvo, e nunca nos deixa sem bússola - aquela, de indicar sentidos para os 'impropérios' do mundo. Como Líria já disse um dia, "a escrita me pega me traga me suga me mastiga e cospe o refugo" (Líria Porto, 'bagaço', in: Garimpo, p. 27). Líria é lírica, e se a gente fica muito tempo sem sua palavra, corre o risco de ficar a ver navios. Líria, não apenas lírica, mas também objetiva, direta, irreverente, como uma borboleta desfolhada que ama as asas e tem o olho nu, pronta para dizer ao mundo, sem piedade, sobre as incongruências da realidade. A poesia de Líria é síntese, depois das teses ou antíteses - miniaturas perfeitas que dizem o máximo da complexa linguagem humana, em mínimos espaços, onde cabe todo o sentido da
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existência, pois seus versos são hábeis construtores da simplicidade, das sutilezas que nos desconcertam, da metamorfose das densidades, fazendo suave o que antes era peso de corpo e de alma. Sua "poesia é olhar", em sua própria definição. Assim, mesmo que o corpo sinta a gravidade das formas, a sua palavra - ao olhar - consegue alçar voo, e nos desperta da aridez do mundo. A poeta tem olhos sempre atentos às miudezas e, com elas, esculpe a imensidão dos significados. Há em Líria a linguagem do encantamento, a delicadeza, mas também revolta, ironia, paixão, a exata dimensão dos sentidos: "ou rio da vida ou ela me encharca" (Líria Porto, 'assoreamento', in: Garimpo, p. 14). Então, se "poesia é olhar", olhemos com 'olhos de Líria', cuja poesia é tão "essencial como o algodão que se coloca entre os cristais"! Ave, Líria! Nic Cardeal, catarinense radicada em Curitiba/PR, é autora de Sede de céu — poemas.
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Líria, forte e leve como sua poesia por Rosângela Vieira Rocha
Comecei a ler os poemas de Líria Porto nos anos noventa. Durante anos comprei a agenda da editora Tribo, algumas vezes difícil de se encontrar. Até pelo formato da agenda, são poemas em sua maioria curtíssimos, aparentemente muito simples, com elementos como trocadilhos, provérbios populares. Simples apenas na aparência, o que fui descobrindo lentamente, pois sua poesia tem, sim, profundidade, lirismo e originalidade. Transformei-me em sua fã, desde essa época. Acompanhei de longe, com alegria, o lançamento de seus primeiros livros – Líria começou a publicar tarde, em relação à maioria de seus colegas poetas – e a popularidade que seus versos adquiriram. Tudo na sua obra é diferente, invulgar: uma senhora que escreve poemas cheios de jovialidade, inconformismo e irreverência, com certa dose do que poderíamos chamar de “transgressão”. Uma poeta nascida no Triângulo Mineiro e que ainda reside lá, tendo mudado apenas de cidade, trocando Araguari por Araxá. No baú da Tribo 2018 há um poema seu que expressa, a meu ver, o seu jeito de fazer poesia:
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puta velha aprendeu com sua mãe (vovozinha já sabia) ensinou suas filhas vai dizer pra sua neta quem não faz amor faz merda. Em 2017, no histórico I Encontro Nacional do Mulherio das Letras, realizado em João Pessoa, que reuniu quase trezentas mulheres, tive a alegria de conhecê-la pessoalmente. Poucos poetas se parecem com sua obra como Líria. Engraçada, bemhumorada, irreverente, decidida, simpática, sempre rodeada de gente. Guardo as fotos daquele Encontro, especialmente as que tirei com ela, com muito carinho. Além de excelente poeta, Líria Porto é uma mulher encantadora. Rosângela Vieira Rocha é escritora, jornalista, mestre em Comunicação Social, advogada e professora aposentada da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília.
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Líria Porto me traz o Brasil por Chris Herrmann
Falar da poesia de Líria Porto é algo de muita responsabilidade e, ao mesmo tempo, um prazer. Mas por que digo isso? Porque, na minha opinião (e sei que muitos de seus leitores concordariam), ela é uma das maiores poetas contemporâneas do Brasil! Eu não diria isso se não fosse tão envolvida com a Literatura Brasileira da nossa época atual e não lesse com frequência os poemas inspiradíssimos e inusitados que a Líria nos presenteia nas redes. Obviamente que há um grande número de boas e excelentes poetas brasileiras. Porém, o que identifico na poesia da Líria é tão envolvente, que imediatamente quero ler mais de uma vez. É como um presente que a gente não se cansa de apreciar. Pois foi exatamente com a sensação de receber um presente que tive o privilégio de conhecer a Líria Porto através do Facebook há cerca de dez anos. Já nem sei exatamente quanto tempo, mas o bastante para me tornar sua grande fã e amiga, ainda que virtualmente, já que moro em outro país, mais precisamente na Alemanha. Líria Porto me traz o Brasil do jeito que ele é para perto de mim, cada vez que a leio. E me emociona todas as vezes. Essas emoções variam desde tristeza, lamento à profunda graça e felicidade.
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Tudo a inspira. Tudo cabe em seus versos, até o descabido e inimaginável. Nada passa despercebido aos olhos de lince de sua alma poética. Tudo pode ser tema em seus versos livres, perspicazes, brincalhões, debochados, sarcásticos, doces ou denunciadores, como a flecha mais certeira do arqueiro mais treinado. Líria tem jogo de cintura na escolha das palavras, no ritmo dado ao poema e em seus arremates surpreendentes e impactantes. Não fala demais nem de menos. Seus poemas são “redondos” em suas completudes. São corajosos, políticos, solidários e sensíveis com quem ela entende que merece e aniquilador com impiedosos. Sim, e revolucionários até ao âmago. Em sua inconfundível assinatura, de forma compacta e aparentemente simples, Líria finca sua bandeira na história da Literatura Brasileira com uma poética de perfeição cirúrgica e simplesmente brilhante! Chris Herrmann é escritora, editora da revista Ser MulherArte e musicista.
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Como foi sua infância? como a de muitas crianças – segunda de nove filhos, não havia tempo para ser protegida demais, nem de menos, o que me dava relativa independência... embora no começo meus pais não tivessem bens materiais, eram trabalhadores, foram juntando pouco a pouco o que nos daria segurança financeira nos anos que se seguiram... eu era esperta, aprendi a ler sozinha, gostei de livros desde sempre... brinquei muito, tive boas notas na escola, embora meio malandra – poderia ter aproveitado para aprender mais, tinha facilidade para tal!
Sua juventude passou rápida ou deu pra aproveitar? meu pai era bravo, fiz muita coisa escondida – era um tempo diferente... namorei, gostava de dançar, de música e lamento não ter aprendido nenhum instrumento... levava a vida na flauta, com alguma irresponsabilidade... mamãe condescendia, não nos forçava a nada, sua vida de dificuldades levava-a a nos poupar dos afazeres domésticos... não cresci “para casar”, como era o destino da maioria das moças da época, não se falava nisso em nossa casa... contraditório é que os namoros eram vigiados! com 17 anos terminei o curso normal e o de técnico em contabilidade (este à noite, para driblar a vigilância, ir ao cinema, sair um pouco). acompanhava como podia a UEA – união dos estudantes de araguari, a política estudantil...
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Como foi sua chegada à vida adulta? o golpe militar de 64, para nós do interior, era algo distante, ouvíamos as notícias, alguns dos nossos amigos foram perseguidos, havia um ambiente obscuro, mas não atingia diretamente a nossa vidinha de cidade pequena... um dia casei e mudei – saí do interior para a capital, sentia que meu destino era a cidade grande, onde pude entender melhor o que se passava... o fábio era psiquiatra, fomos morar também em ribeirão das neves, onde há até hoje a prisão agrícola de mi-nas gerais... havia o pequeno apartamento da avenida cristóvão colombo, em belo horizonte, para onde fomos definitivamente quando a primeira filha estava para nascer...
Líria, você sempre quis ser professora primária? não, era a possibilidade que havia – para cursar uma faculdade teria que me mudar para uma cidade maior, não havia ensino superior em araguari – na verdade, nem curso científico para mulheres havia... fiz por um tempo o curso clássico no colégio estadual, mas com o casamento, interrompi... dei aulas por pouco tempo – dos 18 aos 22 anos, com interrupções – uma cirurgia dos rins neste período... voltei a lecionar no ano que morei em ribeirão das neves... quando as crianças começaram a nascer – perdi três bebês entre as quatro meninas, combinei em casa – o fábio trabalharia fora, eu cuidava delas e administrava a casa... o que ele ganhasse era de nós dois...
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Mesmo com o descaso com a educação, você se orgulha da licenciatura? tenho duas filhas professoras universitárias – com todas as dificuldades que enfrentam é o que eu escolheria como profissão, antes, quando garota, pretendia ser médica...
Qual lembrança de sua juventude que você nunca consegue esquecer? não me apego a nada não, mas a filharada pequena foi um tempo de alegria, cresci com elas!
Além da escrita, você já trabalhou com outras formas de expressões artísticas, como por exemplo a pintura? tentei – matriculei-me num curso de extensão na UFMG – pintura! durou pouco tempo, eu não levava jeito – as palavras sempre me seduziram mais!
As oficinas literárias lhe ajudaram a organizar a criação poética? fiz uma oficina com paulo bentancur, principalmente para que ele organizasse meus livros, não tinha muito a ver com a escrita,
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embora ele também lesse, avaliasse e discutisse sobre os poemas... antes de haver redes sociais era melhor – havia grupos de escritores de língua portuguesa, uns brasileiros, outros nascidos em portugal, trocávamos e-mails e experiências de escrita havia crítica, ensinamento, este trabalho coletivo foi a melhor escola!
O que você mais gosta de ler? boa literatura – poesia, romance, contos... preciso ser capturada pelo autor – se depois de 30, 40 páginas, não me envolvo suficientemente, mudo de livro...
Quais gêneros musicais passam pela sua apreciação? gosto de jazz, de música instrumental – da música que se fez no brasil até a década de 80 também... e embora não seja grande entendedora, gosto de ópera e dos clássicos da música universal.
Quando você se descobriu como escritora? eu não me descobri escritora, mas sempre soube que gosto muito de escrever...
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Manter um blog em dia foi uma forma de organizar os escritos? sou bagunçada – então minha querida amiga roberta silva fez o blogue – como também fez o facebook e algumas outras mídias – que não uso – para eu guardar o que escrevo... já perdi muitos arquivos do word...
Como nasceu o convite para ser publicada em Portugal? o vítor vicente, da canto escuro, editora portuguesa, perguntou-me se podia me publicar, prometi-lhe um arquivo com poemas e tal – mas achei que era só uma solicitação da internet, não dei o valor que ele merecia, não consegui enviar-lhe arquivo algum! o próprio vítor vicente foi a meu blogue, escolheu os textos, apresentou-os a mim, concordei , ele nomeou o livro – borboleta desfolhada – publicou-o, foi a belo horizonte com u’a mala cheia de exemplares para o lançamento – isso em 2009 – eu já tinha 64 anos quando vi meu primeiro livro impresso!
Quais as diferenças que você pode apontar na criação poética para o público infantojuvenil e adulto? não sei – eu escrevo... no meu caso a silvana menezes disse que queria ilustrar um livro meu, eu nem sabia que entre o que já
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estava escrito havia textos para crianças – ela apresentou uns livros que o paulo bentancur já tinha organizado – asa de passarinho e garimpo – à editora lê, de belo horizonte, fizeram a seleção dos que acharam adequados para este público, a silvana ilustrou-os lindamente, e nasceram os livros infantojuvenis, dos quais me orgulho muito... eu era doida pra escrever para crianças!!!
Como você se reconheceu ateia? também não sei... estudei em colégio de freiras, a religião e deus nunca me mobilizaram...
Como a escritora e a mulher Líria Porto se conectam na militância política? desde muito pequena minha mãe me chamava de advogada dos aflitos – não aceito a desigualdade, o preconceito, a exploração, o poder dos fortes sobre os fracos – e só a política, a meu ver, dá conta de tentar equacionar tudo isso – por intermédio da educação, da cultura, das políticas públicas... e a tendência mais próxima do que sinto é a dos partidos de esquerda...
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Como você lida com a possibilidade de plágio dos seus escritos na rede? quando percebo má fé, fico puta! não só sobre o que escrevo – palavras não nascem por geração espontânea, são fruto de reflexão e trabalho... se não se sabe quem escreveu, custa colocar aspas? se se sabe, por que retirar o autor? (de Adriane Garcia)
Quanto do uso das redes sociais colabora e quanto atrapalha na construção de um projeto poético?
há duas faces – as redes sociais são um bom meio de divulgação, mas ao mesmo tempo distraem-nos, desviam-nos do foco... deixamos de ler o que deveríamos, passamos a não estudar convenientemente... todo dia eu penso em abandonar as redes, um dia espero conseguir – ou pelo menos me educar e não perder tanto tempo... (de Manuelle Santos)
Que ou quais são os sentimentos que a fazem escrever, suas inspirações e anseios filosóficos?
tudo me leva a escrever... as palavras escritas, para mim, traduzem melhor o que sinto e penso...
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(de Almir Messender)
Grau de dificuldade espanta e oprime a expressividade do poema?
depende – dentro da escrita há o estilo de cada um, às vezes eu gostaria de escrever diferentemente, mas não consigo! este é um grau de dificuldade que sou incapaz de transpor... mudar isso, o resultado sai forçado...
Compensa ser escritor no Brasil? a gente escreve, acho, independente de compensar materialmente ou não - a compensação é também emocional... eu gostaria que o meu país valorizasse as artes, a escrita é uma delas...
Como funciona a frequência da publicação dos seus escritos no blog Tanto Mar e nas redes sociais? escrevo todos os dias, nem sempre versos – às vezes penso alto e escrevo, lembro-me de fatos passados, posto no facebook... registro no blogue apenas os poemas (ou possibilidades de poemas).
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janeiro 1 de janeiro #ForaVírus #ForaVerme
16 de janeiro depois que trump perdeu a peruca, seu cachorro zanza enraivecido e precisa ser sacrificado!
5 de janeiro as paredes têm me ouvido. 7 de janeiro eu era alegre, fiquei triste, depois irônica e, ultimamente, percebo-me meio cínica. tornei-me uma doméstica indomável, lavo, mas não passo; varro, mas não tiro o pó! 8 de janeiro já não tenho olhos para esse mundo. 12 de janeiro tenho brincado com as palavras - sonhei que me pediam para levá-las a sério...
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18 de janeiro indonésia: a punição para quem não usa máscara durante a pandemia é cavar túmulos! 22 de janeiro acendo velas para as mais de duzentas mil almas...
fevereiro 2 de fevereiro sempre fui ótima na bicicleta, já fiz poucas e boas sobre duas rodas! parei de andar há alguns anos e agora vejo esse triciclo dá vontade! (se bem que o que gosto mesmo é de equilibrar, passar entre os pingos da chuva arriscando cair...) 3 de fevereiro um dia li que o que mais estraga um poema é o último verso será?
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março 11 de março morávamos perto da zona, achava-as lindas! era lá que eu, menina, buscava bambu para as pipas e aquelas mulheres me tratavam muito bem! eu queria ser puta, faltou-me capacidade!
indigitado teria valido a desgraceira 20 de março num ambiente de tragédia o riso é uma afronta 21 de março a picada tou na bica! creio que, de amanhã em diante, a qualquer hora!
12 de março faz um ano que me exilei em casa - 12 de março de 2020, minha filha médica, à época, considerou um exagero...
23 de março amanhã eu viro jacaré!
13 de março só acredito em feministas que não excluem mulheres trans e respeitam a diversidade.
25 de março eu, que gosto de mim, brigo frequentemente comigo, já me traí e até me faço - sem querer - algum mal, não consigo acreditar que um casal, depois de anos juntos, diga que nunca se desentendeu, nunca pensou em viver um sem o outro, nunca traiu ou foi traído e
15 de março não sou dada à depressão, só ando desalentada. quanto menor o QI, mais foco no bilau? 16 de março nem se o vírus defenestrasse o
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precise dizer ao companheiro, de cinco em cinco minutos e de forma mecânica, como fosse lavagem cerebral - eu sempre te amei! e o outro - você é o amor da minha vida! ou mentem, ou são dependentes psicologicamente, ou não têm amor-próprio... uns me diriam - estás com inveja? eca! mais vai saber né? 28 de março netflix - adoro a série "shtisel" chegou a terceira temporada! 29 de março felicidade é o que está ao alcance dos dedos - um pão, um agasalho, um prato de comida…
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abril 2 de abril ele fala do que aprendeu comigo como se estivesse me ensinando..
19 de abril agro é papo (furado)
8 de abril como se assistíssemos caírem todo dia em torno de 10 boings! 15 de abril quando perdeu dois filhos, ao invés de se perguntar - por que eu? perguntou-se - por que não eu? e se consolou... 17 de abril a vida é via de mão única, para muitos sem nem acostamento, para alguns com pista dupla ou tripla, mas sempre na mesma direção…
21 de abril necessito ir à rua, que preguiça - não entendo tanta fissura para aglomeração - e eu preciso só ir é ao minimercado... 23 de abril maria vai com as ostras e quando volta traz pérolas. 25 de abril quem não tem lado tem lado : geralmente o pior 27 de abril meu pai era capricórnio, minha mãe escorpião - tinha jeito de eu ser benta, mesmo nascendo em libra? tinha não!
18 de abril neste momento mães não querem a porra do presente querem é filho vivo!
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maio 29 de maio putz, sou um perigo para mim acordei, fui tomar o remédio, bebi-o com o produto de limpeza que misturei à água e deixei sobre a pia do banheiro, para adiantar pra hoje, na hora de limpá-lo - tava numa garrafinha de suco igual à que costumo usar... argh... 30 de maio a morte é dura a morte não tem jogo de cintura
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junho 29 de junho minha alma é gay é bi é hetero é trans
3 de junho a gente até diz que tá tudo muito bem, mas na verdade tá apenas mais ou menos 12 de junho odeio dia disso, dia daquilo... ainda mais se não tenho um alvo para mirar! ateus convictos são muito mais confiáveis que religiosos fanáticos 17 de junho melhor que casar é descasar! 18 de junho 2022 (subliminar) no centro ora o umbigo, ora o cu, ora o caralho! à direita a bílis, à esquerda o coração 28 de junho quando vi como quatro brutamontes jogaram o corpo morto de lázaro no carro do iml senti-me muito mal!
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julho 8 de julho pecado é fazer o que não quero, comer maçã com gosto de isopor... 17 de julho compatriotas, não vos impressioneis com golpezinhos de facadas, soluços e cirurgias, vossos votos hão de ser escolhas livres! 20 de julho a cozinheira de castamar netflix!!!! 25 de julho o tempo da escrita é um outro momento de falar sozinho
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29 de junho minha alma é gay é bi é hetero é trans.
agosto 4 de agosto os corpos na urna - mais de 550 mil - e a discussão dos papelotes é só pra distrair incautos… quem tem pena de galinha é escritor. chefia, relógio que atrasa não adianta! ao invés de cédulas na urna, precisamos votar é com células cerebrais! se você pensa que meu voto é de papel, não vá pensando pois não é... 7 de agosto reclama de solidão quem mal se suporta.
o quiabo tava uma delícia também pudera, $22 o quilo! 8 de agosto uso meias nas noites de frio, mas detesto tudo que me prende - assim que os pés se aquecem, tiro-as, consigo dormir - pois bem, hoje estava dobrando-as para usar à noite, estive com elas apenas uns 15 minutos após o banho, se precisasse iria usá-las outra vez... enfiei a mão no pé de meia - tive uma ideia - comecei a retirar o pó da estante de livros e - eureka - é a melhor forma de tirar a poeira!!! meias, me aguardem, terão a devida utilidade! 9 de agosto onde tem tanque tem trouxa 11 de agosto diante da palavra muita vez me sinto um blefe - horrível desconfiança...
amo o país chamado nordeste! felicidade? sim, eu sei, já ouvi falar...
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31 de agosto ratos abandonam o barco quando a toupeira o coloca à deriva…
12 de agosto para a poesia estou sempre disponível, mais ainda quando ela não comparece... 19 de agosto todo valentão é covarde e pede arrego... 23 de agosto sou o tipo da pessoa que duvida das certezas e põe fé nas dúvidas 25 de agosto queria ter virado jacaré - não passei de lagartixa... espero a terceira dose!! 28 de agosto do que escrevo, não sei nada de cor - muita vez leio poemas e descubro que fui eu! 30 de agosto por hoje é sol
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setembro perdigotos e m.e.n.t.i.r.a.s em new york... pizza no calçadão!
3 de setembro não quero saber detalhes da vida de ninguém, menos ainda da vida de um energúmeno!
22 de setembro quando eu era garota, encanteime pelos livros de pear s. buck - foi ali que aprendi a amar a china...
10 de setembro tou mais tonta que peru de véspera - com dor de cabeça e de barriga - tô boa não!
25 de setembro três horas e meia na cadeira do dentista a fazer o que precisava ser feito num dia!
16 de setembro acabo de assinar contrato para "quem tem pena de passarinho é passarinho" - editora peirópolis - prefaciado pela querida Marilia Kubota
26 de setembro depois da chuva escancarei as janelas e o cheiro da terra invadiu tudo!
17 de setembro tem homem que me deixa tonta - o barman por exemplo!
27 de setembro eleicões n'alemanha - a extrema direita teve uma merreca de votos!
eu sou a minha patroa - boa para mandar, péssima para obedecer! 21 de setembro robô verde amarelo cospe
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28 de setembro nem nos momentos mais tristes senti-me infeliz 29 de setembro na sexta-feira vão me vasculhar da boca pra dentro e pelos fundos - colonoscopia e endoscopia - credo, o preparo é uma longa sessão de tortura! começa na quinta... e tomara acabe na sexta, sem maiores sustos! fujo de médico como o diabo da encruza! e fui casada com um... psiquiatra... rsrs 30 de setembro despreparada para o preparo antecipado, já ingeri dois lactopurgas, tive uma cólica eólica, algo parecido com engolir um furacão, sentir um terremoto abdominal e expelir a lava do etna! e isso é só o
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começo! a próxima dupla de lactopurga virá em breve, acompanhada de 10 envelopes de um mal-estar em pó, sabor limão... amanhã tudo se repetirá, seguido de jejum absoluto até as 16 horas quando, literalmente, e adormecida, tomarei no cu! o nome da tortura? colonoscopia!
Este diário apesar de acompanhar o tempo, é atemporal, e não foi escrito exclusivamente para esta publicação. Imprime-se nele um desejo maior: compartilhar parte do período pós-pandemia e relatar sua consciência e olhar crítico de militante e poeta. Líria Porto respira literatura em altas doses de precisão, e nos brinda com essa coisa grandiosa que é a vida. Este breve diário público nos comprova isso. João Gomes organizador
Adri Aleixo Imagino Líria Porto às 6 da manhã e sua cabeça em devir lua, rio, índia, Jocasta... Líria é a profusão dela mesma em versos definitivos e arrebatadores. Fazer a leitura de seus poemas é deparar-se com o óbvio que não admite plasticidade e outras vezes espantar-se com a beleza de versos telúricos e engajados.
Adriane Garcia A poesia de Líria Porto é forte, precisa, corajosa, bem-humorada, profunda, objetiva, nova e cheia das aprendizagens anteriores. Ávida leitora, líria não é dos poetas que desprezam mestras e mestres, e esta é para mim a melhor escola: saber ser reverente sem ser subserviente. Dona de um ritmo perfeito e de formas variadas, seus poemas cantarolam, desfiam palavras numa dança e apontam, escondem, sugerem, contam significados. Há sempre um pouco mais do que aquilo que está escrito. Trabalha com domínio as ambiguidades das palavras e da sintaxe.
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Adrienne Myrtes Do alto da minha dificuldade de comentar poesia escrevo esse texto. A poesia, pra mim, pertence ao terreno do inefável, é o instante em que a palavra se coloca acima de sua função de dizer para se tornar expressão. A palavra se irmana à música ou à imagem. Isto posto, passo a contar que conheci a poesia de Líria Porto nas redes sociais, (pra alguma coisa boa elas precisam servir), e serviram para me permitir colher aqui e ali um poema, um respiro durante o ofegar da correria cotidiana. A poesia de Líria comunga com a vida diária, cheira a café coado na hora, é uma conversa entre amigas que restaura a energia e ajuda na caminhada. Pode ser um abraço fraterno ou uma sacudida afetuosa no momento preciso. Sempre com leveza, um sopro, um enternecimento diante do humano. A humanização do concreto, que com as palavras certas, põe o cimento a bailar.
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Deborah Dornellas Líria é flor. Inspira monóxido de carbono e nos devolve oxigênio. Fotossíntese de poesia. A gente lê e respira. E o ciclo recomeça. Líria é porto onde fundeiam naus-poemas que com pouco dizem muito. Líria é poeta do mundo. Sua poesia areja, mas também fere rente. Líria Porto é inspiração e semente.
Sérgio de Castro Pinto Para Líria Porto, não existem temas tabus, tudo é “matéria de poesia”. E os seus poemas são “insights”, epifanias que o eu lírico colhe entre meio atento e meio distraído. Acompanho-a quer em livros, quer nas redes sociais. E hei de acompanhá-la sempre na condição de leitor e de poeta, pois dialogo com a poesia de Líria, como dialogo com a de todos os poetas com os quais mantenho “afinidades eletivas”.
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