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Ficha TĂŠcnica TĂtulo: Villa da Feira - Terra de Santa Maria 4
Propriedade: LAF - Liga dos Amigos da Feira ÂŽ Director: Celestino Portela Director Adjunto: Fernando Sampaio Maia Colectivo Editorial - Fundadores LAF: Alberto Rodrigues Camboa; AntĂłnio LuĂs Carneiro; Carlos Gomes Maia; Celestino Augusto Portela; Joaquim Carneiro Processamento de Imagem e Design: Joaquim Carneiro Coordenação CientĂďŹ ca: J. M. Costa e Silva SupervisĂŁo Editorial e GrĂĄďŹ ca: Anthero Monteiro Colaboração do TOC, Belmiro da Silva Resende Periodicidade: Quadrimestral Assinatura anual: 30 euros Assinatura auxiliar: 50 euros
Publicidade: Telef.: 965 310 162 | 256 379 604 Fax: 256 379 607 Tiragem: 400 exemplares Edição: N.Âş 36 - Fevereiro de 2014 PrĂŠ-impressĂŁo, ImpressĂŁo e Acabamento: Empresa GrĂĄďŹ ca Feirense, S. A. Apartado 4 - 4524-909 Santa Maria da Feira Sede Social: EdifĂcio Clube Feirense - Associação Cultural Vila Boa - 4520-283 Santa Maria da Feira Email: villadafeira@gmail.com Email da direcção: carla.gab.dr.portela@hotmail.com http://www.villadafeira.blogspot.pt/ DepĂłsito Legal: 180748/02 ISSN: 1645-4480 Reg. ICS: 124038
Este nĂşmero: 15 euros Pagamentos por: TransferĂŞncia bancĂĄria NIB 007900001127152910124 Cheque Ă ordem de LAF - Liga dos Amigos da Feira Capa: FrontispĂcio do Foral da Vila da Feira e Terra de Santa Maria concedido por D. Manuel I em 10 de Fevereiro de 1514. Imagem cedida gentilmente pela Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira. FotograďŹ as: Ă“scar Maia, J. M. Costa e Silva, Filipe Pinto, Biblioteca Municipal, Gabinete da Comunicação Social, Arquivos particulares, LAF e Fotos Web por AntĂłnio Madureira. Redacção e Administração: "QBSUBEP t 'FJSB
DepositĂĄria: Livraria VĂcio das Letras Rua Dr. JosĂŠ Correia e SĂĄ, 59 4520-208 Santa Maria da Feira Apoios:
- Câmara Municipal Santa Maria da Feira - UniĂŁo das Freguesias, Santa Maria da Feira, Travanca SanďŹ ns e Espargo - IrmĂŁos Cavaco, S.A. - Termas das Caldas de S. Jorge Sociedade de Turismo de Santa Maria da Feira - PatrĂcios, S.A. - Central LobĂŁo.
SUMÁRIO Pórtico Gil Ferreira
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Mensagem Ana Paula Portela
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Poesia Mário Anacleto
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Foral da Vila da Feira e Terra de Santa Maria Comemoração dos 500 anos Francisco Ribeiro da Silva
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Poesia Sérgio Pereira
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Homenagem Celestino Portela
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Os Livros na Vida de um Pároco de Aldeia Cândido Augusto Dias dos Santos
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Castelo da Feira Manuel Leite
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O Percurso incomum de um Historiador Invulgar: Em Torno da Obra Historiográfica do Padre Domingos A. Moreira Luís Carlos Amaral
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No Centenário do Nascimento do Dr. Henrique Veiga de Macedo Francisco Azevedo Brandão
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Poesia H. Veiga de Macedo
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Palavras Proferidas a 14 de Abril de 2000, no Hotel Meridien. Lisboa. No Acto de Apresentação Pública do Livro “Salazar — Memórias Para Um Perfil”, H. Veiga de Macedo 6
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Poesia H. Veiga de Macedo
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O Clero nas Freguesias da Diocese do Porto em 1821 Domingos Azevedo Moreira
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Limites e Desafios aos Percursos Individuais Escolares Maria Teresa Leão
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Poesia João Alecrim
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Entre – Guerras Filomena Pinheiro
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Desde o Tempo de Meu Pai, em Coimbra. Gaspar Moreira Cardoso da Costa
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A Roda Jorge Augusto Pais de Amaral
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Poesia Anaas
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Do “Jardim das Tormentas” a “Um Escritor Confessa-se” Manuel Lima Bastos
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José Martins Garcia - O Iconoclasta dos Falsos Deuses Maria da Conceição Vilhena
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Poesia Francisco Pinho
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Anthero Monteiro, Sulcos da Memória e do Esquecimento, Porto, Corpos Editora, 2013 Francisco Ribeiro da Silva
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Sulcos da Memória e do Esquecimento de Anthero Monteiro Miguel Carvalho
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Gavetas das Cores dos Dias de Manuela Correia Anthero Monteiro
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Poesia António Madureira
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O Eclipse do Sol de 17 de Abril de 1912 Manuel Valente Bernardo
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Pintura Joaquim Carneiro
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Postais do Concelho da Feira Ceomar Tranquilo
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Poesia H. Veiga de Macedo
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Feira - Rio Cáster Manuel Leite
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Poesia António Madureira
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ANTHERO MONTEIRO, SULCOS DA MEMÓRIA E DO ESQUECIMENTO, Porto, Corpos Editora, 2013 Francisco Ribeiro da Silva* Apresentação do livro Castelo da Feira 30.11.2013
1 - Reunimo-nos aqui, neste venerando e misterioso castelo, a celebrar, desta vez, não as justas ou os torneios cavaleirescos mas as Letras e o Espírito; a homenagear não as façanhas militares dos condes e das suas hostes mas a criação e a deleitação poéticas de que também eram feitas a «corte na aldeia e as noites de inverno» de que falou Francisco Rodrigues Lobo. O livro que nos congrega chama-se Sulcos da Memória e do Esquecimento e o autor é Anthero Monteiro. 2.1 - O Autor Natural de S. Paio de Oleiros, é licenciado em filologia românica e mestre em Estudos Portugueses. Foi professor, é autor de livros didáticos, tem realizado trabalhos de história local, um dos quais tive o gosto de prefaciar. Feirense emérito, * Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, jubilado.
estudioso das tradições concelhias e dos autores da nossa Terra, como o grande Manuel Laranjeira, de que é especialista. Anthero Monteiro é um homem de cultura e fez dos livros um inseparável companheiro de viagem. O género em que mais tem sobressaído é a poesia. Não só como escritor, mas também como divulgador de composições poéticas, dele e dos outros. «Uma vida a divulgar a poesia e os poetas» como declara no seu blog Praça da Poesia. Como autor, é um poeta de verso fácil, não rebuscado, que consegue encaixar as palavras umas nas outras com beleza, sem violência nem constrangimentos e que usa o verbo para transmitir sentimentos e emoções, mas também ideias, inquietações e interrogações. Como é próprio da poesia e dos poetas. Como escreveu Maria Helena Padrão no Prefácio do livro que hoje lançamos, Anthero Monteiro é um autor que «a memória há-de lembrar nas páginas de ouro da literatura portuguesa contemporânea». Tenho a certeza disso. E são já muitos os livros dados à estampa. Na minha pesquisa aligeirada na Internet, encontrei pelo menos 7 títulos, para além do presente, a saber: Canto de Encantos e Desencantos (ed. de Autor 1997; 2.ª Edição, Corpos Editora, 2004); O Remédio é Naufragar (Elefante Editores, 1998); Com Tremura e Desamor - Tubos de Ensaio sobre a Decadência (Corpos Editora, 2001); Cenas Obscenas - Cigarrilhas Poéticas (Corpos Editora, 2001);
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Esta Outra Loucura (Corpos Editora, 2002); Desesperânsia (Corpos Editora, 2003); Sete Vezes Sete Nuvens, (Egoiste, 2010). É, pois, uma honra e um prazer estar neste lugar e nesta função, não obstante as minhas circunstâncias. Que circunstâncias? 2 – As minhas circunstâncias Não sendo eu poeta nem tão pouco um declamador, (e na adolescência esforcei-me muito, talvez mais por obrigação curricular do que por prazer) sinto-me um tanto ou quanto embaraçado neste papel de apresentador de um livro de poesia ou de prosa poética, se preferirem. Não que não goste de poesia. Mas a minha experiência de apresentador de livros, tem andado quase sempre à volta de livros de história. Livro de poesia é, pois, a primeira vez. Daí um certo embaraço que não significa qualquer constrangimento.
Já depois de ter sido convidado pelo Anthero Monteiro, caiu-me debaixo dos olhos um texto do meu amigo Prof. Daniel Serrão, publicado na Revista AS ARTES ENTRE AS LETRAS, em que ele afirma, a propósito de uma apresentação de um livro de poesia de Ricardo Guimarães, que ler poesia «é um exercício difícil, pesado e penoso». Porquê? Porque a invenção da poesia é um acto livre de criação intelectual e por isso não tem que obedecer a regras filológicas nem semânticas e é escrita numa metalinguagem cuja decifração e sentido está para além do sentido comum e corrente. Daniel Serrão, como bom patologista, acrescenta que penetrar no mundo da biografia mental do autor é sempre um exercício complicado, às vezes é mesmo uma impossibilidade. Sem dúvida, acredito que muitas vezes assim será. Todavia, no meu entender, a dificuldade dessa impenetrabilidade pode converter-se numa vantagem para o leitor: na sua ânsia e no seu afã de entender o pensamento do
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Momento de apresentação do livro na Capela de N.ª S.ª da Encarnação, junto ao Castelo.
autor, pode encontrar sentidos outros os quais provavelmente nunca passaram pela cabeça de quem escreveu mas que não deixam de ser legítimos. Isso acontece muitas vezes na crítica literária, para o bem e para o mal, para exaltar ou apoucar um autor. Pode dar-se o caso de o crítico não ter percebido nada do que o poeta quis dizer, como também pode suceder que as palavras do poeta o transportem para mundos de transcendência que não estavam no horizonte do escritor. Ou seja, se o poeta pode recorrer à metalinguagem para não deixar aprisionar nem agrilhoar o seu pensamento, o leitor pode apelar a uma espécie de metaentendimento para interpretar livremente o que lê. Aliás, todos nós que escrevemos, quando lemos ou ouvimos apreciações aos nossos textos, quantas vezes deparamos com interpretações das nossas palavras, que não estavam no nosso consciente. Isso não é necessariamente um mal. Talvez ao contrário, uma vez que tal generosidade interpretativa pode enriquecer o objetivo inicial e ampliar o campo da significação perseguido pelo autor. Creio que se passa algo de semelhante quando nos colocamos perante uma obra de arte não figurativa, surrealista, puramente abstrata ou cujo sentido não é óbvio. Pode ser divertido e até inspirador para o pintor ouvir o que cada um vê na representação pictórica que propõe. O mesmo acontece com o poeta. Desde que põe as palavras no livro deixa de ser dono e senhor delas. O dono, em certo sentido, passa a ser o leitor. Pode até acontecer que as palavras do léxico não sejam suficientes para o que o poeta pretende transmitir. Daí a necessidade de palavras novas que os autores sentem. Neste livro não encontrei nenhum exemplo, mas recordemos que um livro do nosso poeta leva o título de «Desesperância». 3 - O livro Devo dizer em primeiro lugar que a leitura de Sulcos da Memória e do Esquecimento não foi para mim um exercício pesado nem penoso. Pelo contrário, foi agradável e estimulante. A começar pelo enigma do título: contraste entre a memória e o seu oposto que é o esquecimento. Recordar para esquecer poderia até ser o subtítulo do livro. Sulco aberto, o da memória, sulco desparecido ou alisado – o do esquecimento. O recurso ao contraste e à aproximação dos opostos parece-me, aliás, um artifício, uma estratégia a que o autor recorre frequentemente. Logo no poema de abertura –
«primeiros passos» – o poeta celebra a vida e a morte, o sonho e a ilusão, o drama e a euforia. Mas há mais: o contraste comovente entre o pai que corre para o filho e o filho que tenta, claudicante, chegar até ao pai. O contraste entre o título do primeiro poema: «primeiros passos» e o título do último – «últimas palavras». Como se o livro no seu conjunto nos quisesse transmitir as peripécias e contradições da caminhada de uma vida, desde o berço ao sepulcro. Contraste entre a punição muito severa da mãe e o amor maternal que ao mesmo tempo dela brotava; o contraste entre o medo instintivo da centopeia e a violência extrema como estratégia de defesa, uma espécie de resposta radical ao terror também radical. Os sulcos da memória bem como os do esquecimento – aqueles episódios ou cenas que quereríamos esquecer ou que a evolução biológica a isso conduz – fazem parte da nossa identidade, como algo que se nos cola à natureza. E como sulcos que são, são regos, rastos, pregas e fendas, feridas que se podem disfarçar mas provavelmente não se podem cicatrizar e destruir a menos que, como para disfarçar o sulco na madeira, aplainemos todo um conjunto, mas perdendo substância. Será possível operar isso na mente humana? A Memória que se subentende no livro é a memória pessoal, nem sempre de coisas agradáveis, mas também a memória coletiva. O Infante de Sagres que inspira o poema «Promontório», ainda que eventualmente resida na memória individual de cada um de nós, faz parte da memória do povo português. O livro contém 35 poemas. Podiam ter sido 36 ou 37. Ou 34. Mas não. São 35. Provavelmente não é por acaso. Anthero Monteiro conhece e parece gostar de brincar com o simbolismo dos números. Haverá neste número algum simbolismo? É uma pergunta que fica para o autor responder. O tema fulcral do livro parece-me ser a vida, com muitos subtemas que também são parte da vida: a memória; a infância, a adolescência, a escola, as recordações dos mestres, nem todas iguais, nem todas positivas, prevalecendo como memórias que se querem apagar as recordações da má pedagogia e dos maus pedagogos. Mas também se exalta a beleza da natureza, e não se esquecem os amores, uns inocentes, outros mais violentos na sua componente física, uns fiéis, outros traidores, uns fugazes outros perenes. Os medos da infância, as experiências religiosas um tanto ou quanto traumáticas como a revelada pelo poema Confissão – e o irónico propósito firme de emenda: «emendei-me para sempre …… nunca mais disse a verdade».
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As coisas banais de que é feita a vida na aldeia mas que, convertidas em experiências individuais nunca são banais – as tradições locais, o compasso na Páscoa, os lutos, os dramas que todos experimentam alguma vez, as doenças, o alzheimer, a velhice, a cadeira de rodas, a demência, as depressões, a morte. Ah! E os sentimentos! Poema «Um domingo e muitos mais». O que faz o amor? «porque passou finalmente a haver domingo». «Prefiro continuar a ver o atlântico nos teus olhos» - que bela frase para exprimir um sentimento profundo e que é um verdadeiro sulco na memória. As inquietações profundas da existência humana, do sentido da vida, a existência de Deus, a religião, Como era bom acreditar sem nada questionar - como sugere no poema «Páscoa».
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Orlando da Silva lê um dos poemas do livro.
«E depois?» Poema curioso: como se faz a transição entre a narração de uma historieta deliciosa que se viu num filme com o interlocutor ansioso a perguntar: e depois, conta lá, e depois - e a pergunta essencial sobre o fim da cada um e da própria humanidade: e depois? E depois? A resposta final que é a resposta possível cheia de dramatismo: Depois fez-se noite e eu já não vi mais nada. 4 - Será o livro uma autobiografia? Maria Helena Padrão no Prefácio inclina-se a vê-lo nessa perspetiva, explicando, no entanto, que se trata de uma reconstituição interpretativa e metafórica das memórias da infância.
Na verdade, o autor recorre frequentemente à primeira pessoa do singular. Mas, nestas coisas, convém não esquecer o dito de Fernando Pessoa. Lembram-se? «O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente» Apesar disso, eu creio que estes poemas, se não brotam de uma experiência pessoal e realmente vivida, nascem pelo menos do conhecimento partilhado de que alguém experimentou essas vivências e também da observação atenta da realidade circunstante. Por isso, pode, de facto, existir uma raiz biográfica na sua inspiração. Mas não passarão de pinceladas biográficas… Por exemplo, o poema « 104 palmatoadas» hoje a lembrança de tudo isso é entretecida de glória como a palma do martírio de um santo cuspido seviciado estracinhado mas seria bom ter esquecido que me obrigaram repetidas vezes a exercer violência sobre os meus iguais, pois era ao melhor no ditado que se incumbia de punir os erros, uma palmatoada por cada desacerto Este poema tocou-me especialmente porque de repente eu próprio dei comigo a recuperar memórias da infância, porque na minha longínqua 4ª classe vivi uma situação semelhante: também eu fui incumbido de dar reguadas nas mãos de um colega da escola, punir os seus erros no ditado. Mas, sendo de propósito demasiado leve e suave nas palmatoadas, a jovem professora irritou-se, pegou na régua e na minha mão e ensinou-me como é que se davam bolos a sério … 5 - Gostaria de acrescentar mais algumas notas de leitura Os autores do Autor quem são? Antero, Bocage, Camões, Guerra Junqueiro, António Feijó, Almeida Garrett são citados. E o José Régio. Mas sem fazer alusões explícitas, julgo encontrar em certos poemas alguma inspiração de Fernando
Pessoa e de Manuel Laranjeira. Mais uma questão para o Autor responder se assim entender. Outro dado: a Poesia como forma cívica de intervenção e crítica ao tempo presente. Por exemplo, mais uma vez o poema «Promontório». «o país das maravilhas é agora. A terra das maravalhas e dos maravelhos e há mesmo quem proponha que o promontório passe a chamar-se busílis». Ainda mais interventivo talvez o poema – «o mundo parou» (ainda que seja passível de outras interpretações) em que se passa da escala individual para a dimensão cósmica. Sim é urgente uma grande catástrofe Porque é preciso recomeçar tudo de novo O sarcasmo com toques de humor do poema «Obrigado sou feliz». Todos a preocuparem-se comigo – o senhor Presidente e os senhores Ministros, os partidos políticos, as seguradoras, as empresas de alarmes, os bancos, a ONU e os americanos, os padres, os bispos e o papa, a ubiquidade do anjo da guarda e dos arrumadores de carros, o euromilhões… a sério não se preocupem não percam tempo comigo… estou condenado a ser feliz a ser feliz a ser feliz e até o portal das finanças não deixa de pensar em mim.
Destacaria ainda a antevisão divertida do que pode ser o último momento da vida no poema «Últimas Palavras» que é um exercício curioso de pesquisa sobre o que alguns famosos disseram ou pensaram ou desejaram nos últimos instantes de vida… Das memórias de que trata o livro fazem parte pessoas concretas, que o autor nos apresenta: o fotógrafo Evaristo, o Jorge de mão submissa, Benilde, o primeiro grande amor, o Diretor que era uma besta, o professor que era um padre rubicundo, o senhor Fonseca que entendia que a via sacra devia ter mais uma estação, a Dona Josefa que não se
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Alguns dos participantes na apresentação do livro.
lembrava que o seu marido, o senhor Calçada, fora enterrado na véspera, o velho João Fortuna que se perdeu no rio. Entram nesta lógica os lugares e os sítios do poeta: esta terra da Feira e o Castelo (expressos no poema «A alma do Rossio»), o rio Cáster, Espinho, Miramar e o Senhor da Pedra, o Ribeirinho da terra que se imagina ser de S. Paio de Oleiros. A igreja em cujo adro havia duas enormes palmeiras… A torre dos Clérigos, na cidade mais ao longe com a sua força centrípeta… A Falperra lá para os lados de Braga. Que significado têm estas referências concretas e objectivas? São para se tomarem à letra? Foram lugares inspiradores? Talvez.
Mas é bom recorrermos à memória escrita e lembrarmos uma entrevista que Anthero Monteiro deu a um jornal de Santa Maria da Feira: «O poeta é alguém que está disponível para se aperceber de que a vida não é apenas o que nos surge perante os olhos imediatamente e logo ali no primeiro plano. Há muito mais por detrás. E o poeta abre essa cortina para o outro lado. Pode partir do quotidiano e de tudo o que lhe é familiar, mas desvela e cria um mundo outro, hipoteticamente algo mais habitável do que o real». Embora escritas antes da publicação deste livro, elas constituem uma boa chave interpretativa e uma boa pedagogia para a sua leitura…
SULCOS DA MEMÓRIA E DO ESQUECIMENTO de Anthero Monteiro Apresentação no Olimpo (Bar – Café) – Porto – 18-12-2013 Miguel Carvalho* ANTHERO MONTEIRO – Instigador e inspirador; o poeta; o homem Não sou um teórico da literatura. Não esperem de mim as asas e a densidade de quem habita permanentemente a casa da literatura. Mas vou falar-vos à flor da pele, terra à terra, do homem, do poeta e do livro, tentando honrar as palavras naquilo que elas verdadeiramente querem dizer num tempo em que à palavra não é dado seu valor facial. Conheci primeiro o divulgador, depois o escritor. O Anthero ensaísta, poeta, homem dedicado à Cultura local e nacional, ativista de várias independências de espírito, servidor voluntário e entusiasta do seu naco de terra, da sua comunidade e das suas tradições, esse conheci-o mais tarde, já tão certo de encontrar o mesmo homem que eu via e ouvia contaminar os outros com os sobressaltos das palavras dos poetas.
Ele prefere definir-se como socorrista na vertente cultural e associativa. E é um belo autorretrato numa época em que vivemos em permanente necessidade de cuidados intensivos para desafiar os ventos do avesso. Primeiro, o Anthero foi o instigador, inspirador e companheiro de tertúlias poéticas das quais fui passageiro muito intermitente. Do saudoso Pucaro´s à Onda Poética, em Espinho, passando pelas Quartas Mal Ditas e o Quarto Crescente da Biblioteca Pública de São Paio de Oleiros. Há mais de 15 anos que o vemos, ouvimos e lemos. E também, como na canção, não o podemos ignorar. Bem pelo contrário: devíamos celebrá-lo mais e mais. A sua dedicação à divulgação da poesia atravessa territórios da infância, noite e dia, geografias várias, todas sentimentais. São escolas, bares, bibliotecas, livrarias, centros culturais, também a rua. A lê-lo e a ouvi-lo aprendi que as águas da poesia navegam livres e não obedecem a molduras, nem a preconceitos de qualquer espécie, mas tão só, parafraseando Jorge de Sena, a uma fiel dedicação à honra de estar vivo. O Anthero, a poesia que faz e que traz pela mão, é também um encontro permanente com o outro, mesmo quando se desvenda a si próprio, como no livro que hoje vamos celebrar.
*N. do Porto, grande repórter da revista Visão desde dezembro de 1999. Concluiu o curso de Radiojornalismo do Centro de Formação de Jornalistas do Porto, tendo trabalhado depois no Diário de Notícias e no semanário O Independente. Prémio Orlando Gonçalves (Jornalismo) – 2008 e Grande Prémio Gazeta, do Clube de Jornalistas – 2009. Autor dos livros Álvaro Cunhal – Íntimo e Pessoal, Dentada em Orelha de Cão, Aqui na Terra, Lúcio Feiteira – A História Desconhecida e A Última Criada de Salazar e de vários textos jornalísticos e literários dispersos por obras e publicações estrangeiras. Alguns dos seus trabalhos têm merecido referência em títulos como The New York Times, El País, Daily Telegraph, Veja ou O Globo.
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ao Benfica, também ele natural de São Paio de Oleiros. Não sei se dali sairia grande espingarda, mas os golos do Anthero são, para nosso regozijo, de letra, que também os há. A poesia, a música e o teatro foram, desde cedo, tomando o lugar de outras tentações e sonhos, tendo o ofício de escrever prevalecido, também no jornalismo, mas sobretudo na literatura. Só podemos agradecer. O poeta que está hoje aqui diante de vós escreve desde tenra idade, mas não se precipitou na ânsia de publicar, o que poderia levá-lo a renegar as primeiras angústias diante da folha branca. Hoje, são várias as obras publicadas, algumas com várias edições, sempre alargando o leque temático, sempre desafiando convenções, testando, experimentando e até virando do avesso o pessimismo intenso, transformando-o, por vezes, num humor que se transmite por contágio. O poeta que está hoje aqui diante de vós entende que a poesia não é persuasão nem visa a mudança de ideias. Anthero Monteiro escreve sabendo que o poeta é o ser disponível para tentar iluminar a vida secreta das palavras e destapar, como ele próprio diz, esse lugar «mais habitável que o real» que é a poesia.
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ANTHERO MONTEIRO – O livro Quando há dias nos encontramos para trocar ideias sobre esta sessão e o livro, falei-lhe do espanto que me assaltou durante a sua leitura.
Miguel Carvalho e Anthero Monteiro.
Está diante de vós o homem, o poeta que começou a escrever poesia aí pelos seus 13 anos, a brincar com as palavras, porque outros brinquedos não havia. Os encorajamentos vieram de professores e também pela via paterna, correspondência estimulante que atravessava o oceano, vinda da Venezuela, onde o pai estava emigrado e se tornava, pela palavra e pelos afetos, inspirador. A primeira tentação foi ser futebolista, ou não tivesse ele na família o grande Monteiro da Costa, médio do FC Porto, ainda hoje, creio, um dos homens que mais golos marcou
Mesmo sendo de uma geração mais nova, mesmo tendo estas memórias e esquecimentos a corrente sanguínea de um tempo que é o dele, sentimo-nos parte dos poemas, narrados como se estas histórias e estes poemas nos tocassem com os dedos, por dentro dos dias, ora carregando angústias idênticas, ora descobrindo laços de ternura que só o Anthero consegue costurar por dentro de palavras que doem. Há nestas páginas, das mais luminosas do poeta, a transgressão dos dias claros, tripas e coração ao relento, sem remorsos nem lamentos, ainda que aqui caminhem, quais fantasmas, alguns rancores já cansados. Temos, ao mesmo tempo, uma galeria de personagens e episódios atraídos para uma cumplicidade narrativa e poética, que vai buscar influências, pelo menos, ao norte-americano Edgar Lee
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Outro momento da apresentação no Olimpo Bar (Porto).
Masters, a quem se devem inspirados atrevimentos realistas, por vezes dolorosamente narrados através do equilíbrio precário de uma poesia que não perde a ligação ao quotidiano, onde abundam histórias das pessoas que conheceu e situações que vivenciou. Anthero Monteiro assim faz. Dono e senhor das suas horas, leva-nos neste livro por narrativas poéticas ou uma poesia narrada, mas onde, atendendo algumas temáticas, seria expectável que não florescesse sequer a alma de um verso. Mas é assim o Anthero, poeta redentor destas páginas: semeia poesia na terra queimada e até a partir de anjos caídos.
Desfilam aqui os primeiros passos. As primeiras sílabas e lágrimas. Os encantos e desencantos do crescimento. Os amores da festa de agosto, lumes e febres que não voltam. Os sonhos e devaneios dos homens, aqui e ali, como diria Torga, com facadas cegas e raivosas e ternuras lúcidas e mansas, acima e abaixo da sua altura. Desfilam os dias a saber a Cinema Paraíso. Também o tempo dos pés descalços, dos medos e da crueldade sentada à mesa. Onde a infância nem sempre é esse território sagrado que guardamos com doçura e onde as palmatoadas eram servidas entre iguais ordenadas pela brutalidade nunca saciada dos deseducadores da inocência.
Mas também, aqui e agora, momentos urdidos com a doçura do que há de mais eterno, e por vezes a ver o Atlântico noutros olhos, com o coração. Sulcos da Memória e do Esquecimento são pedaços de céu e de inferno - ou talvez a distância percorrida entre eles. Páginas que libertam a poesia e o poeta a partir desta narrativa de feridas, rugas e dores da existência. Instantes à luz do dia, saídos das entranhas, das sombras, do mastigar dos dias impiedosos, que o poeta estende com as mãos, descalço no mundo, por fim cintilante e belo. Para nós.
Ainda a apresentação no Olimpo
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Li Viana lê um poema do livro.
Mirró Pereira lê outro dos poemas.
Capa do livro.
GAVETAS DAS CORES DOS DIAS de Manuela Correia
Apresentação no Orfeão da Feira – 7-12-2013 Prefácio de Anthero Monteiro*
Poesia da leveza e da frescura Há vários anos já que venho chamando a atenção dos amantes da literatura, da arte, das coisas belas da vida para a poesia de Manuela Correia. Não tenho, porém, a pretensão de ser ouvido, mas também não tenho ficado à espera que, por qualquer sortilégio, o público se digne reparar naquilo que, a meu ver, merece a pena ser realçado. Este novo livro da autora de Poemas Tri Angulares e de outros sabores poéticos que vimos degustando desde as suas primícias, marcadas por uma poética que muito nos fazia ressaborear a de David Mourão-Ferreira, constitui uma inflexão, já antes tentada, para, de uma forma ainda mais adulta, se libertar da sombra protetora do seu mestre maior. A beleza poética com que sempre nos surpreendeu continua
a morar nestas páginas, mas, volvidos alguns anos desde a anterior publicação, os poemas assumem agora outra mancha gráfica, outra forma poética, e os temas versados tomaram alguns caminhos novos. Embora haja quem ache abusivo evidenciar os laços que ligam a escrita ao braço que a produz, quem segue de perto a vida desta autora dificilmente conseguirá dissociar a sua obra da sua biografia, ou, se preferirem, o seu espírito do seu corpo. A partir dos versos que aqui encontramos parece-nos possível reunir toda uma eloquente sintomatologia dos seus males físicos ou, pelo menos, indícios muito manifestos de que esse corpo nem sempre colabora como seria de esperar e que o espírito procura a liberdade que ele não sabe oferecerlhe. Surgem aqui ou ali uma inesperada bradicardia, estímulos sensoriais que se transformam em pontos de dor ou de desconforto: «avanço os braços tão sem força / ergo-me com um ranger nas costas / como se carregassem cem anos de pesadelos». Esse corpo que, inopinada e frequentemente, lhe tolhe os movimentos leva o sujeito poético a sair para a rua «à procura da [sua] liberdade». O espírito esforça-se por opor robustez a esta fragilidade corpórea e promete não se deixar vencer pela «deriva» e fazer da sua dona alguém que assenta «com firmeza os pés na terra» e assume compromissos de lutadora e de cidadã interveniente. O poema em que esta posição
* Poeta e escritor natural de S. Paio de Oleiros, autor de oito livros de poesia, de vários ensaios sobre história regional e sobre cultura portuguesa, de livros didáticos publicados em Portugal e em Cabo Verde e de vários estudos insertos em revistas universitárias e outras. Lançou recentemente o livro de poesia Sulcos da Memória e do Esquecimento, da Corpos Editora.
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se expressa intitula-se «Dos ombros para cima» e essa é a afirmação de uma vontade contrariada, afinal a confissão da fragilidade, já admitida no poema “Das coisas”, de quem, vendo-se demasiado pequena para ir à ação, sente como que o remorso de ter de optar pelo «mais cómodo» – assistir em vez de intervir. Dá a impressão de que o eu poético se sente desvanecer, que aquele peso-pluma corpóreo da autora ensaia transformar-se em nuvem, como propõe aquele poema de José Gomes Ferreira quando diz que «devia morrer-se de outra maneira». Aliás, essa transformação, que seria uma espécie de comunhão com todos os seres, com a Natureza, com o Indizível, é antecipada de certa forma pelo que se descreve no belíssimo poema “Entre sol”:
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O nascer do sol já cresceu dois palmos respirar a quietude transparente do ar abrir os braços como ramos dengosos e aclarar os sentidos até ao incólume para afagar o licor da flora a entrar em nós pela fechadura do lado esquerdo fazer do dia o início de pontes de mãos dadas alcançar nas mãos rendas de espuma voar no eflúvio das borboletas apostar somente no jogo da verdade aprender de cor a cor da música saber de um poema ainda sem ser entrar na longa planície da beleza Trata-se aqui de uma espécie de desprendimento ascético, um arrebatamento extático ou, pelo menos, o seu anseio, ideia para o qual confluem inúmeros termos e expressões desta e das demais estrofes que, de algum modo, remetem para a isotopia da delicadeza e do excelso: sumaúma, o azul do céu, a quietude transparente do ar, as pontes, as rendas de espuma, o voo, o eflúvio das borboletas, a música… Enfim, a leveza. Sim, a leveza que Italo Calvino considerou a primeira, talvez a mais importante, das suas Seis Propostas para o Novo Milénio, que escreveu para um ciclo de conferências a realizar na Universidade de Harvard, Cambridge, no Massachussetts. A leveza calviniana seria um dos atributos ou valores essenciais da Literatura e definir-se-ia como uma força impulsionadora, capaz de subtrair peso aos rigores do Mundo. Seria uma
espécie de estratégia para se adquirir uma nova perspetiva das coisas espinhosas da vida, um contributo para a dissolução da espessura ou “compactidade” do mundo. O próprio Calvino ter-se-ia preocupado, nos seus trabalhos, em «subtrair peso ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades e, sobretudo, à estrutura do conto e da linguagem». Leveza não significa, no contexto do que pretende o romancista italiano, desresponsabilização, frivolidade ou fuga ao real. E explica: «Quero dizer que tenho de mudar o meu ponto de vista, tenho de observar o mundo a partir de outra ótica, outra lógica e outros métodos de conhecimento e de análise». Segundo ele, a própria ciência moderna assenta em entidades delicadíssimas, como o DNA, os neurónios, os quarks, os neutrinos, os bits da informática, a qual se fundamenta muito mais no software do que no hardware. A sensação de leveza que ele preconiza se deva transmitir ao leitor está bem presente em grande parte dos poemas deste livro. O poema “Música”, por exemplo, é um exercício habilidoso para aliviar todas as coisas do seu peso. Nele se espalham flores de algodão, penas, plumas, notas musicais. Perpassa a brisa pelo poema “E…”, onde se propõe que «fosse um fumo branco / a certidão da morte». Não será por acaso (mas há felicíssimos acasos) que um destes textos de Manuela Correia exibe o título de “Poema da leveza”, no qual «são interditos os excessos / e poucas são as coisas permitidas» e em que as palavras parecem ter sido todas escolhidas uma a uma para tudo suavizar, serenar, atenuar, silenciar, como se tudo se transformasse em mera “espuma que um bote traz consigo / para sustentar a leveza do poema». No poema “Surdina”, «o amor foi simples / mas cavado até ao limite». No entanto, pouco mais se podia ver, no penumbroso quarto, do que os corpos silenciosos refletidos no espelho e mais não se ouvia do que a «surdina da chuva» e a crepitações dos gestos. Apesar da sua exiguidade, o poema “Poder” é um modelo enormemente persuasivo desta arte de retirar espessura e gravidade através de uma espécie de “eufemismização” que proporciona o próprio levitar: Poder chorar de dia como quem canta e poder gritar de noite como quem sonha
poder descobrir um roteiro de margens como brisa e poder construir um barco como asas poder perder o medo como quem desmaia e poder ganhar do céu o outro lado Outras formas de leveza estão ainda escondidas nestas Gavetas. Surgem aqui ou ali certas notas de humor e ironia. No poema “Cama”, tudo dá a entender, desde o título e até quase ao fim, tratar-se de uma cena erótica, mas acaba por desembocar em algo inesperado num texto poético. Em “Acordo”, a construção de um novo hipermercado dá azo a algumas jocosas considerações. E em “Definitivamente”, o sujeito poético ensina-nos como diluir o vazio, o tédio, o cansaço: ir jantar fora… no jardim da casa. Finalmente, refira-se o poema “Exceto” que, em quase tudo, faz lembrar os versos de “À tarde” de Manuel Laranjeira, que, temos a certeza, Manuela Correia leu e ouviu ler muitas vezes:
A autora e o prefaciador entre os editores.
A tarde lenta cai. E cai também Uma melancolia venenosa, Meu Deus! Que se não sabe de onde vem… O poeta de Comigo alude à tristeza das coisas, à solidão desesperada em que todos vivem e fala de melancolia, mas de uma melancolia assoberbada por um modificador pouco complacente: “venenosa”. Em Manuela Correia, a melancolia é uma tristeza mais ténue, apenas nevoenta e os versos finais trazem consigo alguma esperança, no mínimo a eventualidade de um amigo chegar, razão pela qual fica pelo menos uma lâmpada acesa cá fora. Como sabemos, para Laranjeira, essa seria uma hipótese que nem sequer seria de considerar. Para Calvino, o humor e a melancolia são formas de leveza: «Como a melancolia é a tristeza que se torna leve, assim o humor é o cómico que perdeu o peso corporal». Procurar a leveza, segundo ele, é um modo de reagir ao peso de viver e uma literatura nela apoiada é uma literatura que reforça a sua função existencial. É assim que o sujeito poético encontra uma forma de sobrevivência, mesmo num mundo tão hostil.
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Já vimos que, mercê dessas adversidades, o poema em Manuela Correia é habitado pelo sofrimento e pelo desencanto («as pétalas felizes do amor / são restos de penas e restolho»; «o que era já não há») e, em redor, crescem as deceções e preocupações pelo futuro de um país onde tudo parece desmoronar. «Como foi possível deixarmos que isto voltasse a acontecer?» – interroga-se o sujeito poético, atento a tudo: aos salários encolhidos, às fábricas encerradas, às férias subtraídas, às promessas eleitorais traídas, às mulheres que «se desfazem para pagar contas e pôr comida na mesa», aos livros que ficam a ganhar traça nas livrarias, à impossibilidade de se ir mais longe ao lançamento de um livro de um poeta predileto. E, como se ouvisse os ecos do poema de Rafael Alberti («Que cantam os poetas andaluzes de agora?»), não deixa de elencar muitos outros problemas que enchem a «praça do nosso descontentamento»: o pão que falta, a emigração incentivada, os incêndios a vitimarem os heróicos soldados da paz, os «abutres» do poder, ocupados com o fausto nos seus corredores, a ficarem-se pelas desajeitadas condolências. Tudo adquire visibilidade poética (outro dos valores calvinianos) com imagens bem imaginativas que servem como indícios da profunda crise que se atravessa: «o carteiro sem boas notícias a olhar o rio que passa / um cão latindo lancinante» ou «a vizinha a estender a roupa como se desfiasse um rosário de ossos». «Olhai alto!», «Cantai alto!» grita–se no mesmo poema de Alberti – e é o que faz o(a) poeta, socorrendo-se, como dissemos, de toda a elevação própria da leveza, da imaginação, do sonho, do grito, do próprio silêncio, da reinvenção dos gestos de amor com os outros, com os amigos, com a natureza, com as rosas com quem dialoga. É a elevação da verdadeira poesia porque «as pessoas que respiram palavras / e delas fazem o pão e a casa até /no barco da incerteza se entendem». Um dia, ouvimos Eugénio de Andrade falar da sua poesia e nunca esqueceremos que ele citou Goethe para escorar a sua maior preocupação ao escrever: «A leveza é a qualidade máxima a que um artista pode aspirar». É por tudo isto que estas Gavetas que Manuela Correia abriu para o mundo, em vez do mofo que dimana de algo encerrado longo tempo, exalam a frescura da alfazema.
“Frescura” é um termo caro ao escritor, semiólogo e filósofo francês Roland Barthes. Opôs-lhe a noção de “fadiga”, referindo-se ao cansaço e ao desgaste provocados pelo estereótipo, aquilo a que também dá o nome de “discurso previsível”. O estereótipo, na etimologia grega, refere-se a um molde sólido, e é justamente a solidez, a espessura ou petrificação da linguagem e a repetição permanente do sentido que tornam insuportável aquilo a que ele chama “escrevinhação”. A frescura é, pelo contrário, a linguagem da “escrita”, usa uma estratégia de subversão, apoia-se na “significância”, que é a recusa de uma única significação e é o sentido «sensualmente produzido», nas raias do transe, não muito longe do delírio ou de uma certa paranoia. Já Teixeira de Pascoaes escrevia que «poeta quer dizer possesso». Já aqui transcrevemos parte do poema “Entre sol”, que é talvez o que mais poderia ilustrar esta ideia de um poeta que se deixa possuir. Mas poderíamos citar muitos outros deste livro, em que é mais evidente essa girândola de significações que parecem ter sido produzidas nesse transe a que aludimos. Apenas mais um exemplo desta frescura centrada num discurso totalmente imprevisível de um dos poemas dedicados a várias personagens da sua história pessoal: Guardei teu sol de dezembro e tua chuva de março o teu anel saturnino a tua tela predileta o teu cheiro a aloendro escancarado os oceanos que começam nos teus olhos as tuas camisas o teu jasmim que não regavas a tua madrugada onde eu colocava organzas as frases que não dizias mas pensavas os teus livros abertos de paisagens as tuas raízes de existir os teus frutos de seres o teu copo de porto onde afundavas segredos como navios. O poema prossegue neste tom de arrebatamento e o leitor pode concluir a sua leitura no corpo do poemário, achando aí fácil incentivo para viajar para todos os outros textos, na certeza de que demandará um outro país encantado e encantatório que não o defraudará. A leveza e a frescura serão as principais responsáveis pelo fascínio da expedição.
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Capa do livro.
Ficamos por aqui para não adiarmos mais essa jornada nem interferirmos mais no prazer que sabemos irão desfrutar. Não queremos parecer aqueles guias turísticos que se põem longamente a prometer o deleite para os olhos e para a alma e nunca mais encetam o passeio.
Boa viagem!
Os agradecimentos da autora no Orfeão da Feira.
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