Villa da Feira 12

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“A Guerra, em todas as suas múltiplas manifestações, anda sempre vinculada à ordem moral, porque ela é a consequência resultante dos desatinos morais dos homens – dos homens que a fazem ou dos homens que a suportam”. (1) D. Sebastião Soares de Resende.

Pórtico

Em 2006, 14 de Junho, perfazem-se cem anos sobre a data de nascimento de Dom Sebastião Soares de Resende, ilustre Santamariano natural de Milheirós de Poiares, figura grande de Portugal e da Igreja, “por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica Bispo da Beira” Milheirós de Poiares, o Concelho de Santa Maria da Feira, Portugal e a Igreja Católica não deixarão de comemorar este 1º. Centenário, de evocar a sua Obra e a sua Mensagem. A sua Mensagem é de plena actualidade, a exigir uma pausa de reflexão para os povos envolvidos em guerra, castigo para os que a fazem e castigo para os que a suportam. “Villa da Feira” apresenta estudos de várias individualidades que privaram de perto com Dom Sebastião Soares de Resende ou viveram o excelente da sua Missão: Dom Jaime Pedro Gonçalves, Arcebispo da Beira; Dom Eurico Dias Nogueira, Bispo de Vila Cabral, em Moçambique; Dom Carlos Moreira de Azevedo, Bispo Auxiliar de Lisboa; Professor Doutor Adriano Moreira, Ministro do Ultramar; Dr. António Almeida Santos, Presidente da Assembleia da República; Padre Manuel Leão, Presidente da Fundação Manuel Leão; Cónego Sebastião Brás, Director do Colégio de Ermesinde;

Dr. Soares Martins, ex-Secretário de Dom Sebastião; Dr. David Simões Rodrigues, que investigou na Torre do Tombo o arquivo político relativo ao ilustre Prelado; Alfredo Luz, Mestre pintor Santamariano, que desenhou o retrato de Dom Sebastião que constitui o belo motivo de capa; Dr. Roberto Carlos, que investigou a homenagem que lhe foi prestada pelo Município da Feira quando foi sagrado Bispo. Aos bibliófilos Magalhães de Lima e Ceomar Tranquilo agradecemos alguns livros com dedicatória de Dom Sebastião. À Revista História (2) e à DIFEL (3) agradecemos a cedência de algumas fotografias que ilustram esta Revista. Esperamos que “Villa da Feira” seja o arauto anunciador das Comemorações que hão-de culminar no dia 14 de Junho próximo.

O Director

1 “Por um Moçambique melhor” – Livraria Moraes-Editora, 1963, 25 2 Número 71, de Novembro de 2004, ano XXVI, III Série, 42 3 “Profeta em Moçambique”, DIFEL – Difusão Editora, Lisboa.


Sumário

Pórtico ......................................................................................................................................................

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Mensagem José Manuel M. Cardoso da Costa ........................................................................................................................... 7 1º Centenário de D. Sebastião Soares de Resende Alfredo Henriques

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D. Sebastião Soares de Resende, nosso 1º Bispo D. Jaime Gonçalves .........................................................................11 O carácter do Bispo da Beira através da correspondência com dois padres milheiroenses D. Carlos Azevedo ..............................................................................................................

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D. Sebastião Resende. Uma evocação, no seu centenário Manuel Leão ........................................................................ 19 Armas Episcopais de D. Sebastião ........................................................................................ Singelo Depoimento sobre o primeiro Bispo da Beira Eurico Dias Nogueira

22

........................................................ 23

D. Sebastião de Resende. Profeta em Moçambique Adriano Moreira.........................................

27

D. Sebastião Soares de Resende, profeta da minha particular predilecção António Almeida Santos

29

D. Sebastião Soares de Resende. Percurso de uma vida David Simões Rodrigues

31

D. Sebastião Soares de Resende, Feirense com Projecção Universal Sebastião Brás | José Soares Martins ........69 Dom Sebastião Soares de Resende nas páginas do “Correio da Feira” Roberto Carlos

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Testamento ...............................................

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Poesia Maria Fernanda Calheiros Lobo

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Fernando Pessoa. Poeta do Desassossego Clara Crabbé

85

Poesia Anthero Monteiro

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Professor Pinho Leão Rogério Pinto Correia

91

Antologia Prática de um Devocionário Tradicional Popular - II Padre Domingos Moreira

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1º Centenário da morte de José Estevão Discurso da Ex.ma Senhora D. Joana Inês de Lemos Coelho de Magalhães

99

Linguagem e Preciosismo Maria da Conceição Vilhena

103

Escadas para o Céu Paulo Neves

111

Poesia João Pedro Mésseder

112

No Tempo e no Espaço. O Vidro (1) Jorge António Marques

113

Nas Cavernas de Waitomo Joaquim Máximo

119

Monumento a Fernando Pessoa - IX (Continuação) Executivo LAF

121

VIII - Assunção Diniz Celestino Portela | Joaquim Carneiro

127

O Castelo da Feira e a Filatelia - VI Celestino Portela | Joaquim Carneiro

129

Postais do Concelho da Feira Ceomar Tranquilo

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Mensagem

Vem a lume mais um número de VILLA DA FEIRA e a direcção editorial da prestimosa revista pede-me que o abra, escrevendo o seu «pórtico». Faço-o com particular aprazimento. Em primeiro lugar, porque isso me dá a oportunidade de sublinhar o relevo e a importância da função que cumpre uma revista como esta, tendo como propósito essencial o de registar, dar a conhecer e divulgar a «memória» feirense – a memória da terra e do município que são os nossos, ao fio dos acontecimentos e dos homens que se inscrevem ou vão inscrevendo na sua história, e a fazem ou vão fazendo. Esta memória colectiva é algo de que nenhuma comunidade humana – grande ou pequena – pode prescindir, se não quiser perder a sua individualidade e a sua identidade, e, com isso, o seu próprio futuro. Guardar essa memória é, portanto, um grande serviço, um inestimável serviço. É esse o serviço que à nossa antiga «Vila da Feira», e à Terra da Feira, que é Terra de Santa Maria, vêm prestando esta revista que leva o seu nome, a «Liga dos Amigos da Feira», que a promoveu e edita, e todos quantos, generosa e tenazmente, número a número, a vêm preparando e publicando. Mas, se já só pelo que fica dito me seria grato abrir este número de VILLA DA FEIRA, a tanto se junta uma outra e particular razão – qual a de ele ter como tema de destaque a evocação de D. Sebastião Soares de Resende, cujo

centenário do nascimento ocorre neste ano de 2006. Tenho deste modo o ensejo de associar-me «de viva voz», por assim dizer, a essa evocação – e isso não deixa de ser para mim especialmente caro. D. Sebastião Soares de Resende foi uma das maiores figuras da Igreja portuguesa no século XX. Da sua acção de Bispo – de Bispo da Beira, em Moçambique, que o foi até ao sofrimento e ao oferecimento da sua morte – e da sua intrepidez evangelizadora ficaram um sulco e um rasto de luz imorredoiros. Foi – assim o qualificou há pouco D. Carlos Azevedo, seu conterrâneo, com rara felicidade e força expressiva, que dispensam mais palavras – um grande Profeta do seu lugar e do seu tempo. É um grande privilégio dos feirenses poder contá-lo entre os seus, e ter tão próximo o testemunho exemplar da sua palavra e da sua vida. É um grande privilégio para mim abrir este número de VILLA DA FEIRA em que se faz a evocação da sua notável figura de homem da Igreja, mas também de português – evocação devida como certamente nenhuma outra.

José Manuel M. Cardoso da Costa Presidente da Assembleia Municipal de Santa Maria da Feira

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D. Sebasti達o | estudante em Roma


1º Centenário de Dom Sebastião Soares de Resende

Para além de um riquíssimo património histórico e cultural, Santa Maria da Feira orgulha-se do espírito empreendedor e visionário das suas gentes, que se têm destacado em áreas diversas, dentro e fora de portas, com percursos de vida que, em muitos casos, marcaram o rumo da nossa História. Numa altura em que se assinala o primeiro centenário do nascimento de D. Sebastião Soares de Resende, 1º Bispo da Beira, é meritória a iniciativa da Liga dos Amigos da Feira (LAF) de dar a conhecer às gerações mais novas este filho da terra, natural de Milheirós de Poiares, que durante décadas desenvolveu um trabalho notável em Moçambique, num período de grande turbulência política e social............................. A sua atitude interventiva e de oposição às injustiças, quer políticas, quer sociais, não deixou ninguém indiferente, levando muitos estudiosos a debruçarem-se sobre o importante legado que esta figura de relevo do clero português nos deixou. De resto, todo o espólio de D. Sebastião Soares de Resende está disponível para consulta na Biblioteca do Núcleo de Estudos Africanos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e são muitas as publicações dedicadas ao 1º Bispo da Beira, que desde cedo se evidenciou pelo seu sentido de

justiça e de responsabilidade social, assertividade e nobreza de carácter. Com o lançamento desta publicação, dedicada a D. Sebastião Soares de Resende, a LAF abre mais um capítulo na sua importante missão de divulgar, perpetuar e homenagear figuras ilustres do município de Santa Maria da Feira, estando certo de que este será um importante contributo para reavivar nos portugueses, particularmente nos feirenses, a memória e a obra inestimável do 1º Bispo da Beira.

Alfredo Henriques, Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira

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Grande Hotel, Beira

Vista Panor창mica da Beira


Residência onde viveu e faleceu D. Sebastião

D. Sebastião Soares de Resende, nosso primeiro Bispo * D. Jaime Pedro Gonçalves

Conheci D. Sebastião Soares de Resende quando me crismou na Missão das Amatongas a 18 de Dezembro de 1950. Tinha eu os meus 14 anos de idade. Nessa altura fazianos impressão ver o bispo vestido de muitas coisas (paramentos, mitra e báculo) para celebrar a missa, o que os nossos padres da missão não faziam. Em 1954 entrei no seminário menor onde fiquei 6 anos. Todos os anos D. Sebastião Soares de Resende visitava-nos e era com paciência e humildade de grandes bispos que nos atendia, a nós miúdos, para nos informar como andava a nossa missão de origem. Era o tempo em que falava muito das vocações nas missões. Criou o clero diocesano moçambicano na Beira. Já seminarista maior experimentei o seu carinho de pastor que o levava a querer saber os pormenores da nossa vida intelectual, espiritual e humana. Uma vez escolheu-me para o acompanhar à Missão de Machanga para traduzir a sua homilia para a língua nativa dos fiéis. Foi ocasião de ver e admirar mais uma vez a paciência com que ensinava e atendia os problemas das pessoas e das famílias. Já no meu terceiro ano de Teologia deu-me as então * 5º Bispo da Beira, 03/12/1976 1º Arcebispo da Beira, 04/06/1984

chamadas ordens menores e a tonsura. Já não deu para me ordenar sacerdote, pois faleceu a 25 de Janeiro de 1967 enquanto eu terminava a teologia em Junho seguinte. Temos dele uma memória inapagável. Todos os anos os fiéis se reúnem à volta da sua campa para recordar e celebrar o nome e as virtudes de D. Sebastião Soares de Resende, em cada 25 de Janeiro. Chova, não chova, todos estamos no cemitério para este acto. Durante o ano a campa teve sempre flores dos fiéis que a visitam. Foi um grande pastor que evangelizou uma área que deu até hoje cinco dioceses (Beira, Quelimane, Chimoio, Tete e Gurué); defensor da justiça em favor dos mais fracos e oprimidos; promoveu a educação da juventude das missões com milhares de escolas primárias, e das cidades; idealizou para Moçambique uma sociedade integrada de raças e cidadãos iguais, perante a lei, apesar de diferentes. Toda esta acção mereceu-lhe uma reacção de perseguição por parte do regime político de então. Era um bispo piedoso. Várias vezes rezei com ele na sua capela privada. Rezava com a diocese. Difundiu a devoção a Nossa Senhora do Rosário. Fundou o semanário a Voz Africana, a Revista Economia e o famoso Diário de Moçambique. Acreditava nos meios de comunicação social para a evangelização e utilizavaos, mormente nas palestras quaresmais. A censura do Estado maltratou o Diário de Moçambique e chegou, como punição, a ser proibido durante trinta dias. A partir dali foi-se tornando extremamente difícil a manutenção financeira do Jornal. Até que a Santa Sé autorizou a sua venda. Comprou-o um dos mais renhidos adversários de

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Campa com flores

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D. Sebastião Soares de Resende, então conhecido por Vaz, detentor do Notícias, de Maputo (Lourenço Marques). O produto da venda serviu de capital social para a Fundação D. Sebastião Soares de Resende, que a Revolução Moçambicana nacionalizou e baralhou. Guardamos com carinho o seu anel episcopal e o báculo que trouxe do Concílio Vaticano II. Demos o seu nome ao nosso centro sócio-pastoral. A Conferência Episcopal de Moçambique, quase como que resgatando a primeira e para reconhecimento da acção grandiosa do nosso bispo na educação, criou a Fundação Internacional D. Sebastião Soares de Resende, que cuida da Universidade Católica de Moçambique, sediada na Beira. Recordamos com muita gratidão o nosso primeiro bispo que faz cem anos do seu nascimento em 2006. Beira, 16 de Janeiro de 2006. Jaime Pedro Gonçalves Arcebispo da Beira

1º Bispo da Beira, 17/07/1906 - 25/01/1967


O carácter do Bispo da Beira através da correspondência com dois padres milheiroenses * D. Carlos Azevedo

Não desejando fazer aqui evocação biográfica, já tentada noutro lugar1, deitei mão a uma vertente desconhecida do Bispo da Beira. O objectivo deste texto é, através dos traços humanistas da espontaneidade da correspondência, captar a sensibilidade de um homem superior, nascido há cem anos na mesma terra que eu. Para além dos sentimentos de gratidão e de afectividade demonstrados para com dois padres, também naturais de Milheirós, meus tios José Leite Dias de Pinho († 1960) e Manuel Valente de Pinho Leão, estas cartas denotam uma atenção particular aos acontecimentos da época, referidos com olhar crítico. O estudante romano Ordenado padre a 21 de Outubro de 1928 por D. António Augusto de Castro Meireles, celebra a primeira missa a 28 seguinte e, pouco depois, segue para Roma. É nessa viagem que o surpreendemos na primeira missiva aqui recolhida, enviada de Lourdes. Confessa que atravessou a Espanha *Natural de Milheirós de Poiares. Bispo Auxiliar de Lisboa.

“com espírito de touriste” mas em Lourdes operou-se nele uma “revolução”. Agora está determinado a “tudo fazer com ânimo cristão”. A vertente espiritual profunda, reconhecida ao futuro bispo Sebastião, vem ao de cima já no recém padre pela breve mas clara alusão a uma forte experiência interior. Manifesta a alegria que o move na viagem e usa uma expressão muito significativa e original: “até aqui a vida tem-se passado numa quasi vertigem de poesia”. O P. Sebastião deseja que a generosidade da natureza continue a perseguir o seu itinerário e menciona os rios como sintoma dessa companhia poética. A sedução e contentamento da viagem não o fazem esquecer quem ficou com saudade. Daí o “pedido íntimo” ao P. José Dias de Pinho para que anime a mãe, quando for a Milheirós. Assim confirma a profunda relação materna a que o pai, na visita a Paço de Sousa, acena e o P. Américo regista em O Gaiato.2 Em Março de 1929, faz referência aos acontecimentos políticos que considera melhor “equilibrados, sobretudo depois que um dos magnates do partido vigente teve uma audiência do S. Padre”. Alude a “uma grande reforma de estudos universitários segundo a qual serão aumentados os estudos e por conseguinte, exigido mais tempo”. E comenta, pondo a nu a alma: “Não me aflijo por tal, antes pelo contrário, pois que em tudo sempre fui partidário do superlativismo”. 1 Perfil biográfico de D. Sebastião Soares de Resende. In SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE. Profeta em Moçambique. [Lisboa]: Difel, [1994], p.1297-1325. [Bibliografia de D. Sebastião S. Resende a partir da p. 1317]. Também publicado na revista Lusitania Sacra. 6 (1994) 391-415 [Sem a aludida bibliografia]. 2 Cf. Ibid., p. 1298.

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Em Maio de 1929, a notícia é importante e histórica e por isso os detalhes aumentam, não obstante a brevidade do estilo epistolar: “resolveu-se a questão Romana. Assisti às manifestações feitas depois do acordo em S. Pedro e no Quirinal. A sua crónica não cabe numa folha de papel de carta, mesmo que se não entre em considerações mais profundas dos seus vários aspectos. Era interessante passear pela cidade, no dia de Carnaval; de noite sobretudo. Muitas casas iluminadas na fachada principal e em quasi todas se via arvorada, em lugar de honra, ao lado da Italiana, a bandeira do Papa. Com certeza, o Garibaldi nesse dia chorou mais uma lágrima!” Este final irónico sobre a figura anticlerical de Garibaldi, iniciador do dissídio entre Igreja e Estado italiano, que durou sessenta anos, transmite a simplicidade jubilosa do amor à Igreja, alimentado por Sebastião. A 11 de Fevereiro tinham sido assinados os Pactos de Latrão entre o Cardeal Gasparri e Benito Mussolini. Apesar do inicial aplauso geral, os pactos foram objecto de algumas críticas. Mas tiveram a vantagem de pôr fim à prolongada Questão Romana. A partir daí, a Igreja Católica e o Estado da Cidade do Vaticano são sujeitos de direito internacional. As referências à peregrinação portuguesa de 1929 a Roma e a menção aos padres do Porto lá presentes (carta 4), denota a sua preocupação pelo êxito da iniciativa e a viva ligação à diocese à qual regressará para servir como professor, desde 1933.

A paixão pela actividade missionária Sendo nomeado bispo em 21 de Abril de 1943 e ordenado a 15 de Agosto, toma posse da diocese a 8 de Dezembro, após uma viagem de barco. Apenas dois anos decorridos, a 28 de Abril de 1945, já D. Sebastião podia narrar, em carta ao conterrâneo P. Leão: “Acabo de fazer uma viagem, quasi de um mês, pela Rodésia do Sul e do Norte e pelo Congo Belga em visita de estudo das missões. Fiquei maravilhado com o que vi no Congo Belga. Encontrei lá seminários de indígenas cujos edifícios são superiores ao da faculdade de Ciências do Porto. Não há nenhum Seminário em Portugal que se possa comparar. Já lá há padres, irmãos e irmãs indígenas a trabalhar muito bem. É uma grande cristandade que nasce para a Igreja. Oxalá se pudesse fazer o mesmo entre nós nesta Africa portuguesa que quer despertar para a civilização. Já fundei 5 novas missões e, ainda este ano, espero fundar mais duas pelo menos. Deus lhes dê o incremento. Devo começar este ano o edifício para o Seminário menor que no plano geral será muito superior a qualquer dos do Porto. A África em tudo é grande e precisa de ser grande”.

As comparações com o Porto são curiosas, já que pretendem dar a quem lê uma ideia objectiva aproximada da realidade. A determinação em criar agentes pastorais indígenas fica patente, bem como a consciência da necessária grandeza das iniciativas adaptadas à realidade da África. O entusiasmo é contagioso e por isso convida, a 19 de Março de 1946, o seu amigo P. Leão, recentemente ordenado, para ir para a Beira porque “isto é um laboratório de problemas novos que entusiasma as inteligências mais vigorosas.” A 9 de Janeiro de 1947 informa: “Nestes dias ando absorvido pela compra duma propriedade para um colégio que é uma das maiores necessidades na Beira. Oxalá o Senhor conduza tudo a bom termo”. É delicioso o recorte desta carta, de Janeiro de 1947, quando, ao comentar a notícia da doença do P. José Dias de Pinho, brinca com graça: “Quem é leão não morre pelo peito. Eu tenho-os visto por aqui e o peito é mais largo que as portas fronhas dum grande lavrador! São restos do sabor literário de Milheirós”. A expressão da metáfora rural precisou de a justificar com a origem. A reflexão sobre as potencialidades do trabalho humano leva o Bispo a revelar a sua atitude perante a vida, mais do que a estabelecer critérios relativos ao futuro: “Com método, apesar do muito trabalho, há tempo para tudo. A experiência vai-me dizendo que há virtuosidades latentes no homem que ainda hoje lhes ignoramos os limites. Quem sabe se o homem do século XXI há-de ser de muito maior capacidade de trabalho e de rendimento sobretudo? Tudo nos vai indicando que a vida começa a viver-se em intensidade de preferência à extensão. Se nós pudermos fazer em 10 anos o que em outras circunstâncias faríamos em 15 é preferível aquele a este método. Graças a Deus tenho tido muita saúde”. Hoje sabemos que essa saúde acabará por ser atingida em virtude do seu dar-se intensamente, sem cálculos. Nem aceita o convite para assistir à canonização do Beato João de Brito, porque não quer abandonar obras em curso (Carta 8). Há uma paixão que o liga cada vez mais a Moçambique. Sente-se tão em casa a ponto de abrir simplesmente o coração nas preferências e manifestar o amor por uma missão. Revela, em carta de 20 de Maio de 1947, a razão: porque “se trata de uma missão que comecei e que quasi sem querer amo mais que outras – a 13 Km. da cidade”. O desaparecimento da mãe liberta o bispo ainda mais para uma dedicação permanente e a clareza das suas palavras não deixa lugar a dúvidas. De facto, a 1 de Maio de 1947 agradece a presença do P. Manuel Leão no funeral da mãe e manifesta a mudança que essa perda opera na relação com a terra natal: “o meu aprêço e reconhecimento por ter ido ao enterro não obstante a distância e, segundo me dizia, o mau tempo. Por tudo muito obrigado. Vão-se assim


quebrando as poucas prisões humanas que me prendem à Europa e a Portugal. E uma vez que vá à nossa terra de Milheirós, tudo me aparecerá de fisionomia diferente, de menos encanto e mais fraco atractivo, por faltarem aqueles a quem depois de Deus devemos tudo”. O sabor terno deste maço de correspondência amarelecida pelo tempo serve-nos para evocar a memória de um profeta: firme na defesa da justiça, esclarecido na exposição da doutrina, vigoroso na vida espiritual. Conhecer a singeleza de sentimentos, não destinados a preservar uma imagem, confirma o carácter deste homem de Deus. Carlos A. Moreira Azevedo

Apêndice documental

1. Carta ao P. José Leite Dias de Pinho. Lourdes, 19 de Novembro de 1928 Ex.mo e Rev.mo Snr. É das terras de França, dos pés da Virgem, que lanço mão da pena para lhe escrever. Deixei Portugal, atravessei a Hespanha com espírito de touriste, mas em, Lourdes operou-se uma revolução em mim para tudo fazer com animo cristão, mais, eclesiástico. Peço a V. Rev.cia desculpa de me não ter despedido; não o fiz por impossibilidade moral, na hipótese de querer partir no mesmo dia em que sai de casa. Deixei ao P. Castro do Seminário /1v./ o dinheiro para dar a V. Rev.cia, devê-loia ter feito; a grande bondade de V. Rev.cia saberá perdoarme estas minhas faltas. Estou a caminho de Roma e até aqui estou contente e satisfeito. Até aqui a vida tem-se passado numa quasi vertigem de poesia; o Douro acompanhou-nos de Portugal, o Gave levou-nos a Virgem de Lourdes, o Tibre nos arrastava as portas de /2/ Roma; oxalá que esta generosidade da natureza continue a perseguir-nos. Um dia que for a Milheirós, nunca se esqueça de animar minha mãe; é este um pedido íntimo que faço a V. Rev.cia. Obrigado por tudo. Sem mais assunto, peço licença de terminar, cumprimentando-o assim como a Snr.a Albertininha. Com toda a consideração Lourdes 19 / XI / 28 P. Sebastião

2. Carta ao P. José Leite Dias de Pinho. Roma, 11 de Março de 1929 Snr. P. José Participo-lhe a receção da sua carta que penhoradamente agradeço. Falava-me na lembrança que por intermédio dos meus pais lhe mandei oferecer, só lhe peço desculpa de me ter servido duma insignificância para provar a minha gratidão a quem tantos favores me tem prestado e continua a prestar: o que se não pode retribuir na realidade, lembre-o ao menos o coração como divida insolúvel. Muito obrigado pelo grande numero /1 v./ de intenções de missas que me enviou. Quanto às esmolas não se preocupe em as mandar, como dizia, brevemente; pode deixar estar ate quando quizer e conforme lhe for conveniente, porque não preciso delas antes das ferias grandes. Por aqui tudo corre com as mesmas cores e nos mesmos tons. As coisas políticas parecem estar melhor equilibradas, sobretudo depois que um dos magnates do partido vigente teve uma audiência do S. Padre. /2/ Faça-se uma grande reforma de estudos universitários segundo a qual serão aumentados os estudos e por conseguinte, exigido mais tempo. Não me aflijo por tal, antes pelo contrário, pois que em tudo sempre fui partidário do superlativismo. Mais uma vez muito obrigado. Peço que me recomende a sua mana e ao Snr. Abade de Mafamude e ao P. Ramalho. Ao Snr. P.e José um afectuoso abraço de quem se julga M.to Obrig.do Roma, 11- 3- 929 P. Sebastião 3. Carta ao P. José Leite Dias de Pinho. Roma, 2 de Maio de 1929 Rev.mo Snr. P. José Não é sem uma certa apreensão que escrevo a V. Rev.cia, pois que já para aí mandei duas cartas e ainda não obti[ve] resposta, o que me leva a crer que as não recebeu. Para suprir qualquer estravio do correio, resolvi novamente escrever-lhe. Já o devia ter feito há mais tempo, porém a esperança bastante prolongada de que me chegasse alguma coisa, impediu-me de o fazer. Dada a hipótese acima, esta carta vem a ser a primeira e portanto, eu quero pedir ao Snr. P.e José desculpa de me não ter despedido de V. Rev. cia, o que não pude fazer devido a escaçês do tempo e à necessidade

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urgente de partir no mesmo dia. A viagem correu muito bem. 1 v./ Tenho continuado sempre bem, ao menos por enquanto; apesar do tempo aqui sofrer os dois extremos, do frio e do calor. Como V. Rev. cia muito bem sabe dos jornais, resolveu-se a questão Romana. Assisti às manifestações feitas depois do acordo em S. Pedro e no Quirinal. A sua crónica não cabe numa folha de papel de carta, mesmo que se não entre em considerações mais profundas dos seus vários aspectos. Era interessante passear pela cidade, no dia de Carnaval; de noite sobretudo. Muitas casas iluminadas na fachada principal e em quasi todas se via arvorada, em lugar de honra, /2/ ao lado da Italiana, a bandeira do Papa. Com certeza, o Garibaldi nesse dia chorou mais uma lágrima! Se arranjar, mandarei a V. Rev. cia uma Revista em que estão as fotografias das pessoas que assinaram em Latrão o acordo. São factos históricos. Sem mais delongas, termino pedindo desculpa das minhas faltas de delicadeza a quem só devo atenções. Peço que me recomende ao Ramalho e a Snr.a Albertininha. De V. Rev. cia At.to V.or e Ob.do Roma 2/5/929 P. Sebastião Soares Rezende 4. Carta ao P. José Leite Dias de Pinho. Roma, 5 de Novembro de 1929 Roma, 5-11-1929 Rev.mo Snr. P.e José Acuso a recepção da sua tão estimada carta, de 10 de Outubro, que me veio trazer muita alegria e tranquilidade ao espírito. Tive uma dupla impressão, ao saber que esteve em próxima realização a sua vinda aqui. Seria ocasião de um grande júbilo para mim o poder abraçá-lo e trocar impressões amigas. Em todo o Portugal, mas mais acentuadamente no Porto, a peregrinação despertou pouco entusiasmo; a quantidade das pessoas, em comparação com o número das de 1925, era uma in /1v/ significância; não procurei colher impressões acerca da comissão, mas o que é certo é que o serviço talvez pudesse ter tido uma organização mais favorável aos peregrinos. No entanto, pelo que observei, parece que tudo andava satisfeito. Cumprimentei os Rev.mos Ab.de Mafamude, Gaia, S. Jorge, Lobão, etc. Os P.es Matos Soares e Sanches tinham estado em Roma, antes alguns dias; não falei com eles, porque estava

fora daqui, naquela ocasião. O P. Jacinto Magalhães, depois de ter /2/ chegado a Portugal, escreveu-me para lhe enviar duma livraria de Roma um caderno (o primeiro dum breviário que comprou em brochura). Não me mandando o formato do mesmo breviário, eu escrevo-lhe pedindo-o para que não aconteça que lhe envie folhas maiores ou menores. Até hoje ainda não recebi resposta; não sei se receberia a minha carta; vou esperando. Quanto a intenções de missas, em Roma não se arranjando doutro modo, podem-se pedir às Congregações. Por gentileza do Snr. Abade que tem sido neste ponto /2v./ e no resto duma atenção verdadeiramente superior para comigo, não tenho precisado de recorrer a este expediente; e com franqueza aborrece-me isto. Como o Senhor P.e José teve a amabilidade de oferecer algumas (mesmo de esmola de 6$oo que julgo otima, eu ate menos) eu aceito-as desde que seja sem sacrifício de V. Rev.cia isto é que é preciso notar. Por enquanto, isto é, para estes dois meses, ou, mais, ainda tenho. Sem mais assunto, subscrevo-me, cumprimentando-o afectuosamente e a sua Mana Seu amigo obrg.do P. Sebastião Soares de Resende 5. Carta ao P. Manuel Valente de Pinho Leão. Beira, 28 de Abril de 1945 Beira, 28-4-45 Snr. P. Leão e meu amigo Agradeço a sua carta e mais as notícias que me dá. Por aqui as coisas vão correndo bem, graças a Deus. Acabo de fazer uma viagem, quasi de um mês, pela Rodésia do Sul e do Norte e pelo Congo Belga em visita de estudo das missões. Fiquei maravilhado com o que vi no Congo Belga. Encontrei lá seminários de indígenas cujos edifícios são superiores ao da faculdade de Ciências do Porto. Não há nenhum Seminário em Portugal que se possa comparar. Já / 2 / lá há padres, irmãos e irmãs indígenas a trabalhar muito bem. É uma grande cristandade que nasce para a Igreja. Oxalá se pudesse fazer o mesmo entre nós nesta Africa portuguesa que quer despertar para a civilização. Já fundei 5 novas missões e ainda este ano espero fundar mais duas pelo menos. Deus lhes dê o incremento. Devo começar este ano o edifício para o Seminário menor que no plano geral será muito superior será muito superior a qualquer dos do Porto. A Africa em tudo é grande e precisa de ser grande. Cumprimentos a todos os do Seminário e para seu tio e tias muitas recomendações. Adeus Sebastião, Bispo da Beira


7. Carta ao P. Manuel Valente de Pinho Leão. Beira, 9 de Janeiro de 1947 Meu caro P. Leão

6. Carta ao P. Manuel Valente de Pinho Leão. Beira, 19 de Março de 1946 Beira, 19-3-946 Snr. P. Leão e meu amigo

Os meus cumprimentos para si e para os seus tios a tias: agradeço-lhe a carta e o feixe de notícias que ele trazia. Fiquei admirado com a notícia da doença de seu tio e digalhe que lhe desejo sinceramente as melhoras. Quem é leão não morre pelo peito. Eu tenho-os visto por aqui e o peito é mais largo que as portas fronhas dum grande lavrador! São /1 v./ restos do sabor literário de Milheirós. Esse trabalho seu também não o deve deixar em paz e socêgo. A vida é mesmo assim. Com método, apesar do muito trabalho, há tempo para tudo. A experiência vai-me dizendo que há virtuosidades latentes no homem que ainda hoje lhes ignoramos os limites. Quem sabe se o homem do século XXI há-de ser de muito maior ca /2/ pacidade de trabalho e de rendimento sobretudo? Tudo nos vai indicando que a vida começa a viver-se em intensidade de preferência à extensão. Se nós pudermos fazer em 10 anos o que em outras circunstâncias faríamos em 15 é preferível aquele a este método. Graças a Deus tenho tido muita saúde. Nestes dias ando absorvido pela compra duma propriedade para um colégio que é uma das maio /2 v./ res necessidades na Beira. Oxalá o Senhor conduza tudo a bom termo. De resto mais nada por hoje. Desejo-lhe muita saúde e sempre óptimo êxito nos seus trabalhos. Seu amigo em J.C. Beira, 9 -1- 947 † Sebastião, Bispo da Beira

Recebi hoje a sua carta e há tempos recebi outra. A ambas respondo, agradecendo, primeiramente, os cumprimentos e, secundariamente, as notícias. Pelo teor da carta notei que o meu amigo ainda tem uma saúde pouco robusta, visto o Snr. Bispo lhe observar que Rossas não era para a sua saúde. Olhe, quer um conselho que há dias dei a outro que também se queixava da mesma coisa? Venha para cá e verá que terá saúde. Foi o que aconteceu comigo e é o que acontece com outros. Demais, isto é um laboratório de problemas novos que entusiasma as inteligências mais vigorosas. Na primeira carta referia-se o meu amigo à Pastoral do ano 44. Mando-lhe pelo correio um exemplar. Tenho pena de não lhe poder mandar um exemplar da de 45 porque não tenho muitos e quero dá-los aos leigos para quem foi escrita. Cumprimentos aos seus tios e tias e creia-me amigo in Domino † Sebastião, Bispo da Beira

8. Carta ao P. Manuel Valente de Pinho Leão. Beira, 1 de Maio de 1947 Beira, 1-5-947 Meu caro P. Leão Recebi a sua carta que muito lhe agradeço não só por ela senão pelos pêsames que me enviou pela morte de minha mãe. De modo particular o meu aprêço e reconhecimento por ter ido ao enterro não obstante a distância e, segundo /1 v./ me dizia, o mau tempo. Por tudo muito obrigado. Vão-se assim quebrando as poucas prisões humanas que me prendem à Europa e a Portugal. E uma vez que vá à nossa terra de Milheirós, tudo me aparecerá de fisionomia diferente, de menos encanto e mais fraco /2/ atractivo, por faltarem aqueles a quem depois de Deus devemos tudo. Mas... é a inexorável

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lei da vida. Por este mesmo correio escrevi a seu tio mas esquecime de enviar por ele cumprimentos a suas tias. É favor suprir esse meu esquecimento. Continuo com saúde /2 v./ e bem. Quizeram que fosse assistir à canonização do B. J. de Brito. Não fui porque é preciso merecer as viagens e, sobretudo, tenho obras em curso que não podia abandonar. Adeus e creia-me sempre amigo in C.J. † Sebastião, Bispo da Beira

9. Carta ao P. Manuel Valente de Pinho Leão. Beira, 20 de Maio de 1947 Beira, 20-5-947 Snr. P. Leão e amigo 18

Recebi a sua carta que agradeço. Escrevi, há tempos, a responder e a agradecer os pêsames que me deu. Agora vai esta a responder à sua última. Diga à sua tia, Snr.a Albertininha que já lhe arranjei uma afilhada que deve /1 v / ser quasi da mesma edade, da mesma altura e até conversadeira como ela. Já é mãe de quatro filhos e está junto com um homem cristão. Este homem é o enfermeiro do hospital onde trabalha o médico das missões do distrito da Beira. Estão as Religiosas da /2/ Missão a ensinar à mulher a doutrina, porque boa disposição não lhe falta. Há tempos estive lá (vou lá frequentemente porque se trata de uma missão que comecei e que quasi sem querer amo mais que outras – a 13 K da cidade) e ralhei com ela porque se não tenha baptizado e casado e ela, com /2 v./ língua de preta, mistura de maxangam e português, respondeu-me que não tinha roupa. Agora já a tem porque arranjou boa madrinha. Os 100$00 poderá entregá-los ao Snr. Dr. Soares da Rocha com quem tenho conta corrente. Adeus e deseja-lhe saúde e pede que dê os meus cumprimentos ao tio e à S.ra Albertininha † Sebastião, BB.


Igreja onde foi baptizado Dom Sebastião Soares de Resende

D. Sebastião Resende Uma Evocação, no seu centenário * Pe. Manuel Leão

D. Sebastião Soares de Resende, ilustre feirense e bispo da Beira, Moçambique, nasceu em Milheirós de Poiares, em 1906. Lembro-me da sua figura, ainda estudante de Teologia. A Casa da Herdade, no lugar de Milheirós, ficava perto da casa paterna de D. Sebastião. Havia mesmo algumas propriedades rústicas das duas casas que eram confinantes. Em virtude de os médicos aconselharem a minha família a darem-me praia, em Setembro, coincidia as duas famílias encontrarem-se no Furadouro. Havia um excelente entendimento de convivência entre as minhas tias e as irmãs de D. Sebastião.

* Natural de Milheirós de Poiares, concelho de Santa Maria da Feira, fez os seus estudos no Porto, tendo concluído o curso de Teologia e sido ordenado presbítero, na Sé do Porto, em 1943. Dedicou-se à educação e ensino, dirigindo o Colégio de Gaia, durante décadas. Esteve ligado à Fundação do Instituto Superior Politécnico de Gaia e Escola Profissional de Gaia, a cujas direcções pertence. Tem publicado numerosos estudos sobre história cultural do Porto e Vila Nova de Gaia, com incidência nos domínios da arte, da actividade livreira e do teatro portuense antigo. Tem promovido várias iniciativas de carácter social. Criou, em 1996, a Fundação Manuel Leão, com fins culturais e sociocaritativos.

Recordo-me dos diálogos que ele conseguia estabelecer comigo, não obstante eu ser uma criança pouco amiga de falar. Tinha uma conversa afável, marcada de simpatia, aliás na linha de seu pai, José Soares de Resende. O segundo acontecimento que despertou a freguesia, segundo padrões da época, foi a sua chegada de Roma, onde tinha ido fazer a sua especialização nas ciências sagradas. Entre a saída na carreira de transportes de passageiros, no lugar da Igreja, e a sua casa paterna, no lugar de Milheirós, foi organizado um cortejo de apoio ao conterrâneo, onde não faltaram discursos. Mais tarde, estando eu na conclusão do Curso filosófico, tive-o como professor e Vice-Reitor. Criou em mim um conceito marcante sobre o seu trato com os outros, no que me dizia respeito. Tive umas discordâncias com o prefeito da minha secção ou corredor, que mais tarde entraria na Companhia de Jesus. D. Sebastião manteve-se distante e o prefeito teve de estudar a sério o meu ponto de discórdia, para tudo terminar como convinha. Na filosofia, D. Sebastião era um ferrenho tomista. A filosofia de Aristóteles passando pelos trabalhos de S. Tomás de Aquino entusiasmou D. Sebastião. Publicou mesmo um pequeno livro, texto duma conferência que tinha proferido na festa de S. Tomás, no Seminário do Porto. Nas horas de consulta na biblioteca do Seminário, eu não faltava. Tinha habitualmente, no meu gabinete de estudante, uma série de obras, geralmente amontoadas no soalho. Num dia, D. Sebastião passou pela biblioteca e deu comigo nas buscas que me interessavam. No dia seguinte, chamou-me a uma sessão contraditória, colocando dois colegas arguentes contra

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Certidão de nascimento de Dom Sebastião Soares de Resende

mim, sobre a matéria do tomismo conhecida por hilemorfismo, uma interpretação mental sobre a realidade dos corpos materiais. Resolvi desbaratar os ataques dos arguentes, defendendo que tal interpretação cairia pela base sem a hipótese criacionista. Ficou anulado o debate, para não ser retomado, mas o professor não alterou em nada o seu trato comigo. Entre os estudantes meus contemporâneos, havia uma nítida tendência para as modas literárias. Uns escreviam a Teixeira de Pascoais, mandandolhe versos que mereciam apreciações sibilinas. Outros, leitores da Presença,

pendiam para José Régio, a figura central desse grupo literário. Mas havia um núcleo influente que não deixava de ler a Presença. Apesar de essa geração literária ter ficado a ser conhecida pela inquietação espiritual, a verdade é que não se quadrava com a mentalidade reinante no código mental de D. Sebastião. Houve, de facto, situações de certo desequilíbrio na apreciação dos cabecilhas desse grupo, circulando a revista em regime clandestino. Daí vem a simpatia que esse segundo modernismo literário criou em mim, bem longe eu estava de pensar em vir a ensinar essas matérias, tendo mesmo ocasião de conhecer alguns corifeus desse movimento literário como o próprio Régio e Alberto de Serpa, entre outros. Situações deste tipo coibiam qualquer estudante de manifestar-se fora dos muros do Seminário. Era a mentalidade desse tempo. No entanto, cheguei a pertencer a um grupo restrito de Feirenses que teve um projecto de dominar um semanário que tinha dificuldade na colaboração. Faziam parte desse grupo Manuel Pereira da Costa, de Fornos; Manuel Soares Albergaria, de Riomeão; Rodrigo Fontes, de Romariz. Todos tínhamos interesse na escrita. O Pereira da Costa tinha mesmo uma secção num outro jornal, mas tudo era feito para que tal actividade não chegasse ao conhecimento do Seminário. Ainda escrevi um artigo sobre assuntos sociais para o Democrata Feirense, assinando com pseudónimo, que nunca cheguei a ler. D. Sebastião preparou um trabalho teológico para o seu doutoramento. Este nunca chegou a realizar-se, porque o bispo entendia que não era necessário. D. Sebastião não pôde deixar os seus trabalhos para ir a Roma terminar a sua preparação académica. Esse trabalho estudava a participação de D. Frei Gaspar do Casal, no Concílio de Trento. Mais uma vez, aconteceu uma peripécia envolvendo o ilustre professor que nunca lhe desvendei. Resolvi escrever um artigo para um jornal feirense. Julgo que foi a Tradição, em que D. Sebastião tinha colaborado. Um dia


procurou-me dizendo da sua estranheza porque não conhecia tal nome. De facto, eu assinei com pseudónimo. Nem o jornal tinha conhecimento do autor, porque ou mandei pelo correio ou por qualquer pessoa. O certo é que ficou sem saber. Perguntei-lhe se estava certa a doutrina. Respondeu que estava bem e que o autor sabia o que escrevia. Ele tinha suspeita de ter sido um antigo seminarista de Lourosa. Ninguém sabia porque tinha sido uma iniciativa minha. O meu último ano no Seminário Teológico foi também o último do Vice-Reitor, que, entretanto, foi nomeado bispo da Beira. Os alunos resolveram homenagear o novo bispo e eu fui eleito para a parte logística. Houve sessão no salão da biblioteca, onde falei pelos alunos que lhe ofereceram uma lavanda e gomil de prata. Pude acompanhar as iniciativas extraordinárias próprias dum homem de ideias, com uma actividade incansável que marcou um lugar paradigmático nas missões pastorais, na educação e na imprensa. O vasto horizonte em que esteve situada a sua vida apostólica fê-lo deixar para trás certas visões acanhadas que os muros do Seminário continham. Fui encarregado por ele da parte protocolar da sua ordenação episcopal. Convenceu-me a deixar a minha família fazer uma festa da minha conclusão do curso e Missa Nova, oferecendose para pregador. Continuámos tanto a encontrarmo-nos quando vinha à Metrópole, como a mantermos correspondência. Marcou um lugar indiscutível no seu tempo, tornando-se um dos mais autorizados defensores dos direitos humanos.

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Armas Episcopais de D. Sebastião

Escolheu para as armas episcopais a frase « Por Cristo, com Cristo e em Cristo ». Encarregou o conhecido heraldista Armando de Matos de as compor e descrever: «Em campo azul um pelicano alimentando os filhos com o seu próprio sangue, acompanhado à direita por uma cruz sobreposta de um sol, abaixo do cruzamento dos braços, e à esquerda de um bastão alado, enleado de duas serpentes cujas cabeças estão apontadas, tudo de oiro, um chefe, um triângulo do mesmo, tendo no centro um olho, do mesmo, flamejante. Entre chefe de oiro, com uma palma verde passada em aspa com um bastião de negro, acompanhado de três rosas de vermelho, de oiro. Bordadura de prata, carregada de cinco escudetes azuis, cada um com cinco besantes de prata. Bordo inteiro da bordadura, um rosário de púrpura. O escudo elipsoidal é rematadao superiormente por uma cruz latina, acompanhada à direita por uma mitra e à esquerda de um báculo, ambos de oiro. Este conjunto assenta numa tarja azul, forrada de oiro. Sobrepõe-se a tudo um chapéu eclesiástico da categoria de bispo que é de negro, forrado de verde e de cordões com seis nós e borlas do mesmo, sendo seis de cada lado. Inferiormente uma filactera de prata com a seguinte legenda a negro; “ PER IPSUM ET CUM IPSO ET IN IPSO”.


Moçambique e a Diocese da Beira

Singelo depoimento sobre o primeiro Bispo da Beira *Eurico Dias Nogueira

1. Conheci muito cedo D. Sebastião Soares de Resende. Foi no início da década de 1940, sendo eu aluno de Teologia no Seminário de Coimbra e ele professor e viceReitor no do Porto. O seu nome e prestígio impunham-se em Portugal, pelas muitas publicações que eu ia lendo, com vivo interesse. Por isso, a sua eleição para primeiro Bispo da Beira, em Moçambique, em 24 de Abril de 1943, apenas surpreendeu pela pouca idade do escolhido: 37 anos incompletos não era vulgar. Fica a impressão de a demora da nomeação – quase três anos depois da criação da Diocese – se dever à pouca idade do escolhido pela Santa Sé... O Acordo Missionário – assinado em 7 de Maio de 1940, juntamente com a Concordata – fazia antever um decisivo impulso evangelizador no então Ultramar português. Mas, para isso, eram precisos agentes capazes, em número conveniente. A cidade da Beira fora escolhida para sede de uma das Dioceses então criadas, juntamente com a de Nampula e a Arquidiocese de Lourenço Marques, actual Maputo (0409-1940). Até aí toda a Província de Moçambique constituía

*Arcebispo Emérito de Braga, Antigo Bispo de Vila Cabral

uma Administração eclesiástica (1612) e posterior Prelazia (1783), na dependência de Goa que perdurou mais de três séculos. 2. Chegado à Diocese, o jovem Prelado impôs-se, de imediato, pelo zelo pastoral e clarividência, dinamismo e arrojo. Procurou missionários e missionárias, quer portugueses (então muito escassos), quer estrangeiros (mais abundantes e bem preparados). Impulsionou o ensino de base – especialmente para os autóctones – e abriu escolas para o secundário, quase inexistente na região. Criou paróquias e missões e fundou o Diário de Moçambique, logo caracterizado pela independência política e capacidade de intervenção. Publicou duas dezenas de Cartas Pastorais, de índole social, sempre de grande actualidade e não pouca audácia. Por isso, passou a ser olhado com desconfiança e vigiado pelo Poder constituído que lhe fez uma guerra sem quartel. Consta que este impediu a sua promoção a Arcebispo metropolita – quando faleceu o Cardeal Arcebispo D. Teodósio de Gouveia (1962), como parecia ser desejo da Santa Sé – e procurou mesmo afastálo de Moçambique. O seu prestigiado e muito lido jornal – por isso, constantemente vigiado e alvo de frequentes intervenções da censura política – foi penalizado com pesada suspensão, contra a qual me insurgi publicamente, pois já me encontrava em Moçambique, havia alguns meses. Ocorreu a arbitrária e injusta sanção em 1965, por ocasião das comemorações dos 25 anos de vigência do Acordo Missionário. As suas Pastorais de índole social constituíram pano de fundo para alguns diplomas legislativas do Prof. Adriano

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Dom Sebastião Soares de Resende, em celebração eucarística, Beira

Dom Sebastião Soares de Resende em Mácuti, Beira, C. de 1965

Moreira, quando Ministro do Ultramar: as conhecidas Adrianadas, na designação depreciativa dos seus críticos, movidos sobretudo por interesses que se julgavam postos em causa. Este mesmo o afirmou publicamente, além de ser fácil verificar algum paralelismo entre ambos. Isso talvez lhe tenha valido a perda do cargo governamental, de que infelizmente foi afastado cedo de mais. Se a legislação atinente prosseguisse na linha de pensamento dos dois Homens públicos e fosse aplicada com sinceridade e coragem, talvez a evolução do Ultramar, em vista da autonomia progressiva, – com a natural independência a seu tempo – se efectuasse noutros termos menos gravosos e com vantagem para Portugal e as antigas Colónias. Todos acabámos por pagar muito caro a demasiada miopia dos altos responsáveis de então, – políticos, militares e mesmo alguns eclesiásticos – rumo ao inevitável, que era a mera concretização de um elementar direito da pessoa humana. 3. Não me detenho na análise do seu pontificado moçambicano, – tarefa já efectuada, embora sempre susceptível de maior aprofundamento – mas limito-me a alguns episódios do meu relacionamento com ele, no decurso dos dois anos e meio, em que ambos exercemos o múnus pastoral em Moçambique (1964-67). Nomeado Bispo de Vila Cabral em 10 de Julho de 1964, – nova Diocese coincidente com a Província do Niassa – fui de imediato convocado para a terceira sessão do Concílio ecuménico do Vaticano II, que se desenvolveu entre Setembro e Novembro desse ano. Fiquei hospedado na Casa Madonna di Fatima, a cargo de religiosas portuguesas, onde D. Sebastião já residira nas duas sessões anteriores (1962 e 63). O facto permitiu-me um muito agradável e proveitoso convívio diário com o insigne Prelado missionário. E pude acompanhar de perto muitas das suas intervenções na Aula conciliar: cerca de uma dezena, sempre oportunas, arrojadas e atentamente

escutadas. Foi ele, sem dúvida, o Prelado português mais interveniente no Concílio. Regressado a Portugal, no termo da sessão, e ordenado bispo em Coimbra, a 6 de Dezembro desse ano de 1964, empreendi a viagem para a minha Diocese, ainda antes do Natal. Na manhã de 23, tocava terra moçambicana no aeroporto da Beira, depois de breves escalas em Angola e Rodésia, agora Zimbabwe. Tinha ali a receber-me e dar as boas vindas, D. Sebastião, acompanhado de um pequeno grupo de conterrâneos e amigos. Foi uma recepção comovente e encorajante para mim. Ocupei todo o mês seguinte – Janeiro de 1965 – em viagens de prospecção pela Diocese, contactando missionários, cristãos e autoridades. Surgiram inesperadamente dificuldades e atritos com algumas destas, sobretudo com o Governador da Província do Niassa. Na primeira quinzena de Fevereiro desloquei-me a Lourenço Marques, para a assembleia plenária da Conferência Episcopal. Referi o meu desentendimento com aquele, comentando preocupado: "Receio estar a iniciar a minha caminhada moçambicana com o pé esquerdo". D. Sebastião ergue-se de súbito e vem até junto de mim, abraçame e diz: "Parabéns! É mesmo assim que se começa. Continue firme". Senti-me tranquilo. 4. Em Maio desse ano, o Episcopado de Moçambique reuniu de novo em Lourenço Marques; desta vez, para comemorar os 25 anos da assinatura do Acordo Missionário, anexo à Concordata. Além de duas entrevistas no Rádio Clube e uma lição na Universidade, – de que era Reitor o Prof. Doutor José Veiga Simão – coube-me proferir uma conferência sobre o tema, no salão nobre da Câmara Municipal. Na Sé catedral, houve Missa concelebrada e solene Te Deum, tendo feito um sermão de circunstância o Bispo da Beira. Foi no dia 9 de Maio. O Diário de Moçambique, jornal da Diocese da Beira, publicou-a na íntegra, sem a submeter à censura prévia,


como garantia a lei concordatária. As Autoridades viram ali um bom pretexto para retomarem as hostilidades contra D. Sebastião, infligindo ao jornal uma pesada suspensão, a 21 desse mês, como já acentuei. Conhecedor do grave atropelo, enviei a 27 um longo Oficio de protesto ao Governador Geral, com cópia a todos os Bispos de Moçambique, Núncio Apostólico e Ministro do Ultramar. A este acentuei: "Sou de parecer que quem aconselhou tal medida, além de se situar fora do Direito concordado, prestou um mau serviço ao Governo da Nação, concorrendo para um acto de perniciosos efeitos políticos, sobretudo na grave emergência que atravessamos. Pela minha parte creio que, procedendo assim, além de cumprir um grave imperativo de consciência, estou a agir a bem da Nação". O incidente trouxe graves dissabores a D. Sebastião – e também a mim, por tabela – e andou pelos Tribunais, mas as razões políticas sobrepuseram-se às jurídicas (Vide "Episódios da minha Missão em África", Braga 1995, págs. 59-61). 5. Deixando de parte muitos episódios dignos de nota, que poderia recordar, passo ao fim de vida do saudoso Prelado. A doença, de natureza cancerosa, revelada ao longo do ano de 1966, não permitia grandes esperanças; sobretudo depois de observada em clínicas especializadas da Europa. Regressado à Casa episcopal da Beira, – onde desejava terminar os seus dias – viu-se envolto em cuidados e carinho pelos seus dedicados colaboradores e inúmeros admiradores. Nos dias 3 e 4 de Dezembro, desloquei-me à Beira, para o visitar e fazer-lhe companhia durante a noite, permitindo aos sacerdotes da Casa que tomassem um pouco de repouso. Num caderno de apontamentos, que conservo religiosamente, deixei escrito em estilo quase telegráfico: "Este causou-me uma extraordinária impressão, pela sua lucidez e conformidade. Que grande Prelado! Foi-o em vida e é-o sobretudo na morte. Uma onda de carinho e simpatia envolve-o inteiramente. Celebrei Missa no seu quarto de holocausto. Foram para mim momentos inefáveis. Depois despedi-me (talvez até à eternidade) e segui para Nampula". Confidenciou-me que havia escrito ao Papa a insinuar a minha pessoa para lhe suceder na Diocese da Beira. Mostrei-me sensibilizado, mas pedi-lhe que não se preocupasse com isso, pois o que importava então era a sua saúde e devíamos deixar o futuro aos desígnios de Deus. Constou-me mais tarde que o Episcopado de Moçambique era da mesma opinião, mas a Santa Sé não achou oportuna a minha saída de Vila Cabral, nessa ocasião, por ter iniciado um processo de aproximação com os cristãos separados – sobretudo os anglicanos, muito numerosos junto ao Lago Niassa – e os muçulmanos e convinha fomentar esse caminho. Não sei que verdade haverá no caso, pois o Bispo em causa costuma ser o último a tomar conhecimento do que lhe diz respeito, se é que chega a

saber... Na manhã de 25 de Janeiro de 1967, chegou-nos a notícia do falecimento de D. Sebastião, estando os Bispos reunidos na capital, em assembleia da Conferência. Dois dias depois, rumámos para a Beira, onde efectuámos a Liturgia fúnebre pelo Extinto. Escrevi, no citado caderno, que após a Missa, "ao meio dia começou o impressionante cortejo que demorou uma hora até ao cemitério. Nunca supus que atingisse tal grandiosidade e emoção: talvez mais de 30.000 pessoas, com predomínio de pretos". Ainda em Lourenço Marques, no próprio dia do falecimento, proferi uma alocução no Rádio Clube, a pedido deste, em que afirmei: (...) "O senhor D. Sebastião Soares de Resende, primeiro Bispo da Beira, foi grande na vida e mostrouse gigante na morte. (...) O Mundo português acompanhou angustiado uma dolorosa agonia que se prolongou por muitas semanas e que serviu para demonstrar à saciedade a sólida virtude, a inquebrantável fé e a caridade sem limites do Bispo da Beira: o servo da Verdade, o amigo dos humildes, o homem de largos horizontes". 6. Na tarde de um de Fevereiro, celebrei a Liturgia fúnebre de sétimo dia por D. Sebastião, na mini-Catedral de Vila Cabral. Anotei: "Pouco antes, esteve na Casa episcopal numeroso grupo de muçulmanos a apresentar condolências. Falou o Chehe Cássimo e, no final, rezaram cantando e fizeram uma colecta para a tradicional Sadaka". Expliquei que o nosso gesto era "um impulso de caridade (...) Mas é também um sentimento de gratidão: reconhecermos os altos serviços que o senhor D. Sebastião prestou à Igreja e Moçambique, no decurso dos 23 anos do seu fecundo Pontificado. Por isso, aqui estamos todos: clero e fiéis, autoridades e dirigidos, brancos e pretos, católicos, anglicanos e muçulmanos. (...) Demasiado grande para ser compreendido por homens demasiado pequenos, não foi isenta de lutas e dores a sua vida, que são a inevitável herança dos que não pactuam com injustiças ou transigem com o mal. Mas nunca aquelas lhe trouxeram o travo da derrota, ou estas lhe quebraram o ânimo paciente, pois tinha consciência de se encontrar constantemente ao serviço da Verdade e da Justiça, da Liberdade e do Bem. (...) Porém, nas ocasiões mais delicadas, difíceis ou injustas da sua vida, jamais nele diminuíram a serenidade, a lucidez do raciocínio, a caridade cristã. Nisso se revelava a sua invulgar grandeza. Por isso, a sua morte foi tão sentida; e o funeral, que ele desejou modesto e simples, transformou-se em apoteose: uma apoteose espontânea, não preparada, que irrompeu incontida da alma do Povo anónimo que os antigos interpretavam como a voz de Deus. Sendo assim, pode dizer-

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Exéquias fúnebres de Dom Sebastião Soares de Resende - 1967

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se que D. Sebastião foi canonizado no dia do seu funeral. Eu vi milhares, dezenas de milhares de pessoas – quem poderia contá-las? – acompanhar emocionadas o féretro ao cemitério, ou postadas respeitosamente ao longo das ruas do longo percurso. Era gente de todas as categorias e condições, de muitas etnias e línguas, de variadas mentalidades e religiões. (...) E sobre a humilde campa rasa, agora coalhada de flores por mãos devotas, apenas se vê uma singela legenda, que ele mesmo escolheu, ao redigir o seu testamento que é, com o emocionante diário íntimo, o espelho fiel da sua alma cristalina: Sebastião, primeiro Bispo da Beira. " (Vide "Missão em Moçambique", Vila Cabral, 1970, págs. 250-253). Seja este mais um preito de homenagem que presto a "D. Sebastião Soares de Resende, o servo de Deus e servidor dos homens".


Oferta do Livro “Profeta em Moçambique” a sua Santidade o Papa João Paulo II.

D. Sebastião de Resende Profeta em Moçambique *Adriano Moreira

A intervenção missionária no antigo Império Português tem uma história de serviço frequentemente marcado por personalidades de excepção. O século XX também guarda a memória de muitos sacerdotes que se guiaram, no contexto de etnias e culturas diferentes, pela regra de que o Povo de Deus não tem estrangeiros, e que a dignidade humana é um valor igual para todos os homens, cada homem sendo um fenómeno que não se repete na história da Humanidade. A relação de soberania colonial foi sempre mais exigente, pelos seus condicionalismos estruturais, em relação ao valor da independência missionária, e na crise aguda da descolonização, que atingiu todas as soberanias euromundistas, e por isso envolveu severamente Portugal, a linha de separação entre a responsabilidade missionária e a responsabilidade da soberania não podia deixar de ser pontuada por desencontros.

*Ministro do Ultramar - 1961|1963 Vice-Presidente da Assembleia da República - 1991|1995

Entre os missionários dessa época destacou-se D. Sebastião de Resende, Bispo da Beira, cuja intervenção, frequentemente apaixonada, em favor da autenticidade das políticas coloniais, o levou a frequentes confrontos, incluindo discussões judiciais, com o poder político. Mas nunca em contradição ou desvio com a missão de Bispo sucessor dos apóstolos, sem beliscar a sua condição de português. Pessoalmente prestei atenção demorada à sua pregação, e algumas das medidas da minha responsabilidade governativa tiveram apoio nas intervenções corajosas e lúcidas que lhe ficamos a dever. No Prefácio que escrevi para o livro que organizei para recolher os seus escritos mais valiosos, descrevi esse trajecto de encontros e a marca que ficou da sua intervenção em todo o povo africano. Esse livro, intitulado Profeta em Moçambique, foi por mim entregue a João Paulo II em 29 de Março de 1995, acompanhado por Manuel Bulhosa, editor, que muito ajudou D. Sebastião em Moçambique, e pelo Padre Joaquim António de Aguiar, o infatigável director do Colégio Universitário Pio XII, que tratara de marcar a audiência. O facto está documentado pela Carta recebida do Secretariado de Estado do Vaticano, que a seguir se transcreve. «Vaticano 22 de Abril de 1995 Ilustre Senhor: No curso da Audiência Geral do Sumo Pontífice do passado dia 29 de Março, quis, numa atitude de devota homenagem, deixar nas suas mãos

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um exemplar do livro “Profeta em Moçambique”, colectânea de textos de D. Sebastião Soares de Resende, Bispo da Beira – fruto de longos anos de pesquisa e testemunho de grande admiração por essa benemérita figura eclesial, sem dúvida precursora e geradora de novos tempos para a terra moçambicana. O Santo Padre, que lhe terá já manifestado o Seu apreço, confiou-me a grata incumbência de vir reiterar o Seu reconhecimento pela deferente homenagem e certificar que implora de Deus sobre o senhor Doutor Adriano Moreira e seus entes queridos, as mais copiosas graças celestiais. Em penhor destas, e como prova da benevolência com que aceitou o preito que quis render-lhe, Sua Santidade concede-lhe, extensiva a quantos colaboraram na obra e respectivas famílias, uma particular Bênção Apostólica. Aproveito a circunstância para lhe afirmar protestos da melhor consideração. † J. B. Re, Subset.»

Por 1967, visitei na Beira o cemitério onde, no caminho, estava a sepultura de D. Sebastião. Estava vedada aos caminhantes pelas flores que ali depositavam os fiéis.


D. Sebastião Soares de Resende, profeta da minha particular predilecção *António de Almeida Santos

Conheci D. Sebastião Soares de Resende, então Bispo da Diocese da Beira, Moçambique, em circunstâncias muito peculiares. Em 1949, o Orfeão Académico de Coimbra fez uma memorável digressão cultural a S. Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e África do Sul. Eu integrado nele como cantor, guitarrista e orador oficial. Foi uma viagem memorável, por barco, que se arrastou por três longos meses. A vertigem das deslocações viria mais tarde. Foi também, segundo creio, a primeira embaixada cultural que a Metrópole enviou ao Ultramar. Sensacional por isso. Na Cidade da Beira, o Orfeão foi, naturalmente, cumprimentar o prelado. Todos os orfeonistas lhe beijaram a mão menos eu. A minha fé já me tinha abandonado. Talvez por isso, ou talvez não, D. Sebastião, pouco depois, desafiava-me para almoçar com ele no dia seguinte. É claro que aceitei com alguma curiosidade. Porquê eu? E lá fui, para um almoço a dois, que se arrastou até ao meio da

*Ministro em vários Governos Provisórios e Constitucionais. Presidente da Assembleia da República de Novembro de 1995 a Abril de 2002

tarde. E aquele almoço foi, em certo sentido, a minha "Estrada de Damasco". Não para um regresso à fé religiosa. Para isso era tarde. Mas para uma paixão por África, e pela sua libertação, que viria a preencher duas décadas da minha vida. Com uma espantosa capacidade de premonição, o bom prelado fez passar, diante dos meus olhos, a cinco anos de Bandung, e num momento em que, em Portugal, o regime colonial era indiscutível e indiscutido, o filme da emancipação dos povos africanos secularmente sujeitos à dominação colonial. A África ia acordar e libertar-se. A última guerra havia sido ganha por duas potências anticolonialistas: os E.U.A. e a URSS. A Inglaterra e a França, principais países colonialistas, na prática eram falsos vencedores. A Carta das Nações Unidas havia inscrito no seu texto o direito à descolonização e à independência dos povos não autónomos. As injustiças da prática colonial, nomeadamente o trabalho forçado, herdeiro da odiosa escravatura, começaram a ser denunciadas pela consciência universal. O surto descolonizador do fim da primeira grande guerra ia repetir-se após a segunda. Movimentos sociais, culturais e artísticos começavam a despertar nesse sentido. O clarividente prelado previu assim o movimento da negritude, o movimento terceiro-mundista, a cúpula de Bandung. Porque me escolheu a mim para lançar essa semente? Mistério que o Império tece! Não sei se a terra era boa. Sei, sim, que a semente frutificou. E ali mesmo decidi, possuído de uma estranha determinação, que findo o curso de direito regressaria a África para exercer a minha profissão de advogado. A causa da emancipação da África seria a minha primeira causa.

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Foi delicado ao ponto de dizer que não tinha querido influenciar-me. Mas já tinha. E eu cumpria promessa de me fixar em África e de me bater contra o regime colonial. Mal podia eu imaginar que estava no meu destino vir a participar, como Ministro dos primeiros quatro governos provisórios, após Abril, no difícil processo de descolonização, ao fim de mais uma década de guerra cruenta pela emancipação da Guiné, de Angola e de Moçambique. Após o meu regresso a Moçambique, reatei o meu contacto com D. Sebastião. Ele enviava-me as suas pastorais antes de publicadas – e muitas vezes antes de apreendidas pela censura – e eu enviava-lhe os meus textos de combate político (livros, exposições, abaixo-assinados, protestos) os mais deles também retidos no crivo da censura. E assim prolongámos a recíproca amizade nascida no almoço de 1949. Foi para mim um raro privilégio ter podido conhecer um tão ilustre prelado, e sobretudo ter podido usufruir do privilégio da sua amizade. Quando, recentemente, foi publicado um volumoso livro em sua memória, intitulado "O Profeta de Moçambique", revi-me no título e no merecido elogio que o livro é. D. Sebastião Soares de Resende foi um dos mais lúcidos, conscientes e ilustre prelados da Igreja Portuguesa. Foi pena, muita pena, e uma grande perda para Portugal, que a sua voz não pudesse ter sido ouvida. Se o fora, o desastre que foi o fim da nossa saga colonial, teria sido evitado. Mas Lisboa era impenetrável pela evidência, e acabámos por ser os últimos, quando podíamos ter sido os primeiros, a compreender e a aceitar os determinismos da história. Não fora, aliás, a escandalosa expatriação de D.

António, Bispo do Porto, e Salazar teria cedido à repetida tentação de impedir o regresso a Moçambique de D. Sebastião. Recordo-o como um dos seres humanos mais lúcidos, mais cativantes, e que mais influenciaram o meu destino.


«O esforço é grande e o homem é pequeno» F. Pessoa, «Mensagem», II, III

D. Sebastião Soares de Resende Percurso de uma vida entre o berço, Milheirós de Poiares – Feira, 14.6.1906 e para além do túmulo, Beira – Moçambique, 25.1.1967 *David Simões Rodrigues

* Licenciado em Filosofia e Literatura Grega e Latina, Clássicas, com as variantes de Literatura Brasileira e Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Diplomado em Histórico-Filosóficas. Curso de Teologia. Dedica-se à Investigação Científica.

1. Pesquisa e silêncios «Silêncios expressivos. Tanto mais quanto D. Sebastião é das chaves fundamentais para compreender a complexa história da presença portuguesa e da Igreja Católica em Moçambique. D. Sebastião Soares de Resende.Três os signos fundamentais marcantes, para o autor, da sua extraordinária personalidade de Português e de Missionário na África de 1943-1967: a). O doutrinador apostado em extirpar a ignorância em todos os campos humanos, e por isso sempre numa mão o Evangelho e na outra a Cartilha Maternal. b). O libertador tenaz de todas as escravidões, evidente a sócio-laboral do Negro, com perigo da sua liberdade. c). O perseguido vítima de interesses que se aproveitavam da ignorância e da fraqueza para escravizar. Três signos firmes sobre sólidas bases que o definem 1. O Homem de acção programada. 2. O Cristão de vivências divinamente profundas. Em síntese: Alguém invulgar cuja vida vivida em linha recta foi traçada de cabeça bem firme no Céu e de pés bem assentes na Terra, isto é, entre Deus e os Homens. Eis o Homem. D. Sebastião Soares de Resende, poderia apresentar-se controverso. Não discutimos razões. Apresentamos factos. Não passam despercebidos gigantes nas ruas. Há vivas fotografias dos seus funerais. Ali do fundo do silêncio sofrido, dezenas de milhar de participantes lentos, fúnebres, a pé, acompanhando o féretro, apinhados nos terraços, nas varandas, às janelas, sobre muros e árvores, nos passeios das ruas, gritaram bem alto as excelsas virtudes do Bispo

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que os assistiu desde 1943, até à imolação total da sua vida, “por todos os da minha diocese, por Moçambique, católicos, ortodoxos, protestantes, muçulmanos...”. Que maior forma de consagração e aprovação da sua acção missionária se desejava ? Inconscientes das dificuldades, estamos aqui por imperativo da aceitação de um repto. Tão complexo trabalho quanto rica de conteúdo a personagem em foco, necessariamente sofrerá os efeitos. Porém, se dos traços deixados resultar maior e melhor visão do Homem, do Português, do Missionário, do Mártir da política mal formada, do imenso Bem espalhado por simples Amor nas almas à sua volta, sobretudo entre os mais fracos do mundo, dará o autor por muito bem empregue tempo, sacrifícios, no alinhavo destas notas sobre D. Sebastião Soares. Merece a figura singular e a terra-berço. Felizes os vivos que não esquecem seus mortos. Porque exemplares faróis humanos, há deles cuja memória é forçoso manter-se como guia iluminando caminhos de referência. Se, na verdade, antes de tomar contacto mais próximo e directo em nós pairava a difusa ideia da sua grandeza, a verdade é que leitura, estudo, reflexão foram aproximando a sua figura, tornada tanto maior, mais clara, fulgurante quanto a proximidade do horizonte a desenhava. Tanto que se nos impôs profunda a veneração de quem via tanto branco de alma negra e tanto negro de alma branca. Conhecer identifica e aprofunda e tão fundo quanto a descida por ele ao fundo das coisas e das pessoas com que se confunde. No fundo do fundo do ovo de suja casca se encontra o centro da vida que se define e difunde na fecundação que desencadeia um processo de aquisições adaptadas à sua específica estrutura. Assim se compreende o afanoso jeito de gente sabedora da realidade no seu inverso, - silenciar. Silenciar, convém a alguns, sempre sub-reptícios, como não dando conta, para que outros desconheçam.1 O silêncio mata, a memória revive. Vamos na memória contra o silêncio......................

2. Os extremos tocam-se ou circularidade e História «...nestes dias, após a vinda de Roma uma dor no braço esquerdo e ombro tê-me mortificado muito». 29.10.1966. «Três últimas noites de cruz... não durmo... não tenho posição possivel na cama sem dor...» 15.11.1966. «Hoje o médico disse-me o estado de saúde... aceito para salvar a minha diocese e preparar o Grande Encontro...» 22.11.1966. «...Preparei-me para morrer... recebi a extremunção... pedi perdão ao Clero, irmãs e irmãos a dor é grande e prolongada.» 26.11.1966.

A 25.01.1967, 10 e 3/4 da manhã, aos 60 anos de idade e mal contados 24 de trabalho de missionação, a Vida surgida a Ocidente num berço de beco de Milheirós de Poiares, aldeia rural e que rumara a Oriente aqui se apaga na buliçosa cidade da Beira, Moçambique. Ao seu porto arribara em 30 de Novembro de 1943, de uma forma tão simples, anotada assim : «1 de Dezembro 1943: Cheguei à Beira na véspera onde me veio cumprimentar Mons. Santos, o governador e o presidente da Câmara. À tarde fomos respirar um pouco de brisa ao farol do Macúti, à granja onde vimos a fábrica de tijolos da missão e o internato das Irmãs de Maria. Assim terminou o primeiro dia na diocese da Beira.» Há aqui genesíaco sabor. (Diário) Em 25 de Janeiro de 1967, encontrava-se o autor em missão de assistência aos militares portugueses «em missão de soberania», dizia-se então, mais especificamente na confluência dos rios Cuandu/Cubango, «Terras do Fim do Mundo». Invadiu-se-nos a alma de tristeza ao ouvir a infausta notícia de que da Beira partira rumo à eternidade, num oceano de sofrimento. «D. Sebastião Soares de Resende, ilustre Bispo da Beira, acaba de falecer esta manhã, serenamente, vítima de doença prolongada...» Mal imaginava então encontrarmo-nos hoje e aqui, por razões diferentes.

1 Estranho (?) o caso, ao acaso. O «República», tão atento a tanta mesquinha coisa, nem palavra sequer nesta morte. Também, obediente aos mesmos códigos, não se estranha que Henrique de Oliveira Marques, deles devoto cultor, trilhasse igual caminho. Não regateia, porém, espaços e louvores aos apaniguados republicanos e, obviamente, à sua Maçonaria. Mas o que mais nos intriga e interpela é José Mattoso, pelo menos na sua História de Portugal recente. Há silêncios gritantes que fazem também história.


Aqui nasceu em 14-06-1906 D. Sebastião Soares de Resende, Bispo Missionário ordenado Sacerdote em 21-10-1928, Professor de Seminário do Porto, eleito Bispo da Beira (Moçambique) em 24-04-1943, Sagrado Bispo em 15-08-1943, falecido em 25-01-1967. Homenagem no 25º aniversário do seu falecimento 25-01-1992

E o nome da criança chegada a este mundo era simplesmente Sebastião, filho caçula de casal de vulgares lavradores. E o que partia deste mundo quis que fosse também e simplesmente «Sebastião, 1º Bispo da Beira». Mas, construtor da «Hora decisiva de Moçambique», oferecido em holocausto a Deus por todos os Homens e «Por um Moçambique melhor» sob as «Responsabilidades dos Leigos».4

África, onde «Há homens ... venenosos como víboras, mesmo querendo ser ou parecer dos nossos....». Em África, notavelmente se lançou na acção e na palavra,6 sobretudo escrita nos sólidos alicerces da Verdade, da Justiça, do Amor e da Paz. Exemplo é o historial heróico do «Diário de Moçambique», das suas maiores glórias, mas também dos mais dolorosos martírios, muda testemunha dessa corajosa luta enfrentando obscuros poderes locais, estatais, policiais. A este se juntou o do Colégio-Liceu da Beira. Diga-se com o realismo devido. Andou acesa a polémica. Nestes casos e no do algodão se empenhou com denodo. Quanto a nós, à luz da paridade com casos de outros, não foi posto fora da fronteira e não entrou numa prisão, por uma de três razões ou por todas. a)O Bispo e os casos estavam fora de portas, lá muito longe, a Beira já ia para Oriente. b)O preso seria grande de mais para tão pequena porta. Dava demasiado nas vistas. c) Seriam maiores as perdas abrir segundo incidente que traria terceiro e não se sabe quantos mais. Barulho a mais e frentes a mais. A cena internacional não corria de feição ao regime. Seria perder tudo por agarrar uma parte, além de colocar nas mãos da oposição os trunfos do jogo......................

Não passava de prisioneiro que «andava em liberdade pela cidade... A PIDE seguiu-me do aeroporto desde a chegada, permanecendo aqui à porta, segue-me para toda a parte. Nunca pensei que as coisas chegassem a isto». 7 Em 16.6.1965,chegado à Beira, ido de Lisboa, onde veio tratar da suspensão do jornal, regista no «Diário»: «Contaram-me que a PIDE está decepcionada com o meu regresso da metrópole. É sinal de que esperavam que eu não voltasse. Corre aqui (Beira) esta quadra»:

Do caçulito Bastião, D. Sebastião, restam muitas coisas:Flores, muitas flores sobre o túmulo; muitos escritos seus a continuar sua voz; muita gente escrevendo sobre o seu percurso nesta vida toda ela centrada, sobretudo, na intransigente defesa e libertação de escravidões políticas, sociais, morais sempre à divina Luz de Jesus Cristo, consciente de que «O Mundo Moderno, que morreria do que afirma, continua a viver do que nega».5 E de que, se o Homem se instrui pela palavra, só pela Cruz se salva. Cumpriu, porque «Em África, há muitas palavras e poucas realizações». Em

2 Carta Pastoral de D. Sebastião, Natal de 1953. 3 Páginas de doutrinação Moçambicana, 5, D. Sebastião, ano de 1963. 4 Carta pastoral de D. Sebastião aos seus diocesanos no fim do ano de 1956. 5 «A Crise do Mundo Moderno», Leonel Franca. Citação feita de memória. 6 «Diário», 11.5.1948, a propósito da ambiguidade da Portaria 12.232 sobre missões e sua capacidade jurídica para a fundação de liceus, em particular do liceu da Beira. Viu-se depois o problema criado pelo ministro R. Ventura. 7 Mas chegaram. E o «chefe» a que chama «manhoso e terrível», chegou a ameaçar o Papa com sanções à Igreja em Portugal caso fizesse ondas com mais este caso. Quem diria? «Diário», em 27.5.1965, quando veio a Lisboa tratar da suspensão do «Diário de Moçambique» que publicara uma sua homilia cortada pela Censura no que não convinha ao Governo. Encontra-se com Salazar e Raul Ventura, Ministro das Colónias, sobre quem deixou amarga crítica.

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«Sebastião e António andam em grande disputa, um é filho da Fé, outro é filho da...!!!!» «Tem piada.»8 Comenta jocosamente o senhor bispo, no seu «Diário».

3. Milheirós de Poiares – a notoriedade de uma aldeia então perdida no mapa

Baptizado pelo abade Serafim José dos Reis, que lhe seguiu todo o percurso de seminarista, de ordinando e de Missa Nova. Privado da alegria de ver o pupilo também bispo de África, pois o velho abade falece em 4.2.1941. Pouco tempo depois, publicamente, 1943, saber-se-ia da sua nomeação para bispo da diocese da Beira, criada em 4.9.1940, e já pensado para ela. Do padrinho recebe o nome de Sebastião, a que não será alheio o culto a este Mártir da Fé cuja imagem se venera na paroquial.

3.2. A Família e Milheirós. As raízes. Sebastião Soares de Resende, filho de José Joaquim Soares de Resende e de Margarida Rosa dos Santos.10 Criança de aldeia cristã aprende o catecismo com a mãe e com a mestra, e na escola primária as primeiras letras até à 4ª classe. Comunhão solene feita, finda a primária, terá havido, diz a

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José, o pai, o filho Sebastião de sete anos, 1913 - a mãe Margarida - as três irmãs, ao centro a mais velha.

3.1. D. Sebastião Soares de Resende nasce às 12 horas da noite de 14 de Junho de 1906, em Milheirós de Poiares em cuja paroquial, , é baptizado em 8 de Julho seguinte.9 É o mais novo de dos seis filhos, três rapazes e três raparigas. A Mãe Margarida

8 Viera à Metrópole debater com os governantes a oposição à vinda de Missionários e a suspensão que do «Diário de Moçambique» fizera o Governador Geral mancomunado com Lisboa. Falou com Salazar, o Ministro do Ultramar e com o Núncio. Avistou-se com o prof. Dr. Cavaleiro Ferreira a fim de patrocinar a defesa do caso que ficou entregue aos tribunais que nada resolveram, arrastando-se para além da morte de D. Sebastião. O advogado António Carlos Lima, grande amigo, e não menos admirador, ficou com o caso de que tratou graciosamente. Foi tanta e tal a oposição política que o advogado se viu impotente apesar de concitar sumidades, como o Cardeal Patriarca, e eminentes professores de direito de Coimbra e de Lisboa, Guilherme Braga da Cruz e Marcelo Caetano. Cf. o dito advogado, autor de «Caso do Bispo da Beira» Documentos, 1990, Civilização Editora. 9 AHRCF – Livro de Registo de Baptizados, 1906, fl. 8, nº 16. Foram padrinhos o tio paterno Sebastião Soares de Resende, casado, morador no lugar de Samil, Freg. de Vila Chã de São Roque, Oliveira de Azeméis; madrinha a esposa do padrinho, Maria Rosa da Conceição Dias da Costa. Baptizou o P.e Serafim José dos Reis. A pia baptismal foi substituída em 1950 e dela restam a coluna de suporte. Reduzida a pedaços, restam fragmentos desencravados de um muro para preservar. Reedificada em 1904, benzida em 1907, conserva belíssima talha renascentista datada de 1579, dourado em 1582. ANTT – Porto, Conv. do Salvador, vol. único, 2ª parte, fls. 18 e 105 v.. A primitiva situava-se noutro lugar.

O pai José Joaquim

tradição familiar, indefinição no rumo a dar à vida e aqui se gastaram cerca de dois anos. Dividido entre os trabalhos das terras da casa paterna, a ideia de profissão de harmonia com as tradições locais e as tendências do próprio, ter-se-á colocado a hipótese de enveredar pela profissão de barbeiro, ainda nesses tempos ligada à de agente das medicinas populares, entre as quais avultavam as de sangrador, aplicador de sanguessugas, ventosas, alveitar, lancetador de abcessos. O pequeno Sebastião mostrava inteligência e devoção fora do comum. Aí decisiva a interferência do abade, Serafim

10 José Joaquim nasce a 24.7.1866, falece a 15.8.1951, em Macieira de Sarnes. Margarida Rosa nasce a 25.12.1862 e falece a 20.2.1947, em Macieira de Sarnes, em casa da filha mais velha. Aqui repousava o filho bispo de África...


Sentados: Ana, casada com filhos - Aninhas - a mãe Margarida - o Pai José Joaquim - Margarida que casou com Crispim Loureiro De pé - Artur Resende - António Moutinho, tio paterno - Maria, casada com Capela, pais dos padres José Capela e Sebastião Brás - Seminarista Sebastião, 1926 - Rosa, casada com o Friinho, Arrifana - José Soares de Resende.

José dos Reis.11 Para admissão ao Seminário ter-lhe-á ministrado conhecimentos. Por apurar, fica o ano de admissão e o Seminário exacto, por falta de fontes e o autor discordar do encontrado, baseado em argumentos válidos. 12 Perante a difícil definição do futuro, surge a situação, fortuita?, providencial? Chame-se-lhe o que se quiser.13 Um dia, perante o caso, o tio-padrinho diz-lhe: «não tens dificuldades, dou-te à escolha, vens para minha casa e tens lá trabalho e comer ou vais, se quiseres, para o Seminário e eu ajudo-te no que for preciso».

Estudante em Roma

São Sebastião - Igreja de Milheirós de Poiares

Brilhante no Seminário do Porto, na Universidade Gregoriana de Roma, no Instituto de Ciências Sociais de Bérgamo, seria doutor, professor no Seminário em que estudara, cónego da Sé, bispo dos mais novos, 35, em mente, 37 na realidade, excepcionalmente, como excepcional seria a sua acção pastoral de Missionário em Moçambique, padre conciliar notável no Vaticano II, fez tremer ministros e governadores gerais, revolucionou, no bom sentido, as mentalidades coloniais, profeta da África Negra a quem os brancos de lá e o Governo de cá não entenderam, a quem Moçambique prestou impressionantes homenagens de pesar, com dezenas de milhares de participantes nos seus funerais e com sentimento de verdadeiro pesar. O mais impressionante: perante esta figura de Milheirós de Poiares que os poderes tentaram humilhar se inclinaram reverentes todas as classes sociais, todas as religiões e os próprios poderes ontem perseguidores. Todos os credos políticos falaram bem. Todas as ideologias se inclinaram. Só o «República», sem de quê aparente, silenciou: doença, morte e funeral. Mas o silêncio vindo donde vem não carece de comentário, pois se comenta a si próprio.

4. Seminários do Porto O primeiro registo no Seminário da diocese do Porto, Vilar, aponta a entrada no ano lectivo de 1923/24. Ora tem ele 17 anos feitos. Ordenado em 1928, tem 5 anos de Seminário. E os restantes 4 ou 5 anos? Equivalia este !923/24 ao curso de Filosofia também incluído na designação lógica e genérica de «preparatórios», para o curso de «Teologia», centrado este mais na preparação específica e aprofundada para a ordenação sacerdotal e seu desempenho.14

11 P.e Serafim José dos Reis, abade de Milheirós, nasce em Escapães a 28.12.1871, aí falece a 4.2.1941. A fotografia é de 8.8.1931. Em 1904 é ele quem inicia a reedificação da igreja de Miheirós, findada em 1907. 12 Segundo o apurado pelo autor, dentro das dificuldades próprias, esta omissão documental ter-se-á devido a um incêndio no Seminário de Vilar o qual, em 15.01.1948, reduziu a cinzas também documentação de arquivo. 13 Informação do sobrinho Eng. Joaquim Soares de Resende, residente em Espinho, recebida da tradição familiar. Agradece o autor a colaboração. 14 Para melhor entendimento da situação desta matéria diga-se que o percurso dos Seminários, no âmbito cronológico da época e segundo a prática geral estabelecida nos Seminários para a preparação dos candidatos ao sacerdócio e seu desempenho pastoral posterior obedecia, até 1933, a parâmetros programáticos de dez anos de formação repartida pelas etapas seguintes: 1. Estudos Preparatórios propriamente ditos, cinco anos; 2. Curso de Filosofia, dois anos, ela própria sob a mesma designação. Equivaliam aos estudos liceais completos adicionados de disciplinas próprias dirigidas à formação integral científica, cultural e cristã do formando. 3. Curso de Teologia: três anos que, em 1933, passam a quatro, autêntica Faculdade equivalente a um curso universitário sério, abrangente e aprofundado. Os que davam mostras de

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Em 1925,aluno sempre distinto e sempre premiado,matriculase em Teologia no Seminário de Nossa Senhora da Conceição. Ora, não será preciso grande exercício mental para concluir que a sua matrícula documentada, em 1923, em Vilar, onde esteve dois anos, que seriam de Filosofia. Historicamente documentados estão os últimos 5 anos, 2 de Filosofia e 3 de Teologia. Onde os primeiros 5 anos de Preparatórios, propriamente ditos? O que se terá passado verdadeiramente nesses cinco anos e onde? Em 1923 tem 17 anos, admitindo, em teoria, a entrada no Seminário dois anos após a conclusão da Primária, aos 13 anos, teríamos 1919. Em que Seminário passou os 4 anos de hiato documental? As razões para este vazio di-las-á a nota acima.

5. A sucessão das ordens

óbice algum consta. Está no 2º ano de Teologia. A 10 de Outubro, o vice-reitor António Ferreira Pinto atesta que exerceu o múnus de turiferário, que está aprovado nos exames prestados e que está em exercícios espirituais desde 10 referido a 16 do mesmo Outubro. A 15 recebe Prima Tonsura na capela da Torre da Marca, então paço episcopal, sendo ordenante D. António Barbosa Leão. (1860-1929). A 17, é Ostiário e Leitor; a 18.12.1926, Exorcista e Acólito, na Sé.

5.2. Ordens Maiores – Subdiácono, Diácono e Presbítero 1. Subdiácono - Em 9 de Maio, 1927, requer o Subdiaconado e dispensa do interstício.17 A 11 de Junho perante o abade de Milheirós de Poiares, Serafim, comparecem as testemunhas para deporem no processo de habilitação.

5.1. – Prima Tonsura, Ostiário e Leitor; Exorcista e Acólito.

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Nelas são intervenientes a título de testemunhas, paroquianos da freguesia, onde residem: Ordens Menores: Outeiro. Subdiaconado: Seixal. Diaconado: Palhaça. Presbiterado: Igreja e Relvas. Efectivamente: Em 27.6.1926 pede Ordens Menores. Em 14 de Julho é-lhe passado atestado favorável assinado pelo pároco, Serafim José dos Reis, ouvidas as testemunhas: Manuel Leite de Pinho Leão, 46 anos, lavrador, casado, natural e residente no Outeiro de Milheirós. - Roberto Leite Dias de Pinho, 36 anos, solteiro, aí residente. - José Dias de Pinho, 57 anos, lavrador, também daí. Em 29 de Agosto, à Estação da Missa Paroquial foi anunciado o pedido de Prima Tonsura e Ordens Menores intimados os paroquianos a declararem qualquer impedimento canónico que obstasse. Em 31, é-lhe passada declaração em como intelectualmente mais capacitados seguiam para especializações em Universidades várias consoante apetências do doutorando e necessidades do Seminário de docentes dessas disciplinas. Dirigia-se, a maior parte, para a Pontifícia de Roma, dita Gregoriana, para se especializar em Ciências Filosóficas, Teológicas de vária espécie, Direito Canónico, Bíblia, Sociologia, Música, Línguas Aramaicas, etc. constituindo, ordinariamente, o suporte científico da docência dos Seminários das respectivas dioceses. Junte-se, em abono da verdade e da justiça históricas, que todos os Seminários, estabelecimentos de ensino de público e reconhecido prestígio, prestaram a este País, e gratuitamente, muitos e relevantes serviços científicos, literários e culturais. Efectivamente neles se cultivaram muitas e brilhantes inteligências que, sem eles, teriam ficado para sempre perdidas nas leivas das lavras dos campos dos seus ancestrais. É certo que deles «morderam», acto gratuito, a mão da Igreja que, generosa, lhes deu o «pão», fazendo do dia do benefício a véspera da ingratidão. 15 «Boletim da Diocese do Porto»: 1924, pg. 423 e 424; - 1925, Novembro, pg. 173; - 1926, Novembro, pg. 293, 294; - 1927, pg. 319, 320; - 1928, Dezembro, pg. 310, 311. 16 As testemunhas intervenientes nos processos canónicos de D. Sebastião para a recepção de ordens são hoje todas falecidas. Todas da freguesia de Milheirós. Terão descendentes que nelas gostarão de rever-se.

Ordenação

17 Em conformidade com a doutrina dos cânones 974, # 1, n.º 6 e 978, do CIC (Codex Iuris Canonici): interstício consiste, para que alguém possa licitamente ser ordenado, isto é investido nas ordens sacras, na observância de um intervalo de tempo previsto e decorrido entre a recepção de um grau de ordens e o seguinte. Tempo variável segundo o grau a receber e o critério do Bispo, que se regulará pelas provas de idoneidade do ordinando, as necessidades da diocese e o grau da ordem a receber pelo ordinando das mãos do seu Ordinário. Há circunstâncias em que a competência jurisdicional para a dispensa depende exclusivamente da Santa Sé. Em D. Sebastião encontramos ambas as situações.


Bernardo Alves Moreira, 56 anos, solteiro, capitalista, morador no lugar do Seixal, Milheirós. Manuel Alves Moreira,39 anos, solteiro, proprietário, aí residente. Rufino de Oliveira Costa, 72 anos, casado, lavrador, residente no lugar das Relvas, Milheirós. Em 22 de Maio à Estação da Missa o abade faz anúncio da petição na forma e finalidade acima ditas. A 11 de Junho certifica a inexistência de qualquer declaração contrária. Em 6 de Julho, em Notário se constitui património ou «título canónico de ordenação»18 para a recepção de Ordens Sacras, pelo que apresenta os títulos nº 131:179 e 036:521 da dívida pública portuguesa, fundo interno e consolidado. Em 7 do mesmo mês é isento do serviço militar e passado atestado de aprovação nos exames prévios, reza do Breviário e profissão de fé. Faz exercícios espirituais de 24 a 30. No seguinte, 31, na Sé Catedral, recebe o subdiaconado das mãos de D. António Barbosa Leão.

2. Diaconado. A 9 de Maio de 1928, requer e segue-se-lhe processo idêntico aos anteriores. Em 27 do mesmo mês, o Abade anuncia na igreja a obrigação de, quem tiver conhecimento, denunciar qualquer impedimento canonicamente impeditivo da ordenação. Em 30, o pároco Serafim chama à residência paroquial de Milheirós as testemunhas do estilo, todas naturais de Milheirós, residentes no lugar da Palhaça: Licínio da Costa Braga,38 anos, casado, proprietário. Manuel Caetano da Silva Coelho, 48 anos, casado, pedreiro. António Gomes de Resende Leitão, 41 anos, casado, negociante. Em 8 de Julho, o vice-reitor, na forma costumada, atesta os exames, os exercícios espirituais de 22 a 28, como o do Subdiaconado. No dia seguinte, 29 na Sé Catedral, recebe o Diaconado.

recorrer à Santa Sé pedindo a respectiva dispensa da idade. Fá-lo em requerimento, em Milheirós de Poiares, em 17 de Agosto de 1928. Em 18, dia seguinte, recebe despacho favorável do bispo e repetem-se os rituais do costume para a recepção das ordens anteriores. A 9 de Setembro os paroquianos são convidados a denunciar o que acharem denunciável que seja impedimento canónico à ordenação. Assim: A 20 de Setembro, abade Serafim lavra auto do procedimento, na residência paroquial onde comparecem os seguintes deponentes, naturais de Milheirós de Poiares, onde residem no lugar da Igreja os dois primeiros, e o terceiro no das Relvas: Manuel José Alves, 47 anos, viúvo, lavrador, residente no lugar da Igreja; Eduardo de Almeida, 29 anos, casado, agricultor, também do lugar da Igreja; Manuel Alves de Sousa, casado, lavrador, residente no lugar das Relvas. Em 14 de Outubro, entra em exercícios espirituais depois de prestar provas científicas em exames em que foi aprovado com distinção. A 16, o vice-reitor dá a sua aprovação; a 17 o Promotor da Justiça Eclesiástica, Theófilo Seabra, atesta que «pode ser havido como habilitado para receber a sagrada Ordem de Presbítero.» Em 21 do mesmo mês, na Igreja da Sé Catedral, D. António Augusto de Castro Meireles, Bispo Coadjutor, confere a Sagrada Ordem de Presbítero ao Diácono Sebastião Soares de Resende, certifica o cónego Joaquim Pereira da Rocha.19 Ordenado, é enviado para a Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma a que junta o Instituto de «Scienze Sociali de Bérgamo», Itália.

3. Presbiterado. Faz 22 anos em 14 de Junho de 1928. Faltam-lhe 20 meses para a idade canónica para a ordenação sacerdotal que deseja receber no próximo Outubro. Tem de

O pequeno Sebastião e o Abade Serafim

Aquilino Ribeiro

18 Salvo circunstâncias particulares previstas no CIC , o «título canónico de ordenação»: 1. Obrigatório para todos os que requerem ordens maiores. 2. Pode ser constituído por bens móveis ou imóveis. 3. Devem constituir para toda a vida base de segurança de honesta sustentação para o ordinando.

19 AHPEP - Processos da Ordenação de D. Sebastião.

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Licenciado em Filosofia, doutorado em Teologia, o Curso de Ciências Sociais em Bérgamo, regressa ao Porto, professor do Seminário, desde 1934 vice-reitor do mesmo e cónego da catedral. As suas qualidades de jornalista e de homem de estudos levaram-no ao confronto saudável com Aquilino Ribeiro que por ele ficou admirador e respeitador pela elevação de carácter e profundidade dos argumentos em «Letras e Artes», das «Novidades». Grande a veneração de Aquilino pelo seu antagonista intelectual.

6. Episcopado. A criação da diocese da Beira. D. Sebastião primeiro Bispo

Tonga e a sul a Senga. A esse norte detinha a Companhia do Niassa o monopólio das explorações de todas as matérias comerciáveis e o recrutamento de toda a mão de obra, a maior parte dela escrava. Fica aterrorizado quando «Soube que o administrador do Búzi transferido de castigo para o Zumbo recebeu uma nota dizendo que os menores não deviam ser compelidos ao trabalho. O director da empresa Búzi carecia de rapazes para a fábrica, veio ter como governador. Este manda chamar o administrador e ordena-lhe que mande os rapazes. Ele retorquiu que os rapazes só iam de corda ao pescoço como se faz em Manica e Sofala e isso está proibido... O governador insiste para que mande os rapazes. Quando acabará a escravatura nesta colónia?!» 22

6.1. A Beira social e económica

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Os territórios do ultramar africano apareciam a Salazar «baldios da Europa» que na II Grande Guerra Mundial se lhe tornaram recurso emergente de abastecimento dos géneros essenciais impossíveis de importar de uma Europa em guerra total. De novo a ideia do escoamento do excedente populacional em colonatos para brancos e aldeamentos para negros que não passaram para estes de meras prisões sem grades que tornaram os desgraçados mais fácil presa dos neo-negreiros das explorações agrícolas e industriais de café, algodão, sisal, algumas minerações internas e externas, aqui, África do Sul. Do Continente seguiram uns tantos obrigados pela pobreza pois aqui o rendimento per capita rondava os 250 dólares, o mais baixo da Europa de 1964. Grande a retracção dos candidatos a colonos pela distância, pelo desconhecido, pelo clima adverso ao europeu, mas sobretudo pelo sentimento generalizado de insegurança inflado por ventos anticoloniais a soprar mais descaradamente desde 1951. Em 1952,Gilberto Freire, ao passar pela Beira, define-a como « um centro estrategicamente económico do mesmo modo que complexamente social. O seu porto serve não só a Província portuguesa de Manica e Sofala como a Rodésia do Norte, a do Sul e Niassalândia os ingleses.... Daí, o seu plano de urbanização, prever bairros para diversas populações segundo os «costumes sociais» que preferirem «e não segundo raças – europeus, asiáticos e africanos».20 Na verdade, por esses tempos a Beira, depois de Lourenço Marques, constituía-se num dos centros de maior convergência de população europeia. Porém, só em 1942, a Beira é elevada a cidade, assumindo o Estado Português a administração da área de Manica e Sofala, em que a Beira estava inserida como grande porto de serviço «internacional»21 com o seu peso sócio-económico próprio. Etnicamente, e tomando o porto como centro, a norte estendiam-se por larga área a etnia

«...só presos pelo pescoço.» Por isso quer observar a aldeia negra modelo.

«De tarde fui a Nhaugau, bairro para indígenas distante da Beira cerca de 30 quilómetros. Num dos esteios da porta de ferro escritas as palavras: «Nhaugau – Aldeia modelo...» Entra-se naquela aldeia modelo e o que se vê? Casas de pedra cobertas a colmo e tudo bem ajardinado. E os indígenas? Nus, ignorantes da língua portuguesa e do catecismo, sem escola, sem capela, e sem enfermaria!!! Queixam-se alguns que há três anos não lhes pagam. De modo que o modelo da aldeia está nas casas e nas flores e nos arbustos, mas não está nos homens. Que flagrante inversão de valores!»...23 «Querem o preto selvagem para continuar animal de carga...Mas as missões hão-de ir quer queiram ou não». Ibidem, Em 12.6.1946.

20 «Aventura e Rotina», p. 412, «Livros do Brasil», 1952, Gilberto de M. Freyre. 21 Muito se falava do «corredor da Beira». Por aqui se fazia ao mar o acesso dos países africanos do interior sem costa marítima. O que lhe dava um aspecto mais cosmopolita e diversificava a fisionomia social e deixava divisas. 22 Em 6.12.1944, regista no seu Diário, desta forma crítica e em tom de coração amargurado pelas clamorosas desumanidades, que vai observando. 23 Em 2.12.1945, «Diário», citado. O mesmo tom crítico de desgostoso pelo que os seus olhos vêem.


6.2 Influências britânicas e orientais Por virtude da sua posição geográfica, da proximidade mais ou menos relativa com colónias britânicas,24 de migrações de vária ordem, do Ocidente e do Oriente, do porto e das explorações circunjacentes, a Beira foi-se tornando uma caldeirada multirracial, multicromática, multi-ideológica e de muita outra coisa menos de princípios humanos e cristãos. Fria, sem fé nem moral, de muita intriga e de maledicência rasando a calúnia. Brancos, amarelos, indianos, chineses, negros, mistos, cada um concentrado no seu bairro, cada um acomodando-se nos vários espaços. O grosso da população vivia do cais,25 onde, já em seu tempo, se amotinaram trabalhadores cuja repressão meteu na cova alguns mortos e na prisão algumas dezenas de vivos. Amargurado com as injustiças, mais se sentia a sua voz de bispo dos sem voz. 6.2.1 A diocese da Beira criada em 4.9.1940, por Pio XII, bula «Solemnibus Conventionibus», só quase três anos decorridos se dá o seu provimento episcopal. Em 21.4.1943, é-lhe dado o primeiro bispo, D. Sebastião Soares de Resende. Tão longa espera ter-se-á devido a estar já na mente da Santa Sé D. Sebastião. Mas 34 anos seria idade achada demasiado precoce em relação à práxis seguida, não antecipar demasiado os 40 anos, e os 37 estariam mais próximos. Sagrado na catedral do Porto, a 15.8.1943.

Acabava de sagrar-se um dos mais ilustres bispos dos nossos dias, uma das maiores glórias da «Terra de Santa Maria da Feira»,justamente considerado um dos grandes construtores do mundo contemporâneo. Nesta Beira, a 30.11.1943, desembarca D. Sebastião. No primeiro de Dezembro faz um reconhecimento do terreno, vai ao farol e ao Macúti. No dia 8, Nossa Senhora da Conceição, toma posse solene, mas não deixou nota no seu «Diário». Neste dia publica a sua primeira pastoral. Aqui deixa bem vincados: a sua alma de Missionário, as linhas programáticas do rumo de apostólica acção, o seu espírito de serviço ao Próximo, sobretudo dos mais deserdados do mundo. Gilberto Freyre retratá-lo-ia em 1952, assim: «Impressiona-me o bispo D. Sebastião. Figura esplêndida de bispo ainda moço... animado por um fervor missionário de quem se mostra decidido a ser na África tão dinâmico quanto os mestres maometanos».27 Tal não era a opinião do Bispo sobre Portugal donde fora: «Em Portugal ... não há mentalidade missionária, entre os próprios membros da igreja.»(«Diário» 27.4.1944) Deus,28

porque «Não apareci nas festas de São João de nós os bispos dos pretos, não temos categoria, aqui em Lisboa!!!» (Diário 4.10.1950) 6.3. Data premonitória? Último dia de Novembro, primeiro de Dezembro, posse solene no dia 8. Transpôs-se uma fronteira, (ou muitas fronteiras?) Muita coisa via a restaurar.

Sagração episcopal com os Bispos consagrantes, Porto, Sé Catedral. D. Sebastião, 3º da 1ª fila26

24 Moçambique estava rodeado de colónias inglesas. Tanzânia, a norte; Malawi, Rodésias a oeste e África do Sul a Sudoeste. A Ocidente, toda a costa é mar. 25 Governador Geral, José Tristão de Bettencourt, 1940-46. Segue-se-lhe Gabriel Maurício Teixeira, 1946-1958; Pedro Correia de Barros, 1958-61; Manuel Maria Sarmento Rodrigues, 1961-64; o general José Augusto da Costa Almeida, nat. de Moçambique. Governador da província da Beira, o capitão Eng. Ferreira Martins. O general Teófilo Duarte, 1947, chefiava o Ministério, dito então, das Colónias.

Chega. E o D. Sebastião destas terras, no que elas têm de humano, dá por ali voltas, respira o ar do mar a partir do farol da sua Beira. Era pela marítima tarde africana oriental de um Missionário na hora do desembarque, nesse Dezembro africano de 1943.. E a alma do Missionário Sebastião sorveu todo aquele misterioso sortilégio de um mar e de uma África Oriental, e o divino sonho fez-se carne do homem. A alma está pronta. O futuro é de Deus e com Deus ele está. Viandante no caminho escabroso, duro, direito, traçado na sua «estrada de Damasco». «... a Lei é o que é e não o que certos homens pretendem que ela seja...» diria sem rebuços desafiando a prepotência pesporrente de quem invoca a razão da força obliterando a força da razão. Mas para todos os homens, para todas as leis, para todas as circunstâncias. Um homenzinho da minha terra que ouvisse aquela determinação de quem «não corta prego», diria: «Quem fala assim não é

26 Os cinco bispos presentes, da esquerda para a direita: D. Rafael da Assunção, D. Sebastião Soares de Resende, D. Agostinho de Jesus e Sousa, bispo do Porto; D. António Antunes, bispo-conde de Coimbra e D. Manuel Ferreira da Silva, bispo titular de Cízico, missionário como D. Rafael. 27 «Aventura e Rotina», p. 413., 1952, de Gilberto Freyre, lugar e autor citados. 28 Relaciona-se com as celebrações festivas centenárias de S. João de Deus, cujas relíquias neste dia entraram em Portugal, por Montemor-o-Novo.

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gago.» Conscientemente determinado segue, aqui, porque mais do que ele, é a vontade de Deus que o ata ao leme. Três semanas: «Há muita criança na Beira ignorada pela acção da Igreja.» (Diário, 23.12.1943)29 Há aqui muito de D. António Barroso, também do Porto, também Missionário da África Portuguesa, também perseguido e desrespeitado pelos poderes surgidos de Outubro de 1910. Com República, com Salazar, ou com outro qualquer poder, se esse poder sente que lhe mexem nas suas sensibilidades não há Democracia que valha. E D. Sebastião foi uma das vítimas do dito regime de Salazar, D. António Barroso foi uma das muitas vítimas, entre algumas delas mortais, da República. Desta ajuizou Guerra Junqueiro: «A Republica é a Liberdade - e algemaram os crentes!... é a igualdade - e escravizaram a Religião!... é a fraternidade - e decretaram a guerra civil!» 6.3.1. A consciência de quem está na África de 1943.

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Logo da primeira pastoral,repositório de lúcida visão dos problemas sociais, morais e religiosos da África em Geral e de Moçambique em particular, ressurgem o luso-tropicalismo - sem destruir a idiossincrasia de cada povo envolvido - e a trágica profecia de uma África resvalando fatalmente para um continente infeliz,30 presa fácil disputada entre duas forças contraditórias, qual delas a mais perigosa e feroz. Desgraçadamente, comprovaram-no os factos escritos a sangue e a morte, nos últimos 50 anos. A história de África neste espaço tem sido, e continua, escrita a vermelho do sangue dos seus filhos, a maior parte vítima inocente. Esta a maior das tragédias deste maravilhoso continente, apontado berço da Humanidade. Pressentindo realidades e mistérios que o envolviam distanciase dos «grandes» deste mundo para ouvir a voz dos «pequeninos», dos «fracos», dos «oprimidos», dos «escravizados». Seriam estes os habitantes mais dentro das suas pastorais, mais envolvidos nas constantes palavras, ao dirigir-se-lhes, «meus caríssimos diocesanos», o mesmo é dizer «queridos moradores na mesma casa paterna». «Homem voltado para a realidade cruel do seu tempo, o Sr. Bispo da Beira foi, sob muitos aspectos, o precursor do avanço social verificado na África Portuguesa, pastorais e pregação constituíram gritos de autêntico profeta...»31 Quando a morte avançava, nada tem a pedir pois tranquila a vítima pode confirmar: «Dei tudo do meu pensamento e acção à Diocese»... «para vida e para a morte»... 32 Assim falava quem da vida fizera uma luta constante para que se cumprissem desígnios, pois «Para além da problemática da riqueza, da economia, e do fomento há ... outro problema mais vasto e mais profundo, de repercussões para lá das fronteiras, que condiciona todos os de mais problemas.

É a convivência em igualdade de direitos e deveres de indígenas e não indígenas, todos cidadãos portugueses.» Aqui deixamos este nosso modesto trabalho sobre a campa humilde do seu eterno repouso: «À saudosa memória de «Sebastião, Primeiro Bispo da Beira». Justa e sentida homenagem a um prelado ultramarino – uma inteligência33 e uma vontade – que tão bem soube aliar o amor da Pátria ao amor da Igreja. Bispo inteiramente dedicado aos seus padres e aos seus fiéis, e neste número incluíam-se todos os habitantes da sua diocese,34 pois a todos pertencia, a todos se tinha dado, a todos tinha sido enviado.».35 Mas que premonitória coincidência terá esta chegada neste primeiro de Dezembro de 1943 com o de 1640? Trezentos anos se passaram... A História tem surpresas interpelantes. Mas, unindo as pontas da história que a História nos oferece, sem cair em deletérios sebastianismos, passa-nos pelo horizonte da memória muita coincidência além da qual não deve nem conscientemente deseja ir o autor, porque aqui especulativo despropositado. Inteligente, previdente, terá lido muito, observado e interrogado muita gente e muita coisa. Os longos 40 dias de caminho todo feito num barco desses tempos, por costa africana, de aportagens com nativos invadindo o tombadilho, inteligência observadora, armazena informação, traça planos, acomoda ideias a uma realidade dos anos 40 português colonial, África possessiva, ia invadindo a alma do Homem bem formado e do Missionário Evangélico.

29 Não ouve o leitor aqui ecos do bispo do Porto, D. António Barroso perante Afonso Costa e o seu governo saído da maçonaria republicana? Pare, memore e verá, melhor ouvirá. É que a História é circular. Não se repete. Apresenta é similaridades por vezes «quase» gémeas. História é, também, aprender o futuro na experiência do passado. Previne. 30 Dr. Franco Nogueira, Min. dos Neg. Estrangeiros, conferência no «National Press Club», Washington, 8.11.1967. 31 Escrevia-se a 25, dia a seguir à morte, «Diário de Moçambique» que fundara. 32 «O Caso do Bispo da Beira», 1990, Documentos, p. 7 a 9, Nota, rodapé. Dr. A . Carlos Lima, Livraria Civilização. 33 Estão por descobrir as razões do arcebispo de Braga, D. Francisco Maria da Silva, que via D. Sebastião de pouca inteligência. A insensatez reporta-nos à fábula de Fedro cuja raposa, por mais que saltasse, não consegue chegar às uvas do alto parreiral. Desdenhosa, desculpa a incapacidade dizendo: «estão verdes.» Na realidade à raposeca faltavam pernas para lhes chegar. 34 E tanto assim que, tomando conhecimento da gravidade da doença, as comunidades de protestantes, muçulmanos, hindus, e outros, se apressaram a enviar telegramas para a Beira manifestando preocupação e pesar pela gravidade da doença, e anunciando preces públicas e colectivas a Deus pelas suas melhoras. Depois foi a sua presença nos funerais impressionante demonstração do carinho de dezenas de milhares de pessoas de todas as cores, etnias e religiões. 35 Faço minhas as palavras do Prof. Dr. P.e António da Silva Rego, Prefácio ao «Tríptico Moçambicano», de Mons. Manuel Ferreira da Silva, 1967, Ed. sua.


Crianças, Juventude, Instrução, escravatura, pobreza material, moral e espiritual marcam-lhe a alma e o coração de Negritude e Africanidade, no mais profundo e puro sentido dos termos.36 Cria-se o mito e surge o lábaro de uma vida: «LIBERTAR é preciso, urgente, o Libertador que aproa na Beira desta África é também profeta.

6.4. A chegada do Bispo e a insolência do Governador Acabadinho de chegar à Beira, D. Sebastião chega a 30 de Novembro de 1943, e o primeiro balde de água fria em terra tropical. A 4 recebe o Governador. Conversam longamente sobre assuntos de instrução. A 17, vem o mesmo Governador pedir permissão para a banda de música das missões ir tocar à festa das crianças de todas as raças e religiões. Eram vésperas de Natal. Mas o Sr. Bispo não podia ir lá, insinua o administrativo, sem tino. Nas costas regista por escrito a observação sobre a indelicadeza: «Eu disse ao senhor governador simplesmente que não. Se, como ele reconhece, eu (Bispo) não devo comparecer, também não deve a banda que é estritamente católica e não apenas de católicos. Sei que não foi contente, mas, paciência. Esta festa sabe-me a Maçonaria.»37

36 Vale a pena ler de Leopoldo Senghor, «Negritude e Africanidade». Mas, para a compreensão em profundidade desta apaixonante matéria será indispensável mergulhar presencialmente na cultura dessa África profunda, a contactável nas suas mais recônditas florestas e savanas, como (in)felizmente aconteceu com o autor destas linhas. Lá e cá na Faculdade de Filosofia de Braga, na cadeira das «Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa». 37 «Diário» de D. Sebastião, inserto em «A Igreja Católica e o Estado Novo em Moçambique», p. 215, 216, de Pedro Ramos Brandão, Editorial Notícias, 2004. A recusa ao deselegante governador, capitão Eng. Ferreira Martins, demitido em Agosto de 1949, por influência da Companhia da Beira, custou ao bispo obstruções à solução de problemas. Mas o distanciamento criado agravase com a posição crítica do bispo à conivência deste representante do Governo com a descarada escravatura que tanto feria o coração do prelado. Vejam-se as observações deste: «Querem o preto selvagem para continuar animal de carga... Mas as missões hão-de ir quer queiram ou não.» «O inspector... está dominado pelo ambiente geral antimissionário ... , ataca as missões pelo lado das escolas ... É preciso acabar com a escravatura nesta colónia ... Mas comprar pretos para o trabalho que é?»Todos estes anti vinham de inspiração maçónica, que perdera as escolas laicas lançadas pela República, e os restantes traziam a chancela do colonialismo assente unicamente na exploração da força de trabalho humano, como se de animais de carga se tratasse. Como as missões travavam este desenfreamento, apanhavam. «Diário» cit., 12.6., 11.7. e 20.9.1946; e 5.8.1949. Eram Governadores Gerais, afectos à Maçonaria: Em 1940-46, José Tristão de Betencourt; 1946 a 1958, outro de má memória, Gabriel Maurício Teixeira. «Gostaria de salientar que a história da presença de Portugal (em Moçambique), ... naquele período a que, com alguma verdade, se pode chamar de colonial, só poderá ser escrita se se lhe estudarem, com isenção e rigor, duas histórias: a da sua imprensa e a da sua Maçonaria.» Ilídio Rocha, contracapa, obra citada em nota a baixo.

O incidente ficou-lhe ali na alma, estigma de ambiente estragado a carecer de cirurgia, massa a levedar. O jornal concebido por esta mente luminosa seria o bisturi ou parte do fermento, e da sua pesada Cruz também, carregada até à morte, e não só, atravessar-lhe-ia o próprio túmulo consciente do que disse para o fundar: «Um jornal vale por três ou quatro missões. Tudo está em ele ser bem feito.»

7. O problema social, a instrução, a Cultura e a moral católica – os inimigos

7.1. As escolas e centros de formação Basta percorrer os títulos das suas pastorais, circulares, exortações dirigidas a missionários e a diocesanos. A sua participação no Vaticano II e as repercussões nacionais e internacionais da sua doutrina toda centrada nos princípios mais comezinhos do Evangelho. Ombreando com os mais credenciados padres conciliares dos outros países do mundo. O ensino secundário na Beira tem-no como seu paladino ao fundar em 1948 o Instituto Liceal D. Gonçalo da Silveira que entregou aos Irmãos das Escolas Cristãs, vulgo Maristas. Seria um dos «Casos» que tratamos noutro lugar. Fundou ainda os colégios de Vila Pery e de Tete; escolas normais para a formação de professoras e professores nativos, em Boroma, Tete, Dondo e Inhammizura; além de centenas de salas de ensino de adaptação e primário, não poupando esforços e sacrifícios pessoais como ninguém; o seminário do Zóbué, integrado na diocese de Tete entretanto criada. O «Diário de Moçambique», fazia parte de um vasto programa social e cultural. A fundação nos moldes concebidos leva-o a países da América para estender a mão às ajudas generosas de bispos e leigos dessas terras, para mais e melhor servir a Deus e os Homens. E assim se fez. O jornal, sem ferir os legítimos direitos dos fortes defendeu sempre os fracos sem voz, reivindicando para eles a justiça a que exactamente por serem fracos têm direito. Acção Católica, Cursos de Cristandade, Catequeses, tudo quanto ao alcance humano o auxiliasse a missionar o «Catecismo» e a «Cartilha Maternal», valorizando, libertando, humanizando. Em nome destes sagrados princípios ergueu a sua voz no Concílio Vaticano II, e de tal sorte que «Produziu uma impressão considerável nos meios católicos portugueses. Apenas o jornal católico «As Novidades» reproduziu na íntegra o despacho das agências sobre as declarações do Bispo, segundo as quais «o esquema 13 deveria condenar os regimes que oprimem os cidadãos quando eles se encontram em desacordo com a ordem política, económica ou social existente, ou mesmo quando

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eles se recusam a considerar tal ordem a melhor possível.» «A intervenção teve uma larga repercussão entre os jovens padres católicos de tendência liberal que se esforçam por um movimento de «democracia cristã» em Portugal.» 38 Mas grandes e graves dissabores provaria o bispo justamente a partir da oposição do regime ao jornal e à entrada de missionários na Beira.

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7.2. D. Sebastião - o doutrinador e Padre do Concílio Vaticano II Ainda hoje, a 39 anos de distância, a zona centro de Moçambique, é a que se conserva mais consciente dos princípios cristãos e que ao facto não é alheia a marca indelével de missionação pessoal que a esta imprimiu desde o início. Também não é por mero acaso que ainda hoje o seu túmulo continua a ser um lugar de autêntica peregrinação onde os peregrinos de todos os credos deixam uma simples flor. Estudioso, fervilhava-lhe constante e seriamente enraizada na mente lúcida a ideia de que só elucidando, instruindo, comunicando, a sua grei estaria à altura de compreender Jesus Cristo, a mensagem do Seu Evangelho e estar à altura dos desafios do mundo contemporâneo. Palpava-se essa preocupação nas pregações, nas mensagens escritas, aos microfones das rádios, sobretudo da «Radio Pax», nas «Pastorais», que em cada ano publicava, plenas de actualidade cultural, social e necessariamente política, ali no melhor dos sentidos. Só não em 1965, por estar muito envolvido no Concílio Vaticano II. Aqui foram dez as suas intervenções notáveis: a 12 e 26 de Novembro de 1962. 22 e 30 de Outubro e 14 de Novembro de 1963. A 6 e 20 de Outubro de 1964. A 28 de Setembro e a 12 e 16 de Outubro de 1965. Intervenções cheias de oportunidade social e religiosa, para dentro e para fora da Igreja.

7.2.1. Na imprensa.E aqui a preocupação de um jornal em que dele se pudesse fazer uma tribuna que fizesse chegar a voz de pastor a todos os diocesanos. Quantos sacrifícios lhe impuseram e teve de suportar na fundação, na sustentação, na organização, nas lutas terríveis que as dores de cotovelo

38 ANTT – PIDE – DGS, Proc. nº 3033, CI (2), fl. 138. Lx. 5.10.1965. Tal matéria respeita às actividades no Concílio Vaticano II onde D. Sebastião tomou parte activa. É dos bispos portugueses que mais intervenções registou como padre conciliar português e sobretudo relacionadas com a dignidade e respeito pela Pessoa Humana a partir da sua experiência de bispo da África Oriental Portuguesa. Tanta coragem e clareza do problema tiveram tal retumbância nacional e internacional ... que as estruturas do regime entrou em estertor, tornando mais tensa a vigilância.

dos estatais ou no mínimo afectos ao governo de Lisboa, se não hipotecados ao grande capital e outros interesses, muitos deles muito obscuros,!... O «Diário de Moçambique», a sua maior glória e o maior suplício em que foi crucificado. Mas o Bispo D. Sebastião era homem do seu e para o seu tempo e para as suas específicas circunstâncias políticas, económicas, sociais e culturais tudo ali confinado na sua diocese da Beira e para mais ainda na própria cidade. Não corriam fáceis e de feição os ventos. Consciente da atmosfera borrascosa em que se vivia com aproveitamentos de ocasião entende e enfrenta. Em «nota de bordo» deixa o repto: «”Senhores” anticlericais Em livro de actualidades escreve um filósofo italiano: « Só o Catolicismo e a Igreja tem hoje a capacidade e a força (aquela espiritual, que vem da verdade) de fazer frente à louca ameaça de descristianização radical do mundo mas também essoutra de anulação de qualquer religião e dos mesmos valores humanos mais elementares. Nessa situação quem hoje, não marxista, ainda que não católico, pretende de veras que a Igreja se alheie da política e que os tão detestados «padres» se ocupem tão-só das práticas religiosas, ignorando o que sucede ao seu redor? Existem é verdade os laicistas não comunistas que não perdem ocasião ... para protestar contra as indevidas ingerências dos padres na política, e a «invasão» do Vaticano; mas sabem perfeitamente que, se os «padres» numa dado momento de ausência da sua responsabilidade e de falta ao dever da sua missão se retirassem para a sacristia, o seu laicismo palavroso e mexeriqueiro afogaria no sangue as suas cabecinhas.; sabem muito bem (e isto os torna mais petulantes e audazes) que a Igreja nesta como em todas as circunstâncias, salvo casos pessoais de sacerdotes e de católicos, nunca faltou nem nunca faltará ao sentido dos seus deveres e das suas responsabilidades – a Igreja a eterna sentinela dos verdadeiros direitos da pessoa humana- , e por isso se fazem valentes e fortes contra Ela. Cómica a situação hodierna do laicismo não comunista; pode dizer mal da Igreja e permitir-se o luxo de ser anticatólico, porque a Igreja com a sua barreira anticomunista, lhe garante esta liberdade; faz de anti-católico sob a protecção do catolicismo, pronto, se as coisas se embrulharem uma outra vez pronto a bater às portas dos conventos e dos templos, para se refugiar tremendo de medo sob a sotaina dos padres e dos frades, como já aconteceu. Esta a velhacaria fundamental dos grandes «heróis», do laicismo não comunista das lojas, dos comícios, dos jornais e doas sessões parlamentares.»(...) Até aqui, citação. Comentário de D. Sebastião de Resende:


« .... Mas, quando é preciso entrar na luta ... a única força que se levanta e a única respeitada, é somente a da Igreja.»39 D. Sebastião ali é Igreja viva.

7.3. Uma sagração compensatória Em 26 de Janeiro de 1967, ainda quentes os seus despojos mortais, nas vésperas de descer à terra, o mundo lê no «Diário de Moçambique»: «...D. Sebastião Soares de Resende... Homem voltado para a realidade do seu tempo, .... sob muitos aspectos, um precursor do avanço social verificado na África Portuguesa ... algumas das suas pastorais e muitas peças da sua pregação constituem gritos de autêntico profeta...»40 E tão assim, que o Código do Trabalho Rural da responsabilidade do Prof. Dr. Adriano Moreira foi inspirado, diz este, em muita da doutrina do Missionário D. Sebastião. Juntou-se na mesma opinião o Prof. Dr. António da Silva Rego: «quanto à presença missionária no campo social e das relações de trabalho, pode dizer-se que a doutrina (de D. Sebastião) se encontra confirmada amplamente no Código de Trabalho Rural, onde, a presença das missões se não é directa, a coincidência de parecer é muito real.» A própria revogação que o mesmo Prof. Dr. Adriano Moreira fez do Estatuto dos Indígenas, na qualidade de Ministro do Ultramar na altura, 1961; a criação dos Estudos Universitários Gerais de Moçambique e Angola, integrados na Universidade Portuguesa, em 21.8.1962, decisões previamente tornadas públicas na cidade da Beira em cerimónia em que esteve premeditadamente presente D. Sebastião, porque havia de ser homenagem de que era amplamente credor.41 Ora, tais palavras em tais circunstâncias, por tal pessoa, dizem que todas essas revogações, criações e publicações, em considerável percentagem, trazem o selo da experiência, da doutrina, da prática e do magistério de D. Sebastião Soares de Resende. Aconselhamos o leitor a reler os títulos ao menos dessas suas pastorais que em grande parte o Prof. Dr. Adriano Moreira fez reunir em grosso volume «D. Sebastião Soares de ResendeProfeta em Moçambique.» Não podemos omitir o «Livro do Povo de Deus». À entrada da catedral da Beira oferecia-se ao visitante, qualquer que fosse, convidando a lançar nele uma sugestão, uma ideia.

39 ANNTT – PIDE – DGS, Del. de. Lx., Proc. citado, doc. 350, in «Diário de Moçambique, 20.10.1961. 40 «A Igreja Católica e o Estado Novo em Moçambique», p. 134, de Pedro Ramos Brandão, editorial Notícias, 2004. Citado 41 Adriano Moreira – Centro de Estudos Orientais, prefácio em «D. Sebastião Soares de Resende Profeta em Moçambique», DIFEL, 1996, Abertura, p. XIII.

Nele os fiéis escreviam os seus diálogos com Deus sobre problemas da sua vida «fraquezas e aspirações». O Sr. Prof. Dr. Adriano Moreira, dos Homens públicos mais lúcidos e de mais extraordinário bom senso que o autor já observou neste País, maravilhado com a surpresa quando por ali passou, não escondeu o agradável desta novidade eclesial da Beira. Porque o achou inestimável sob muitos aspectos, até biográficos do espírito peculiar do seu arquitecto.

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Prof. Dr. Adriano Moreira

7.4. D. Sebastião e o problema social - as obras. A «Promoção da Mulher Africana», decorrente da doutrina das suas pastorais, foi uma das suas grandes revoluções. Funda o «Serviço Social dos Pobres», ramificado por todas as paróquias e missões. Graças à sua intervenção milhares de nativos viram esconjurado o perigo da morte à fome causada ora por cheias ora por secas, nomeadamente na zona da Zambézia. (Remetemos o leitor para a carta, um dos muitos casos, do missionário de Chemba). Assistência social e sanitária: postos sanitáriosonde se prestaram 64.500 tratamentos. Tinha ao seu cuidado 620 órfãos de ambos os sexos distribuídos por 10 internatos; Assistência cultural: havia duas tipografias; em 150 escolas elementares ensinava 6.870 alunos e alunas; educava 1.250 alunos em 10 escolas médias a que se juntavam 17 escolas profissionais que ministravam ensino a 620 alunos. Podem juntar-se-lhes as obras e associações religiosas com o seu contributo formativo e educativo, como: Doutrina Cristã, Ordem Terceira de São Francisco, Juventude Antoniana, Conferências de São Vicente de Paulo, Juventude Católica Feminina e Liga da Acção Católica Feminina...................... Geografia física e social: A extensão territorial, o aumento


da população absoluta e a relativa religiosa, a necessidade de assistência mais interventora, exigiam do Bispo da Beira esforço humano incomportável. Por isso, desmembradas do território da diocese da Beira, são criadas as duas dioceses, Quelimane e Tete. Perante a nova realidade os novos dados estatísticos:

7.5. A Acção apostólica de D. Sebastião

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7.5.1. O estado da diocese da Beira na sua criação Em 1941-43. Quando criada, incluídos os distritos de Manica e Sofala, Tete e Zambézia, apresentava o seguinte quadro, avaliativo do inavaliável, a cristianização missionária. Servirá exactamente para daqui se fazer uma ideia do trabalho evangélico realizado. Assim: Sacerdotes seculares – 9; regulares – 25, entre Franciscanos e jesuítas. Destas duas ordens havia, irmãos auxiliares missionários – 10; irmãs pertencentes a várias Franciscanas, 22. Um seminário com 23 alunos, em Amatongas. Catequistas de ambos os sexos, 20. Professores de ambos os sexos, 155. Numa população de 1.700 mil habitantes, eram 32.780, aproximados, os católicos nativos; 3.600 europeus e outras etnias; 1.800 de raça mista; 7.110 catecúmenos; 1.650 mil pagãos, e o resto era de religiões várias. Assistência religiosa: Abrangendo três distritos, por eles se disseminavam 14 paróquias, 20 edifícios sagrados, 7 centros de assistência social e muitas formas de presença religiosa, escolar, social e sanitária, incontabilizáveis nestes ambientes e formas de vida africanos, mas actuantes no terreno.

Diocese da Beira, 1960, um terço de 1943

Diocese da Beira, 1943, o triplo

7.5.2. O estado da Diocese da Beira no censo de 1960 Em 1960, andava nos 771.070. Em Janeiro de 1967, pelos 790.000. Destes: 60.102, são católicos africanos; 31.726, europeus e outros; 4.4.88 mistos; num total de 129. 188. A população pagã orça as 680.917 pessoas. Padres missionários, 74: 13 seculares, dois deles já africanos; os restantes religiosos das ordens seguintes: Franciscanos, Jesuítas, Padres brancos, do Coração de Jesus e das Missões Estrangeiras de Burgos. Trabalham ainda 33 irmãos religiosos missionários das referidas ordens a que se juntaram os Maristas, ou Irmãos das Escolas Cristãs. E ainda 163 religiosas das ordens femininas ditas, as de São José de Cluny e da Divina Pastora. Em 1965, estavam fundadas por ele mais de 50 missões muitas delas apetrechadas com o indispensável à assistência sanitária, escolar e religiosa. Sempre numa mão o Evangelho e na outra a «Cartilha Maternal». E se menos entraves do regime tivesse encontrado mais teria feito, em todos estes campos contribuindo para a própria valorização da presença portuguesa nessas terras. Assim não entendia a política nacional do tempo.

8. O tributo do seu apostolado pelo Homem Escravo Não há rosas sem espinhos ou os traços duma via dolorosa finda no Calvário do leito de moribundo marcado pelo signo da LIBERTAÇÃO. O libertador e o seu tributo. Voz incómoda, alvo da ira de muitas forças e poderes. Quantas noites indormidas massacrado pelos entraves à sua nobre acção! Quanto sofrimento não atravessou a nobre alma deste missionário! Quantos suspiros de dor deixou ao longo do seu «Diário»! Quantos não registados! Foi dura a sua vida! Ao seu recto caminho atiraram quase intransponíveis «pedregulhos», vencidos em tenacidade, muita, em muita Fé, dia a dia, anos e anos, até para além da sepultura!

8.1. O insulto e a calúnia «Mesmo quando se via insultado por jornalistas sem dignidade, por oradores que abdicavam das suas responsabilidades e por escrevinhadores de paredes que, por cobardia recorriam à escuridão cúmplice da noite.» (D. Eurico no sétimo dia) Mas não constituía novidade para o atento prelado pois a seis meses da chegada, , está muito seguro de que «Na África há...muitos cumprimentos, muitas mesuras, muitas vénias que eu chamo curvaturas dorsais e na ausência a má-língua, a murmuração, a calúnia... É África! 7.7.1944, «Diário». Mas as ameaças de arruaceiros profissionais de quadrantes


socio-ideológicos diversos não agiam só. Com elas a boa companhia, a seu modo, não menos perigosa, sempre actuante com a Pide, dos senhores Governadores Gerais42 de 1943 a 1968, cujos nomes aqui deixamos para que conste e se estude. Constituíram eles, maçons mais ou menos fiéis ao ideário das suas lojas, parte considerável da cruz do Bispo. Como possível? O regime de Salazar teve incongruências destas aparentemente inexplicáveis quando equacionadas à luz de uma série de premissas. Por defeito dele? Ou por esperteza dela por virtude do «complexo de piolho»? 43 A ponto de a PIDE, para se descartar de arbitrariedades contra missionários que o bispo conhecia e defendia, insinuar perigosa calúnia: «Sobre o assunto do Bispo da Beira a que me referi, foi-me confirmado que eram ao todo 20 volumes, com armamento ligeiro e munições. Espingardas e pistolas metralhadoras e os volumes seguiram para a cidade da Beira, endereçados ao Bispo, como se medicamentos fossem. Dizem que o Bispo veio a Lisboa e tinha de facto conseguido a demissão do Governador do Distrito.» «Inform. “CAUSA” 12.1.961Moçambique – 1 Ind.(PIDE, ibidem)

8.2. As ameaças de colonos exploradores à sombra do exemplo do Estado «Mesmo quando se sentia ameaçado por aqueles em quem abundava o direito da força, na medida em que lhes falecia a força do direito e da razão. »45 Não constituir alvo a abater, seria de admirar. Qual é o pai que não defende os filhos cujo sangue vampiros sugam? Necessariamente se levantam antagonismos que arvoram suas bandeiras e desenterram machados de guerra. D. Sebastião estava consciente porque sempre acordado para as realidades que o cercavam. Daí as judiciosas e oportunas palavras denunciadoras do que muitos teimavam em ocultar. Aos missionários revelava a própria Pide que não era por eles que lhes estava vedada a admissão a convite do Bispo, mas «por causa do Bispo da Beira». E a razão era porque o Bispo dizia a «verdade a uma inquérito famoso a três missionários, o qual era um montão de mentiras e de calúnias. Esse inquérito foi feito pela PIDE! E como não desse resultado... porque demonstrei a verdadeira fachada dos factos... a ponto de o Inspector confessar ... ter mudado de opinião sobre os ditos missionários. »46

(....) «5.Já não é a primeira vez que o Rev. Bispo da Beira faz por escrito afirmações menos verdadeiras que ... atentando contra o prestígio e a dignidade das funções legalmente cometidas a esta Polícia ... tornam o referido Prelado elemento responsável como principal instigador de desmandos na sua Diocese quando mais não seja, através da linguagem desbragada e dissolvente com que ataca as Instituições portuguesas, e nelas, como primeiro alvo, esta Polícia. Lourenço Marques, 6 de Janeiro de 1966. O Subdirector...»44 assin. ilegível.

Libertação de escravos

42 José Tristão de Bettencourt, 1940-46. Gabriel Maurício Teixeira, 1946-58. Pedro Correia de Barros, 1958-61. Já citado. 43 Manuel Maria Sarmento Rodrigues, 1961-64. Fora na Guiné, de 1945-49. José Augusto da Costa Almeida, 1964-68. Citados 44 É esconder-se em costura para atacar na sombra sobrevivendo desta. ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, Proc. dito, fl. 110 e 111.

45 D. Eurico Dias Nogueira, na altura Bispo de Vila Cabral e hoje muito ilustre Arcebispo Primaz Emérito de Braga. Tem nesta Revista trabalho adrede enviado com aquela grande abertura de espírito próprio de Bispo pouco comum. Em 1965 assume frontal posição de defesa de D. Sebastião e do «Diário de Moçambique» na suspensão deste contra o direito nacional e internacional. 46 ANTT – Arquivo, PIDE, loc. cit., fl. 109. Doc. recebido em Lisboa a 17.1.1966

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8.3. D. Sebastião, a voz de todos os sem voz.

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«É preciso que cesse o abuso de se construir grandes fortunas com sangue de pretos». «Cada vez mais me convenço de que os indígenas estão, nos arredores da Beira, completamente abandonados.»Diário 27.8.1944 e 10.9.1944. «Notei que há muitas serrações à beira do caminho-de-ferro. Os pretos vestem um saco e vi que alguns trabalhavam numa propriedade no sábado de tarde! Impera na Beira a escravatura! Não há maneira de se convencerem de que os pretos são pessoas humanas. Espero desembaraçar-me de certos assuntos de organização para me consagrar a ver estes acampamentos e verificar o que há de condenável em tudo isto... hei-de empregar todos os meios para os debelar ainda que seja a imprensa.» (ibidem 14.10.1944) «Soube também que se revoltaram 400 angones47 que trabalhavam na serração de Lauane. É claro e muito claro. Há injustiças que bradam aos céus.» (ibidem, 17.11.1944). «...Os rapazes só iam de corda ao pescoço como se faz em Manica e Sofala... Quando acabará a escravatura nesta colónia?» (Ibidem, 6.12.1944) E os negros do porto da Beira que se revoltaram? E os que foram logo ali mortos? E onde estão ou foram parar os processos, se os houve? Ora o jornal que o Bispo sonhava seria para si a sua tribuna temida pelos poderes instituídos. E era a única voz de periódico livre em Moçambique, porque não hipotecada ao Estado nem à Banca. E a custo fundou o temido «Diário de Moçambique», com o apoio do Prof. Dr. Marcelo Caetano.48 Não era de espinha curva, por isso muito combatido por todos os enfeudados. Noutro momento se fala dos problemas e retaliações. Mais citações de D. Sebastião, para quê? O bispo, humano, estava estragando os negócios à exploração que engordava nas riquezas rápidas amassadas de sangue do negro. E o bispo branco sentia a alma negra de amargura e de vergonha por tantos e tão grandes desaforos contra a dignidade humana, perpetrados pelos «seus brancos». Em resposta a esta voz, segundo eles, havia que denegrir, manchar, calar, desautorizar bispo e jornal, suspendendo e censurando este, para atingir aquele. Quantos ferem os filhos porque não podem chegar aos pais!... Se não era prática comum de todos os colonos, também nem todos os colonos eram portugueses. Mas eram portuguesas

47 «Diário», citado, 5 de Outubro 1950. Mais uma coincidência «dos diabos», diria o autor. Mas, não mais que isso. 48 Marcelo Caetano, Prof. Dr., que foi Primeiro Ministro. Na altura dos factos era Ministro do Ultramar, de quem D. Sebastião tinha as melhores das impressões.

as autoridades e estavam ali para fazer cumprir a lei. Mas como, se delas sendo portuguesas eram por vezes mais que coniventes no processo condenatório, algumas até colaborantes, delas arranjando grandes fortunas em pouco tempo do seu exercício?49 E como? Nas comissões e nas quotas de sociedades de exploração em que, se não directa, pelo menos indirectamente estavam metidas. Ora a mulher, ora o filho, ora um familiar. É certo, contra a Lei. Mas a Lei? Lá muito quietinha e silenciosa no papel, longe a fiscalização, e a Lei não vinha para a praça pública gritar os atropelos de que era vítima. Mas por ela vinha o Bispo D. Sebastião e o seu jornal estragar o negócio. Mas por isso sofreu duro, muito duro, na carne e na alma, pelo repto das denúncias. E tem aqui o leitor um pouco levantado o véu que se deixou no título acima das «ameaças...» Muito havia mais nesta matéria, que se deixa aqui por não ser este o escopo do trabalho porque mero foco, mais um, sobre a figura desta nobre alma feirense.

Negro marcado a ferro em brasa

49 «Recebi o governador, Dr. Gouveia de Melo, que me disse estar cheio do lugar. Deu ordens para se não fazerem atropelos à lei com o algodão. Agora o ministro chamou-lhe à atenção porque estava a fazer uma política hostil ao algodão. Parece impossível! Um ministro agarrado ao algodão como um toiro bravo preso a uma corda!.» «Diário», 20.7.1950. - « Soube que dizem para aí que a Companhia de Moçambique (um dos tubarões) perdeu o pai e a mãe, que eram o ministro das Colónias e dos Estrangeiros, Teófilo Duarte e Caeiro da Mata. Deve ser certo. Qual o pai e qual a mãe não sei, ma o que sei é que os dois constituíam o casal autor e protector!.» Diário, 21.8.1950. Em 27.9.1950, foi para Joanesburgo apanhar avião para Lisboa e aqui tratar de conseguir autorização para a vinda de missionários e missionárias estrangeiros, e de outros assuntos. (Ibidem) Chamamos a atenção do leitor para aquela carta do missionário de Chemba escrita a D. Sebastião falando-lhe de algodão, de chuvas, de fome e outras coisas.


8.4. O prisioneiro da vigilância da «secreta portuguesa» Ora fácil é compreender o que se segue tendo a focalização da luz que acaba de deixar-se. E aqui mais uma recorrência da História. «Mal com el-rei por causa dos homens...». Aqui não o resto, que deste se não pode dizer que está de «mal com os homens por causa de el-rei.». Por isso «el-rei» vigiava o bispo. «Mesmo quando lhe parecia estar preso nas ruas das grandes cidades porque seguido como perigoso malfeitor, ou verificava que para a sua correspondência era uma palavra vã a garantia do sigilo epistolar consignada na nossa Lei fundamental... a Constituição Política.» E bem cedo começou. E tão cedo que já em 20.3.1944, apenas a cinco meses de presença de Bispo na Beira, regista no «Diário»: «Recebi uma carta de Portugal pelo correio e passou sem censura. Caso raro e estranho! Está para acontecer alguma coisa de notável!»50 Natural que assim fosse. Suas humanas reacções acicatadas perante desumanidades comentadas aqui e além não passariam despercebidas à polícia do Estado que, muito por perto, como sinistra sombra, o espreitava haveria tempos. E D. Sebastião, fosse por que fosse, vivia convicto desta realidade, que não mero pressentimento. Intimidação? Nem por sombra. Prossegue. Quem, que forças, fechariam a um pai ouvidos apurados pelo cristianismo tantas e tão gritantes injustiças? «Há quem contrate em várias colónias negros para São Tomé porque é alto negócio. Por cada preto contratado pagam um conto de réis.51 Neste contrato há dolo, engano, ilusão para os pobres desgraçados. Riquezas que se conseguem com sangue, suor e vidas humanas. Pecado que brada aos céus...»52 E por isso surge-lhe a doutrina social da Igreja de que é porta-voz. «Precisa-se de aplicar aqui a doutrina das encíclicas sociais dos papas Leão XIII, Pio XI e Pio XII. A escravatura já passou à história e é preciso que cesse o abuso de se construir grandes fortunas com sangue de pretos... Cada vez mais

50 «A Igreja Católica e o Estado Novo em Moçambique», pg. 217, Pedro Ramos Brandão, editorial Notícias, 2004. Citado. 51 Hoje, seriam cinco euros. Uma bagatela. Mas então, 1944, eram raríssimas as notas de um conto de réis. Para ter uma pálida ideia, equivale ao salário de 60 dias consecutivos de trabalhador rural. Dois meses completos. 52 Regista no dito seu «Diário» na escala em São Tomé a caminho da sua diocese da Beira. Experiências interpelantes da consciência que o preparam para o choque de idênticas realidades que afectam os seus filhos diocesanos. «Diário», 7.11.1943, em «A Igreja Católica e o Estado Novo em Moçambique», pg. 215, de Pedro Ramos Brandão, 2004. Citado. 53 «Diário», 27.8.1944, Ibidem, p. 217.

me convenço de que os indígenas estão, nos arredores da Beira, completamente abandonados. Está tudo por fazer.»53 «Notei que há muitas serrações à beira do caminho de ferro. Os pretos vestem um saco... Impera na Beira a escravatura...» Idem, Ibidem. «Fui ao gabinete do governador tratar de assuntos relativos a uma missão. Diz sua exc. que para si o depoimento de preto não vale nada! Que bela fazenda jurídica! Deste modo podem perpetrar-se os maiores crimes contra os pretos, se eles se queixarem, não vale nada o seu depoimento... Desgraçados pretos regidos por homens destes.» 17.11.1944. Idem, ibidem. «...a empresa Búzi carecia de rapazes para a fábrica, veio ter com o governador. Este manda chamar o administrador e ordena-lhe que mande os rapazes. Ele retorquiu que os rapazes só iam de corda ao pescoço como se faz em Manica e Sofala e isso está proibido na lei. O governador insiste para que mande os rapazes. («Diário», Em 6.12.1944 Quando acabará a escravatura nesta colónia?!( idem ibidem, pg. 218) «...ainda agora procura eliminar todos aqueles homens que se opõem a toda a espécie de patifarias.» (Ibidem, pg. 222,5.8.1949), comenta a propósito da «Companhia de Moçambique» que nada mais fez que explorar os pretos e os recursos naturais, - pasme-se, a coberto dos governantes -, ministros e governadores... Mas sempre assim foi. Nem a Monarquia, nem a República, nem o Estado Novo, nem, em alguns casos, alguns missionários de todos os credos.

9. Entraves à sua actividade evangelizadora. «Mesmo quando lhe era coarctada a liberdade de pregar e ensinar, criando-lhe entraves a um dever imposto pelo Evangelho e que pareciam constituir contravenção a direito reconhecido em público e solene Pacto, de natureza internacional ou intersocietário.»54 E surge entre outros o «caso» do Instituto D. Gonçalo da Silveira. Em 5 de Fevereiro de 1950, anota no Diário: «Recebi carta do ministro das Colónias que me dizia haver mostrado a minha carta ao presidente do Conselho, que levou o assunto ao Conselho de Ministros. Prevaleceu, diz ele, o aspecto político e não deixou vir mais missionários alemães e italianos para cá. Onde está a lógica do Governo?»

54 D. Eurico Dias Nogueira, então Bispo de Vila Cabral, na homilia nas exéquias de 7º dia 1.2.1967. Agradece penhoradamente o autor a S. Exc. Rev.ma a gentileza do seu envio, esclarecimentos e achegas. 55 «A Igreja Católica e Estado Novo em Moçambique, citado, pg. 222 e 223.

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Colégio Feminino da Beira

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9.1. O caso «Diário de Moçambique» - Calar o jornal era amordaçar o Bispo Fundado por D. Sebastião. Sai o primeiro número em 25 de Dezembro de 1950. Acabou definitivamente em 1973. Teve de suportar vicissitudes, vítima da conjuntura política facilmente adivinhável sendo órgão da diocese e criado pelo perseguido fundador. O «Diário de Moçambique» constituía um dos principais meios integrantes de um vasto plano de recuperação de Moçambique marcado por centenas de anos de atraso, mercê também da desastrosa política do Absolutismo, que o Liberalismo agravou, que a República agravou ainda mais e que o salazarismo atamancou quando não obstruiu. Portugal político quase nada fez e ainda impediu a Igreja que fizesse. Lembre-se que nos anos 50, a Lourenço Marques, e outras cidades da África Austral, arriba gente, nomeadamente comunistas, e similares, funcionários e estudantes, incómodos ao regime que os perseguia na Metrópole. Vejam-se os paradigmáticos exemplos de Cansado Gonçalves, Vítor Velez Grilo,56 António de Almeida Santos,57 e tantos outros. Mas havia de tudo. Manuel Ferro, exagerado situacionista, que trabalhou no «Diário de Moçambique», engrossando as calúnias contra o jornal, diria ao sair: «O bispo deve ter sido o primeiro terrorista que apareceu em Moçambique. Defendia uma terra para todos e punha os Portugueses em xeque, como exploradores dos pretos nomeadamente na questão do algodão.»58........................................

56 Haviam sido dirigentes e secretários gerais do PCP. 57 António de Almeida Santos– N. em 1925, no concelho de Seia, filho de professora primária, terminado o curso de direito vai para Moçambique, faz o estágio e passa a residir. Foi Presidente da Assembleia da República. 58 Manuel do Amaral Ferro, em entrevista concedida a José Freire Antunes. Cf. Livro citado, p. 94. Companheiro de Jorge Jardim, pelo que a situação se explica por ela própria.

Teria razão, do seu ponto de vista. O diário reflectia doutrinariamente os princípios Humanistas Cristãos do seu fundador. Em conformidade, por uma questão até de pura coerência comum a qualquer homem de carácter bem formado, coerente com os sãos e mais elementares princípios, como era o caso do bispo, em cuja espinha dorsal nunca se notaram quaisquer curvaturas oportunistas, mesmo quando prensado pelas arbitrariedades do poder político pronto a ceder a leve mesura. Mas não. «Fidalgo da Beira não arroja cadeira», não por orgulho, mas por fidelidade a princípios. E isto logo no primeiro da sua entrada na Beira, o que deixa ver a direita linha de rumo traçada. A título de exemplo do afirmado: «O Diário de Moçambique» de forma alguma podia calar os atropelos aos mais elementares e sagrados deveres de respeito pela pessoa Humana fosse qual fosse a cor da pele, o quadrante geográfico da sua proveniência e a religião professada. Daí, tornara-se assaz incómoda esta poderosa voz celebrizada pelo apostolado de D. Sebastião Soares de Resende. E por isso, na morte, muçulmanos, hindus, protestantes, Igreja Ortodoxa Grega, Adventistas, e sem religião, lhe prestaram as homenagens que prestaram e sentiram a perda dessa voz que o próprio túmulo não calaria.59 As deslocações do Sr. Bispo obedeciam ao imperativo de tratar junto do Governo de Lisboa a ferida aberta pela machadada que o Governador Geral acabava de dar no bispo acertando na menina dos seus olhos, o «Diário de Moçambique». «Na ausência do senhor Bispo desta diocese (da Beira), julgo-me na obrigação de prestar a V. Ex.cia Rev. um esclarecimento a propósito da suspensão do «Diário de Moçambique» ... Na realidade ... o que está em causa é o prelado da Diocese da Beira.-...» 1.Há tempos que o Governador Geral vem insistindo com o Diário ... que mande à censura todos os escritos da autoria do Sr. Bispo da Beira....» O «Diário...» insiste legitimamente que tal exigência vai contra o direito concordatário ao querer intervir no magistério dos bispos, isentos enquanto bispos, segundo esse direito. Sub-reptício, o Governador Geral nunca comunica com o

59 Talvez também por isso o «República» de Raul Rego nunca lhe tivesse dedicado uma só linha, nem sequer no momento em que todas as normais diferenças, para dar passagem ao que houver de bom no fundo do ser humano, se abatem à memória de um desaparecido, e sobretudo da craveira moral e humana de D. Soares de Resende. Nem o seu aspirante a Grão Mestre, historiador H. de Oliveira Marques, toca no assunto, de leve que fosse.


prelado, e sempre exige isso do «Diário»60. Porquê, nunca deu explicação apesar de instado. Móbil da suspensão,a homilia do bispo entregue para publicar ali a 8 de Maio corrente. A 9 pronunciou-a na catedral de Lourenço Marques perante os restantes bispos, corpo diplomático e muito público. Celebrava-se o 25º aniversário da Concordata e do Acordo Missionário entre Portugal e a Santa Sé. Na noite de 9 para 10 é impressa e sai a público na íntegra. Pretendia o Governador sobrepor-se ao bispo e ao direito concordatário. Daí que a 22 do mesmo mês o jornal é suspenso por 10 dias. Havia já experiência de suspensões de três dias. O Jornal apresenta o direito e os pareceres do Procurador da República, como segue: «5º.«... o parecer nº 15 da Procuradoria da República de Lourenço Marques, em 1962, diz que estão isentos de censura os escritos dos bispos, desde que enviados pessoalmente e devidamente autenticados», como era o caso. Numa guerra de« lobo e cordeiro», aparece também D. Eurico invocando o Direito.

D. Eurico Dias Nogueira, Bispo de Vila Cabral

Em 27.5.1965, D. Eurico D. Nogueira, chega de trabalhos a Vila Cabral, sua diocese, toma conhecimento do grave atropelo ao direito individual e internacional, numa clara e arrogante violação dos mais elementares princípios de deontologia jurídica. Exímio jurista civil e canónico, em carta ao Governador Geral, veementemente condena a prepotência da força fora de razão. Da carta, nos arquivos da PIDE, os passos mais significativos concernentes ao caso. Nesta altura já D. Sebastião se deslocara a Lisboa a tratar do grave atropelo. «... regressado ontem à sede desta diocese...apresso-me a levar até junto de V. Ex.cia, por imperativo de consciência, a expressão da minha viva estranheza pela suspensão do «Diário de Moçambique», determinada por despacho de 21 do mês corrente(Maio 1965). ... tal determinação contraria frontalmente não só o espírito mas a própria letra do art. II da Concordata vigente» que garante à Santa Sé a «livre comunicação com o clero e fiéis de Portugal, «sem necessidade de prévia aprovação quaisquer instruções ou determinações... e nos mesmos termos gozam desta faculdade os Ordinários (Bispos), e mais autoridades eclesiásticas relativamente ao seu clero e fiéis». «Por força de tais disposições, as cartas-pastorais, sermões, homilias, decretos, notas oficiosas, comunicados e outros documentos congéneres provindos dos prelados não estão sujeitos à censura estadual... a Concordata..., lei posterior, em qualquer hipótese sempre teria prevalência sobre o mero direito interno por ser um diploma de Direito Internacional Público. Pretender, porventura restringir aquela faculdade ao interior dos templos seria contrariar os mais elementares princípios do Direito que estabelecem que «onde a lei não distingue também o intérprete não pode distinguir» para além de que esvaziaria por completo o preceito legal de qualquer conteúdo útil. Constituiu esse o esforço inglório do passado Liberalismo de raiz maçónica,61 tal como constitui norma dos regimes comunistas da actualidade que procuram roubar à Igreja toda a possibilidade de expressão do seu pensamento e doutrina.» «De resto o jornal católico assume papel de uma extensão de poder do magistério da Igreja e só a essa luz de justifica a sua existência. Impedi-lo de o ser é o mesmo que torná-lo inútil e sem razão.... e como Bispo e modesto mas persistente cultor do Direito canónico e civil, não me resigno a que unilateralmente ( para não dizer arbitrariamente) se lhe dê outra interpretação.... Devo acrescentar que o facto parece tanto mais estranho

60 Trata-se do general José Augusto da Costa Almeida, colocado à frente de Moçambique, confiante o Governo de Lisboa nas suas qualidades e no facto de ser natural dali. Mas revelou-se um desastre ou por excesso de zelo ou por excessiva subserviência. Na verdade tornou-se em mais um dos coveiros do regime e do «Diário de Moçambique».

61 cuja expressão máxima se encontra na República de 1910 ao fechar a religião completamente dentro dos templos

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quanto é certo que a Censura se mostra escandalosamente permissiva quando se trata de enxovalhar publicamente o Autor da homilia em causa e denegrir a actividade missionária em geral como sucedeu, muito recentemente, nos números 211 e 215 do jornal «Agora»62...

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9.2. A Censura nem os mortos respeita. Mesmo no túmulo os teme, tão vivos continuam Veja-se, a Censura chega ao cúmulo de proibir a publicação da oração fúnebre proferida por D. Eurico Dias Nogueira, nas exéquias solenes de 7º dia com que foi sufragada a alma de D. Sebastião. Pois bem, indignado pela afronta a um morto, o Clero da diocese da Beira dirige ao Presidente do Conselho, Oliveira Salazar, «veemente protesto contra o procedimento contra a memória do santo Bispo, do infatigável Evangelizador e exemplar Cidadão que foi Dom Sebastião Soares de Resende. O Clero da Diocese da Beira sente e sabe que se tem feito sentir implacavelmente a força silenciadora da Censura, a qual não permite expressões originais de louvor à figura do grande missionário, impede em Moçambique transcrições do que na Metrópole se consentiu que fosse publicado, e que vai até ao ponto de impedir a publicação da oração fúnebre proferida por um prelado de Moçambique... trata-se de um insulto a um Morto que a nós é muito querido.. e não nos consente o espírito admitir que possa dar-se à pequenez de alguns vivos o direito de espezinhar a grandeza de alguns mortos. «Os mortos mandam» - Vossa Excelência o lembrou não há muito tempo... A memória do nosso muito querido Bispo... manda-nos que exaltemos a santidade da sua vida cristã; a abnegação da sua vida missionária; a rectidão da forma como serviu a Deus e Moçambique, sem nunca ter permitido que cifrões se interpusessem na prática da sua fé nem na caridade que pôs ao serviço de todos os seus próximos, indistintamente...» Beira, 1 de Março de 1967 Assinam 36 sacerdotes. D. Sebastião, como se disse, parte para Lisboa a tratar do caso. Mas que canseiras, que voltas, que tempo, que lutas,

62 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, Processo citado, fls. 184-188 63 ANTT – PIDE/DGS, Del. Lx. Proc. citado, 3033, CI(2), fl. 47. Transcrito pela PIDE da «Semana Portuguesa» nº 192, de 27/Maio a 2/Junho de 1967. Os sublinhados são da responsabilidade do autor do presente trabalho. 64 Não sabemos se tal indignação chegou a ser enviada. Sabemos da sua existência pelo processo policial da PIDE que fotocopiou a publicação. Mas a fotocópia destinava-se a contra-informação minimizadora do caso. Criadora de águas turvas vem a comunicação policial de Lourenço Marques, em 20 de Abril.

que esforços, que verbas, quanto bem deixado de fazer em outras frentes com todo este manancial gasto por um pigmeu defendendo-se dos ataques de um gigante...

9.3. Sinistra sombra segue e regista seus passos «ONTEM DOM SEBASTIÃO RESENDE PARTIU BEIRA PARA SALISBURY PEDINDO SEGREDO PARTIDA PT SALIRBURY COMPROU BILHETE PARA JOANESBURGO PT HOJE PARTE JOANESBURGO PARA LISBOA AVIÃO QUINZE HORAS E TRINTA MINUTOS PT SEXA GG DESEJA SABER CONTACTOS MESMO BISPO TERÁ EM LISBOA E SE PARTE PARA ROMA PT SEXA CONSIDERA SUSPEITOS MOVIMENTOS BISPO PT ROGO INFORMAÇÃO VIA RÁDIO URGENTE. INTERPOL L. MARQUES» - 25.5.1965 – PIDE –– Lisboa Nota à mão: «Urgente à S. C. Para se vigiar os passos do S. Bispo, sobretudo se tem contacto nação estrangeira. 25.5.65»65 «...hoje,(26 de Maio), pelas 3.00 horas, procedente de Johannesburgo, avião da «SABENA» ... D. Sebastião Soares de Resende.... Aeroporto de Lisboa e posto da PIDE, 26.5.1965. O Chefe do Posto. A) .....» PIDE – Idem, ibidem, f. 208. Deixam-se dispersos estes traços achados suficientes para se constituir imagem do muito que se omite por desnecessário a um entendimento do problema. (....) «O purpurado saiu do nº 33 da Rua Bernardo Lima, onde se

65 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, citado, fl. 207, 208.


encontra alojado para dirigir-se à Nunciatura. Durante o tempo que permaneceu na nunciatura entraram nesta indivíduos que se fizeram transportar nos carros: HH-64-83 e HD-41-10, pertencentes respectivamente a António de Albuquerque de Sousa Lara, residente na Avenida do Restelo, 38-A, em Lisboa e Direcção dos Serviços de Transporte do Ministério do Exército. Da Nunciatura o purpurado seguiu para o nº 292 do Campo Grande (Lar das Universitárias do Ultramar, M.N.E.). Daqui saiu para a Rua Bernardo Lima, nº 33. Cerca das 14.00 horas entrou nesta última morada o indivíduo que o fora esperar ao Aeroporto, no carro HH-71-92. Depois de ter saído da Nunciatura, no taxi que utilizou consultava documentos que, ao que se julga, foram-lhe fornecidos na mesma. Lx., 26.5. 1965, O Chefe de Brigada, (assin. ilegível)»66 26.5.1965, «Senhor Bispo da Beira não saiu ontem da residência depois das 20,30 horas. No entanto foram ali várias pessoas das quais se pôde obter os seguintes elementos: (- 27.5.1965, relata o mesmo chefe de Brigada 1)Solicitador Joaquim Prazeres Lança, residente na Av. D. Carlos I, nº 142 – 1º, Lisboa. 2)Miguel Pires Patrício, funcionário do Ministério do Ultramar, residente no lote U, ao Bairro Falcão ou Alameda, nº 5, 2º, D.to. na Pontinha. (Fazia-se acompanhar de uma pasta). 3)António Ribeiro Coelho, agente técnico das C.R.G.E., residente na Rua Vale F Formoso de Baixo, nº 118, em Lisboa. (fazia-se acompanhar de uma pasta). 4)Indivíduo residente na Rua Tenente Raul Cascais, nº 4, 3º, Esq.do, em Lisboa. Telef. Nº 661382, em nome de Maria Cristina Cortez 5)Indivíduo conhecido por furriel Geraldo, residente no anexo do quartel de Artilharia Um, - Rua Artilharia Um, em Lisboa. 6)Casal, ele conhecido por João, funcionário dos C.T.T., reside na Rua Guilherme Azevedo, nº 6, - 2º Esq., em Lisboa. 7)Rapaz de cerca de 17 anos, hóspede na rua António Pedro, nº 123 – 2º, em Lisboa. Lx. 27.5.1965, O Chefe de Brigada a) D. ...» (ilegível mas o mesmo anterior)67 «... o purpurado foi visitado na sua residência pelo jornalista Manuel Maria da Silva Costa, director do jornal «Diário de Moçambique», que se fazia acompanhar dum padre e doutro indivíduo. Quanto ao padre sabe-se que se chama José Martins exerce a sua actividade na Beira – Moçambique,

66 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, Processo citado, fl. 198. 67 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, Processo citado, fl. 197.

encontrando-se hospedado no Hotel Borges desta cidade. Quanto ao outro não foi possível identificá-lo.» (Ibidem, fl. 195) 29.5.1965 – mesmo chefe de brigadaAssunto – Bispo da Beira, D. Sebastião Rezende, morador na Rua Bernardo Lima, nº 33, em Lisboa. ..., cumpre-me informar ... que o referido senhor deslocou-se ontem, de tarde, à Rua de Santa Marta, nº 48 (União Gráfica – Revista semanal de Actualidades «Flama» - Novidades, Jornal da Manhã.) Daí regressou a casa. 31.5.1965 À sua residência foram indivíduos que se fizeram transportar nas seguintes viaturas: 1.) AH–18-92 – Volkswagen, de José Antunes Pedro, casado, residente na Avenida Nino Álvares Pereira, nº 15 r/c, em Amadora. 2.) CE-67-97- Mercedes Benz, de Manuel Gonçalves Cavaleiro de Ferreira, casado, residente na Rua Andrade Corvo, nº 32 – 4º, D.to, em Lisboa. Permaneceu com o purpurado cerca de 3 horas, que veio despedir-se à porta.68 3.) CE-49-71- Skoda, de Serafim de Sousa Ferreira da Silva, residente na Rua Doutor Pedro Vitorino, nº2, Porto. Neste carro vieram 2 padres e um civil. 4.) AI-46-99- Renault, de Alberto Jordão da Silva Salgueiro Marques da Costa, reside na rua dos Nobres, nº 23, Évora.» 5.) Também entrou na Rua Bernardo Lima, nº 33, um padre, que quando saiu, dirigiu-se à Praça José Fontana, nº 11., 31.5.1965...» (as. ilegível do mesmo chefe de brigada anterior.) O chefe de brigada, por ordens, informa em 1.6.1965: «Assunto – VIGILÂNCIA AO «BB» - Hoje, pelas 10,35 horas dirigiu-se ao Hospital do Ultramar, onde permaneceu cerca de uma hora... utilizou a viatura IG–62–30 , pertencente a Álvaro Miranda, residente na Avenida Miguel Bombarda, nº 132 – 5º, Lisboa.»(Idem, Ibidem) Inácio, PIDE, informa em 22.11.1965, sob a epígrafe «D. Sebastião Soares de Resende, Bispo da Beira – África», anotada em 2.12.1965:

68 Sabemos que este eminente professor de direito, autoridade na matéria e pessoa de grande nomeada até como homem católico, foi procurado por D. Sebastião para lhe expor o caso da suspensão do Diário de Moçambique nas circunstâncias esclarecidas e quiçá entregar-lhe a resolução jurídica do caso. Informação colhida junto de D. Serafim Ferreira e Silva actual bispo de LeiriaFátima, natural do Porto, mas então em funções directivas da Acção Católica. Estranha o autor o desaparecimento puro e simples desta personagem do processo pois não consta da correspondência do advogado António Carlos Lima que, tomando a seu cargo a solução e correspondendo-se com vários possíveis adjuvantes, não tem uma só linha e nem o nome cita. Que razões para tão profundo silêncio de quem consta aqui pelas razões claras pelo testemunho de quem estava por dentro do assunto? Foi um dos visitantes notados pela PIDE, como se vê.

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9.4. A Imprensa Estrangeira e o Caso

Portão de entrada para o palácio de S. Marcos, D. Duarte Nuno

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«De fonte fidedigna, temos conhecimento que o bispo da Beira – D. SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE, é muito adverso ao E.N.(leia-se Estado Novo) e nomeadamente contra Sua Ex.cia, o Senhor Presidente do Conselho (Oliveira Salazar). É declaradamente adepto do célebre Bispo do Porto e temos ainda conhecimento que é assaz perigosa a sua acção em África, onde com rara habilidade está praticando uma política muito hostil à Situação. Este bispo, dizia-se monárquico e quando vem à Metrópole, já tem ido a São Marcos, visitar o Sr. D. Duarte Nuno.69 Os Monárquicos progressistas têm por este indivíduo uma grande admiração, tecendo-lhe os maiores elogios»70 Nem todos os monárquicos. Deles eram seus opositores.

O «SUNDAY EXAMINER» noticia: «Moçambique suspende o Diário Católico» 10 dias. O DIÁRIO, publicado pelo Bispo SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE, é um dos poucos jornais que não foram nacionalizados neste território da África Portuguesa....A tiragem de 10 de Maio trazia uma história acerca do discurso proferido pelo Bispo, por ocasião do 25º aniversário da assinatura da concordata entre Portugal e o Vaticano. O Bispo disse que «Moçambique hoje não devia ser território cuja maioria da população é iletrada, mas uma região com um nível de instrução normal, igual ao de qualquer outro estado.»71 Em 25.6.1965, «Soube-se hoje que o Governador Geral de Moçambique suspendeu o jornal «Diário de Moçambique» durante 10 dias. O jornal dirigido por D. Sebastião Soares de Resende... é o único com importância na província de Moçambique que não foi apanhado pelo Banco Nacional Ultramarino... A 10 de Maio publica o texto de sermão dado pelo bispo para comemorar o 25º aniversário do acordo das actividades Missionárias assinado por Portugal e o Vaticano.» Nele disse que «Moçambique podia e devia ser hoje não um território com uma maioria de analfabetos, mas uma zona geográfica exactamente ao mesmo nível de qualquer outro normal estado letrado». Termina criticando o subdesenvolvimento de Moçambique. O Bispo chegou hoje (28.5.1965)72 a Lisboa por via aérea... Crê-se que a sua visita tem ligação com a suspensão do jornal. Há alguns meses protestou nele contra a suspensão por três dias.»73 «The Times» - 28.5.1965.

9.5. Um sinal de reconhecida grandeza pela própria polícia Mas um dos espinhos que mais agitava a polícia política provinha da geral e reconhecida força moral que refluía da sua estatura, não física, - franzina -, mas da alma, da inteligência, daquele seu coração grande e da Fé, e que se apercebera já do profundo sentido do que verdadeiramente é a Africanidade e Negritude, vistas à luz do Cristianismo. Dom Duarte Nuno de Bragança 69 A passagem de D. Sebastião por São Marcos quando se dirigia ao Norte em visita aos familiares e amigos, só depois de 1958, ano em que o Duque de Bragança, D. Duarte Nuno, se deslocou de Matosinhos para aquele palácio, sito na freguesia de Óis do Bairro, concelho de Anadia, cedido pela Fundação da Casa de Bragança e que pertencera aos «Castelo Branco», cujas armas, o leão, se podem ver no armorial do portão de entrada para o recinto. Aí residiram até ao 25 de Abril. D. Sebastião tinha razões de cortesia para passar por ali em visita. É que, o filho, pretendente ao trono de uma hipotética monarquia a restaurar em Portugal, titula-se «Príncipe da Beira», de que D. Sebastião era Bispo. Nada mais natural. Este D. Duarte Pio, deve o «Pio» ao facto de ser afilhado de baptismo do SS o Papa Pio XII. Em 1.1. 1956, foi apresentado ao padrinho, em audiência especial, como «5º Príncipe da Beira», Moçambique. Título criado em 17.12.1734, por D. João V, para ser usado

pelos filhos primogénitos herdeiros do trono, então titulados Príncipes do Brasil. 70 O primeiro e único doc. folha do processo da PIDE/DGS proc.34542, Coimbra e, 3033 – CI(2). D. Duarte Nuno, Duque de Bragança, pai do actual D. Duarte Pio, então a viver em casa cedida por monárquicos de Anadia. Ficava no caminho quando D. Sebastião se dirigia ao Porto a visitar a família e amigos da cidade e de Santa Maria da Feira. 71 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, Processo citado, fl. 171. 72 Parece-nos que «THE TIMES» andará atrasado na data, pois, em 26 do mesmo mês, já a sua presença em Lisboa era objecto de seguimento passa a passo pela PIDE/DGS, como é o caso da sua ida à Nunciatura de táxi. Ali foram também indivíduos onde se transportou em viatura 73 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, Processo citado, fl. 180, Respigado do «The Times» da referida data


Reconhece a polícia política, perante personalidade de tal dimensão, que o melhor dos dividendos seria para já substituir a hostilização frontal pela aproximação. Inequivocamente confessa ao medir a estatura do Homem objecto de todas as suas iras e vigilâncias. Reconhece e confessa a PIDE: «Sebastião Soares de Resende – Bispo da Beira, ligado ao jornal «Diário de Moçambique», «Voz Africana». Homem muito culto, influente e de prestígio. Defensor de certas teorias e pensamentos filosóficos que brigam com as doutrinas políticas, não aprova certos métodos de Governo e de Regimes Políticos. Desfruta de grande prestígio e influência nas camadas da população negra.74 Muito conhecido no estrangeiro pelas suas ideias políticofilosóficas, citado com frequência nos livros que tratam de assuntos ou problemas africanos, mormente quando se referem a questões da evolução do Continente Negro e sua Independência. Tem muito má impressão da PIDE e uma política de aproximação poderá desfazer isto.»

9.6. O próprio Partido Comunista Português, PCP. Por saber das ideias claras e convictas acerca dos «Marxismos» de então, dava, intencionalmente, distorcidas notícias acerca do seu adversário ideológico. Não se esqueçam os extremos posicionamentos: PCP e o seu ateísmo militante marxista de um lado e do outro a Fé Católica nos Valores Eternos de Cristo por parte do Bispo D. Sebastião. Vejam-se as suas pastorais sobre Marxismo.

9.7. Quando estrangeiros reconhecem a grandeza do Homem e do Bispo Nos passos desta vida, há de tudo. 74 ANTT – PIDE/DGS, Deleg. Lx., fl. 377. Quanto ao Governador do Distrito, da Beira, era um major com a prosápia de grande que não passava de menor de espírito, de tal ordem que se arrogava a petulância de, a coberto do seu posto e das costas quentes pelo regime, tratar o Bispo D. Sebastião como se fora um dos vulgares criados negros. Sabemos que foi demitido o administrador do Búzi, mas por obedecer às ordens do Governador, Ferreira Martins, apesar de se mostrar renitente e invocar a proibição da lei a tal procedimento, o qual, apesar de tudo, o obrigou a entregar negros à Companhia do Búzi nem que fossem presos «der cordas ao pescoço».6.12.1944, «Diário», citado. 75 ANTT – PIDE- DGS, 3033, Lisboa citado, fl. 82. Consta este também do arquivado no processo de Nuno Fernando Santana Mesquita Adães Bermudes, com a introdução:« Pelo ofício Confidencial n.º 3245/66-SR, de 9 de Setembro de 1966, a Delegação de Lourenço Marques enviou a esta Direcção fotocópia de um relatório referente às actividades de Nuno Fernando Santana... e vários indivíduos seus amigos, os quais constituem um «grupinho» de oposicionistas da Cidade da Beira. No que respeita ao indivíduo abaixo indicado consta o seguinte: SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE - ...», e que é a transcrição acabada de oferecer aos leitores no corpo do texto.

D. Sebastião, enfrenta ventos e marés, continua sereno ao leme da sua diocese da Beira, não que lhe não passem pela cabeça ganas de a colocar nas mãos do Papa e trocá-la pela missionação no Brasil. Chega a colocar a si próprio esta forma de solução, caso não se encontrasse outro caminho para os problemas diplomáticos surgidos entre a Nunciatura de Lisboa, o Governo Português e a Santa Sé. Sente-se na sua expressão certo desalento. Aguenta forte. O capitão está no leme. Prossegue os objectivos evangélicos, não desiste por mais que lhe estorcesse de fel a alma de bispo devotado, disposto a ultrapassar escolhos e seus reflexos, políticos que fossem. Abriam-se várias frentes de ataque e, por vezes, donde menos esperava. Por vezes a cilada vestia-se de amizade. O caso do eng. Jorge Jardim, vestido de pele de católico fiel, fervoroso até seguidor do bispo, visita frequente, e o sujo papel de duplo a que se prestava.76 O Núncio e Arcebispo de Lourenço Marques... Mas saiamos destas águas... «A Beira transpira, numa atmosfera opressiva e lânguida, nestes dias húmidos próprios da época tropical das chuvas na África Oriental... nestas últimas semanas talvez vejamos maior número de pessoas preocupadas nas províncias ultramarinas que no Portugal metropolitano. A despeito da calma aparente e da presença tranquilizadora de jovens e atléticos soldados portugueses de boina e farda de caqui ... por toda a parte, até o visitante de passagem sente qualquer coisa da electricidade estática que enche a atmosfera...contudo a impressão dominante na Beira é de confiança no futuro. Ninguém mais neste ponto do que o Bispo da Beira, Sebastião Soares de Resende.» Mas havia muitos sinais de inquietação em Moçambique. Vêse do jornalista entrevistador. «O Senhor Bispo, aparentemente jovem aos 55 anos de idade, é um leader destemido, como compete ao portador de um nome distinto da história portuguesa... alguns dos outros bispos de Moçambique consideram-no radical e de ideias avançadas. Há dois anos (1960), o governo apreendeu a sua carta pastoral que criticava abertamente alguns aspectos da política oficial ultramarina. Logo aos primeiros minutos das conversações que tive com ele durante uma visita de dois dias à sua residência, verifiquei como aquelas conversações eram relativas. O senhor Bispo é um anfitrião inteligente e gracioso. » «The Leader» – 9.2.1962. Neil G. Mcluskei, S. J.

76 «Jorge Jardim – Agente Secreto», citado, de José Freire Antunes.

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9.8. Prova do dito: Estado e escolarização africana. Ao regressar de automóvel para Umtali, fronteira da Rodésia, aquele jornalista dá-se conta de que «Nos subúrbios da Beira, passa-se aqui e além por uma escola do governo. As crianças que brincam nas cercas dessas escolas são quase todas brancas, algumas mulatas e muito poucas negras... Com a possível excepção da Etiópia, as colónias portuguesas têm o record menos animador de instrução do continente... De vez enquando, uma enorme camioneta, cheia de trabalhadores africanos maltrapilhos, aparece na estrada fazendo curvas incríveis. Vão trabalhar para uma fazenda europeia ou nas estradas. Porque todos os homens adultos africanos - excepto os assimilados – são obrigados por lei ao «trabalho contratado» durante seis meses do ano,embora este período» (Ver a este propósito «A Família...») seja para muitos prorrogado por vários anos ininterruptos... depósitos de escravos. A História reconhece e consagra a valente naçãozinha cujos bravos marinheiros e padres inscreveram pela primeira vez o continente negro no mapa mundial e ali acenderam as lâmpadas da civilização. Mas será apenas a ignorância persistente, a pobreza e a escravatura e ainda outros costumes medievais do paternalismo português em Angola e Moçambique, aquilo que o mundo terá para recordar um dia do capítulo de Portugal na África?» A resposta a esta interrogação final do jornalista constituiu sempre a grande e profética acção do Bispo da Beira. Diante dela o Prof. Dr. Adriano Moreira, homem de superior inteligência e rara visão do mundo entende essa acção profética do bispo e presta-se a dar-lhe a mão. Porém, os coveiros, «Os Gatos»,77 crucificam o bispo e ao Professor afastam dos cargos políticos. E os abismos em que a Nação se afundava cada vez mais fundos se escavavam ao jeito de sepultura. É D. Sebastião quem profeticamente denuncia o caminho errado. Quaresma, Março, 1962.

9.9. A consciência religiosa e política do Missionário. Ecos da sua voz de Padre do Concílio.

77 «Tempo de Vésperas»,pg. 183, editora Sociedade de Expansão Cultural,

78 Baltazar Leite Rebelo de Sousa – N. em Fafe em 1921. Médico pela Univ.

Lx. 1971. Colectânea de magistrais, geniais artigos da sua colaboração no «Diário de Moçambique». O Sr. Prof. terá sido inspirado para escrever o que e como escreveu. Este «Os Gatos» causou mal-estar na inteligentzia metropolitana e desde aqui poucos mais se publicaram no dito jornal fundado por D. Sebastião e que e Governo matou. Dedicado «À memória de D. Sebastião de Resende, Bispo da Beira, missionário, pastor, irmão de todos os seres vivos, é dedicado este livro de crónicas, escritas para o jornal que fundou, e que também morreu.». Permita-me, Sr. Prof. Adriano Moreira, que o emende a meu jeito de entender, talvez mal, as coisas. Não morreu o jornal. Não morreu, não, que o mataram de morte lenta. E com esse assassinato pretenderam atingir de morte o seu venerando progenitor, não lhes permitindo a cegueira política ver que atingiam a cultura em Moçambique e no fundo a Pátria. Era o único jornal independente. Toda a restante imprensa estava sob controle do grande capital e dos vários interesses económicos em Moçambique.

«Le Monde» comenta a intervenção de D. Sebastião Soares de Resende durante a discussão do esquema 13, no Concílio. Versava ela aspectos da administração colonial portuguesa em matéria económica e social designadamente. Tais assuntos, também em Moçambique e naquele tempo, estavam sempre na sua mira crítica. Tão gritantes e visíveis que a cego e surdo somente passariam despercebidos, quanto mais a um pastor atento e vigilante como este bispo. Foi assim que, de Correspondente Particular, publica este jornal francês de grande tiragem notícia sobre a sensação que nos meios católicos portugueses causou a intervenção do «Arcebispo da Beira» na dita sessão do concílio. Não era para menos a clareza e contundência das desassombradas palavras que tiveram interpretação política da parte da inteliligentzia portuguesa para além da que lhe deu a autor. Em 26.10.1968, o Dr. Baltazar Rebelo de Sousa confessa ao Dr. Marcelo Caetano que «Só o Diário de Moçambique» (do Bispo da Beira) foge à nossa influência indirecta.» Na opinião do citado Adrian Hastings, o novo bispo, D. Manuel Ferreira Cabral revelara-se autêntico desastre, pois, além de outros aspectos negativos, «Vendeu o jornal «Diário de Moçambique» aos seus maiores inimigos, um grupo de homens de negócios branco de extrema-direita comandados por Jorge Jardim.» Havia que silenciar o grito às injustiças. Jardim é o carrasco. Ligado a Champalimau e seu grupo económico, senhor do «Notícias da Beira», vai concretizar esse velho sonho de modo a juntar ambos nas mãos do grupo. A 25 de Agosto, Jardim comunica a M. Caetano: «Julgo que chegámos a solução a concretizar nos primeiros dias de Setembro» de 1969.

de Lisboa. 1968 a 1970 Governador Geral de Moçambique; Ministro das Corporações, Saúde, Assistência, 1970/ 73; Ministro do Ultramar, de 1973/74. 79 Padre Adrian Hastings, S. J., in «Wiriyamu», pgs. 19 e 20, citado. 80 «Jorge Jardim - Agente Secreto», citado, pg. 284, 285, 287, 288, de José Freire Antunes. Jorge Jardim esteve ligado aos negócios com Augusto de Sá, dono de grande império económico e não menor empório de imobiliário e de importe de automóveis japoneses e empresário de camionagem. Aqui, «Dois dos seus accionistas: Almeida Santos e o Jorge Jardim que estava a juntar uma fortuna em Moçambique e a acumular um poder desenfreado.» 81 Fundado por D. Sebastião. Primeiro número sai em 24.12.1951. Em Setembro de 1969, deixa de pertencer à Diocese da Beira por compra da Companhia Editora de Moçambique, legalizada em 1.1.1970 e organizadas por J.J. Este, para o efeito, recebe do Banco Nacional Ultramarino o montante da compra. Finalmente, 15.3.1971, deixa de se publicar. Perante a precipitação da


9.10. «Diário de Moçambique» e a frenética agitação psicológica dos agentes policiais Numa clara desorientação em resultado de obsessivos receios de perigos mesmo donde eram menos de esperar, minaram mais o regime que os agentes externos. Exageros, errado pressentir mal e perigo donde menos poderia vir, suscitava atitudes, leituras rocambolescas conducentes a ridículas arbitrariedades e a excessos de toda a ordem. Com tudo isso esfregavam as mãos os verdadeiros inimigos que do exterior mostram regozijo com tal espectáculo significativo de que o colonialismo salazarista se estava decompondo mais por acção dos seus pretensos defensores que dos seus verdadeiros opositores. Anunciava gosozamente a rádio «Portugal Livre»: «...Referimo-nos ao conflito aberto com a proibição, em Moçambique, do «DIÁRIO DE MOÇAMBIQUE», da Beira. Este jornal foi suspenso no dia 21 de Maio (1965) por ter publicado integralmente a pastoral do Bispo da Beira D. Sebastião de Resende, lida em todas as igrejas por ocasião do vigésimo quinto aniversário do apoio82 missionário a Portugal pela Santa Sé. O único jornal de Moçambique que não pertence ao Banco Nacional Ultramarino é propriedade do bispado. Qual o motivo da suspensão?A pastoral do Bispo da Beira ao mesmo tempo que exalta a actividade dos missionários reconhece algumas amargas verdades que o colonialismo salazarista quer esconder a todo o custo. Critica o analfabetismo entre os africanos. Reconhece as desastrosas e irreversíveis consequências das posições do passado e fala na falta de uma atmosfera psicologicamente receptiva entra as massas e na ausência do mínimo indispensável de preparação humana. «Preparação humana»,aliás larga e claramente exposta em 1951 na sua obra « O Problema da Educação em África». Problema com denodo lançado em prática num esforço hercúleo de fundar «Missões» após «Missões» dotadas ao mesmo tempo do mínimo de infra-estruturas humanas e materiais no firme propósito de levar aos africanos, juntamente com o catecismo do Evangelho e a «Cartilha Maternal» das letras dos homens e preparações profissionais próprias. Veremos mais em pormenor esta gigantesca empresa levada a cabo não se sabe como, porque «mais do que prometia a força humana.»83 descolonização na sequência do 25 de Abril, JJ destrói quanto era do jornal salvando-se apenas a colecção encadernada na redacção de Lourenço Marques que a entregou à biblioteca desta cidade, à revelia da ordem de destruição total. Última publicação, nº 540, 19.10.1974. Conf. «A imprensa de Moçambique», p. 192,193, 283, Ilídio Rocha, Livros do Brasil, Edit. Lx. 2000. 82 Não se celebrava aniversário nenhum de «apoio», mas «do acordo missionário». Ora entre apoio e acordo há tanta diferença quanta entre ser e não ser, tanta quanto o infinito. Parece pequena, mas é muito grande. Infinito. 83 Luís Vaz de Camões, «Os Lusíadas», Canto I, est. 2, verso 8.

9.11. A suspensão do «Diário de Moçambique». Nos fins de Maio, chegou imprevistamente a Lisboa, o Bispo da Beira, D. Sebastião de Resende, para aí discutir a questão da suspensão do seu jornal...»84 Repercussões diplomáticas internacionais O que se pode resumir em «pior a emenda que o soneto». Clara era a intenção limitativa do governo. Porém saía deficitário nos créditos internacionais e com menos apoios nacionais. A troco de quê? E, afinal, por uma banalidade caturra. «Em 5 de Junho de 1965,GEORGES VANDESTRATE, Cônsul Geral da Bélgica em Lourenço Marques - ao SENHOR PAULHENRI SPAAK, Vice-presidente do Conselho Ministro dos Negócios Estrangeiros – BRUXELAS. Pela segunda vez desde o princípio do ano, a censura exerce sevícias sobre um texto episcopal. Refiro-me, com efeito, ao meu relatório de 23 de Março último no qual comunicava a interdição de publicar o ponto 3 do comunicado final da Conferência Episcopal de Moçambique, de 3 a 12 de Fevereiro último, realizada nesta cidade. Tinha-vos feito notar que atribuíam aí, de uma maneira geral, ao Monsenhor Sebastião Soares de Resende, Bispo da Beira, a iniciativa de publicar um comunicado chamando a atenção do facto de que o texto redigido pela Conferência dos Bispos tinha sido truncado. Igualmente se dizia que ele era o autor da alínea censurada. De novo Monsenhor Sebastião acaba de ser visado pela Sr.a ANASTÁSIA.85 Na verdade, o texto da homilia que ele pronunciou na celebração solene do 25º aniversário do Acordo Missionário86 entre o Vaticano e Portugal, foi amputado numa

84 ANTT – PIDE/DGS, Proc. de Lisboa, 3033 – CI(2), citado, doc./fl. 177. A notícia vinha da Argélia, por essa rádi0. 85 Para o leitor menos familiarizado com a linguagem críptica de então. «Anastásia», apodo por que irónica e depreciativamente se mencionava a polícia do Estado e a Censura. Por aqui se vê que estes diplomatas estrangeiros dominavam, eles também, a terminologia críptica corrente na época. 86 Foram, efectivamente, em 9 de Maio de 1965, efectuadas em Lourenço Marques as celebrações comemorativas do 25º aniversário do referido acordo missionário: Missa Solene na catedral por todos os Bispos de Moçambique; - Te Deum presidido por D. Custódio Alvim Pereira, Arcebispo de Moçambique. Assistindo o Governador Geral da «Província»; Sessão solene na Câmara presidida pelo Governador Geral.. Diga-se que deveria ser o arcebispo de Lourenço Marques D. Sebastião Soares de Resende e não por ser persona non grata ao Governo Central que se opôs como punição ao desafecto D. Sebastião e porque honra e lugar, na óptica policial e governativa, poderiam trazer maiores dificuldades, pelo lugar mais cimeiro e pelo brio pessoal. Mas, por mais baixo que considerassem o cargo deste Bispo, o estatuto que natural, paulatina e firmemente havia construído com muito sofrimento e árduo trabalho na sua acção Humana e Evangélica pelo Homem Moçambicano tinha-o já elevado tanto que nada nem ninguém o podia esconder, arrumar ou tornar ignorado. E, como se vê pelo simples exemplo desta carta do diplomata belga, como de todos os outros ali creditados, torna-se mais claro o nosso dito.

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alínea da conclusão, pela Comissão de Censura. Homilia pronunciada pela manhã, na catedral sob o título «Meditação Missionária»... as palavras sublinhadas são as que foram amputadas...87 O jornal diário «Diário de Moçambique»...publicou na sua edição de 10 de Maio o texto completo da homilia o que deu origem a um despacho do Governador Geral, datado de 21 de Maio, suspendendo este jornal durante 10 dias. Esta sanção pareceu muito severa. Ela parece colocar mal, voluntariamente, as mais altas Autoridades Eclesiásticas da Província e principalmente para com os diplomatas acreditados em Moçambique. Tinha-se já ficado surpreendido ao constatar que os membros do corpo consular não tinham sido convidados a assistir às manifestações do acordo missionário, ainda que as Missões católicas da Província comportem numerosos padres estrangeiros. Mas dois dos nossos colegas de carreira ficaram entretanto muito admirados ao verem as suas audiências ao Arcebispo de Lourenço Marques limitadas a uma duração de três a quatro minutos. Trata-se do Sr. WACNAAR , novo Cônsul Geral da Holanda em Salisbúria, que acaba de receber o seu «exequatur» para Moçambique e do Sr. LUECHETTI, Cônsul Geral da Itália, vindo de umas férias na Europa. A estranheza do primeiro explica-se porque ele não teve o tempo material para falar com o Arcebispo sobre o assassinato de um missionário holandês, há apenas seis meses, enquanto o do meu colega italiano foi motivado pela comparação que ele fez com as outras audiências que lhe tinham sido concedidas anteriormente. Não nos pertence tirar conclusões sobre a inquietação das Autoridades Episcopais, e basta-me assinalar a sua existência a fim de vos permitir fazer uma ideia melhor das condições em que os missionários estrangeiros exercem o apostolado nos territórios do ultramar português.» Lisboa, Gabinete de Estudos, 15 de Junho de 1965.»88................................

87 O Cônsul faz referência ao texto que remeteu ao Governo Belga juntamente com a sua comunicação. 88 ANTT – PIDE- DGS, Proc. 3033, citado, documento 168, 169, 170. O incómodo resultava das dificuldades em explicar aos diplomatas o assassinato destes missionários. Corria mais ou menos veladamente que os missionários mais notoriamente activos na defesa dos direitos humanos das populações negras escravizadas pelos colonos das plantações extensivas estavam na mira de atiradores pró-situacionistas, sob a conivência, passiva pelo menos, dos respectivos governadores de distrito. As terríveis e dizimadoras fomes, a falta de cumprimento das promessas de assistência alimentar e de outros deveres

10. D. Sebastião Missionário Civilizador 10.1 Apelo a uma cruzada de todos os portugueses «Nesta quaresma da Nação.» Revolução Cultural. «Quaresma é tempo cristão de reflexão, de retractação, na esperança de uma Vida Nova Ressuscitada no Homem Novo, Jesus Cristo Ressuscitado. Tem percursos, obedece a procedimentos. «Esta é a nossa Quaresma e há-de ser também a Quaresma da Nação, que começou a subir a encosta íngreme de um calvário doloroso que parece estar ainda em curso... nenhum português ignora hoje que, há pouco mais de um ano a esta parte, o nosso País há suportado em parcelas de seus territórios, na extensão dos mares comuns e em regiões estranhas, revezes, deturpações, violências, insultos e morticínios.» «É indubitável que a Nação começou a subir a encosta íngreme de um calvário doloroso que parece estar ainda em curso...De resto, quando observo que se lançam tantas obras para público, que nos seus fins se irão justapor, senão sobrepor ou opor a outras já existentes, receio que sejam obras a mais para se verificarem resultados a menos...» No citado «Diário». Iniludível a realidade que o circundava. Impossível calar-se esta voz da verdade duma consciência não hipotecada a qualquer valor fora de Deus e do Homem. Nesta Verdade, levava os comprometidos com as gritantes e despudoradas injustiças a reconhecer « claramente que era voz que compromete os interesses da Pátria em Moçambique» e daí o desplante de o considerarem «um punhal cravado no coração de Moçambique.» Entendia Luís Lupi90 ser « antipatriótico tudo quanto fosse fomentar insatisfação ou reivindicações91 dos pretos.»92 prometidos, davam muitas razões aos missionários para ser a voz desses abandonados. E a primeira linha é a primeira a abater. Temos, de Rio Meão, o exemplo do Padre Sílvio Moreira, S.J. 89 Quaresma de 1962, in «A Voz», 23.3.1962. Mas também no citado processo 3033, da PIDE-DGS, fl. 24. Refere-se, necessariamente, à invasão de Goa pela União Indiana, à eclosão dos movimentos de guerrilha independentista em Angola e a seguir em Moçambique e Guiné-Bissau; A sessões da ONU, e, quiçá, a atitudes de estrangeiros e até de nacionais cuja sanha foi ao ponto de espezinhar, sem pudor, a bandeira nacional, símbolo da sua Pátria e seu Povo. 90 Luís Caldeira Lupi, Dr.,Jornalista notável e homem de letras, possuía várias condecorações nacionais e estrangeiras. Afecto e altamente comprometido com o regime de então, veio a falecer em Madrid em 1977, onde se homiziara logo após o 25 de Abril. Frequentou a Escola de Agrimensura de Lourenço Marques, a Universidade de Rand, Joanesburgo, África do Sul. Fundador e Director da Agência de notícias «Lusitânia», etc. 91 Aqui, é por demais clara a intencional confusão entre «interesses da Pátria» e os interesses de patriotas, cuja pátria não ultrapassava as fronteiras do seu estômago, do seu bolso ou do seu cofre. 92 ANTT – Arq. da PIDE-DGS, Processo citado, fl. 215, em papel timbrado do «Diário de Moçambique», delegação – rua Rodrigues de Sampaio, 21, 4º, D, Tel. 734671, Lisboa. As citações encontram-se inseridas na carta dirigida a D.


E precisamente porque a sua discordância da política seguidista desta linha era pública e notória, público e notório D. Sebastião não apresentar cumprimentos ao Prof. Dr. Joaquim Moreira da Silva Cunha quando nomeado Ministro do Ultramar. Tanto mais notória quanto certo ter sido o único Bispo de Moçambique a não fazê-lo. Mas como e quem podia calar a voz desta «singular figura da Igreja Católica»? Na sua notável acção missionária em Moçambique publica cartas pastorais marcadas pela frontal abordagem dos problemas políticos e sociais que gravemente afectavam a vida do indígena africano. Daí tornar-se Bispo incómodo para os servidores do Estado Novo que à sua sombra iam acumulando rápidas fortunas à custa da mão de obra escrava do negro. Nessa traição à sua consciência de Homem defensor dos oprimidos e de libertador de todos os jugos redutores da Pessoa Humana à luz da Pessoa de Jesus Cristo, não embarcava este Bispo, que lutava em todas as frentes, incluso na do ensino. Em 1955, decidido o Governo criar o Liceu da Beira, Jorge Jardim elogiou, na então Assembleia Nacional, o papel enérgico, « a dedicada e persistente acção do Sr. D. Sebastião de Resende, a quem Portugal tanto deve na sua obra civilizadora desta nossa África.» Daí o conflito entre «União Nacional» e «Diário de Moçambique»14.5.1956 gerado por «gente reles». Mas em 1.12.1957: Necessário «outro 1 de Dez., para libertar Moçambique da canalha do Ministério do Ultramar a começar pelo Ministro Ventura. Quem lhe fará como ao Miguel de Vasconcelos!» Mas o modus operandi97 episcopal vinha-se tornando cada vez mais notório e difícil de deglutir pelos devotos do status quo, para quem, quanto mais primitivismo tanto mais presas passivas se tornariam os nativos.

Sebastião para o informar do que dele pensa e diz Luís Lupi, jornalista e homem das letras profundamente afecto ao regime de então. 93 Silva Cunha, Prof. Dr., Catedrático e político português n. em 1920 em Santo Tirso. Formado em Ciências Jurídicas e Poiítico-Económicas pela Univ. de Lx.. Entre muitos cargos públicos sobraçou a pasta do Ultramar, 1965/73; Defesa Nacional, 1973/74. Prof. e Reitor da Universidade Portucalense, Porto. 94 ANTT – PIDE – DGS, Proc. 3033, citado, fl. 215. 95 Jorge Jardim – Agente Secreto, de José Freire Antunes, p. 92, citado. 96 «Servir Moçambique», pg. 57, de Jorge Jardim. «Para tudo era o Jardim. Ele entrava na PIDE e o inspector punha-se em sentido. Se alguém precisava de um documento carimbado, ele entrava na PIDE e ia buscar o carimbo.» Manuel do Amaral Ferro. In «JJ - Agente Secreto», p. 102, citado. 97 A forma de agir peculiar; .... status quo: as formas primeiras ou primitivas.

Mas nisso não consentia o Pastor atento, em cujo coração que não há enjeitados. E mais uma frente de luta se abria. Por isso se vinha destacando a sua acção pastoral dirigida toda ela também na defesa da escolaridade sem excepções, na «defesa intransigente dos missionários e das missões, pela promoção das condições sociais das populações», cuja alfabetização lhe era dificultada. Nela estavam todas, sem excepção alguma de cores e de credos, que por isso o veneravam, como ficou provado pela presença deles em massa na morte. Era urgente libertar e a esse fim se chegaria «pela denúncia das injustiças e violências perpetradas pelas autoridades e pela liberdade da Igreja diante do Estado Novo.» 98 Perante tal quadro histórico e de outros muitos mais elementos, explícitos uns, implícitos outros, que neste trabalho o leitor pode encontrar, não poderia durar muito este estado de graça muito solapado já em 1955. Mas já em 1944 se adivinhava. De facto as coisas azedaram precisamente a propósito desta sua batalha educacional centrado o azedume no «caso do Liceu da Beira» a que outros casos graves se adicionaram, donde avulta a suspensão do seu jornal «Diário de Moçambique» por mais de uma vez, uma delas por dez dias, em sua vida, e por um mês logo depois da sua morte. Com tudo isso pretendiam os poderes instituídos atingir o próprio Bispo que não consentia calar dezenas de criminosos assassinatos e vis explorações humanas. Feria-o no mais fundo até à medula dos seus ossos aquele macabro conceito, mas corrente, «mais preto menos preto», cuja morte até a lei permitia fosse compensada pelo culpado a troco de meia dúzia de vinténs. O Bispo sabia, não calava.

D. Gonçalo da Silveira, missionário mártir, patrono do Colégio de D. Sebastião 98 Nuno Queirós de Andrade, «Memórias do Arcebispo» D. Eurico D. Nogueira, Luís Rebelo, editorial Notícias, p. 14

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10.2 O Caso Colégio «Liceu da Beira»

Nesse périplo encontra-se também com o Cardeal Arcebispo de Nova York, Fulton Sheen,101 tendo passado ao Brasil onde galhardamente foi recebido pela Academia Brasileira que lhe prestou calorosa, fraterna e significativa homenagem.

Edifício Marista

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Tinha o Ministro do Ultramar, Raul Ventura,99 prometido a D. Sebastião construir o Colégio Marista na Beira. Fiado na palavra do Ministro, D. Sebastião envida todos os esforços de modo a dotar a cidade de um estabelecimento de ensino liceal de garantida qualidade e nível educacional para a juventude. Compromete-se com a Congregação e com a preparação de outros meios em que empenha a sua palavra. Com esse e outros objectivos andava o bispo pela América do Norte, angariando boas vontades. Aí se encontra com o então senador John Kennedy,100 mais tarde presidente dos EUA assassinado em Dallas.

D. Sebastião e o célebre Cardeal Arcebispo de Nova York, Fulton Sheen

Mas o Ministro e o governo esquecem a promessa e resolvemse por liceu público. D. Sebastião, na sua pastoral de 1957, acusa o ministro de falta de carácter e recusa-se a recebêlo na visita do presidente da República, Craveiro Lopes, em visita oficial a terras de Moçambique. Salazar tenta defender o Governo, o caso assume foros de escândalo, difunde-se nos areópagos internacionais e chega ao debate nas próprias Nações Unidas. A intranquilidade política instalada em Moçambique entre a população branca agudiza-se com a candidatura de Humberto Delgado. Aí aparece Jorge Jardim, na sua vida de duplo. Antes muito «amigo» do bispo, mas em breve se desmascara, ao arvorar-se «guerrilheiro» contra as estruturas da Igreja Católica mais interessada na sua verdadeira missão de evangelizadora que agente político chauvinista à

99 Raul Ventura, nasceu em Lisboa em 1919, em cuja Universidade se formou e foi Professor Catedrático de Direito . Ministro das Colónias desde 1955. 100 O primeiro presidente católico dos EUA. De família originária da Irlanda.

D. Sebastião e o Senador John Kennedy.

Assassinado em Dalas em 1963. 101 JohnFulton Sheen- Cardeal Arcebispo de Nova York, E UA. Culto e inteligente, escritor e pregador. Doutorado em Teologia, Direito Canónico e Filosofia. Autor de obras literárias notáveis. Lutador contra o comunismo ateu.


maneira deste duplo jardim. E, assim, o principal visado pela acção deste valdevinos português em Moçambique tinha de ser, exactamente, D. Sebastião, a quem move o mais acerado e sistemático cerco de ataques não olhando a meios nem a métodos. Aliás de harmonia com a sua heterodoxa vida privada que não lhe permitia outro comportamento.

missões carenciadas e as novas criadas a um impressionante ritmo, só concebível num Homem da sua estatura Missionária. Porém pela frente encontrava um Governo apostado a entravar o sucesso dessa acção que os pobres negros acolhiam como quem acolhe a Luz que liberta. Daí o Missionário D. Sebastião, aos olhos míopes do Governo, perfilava-se-lhe figura assustadora, naturalmente potenciada pelos olhos da PIDE e dos próprios governadores gerais e locais. E a má consciência gerava fantasmas nessas cabeças povoadas de medos infundados.

11. D. Sebastião, a Beira; o algodão e o paradigma da exploração humana

D. Sebastião à direita e Marcelo Caetano ao centro

Mas, tanto D. Sebastião como os seus auxiliares missionários não estavam interessados tanto no domínio português em África, que não era essa a razão da sua presença ali, quanto em prestar assistência humana e cristã aos seus irmãos em Cristo, numa atitude supranacional, ainda que tais sentimentos não extensíveis a outros bispos de Moçambique.102 Estava ali em nome da «Libertação»de muitas cadeias a que se encontravam acorrentados os indígenas e outros, mesmo brancos. Libertação da ignorância e do paganismo; do esclavagismo e da opressão; do pecado e da morte, em que a maior parte, principalmente o Negro se encontrava. Libertação de todas as debilidades que o pudessem tornar presa fácil da vil e desenfreada exploração laboral, social e moral. A Igreja Católica,através do Bispo e dos seus missionários, era a voz dos oprimidos que se erguia no meio do ensurdecedor barulho da ânsia de enriquecimento fácil e sôfrego. A maior parte dos missionários era estrangeira, sem o travão de nacionalismos inconsequentes. Daí agudizar-se a dificuldade exponencial em o Governo admitir, sobretudo nas missões da Beira, a entrada de Missionários estrangeiros, principalmente alemães, belgas, espanhóis e italianos cujo afluxo aumentou com D. Sebastião que não descansava dia e noite em prover 102 «Wiryamu», de Adrian Hastings, Porto, Afrontamento editora, 1974, pg. 19. Padre Hastings, crítico da política portuguesa em África, faz rebentar em 1973 o escândalo de Wiriyamu.

Um dos grandes admiradores do bispo libertador, já desde os tempos de estudantina de Coimbra foi António de Almeida Santos, um beirão do conc. de Seia, integrante do Orfeão Académico de Coimbra. Numa passagem pela Beira tornavase obrigatória uma audiência com o seu bispo tanto mais que chegavam à cidade universitária notícias dos conflitos entre governo e bispo que o convidou para almoçar com ele. «Faloume durante horas da emancipação de África. Eu vim de lá deslumbrado.»103 A lei subiu depois a multa para cinco contos de réis, até aí 2 e meio, por matar um preto e não aumentou mais. Mas tudo, por algum exagero que possa conter, não foge muito do que deixou transparecer o jornalista jesuíta que, entrevistado D. Sebastião, nos deixou a impressiva imagem da camioneta de carga aos solavancos naquelas picadas cheia de pretos maltrapilhas forçados ao trabalho principalmente nas plantações de algodão. E o bispo tinha, - não podia deixar de ter -, o seu coração paterno bem fixo nesta desgraçada carne para canhão. Em 7.11.1943, a caminho da sua diocese da Beira, desembarca em S. Tomé onde o navio faz escala: «Ouvi dizer que dão aos nativos 3$00 por mês,´104 se não lhes dão mais nada, isto é um roubo que brada ao céu e clama vingança a Deus.»

103 António de Almeida Santos, entrevista, in «Jorge Jardim – Agente Secreto», p. 95, autor citado. Activo elemento do MUD, na eminência de prisão, para Moçambique se muda, findo o curso de direito, e aqui faz o estágio. 104 Era quanto na terra do autor se pagava a uma trabalhadora rural, por uma tarde de serviço e a seco.

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Tráfico de escravos para plantações e outros trabalhos agrícolas e fabris

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Na verdade, já dessa primeira passagem por Moçambique a sua consciência social ficara aturdida com o que Almeida Santos também observa: «Vi pretos a trabalhar com uma bola de ferro ligada aos tornozelos, vi pretos ligados por arames de ferro ao pescoço para irem para as minas da África do Sul.» Advertido um condutor que ia atropelando um negro na rua responde-lhe com a maior das calmas: «Não sabe? A multa para quem mate um preto num acidente de viação são dois contos e quinhentos».105 Se da Beira não ia lá o pastor, vinham à Beira os missionários e as suas cartas aflitivas, dum realismo aterrador. «Ex.mo Senhor Bispo,a área de Chemba... sabe da fome que ainda hoje se faz sentir, terrível para toda a gente. A nossa Missão sofre disso e não pouco. A frequência nas catequeses está reduzida ao mínimo. O P.e Fogué foi ontem a uma escola a 12 quilómetros. Andou lá a visitar as povoações e depois de 2 horas conseguiu ter 5 crianças presentes. Eu fui a uma outra escola e não chegou ninguém. O catequista tinha andado no dia anterior depois do serviço dominical por quase todas as povoações porque tinham chegado só 6, quando costumam chegar dezenas de pessoas... todos respondem da mesma maneira: «não temos força para chegar até lá». bastantes cristãos faltam nos Domingos à Santa Missa por causa disso... Há muita gente que come só folhas e até palha.106 É como dizem, como as cabras. 105 António de Almeida Santos, entrevista inserta na obra citada, p. 96. Em Moçambique advoga até à descolonização. 106 Esta «palha» é o capim, gramínea espontânea em África por todo o lado. De espique alto, duro e indigesto, até para os simples animais.

Só uma diferença, estas estão acostumadas, nós não. Quantas crianças têm morrido por causa desta fome. Uma criança não tem barriga forte como um homem. Quantas apanharam doenças de barriga e morreram por causa destas doenças... fala-se de uma grande fome desde Abril (de 1964), (agora 2.2.1965). ...ninguém tem feito nada só quando já for muito tarde... Ficou determinado que o Instituto do Algodão iria dar milho de empréstimo aos agricultores de algodão. Mas já toda a gente é agricultor de algodão? É uma maneira de obrigar toda a gente a cultivar algodão, uma nova edição da antiga prática. Os que não cultivam algodão também têm fome... É certo que depois de muita insistência (dos Missionários) se distribuiu milho aos outros, mas só nalguns lugares e no fim da primeira distribuição, que devia ser já a quarta... e começar no princípio de Dezembro (tempo das chuvas). Depois estavam previstos 30.000 sacos e só vieram uns 10.000. Depois não havia meio de avançar com o mau tempo e a situação das «estradas». Ficou tudo parado...Que miséria tudo junto. Se tivessem ouvido as informações recebidas de Chemba, podiam ter mandado aquela ajuda em Outubro ou Novembro... Mas quem vive na cidade não sabe o que é estar no mato... Se não tomam providências esta gente daqui vai ficar miserável para sempre, material e espiritualmente... Temos ajudado esta gente que está contente porque lhes pagamos e já têm para comer. De manhã cedo antes das 6 horas já muita gente, mais de 100 homens e mulheres, estava nos nossos campos e ao meio dia estava tudo limpo. Mas nos campos deles há ainda muita palha porque não têm força para limpar a palha que estraga o milho e a mapira.107 Campos abandonados, fome, pessoas a andar como esqueletos, capoeiras vazias, cabras todas vendidas a preço ridículo. Galinhas a um escudo, cabras grandes a 10 e 15 escudos, e nem sempre conseguem vendê-las....Miséria!!!! Grande!!!!.( ...). Se pudéssemos começar uma cooperativa agrícola, seria qualquer coisa dentro das nossas possibilidades. No seu lugar mais alto com certeza poderá fazer mais do que nós.... Muitos cumprimentos dos seus missionários muito aflitos por serem incapazes de fazer mais para a gente daqui. Padre Walter van der Hout.»108 Mas que «estômago» suportaria, ao ver, ouvir, saber desgraças tão pungentes? Que outro caminho seguir de tranquila consciência quando a dor é profunda?

107 Gramínea, espécie de sorgo, robusta e semelhante ao milho, muito cultivada em África, da qual se obtém farinha, mas também forragens e bebida alcoólica, denominada «macau», por dali ter sido importado o processo de fabrico. Em Moçambique é «mapira». Em Angola é «massambala». 108 ANTT – Arquivos da PIDE-DGS, processo citado, fl. 255 e 256


Mas como poderia calar-se o Bispo, fazendo de conta: Quando lhe chegavam cartas dos missionários disseminados pelos matos falando de homens acorrentados obrigados a cultivar e a trabalhar no algodão pago a preços de miséria impostos pelos grandes senhores dessa monocultura? Quando as secas «comiam» as pobres culturas menos que de subsistência dos nativos? Quando as crianças e adultos deixavam vazias as escolas e as catequeses porque nem força encontravam para se levantar das esteiras e fazer caminhadas, tanta a fome e a fraqueza, muitas aparentando mais esqueletos de barrigas inchadas que gente? Quando os missionários tinham que inventar trabalhos e pagar a estes desgraçados para terem um pouco mais para adquirir com que vencer o último assalto da morte? Quando, assanhados os colonos tomando à conta de concorrência desleal da Missão, se vingavam na mais baixa e soez calúnia, porque os missionários pagavam trabalhos e produtos pelo que mandava a lei? Quando o milho prometido não chegava, (denuncia o missionário do mato) e quando chegava vinha reduzido a um terço ou quarto do combinado, escasso este já para as necessidades, com a agravante de deixarem para as chuvas o envio, agravante que os encharcados e intransitáveis trilhos com os rios entretanto formados pelas chuvas aumentavam ainda mais? Indescritível o quadro da miséria, da fome e das mortes de crianças e velhos. Quando, diz o missionário, quem está refastelado na poltrona da cidade se está marimbando para quem no mato não tem nem migalha que mate fome e sofrimento que lentos o matam? Leitor, o autor não está inventando. Diz o que viu na muita documentação e alguns testemunhos de quem esteve metido nestes fogos e também se chamuscou. Documentos na PIDE, que responsáveis denunciados não investigava ela.

12. Respigando outros assuntos no processo de D. Sebastião, na PIDE – DGS109 12.1. Acervo de documentos acumulados sem indexação

109 Este processo compõe-se de 4 partes consoante a procedência das delegações da PIDE. Assim: 1 – Proc. 3033, CI (2), NT - 7245, com 397 documentos não indexados cronológica e alfabeticamente. Serviços Centrais, Lx.. 2 – PI 26074, Cx. 3892, 55 docs., Delegação do Porto. 3. Proc. 34542, NT 4833, Delegação de Coimbra, um doc.. 4. NT 1140, - PR 1273, cx. 1186, Delegação de Angola, um doc.. – Incluímos aqui o que, por conveniência do assunto, não foi integrado em qualquer outro item deste trabalho e para que do processo tenha o leitor uma visão mais alargada.

cronológica nem de assunto. Folhas atrás de folhas, de natureza e proveniência vária. Cartas do próprio e de outros obtidas porque interceptadas ou por espias, amigos, duplos. Há cartas oficiais e não oficiais, anónimas algumas, assinadas uma; telegramas entre as delegações da polícia a solicitar urgências de vigia, de informações, a dar ordens de seguimento dos seus passos, identificação das entidades que o visitavam, com quem entrava e saía, visitas a instituições, hospitais, transportes: aviões, carros particulares e de praça e respectivas matrículas, residências, os proprietários, a entrada e saída delas, as horas escrupulosamente anotadas acompanhadas de pormenorizadas observações, pastas recebidas, sua consulta já no carro, se mais ou menos volumosas, se vinha ou não à porta despedir-se das personalidades visitantes com seus nomes e acompanhantes, sua qualidade e estado. Não escapam a tão apertada vigilância, a Nunciatura, Bispos e padres, nobres e plebeus, novos e velhos, hospitais, a presidência do Conselho; há artigos seus e alheios em recortes de jornais, nacionais e estrangeiros, agências noticiosas, descrição dos caminhos e ambientes. Tudo, mas tudo impressionantemente passado a pente fino. Se o leitor já viu um filme policial, não encontrará tanta minúcia quanta se vê das tais folhas. Há aqui e além mudanças de cenário, de personagens, o que fica impressivamente gravado é o obsessivo seguimento, passo a passo, momento a momento, circunstância a circunstância. Claro que está incompleto porque falta o arquivo da Delegação de Moçambique. E quem nos diz que ele não se encontrará em Moscovo? Se outros da Delegação Central de Lisboa, depois do 25 de Abril, lá foram parar... é lícito pensar que esses tivessem fugido para Moscovo escondendose nos ficheiros secretos do KGB. Se com outros, de fonte segura, aconteceu...

12.2. Uma carta interceptada «Diocese da Beira, 14.11.1958- «Meu Ex.mo Amigo Sr. D. António110 Já há muito que andava para lhe escrever. Mas a vida ocupada e os dias a correrem uns atrás dos outros sem pararem empurraram-me até hoje. » Escreve a mostrar-lhe solidariedade

110 D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, então a braços com o incidente de carta depreciativa da política do Chefe do Governo, a qual esteve na base do seu exílio forçado. Este foi diplomaticamente conduzido, avisando-o alguém «saia tranquilamente, não volte, serão menores os sarilhos», isto para evitar maior celeuma entre os do regime. Passa o exílio de 10 anos em Espanha, 1959/69, por isso a seguir ao da referida carta, início da chamada «primavera marcelista» iniciada com a morte de Salazar a quem sucedeu Marcelo Caetano.

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porque já fervia a caldeira política, a carta em causa saiu a público e não era para sair. Fala-lhe do « descompromisso da Igreja em Portugal para com o regime» e por isso acha a carta de D. António « verdadeira, actual, e necessária e oportuna... conte comigo. É claro que eu cá estou mais amarrado que o meu amigo aí, porque a Diocese recebe os subsídios do Estado! (...) Bem sei que não precisa dos meus conselhos, como já passei por um semelhante, tenho alguma experiência. O chefe111 é manhoso e terrível... A acusação para o Sr. Núncio a meu respeito foi indecente... Depois o Sr. Núncio112 revelouse para mim o que nunca supus que fosse possível: nem cara direita nem dignidade nem nada. Pôs de lado o objectivo da questão, que nem sequer entendeu, e pôs-se do lado oposto incondicionalmente. Valeu-me a graça de Deus que com o meu feitio especial me pôs para a frente. Rezei muito e meditei e verifiquei quão diferente é ter propósitos de humildade e ser humilde...Com afectuosos cumprimentos e com um abraço fraternal em Cristo. A) Sebastião Resende». 62

Pede perdão de várias formas a todos e agradece a colaboração missionária no reino de Deus.

13.2. A pobreza, irmã do Bispo

13.1. O Testamento

Bens materiais não tem, e o que tem, vejamos: «Quanto a bens materiais, nada tenho a dispor, porque nada possuo. Os bens de família há muito que me desfiz deles; os bens que, porventura, da Igreja ou por motivo da Igreja haja recebido, são exclusivamente para a Igreja, sem tolerância de outra partilha. Resta-me agora tão somente oferecer a vida a Deus pela salvação minha e da Diocese... aceitando a Santíssima Vontade de Deus, quanto à minha morte, para aquele dia e daquele modo que mais aprouver ao Senhor....» «O meu enterro será ... simplicíssimo. Gostaria que, em algum trajecto, cristãos africanos pegassem ao meu caixão.... Em simples campa rasa e com uma pequena pedra por cima, em que se inscreva somente:« SEBASTIÃO PRIMEIRO BISPO DA BEIRA» , aí ficarei e aí esperarei a ressurreição da carne para o Juízo final. Beira, Festa de Nossa Senhora de Lurdes, 11 de Fevereiro de 1966. +SEBASTIÃO SOARES DE RESENDE, Bispo da Beira.»113

Tão simples quanto o seu autor. Testamento espiritual, de Fé, de Missionário, de Apóstolo que parte sem bordão, nem saco, nem sandálias, nem alimento, confiado na providência e à imitação do «Filho do Homem que não tem pedra para reclinar a cabeça, menos que as aves que têm árvores onde pousar, e que as feras dos montes que têm cavernas onde se abrigar.»

Aquele quarto de moribundo fora sempre o seu quarto. Mesmo oferecido, o ar condicionado estava inutilizado por não utilizado para não ser o único compartimento da casa a ter o que os outros não podiam ter porque não havia dinheiro. E o bispo não queria ser o único, e não se sentiria bem, diferenciado. Entremos nele pela mão do jornalista impressionado que o fixou: «Austero, grande, desolado de qualquer peça de comodidade ... aquelas mãos brancas emergindo do branco dos lençóis perdidas a encherem aquele quarto enorme... No leito simples quase pobre, de madeira escura, imóvel, concentrado, os olhos semicerrados. Do corpo magro coberto com simples lençol, emergiam apenas as mãos segurando um crucifixo e o rosto pálido onde os dois grandes olhos se viraram para nós, faziam um contraste fascinante. O quarto à volta era de simplicidade chocante. Apenas um móvel de madeira lisa, uma mesa e uma cadeira. Orava quando entrámos, orando ficou quando saímos...»114

13. O testamento da sua pobreza material imagem de espírito superior

113 Os excertos do testamento manuscrito pelo sr. Bispo da Beira, testamento 111Leia-se Salazar com o qual se havia encontrado tempos antes para tratar de assuntos de discordância com a política ultramarina em geral e em particular em Moçambique e ainda a suspensão por 10 dias do seu «Diário...». 112 O Núncio Apostólico em Lisboa, de 1953/59, Monsenhor Fernando Cento.

aberto, por indicação do próprio, após o falecimento, estava fechado num envelope sobre que se via escrito de seu próprio punho a palavra «Testamento», de que se apresenta fac-símile. Não o transcrevemos na íntegra pelas razões constantes do nosso texto. 114 «Diário de Moçambique», 26.01.1967. reportagem não assinada.


Aquele lençol que o cobria tinha uma particularidade mais um dos fios da história que se juntam com seu quê de misterioso, ou talvez não. Aquele lençol apresentava bordadas as letras «BB». Quem as bordara havia sido a mãe, para o filho «B»ispo da «B»eira. Relata o jornalista que o filho «bispo apalpava as letras que a mãe bordara» com carinho materno. Era o filho acariciando na Terra a face materna antes de com ela se encontrar no Céu. A História apresenta tantos fios entrelaçados na vida que ela tece! E, ali, estava esperando sair do mundo quem sempre fora «Vigoroso como um atleta, simples como uma criança»115

Ora, tal situação, a nosso fundamentado parecer, já antes de 1944, se verificaria com D. Sebastião o ser alvo de qualquer ronda, por qualquer razão que não revela. Efectivamente, em 20 de Março de 1944, a quatro meses de bispo efectivo da Beira, regista no citado seu «Diário» : «Recebi uma carta de Portugal, pelo correio, e passou sem censura. Está para acontecer alguma coisa de notável!!!»

14.3. D. António Discípulo de D. Sebastião?

14. Notas Soltas Complementares 14.1. D. António Ribeiro sucessor de D. Sebastião Após o falecimento de D. Sebastião, a Sé da Beira tinha de ser provida de um novo bispo que estivesse à altura do falecido. Quem esteve indigitado pela Santa Sé para suceder «ao defensor da dignidade e dos direitos dos africanos» foi D. António Ribeiro que veio a ser Cardeal Patriarca de Lisboa. Salazar impediu que se consumasse o projecto. 116

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14.2. D. Sebastião Arcebispo de Braga117 1963 E não foi nomeado em 1963, para suceder a D. António Martins Júnior, porque Salazar se opôs. Não suportaria o estadista a afronta do prémio a quem ousou enfrentá-lo e afrontá-lo de novo em 14.11.1958, ao escrever a D. António uma carta apreendida pela PIDE onde o incita a prosseguir o caminho que estava trilhando e em que está desembocando o seu caso. Ali, ao mesmo tempo incondicionalmente se solidariza predispondo-se para o que precisasse.118 Da mesma fonte consta o seu nome censurado para arcebispo de Lourenço Marques e por idênticos motivos. Tanto quanto nos parece, D. António só começa a ser seguido de forma sistemática pela PIDE a partir da célebre carta de 1958 e que o levaria ao exílio.119

115 «Diário de Moçambique», 26.01.1967. Mons. Ferreira da Silva. 116 «O Bispo Controverso – D. António...», Pacheco de Andrade, cit. p. 24. 117 «Profecia e Liberdade em D. António Ferreira Gomes» – José Barreto, Actas do Simpósio em 30.09.1998 e 1 e 2.10.1998 – Fundação Calouste Gulbenkiam). In «O Bispo controverso»? citado, pg. 124. 1963, ano da morte de D. António Bento Martins Júnior, arcebispo de Braga, a quem sucedeu D. Francisco Maria da Silva. 118 A carta aqui referida faz parte dos documentos do processo da PIDE citados já acima directamente do mesmo processo.

Ambos nascem no mesmo ano, D. António em 10.5.1906, D. Sebastião em 14.6.1906. Mas em pontos opostos da diocese do Porto. Um, em Milhundos, Penafiel; o outro, em Milheirós de Poiares, Feira. D. António ingressa no Seminário um ano mais cedo que D. Sebastião, determinando a circunstância que um andasse atrás do outro em missões e ordenação, ida para Roma, doutoramento, direcção do Seminário, canonicato. Claro, nota não de todo despicienda, o novel presbítero António F. Gomes tinha já apoio no tio reitor do Seminário e cónego Joaquim Ferreira Gomes, o que facilitava, além de lhe servir de luzes para uma definição mais precoce do seu futuro. D. Sebastião andou um ano buscando essa definição, faltavam119 A carta em causa vinha em gestação desde 1955, a três anos da sua mudança de bispo de Portalegre para Porto. Já trazia sementes de Portalegre. Mas a agudização dos graves problemas do que «chamava miséria imerecida do pobre povo das nossas aldeias» forneceram-lhe substância, acordaram a sua inteligência, moveram o seu coração para essas realidades gritantes que o autor conheceu de perto quando tratava com hospitais e prisões militares. D. António acabou por se exilar em Espanha em 23.6.1959. A carta, pode o l eito encontrá-la na obra citada, pg. 92 e segs.«O Bispo Controverso», de Pacheco de Andrade.


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lhe estas referências directas, estava só, depois de definida a situação, valia por ele próprio. Ninguém na retaguarda, para além do seu valor pessoal ido daquele beco de Milheirós e do seu Anjo da Guarda. Não tem o autor qualquer objectivo, por longínquo que seja, minimizar o extraordinário valor de D. António, mas tão somente valorizar o mérito de D. Sebastião, colocando em paralelo visível o historicamente justo, quando justo é dar o seu a seu dono, isto é, colocar cada coisa no lugar que lhe é dado por direito próprio. Em termos de nomeação para bispo, D. António, de Portalegre, só em 15 de Janeiro de 1948. D. Sebastião, se bem entendemos as entrelinhas da sua história, já em 1940, seria bispo «in pectore»120 e viu a sua nomeação protelada por três anos por ainda «muito novinho». Só em Abril de 1943 é nomeado bispo da Beira. Parece-nos não ser apenas a idade a causa do atraso. Talvez não estejamos longe da realidade se pensar se não haveria ali de permeio coisa de PIDE. Considere o leitor o final do 2., junte-o a outros fios e talvez lhe venha no mínimo uma desconfiança. Se de 1958 data a história das voltas de D. António com A PIDE, a de D. Sebastião antecede-lhe no mínimo 14 anos, 1944, pelas razões acima ditas.

14.4. D. António Barroso, D. Sebastião, D. António, três bispos, dois regimes.

120 «in pectore», isto é, em segredo, na mente de alguém que ainda não revelou o que lhe vai no pensamento.

14.4.1. D. António Barroso visto por D. António Gomes D. António Barroso, de Remelhe, Barcelos, na palavra de D. António F. Gomes: «Era grande o sacerdote missionário, oficialmente considerado “digno entre os dignos”; mas foi maior o Bispo do Porto, enxovalhado na Sala dos Capelos, por ter defendido a liberdade de Associação religiosa numa monarquia liberal e fidelíssima, e mais tarde citado a comparecer perante um tribunal constituído na própria casa do ministro da Justiça,121 e oferecido antes às vaias da populaça convocada e estimulada para o insultar, e isto por motivo do exercício legítimo da sua jurisdição episcopal. Através das ruas de Lisboa, mantendo as cortinas do carro bem descerradas e encarando serenamente a plebe ululante “esse sacerdote vindo do verdadeiro povo, que a escória, na sua pessoa enxovalhava” (como escreveu um jornalista do tempo), a seguir “destituído” por decreto “das suas funções de bispo e governador da diocese do Porto”, e peregrinando de terra em terra, sob a guarda de um alferes, com a proibição de voltar a qualquer ponto do território da sua diocese, ele entrou de pleno direito na galeria dos Crisóstomos, Tomás Becket e dos Fisher, antes dos Mindszenty122 e Stepinac.123 História de ontem, de hoje e de sempre.»124 Júlio Dantas,depois de o ter visitado, impressionado com tanta simplicidade:«como o poder da Igreja seria ainda hoje formidável, medissem-se por esta craveira moral todos os seus ministros!»125 «É talvez mais ainda como Bispo esmoler, Bispo da bondade e da caridade, que a sua memória perdura e é abençoada na diocese do Porto.»126 Acrescenta D. António. D. Sebastião viveu ainda no seu tempo.

121 Tribunal reunido na própria casa de Afonso Costa, então o Ministro da Justiça, republicana. Quem haveria de ser? 122 Josph Mindszenty(.1892-1975) opôs-se ao ensino ateu comunista. Preso por eles (1948) condenado a trabalhos forçados perpétuos em Fev de 1949. Libertado 1955, colocado em residência vigiada. Libertado em Outubro de 1956, refugia-se na embaixada dos EUA, que deixa em 1971. Que democratas!... 123 D. António Ferreira Gomessofreu na pele o exílio por perseguição política de Salazar. E apresenta outras figuras paradigmáticas vítimas de outros inimigos da Liberdade: os bárbaros, ontem; o comunismo marxista-leninista, nos tempos modernos, hoje; um, cardeal da Hungria e o outro arcebispo de Zagreb, respectivamente. Mons. Aloysius Stepinac (1898-1960) arcebispo de Zagreb, Jugoslávia, preso pelos comunistas por 16 anos, libertado em Dezembro de 1951, cardeal em 1953, o que levou a Jugoslávia Marxista a pôr-se de candeias às avessas com o Vaticano. 124 «Endireitai as Veredas do Senhor», pgs. 84 e 85, de D. António Ferreira Gomes, Livraria Figueirinhas, Porto. 125 «Espadas e Rosas», Júlio Dantas, citado por Caetano A . Pacheco de Andrade, in «O Bispo controverso», pg. 48. 126 «Endireitai as Veredas do Senhor», citado, p. 85.


14.4.2. Nas horas cruciais D. Sebastião passara por horas amargas. Tem conhecimento do transe por que D. António está passando. Mal com El-Rei por causa do Povo. Escreve a este na hora difícil por que passa em consequência da carta a Salazar a qual denunciava a miséria imerecida do povo simples das nossas aldeias. Mostra-lhe a sua adminração, encoraja-o e coloca-se à sua inteira disposição para o que entender útil. A carta foi-lhe caçada pela polícia política. Fomos encontrá-la copiada nos referidos documentos. Para não complicar mais a vida ao amigo e a sua própria, não se conhecem contactos abertos e frequentes entre ambos, como forma de fuga à ronda da polícia. Nem mesmo no decorrer da presença de ambos no concílio, alojados que estavam em casas diferentes.

14.4.3. D. Sebastião, ele próprio acima, no texto

Beira; e na Beira me espera um dos mais cultos e mais gentis governadores de Província que já encontrei no Ultramar Português: o engenheiro militar Ferreira Martins. (lembra-se dele e dos rapazes só presos pelo pescoço?) Recebem-me ele e a esposa com a melhor das hospitalidades lusitanas. Inclusive com uma série de jantares íntimos, além de um banquete com a presença de D. Sebastião, o extraordinário Bispo da Beira.»127 Impressiona-me o bispo D. Sebastião. Figura esplêndida de bispo ainda moço (46 anos), ... é animado por um fervor missionário de quem se mostra decidido a ser na África tão dinâmico quanto os mestres maometanos.»(ibidem) «O Bispo da Beira é um bispo novo, magro, ágil, que não sabe ser burocrata de batina, que se não deixa arredondar pela dignidade do cargo de bispo caricaturalmente gordo. Está sempre entre os missionários como se fosse um deles. Preocupa-se em compreender os negros para melhor servir não só os negros como a Igreja e Portugal. » (ibidem) «O Bispo da Beira, por exemplo – que é uma figura extraordinária de líder católico, em quem o saber de homem moderno se junta ao fervor de missionário dos velhos tempos – vi-o sempre de branco. Moço, ágil e de branco.» (ibidem)

15.2 D. Sebastião e as comunidades não católicas. Significativo é o facto de a comunidade maometana da Zambézia, confrontada com a gravidade da situação do prelado católico que venerava, haver comunicado ao vigário geral da diocese, já em 3 de Janeiro desse ano de 1967, que havia feito e mandado fazer preces pelo prestigioso prelado D. Sebastião Soares de Resende.128 D. Sebastião

15. D. Sebastião e as vozes de quadrantes vários. 15.1 – o Dr. Gilberto Freyre, escritor e sociólogo brasileiro de renome que visitou a Beira. Falámos de missões e de missionários estrangeiros e do seu papel brilhante em prol das províncias Ultramarinas.» 14.1.1952. «Diário» citado. Daqui: Gilberto Freyre dá-nos em traços rápidos e simples o esboço literário da visão do Homem, do Bispo, do Intelectual, do Missionário, do Português - D. Sebastião Soares de Resende. «Manica e Sofala,» (lembra-se o leitor de, tristemente, tocarmos Manica e Sofala?) têm por capital (e diocese) a

127 «Aventura e Rotina», pg. 410, Edição «Livros do Brasil», 1951 e 1952, Gilberto de Melo Freyre. Nasce em 1900, Recife, Brasil. Jornalista, sociólogo e político. Após passar por Portugal esteve em Moçambique em 1951, Guiné, Angola, a convite do Governo Português, pelo Ministro das Colónias de então, Dr. Marcelo Caetano. Tenha-se presente que se tornara hóspede, princepescamente tratado. Conclusão fácil das suas próprias palavras deixadas no dito livro. As citações seguintes são da mesma fonte, pg. 413, 414 e 451, respectivamente. Parênteses são nossos, para melhor compreensão dos contextos do texto e extratexto. 128 ANTT - PIDE – DGS, Proc. 3033, CI (2), Cx. 7245, Doc. 81, ANTT, «Diário de Lisboa», 3.12.1966, notícia de Quelimane.

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Aos Muçulmanos junta-se os hindus, «... a Associação Hindu da Zambézia:129 Este o preciso Homem. Um dia saiu, em boa hora, daquele escondido beco de Milheirós de Poiares. Brilhante no Seminário do Porto, Universidade Gregoriana em Roma e Instituto de Ciências Sociais de Bérgamo, Itália. Um dia, bispo da recente criada diocese da Beira, em breve se impôs à profunda veneração dos verdadeiros católicos, admiração de não católicos, pretos e brancos, muçulmanos, hindus, ortodoxos gregos, anglicanos. Em 23 anos, firme, decidido, na vasta e funda obra missionária, cultural, valorativa da Pessoa Humana integral entre todos os diocesanos, sem excepção, com os seus profundos olhos nas almas sem cor, de africanos e de outros. Por misologia misoneista, haveria de pagar pesado tributo, desde a primeira hora, à mira implacável da polícia política, como se de sua sinistra sombra se tratasse.130

Cruz. Dezenas de milhar conscientes de que inexoravelmente a morte havia fechado uma voz, clamasse ela, no hostil deserto político do tempo, ao longe e ao largo, a Verdade, a Justiça, a Liberdade, o Bem, num Continente já em chamas, «vivendo as suas horas de decisão definitiva»131 (profeticamente) consciente, e por isso amargurado com a antevisão de que «haverá no futuro muito sangue a correr em África que será terra de mártires no futuro...» E se outro procedimento se não seguir, forçoso é que «... havemos de ser todos chacinados e com razão, porque eu faria o mesmo.»132 Morria por «Moçambique na encruzilhada» de todas essas tragédias, uma vez que «A União Nacional» fez «as suas cortes gerais com os grandes e nada saiu dali de concreto.» ... «para continuar tudo na mesma - envelhecendo, apodrecendo tudo. (Porque) Moçambique continua no baixo império, cada um a fazer o que quer... É a desordem organizada, o desleixo, a ladroeira tolerada, o desinteresse pelos deveres.»133

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Monte de flores sobre a campa 9037, “Sebastião, 1º Bispo da Beira

Dezenas de milhar chorando acompanham os restos mortais mirrados por doloroso e prolongado sofrimento suportado na mais profunda Fé Cristã, ciente de que o Homem se salva na 129 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, acima citado. 130 ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, só um processo armazena centenas de folhas. E não aparece o de Moçambique. Onde estará? Cinzas ou Moscovo?

131 «Diário», referente ao dia 31 de Janeiro de 1963. 132 «Diário», referente ao dia 7 de Julho de 1965 133 «Diário» de D. Sebastião, referente ao dia 22 de Junho de 1965


15.3 D. Sebastião e Franco Nogueira. Em 19.1.1966, Franco Nogueira, após extensa conversa com o Sr. Dom Sebastião, deixa a sua impressão como em livro de visitas: «Muito doce, suave, tranquilo, inteligente; e não se compromete em nada. Atirei-lhe os factos da vida internacional, mostrei documentos, apelei para o seu patriotismo, fiz o seu elogio – e acabei por exprimir curiosidade em saber o que se passara na sua demorada visita...ao embaixador dos E.U. (Já ia um ano!) «Riu-se, não se mostrou constrangido e disse que havia ido agradecer umas revistas que Anderson lhe tinha enviado para a Beira... Despedimo-nos no melhor dos mundos.»134 «Um Político Confessa-se» –1960/68», p. 161............................ 16. À maneira de conclusão. «Vamos para a Beira, um bispo morre em sua casa». Na verdade, vem a falecer às 10 h. e 45 m., na casa episcopal da diocese da Beira, Moçambique, em 25 de Janeiro de 1967, assistido e rodeado dos colaboradores mais directos. Regressado de Estocolmo, sua última e desesperada tentativa para encontrar remédio, mais por obediência ao médico assistente que por vontade própria, desembarca em Lisboa, sempre seguido pela PIDE, e passa pelo hospital do Ultramar. A toda a etapa chama ele a estação última do seu Calvário. Perante a gravidade da situação e na dúvida, ficar ali o resto dos poucos dias de vida, replica: «Vamos para a Beira, um bispo morre em sua casa». Cancro no esófago, metástases, apoderado o seu já mirrado corpo, inclusos pulmões. Neste mesmo dia 25, a notícia inunda Lisboa, invade a Assembleia da República, atinge deputados. Suspendem os trabalhos e, no meio da maior das consternações, prestam merecida homenagem à memória do saudoso prelado, curvando-se inteira, reverente, solene, perante a figura do Português e Missionário que tomba. Quando a voz do Povo é Voz de Deus. «A Beira ergueu-se acima de si própria... para prestar ... homenagem ao seu primeiro Bispo. » Logo de manhã cedo a multidão que não coube na catedral se apinhava à sua volta. Consternada, seguia as celebrações em silêncio e oração. Demos a palavra directa à testemunha. «Numa das mais grandiosas cerimónias a que a cidade tem assistido... dezenas de milhar de pessoas... de todas as etnias e posições sociais incorporaram-se ou apenas assistiram ao longo cortejo» de mais de uma hora. Desde muito cedo grandes grupos de pessoas se concentraram ao longo de todo o percurso por onde horas depois haveria de passar o préstito fúnebre, principalmente nas imediações do cemitério onde não há memória de concentração tão grande de autoridades

e pessoas.... Todas as janelas e varandas das fachadas dos prédios se apresentavam repletas de pessoas e todos os pontos de onde era possível assistir ao cortejo foram ocupados: telhados, terraços e muros e até nas árvores do caminho....A multidão em massa compassada, solene, triste e orante ao longo do trajecto até ao cemitério de Santa Isabel. Gente galgou os muros na ânsia de acompanhar com um abraço do próprio olhar a urna que descia à campa que ficou rasa, singela, idêntica à de vulgar cidadão beirense. »135 A chuva miudinha deste fim de tarde da Beira, terna e comovida, se junta às lágrimas de milhares que ali se despediam do que na lousa ficou gravado, e que era seu, «Sebastião 1º Bispo da Beira». Depois o monte de flores ficou também o primeiro. Aqui deixa o autor aquele que sempre até à morte quis «ser apenas o cérebro de Deus único e servidor da Humanidade sofredora e dilacerada sem conhecer frentes nem distinguir bandeiras.»136

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O que resta da pia do baptismo de D. Sebastião

134 Um político - «confessa-se»Diário, 1960/68, p. 115 e 137, Franco Nogueira, 3ª edição, 1968, Civilização Editora. 135 «Diário de Moçambique», 26, 27 e 28.1.1967. Reportagem dos funerais de D. Sebastião Soares de Resende. 136 D. António F. Gomes, in «O Bispo controverso», p. 213, citado.


Bibliografia Além da bibliografia oportunamente citada no decurso do texto indicamos a específica e a mais significativa, a nosso critério. 1-Arquivos ADA – Livros de Registo Paroquial de Milheirós de Poiares ANTT – Arquivo da PIDE/DGS, D. Sebastião Soares de Resende – Proc. nº 3033 – CI, 397 fls, Cx. 7245, Serviços do Centro; Proc. nº 26074, Cx. 3892, 55 fls., Deleg. Do Porto; Proc. nº 34.542, 1 fl., NT 4833, Deleg. de Coimbra; Proc. 12731, CX. 1186, 1 fl., Deleg. De Angola. AHPEP – Processos de ordens, Ordenação Presbiteral. 2-Jornais

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EMEROTECA da Biblioteca Municipal do Porto: - AGORA, ou ÁGORA?137 – 8.3., pag. 3 e 11; e 3.4.1965, pg. 6 e 7, «Carta» de Rúben Sottomayor, Sá da Bandeira, Angola. - A VOZ – 8.3.1956 - COMÉRCIO DO PORTO – 26 e 27.1 e 3 e 4.2.1967 - CORREIO DA FEIRA - muitos - DIÁRIO DE MOÇAMBIQUE - 26, 27, 28, Janeiro de 1926. - JORNAL DE NOTÍCIAS – 26.1.1967; -14.10.1990; - 26.1. e 25.10.1992; 14.6.1993; -3.5.; 10.7; 7 e 14.8 e 18.9.1994. – 2.4 e 24.6.1995. -NOVIDADES – Secção «Letras e Artes» 1941: 16. e 23.2.; pg. 3, «Sebastião Resende e Aquilino Ribeiro», polémica sobre Aristóteles - 2, 9,16.3.1967 ; 26 e 30. 1.1967. - NOTÍCIAS DA BEIRA – 26, 27 e 28 de Janeiro de 1967. - O CORREIO DA FEIRA – 29.7.1994, e outros. - REPÚBLICA – Todo o mês de Dezembro de 1966 e o mês de Janeiro de 1967.

3- Livros e Autores A . CARLOS LIMA – «Caso do Bispo da Beira – Documentos», Livr. Civilização Edit., 1990

137 Ficámos sem saber qual dos títulos será o correcto. Ambos se coadunam com um título sugestivo para qualquer periódico. Na verdade «Agora» chama a atenção, como advérbio de tempo, para os acontecimentos, comentários e informações várias da actualidade com «Ágora», substantivo, a Grécia antiga designava a praça pública onde se reunia o povo, eclesia, para tratar de assuntos que respeitavam ao bem comum e da obrigação da administração pública. Vimos as duas formas. Não achando meio claro de anular a dúvida, ficam as duas: Agora e Ágora.

ADRIANO MOREIRA -«Tempo de Vésperas», Sociedade de Expansão Cultural Editora, Lisboa, 1971. ADRIANO MOREIRA - «O Novíssimo Príncipe», - Análise da Revolução – Intervenção Editora, 1977. D. EURICO DIAS NOGUEIRA - «Memórias do Arcebispo» Entrevista de Luís Rebelo, Edit. Notícias, 1ª ed., Maio, 2003. FRANCO NOGUEIRA – «Um Político Confessa-se», (Diário: 1960-1968), 3ª edição, 1987, Livraria Civilização Editora. GILBERTO FREYRE – «Aventura e Rotina», 2ª edição, «Livros do Brasil», Lisboa, Rio 1953. GRANDE ENCICLOPÉDIA Luso – Brasileira. ILÍDIO ROCHA – «A Imprensa de Moçambique, História e catálogo», (1854-1975), Edição Livros do Brasil, Lisboa, 2000 JOSÉ CAPELA – «Escravatura – a empresa de saque – o abolicionismo» (1810-18759 – Afrontamento / Porto, 1974 JOSÉ FREIRE ANTUNES – «Jorge Jardim, Agente Secreto», 3ª ediç., Bertrand Editora, 1996 MANUEL FERREIRA DA SILVA, Mons. - «Tríptico Moçambicano, sofala, sabá e ofir», 1967. PACHECO DE ANDRADE – «O Bispo Controverso – D. António Ferreira Gomes, palavra e testemunho», Multinova ed., 2002 PEDRO RAMOS BRANDÃO - «A Igreja Católica e o Estado Novo em Moçambique» - Editorial Notícias, 2004


Igreja de Milheirós de Poiares

D. Sebastião Soares de Resende, Feirense com Projecção Universal *Sebastião Brás **José Soares Martins

D. Sebastião Soares de Resende sendo, certamente, um dos feirenses que pertence à História (no que a perífrase pode representar de mais nobre), é igualmente alguém que não deixa de exaltar a presença das Terras de Santa Maria nessa mesma História. A projecção que a sua actividade pastoral como I Bispo da Beira, em Moçambique, teve portas adentro da Igreja, dos meios políticos nacionais assim como de instituições internacionais, ficou a dever-se a iniciativas e sobretudo a afirmações que circunscreviam a dignidade da pessoa humana, incluindo a sua liberdade inalienável. O facto de se ter comprometido consigo mesmo à missão de bispo missionário e tendo levado esse compromisso até ao limite da capacidade física e moral, situou-o em posição de universalidade de ideias e nobreza de atitudes para quantos lhe prestaram atenção. Porventura e aparentemente uma imagem de maneiras aristocráticas e de alguma distância, assim como de um discurso adstrito aos cânones aquinenses. É certo que a sua muito parca presença física em sociedade se assinalava por um comedimento de maneiras e de falas

*Director do Colégio de Ermesinde. **Ex-secretário de D. Sebastião Soares de Resende

insusceptíveis de descerem à vulgaridade mesmo quando cultivava o humor cujo jogo não rejeitava. Contava um fidalgo de costados que quando o cónego Sebastião se prestava a celebrar na capela do solar e ficava com a família a passar o dia, jamais lhe fora notada a menor gafe. Se assim era, cumprindo os ritos de sociedade talqualmente cumpria e fazia cumprir os ritos litúrgicos, paralelamente levou todos os sessenta anos da sua vida na maior modéstia de um quotidiano privado de comodidades para além da decência elementar. Jamais utilizou o ar condicionado que uma casa comercial da Beira (onde fazia um calor tórrido) graciosamente lhe instalou no apartamento despido que utilizava na casa episcopal. Pois bem. Tudo isso remetia para a meninice e adolescência em Milheirós de Poiares. Terra, família, educação, rememorava-os com os próximos tão discreta quão aprazivelmente. O culto da pátria paroquial a que todos (particularmente aqueles que nos prevalecemos de pátrias rústicas) nos devotamos manifestou-o ele em colaboração no jornal «Tradição». Em 5 de Agosto de 1939, por ocasião da instituição, do prémio nacional Dr. Guilherme Moreira, o então Cónego enaltece a figura dessa personalidade, natural de Milheirós de Poiares que, tendo sido aluno brilhante do Seminário do Porto, de Direito, em Lisboa, onde enobreceu a cátedra, tal como em Coimbra de cuja Universidade foi Reitor, finalmente Ministro da Instrução. Esta evocação do eminente jurista seu conterrâneo está datada de Milheirós de Poiares onde a terá escrito. Outra colaboração no mesmo jornal, nas edições de 12 e de 26 de Outubro de 1935, invoca a Santinha de Arrifana,

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designação popularmente consagrada e vigente na actualidade. Que considera «dum modo especial para o Concelho da Feira ser esta Serva de Deus com o seu rico património espiritual um grande elemento da sua tradição, um futuro acontecimento da sua história». Por ocasião das Comemorações Centenárias de 1940 são de sua autoria as notas históricas referentes a Milheirós de Poiares no suplemento publicado pelo mesmo jornal. Os tempos livres das tarefas que a qualidade de vicereitor e de cónego, assim como a de uma capelania a seu cargo lhe impunham, passava-os na casa dos pais, onde fora criado. Além destes escritos terá sido aí que terá gizado a tese do doutoramento em teologia que não chegou a defender por se ter desencadeado a guerra, em 1939. Publicaria esse trabalho sob o título O Sacrifício da Missa em D. Frei Gaspar do Casal. A caminho do fim, ao partir da Beira, para um último tratamento que se revelaria ineficaz, era o torrão matricial que se lhe plantava numa evocação derradeira: «ao deslizar na estrada eu olhava para o milho, se estava bom e assim aparecia a influência da minha primeira estrutura cultural: a da terra». Se bem que fazendo parte do que se chamou «lavradores abastados» (esses cultivadores de terras próprias no noroeste português fazendo uma agricultura de subsistência quando não de endividamento até à ruína) seu pai provinha de casa simétrica, talvez um pouco mais abastada, em que o titular fora um dos quarenta maiores da comarca. Se lhe sugeriam prosápias genealógicas (na universidade gregoriana, em Roma, os professores de origem germânica rendiam-se à sugestão que era para eles o de Resende) ele recordava, no meio de gargalhadas, os chapéus altos virados para o ar, travestidos de vasilhas de feijões, com que lidara, na sua meninice, na casa da eira de Milheirós de Poiares. Tendo sido nomeado Bispo da Beira com apenas 37 anos de idade e tendo exercido esse múnus pastoral missionário da forma que expressou ao pretender morrer e ficar sepultado na terra onde o exerceu talvez como símbolo de doação sem limites a uma mátria assumida, terá D. Sebastião, com tal gesto, enobrecido sobremaneira a terra que fora sua pátria. Milheirós de Poiares, Terras de Santa Maria, abundam em nomes de que se podem orgulhar. D. Sebastião Soares de Resende é seguramente um deles.

O Bispo e a Missão A última fase da missão católica em Moçambique processou-se a partir da Concordata e do Acordo Missionário, celebrados entre o governo português e a Santa Sé, em 1940.

Nomeado como primeiro bispo da Beira, em 1943, D. Sebastião Soares de Resende foi também o primeiro dos jovens prelados que, de alguma maneira, revolucionaram a missão em Moçambique. Uma das primeiras medidas para tal foi o recurso a missionários de outras nacionalidades para além da portuguesa. Não sem dificuldade em ultrapassar os entraves postos pela autoridade colonial, tal atitude permitiu a ocupação missionária da quase totalidade do território e comprometeu gravemente o conúbio da cruz com a espada. Não se tratou de causa e efeito, muito menos de acção deliberada em tal sentido, mas de circunstância que o tempo viria a demonstrar como propícia à emergência nas populações da consciência de valores próprios quando não mesmo da assumpção de uma nacionalidade supraétnica. Se desde sempre tinha havido missionários portugueses estudiosos e cultores das línguas e de alguns aspectos das culturas nacionais, só por excepção é que não se mantiveram na obediência à imposição de as eliminarem do ensino e da liturgia. Os novos missionários, desvinculados do compromisso afectivo e chauvinista com a acção colonial portuguesa, sentiam-se livres para abrir caminho à afirmação dos valores culturais tradicionais, indutores da afirmação da identidade própria. O saldo final desta acção missionária ainda não foi contabilizado. Talvez jamais o venha a ser. Perspectiva a ter em conta dado o facto de quem pareceria na obrigação de o promover nada ter feito para isso e porque os plumitivos que, após a independência, à uma, sem conhecimento de causa e sem um esforço mínimo de investigação, decidiram atribuir à generalidade de quantos estavam ligados à Igreja Católica o apodo de «reaccionários», logo mancumunados perinde ac


cadaver com o sistema colonial. Já foi escrito com todo o desplante da ignorância que, de entre os seminaristas a quem o arcebispo de Lourenço Marques, D. Custódio Alvim Pereira, defensor fervoroso da ética colonial, exigia uma fidelidade política ao seu credo se bandearam com esta os que ficaram e que se transferiram para a luta de libertação os que discordavam. Ora o que se passou de facto foi exactamente o contrário. Permaneceram no seminário, alguns até à ordenação, e quase todos, se não todos, arrenegavam da doutrina abstrusa do prelado, nem sequer subscrita pelos restantes bispos. Este resultado, exponencial porque verificado numa elite, só foi possível com a nova atitude na missionação, atitude que ficou a dever-se, em grande parte, a D. Sebastião. Mais tarde, a corrente que vingou dentro da FRELIMO e que veio a tomar o poder teve ganho de causa sobre a que fora gerada pela acção missionária. Esta, desprovida da cultura política – nela incluída o maquiavelismo, pelos vistos indispensável ao triunfo nas grandes causas! foi subalternizada se não mesmo arredada do poder. Se assim foi ao nível do aparelho do estado, o mesmo não aconteceu na sociedade civil. Às dificuldades de toda a ordem que lhes foram criadas após a independência as comunidades cristãs católicas nas províncias centrais responderam de uma forma organizada e obstinada que permitiu, no final, constatar a sua pujança. E especialmente pujante aí onde incidiu a acção de D. Sebastião e dos missionários que chegaram a Moçambique, graças à sua iniciativa. Também onde a denúncia das barbaridades da guerra colonial se ficou a dever aos mesmos missionários. Não se trata aqui de avaliar nem a ética nem a estética da missionação. Procura-se, tão simplesmente, sugerir um tipo de interpretação para interferências em tempo tão curto quanto nevrálgico para a vida de Moçambique. Em que D. Sebastião Resende teve um papel decisivo. Talvez não tanto por aquilo que executou e foi muito. Mas mais do que o desenvolvimento do ensino, da implantação de novas missões, deve-se-lhe uma dinâmica que ultrapassou os agentes directos da acção dentro da Igreja a que presidia. Assim como as pastorais publicadas regularmente atingiam um largo público, a audição das palestras radiofónicas ultrapassava o círculo restrito dos fiéis e as publicações periódicas editadas sob seu beneplácito tinham uma difusão nacional, não menos, a sua atitude institucional face aos grandes problemas emergentes naquela sociedade de sua natureza imersa em situações da mais profunda injustiça social projectava uma referência moral muito acima e muito para além das instâncias perecíveis e desacreditadas a quem competiria a reposição da verdade e da justiça. Talvez aí se situe a razão de ser principal da aura com que as populações moçambicanas cultivam a sua memória.

Eis, em traços breves e precários, como um feirense oriundo de meio tão digno quanto rústico terá projectado reverberação de cariz universal.

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Dom Sebastião Soares de Resende Nas páginas do “Correio da Feira” *Compilação de Roberto Carlos Novo Bispo Português1 Está de parabéns a Igreja Católica. E não somente a Igreja Católica. E não somente a Igreja como o país inteiro, e muito particularmente esta Terra de Santa Maria. É que acaba de ser nomeado bispo da Beira, diocese de Moçambique criada pelo recente Acordo Missionário entre Portugal e a Santa Sé, um ilustre filho da Feira – o cónego Doutor Sebastião Soares de Rezende. O acontecimento tão notável para a Igreja como faustoso para o Império português, é bem de molde a despertar franco entusiasmo e perene alegria em todos os bons portugueses, especialmente naqueles, que em árdua mas bendita tarefa, se empenham em reconduzir a nação ao nível, religioso, cultural e social de outras eras, já trabalhando sob a alçada da hierarquia eclesiástica, já realizando com Salazar a Revolução Nacional. Honra, por certo, a Igreja, dignifica a política que nos governa, engrandece a pátria. Por isso – porque não afirmá-lo, alto e bom som? – enche de legítimo orgulho esta laboriosa, patriótica e crente terra da Feira, que viu nascer o novo prelado e há muito se habituou a tributar-lhe a mais viva simpatia e admiração. *Licenciado em História Investigador

Eis porque a notícia da sua nomeação, radiodifundida do Vaticano, no passado dia 24 de Abril corrente e divulgada no dia seguinte, a par dos Aleluias pascais, logo fez vibrar de intenso júbilo todos os feirenses; eis a razão porque muitos deles, apenas tiveram conhecimento da faustosa notícia, que célere percorreu o país inteiro, se apressaram a enviar-lhe cordiais cartas de parabéns e expressivos telegramas de felicitações. E tudo merece o Sr. D. Sebastião Soares de Rezende E mais ainda. Porque é um sacerdote sobre inteligente e culto, assaz despretensioso e humilde, porque é um valor na perfeita acepção da palavra. Todos os que o conhecem, sabem que não são lisonjeiros e descabidos estes elogios, mas que só (pálida e singelamente, embora) visam e reflectem a verdade. É da mais elementar filosofia os factos prevalecerem a todo e qualquer argumento, imporem-se por si mesmos; se incarnam e classificam moralmente as ideias que os causaram ou foram motivo ou ocasião também definem os homens, seus portadores. Ora a vida do novo prelado, toda ela, é um testemunho vivo e eloquente de que sempre encontrou generosa guarida em seu coração um nobre e fecundo ideal, e também, consequentemente uma prova de que tinha absoluto jus à plenitude do sacerdócio católico, a que agora se vê guindado. Desde os mais tenros anos até à hora presente, sempre se tem imposto e granjeado a estima e admiração dos vizinhos, 1Correio da Feira, 8 de Maio de 1943

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conterrâneos, condiscípulos, mestres e conhecidos. Na escola, ao aprender as primeiras letras, já se revela o estudante inteligente e aplicado, que no porvir, em mais difíceis e pesados estudos, havia de marcar brilhantemente a sua passagem, obtendo prémios sobre prémios. No Seminário da Torre da Marca, onde fez o curso de preparação, e no Seminário de Nossa Senhora da Conceição do Porto, em que cursou Filosofia e Teologia e se fez padre, é um dos alunos mais altamente classificados, tanto literária como moralmente. Não se passa um ano sequer sem que seja largamente premiado. Por este motivo e para anuir ao parecer dos professores do Seminário, o saudoso prelado D. António Barbosa Leão resolve enviálo para Roma, para aí frequentar a Universidade Gregoriana. Em 1933, ao cabo de 5 anos de exaustivo estudo, depois de se haver doutorado em filosofia e licenciado em teologia, e ter ainda tirado o curso de Ciências Sociais pelo Instituto de Ciências Sócias de Bérgamo, regressa a Portugal. Logo é nomeado professor do Seminário Maior, onde até ao presente vem leccionando além de outras cadeiras, teologia sacramental e filosofia. Em 1934 é-lhe confiada a Vice-Reitoria do mesmo Seminário. No ano seguinte profere na Abertura Solene das Aulas do Seminário, uma notável “Oração de Sapiência sobre a Acção dos teólogos portugueses no Concílio de Trento”, trabalho que o revelou como um grande e profundo Mestre em Dogmática Sacramental e História da Teologia em Portugal. Em 1936 o Sr. D. António Augusto de Castro Meireles, de veneranda memória, para premiar o seu merecimento e valor, nomeia-o cónego da sua Sé Catedral. Poucos meses volvidos, apresenta ele no Salão de Festas do Seminário perante as mais altas individualidades científicas e sociais do Porto, a notabilíssima conferência “Filosofia Tomista e sua actualidade”, que lhe mereceu os mais rasgados e enaltecedores elogios. Mas não pára aqui ainda a actividade do Sr. D. Sebastião Soares de Rezende como pensador e escritor. Duas obras o haviam de recomendar e consagrar mais perfeitamente perante a Igreja e a opinião pública. São elas “O Sacrifício da Missa em D. frei Gaspar do Casal”, publicada em 1941, e “Portugal e a Doutrina Dogmática da Comunhão”, saída dos prelos há poucos meses, mas já depois do Congresso Luso-Espanhol, realizado no Porto de 18 a 24 de Junho, em que colaborou com a tese – “Ciências Filosóficas e Teológicas”. A primeira destas obras, “escritas num estilo terso, límpido e afirmativo”, na frase do grande orador português cónego Dr. Correia Pinto, despertou o interesse e conquistou a simpatia e admiração até daqueles que não compulsam nem estudam habitualmente trabalhos de teologia. Prova do que levamos dito é a apreciação do ilustre professor da Universidade de Coimbra, Dr. António de Carvalho: “… pela

Câmara Municipal - 1943.

fundamentação, coerência lógica e esmero literário é uma das mais notáveis monografias da nossa história teológica”. A par desta laboriosa actividade, há ainda que pôr em destaque o impulso que, com verdadeira paixão, vem dando aos estudos tomistas, não somente portas adentro do Seminário, como até entre o elemento cultural e científico do Porto. No nobre intuito de ver conhecida e abraçada a filosofia do grande doutor da Igreja Fr. Tomaz de Aquino, sem se esquivar às mais porfiadas e fatigantes canseiras e até a sacrifícios financeiros, tem chamado ao Seminário conferentes do valor e da fama de Cabral Moncada, João Ameal, Artur Bívar, Correia de Barros; organizado Academias, Saraus Literários; numa palavra, acarinhado e orientado trabalhos dos seminaristas, publicados por vezes na página literária das “Novidades”. É este o “curriculum vitae”, do novo prelado. Admirável sem dúvida, e glorioso, e porque é um sacerdote de uma vida interior acrisolada e intensa, o Sr. D. Sebastião Soares de Rezende estava natural e necessariamente indicado para o lugar de responsabilidade e relevo que a Santa Sé lhe acaba de confiar no Ultramar Português. Com 37 anos incompletos (pois nasceu a 14 de Junho de 1906) e pouco mais de 14 de sacerdote, é mais um novo que enfileira na plêiade gloriosa dos novos que tão afirmativa e brilhantemente vêm servindo a Pátria e a Igreja. Dele se pode e deve gloriar a sua terra natal – Milheirós de Poiares. Dele se podem e devem, finalmente, gloriar seus queridos pais e demais pessoas de família. E até os seus amigos. Por isso, não resistimos à tentação (que, no caso presente, é sinónima de dever) de dar neste importante semanário, ao faustoso acontecimento a divulgação e relevo, de que o Sr. D. Sebastião Soares de Rezende é lídimo credor.


A Sua Ex.ª Rev.ma as nossas cordiais felicitações e um feliz e fecundo apostolado. Ad multos annos. Um Amigo

Dom Sebastião Soares de Resende2 Bispo da nova diocese de Moçambique É do conhecimento dos nossos leitores a subida distinção, concedida pela Santa Sé, ao nosso conterrâneo e bondoso sacerdote Dr. Sebastião Soares de Resende. A nomeação para Bispo da nova Diocese de Moçambique, no Império Colonial Português, do novel eclesiástico e distinto professor, confundiu a sua humildade, e é motivo de satisfação e orgulho para a terra onde nasceu e para o concelho da Feira que o tem por filho. A Diocese do Porto, onde o novo Prelado granjeou as máximas simpatias pela sua vasta cultura e pela elevação espiritual como sempre soube conduzir-se, vai prestar-lhe homenagem oferecendo-lhe a Mitra e outras insígnias episcopais, estando para isso aberta uma subscrição entre os amigos e admiradores de Dom Sebastião. A Vila da Feira não podia alhear-se da manifestação: relegando-a cometeria acto indigno. Assim, num gesto de dever a cumprir, uma comissão de feirenses vem de fazer distribuir a circular do teor que segue:

Prezado Feirense Tendo sido criada, em Moçambique, a diocese da Beira, pelo Acordo Missionário entre a Santa Sé e a Nação Portuguesa, Sua Santidade Pio XII houve por bem nomear bispo da referida diocese o Sr. Doutor Sebastião Soares de Resende, cónego da Sé do Porto e nosso ilustre conterrâneo. O Novo Prelado, que exerce, presentemente, o múnus de Vice-Reitor e Professor no Seminário do Porto onde vai ficar bem vincada a sua passagem, foi sempre um aluno altamente classificado neste Seminário e na Universidade Gregoriana de Roma, onde se formou e é dotado dum espírito deveras ordenado e profundo, onde abundam ideias sadias e claras. A sua vasta cultura e sólida piedade aliadas a uma bondade e modéstia insuperáveis fizeram-no surgir, bem cedo, no cenário das actividades eclesiásticas do País, de maneira que não é para estranhar que a Sé Apostólica tenha volvido os seus olhares para ele, arremessando-o ainda muito novo, para as pesadas honras do episcopado e carreando para a Feira, terra de bastas tradições missionárias e religiosas, mais 2 Correio da Feira, 24 de Julho de 1943

uma distinção e uma glória. Não podíamos, pois, cruzar os braços como sói dizerse, perante este tão grato acontecimento e assim constituímonos em comissão para, enquadrados na Comissão Diocesana, angariarmos donativos, não só adentro do Concelho da Feira, mas por toda a parte onde palpitar o coração dum feirense ou dum amigo das Terras da Feira, e com a soma desses donativos adquirirmos e ofertarmos ao novo Bispo a mitra e outras insígnias episcopais, prestando-lhe, assim, a nossa melhor homenagem de muita consideração e particular apreço. Confiados na vossa nunca desmentida generosidade, ousamos apelar para a mesma e, esperando que este nosso apelo, a transbordar gratidão e bairrismo, seja atendido, não será em vão que trupamos à vossa porta, embora a ocasião presente não seja das mais asadas para digressões desta natureza. Qualquer donativo, grande ou pequeno, mas sempre de mistura com a melhor boa-vontade, deve ser enviado, com um pouco de brevidade, a algum dos membros desta Comissão, que fica a pedir perdão e a agradecer. Feira, 15 de Junho de 1943. Roberto Vaz de Oliveira, Advogado, Notário e Presidente da Câmara Municipal............................................................ Serafim Pinto Guimarães, Médico e Vice-Presidente da Câmara Municipal............................................................................. Albano de Paiva Alferes, Pároco e condiscípulo do Novo Prelado. José Valente de Pinho Leão, Professor oficial e Vereador da Câmara Municipal. Augusto Gomes da Silva, funcionário público. José Francisco dos Santos, Comerciante e tio do Novo Prelado.

Dom Sebastião Soares de Resende3 Bispo da Nova Diocese da Beira Fora previamente anunciado para o domingo 15 de Agosto, a sagração do novo Bispo da Beira (Moçambique) Senhor D. Sebastião Soares de Rezende, ultimamente nomeado pela Santa Sé. Nascido na freguesia de Milheirós de Poiares, deste concelho da Feira, com pais e irmãos ali e família próxima em Arrifana e nesta vila, o gesto de Roma veio encher de orgulho a Terra da Feira, que já conta outro Bispo entre os seus naturais, o Senhor D. Moisés Alves de Pinho, Bispo de Angola, e um elevado número de altos Ministros da Igreja em lugares de destaque, que muito a prestigiam. 3 Correio da Feira, 21 de Agosto de 1943

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À sagração de D. Sebastião assistiu toda a sua família e a câmara municipal deste concelho, além de muitas notabilidades eclesiásticas e civis. O solene acto realizou-se na Sé do Porto, tendo início às 10 horas e prolongando-se até à tarde, revestido da mais elevada unção mística. O Senhor D. Sebastião Soares de Rezende, com as suas vestes corais de Bispo, mas sem a cruz peitoral nem o anel, entrou no vetusto templo, acompanhado do Prelado sagrante, D. Agostinho de Jesus e Sousa, Bispo do Porto e dos Prelados assistentes senhores D. António Antunes, Bispo de Coimbra e D. Rafael da Assunção, Bispo de Limira. O Sagrante reveste-se com os paramentos pontificais, os Assistentes tomam as estolas e os pluviais e o Eleito a estola cruzada e o pluvial. O Sagrante senta-se no faldistório e na sua frente fica o Eleito acompanhado dos assistentes. Destes o mais antigo, voltado para o Sagrante, diz: Reverendíssimo Pai: A Santa Mãe Igreja Católica pede que eleveis à dignidade Episcopal este Presbítero presente. O Sagrante respondeu: Tendes mandato (nomeação) Apostólico? Temos, respondeu o Assistente. O Sagrante manda o notário ler a Bula ou documento da nomeação. É lido. O Eleito lê o juramento de obediência ao Papa actual, aos seus legítimos sucessores, defesa, honra e privilégios dos mesmos; assistência ao sínodo, se for chamado, visita a Roma, com obrigação de dar conta da administração da Igreja particular que vai governar e outros assuntos indispensáveis ao ofício pastoral. É demorado o juramento. Ao juramento segue-se um interrogatório (ao todo são 18 perguntas) a que o Eleito responde. Promete estudar e cultivar a ciência sagrada para a ensinar com a palavra e com o exemplo; guardar a tradição e constituições da Sé Apostólica, obediência ao papa actual e futuro; fugir do mal, guardar a castidade e sobriedade, ocupar-se dos trabalhos espirituais e abster-se dos materiais; a humildade, a paciência, o cuidado com os pobres, peregrinos e indigentes, e ser afável e misericordioso com todos. Perguntas e promessas sobre artigos do símbolo, pessoas da Trindade e outros assuntos relacionados com o ministério episcopal. Terminado o interrogatório o Sagrante pede a Deus para o Eleito a abundância da graça, o aumento da fé e dálhe a mão a beijar. Começa a missa; o Sagrante no altar-mor e o Eleito no lateral, sem se voltar para dizer Dominus vobiscum. Suspendem a missa no último verso do tracto e o sagrante senta-se. Os Assistentes acompanham o Eleito, todos saúdam o Sagrante e sentam-se. Este lembra as atribuições e os poderes dos bispos, que se resumem nestas palavras: julgar,

interpretar, consagrar, ordenar, oferecer, baptizar e confirmar. Levantam-se todos e pede aos presentes: Oremos, irmãos caríssimos, para que, em proveito da Igreja, Deus omnipotente conceda a este Eleito a abundância da sua graça. Prostra-se o Eleito, ajoelham todos e recitam-se as ladainhas de todos os Santos. No fim, o Sagrante levanta-se e abençoa, por 3 vezes, o Eleito e continuam as ladainhas. Em seguida é colocado o livro dos Evangelhos sobre o pescoço e ombros do Eleito, o que deve guardar e pregar ao povo e o Sagrante com os Assistentes dizem: Accipe Spiritum Sanctum: recebe o Espírito Santo e o Sagrante diz a seguinte oração: “Senhor, sede propício às nossas súplicas e, fazendo descer sobre este vosso servo a abundância das graças sacerdotais, derramai sobre ele a virtude da vossa bênção”. Segue-se o Prefácio, lembrando a instituição do sacerdócio no antigo e novo Testamento. No meio do Prefácio, é entoado, o Veni Creator, que o coro continua. Enquanto o coro continua, o Sagrante com óleo do Santo Crisma unge a cabeça do Eleito com a forma própria e continua o Prefácio. No fim é entoado o Salmo 132, lembrando a unção de Aarão seguindo-se: a) Unção das mãos para se tornarem mais dignas de sustentar o báculo. b) Bênção e entrega do báculo, para corrigir o mal, defender o bem e praticar a justiça. O báculo simboliza o munus pastoral que vai exercer. c) Bênção e entrega do anel que é o símbolo da união do bispo com a sua Igreja, que ele deve de amar, defender e sacrificar-se por ela. d) Entrega do Evangelho, que deve estudar, guardar, conhecer e pregar ao povo. e) Finalmente recebe a paz dos seus colegas, porque está consagrado. Continua a missa. O Sagrante, no altar-mor e o Sagrado no seu, até lerem o ofertório. Suspendem a missa e o Consagrado acompanhado dos Assistentes, oferece ao Sagrante, duas velas, dois pães, e dois pequenos barris com vinho. Estas ofertas lembram o costume dos primeiros séculos da Igreja, em que os cristãos presentes e participantes do Sacrifício, depunham nas mãos do celebrante o pão e o vinho para a consagração A missa prossegue. Há uma só hóstia e um só cálix que o Sagrante e Sagrado oferecem e consagram. Aquele comunga metade da hóstia e do cálix, e ministra ao Sagrado as outras metades. Continuam simultaneamente a missa, e a bênção é dada pelo Sagrante. Senta-se o Sagrante e segue-se: Bênção e imposição


da mitra, que simboliza o capacete de defesa da fé e de lutador contra os inimigos. Bênção e entrega das luvas, que indicam e simbolizam a pureza das mãos, a humildade na prática do bem e recordam a bênção recebida por Jacó de seu pai Isaque. Com todas as insígnias da dignidade episcopal, o Sagrado é acompanhado ao Sólio pelo Sagrante e primeiro Assistente e ali o entronizam. O Sagrante levanta o Te Deum, o coro continua o canto e o Sagrado percorre a Igreja, abençoando o povo e recebendo as suas homenagens. Chegado ao altar e concluindo o Te Deum, dá a bênção pontifical aos fiéis. Dada a bênção e colocados nos seus lugares o Sagrante e os Assistentes, o Sagrado ajoelha voltado para o Sagrante e canta por três vezes: Ad multos annos (por muitos anos). Longos anos, longos anos, longos anos. Dão a paz e concluem a missa. E assim tem a Igreja um novo bispo, um soberano sacerdote, elevado pela sua dignidade e pelo seu ofício, acima de todos os sacerdotes. Pelo mandato Apostólico e pela Sagração vai reger a Igreja que lhe foi confiada e podemos todos aplicar as palavras de S. Paulo: “Atendei por vós e por todo o rebanho sobre que o Espírito Santo vos constituiu bispo para governardes a Igreja de Deus que Ele adquiriu pelo seu próprio Sangue”. As cerimónias foram dirigidas pelo Rev. Américo Alves, mestre-de-cerimónias da mitra. A parte musical esteve a cargo da “Schola Cantorum” do Seminário de Teologia sobre a regência do Rev. Luís Rodrigues. Após a cerimónia da sagração, realizou-se no Paço episcopal da Torre da Marca, um almoço, a que assistiram os prelados que estiveram na Sé Catedral, os membros do Cabido, os reitores dos Seminários diocesanos e o Rev. Costa Maia, em nome dos condiscípulos do novo Bispo. Aos brindes usaram da palavra os Srs. Bispo do Porto e cónego, Dr. Correia Pinto e o novo Prelado.................... No Seminário de Teologia, onde o Sr. D. Sebastião Soares de Rezende ocupou o cargo de vice-reitor, foram recebidas dezenas de telegramas de felicitações pela sua elevação ao Episcopado.

Bispo da Beira4 Transcrevemos das Novidades, o apreciado artigo publicado no dia da sagração do novo Bispo da Beira, da autoria do Rev. Pároco da Feira, Sr. Pe. Pinho Nunes, artigo que também mereceu a transcrição do Diário da Manhã, de Lisboa. D. Sebastião Soares de Rezende, na intimidade Não pretendemos filmar a personalidade tão complexa do novo Prelado, senhor D. Sebastião Soares de Resende, mas somente focar alguns dos seus aspectos. É natural que a sua modéstia se julgue ferida com o que vamos escrever; se nem os Santos conhecem as virtudes de que são modelo…. Ditadas, porém, pela sinceridade, não correm o perigo da adulação. Justificam o nosso júbilo, a alta distinção que lhe foi conferida e a certeza de que hão-de cair do seu báculo episcopal os frutos de tantas virtudes que exornam o seu coração, e projectar-se no seu rebanho confiado aos seus cuidados pastoris. Quem, como nós, o conhece de perto, pode assegurar pleno êxito à sua actividade. Toda a virtude sólida é decalcada na humidade – pedra de toque dos melhores instrumentos que Deus escolhe para a execução dos Seus desígnios, e razão de ser dos grandes empreendimentos. Dela dimana toda a grandeza moral do homem, como das nascentes quasi imperceptíveis nascem os grandes rios. O novo prelado é a personificação da humildade. Sempre e em tudo inimigo de exibicionismos e ostentações a muitos tem edificado. A notícia da sua elevação ao Episcopado não surpreendeu os que lhe reconheciam dignidade e merecimentos; mas foi para ele grande surpresa, apesar dos prémios de mérito moral e literário com que foi agraciado publicamente, em todos os anos do curso. Momentos depois de a ler no jornal, alguém o foi encontrar na capela do Seminário, junto ao sacrário, a rezar e chorar. Com certeza, juntavam-se no seu espírito – como em Cristo, no dia da Transfiguração – o Tabor e o Olivete…. “É a simplicidade em pessoa” – disse-nos há dias o reitor do Seminário das Missões, onde o Senhor D. Sebastião fazia Exercícios Espirituais. A tão preclaros dotes de coração, correspondem os fulgores de uma inteligência perspicaz e bem ordenada, servida

4 Correio da Feira, 28 de Agosto de 1943

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por excepcional poder de visão psicológica. Sempre tem revelado apaixonado amor ao trabalho e aquela tenacidade forte que são garantia de triunfo em qualquer iniciativa. Ninguém se retira da sua presença sem aprender alguma coisa: a tudo sabe dar explicação, desfaz qualquer dúvida, a todos sabe dar conselho prudente e amigo. Na espinhosa e nobre missão a que a Providência o chama vai, com certeza tornar-se rendoso o grande potencial de inteligência e cultura, que até agora acumulou. De mestre de muitos alunos, vai ser, por mandato divino, o Apóstolo da numerosa grei beirense. De reger aulas de filosofia e de teologia, passa à Cátedra de Pastor. Missão sublime!...Alta distinção!... Nesta hora de júbilo, vão para S. Ex.ª Rev.ma a nossa bem fundada esperança e o melhor desejo de que seja longo e fecundo, como é bendito e nobre o seu apostolado para bem da Igreja e prestígio de Portugal.

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Bispo da Beira A sua terra prestou-lhe justa homenagem5 A tarde do passado sábado foi de júbilo para a Vila da Feira: é que entre os seus muros esteve o Senhor D. Sebastião de Resende, ultimamente sagrado Bispo da Beira, sendo portanto a visita primeira que S. Rev.ma quis fazer à sua terra depois de elevado ao sólio episcopal de uma das 5 Correio da Feira, 11 Setembro de 1943

mais importantes dioceses do nosso vasto Império Ultramarino. A sua biografia com os elevados dotes de inteligência que lhe exornam o carácter, foram já postos em foco nas coluna deste jornal. A tarde de 4 de Agosto foi, portanto, de festa nesta Vila. Festa modesta mas muito sincera, pela qual o novel antéstite pôde conhecer da estima e admiração que lhe consagram os seus conterrâneos. O Sr. D. Sebastião deu entrada nos Paços do concelho pelas 17 horas, sendo aguardado pela câmara municipal, muitas senhoras, eclesiásticos, entidades e colectividades da vila e do concelho, e bastante povo, que lhe prodigalizaram recepção imponente. Realizou-se em seguida uma sessão solene presidida pelo Sr. Dr. Roberto Vaz de Oliveira ladeado pelos rev.mos párocos das Feira, Souto e outras freguesias, delegado do concelho e membros da Câmara. O salão nobre da câmara estava repleto de senhoras e convidados, vendo-se, desfraldadas as bandeiras dos bombeiros da Feira e de Arrifana e de outras corporações da vila e do concelho. Usaram da palavra o Rev. Pe. Albano de Paiva Alferes e o Sr. Presidente da Câmara, que, em quentes e veementes palavras, enalteceram as primorosas virtudes do homenageado, focando a elevada missão do novo Bispo da Beira e o alto valor religioso e patriótico das missões católicas no ultramar. Respondeu o Sr. D. Sebastião em comovida oratória, principiando por agradecer a todos os presentes e ausentes que concorreram para a homenagem a que estava assistindo e para aquela que já lhe havia sido prestada em valiosos presentes. Em elevados conceitos e recortes literários, o orador empolgou a assistência durante mais de meia hora, sendo no final coberto de aplausos e muito cumprimentado. Seguidamente o Sr. D. Sebastião procedeu à cerimónia litúrgica da bênção da bandeira municipal, que foi hasteada no frontispício do edifício por entre vivas e palmas. Depois das 18 horas e em casa do Sr. José Francisco dos Santos e esposa Sr. D. Beatriz Santos tios do Sr. D. Sebastião Soares de Rezende, foi servido um delicado chá a que assistiram o novo Prelado da Beira e muitos convidados, senhoras e cavalheiros. Este acto deu lugar a que fossem feitos muitos brindes ao Sr. D. Sebastião, a sua família e a outras pessoas. Ao resto da tarde o Sr. D. Sebastião Soares de Rezende regressou à sua casa de Milheirós de Poiares, sendo acompanhado pela comissão da homenagem.


Homenagem ao Sr. D. Sebastião Soares de Resende6 Mais uma vez foi homenageado o Senhor Dom Sebastião Soares de Resende, venerando Bispo da Beira. A quem quer que venha lendo com relativo interesse as notícias deste periódico e de outros mais a respeito de Sua Ex.ª Rev.ma não terá certamente passado despercebido o elevado número de manifestações de simpatia, admiração e saudade de que tem sido objecto. Agora foi a sua terra natal – Milheirós de Poiares, uma das freguesias da Feira de tradições mais profundamente cristãs – que quis exaltar e despedir-se de tão ilustre e prestigioso filho. Num rasgado gesto de estima e de dedicação, reservara ela para si, logo após a sua nomeação de Sua Ex.ª Rev.ma, não obstante as pretensões, aliás legítimas, da benemérita Ordem Franciscana, o grato e dispendioso encargo da oferta da Cruz Peitoral. Destarte (porque a Cruz sempre pende do peito de um pontífice da Igreja) acompanhá-lo-ia sempre e a toda a parte, assim, como que beneficiaria dos êxitos e méritos de todos os seus múltiplos e árduos labores de bispo missionário. Compreendeu bem, em todo o seu alcance, o Sr. Dom Sebastião Soares de Resende a nobre atitude dos seus conterrâneos. Pelo que cedo resolveu oferecer o santo sacrifício da missa por todos aqueles que se haviam subscrito para tal fim, e por suas famílias. Realizou tão generosa e simpática ideia no domingo passado, 19 de Setembro. Às 10 horas e meia começara S. Ex.ª Rev.ma a Santa Missa. Ao mesmo tempo os alunos do Seminário das Missões de Cucujães davam início no Coro da Igreja, aos kyries duma linda missa de 2 vozes. A Igreja estava repleta de fiéis, de todas as camadas sociais, mesmo das freguesias circunvizinhas. Milheirós encontrava-se representada por todos os seus mais ilustres filhos. Ao Evangelho o Sr. D. Sebastião Soares de Rezende proferiu uma calorosa e tocante alocução, agradecendo aos seus conterrâneos a Oferta da Cruz Peitoral, obra artística e rica – pois custara 7000$00 –, que honrava não tão somente a ourivesaria nacional, mas ainda as pessoas que para ela haviam concorrido, todas com generosidade e algumas com sacrifício. Finda a missa, Sua Ex.ª Rev.ma deu o anel a beijar a todos os assistentes, enquanto o grupo coral ia cantando ora o “Ecce Sacerdos Magnus” ora “Tu es Sacerdos”. Em seguida dirigiu-se de automóvel para a casa do Sr. Dr. Crispim Borges de Castro, seu grande amigo. Aí lhe foi oferecido um lauto e magnífico almoço, para o qual tiveram a honra e o prazer de ser convidados os Srs. 6 Correio da Feira, 1 de Outubro de 1943

Dr. António Luiz Gomes, Provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, Dr. António Luiz Gomes Filho, Director da Fazenda Nacional, Dr. Valdimiro Lopes e sua esposa, Dr. Domingos de Sousa e esposa, pároco da freguesia, pároco de Oliveira do Douro e Correia de Sá, presidente da Junta. Às 6 horas da tarde teve lugar num dos salões da Escola Primária, rica e primorosamente engalanado, uma íntima e enternecedora sessão solene. Foi uma verdadeira apoteose a entrada do Sr. D. Sebastião Soares de Rezende no Salão de Festas, pois foi precedido das crianças do CEC e da Escola, e acompanhado de uma grande multidão de conterrâneos e admiradores, bem como da Banda de Música de Arrifana, que conjuntamente com o estralejar de foguetes, muito abrilhantou a festa. Presidiu o Sr. Dr. Crispim T.B. de Castro. À sua direita sentaram-se os Srs. D. Sebastião Soares de Rezende, Dr. António L. Gomes, Dr. Valdemiro Lopes, Rev. Dr. José Soares da Rocha, pároco da freguesia, D. Edite Moreira e D. Georgina L. Lopes e à esquerda os Srs. Dr. Luiz Gomes Filho, dr. Eugénio Moreira, Dr. Domingos Sousa, Pároco de Oliveira do Douro, Prof. Manuel Amorim e Dr. António Martins. Foi o presidente que abriu a sessão. Começando por patentear o imenso júbilo que lhe inundava o coração, bem como o de todos os Milheiroenses por ver Sua Ex.ª Rev.ma guindada a tamanha dignidade, o Sr. Dr. Crispim Borges de Castro discorreu sobre as suas altas qualidades de inteligência e coração. Acabou por lhe oferecer, em nome da freguesia, uma rica pasta com uma mensagem escrita em pergamóide, de que fazem parte estas palavras: “A carreira científica de V. Ex.ª, percorrida com brilho e distinção e o desempenho das missões nobres do ensino e direcção eclesiástica coroam ainda de altos méritos a personalidade austera que V. Ex.ª assim firmou. Por isso grandes missões se avistam no preclaro destino de V. Ex.ª Rev.ma, de quem a Pátria e a Cristandade esperam tanto. Agora, príncipe da Igreja, mais um brasão se junta à História de honra e nobreza dos filhos da nossa terra. Milheirós desvanecida glorifica e bendiz o seu tão ilustre filho”. Falou em seguida o pároco da freguesia, Pe. José Bernardes Pereira. Começando por recordar uma afirmação feita naquele mesmo lugar que não viria longe o dia em que Milheirós teria um bispo, traço em seguida o perfil de Sua Ex.ª Rev.ma. Como sacerdote, fora um modelo de todas a as virtudes – humilde, modesto, apaixonado pela virtude e pelo saber. Como professor, sempre se impusera pela competência, clareza e método. Tanto em Filosofia como em Dogmática Sacramental tinha afirmado brilhantemente o seu valor. A sua obra de escritor denunciava claramente. Quem não conhecia e admirava já a “Filosofia Tomista e a sua actualidade”, “O Sacrifício da Missa em fr. Gaspar do Casal”, “Portugal e Doutrina Dogmática da Eucaristia”? Por fim formulou a Sua Ex.ª Rev.ma. ardentes

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Igreja haviam depositado em suas mãos, salvando as almas dos dois milhões de infiéis da Beira e tornando maior, mais belo e melhor Portugal. Em seguida o Presidente encerrou a sessão. Assim terminou a festa de homenagem e despedida de Milheirós de Poiares ao seu ilustre filho, Sr. D. Sebastião Soares de Rezende

Morte do Bispo da Beira7 Iminente figura de Missionário e Ilustre Feirense Embora gravemente enfermo com uma doença que não perdoa, faleceu na manhã do dia 25 do corrente, o Sr. D Sebastião Soares de Rezende, Bispo da Beira. A morte do insigne prelado produziu profunda e geral consternação não só na metrópole, como em toda a província da Beira, onde o venerando prelado era muito respeitado e admirado pelas suas excelsas qualidades de missionário, sendo considerado em toda a Africa, um pioneiro do espírito ecuménico, que caracterizava a acção pastoral contemporânea. 80

O Sr. D. Sebastião Soares de Rezende, era natural da freguesia de Milheirós de Poiares, deste concelho, onde tem família, honrava o «Correio da Feira» com a sua amizade. Não sendo possível hoje darmos uma notícia desenvolvida, da figura e obra do saudoso Morto, fazemo-lo no próximo número. A família em luto, especialmente seu irmão Sr. José Soares de Rezende, sua tia Sr.ª.’ D. Beatriz Santos, desta Vila, seus sobrinhos Rev. Monsenhor José Soares Martins, se. Dr. António Luís Martins Braz e Manuel Rezende, apresentamos o nosso sentido pesar. MISSA Pelas 17 horas na próxima terça-feira, dia 31, o Rev. Vigário Manuel Soares dos Reis, celebra na Igreja Matriz uma missa sufragando a alma do Sr. D. Sebastião Soares de Rezende.

votos de boa viagem e fecundo apostolado para a glória de Deus, honra da Igreja, exaltação da Pátria e prestígio de Milheirós. Por último levantou-se o Sr. D. Sebastião Soares de Rezende. Visivelmente comovido e quase confundido com a homenagem que a sua humildade tanto recusara, declarouse refractário, mas não insensível a homenagens e apoteoses; aceitava todas as manifestações de carinho e estima, lembrando de que atrás dele estava Deus. Concluiu pedindo as orações e esmolas dos seus conterrâneos e amigos, para, assim bem poder desempenhar o alto cargo que Deus e a

A morte de S. Sebastião Soares de Resende, Bispo da Beira e o seu funeral8 Por ter chegado tarde a esta Redacção a infausta notícia do falecimento ocorrido em 25 do mês findo do venerando Bispo da Beira, D. Sebastião de Resende, não nos foi possível dar no último número do Correio, uma notícia desenvolvida, pelo que o fazemos hoje. Como dissemos a morte do Sr. D. Sebastião Soares de 7 Correio da Feira, 28 de Janeiro de 1967 8 Correio da feira, 4 de Fevereiro de 1967


Resende produziu em todos os meios sentimento de muito pesar, atendendo às altas qualidades morais e intelectuais que o distinguiam. A Igreja Ortodoxa e várias confrarias muçulmanas manifestaram o seu pesar pela morte de D. Sebastião, lembrando que ele era uma prestigiosa figura da Igreja em toda a África. D. Sebastião Soares de Resende, nasceu em 14 de Junho de 1906 na freguesia de Milheirós de Poiares do nosso concelho, e era filho de José Joaquim Soares de Resende e de D. Margarida Rosa dos Santos e sobrinho do saudoso feirense José Francisco dos Santos, que foi conceituado comerciante desta Vila. Fez os seus estudos preparatórios no Seminário de Vilar, cursando depois Filosofia e Teologia no Seminário da Sé do Porto. Recebeu a ordenação de presbítero em 21 de Outubro de 1928. Matriculou-se, em seguida, na Universidade Gregoriana de Roma, onde se doutorou em Filosofia e licenciou em Teologia. Frequentou além disso, o Curso de Ciências Sociais do Instituto de Bérgamo, na Itália. Regressando a Portugal, foi nomeado professor de Teologia e vice-reitor do Seminário do Porto. Em 1939, passou a cónego da Sé do Porto, ao mesmo tempo que publicava várias obras doutrinais. Em 21 de Abril de 1943, Pio XII designou-o bispo da Beira, tendo sido sagrado a 15 de Agosto do mesmo ano e dando entrada nesta diocese em 1 de Dezembro. D. Sebastião Soares de Resende foi o primeiro bispo da Beira e a diocese, inicialmente, abrangia os distritos de Manica e Sofala, Zambézia e Tete. Estes dois últimos constituem, agora, as dioceses de Quelimane e de Tete, respectivamente. Durante os vinte e quatro anos da sua actividade episcopal, o senhor D. Sebastião Soares de Resende afirmouse, tanto em Portugal e na Santa Sé, como em círculos católicos de todo o mundo, um dos prelados de maior acção apostólica do último quarto de século, salientando-se, simultaneamente, nos trabalhos missionários e no campo da doutrinação. Os Srs. Presidentes da República e do Conselho ao terem conhecimento da morte do insigne Prelado, enviaram logo mensagens de condolência, o mesmo fazendo o Sr. ministro do Ultramar, Governador de Moçambique e outras altas individualidades da vida Nacional. Na sessão do dia 25 da Assembleia Nacional foi prestada homenagem à memória do saudoso Prelado. O funeral de D. Sebastião, a que assistiram mais de trinta mil pessoas, foi a maior manifestação de pesar realizada na província da Beira.

Nela tomaram parte todos os prelados e clero de Moçambique e de outras terras africanas. O Rádio Club de Moçambique dedicou a D. Sebastião vários programas. Falando ao microfone daquela estação emissora o bispo de Vila Cabral. Toda a província de Moçambique esteve de luto. Não foi apenas a Igreja que perdeu um invulgar apóstolo, mas a Pátria também. O comércio da cidade da Beira encerrou as suas portas para que a sua população tomasse parte nas cerimónias fúnebres do seu prelado, que por vontade expressa foi sepultado em campa rasa num dos cemitérios da Beira. O Sr. D. Sebastião, conhecido e admirado pelos seus sentimentos de bondade e ideias liberais, recebia no Paço todas as pessoas sem definição de raças ou posição social com iguais atenções. As suas notáveis pastorais que publicava anualmente eram sempre recebidas com anseio pela maneira como apresentava os problemas religiosos e sociais. O eminente Prelado que desde tempo recuado consagrava ao nosso jornal certa estima e no qual colaborou brilhantemente, ao recebê-lo nas longínquas terras da Beira, fazia por vezes o seguinte comentário que bem dizia da sua simpatia pelo «Correio» e vem a propósito recordar neste momento: “Vou ler o grande Times da Vila da Feira, para onde escrevi os meus primeiros artigos como estudante e aos quais dei o título – “Um estudante em férias”. Correio da Feira curva-se ante a memória do ilustre morto e saudoso Feirense, e renova os seus cumprimentos de muito pesar à família em luto. Na passada 3.ª feira, às 21 horas, o Rev. Vigário P.e Manuel Soares dos Reis, pároco da nossa vila, rezou missa de sufrágio pela alma de D. Sebastião Soares de Resende, na Igreja Matriz, com bastante afluência de fiéis.

Exéquias Solenes por alma D. Sebastião Soares de Resende, Bispo da Beira9 Vão celebrar-se no próximo sábado, dia 25 do corrente, na Igreja Matriz, desta Vila, Solenes Exéquias por alma de D. Sebastião Soares de Resende, ilustre feirense e Bispo da Beira, pela passagem do 30.º dia do seu falecimento. Proferirá a oração fúnebre, o Rev. Padre Albano Alferes, pároco de Souto e condiscípulo do falecido Prelado. O Senhor Administrador Apostólico da Diocese, D. Florentino de Andrade e Silva, foi convidado a presidir a este acto de sufrágio.

9 Correio da Feira, 18 de Fevereiro de 1967

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Exéquias Solenes por Alma do Senhor Bispo da Beira10 Revestiram-se de grande solenidade as exéquias celebradas na igreja Matriz desta Vila, no sábado passado, por alma do Senhor Dom Sebastião Soares de Resende, ilustre Bispo da Beira e filho insigne do nosso concelho, no 30.° dia do seu falecimento. Presidiu Sua Ex.ª Rev.ma o Sr. D. Florentino de Andrade e Silva, Administrador Apostólico do Porto. O Cabido da Sé Catedral do Porto estava representado pelo Sr. Cónego Dr. Santos, Reitor da igreja dos Congregados. Presentes muitos sacerdotes, entre os quais o Rev. P. Sebastião Soares Martins Brás, director do Colégio de Ermesinde e sobrinho do Sr. D. Sebastião e alguns condiscípulos do saudoso prelado.

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Assistiram ao piedoso acto, nos cadeirais da CapelaMor, o Sr. Dr. Henrique Veiga de Macedo, Presidente da Federação das Caixas de Previdência; Sr. Dr. Domingos da Silva Coelho, Presidente da Câmara; os Srs. Conde e Condessa de Fijô; o Sr. Dr. Roberto Vaz de Oliveira e Esposa; o Sr. Dr. Domingos Caetano de Sousa e Esposa; o Sr. Dr. Belchior Cardoso da Costa e Esposa; o Sr. Dr. Castro Chaves, Conservador do Registo Predial e Esposa; o Sr. António Neves Ferreira Brandão, Comandante dos B. V. da Vila; o Sr. João Correia de Sá e muitas outras individualidades. O «Correio da Feira» esteve representado pela sua Directora. Ao centro do transepto erguia-se a essa simbólica, junto da qual estava postado um pelotão dos B. V. da Feira. Entre as pessoas de família do querido finado estavam seu irmão, o Sr. José Soares de Resende e esposa e filhos e suas irmãs Maria, Rosa e Ana; sua tia D. Beatriz Santos, seu primo Sr. José Santos e esposa, desta Vila; vários sobrinhos e primos de M. de Poiares, Macieira de Sarnes e Arrifana. Da sua terra natal (M. de Poiares), além de pessoas de família, muitas pessoas vieram tomar parte, juntando-se à numerosa assistência desta Vila. Foi cantado o Ofício de Matinas e Laudes por todos os Sacerdotes e em seguida houve Missa Solene, sendo celebrante o Rev. P. Manuel Francisco de Oliveira, condiscípulo e conterrâneo do Sr. D. Sebastião, sendo acolitado de Diácono pelo Rev. P.e Francisco Marques Couto, também condiscípulo e de Subdiácono pelo Rev. P.e Alberto de Assunção Tavares, colaborador do Sr. D. Sebastião na Beira. Serviu de Mestre-de-cerimónias o Rev. P. Joaquim dos Santos Cunha, pároco de Cortegaça. Os cânticos litúrgicos foram executados pelos sacerdotes presentes sob a direcção do Rev. P.e António Moura de Aguiar, pároco de S. João da Madeira. À comunhão numerosas pessoas abeiraram-se da mesa eucarística.........................................................

Terminado o Santo Sacrifício, o Rev. P.e Albano de Paiva Alferes, pároco de Souto e condiscípulo do saudoso Bispo, proferiu com proficiência o elogio fúnebre do querido prelado. Numa visão retrospectiva descreveu passos da vida de estudante, de padre, de professor e vice-reitor do Seminário, de cónego da Sé Catedral do Porto e finalmente de Bispo, primeiro Bispo da Diocese da Beira, seu primeiro e único amor da sua grande alma de Bispo. Focou as virtudes que sempre adornaram o coração do ilustre prelado. Recordou as homenagens que o Concelho da Feira prestou a Sua Ex.ª Rev.ma após a sua sagração episcopal em memorável sessão solene no Salão Nobre dos Paços do Concelho, tendo sido então benzidas pelo Sr. D. Sebastião, a bandeira e o estandarte da Câmara. Por isso essa mesma bandeira, agora envolta em crepes, ali estava presente a estas exéquias. Disse que esperava que a Feira um dia pelos seus dirigentes viesse a perpetuar a memória deste seu glorioso filho que tanto honrou a Igreja e a Pátria e que coroou a sua vida rica de méritos com o martírio, autêntico martírio da sua doença que aceitou e sofreu com a maior resignação e esperança cristã na Eternidade. A brilhante oração fúnebre empolgou a numerosa assistência e foi ouvida no mais respeitoso silêncio. Por fim, o Sr. D. Florentino de Andrade e Silva iniciou os responsos fúnebres e lançou a Absolvição.

10 Correio da Feira, 4 de Março de 1967


Testamento Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ámen. Nesta disposição testamentária, eu quero, em primeiro lugar, agradecer a Deus Pai haver-me criado, a Deus Filho o haver-me remido e salvado, fazendo-me cristão, tornandome Seu sacerdote e dispensando-me a plenitude sacerdotal, consagrando-me bispo da Sua Igreja, Una, Santa, Católica e Apostólica; a Deus Espírito Santo o haver-me conferido o Amor da Caridade divina. Em segundo lugar, rogo humildemente ao Senhor Jesus perdão dos pecados de toda a minha vida, de minhas imperfeições; e de, na linha humana, sacerdotal e episcopal, antes de entrar nesta Diocese e depois de nela estar, não haver talvez trabalhado mais e melhor. Aos meus irmãos, em Cristo, da Diocese da Beira, ao clero, aos religiosos e aos fiéis, eu agradeço a convivência amiga de sempre e a colaboração apostólica que me deram em ordem à implantação da Igreja nos sucessivos territórios que constituíram variadamente esta Diocese; eu peço-lhes perdão de alguma falta que, porventura, haja cometido para com eles; e espero que, após a minha morte, sufraguem, junto do Senhor, com as suas orações, a minha alma. Aos meus irmãos cristãos separados, não cristãos e a todos que habitam o território da minha Diocese, eu quero anunciar que sempre por eles orei, no altar do Senhor, esperando que, um dia, a Caridade de Cristo nos unirá a todos, tornando-nos Um, como Deus é Um. A quantos à Diocese não pertencem, eu tenho uma palavra a dizer: se para com alguém haja cometido falta ou

negligência, de tudo a esses peço igualmente perdão. Aos meus íntimos colaboradores, quer da Cúria Diocesana quer de outras sectores de trabalho, os quais vivem comunitariamente comigo nesta mesma residência, aos de ontem, aos de hoje e aos de amanhã, eu expresso o meu sentido reconhecimento pela fidelidade, dedicação e carinho que sempre houveram para comigo. Quanto a bens materiais, nada tenho a dispor, porque nada possuo. Os bens de família, há muito que me desfiz deles; os bens que, por ventura, da igreja ou por motivo da Igreja haja recebido são exclusivamente para a Igreja, sem tolerância de outra partilha. Resta-me agora tão-somente oferecer a vida a Deus pela salvação minha e da Diocese, aceitando desde já, a Santíssima Vontade de Deus, quanto à minha morte, para aquele dia e daquele modo que mais aprouver ao Senhor. E s p e r o s e m p r e e m J e s u s q u e n ã o m e f a l ta r á misericordiosamente com a Sua graça; sempre, mas em especial na hora decisiva do trânsito definitivo desta vida para a outra. O meu enterro será feito segundo as normas litúrgicas e, quanto ao resto, simplicíssimo. Gostaria que, em algum trajecto, cristãos africanos pegassem ao meu caixão. Desejaria também que fosse sepultado na principal via interna do cemitério que fosse mais calcada pelos visitantes do mesmo cemitério. Em simples campa rasa e com uma pequena pedra por cima, em que se inscreva somente «Sebastião, primeiro Bispo da Beira», aí ficarei e aí esperarei a ressurreição da carne para o Juízo final. Beira, Festa de Nossa Senhora de Lurdes, 11 de Fevereiro de 1966. Sebastião Soares de Resende, Bispo da Beira

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Poesia Auto-retrato «Para cá, para lá… Para cá, para lá… Um novelinho de linha Para cá, para lá… Oscila no ar.»

O saber Desfia… Confia… Que o há-de merecer. Mas… O fio partiu, E o novelinho tonto De tonto, mais tonto Quase desistiu

Manuel Bandeira

O novelinho, Oscila no ar… Dá voltas E voltas… Enrola-se… E enrola… Até se formar. Faz curvas… Requebros… Dá círculos no ar, Não chega Uma mão Para o agarrar. Aprende

Maria Fernanda Calheiros Lobo


Fernando Pessoa Poeta do Desassossego * Clara Crabbé Rocha

Exmo. Senhor Presidente da República, Exmo. Senhor Ministro da Educação, Exmo. Senhor Secretário do Governador Civil de Aveiro, Presidente da Assembleia Municipal, Presidente da Câmara, Liga dos Amigos da Feira, Escultor Aureliano Lima, Comissão de Vigilância do Castelo, minhas Senhoras e meus Senhores. Fernando Pessoa é o poeta do desassossego. Esta palavra docemente sibilante que deu o título ao livro do seu semi-heterónimo Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, traduz um dos sentimentos porventura mais marcantes da contemporaneidade: uma inquietação que, literariamente, se enraíza no "spleen" decadentista, em particular baudelairiano, no começo do século se mascara de excitação com o futurismo de Marinetti, se consubstancia depois com a náusea no existencialismo de Camus e Sartre, e encontra múltiplas derivações nos nossos dias. Saudamos hoje Fernando Pessoa como uma das grandes vozes portuguesas dessa inquietação moderna, que não encontra paz em nenhum paralelo.

*Professora Catedrática da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

O poeta renunciou ao contentamento, como se depreende do poema "O Quinto Império": "Triste de quem é feliz! Vive porque a vida dura. Nada na alma lhe diz Mais que a lição da raiz Ter por vida a sepultura." Escolheu pois a via da inteligência lúcida, que conduz necessariamente à inquietude. "Ser lúcido é estar indisposto consigo próprio", escreve Bernardo Soares. E é descontente consigo mesmo e em desassossego permanente que o poeta da Mensagem vai realizar a experiência fundamental da sua vida: "ser tudo de todas as maneiras". O último verso da "Ode Triunfal" exprime esse desejo tão caracteristicamente sensacionista: "Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!". Experimentar tudo de todas as maneiras – eis uma aventura do Prometeu contemporâneo, a que Pessoa dá expressão na sua obra. Nada detém o homem dos nossos dias: drogas, velocidades, novas técnicas científicas e artísticas, armas cada vez mais sofisticadas, viagens interplanetárias, sensações inusitadas. A euforia da descoberta anda de mãos dadas com a insatisfação. Com Pessoa passa-se o mesmo: o seu febril desassossego fá-lo dispersar-se numa série de ficções, desde a pessoal até à estética e à política, já que o seu fôlego criador e a versatilidade do seu pensamento não

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cabem nos estreitos varais da pessoa individual, duma corrente literária única ou dum regime político exclusivo. Não nos alongaremos na ficção pessoal, ou seja no desdobramento heteronímico, tão estudado já. "Inferno de ser Eu, a Limitação Absoluta" – exclama nas Páginas Intimas e de Auto-Interpretação o "fabbro" que se "outrou" em várias pessoas com nome, profissão, alma e corpo próprios. Mas existem ainda outros sistemas literários do seu "mal-estar". Como se não lhe bastasse a heteronímia, Pessoa vai eleger, complementarmente, uma série de metáforas da dispersão. A que melhor traduz a estrutura dialógica do "drama em gente" que o poeta viveu é, como bem viu José Augusto Seabra, estudioso do poetodrama pessoano, a da galáxia, que aparece no poema dramático Primeiro Fausto. Mas, para além da imagem da nebulosa, outras surgem na sua obra que sugerem igualmente a atomização da personalidade. É o caso da rosa-dos-ventos, na belíssima ode "Vem, Noite antiquíssima e idêntica":

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"Vem, dolorosa, (...) Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido, Folha a folha lê em mim não sei que sina E desfolha-me para teu agrado, Para teu agrado silencioso e fresco. Uma folha de mim lança para o Norte, Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei; Outra folha de mim lança para o Sul, Onde estão os mares que os navegadores abriram; Outra folha minha atira ao Ocidente, Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro, Que eu sem conhecer adoro; E a outra, as outras, o resto de mim Atira ao Oriente, Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé, (...)." E, claro está, assume ainda especial relevância na poesia de Pessoa uma outra imagem da dispersão: a da máscara, exemplificada neste trecho do seu heterónimo engenheiro: "Depus a máscara e vi-me ao espelho. Era a criança de há quantos anos. Não tinha mudado nada... É essa a vantagem de saber tirar a máscara. É-se sempre a criança, O passado que foi A criança. Depus a máscara, e tornei a pô-la. Assim é melhor, Assim sem a máscara. E volto à personalidade como a um términus de linha."

Uma tal dramatização do eu – que vai procurar raízes à formulação shakespeariana "all the world's a stage" – devese em parte a um contexto cultural que passa pelo Cubismo e pelas teorias relativistas. A pintura cubista atomizava o objecto retratado: desintegrava-o nas suas partes constituintes, de modo a superar a bidimensionalidade da tela com uma pluridimensionalidade de ângulos de visão. Lembremos obras de Picasso que se enquadram nessa atitude estética, como "As raparigas de Avignon" ou "Rapariga ao Espelho". As doutrinas relativistas, por seu lado, ensinavam que a nossa percepção dum objecto nunca é total e englobante: assim, não podemos ver uma laranja toda duma só vez. O ser existe em situação, a soma das várias perspectivas que dele temos é que nos dá o seu total conhecimento. Voz portuguesa desse novo confronto europeu com a vida, Fernando Pessoa colocou-se a si mesmo em várias situações: ora engenheiro, ora médico, ora seduzido pelo passado greco-romano, ora fascinado pelo futuro, pela civilização e pelo progresso, ora criança brincando com uma bola num jardim que é afinal o Paraíso perdido, ora adulto nostálgico desse Paraíso de infância. E assim deu expressão estética a uma realidade que todos nós experienciamos a cada momento: a de que somos múltiplos, ora alegres, ora tristes, ora esperançados, ora em desespero, ora maus, ora bons. A grande descoberta do Modernismo é a de que o sujeito não é uno, é vários. Se o Classicismo procurou compreender o Homem (com h grande) na sua essência, e depois o Romantismo se interessou pelo homem (com h pequeno) na sua diversidade rácica, geográfica, histórica e sobretudo individual, o Modernismo veio dizer-nos que em cada indivíduo particular há vários eus particulares; diversos mas interdependentes. É, de resto, esta ideia que explicita Hermann Hesse, escritor alemão nascido em 1877, no seu romance O Lobo das Estepes. Trata-se dum livro publicado doze anos depois do primeiro número da revista Orpheu, e revelador dum momento histórico-cultural surgido entre as duas guerras, assinalado por uma aguda consciência da dispersão do eu, da multiplicidade de facetas que se entrecruzam na mesma pessoa. O Lobo das Estepes é um romance de carácter autobiográfico, mas dum modo geral de exploração do sujeito na sua duplicidade de ser divino e animal, de homem e lobo: "Era uma vez um tal Harry, mais conhecido por "O Lobo das Estepes". Andava sobre duas pernas, vestia roupa e era homem, mas no fundo o que realmente era, era um lobo das estepes. (...) “O Lobo das Estepes tinha, portanto, duas naturezas, uma natureza humana e uma natureza lupina, era esse o seu destino, e nada nos diz que esse destino fosse assim tão singular; tão raro (...)".


Não era, de facto. E aí temos nós Fernando Pessoa a criar os heterónimos, ou Sá-Carneiro, seu amigo e companheiro de geração, a dizer: "Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio. / Que vai de mim para o Outro". Como Hermann Hesse desdobrou a sua personagem em homem e lobo, explorando até aos últimos limites a dupla faceta demoníaca e divina que há em todos nós, também o poeta da Mensagem se interrogou de todas as maneiras, angustiadamente, servindo-se dos mais variados registos literários. Para além da dispersão pessoal, ele "explode" também num fogo de artifício de correntes estéticas por ele inventadas ou assimiladas, e de que às vezes se enfastia depois, como uma criança se cansa dum brinquedo. Essas correntes vão desde o Decadentismo e o Simbolismo até ao Futurismo, passando pelo Paulismo, pelo Interseccionismo e pelo Sensacionismo. O poeta desassossegado revolucionou românticos e finisseculares padrões artísticos, declarando alto e bom som que "o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo", e cantando a civilização moderna, as fábricas, as máquinas, a beleza ruidosa da cidade, na esteira imediata do belga Verháeren com o seu poema "Les Villes Tentaculaires". Mais tarde, reencontraremos o mesmo tema da poesia da cidade, com outras conotações, na "Arte Poética" do neo-realista Mário Dionísio: "A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia [nem no jardim dos lilases. A poesia está na vida, nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos, nos ascensores constantes, na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios [e de todas as cores, nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica e no fumo da fábrica". Mas essa revolução estética tinha necessariamente de passar pela linguagem, reduzida por vezes à palavra crua, à construção insólita ou à violência do grito, como o do marinheiro da "Ode Marítima" ou os do final apoteótico da "Ode Triunfal": "Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a [trabalhar, eia! Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá! Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá! Hé-há! He-hô! Ho-o-o-o-ol"

Chega mesmo a propor-nos uma revolucionária e futurista "estética não aristotélica", que Álvaro de Campos viria a definir em texto publicado nos n.os 3 e 4 da revista Atena. Pode ler-se nessas páginas de doutrinação, que fazem tábua rasa das concepções herdadas da Poética de Aristóteles: "Creio poder formular uma estética baseada, não na ideia de beleza, mas na de força (...). A arte, para mim, é, como toda a actividade, um indício de força, ou energia." Assim se identifica energia e beleza, e por isso se explica que, para Álvaro de Campos, o binómio de Newton seja tão belo como a Vénus de Milo. Daí poder Georg Rudolf Lind, um arguto estudioso da obra pessoana, concluir que: "Brincar com as ideias" está na base do que podemos chamar o relativismo criador de Pessoa; ele examina todas as possibilidades espirituais da época para extrair delas os elementos para uma nova arte universal (...). Pessoa é, sem dúvida, um dos expoentes máximos da polivalência intelectual do nosso tempo, um Fausto moderno (...)". Mas o relativismo de Pessoa é também ideológico. Esse "cidadão do imaginário", como lhe chama Joel Serrão, não deixou de criar as suas ficções políticas. Também nesse plano se dividiu entre a realidade e a profecia, entre o presente vivido e o futuro sonhado. No que toca ao primeiro, a opção entre Monarquia e República não lhe é fácil. Numa nota autobiográfica, escreve de si mesmo na 3ª pessoa: "Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela República." No que diz respeito à profecia, movido pela "saudade imensa dum futuro melhor", Pessoa constrói, com base num mito tão caro ao nosso insconsciente colectivo – o do Encoberto –, a ficção política do Quinto Império, já anunciado pelas trovas do Bandarra, pelas quadras de Nostradamus e pela História do Futuro do Padre António Vieira. Hoje, da tão controversa visão do Quinto Império talvez possa ficar a fina interpretação de Joel Serrão: "O Quinto Império pessoano funcionou como um projecto nacional-universalista de natureza e ambição maiêuticas? Visou ele, fundamentalmente, como que uma pedagogia orientada para a atitude mental de descobrir, condição de abertura ao futuro em termos espirituais

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e civilizacionais? O Quinto Império teria sido, em última instância, o mais complexo heterónimo afeiçoado por Pessoa, porque, conscientemente, assumido como heterónimo da Pátria Portuguesa nas suas virtualidades (pressupostas) de universalidade cultural?" Assim, julgando embora que "a política é o mais perigoso dos divertimentos inúteis", o poeta de Orpheu pretendeu também "ser tudo de todas as maneiras", politicamente: "Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma cousa! (...) Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade", declara em 1923, quando lhe perguntam ''O que calcula que seja o futuro da Raça Portuguesa?".

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Quisemos evidenciar, aos níveis pessoal, estético e político, essa "prestidigitação mental" de que Fernando Pessoa é useiro e vezeiro, e pela qual procura alcançar a Totalidade. Para ele, como é sabido, fingir é a própria essência da arte: "O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente." Não se procure, pois, a verdade, a sinceridade ou a coerência num poeta versátil como a folha do olmo, já que, segundo a teoria estética pessoana, "A sinceridade é o grande obstáculo que o artista tem de vencer. Só uma longa disciplina, uma aprendizagem de não sentir senão literariamente as cousas, podem levar o espírito a esta culminância." E, no entanto, não se pense que Fernando Pessoa não tem a nostalgia da felicidade, da sinceridade, dum tempo anterior às máscaras e à dor. Essa nostalgia dirige-se quase sempre para o paraíso perdido da infância, de que são imagens preferenciais o jardim, os jogos infantis ou o "lar que nunca terei". Diz Álvaro de Campos num poema intitulado "Dobrada à moda do Porto", onde se contrapõem as imagens poéticas da carência, relativas ao estado adulto, e as da plenitude afectiva, relativas à infância:

"Um dia, num restaurante, fora do espaço e do [tempo, Serviram-me o amor como dobrada fria. Disse delicadamente ao missionário da cozinha Que a preferia quente, Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se [come fria. Impacientaram-se comigo. Nunca se pode ter razão, nem num restaurante. Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta, E vim passear para toda a rua. Quem sabe o que isto quer dizer? Eu não sei, e foi comigo... (Sei muito bem que na infância de toda a gente [houve um jardim, Particular ou público, ou do vizinho. Sei muito bem que brincarmos era o dono dele. E que a tristeza é de hoje)." A s s i m e v o c a a i n f â n c i a p e r d i d a o p o e ta desassossegado, que oscila entre a depressão e a euforia, o sono e o sonho, o fumo do cigarro e a chávena de café. O desejo do sono – que Eduardo Lourenço interpreta como obsessão regressiva, maternal, como protecção contra um mundo de violência viril (as fábricas, os automóveis, o avião) – prolonga o ideal nirvânico de Camilo Pessanha, o poeta da Clepsidra: "Eu vi a luz em um país perdido. A minha alma é lânguida e inerme. Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído! No chão sumir-se, como faz um verme..." Também Álvaro de Campos se define a si mesmo, na "Saudação a Walt Whitman": "Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de [tédio." As imagens do mal-estar, das incomodidades físicas, da náusea aparecem a todo o momento na obra de Fernando Pessoa e dum modo geral dos modernistas, prenunciando o sentimento de náusea existencialista. Aliás, curiosamente numa das novelas de Mário de Sá-Carneiro, há uma personagem que projecta escrever uma obra chamada "A Náusea". O contraponto da depressão é a euforia, que nos versos de Pessoa encontra expressão acabada nas imagens do arlequim, do palhaço, do clown. Também delas lança mão Mário de Sá-Carneiro, no seu conhecido poema "Fim":


"Quando eu morrer batam em latas, Rompam aos saltos e aos pinotes, Façam estalar no ar chicotes, Chamem palhaços e acrobatas! (...)" A presença tão frequente da imagem do palhaço e do saltimbanco nesta geração tem decerto uma explicação histórico-cultural. Por um lado, exprime uma atitude funambulesca de reacção contra o trágico (a Guerra, sobretudo): as "poses" arlequinescas, que tanto chocaram os "lepidópteros" burgueses do tempo, não são senão formas de defesa, de disfarce, de mascarada. Por outro lado, a imagem do palhaço manifesta a sugestão do universo pictórico de Picasso, tão marcado desde os primeiros anos do século pelas figurações de arlequins e saltimbancos, e que irá reflectirse noutros artistas, desde Chagall até ao nosso Almada Negreiros. Assim se desdobram os poetas do Modernismo entre o entusiasmo e a náusea, reflectindo uma das contradições fundamentais do contexto epocal em que evoluem: o progresso, a agitação, a vida febril, a velocidade e até a guerra entram de rompante num "mundo onde se dormia". Como não havia de sentir Pessoa o fascínio pela bela brutalidade da vida moderna, do admirável mundo novo? Mas, ao mesmo tempo, sente-se nele constrangido e angustiado. A projecção regressiva na infância ou o desejo de dormir são duas variantes duma fundamental atitude de evasão na sua obra. Mas é ainda um outro modo de evasão aquilo que já alguém chamou uma "poesia da beira do cais". "Ah! todo o cais é uma saudade de pedra", exclama Álvaro de Campos, que tal como Pessoa ortónimo se debate entre o sonho e o medo da viagem, enquanto fica no cais a ver partir e chegar os grandes navios, ou na gare a ver partir e chegar os comboios. Lembremos que também Sá-Carneiro procurou, a seu modo, evadir-se em espaços cada vez mais alargados: primeiro Lisboa, depois Paris, finalmente a morte. A viagem de Pessoa é, pois, uma viagem imaginária, até porque, como diz noutro verso lapidar, "Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir". E assim o poeta passeia à roda do quarto da sua intimidade, assim se fecha no labirinto da sua interioridade. Como Jorge Luís Borges, outro escritor contemporâneo, Pessoa gosta de labirintos. Houve mesmo quem dissesse que ele poderia ser uma personagem do grande argentino... Desassossegado e labiríntico, Pessoa viajou de todas

as maneiras possíveis: no ser, na arte, na política, no tempo, no espaço. "Sê plural como o universo", exortava assim os seus leitores. Só que, como bem concluiu Yvette Centeno, não conseguiu nunca alcançar a Totalidade. A sua obra, no dizer de Joel Serrão, é como as capelas imperfeitas: "Capelas susceptíveis de abóbadas várias, mas da exclusiva responsabilidade de quem se atreva, agora, a lançálas... Quanto a Pessoa, ele jamais a construiu [a abóbada]. Não porque o não quisesse ou o não tivesse tentado ou não tivesse sabido a falta que fazia, mas, simplesmente, porque não pôde." E a sua memória permanecerá na literatura portuguesa como um marco miliário singular de suprema lucidez e de suprema impotência. O que não é desdourar-lhe a glória. É, muito pelo contrário, admirar nela a inteligência que em todos os passos a nimba e a angústia dos limites humanos, que SáCarneiro tão magistralmente plasmou num verso: "Ai a dor de ser quase, dor sem fim!" 89


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Poesia

Poema ou Rosa? Não terá sido um poema o que te pus nas mãos para depois me dizeres que o não entendes. Não foi um poema. Foi uma rosa. E não é uma rosa um poema ininteligível? E não é a beleza o maior dos enigmas tão grande pelo menos quanto a morte? É verdade que se não compreendes a rosa também não foi uma rosa o que te dei. Mas repara: não será que no mínimo tens agora as mãos perfumadas? Anthero Monteiro


Professor Pinho Leão * Rogério Pinto Moreira

No 1º. Aniversário da Morte do Professor Pinho Leão No dia 23 de Maio, no Salão Nobre dos Paços do Concelho da Feira, houve, uma Sessão Solene seguida de uma Romagem de Saudade, para comemorar o 1º. Aniversário da Morte desse Meu Amigo. Assisti, como se me impunha a velha Amizade que a ele sempre me ligou, desde os tempos em que trabalhamos juntos nas Escolas do Conde de Ferreira, a norte da hoje chamada cidade de Santa Maria da Feira. Fiquei com a sensação de que, apesar de tudo o que foi dito de justo e muito bem pelos seus Colegas e Discípulos, em palavras de muito apreço, pelo seu Labor e pela eficiência do seu Ensino, e, no que dizia respeito à sua Personalidade, algo ficava por dizer. Perdoem-me os seus Amigos, se a mim também me competia fazê-lo. Agora a mim próprio me condeno, por não

* Nasceu em S. Paio de Oleiros em 1914 e aí faleceu, em 25 de Agosto de 2001. Instrução primária em Mozelos, estudos secundários no Colégio dos Padres Missionários do Espírito Santo em Braga e curso do Magistério Primário no Porto. Professor, viajante, comerciante e industrial de papel. Publicou dois livros de poesia: “Sol de Inverno” – 1986 e “Suave entardecer” – 1990.

ter expresso, em sentidas palavras, o que a minha timidez, no momento, não me deixou e inibiu de dizer. Faço-o agora para ressalvar aquilo a que eu, se o não fizesse, alcunharia de traição à sua Memória, de Amigo e Colega e, por vezes, de Conselheiro. Conselhos que me levaram a alterar certos aspectos da minha vida particular, um tanto atrabiliária, e que ele bem conhecia pelas minhas próprias confissões de Amigo... Por vezes em Lisboa, quando casualmente nos encontrávamos, nas suas idas à Federação de Futebol, e outras, aí, no Rossio, sob as copas frondosas daqueles velhos plátanos... e ao lado da velha catedral onde me casei. Conversámos longamente... Havia na sua Personalidade qualquer coisa de indefinível, quer pela afabilidade com que me tratava, quer por aquele sorriso afável que acompanhava sempre os seus gestos e as suas palavras. E essa indefinível particularidade, encontrei-a eu na expressão de um Filósofo, também meu Amigo, como sendo o Justo Equilíbrio que punha em todas as atitudes que tomava... Esse Equilíbrio Certo, penso agora, estava nas palavras sempre adequadas ao assunto versado; por isso, era o Homem do qual emanava sempre a decisão exacta. Havia nele Equilíbrio e Disciplina, pois não se escondia, pelo Bem que fazia, mas também não exibia estas e outras virtudes. Actuava sem alarde, como Bom Samaritano que sempre foi. Quero dar o meu testemunho, pois neste Justo Equilíbrio estava a forma como sempre evitou os extremos. Trabalhou pelo Próximo, não para ser visto, mas sempre

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quando e onde era preciso. Nele tudo isto era simples e natural. Ele era a Disciplina. Homem discreto, pelo que deu sempre transparência à sua vida. Cumpriu deveres de Estado, Profissionais, Deveres Sociais com a verticalidade do Fio-de-prumo. Na vida familiar demonstrou aquele Equilíbrio de Quem não é rigoroso, nem permissivo, em demasia. Educador, exemplificou-o na Família que se conhece. Vede... Na sua vida profissional, em décadas, foi Homem de trabalho. Na vida sócio-política teve participação activa: presença em reuniões, em Assembleias, em cargos de Direcção, em Associações Humanitárias, etc. Participou. Não foi fanático, nem radical, nem intransigente... O Equilíbrio Justo e a disciplina a que se obrigava foram sempre, sempre, as suas Maiores Virtudes. Eis o que Eu poderia ter dito e não disse. É o meu Desagravo. É a minha Angustiada Desculpa, que hoje peço Àquele que em vida foi um dos meus Maiores Amigos. Vou transcrever aqui uma pequena composição poética, semelhante àquelas que Ele tanto apreciava. Dizia Ele que eu tinha sensibilidade poética, e é dela que vou lançar mão para o recordar: Lutou com Dignidade. A sua mão Brindou à Raça Humana. Ardentemente Lutou por Vida Nova a toda a gente E Direito a dizer se “Sim ou Não”... Combateu o preconceito. E então Olhou o Sol que aquece e, ao longe, brilha. E como Homem Livre, ó maravilha, Abraçou todo o Povo como a irmão. Proclamo, agora, embora seja tarde: Foi um Homem de Fé e de Renome... E se hoje em Liberdade o Mundo arde A terra com amor seu corpo tome; Que Deus Bondoso em suas mãos O guarde. Lutou contra a Ignorância, irmã da Fome.

S. Paio de Oleiros, 28/05/1989

Original do soneto








1º Centenário da morte de José Estevão Discurso da Ex.ª Senhora D. Joana Inês de Lemos Coelho de Magalhães

Moreira da Maia, 9 de Setembro de 2005

Ao arrumar umas gavetas com correspondência, cartas antigas da família e de amigos, encontrei este discurso que a minha tia Joana escreveu e disse no centenário da morte do meu bisavô José Estêvão, em Aveiro, em 1962, se não me engano. Embora tivessem passado 100 anos, a figura e personalidade desse meu bisavô estava tão presente na tradição da família que parecia que a minha mãe e as minhas tias o tinham conhecido pessoalmente, o que de facto não aconteceu. É que a minha bisavó Rita Miranda, viúva de José Estêvão, mantinha viva a lembrança do marido e transmitiu ao filho e às netas esse culto de personalidade, sem dúvida simpático para a família do brilhante orador. Tendo mostrado o manuscrito ao meu amigo Dr. Fernando Sampaio Maia e tendo ele achado interessante publicá-lo na Revista da Liga dos Amigos da Feira, que já tem publicado mais referências a José Estêvão, agradeço a simpática ideia. D. Maria da Conceição de Lemos Magalhães da Motta de Sottomayor

«Sinto-me aqui numa situação muito difícil. Já por duas vezes me coube a grata incumbência de agradecer, em nome da nossa família, homenagens muito honrosas e comovedoras, prestadas, em Lisboa e na minha terra da Maia, à memória do nosso Pai, por ocasião do centenário do seu nascimento. Nessa altura eu era simplesmente uma filha, a exprimir, por mim e pelos meus, a gratidão natural que sentimos ao ver enaltecer e fazer justiça a um Pai, cuja existência partilhámos, cujos talentos de perto apreciámos, cujas virtudes, nobreza de carácter, delicadeza de sentimentos e afectos, criaram, com a cooperação da nossa Mãe, o ambiente de alegre e feliz união familiar em que nascemos, nos formámos, e que hoje recordamos com grande saudade e enternecido orgulho. - Era simples e natural. Mas agora eu venho substituir alguém, - venho substituir esse mesmo querido e saudoso Pai, que, neste mesmo local, em homenagens idênticas, abriu a sua alma e o seu coração em expansões comovidas a que o seu talento de orador de raça, a sensibilidade do seu insaciado amor filial, ajudados pelo fogo da mocidade e a força da maturação dos anos, davam acentos de eloquência e beleza que nunca foram esquecidos. Amor filial insaciado, sim. - Tinha apenas três anos, quando a orfandade o feriu; e em toda a sua vida essa ferida se fez sentir. Compensou pelo estudo constante da sua personalidade e por um amor imenso, a presença desse idolatrado Pai, de quem apenas conservava uma tenuíssima recordação. - No primeiro aniversário da sua morte, minha Avó escrevia a um amigo: - «O Luís acordou hoje a chorar com saudades do Pai, com exclamações de dor e

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de recordações que parece incrível numa criança tão pequena». Essa dor infantil, essa saudade perduraram no culto da memória paterna, que dominou toda a sua existência. Aos 19 anos, ainda estudante de Direito, escreve: Ninguém tem mais a peito o não deixar deslustrar o nome imaculado e impoluto que ele me deixou». E nos diversos passos da sua carreira política esse culto é sempre reafirmado e reivindicado o direito de definir quais as suas imposições morais e políticas. Ele assim o disse: «Eu tenho em mim mesmo, numa tradição que reputo sagrada, o meu partido, o meu credo político (…). Não preciso que ninguém me defina quais os meus deveres, nem me interprete o sentido e o exemplo de uma vida pública que, mais do que ninguém, eu tenho estudado, meditado, reflectido». Não só na vida pública, mas também no seu labor literário, com frequência transparece esse grande amor filial. Dedica ao Pai, em palavras simples, mas repassadas de tocante veneração, o livro que considera a obra principal da sua carreira de escritor e de poeta. - O poema D. Sebastião. Na «Frota de Sonhos», compêndio de sonetos em que se espelham tantas facetas do seu delicado espírito, não falta, - não podia faltar, - a grande figura de José Estêvão. E lá a vemos aparecer no soneto “A Voz do Espectro”, quando os reveses da política o lançam na cadeia por mais de dois longos anos. É uma «figura varonil» que surge, de repente, «na escuridão do cárcere» e lhe diz «com a sua voz gloriosa»: «Fizeste bem, meu filho, era o dever!». Noutro soneto, «Evocação», é na paz e beleza luminosa da Costa Nova, entre a calma risonha da Ria e a grandeza revolta do mar, que o «ressuscita em si» ao «remorder acerbo da saudade». E os laços profundos e sensíveis, formados por essa evocação constante, exprime-os neste verso: «Por isso o coração aqui me prende assim!» Temos ainda esse bonito e valioso estudo, - «Meu Pai», - que principiou para prefaciar a edição dos Discursos, do centenário de 1909, - e que agora a Comissão das celebrações centenárias incluiu, mesmo inacabado (apenas completado com as notas que lhe estavam juntas), na interessantíssima Colectânea que acaba de publicar. Era tenção de meu Pai refundir esse trabalho noutro mais largo e desenvolvido, em que escreveu: - «Sinto inteiramente livres, em face da sua nobre e querida figura, a minha admiração de homem e o meu piedoso amor de filho». Infelizmente, não chegou a cumprir esse intento… Nessas páginas, quantas vezes, ao retratar o Pai, o filho que se retrata a si próprio. - Deviam ser muito semelhantes as suas almas, como, pelos retratos, podemos verificar que muito se pareciam fisicamente.

Sempre, em tudo, na vida pública, literária, privada, Luís de Magalhães foi o «Filho de José Estêvão» - Assim o apelidavam nas críticas dos primeiros livros que publicou, assim o saudavam no seu aparecimento em diversas situações políticas, assim o consideravam os velhos amigos de família, assim lhe chamavam nas ruas de Aveiro, na Costa Nova: «Aquele, é o filho de José Estêvão…» - assim lhe chamaram na hora da morte: «morreu o filho de José Estêvão» escreveram os jornais. Foi esse filho que, com o coração a transbordar de amor filial e de comovidíssimo, profundíssimo reconhecimento, aqui, entre estas paredes, exprimiu esses nobres sentimentos em termos elevados, eloquentes. E é ele que eu - com a minha fraca voz de mulher, e de mulher sem predicados de oradora e de já bem avançada idade, venho substituir… Mas tem sido a nossa preocupação - nossa, da família que ele criou, - mantê-lo sempre vivo entre nós, não deixar vazio o seu lugar, esforçando-nos, nas nossas atitudes, em toda e qualquer circunstância, por fazer o que ele faria ou quereria que se fizesse. E, por isso, e devia relembrá-lo nesta hora em que venho, em nome de todos nós, agradecer, a esta linda e muito querida terra de Aveiro, mais uma prova da sua gratidão à memória daquele que foi, - ainda hoje se diz, - o maior dos seus filhos, o que melhor e mais devotadamente amou e serviu. Mas seja-me permitido evocar, também, a figura desse Avô, tão distante no tempo, mas que, pelo ambiente de família, as tradições de amizade, a gratidão popular, foi sempre uma presença moral no meio de nós. Em casa, era a saudade da minha Avó, transparecendo nas frequentes conversas em que nos falava dele; - a veneração terníssima votada por meu pai à sua memória; os móveis e objectos que foram de seu uso; - o pequeno museu, em que meu pai reuniu, mais tarde, as suas recordações mais íntimas, (que, em grande parte, figuram na exposição hoje inaugurada). E, também, a Costa Nova, o Palheiro - que a gente da terra baptizou com o nome de - José Estêvão, - a Ria, o mar, o areal, onde, em tudo que vemos e ouvimos a sua imagem nos aparece viva… Poderíamos julgar que o conhecemos, tão familiar nos é a sua nobre e insinuante figura, representada em tantos e variados retratos. Tanto ouvimos falar na rectidão do seu carácter, no brilho da sua palavra, no poder dominador do seu talento, na bondade do seu coração, no encanto do seu convívio, na vivacidade espontânea e espirituosa da sua conversa… E o culto que, em Aveiro, pelo decorrer dos anos,


sentimos em constantes manifestações de simpatia, às vezes enternecedoras! Guardamos da nossa primeira infância, - quando meu pai era Governador Civil deste distrito, - a recordação da velha vendedeira de fruta, - a Água a Ferver, - com o seu pronunciado bigode e a barbicha grisalha, sentada junto das Pontes, ao abrigo do grande guarda-sol azul, que nos chamava, com voz rouca, para nos encher as mãos de frutos perfumados. Éramos as Jé Estevinhas e não conseguíamos iludir a sua vigilância. E aquela mulher da Gafanha da Encarnação que acudiu em defesa do ranchinho de crianças que formávamos, todas queimadas, - bronzeadas como hoje se diz - pelo sol forte e o ar iodado da Costa Nova, quando um transeunte nos chamou «feias cachopas», - «Ó homem, cale-se! Olhe que são as netas do Snr. José Estêvão!». E outra mulher, já de muita idade, também da Gafanha da Encarnação, que, ao sair da missa, tendo-se certificado de que éramos «as netas do Snr. José Estêvão» e de que era seu filho «o senhor de barbas» que tinha visto na capela da Costa Nova, me diz, em tom de enternecida gratidão e saudade:«Ó minha senhora, eu conheci o seu Avô! Ele passava por aqui a cavalo e salvava sempre; não esperava que o salvassem primeiro. Eu era pequenina, tive as bexigas, e ele vinha ver-me ao meu leito de doente e trazia-me geleia!». Ficaram-me gravadas na memória estas palavras e o tom em que foram proferidas. Repeti-as ao meu Pai, e vi lágrimas de comoção correrem-lhe pelas faces. E ainda outra mulher, - esta da Gafanha da Nazaré, a quem o marido explicava a uma minha irmã, com quem falava, que era neta «do Snr. José Estêvão». A mulher fita-a por um instante silenciosa, e depois diz-lhe: «A gente foi habituada a ouvir falar desse senhor como uma pessoa a quem todos devemos muito. Mas tinha morrido há muito tempo, estava já muito longe. Mas agora, ver de repente diante de si uma pessoa da família, dá choque»… Amizades aveirenses, profundas, dedicadas, acompanharam-nos pela vida fora, e são hoje saudades que vivem nos nossos corações. E quando a morte nos tem batido à porta, e vimos trazer os queridos membros da família que Deus vai chamando a si, e se vêm juntar àqueles que aqui nos esperam, - nunca nos achamos sós na sua dor e no nosso luto, nunca nos faltaram simpatias; sempre nos rodearam presenças significativas de todas as classes; e sempre, entre elas, vimos a cidade de Aveiro, - representada pela sua Câmara Municipal, na pessoa do seu Presidente - É que o prestígio de José Estêvão não se apagou com o tempo. E porque a família se mostra fiel à sua grande memória, ainda se vê envolvida no

reflexo do brilho do seu nome. E tudo isto nos liga com laços tão sensíveis, que bem podemos afirmar que também somos aveirenses. E há também esse jazigo, que de modo essencialíssimo nos prende a esta terra, pelas tradições e saudades que nele se encerram. Ainda ontem vimos lá desfilar, respeitosa e piedosamente, muitas centenas de aveirenses, depois de termos ouvido, junto à estátua, o discurso vibrante em que o sr. Dr. FRANCISCO DO VALE GUIMARÃES nos mostrou, sempre vivo, actual na sua concepção prática, e muitas vezes profética, das coisas públicas, o grande patrono cívico de Aveiro! Ao ler agora, em numerosos jornais da época, os relatos sentidos das circunstâncias dramáticas em que se deu a morte de meu Avô, a imponência do seu funeral, as manifestações de intenso sentimento de todas as classes sociais, desde os Reis à gente do povo, noto repetidas referências à viúva. - «A infeliz senhora» - por cuja dor se sente simpatia e cujo estado de saúde inspira «sérios cuidados». E vê-se a impressão que causou o facto de minha Avó ter querido guardar o coração do marido para «o conservar junto de si e o levar consigo para a sepultura». Na verdade, durante a sua longa viuvez, conservou minha Avó esse coração no oratório, que, para o guardar, arranjara na sua casa da rua de Cedofeita. E não pouco contribuiu para criar viva, em nós, a ideia do nosso Avô, esse Coração morto, tão religiosamente venerado na sua urna de mármore preto, colocada no altar que o crucifixo encimava, e sobre o qual ardia sempre a lâmpada de vidros de cor, que alumiava com certo mistério o pequeno aposento, silencioso e recolhido… Passados perto de 42 anos, minha Avó entra por sua vez no jazigo, que acabara de construir depois de viúva, trazendo consigo o coração do marido, que só então fica inteiramente sepultado em Aveiro. Recolhida no gavetão que reservara para si, ali repousou por mais de 50 anos. Hoje, porém, realizando uma velha ideia de nosso Pai, pudemos finalmente, nós, as suas netas, reunir no mesmo túmulo, posto em evidência no centro da Capela, os dois esposos que a morte, há cem anos, subitamente separou. Ali dormem o sono eterno, agora lado a lado, José Estêvão e Dona Rita Miranda. E ela guarda-lhe o coração, com o qual quis descer à sepultura. Receio que tenha sido muito longa esta enumeração de sentimentos e recordações. Mas, ao evocar o passado, quando tantas sombras queridas ressurgem no meu pensamento, pediu-me o coração que não falasse apenas em nome dos que vivemos, mas que juntasse à expressão muito sincera do nosso reconhecimento, a lembrança daqueles que,

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em análogas comemorações, o sentiram também, e que agora, aqui bem perto, repousam para sempre. É a V. Ex.ª, Senhor Presidente, que em primeiro lugar devemos agradecer, pela iniciativa que tomou de promover a celebração deste centenário, e à Ex.ma Câmara Municipal, que unanimemente a aprovou. Porque se tratava de Alguém que de tão perto nos toca, foi grande o nosso contentamento quando vimos anunciada essa resolução, e logo o manifestámos a V. Ex.ª, oferecendo-lhe a nossa modesta colaboração. Receba hoje V. Ex.ª e a Ex.ª Câmara o protesto da nossa muito sincera gratidão. Queremos também manifestar o nosso reconhecimento à ilustre Comissão do Centenário, que vemos aqui representada pelo seu presidente, Ex.mo Sr. Dr. Orlando de Oliveira. Com grande competência soube desempenhar-se do encargo, cheio de responsabilidades, que lhe foi cometido, como demonstram as cerimónias a que temos assistido, e que são constantes do programa por ela elaborado. Romagem de saudade ao cemitério, Missa de sufrágio, exposição em que talentos, feitos, glórias, - toda a vida - e a dor da inesperada morte, estão representados; lápide comemorativa, publicações, e esta solene sessão; e, a relembrar tudo isto, a iluminação contínua da estátua, - todo este conjunto fez reviver aquele que, nos cem anos decorridos sobre a sua morte, não foi esquecido, e nunca deixou de ser o ídolo desta terra, em que nasceu. Quero ainda referir-me a Monsenhor Aníbal Ramos, que tem mantido aceso, nas suas mãos, o facho da amizade aveirense para com a nossa família. Muitas atenções lhe devemos, e grande consolação nos tem dado vê-lo em Moreira, intimamente associado às nossas festas de família, abençoando os casamentos das bisnetas de José Estêvão e baptizando as suas pequenitas trinetas. É-nos, por isso, especialmente grata a sua presença na comissão do centenário do nosso Avô. O Senhor Embaixador Dr. Augusto de Castro, ilustre filho destas terras, veio aqui falar-nos do homem cuja inesperada morte, há cem anos, comoveu não só Aveiro, mas toda a Pátria Portuguesa. Estudou essa grande figura, e ressuscitou-a no quadro feliz que nos apresentou. Receba V. Ex.ª com as minhas sinceras felicitações, os grandes agradecimentos das netas de José Estêvão. Nesta glorificação centenária, sentimos a nossa família fundida na grande família aveirense. Com muita consolação o verificamos. E com um grande e profundo amor por esta terra, amor herdado das gerações que nos precederam e já transmitindo às gerações que se seguem, cheios de reconhecimento, - a todos AGRADECEMOS.»


Aquilino Ribeiro

Capa do romance “O Arcanjo Negro”

Linguagem e Preciosismo

e evolui cada dia, embora de forma quase imperceptível. Daí o pluralismo linguístico, manifestado em vários tipos de discurso, segundo o nível cultural de cada grupo que o produz, a ideologia, o meio e a época. Esta constante mutação é devida à capacidade inventiva e criadora do homem, à sua força imaginativa e à sua originalidade. Capacidade transformadora que recebe o seu impulso não só da individualidade própria do falante, mas também da orientação das estruturas comunitárias de natureza sócio-cultural, e que, agindo sobre a norma, vão dar origem a vários tipos de desvios. O estilo de um indivíduo, de uma época ou de um grupo é assim definido por um vocabulário e uma sintaxe particulares, condicionados por uma determinada imagem do homem e do mundo. Ora nós propomo-nos vir aqui falar de um tipo de linguagem muito especial, que ficou nos anais da história como uma das criações mais requintadas no domínio da comunicação. Referimo-nos à linguagem preciosa. Mas o que é o preciosismo? No seu sentido mais lato, o preciosismo é a manifestação, em França, de um fenómeno literário e social que se verificou na Europa, no séc. XVII, e que esteve na origem do marinismo na Itália, do gongorismo em Espanha e do eufuísmo na Inglaterra. Diga-se, no entanto, que o literário não é suficiente para explicar as origens do movimento precioso. Fenómeno essencialmente parisiense na sua origem, situado num dado momento da evolução da sociedade francesa, ele vai-se alargando até atingir as cidades da província, durante a

*Maria da Conceição Vilhena A linguagem é um produto contínuo de signos e de significações, que preenchem uma função real na comunicação humana. A linguagem pode, pois, ser definida como um pensamento falado: o homem fala como pensa e pensa como fala. E a experiência social, fixada pela linguagem, domina o funcionamento do pensamento no espírito dos membros de toda uma comunidade. A palavra teria sido dada ao homem para revelar o seu pensamento; ou, então, como queria Maquiavel, a palavra ter-lhe-ia antes sido dada como meio de disfarçar e encobrir aquilo que pensa. De qualquer maneira o homem fala, porque vive em sociedade. A linguagem é, assim, um facto social, comum aos membros dum mesmo agregado, embora cada indivíduo tenha o seu acento particular e o seu estilo próprio. Além disso, como corpo vivo, a linguagem está em constante transformação

* Licenciada em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras de Lisboa, 1965. Doutoramento de Estado ès-Lettres, pela Sorbonne, Paris, 1975; Professora Catedrática. Leccionou na Universidade de Aix-en-Provence, França; na Universidade dos Açores; na Universidade Aberta de Lisboa e na Universidade da Ásia Oriental, em Macau. Tem publicado perto de cento e cinquenta trabalhos (livros e artigos) sobre literatura, linguística, etnografia e história. Actualmente é aposentada e Presidente da Associação de Solidariedade dos Professores (4º mandato).

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primeira metade do séc. XVII. Movimento de imitação das boas maneiras e da fina galanteria da capital, seguido primeiramente pelos elementos da aristocracia, esse fenómeno atinge em seguida a burguesia mais abastada, que, ávida de ascensão social, deseja entrar na vida intelectual mundana e refinada, da nobreza e da corte. As qualidades mundanas fazem o “honnête homme”; e os talentos intelectuais produzem o “bel esprit”. Estes dois traços resumem o ideal duma civilização apaixonada de distinção e de requinte, de literatura e de análise da alma humana. Num tal ambiente, faz-se sentir a necessidade de uma linguagem nova, que exprima requintadamente os vários matizes do sentimento. Uma linguagem inacessível ao vulgo, impermeável ao banal e ao prosaico, adversa ao pedantismo, indiferente ao utilitário, capaz de ser compreendida apenas pelos espíritos mais sagazes e subtis. A preciosidade nasce da extensão da vida elegante e fácil, dum desejo profundo de cultura, de ideal e de distinção que, reservado até então à aristocracia, se estende agora à classe social favorecida pela fortuna. O que é o precioso? O precioso é um artista da palavra, um cultor da arte pela arte, que negligencia a ideia e se preocupa ferozmente com o estilo. Todo o seu esforço consiste na procura das palavras, na pureza da frase e na surpresa dos efeitos a alcançar. O precioso cultiva os géneros menores, que cizela cuidadosamente, usando e abusando dos recursos da retórica. O amor e a galanteria são os seus únicos temas. Mais que poetas, poder-se-á chamar-lhes antes “fazedores de versos”. A obra que produziram é uma literatura de salão, destinada a agradar e a seduzir, que testemunha de uma predilecção especial pelas subtilezas da casuística amorosa. A arte de agradar compreende o dom de saber conversar; é por este dom que é julgado o homem de salão, uma vez que a conversação constitui um dos prazeres mais apreciados da vida em sociedade. Saber dirigir louvores às damas, contar historietas cómicas, troçar com mesura e com espírito é um dos processos de se impor na sociedade preciosa, cujos valores são a eloquência, a graça, a distinção e a delicadeza. O homem galante, que quer falar de amor, deve conhecer máximas e sentenças morais com ele relacionadas, as quais se encontram em obras da época, como sejam os manuais de conversação galante. Nesta nova linguagem, o eufemismo e a litote são de rigor. Com eles se ajustam a substantivação do adjectivo, a frequência do substantivo e do plural, como forma hiperbólica. Das figuras de retórica, o precioso dá a sua preferência à antítese, à perífrase e à metáfora, por meio das quais poderá evocar as coisas consideradas como impróprias do preciosismo, sem atentar contra a pureza da sua linguagem.

Um verdadeiro jogo de sociedade, através do qual se chegou à formação de imagens que hoje nos fazem sorrir. Por exemplo, para dizer ao criado que traga cadeiras, o precioso dirá que “acarrete as comodidades da conversação”. Num desdém por tudo o que é material, o escritor fugirá a exprimir directamente certas funções, actos, órgãos ou até as partes do corpo menos delicadas. Para referir o facto de uma mulher ter dado à luz uma criança, o escritor preciosista dirá que ela sofreu as contrapartidas do amor permitido (sentir les contre-coups de l’amour permis). O precioso é aquele que ama o pormenor, o inédito e a excepção. É um liliputiano, um adorador do Kitch. E um inimigo feroz do útil. A criação preciosa é uma criação de luxo, que se opõe à utilidade. Produzir, para o precioso, é um jogo inútil que põe em acção o espírito ágil e a imaginação fecunda. Precioso é sinónimo de mundano e de sofisticado; e a preciosidade que pratica uma retórica da galanteria. A designação de “precioso” surge em 1654, na obra Relation du Royaume de Coquetterie, do Abade D’Aubignac. Segue-se cronologicamente uma carta de Ménage, sobre o novo tipo de ideal considerado como feminino. Esta carta foi reproduzida em 1656, pelo Abade de Pure, autor de La Précieuse. E, decorridos apenas três anos, já Molière, ao chegar a Paris, satiriza este novo ideal, na sua comédia Les Précieuses Ridicules (1659). Note-se todavia que Molière também é um discípulo do preciosismo. Aquilo que ele ataca na sua comédia não é propriamente o preciosismo, mas sim o ridículo a que chegaram algumas preciosas. Referimo-nos à linguagem do precioso. Mas será preferível talvez falarmos antes da linguagem da preciosa. É certo que todos, homens e mulheres, comungavam de um mesmo ideal de preciosidade. No entanto a preciosa é preferentemente citada, pelo papel importante que a mulher teve na sociedade preciosista. O que é afinal uma “preciosa”? É o próprio Abade de Pure, a que já nos referimos, que nos dá a definição: “A preciosa não é a filha do seu pai nem da sua mãe, nem obra da natureza sensível e material. A preciosa é um extracto do espírito e um condensado da razão. Ela forma-se pelo cultivo dos dons supremos que o céu vazou na sua alma”. “A preciosa não é uma simples obra da Natureza ou da Arte, mas um esforço de uma e de outra. É um compêndio do espírito e um extracto da inteligência humana. Ela é o astro que brilha nos salões, e nada é obscuro à sua inteligência e aos seus olhos”. E o escritor conclui que não há palavras capazes para definir e exprimir uma coisa tão espiritual. O preciosismo compreende vários aspectos: literário, social, moral e religioso. Para dele termos uma visão exacta, será necessário abordá-lo sobre todos estes aspectos.


Moliére

No entanto, neste trabalho, dada a limitação do tempo, vamos observá-lo somente no seu aspecto linguístico, como refinamento de convívio social, segundo as regras da galanteria de salão. Vamos, pois, dar do preciosismo apenas uma representação parcial. Embora o preciosismo tenha aspectos positivos, sempre que se toma atitudes preciosas, corre-se o risco de cair no burlesco. E corre-se esse risco porque o burlesco é o precioso transformado por um certo sentimento do ridículo e por um certo receio de nele cair. Deste modo, a retórica do precioso torna em paródia toda a retórica do burlesco; e assim se desacredita a literatura preciosa. Molière parodiou o preciosismo. De Pure, ao pretender teorizá-lo, parodiou-o igualmente. Quanto a Somaize, ao elaborar os seus dois dicionários do preciosismo, toma atitudes confusas e contraditórias. Pretendendo estabelecer uma distinção entre as falsas preciosas e as verdadeiras, ora louva ora ridiculariza a sua linguagem. É que a arte de viver no séc. XVII testemunha de um desejo de traduzir a grandeza de espírito através da fala e do gesto. Cria-se então uma ética de exteriorização da virtude dos extremos, em que se procura confundir e conciliar o exagero com o grandioso e o belo. Não é a harmonia e o equilíbrio que se procura, como no Renascimento, mas o excesso em tudo, o apogeu, o culminar das capacidades humanas. A ética do séc. XVII francês, no meio letrado, insiste, antes de mais, na arte de bem parecer pela forma de dizer. A vida mundana, habitualmente tão brilhante em Paris, tinhase obscurecido por causa das guerras de religião e devido ao temperamento de Henri IV, que preferia a caça à convivência dos salões.

Após a sua morte, em 1610, a sociedade parisiense procura uma compensação, e é então que se dá às reuniões de salão um incremento tal que elas se tornam o centro de toda a vida social da época. Destes salões, o mais célebre foi sem dúvida o do Hotel de Rambouillet, frequentado por grandes personalidades, tais como Richelieu. Entre os muitos nomes do mundo das letras, que aí reuniam, citaremos Malherbe, Vaugelas, Corneille, me me M. de Sévigné et M. de La Fayette, esta última citada no Dictionnaire des Précieuses. Nessas reuniões, a principal intenção era divertir-se e passar o tempo de forma agradável. O jogo ocupava um lugar importante, mas também se discutia literatura, se poetava e, sobretudo, conversava-se. A conversação era, para o precioso, o seu passatempo privilegiado. Outro salão, que teve também um papel importantíssimo na formação do espírito precioso, foi o de Madeleine de Scudéry. Enquanto que no hotel de Rambouillet se reuniam os membros da aristocracia, neste se encontram, ao sábado, todos os burgueses ávidos de literatura, de poesia e de galanteria. Madeleine de Scudéry coligiu cuidadosamente a literatura que aí se produzia e com ela formou alguns volumes que publicou. É através dessa literatura que hoje podemos conhecer os seus gostos, bem como os princípios e leis que regiam o comportamento dos preciosos. Nas suas análises minuciosas do sentimento, a preciosa distingue doze categorias de suspiros; e, nas suas relações sociais, ela descobre nove tipos de estima. Segundo De Pure, a preciosa deve conhecer ao menos 12 maneiras de dizer que é bela. No seu romance Clélie, Madeleine de Scudéry traça o Mapa do Terno (la Carte de Tendre), onde são indicados os caminhos que levam à ternura e os riscos que se correm quando se toma a estrada errada. Vemos, pois, como tudo é programado e controlado. Os salões representam, dentro da cultura preciosa, o que representavam as cortes de amor, na sociedade cortês da Idade Média trovadoresca. Há muitas semelhanças entre estas duas sociedades, apesar dos quatro a cinco séculos que as separam. No romance Astrée, de Honoré d'Urfé, publicado em 1610, estão incluídas as famosas Tábuas das Leis de Amor (Tables des Lois d'Amour) que comportam doze mandamentos. Ora também o amor cortês medieval obedecia a regras, num total de 31, segundo André le Chapelain, que as compendiou na sua obra Arte de Amar. Nas cortes de amor medievais, as senhoras da alta nobreza ocupavam a sua vida discutindo sobre a observância dessas leis e pronunciando julgamentos. Nos salões parisienses do séc. XVII, a conversação,

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elevada à altura de uma arte delicada e requintada de galanteria, incidia sobre assuntos idênticos: o amor, como a arte do sentimento controlado e orientado, segundo as leis estabelecidas. Relacionado com ele se desenrolam os debates de tipo psicológico e social, sobre as relações entre a beleza e o amor, compatibilidade entre o dever e a paixão relativamente ao matrimónio, possibilidade de conciliar o coração e a razão, e outros temas do mesmo género. Aliás já eram neste género os problemas debatidos nas cortes de amor medievais: poderá alguém amar duas pessoas ao mesmo tempo? Será possível o amor no matrimónio? A mulher que se casou terá o direito de abandonar aquele a quem já amava? Na poesia provençal, as mulheres, e algumas vezes também os homens, não eram designados pelo seu nome próprio, mas por um termo convencional, que era o segnal. Na literatura preciosa também homens e mulheres se escondem por detrás de pseudónimos, na maioria antropónimos de origem grego-latina. Tanto nos salões do séc. XVII como nas cortes de amor medievais, a mulher era a diva que ditava a lei, como o suserano a seus vassalos. Neste ambiente se impunham aos apaixonados duras provas de perseverança, fazendo-os esperar durante anos a correspondência ao seu amor. Saber esperar era, tanto para o trovador provençal, como para o precioso, a grande virtude dos amantes. Quatro etapas se impunham ao desenrolar do processo amoroso provençal: fenhedor, precador, entendedor e drut. Primeiro, o apaixonado devia dissimular o seu amor. Era a fase do fenhedor ou fingidor, a que se seguia a da súplica (precador). Quando a dama achava que já era suficiente o tempo de espera, passava-se à fase do entendedor, ou seja, a da reciprocidade de sentimentos. Finalmente, e só quando a constância do amante, posta à prova, tinha dado garantias de autenticidade, entrava-se então na fase do drut, que era a da entrega plena. Da duração de cada uma destas etapas, nada sabemos. Conhecemos, todavia, alguns casos concretos, relativos ao preciosismo. Por exemplo, o da filha mais velha da marquesa de Rambouillet, que impôs ao seu futuro marido uma espera de quase 14 anos. Foi este o caso mais célebre na história do preciosismo. Apesar de, nas suas leis do amor, não estarem explicitadas as quatro etapas dos provençais, forçoso nos é concluir pela semelhança de rigor preciosista nas duas épocas. Para uns, como para os outros, o amor é uma recompensa que deve ser merecida por longas provas. O preciosismo pode, pois, ser considerado como uma das tendências do espírito francês, que aparece já na literatura medieval, em especial na lírica cortês provençal, como ética e como estética. Dos trovadores provençais passa a Petrarca e, com a

obra deste, se espalha pela Europa.

Segundo a actual teoria da comunicação, o preciosismo de linguagem poderá ser considerado como um ruído, pois o termo ruído se aplica a tudo aquilo que se opõe a uma percepção clara da mensagem. Afluxo vocabular, superabundância de informações secundárias, técnica do contorno através da perífrase, são de certo modo "ruídos", por se oporem à apreensão clara e directa da informação transmitida, isto é, estão a contrariar a função denotativa ou cognitiva da linguagem. A linguagem do preciosismo representa a fuga ao prosaico, ao corriqueiro, ao banal, ao habitual, pela singularização das formas do dizer. E esta singularização vem de uma organização complexa e complicada dos elementos frásicos. Na linguagem do preciosismo, a informação comunicada é constituída pela informação transmitida pela função cognitiva, a que se adicionou uma certa percentagem de informação, vinda da função emotiva e, em especial, aquela outra que provém de factores relativos à função poética. A função poética ou estética da linguagem é realizada por meio da selecção e da combinação dos elementos necessários à função denotativa ou cognitiva. A escolha dos vocábulos semanticamente aparentados, com base na equivalência ou na sinonimia, e o seu agenciamento segundo certas formas de construção que repousam na contiguidade, na similaridade ou dissimilaridade, simetria, antonímia, etc., fazem surgir uma gama de imagens de efeitos variados, pela riqueza das conotações. A forma do dizer preciosista caracteriza-se, como a literatura barroca, pela fuga à expressão singela e imediata, procurando uma polivalência significativa oposta a estruturas formais simples e claras. Por isso, o precioso não dirá "um carregador", mas sim “um mulo baptizado”. Falar não é comunicar por forma directa, mas surpreender pelo inédito e complexo das estruturas utilizadas. Falar bem consiste em banir tudo o que é simples e linear, substituindo-o por algo de multivalente e exuberante. O precioso não diz "sente-se, faz favor"; mas, em seu lugar, "satisfaça o desejo que esse assento tem de o abraçar" (Contentez, s'il vous plaît, l'envie que ce siège a de vous embrasser). O significado directo e linear deu lugar a uma expressão complexa, possuidora de multivalência significativa. Urna bengala é uma “filha da moda e da galanteria"; um chapéu, o “afrontador do tempo”; um leque, “um zéfiro”. É um comportamento que busca suscitar a surpresa e o maravilhamento, rasgo que caracteriza lapidarmente o barroco e a que podemos chamar ludismo luxuriante e oco.


O comportamento preciosista traduz uma aspiração de novo e de superior, através de uma linguagem fulgurante. Não é a lógica e a razão que está em causa, mas o desejo de plasmar um mundo novo, de esplendor e maravilha, capaz de despertar a maior admiração. A expressão tende para o misterioso, procurando transfigurar fantasticamente o prosaico e o banal na vida do dia a dia. Falar é dar provas de agudeza de engenho, e a palavra é o fruto de um espírito rebuscadamente sublime. Não se trata propriamente da construção de metáforas conceituosas, como as da poesia barroca, mas antes de encontrar uma linguagem artificiosa e deslumbrante. Também a propósito de hermetismo de linguagem poderemos estabelecer uma relação com a poesia medieval da Provença. No apogeu da lírica provençal, os trovadores procuram a originalidade em formas de trovar que ficaram conhecidas pelas designações de trobar ric e trobar clus. O trobar ric opõe-se ao trobar plan e diz respeito à forma de expressão que se caracteriza pelo virtuosismo da versificação, num requinte de rimas variadas e raras. A sua invenção deve-se a Raimbaut de Orange, para quem o mais complicado é o que mais vale; e o que mais esforço exige é o mais perfeito. Trovar bem é, antes de mais, encontrar palavras raras, rimas difíceis e estranhas sonoridades. Para os adeptos do trobar ric, fazer poesia não consiste em trazer ideias novas, mas sim em dar às antigas uma forma inédita ou rara. O trovador é o artesão que talha, cisela, lima e entrelaça palavras. Quanto ao trobar clus, ele responde igualmente a uma procura do complicado. Não relativamente à estética, mas à mensagem; isto é, o sentido da canção deve ser hermético, opaco, de difícil compreensão. O trobar clus opõe-se ao trobar leu (leve, ligeiro), aquele que é claro e transparente, que não exige o esforço de atenção do ouvinte, nem excita a sua sagacidade. Raimbaud de Orange foi não só um corifeu do trobar ric como também o de maior reputação na arte do trobar clus, destinada a uma pequena elite de espíritos argutos. O trobar ric está para o trobar clus como o culteranismo para o conceptismo. Enquanto que o trobar ric se preocupa com requintes formais, na busca de refinamentos estilísticos, o trobar clus, interessado em complexidades e subtilezas de pensamentos, manifesta predilecção pelo equívoco. Também na frase preciosa, a forma recusa abolir-se na significação; nela o agenciamento da mensagem é feito segundo um modo de invenção linguística que põe à prova as potencialidades da língua e a sagacidade do receptor. Por exemplo: Ter muito espírito: o precioso dirá ter 10.000 libras de renda em fundos de espírito de que nenhum credor

poderá apoderar-se. Corresponder a um cumprimento: dar da sua seriedade na doçura de elogio do outro. Soprar o fogo: excitar o elemento combustível. Cheirar: prender um pouco a reflexão do odorato. É uma arte de complicação, que prefere a perífrase ao vocábulo e o vago ao preciso. Conversar era, pois, exercitar o espírito em complicados malabarismos verbais e em acrobacias semânticas. A fim de estabelecer a compreensão entre emissor e receptor, publicou Baudeau de Somaize, em 1660, o Dictionnaire des Précieuses, ou la clef de la langue des ruelles; e, um ano mais tarde, o Grand Dictionnaire Historique des Précieuses (historique, poétique, géographique, chronologique et armoirique). Trata-se de uma obra indispensável à compreensão do movimento preciosista, sobretudo no que diz respeito à linguagem, no que ela tem de novo e original. É que o estilo precioso corresponde a um esforço incessante do emissor em busca de originalidade, não para traduzir de forma adequada os seus pensamentos, mas para alcançar o diferente. Pela recusa do banal usual e realizando uma selecção minuciosa e cuidada dos signos expressivos, ele chega à forma rara, capaz de surpreender. Da norma, ele respeitará apenas o plano sonoro, realizando as suas inovações nos planos lexical e sintáctico. Rejeita vocábulos, rejeita expressões, para, em seu lugar, colocar outras mais ricas em valor expressivo e conteúdo emocional, convencido de que, por meio destes artifícios, o seu discurso se valoriza estilisticamente. Vejamos algumas dessas expressões, registadas no Dictionnaire des Précieuses: Espelho: o conselheiro das graças Copo de água: um banho interior Eco: invisível solitário Janela: a porta do dia Ciúme: mar de desconfianças Cama: o império de Morfeu Música: o paraíso dos ouvidos Ao contrário dos oradores clássicos, que procuravam, através de uma eloquência vibrante, persuadir e convencer o auditório, o precioso procura, com o seu estilo floreado, e a sua maneira de dar forma a um enunciado, que foge ao automático da linguagem, provocar uma impressão de deslumbramento no ouvinte. Vejamos agora o que se passou no nosso país. Em Portugal não tivemos uma época preciosista no género da de França. No entanto, na Fenix Renascida, encontra-se uma linguagem que é profundamente preciosa.

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Segismundo Spina, na sua obra sobre a poesia barroca em Portugal, fez o levantamento de expressões muito do tipo daquelas criadas pelo preciosismo francês. Os poetas seiscentistas portugueses, de tendência aristocrática, têm o propósito de surpreender o leitor pelo imprevisto. E procuram seduzir pelo dinamismo e conotação sensorial que imprimem as metáforas do tipo de: calçar o vento, vestir luz, pascer estrelas, pisar crepúsculos, pentear o cristal, beber luzes. O conteúdo espiritual das palavras, transferido para outro reino da natureza que não o seu próprio, consegue deliciar os sentidos, pelos sons, formas e movimento que poderá sugerir. Neste processo de transferência, o poeta português cria expressões arrojadas, tais como ceroulas espirituais, que correm mesmo o risco de provocar o riso pelo que têm de chocante. Relativamente a neologismos, manifestam uma predilecção muito acentuada pela criação vocabular, do mesmo modo que os preciosos. Se o francês se revela artificioso ao criar o verbo "deslabirintizar", com o significado de pentear, não menos o é o poeta português, ao criar "epistolizar" para significar escrever em forma de epístola. Também os poetas da Fénix Renascida nos fazem lembrar o trobar clus dos provençais, ao produzirem abusos semânticos que conduzem frequentemente à obscuridade, como por exemplo, “amoroso medo convocado”. A metáfora era a figura predilecta dos poetas seiscentistas portugueses, que as construíam com ousadia, pela descoberta de analogias inesperadas e associações mentais quase impossíveis. Por exemplo: "músicos volantes" para significar “pássaros cantores", ou ainda: jardim de plumas -- uma esquadra cristal desatado -- as lágrimas pés de lenho -- os remos cometa emplumado -- o cavalo A agilidade de imaginação desses poetas leva-os a comparações arrojadas e a metáforas de uma ousadia inaudita. No que diz respeito ao corpo humano, o precioso francês recusava-se a empregar o termo próprio, substituindoo por expressões às vezes cómicas ou ridículas: Dentes: o mobiliário da boca (l' ameublement de la bouche). Faces: os tronos do pudor (les trônes de la pudeur). Unha: o prazer inocente da carne (le plaisir innocent de la chair). Seios: as almofadinhas de amor (les coussinets d'amour).

pés: os queridos sofredores (les chers souffrants). Mãos: as belas moventes (les belles mouvantes). Nariz: a porta do cérebro (la porte du cerveau). Orelhas: as portas do entendimento (les portes de l' entendement). Não lhe são, porém, inferiores os poetas portugueses, ao designarem o nariz por "península de marfim" e as orelhas por “rosquilhas de alfenim". O cultismo é um preciosismo linguístico, cuja técnica consiste na utilização de frases retorcidas, complicadas, ricas de erudição e surpreendentes pelo recurso ao neologismo. Um verso como "Cobre suas flores condensada neve" exige um certo esforço para se chegar à conclusão de que o que o poeta quer dizer é que "correm-lhe pelas faces lágrimas copiosas". Como o precioso, o poeta cultista e conceptista evita nomear a realidade, preferindo apenas sugeri-la, através de uma série de imagens dinâmicas, sonoras ou cromáticas, capazes de embalarem os sentidos. O leitor quase se perde numa floresta de jogos semânticos, que põem à prova a sua capacidade de decifração linguística, tal como sucede ao ler-se alguns textos preciosistas. Do ponto de vista tanto cronológico como estilístico, o preciosismo situa-se entre o maneirismo e o barroco. Após o Renascimento, o universo deixou de ser concebido como harmonia e ordem, uma vez que a razão humana já não era uma participação na Razão Eterna. O mundo tornou-se então caótico, labiríntico e desprovido de coerência, e é assim que o exprimem poetas, dramaturgos e pintores maneiristas. Na vida social domina a ambição e o desconcerto. Há uma crise espiritual, religiosa e ética, cujo sintoma é a melancolia exasperada, a instabilidade afectiva, o que leva a reacções de desespero e revolta, misturadas de sarcasmo. Daí um certo gosto pela excentricidade, pelo monstruoso e pelo grotesco. Do mesmo modo que o maneirismo representa uma profunda reacção anticlássica (contra os ideais de harmonia e ordem, serenidade e gravidade, gosto da beleza regular e da sobriedade nos meios de expressão), o preciosismo representa uma reacção contra a normatividade, o equilíbrio, o sentido de proporção e a sobriedade formal. Um estilo epocal não desaparece subitamente, tal como não surgiu também sem uma relação com aquele que o precedeu; nele fez a sua gestação e nele permanece por algum tempo imbricado, até que uma situação favorável lhe tenha permitido tornar-se predominante. Daqui o aceitarmos que o preciosismo, na sua época, seja uma forma francesa do maneirismo que vinha predominando na Itália, na Espanha e em Portugal. E que


possa ser considerado como um aspecto particular do barroquismo. O preciosismo não irrompe, pois, inopinadamente e não se caracteriza pelo domínio absoluto, exclusivista, do gosto pelo surpreendente, no âmbito cronológico que lhe é próprio. A Europa, no séc. XVII, não apresenta unidade intelectual, moral ou social, e é difícil traçar limites cronológicos relativamente ao maneirismo e ao barroco. Sobretudo no que diz respeito à França, onde o preciosismo e o barroco coexistem com o classicismo. Parece-nos oportuno referir aqui o debate entre o ser e o parecer, que se situa precisamente no coração do séc. XVII e que tem um elo de ligação com o comportamento preciosista. Segundo La Rochefoucauld, frequentador assíduo do Hotel de Rambouillet, todo o homem traz dentro de si, invisível aos seus próprios olhos, um comediante em perpétuo movimento, um Proteu com quem se confunde: "Chacun affecte une mine et un extérieur pour paraître ce qu'il veut qu'on le croit. Ainsi on peut dire que le monde n'est composé que de mines". Daí um outro problema: Se o homem vive mascarado, se ele é sucessividade, como pode conhecer-se? Como poderá distinguir entre ser e parecer? É uma questão que fascina os dramaturgos e oprime os moralistas. La Rochefoucauld afirma que a honestidade é apenas a arte de parecer honesto. A 1ª metade do séc. XVII é, no teatro, uma época de portadores de máscaras, de heróis de ostentação, a vários níveis, atingindo a grandeza com Corneille. E, com Molière, passa-se ao desmascarar da hipocrisia do impostor. Molière manifesta a sua hostilidade contra esta forma de ostentação e de moral decorativa, confundindo a hipocrisia e pondo a nu o fundo autêntico do ser humano. Duas leis imperam na obra de Corneille, o grande dramaturgo da época preciosista: a lei da ostentação e a lei da dissimulação, que marcam a oposição entre o ser e o parecer, entre um dentro e um fora. É a apologia do exterior, pela ostentação dos sentimentos, verdadeiros ou falsos: um eu de exibição, uma alma espectacular. As personagens de Corneille gostam de projectar-se pela sua linguagem exaltada, exibindo os seus sentimentos como se se tratasse de um estandarte agitado aos ventos. Personagem de ostentação, o herói corneliano estima acima de tudo as aparências, como forma de exprimir a grandeza. Há nele uma preferência muito marcada pelo decorativo; e as virtudes aparentes são mais exaltadas que as virtudes interiores. O parecer. Nos nossos dias podemos mesmo aperceber-nos da intrusão do preciosismo num certo tipo de discurso crítico, e

até na linguagem técnica e científica. Há uns 15 anos, um jornal brasileiro publicava um artigo, parodiando este tipo de linguagem empolada e vazia, destinada a encantar auditórios. E escrevia: "A utilização de uma linguagem complicada facilita o respeito pelo orador e confere, também, fama de cultura ao que a utiliza. Para facilitar a tarefa aos que desejem seguir tal caminho, o Instituto de Análise Económica e Social adaptou um curioso sistema inventado há anos pelo norte-americano Ph. Broughton." Seguem-se três colunas, cada uma com 10 palavras capazes de produzir um forte impacto. Na 1ª coluna só há substantivos, tais como Programação, Dinâmica, Estratégia, Planificação, Instrumentalidade, etc. A 2ª e 3ª colunas são formadas só por adjectivos: Operacional, Dimensional, Estrutural, Sistemática, Balanceada, etc. O método de utilização consiste em escolher um substantivo e fazê-lo seguir de dois adjectivos. Assim se obtêm sequências como "Planificação Operacional Coordenada" ou "Instrumentalidade Funcional Equilibrada". E o articulista conclui: "Qualquer destas expressões se pode incluir em qualquer informação e será considerada como indiscutível prova de "autoridade". Segundo o inventor do sistema, ninguém compreenderá o que o orador disse, mas – e isto é o verdadeiramente importante – ninguém estará disposto a confessá-lo". Trata-se de uma reactualização da linguagem preciosa, no campo científico, para-científico ou pseudo-científico. O que nos mostra que a linguagem preciosista é não só de todas as épocas, como também se pode encontrar em todos os domínios do saber humano. Os estilos, como os períodos literários, não surgem independentes das características das épocas que os precederam. Aquilo que os caracteriza podia vir já a manifestar-se anteriormente, de modo disperso, tal como podem vir a manifestar-se posteriormente à dissolução daquela constelação de valores que os havia distinguido. Sob forma de resíduo, todo o estilo ultrapassado pode reintegrarse e revivescer num novo estilo, de forma diferente na medida em que, sendo condicionado por factores socioculturais, também estes são então diferentes.

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Resumindo e concluindo:

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A linguagem preciosa repousa, em suma, sobre a problemática do ser e do parecer. É o admirável que se procura alcançar e, para o atingir, lança-se mão da aparência social significante. Mais que ser, interessa parecer superior, nobre no gesto, distinto na palavra, edificante pela exteriorização de um espírito fino e raro. A superioridade social traduz-se pela originalidade do discurso. A palavra é campo de competição, porque no preciosismo tudo passa pela linguagem. Podemos concluir também que o estilo preciosista se manifesta em vários graus e níveis, e em várias épocas, diferenciando-se pela origem sociocultural daqueles que o utilizam, sua educação e formação estética, seu maior ou menor desejo de deslumbrar o ouvinte. E em épocas históricas de crise, marcadas por céleres transformações ideológicas, políticas, sociais ou económicas, que assustam o indivíduo pela instabilidade em que se sente, este procura a sua identificação pelo uso de um estilo pessoal rebuscado, capaz de o evidenciar. A linguagem preciosista é afinal a materialização de uma ideologia no significante, ou seja a constituição do sujeito na e pela linguagem. O precioso projecta o seu inconsciente e inscreve a sua ideologia na forma como constrói o seu discurso. Vou terminar a minha exposição. Segundo um estilo preciosista, competir-me-ia fazer agora um apelo àqueles que têm estado a escutar-me, aos quais me dirigiria com expressões no género de “dilectos ouvintes” ou “eminentíssimo e meritíssimo auditório”. Na procura do diáfano e do patético surpreendente, deveria tentar empregar vocábulos como etéreo ou pétreo, gázeo ou áureo, a que associaria algumas figuras de retórica, com sobrecarga de ornamentos, capazes de deslumbrar. No entanto, optando por um estilo directo e claro, eu direi muito simplesmente: Terminei. Muito obrigada pela vossa atenção.

Corneille


Escadas para o Céu *Paulo Neves

Um dia, ao percorrer uma floresta, reparei que a maior parte das árvores eram aprumadas. No meio delas, porém, observei árvores tortas, árvores com vida difícil. No entanto, senti que todas aquelas árvores tortas lutavam e estavam vivas, para tentarem chegar ao mesmo a que as outras chegavam. Excepto uma, essa estava tombada no chão. Relacionei a floresta com os homens e senti que, para alguns, era dificil alcançar o céu. Foi quando pensei usar a árvore caída para fazer uma escada, para tentar também eu alcançar o céu. A escultura intitulada “Escadas para o Céu" é executada em bronze e tem como medidas aproximadas 360 x 60 x 50.

*Escultor

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Poesia

All Blues (Miles Davies) Correm as águas dos rios, corre lume nas pontes da América. Sem mesmo dizer adeus, a mulher em cuja pele as estrelas se reflectem zarpou, levando com ela o meu carro cor de pérola. E às mãos do vento, não às minhas, oferece a negra carapinha. Correm as águas dos rios, corre lume nas pontes da América. E o vento a eleva do asfalto e a conduz pela noite atónita, no meu carro cor de pérola, no meu carro cor de pérola…

* João Pedro Mésseder

* João Mésseder nasceu em 1957, no Porto, onde completou os seus estudos universitários e exerce a docência. Publicou seis livros de poesia (os últimos intitulam-se Abrasivas e Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética), catorze títulos na área da literatura para a infância e uma antologia da poesia de Carlos de Oliveira. Três dos seus livros foram premiados.......................................


No Tempo e no Espaço | O Vidro (1) *Jorge António Marques

Já em miúdo me perdia pelas piscícolas ou agras da praia, onde a fábrica Campos se instalara e onde, também, cinco barracões, destinados ao pano e papel velho e aos armazéns do rei da lenha, eram referenciados como tendo sido, ali, a fábrica de vidro, em Aveiro. E abordavam – os entendidos, claro é – o fabrico do vidro e até certas peripécias com a citada fábrica. Feitiços, mau-olhado, tudo nos reflexos da produção! Mas o vidro tem a sua bela história, motivou lendas e é, indubitavelmente, motivo de apreço, e a bruxaria faz parte do sortilégio do próprio vidro. A lenda, contada por Plínio, o Moço, o qual atribui a descoberta do produto pelos fenícios, poderá não ser somente lenda. Damour, o vulto da “verrerie”, comunga com o pensamento de Plínio, o Moço, e vai mesmo àquela convicção de que o tubo da sopragem do vidro se deve aos fenícios, exímios em tudo ou quase tudo. 2000 A.C., a arte de sopro seria uso corrente. A capacidade pulmonar do vidreiro permitia, pelo sopro, figuras e efeitos.

*Historiador - Investigador

E uma opinião tem companhias. Kisa – mas, este, entre os anos 200 ou 300 A.C. – dá como certa a arte da sopragem. Seguro se torna, porém, que é pelos anos de 1551 e 1527 A.C. que se encontrou, no Egipto místico, uma peça em vidro. O Egipto deve a arte do vidro – segundo os remotos especialistas – a Hamurabi que, na sua peregrinação por terras, na recolha de hábitos, ele, um semita, pelos anos de 2117 a 2094, e no comando, a seu tempo, da invasão ao terreno faraónico, consegue a fixação semítica, naquele território. Jovini – in “Il Vetro” – coloca Plínio, o Moço, na sua razão, quando o imberbe moço escreveu – “Fama est...”. Mas creia-se no rigor das contradições. O vidro tornou-se dinástico. Segundo C. J. Philips há um primeiro período; que vai até à XVIII dinastia egípcia. Aqui, tem o vidro inúmeras utilizações e funções. O segundo período, surge, no começo da era e, então, o vidro toma o aspecto incolor e transparente. O império romano, na sua decadência, tem, no entanto, os dois pólos bem assentes no prodígio e anseio pela arte vidreira que são Roma e Veneza. E se Alexandre Severo – o apelido o qualifica – tornou a indústria do vidro, em Roma, uma fonte de receita abusiva, outros souberam, pelo tacto político, na obediência de princípios, altamente recomendáveis, captar mercados, suprimindo impostos. Terá, de certos procedimentos, surgido o chamado

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porto franco, tão em voga, nos dias actuais. E Constantino, o imenso, deu à indústria do vidro o lugar de realce a que teve jus. Soube, este Constantino, encarar o luxo e a utilidade do vidro. Os vidros ou vidraça, talhada para as janelas, tem o seu aparecimento, nos fins do primeiro século da era cristã. A incineração dos cadáveres – carne imprópria – passa a ter o recipiente, em vidro, já que, as famílias, pelo incolor do produto, podiam admirar o que fora um elemento válido, bom ou mau, no seu comportamento, em sociedade. Oh! Os vidreiros do início da era cristã foram as almas gratas aos antepassados e pouco lhes importou que o aparecimento do vidro tivesse sido fruto do acaso. As gerações actuais devem, a Fleming, a casualidade da penicilina. E porque um fungo, em determinada janela, surge morto, por um mero bolor. Mas, cuidado! Há muito que os antigos, pelo apodrecimento dos limões ou tudo o que motivasse bolor, dele faziam aplicações milagrosamente curadoras! Plínio, o Moço, – um investigador da sua época – encontra, em teatro e seu anfiteatro, os indícios da vaidade, pelo luxo, de resquícios do vidro. Damour, outro calcorreador dos trajectos do vidro, cita Pompeia, após a desgraça da lava, da lama, encontra, também vestígios que, anos mais tarde, foram notados em SaintGobain. A queda do império romano traz – inevitavelmente – o florescer da arte vidreira, pelo império bizantino. A arte atraiu, a arte chamou, mais pelo coração do que pela necessidade económica, os homens que se inspiraram, no vidro, para os célebres vitrais – caso concreto dos vitrais de Santa Sofia, bem acolitados pelo imperador Justiniano. A catedral de Reims, de igual forma, leva os homens destinados aos vitrais e é a França quem – de alguma forma – faz expandir esta arte tão maravilhosa. Ocorre-me, em viagem a França, ter feito uma pausa para apreciar, no país basco, os célebres vitrais das suas maravilhosas igrejas. Não esqueço Toledo, na sua fantástica catedral, dos magníficos vitrais que, ali, se fixam, a quem Blasco Ibañez, de forma ímpar, se refere – ele, Blasco, que não foi só o correspondente de guerra, no primeiro conflito mundial, ao serviço da “Reuter”. Assim, pois, a primeira idade áurea do vidro, sediada em Roma, veio a ter Venécia – a Veneza dos Dodges – como a capital do segundo período cristão, da mesma idade áurea. Há quem afirme – pelo menos deixou escrito – que

Venécia teve a supremacia da arte vidreira, durante a Idade Média. Devo, aqui, referir que a decadência de Roma permitiu o enriquecimento dos mestres vidreiros, que se fixaram em Venécia. A arte do vidro tem muitos e seguros segredos. Os malabaristas predestinados tiram da cartola os truques e são mestres na arte, bela, mas não fácil. As exigências, através dos tempos, pelo consumo do vidro, motivam novos processos de fabrico e é, por via do facto, que o primeiro invento mecânico, destinado a garrafas, em 1880, permite ao inglês Ashley a tentativa do êxito que foi, afinal, um fracasso. Boucher – este, francês – e, na pegada do inglês, constrói uma máquina semi-automática, para idêntico efeito. O norte-americano Owens, em 1890 e ainda com destino à garrafa, obtém sucesso, com máquina, por aspiração, para a massa vítrea. E o automatismo das máquinas haveria de surgir para o fabrico, em série, das garrafas, pelo génio de Lynch. Entra-se, de forma muito aberta, na produção da chapa de vidro – vidro plano – na aliança aos métodos e conceitos de Libley e Owens. O português – muito conceituado, no ramo – Carlos Horácio dos Santos Gallo, estabelece elementos subsidiários ao aperfeiçoamento dos mecanismos que haveriam de permitir como que uma perfeição, no fabrico da mencionada chapa de vidro. Os americanos – faltos de inteligência e tino, para esta pesquisa, possuíam o dinheiro, que compraria o valor do indígena estranho. Damour – sempre aquele Damour, acólito, apologista dos americanos – escreveu: “Os Estados Unidos da América do Norte, após terem sido tributários da Europa, passam a ser o país mais avançado no sistema do fabrico mecânico das espécies vidreiras”. Mas este Damour não contemplou o génio criador e criativo de outras mentalidades, de outras inteligências!

Portugal e a arte vidreira

São contraditórias as datas do conhecimento do vidro, em Portugal. Sabe-se que o Distrito de Aveiro tem pioneiros e, no seu território, se implantaram os primeiros fornos do vidro. É certo, seguríssimo mesmo, que os vestígios


encontrados, em necrópoles, – romanas ou luso-romanas – não habilitam à concretização de épocas. A ocupação foi um facto e, desde sempre, o preço da dúvida não seria benéfico. Santo Isidoro, nas “Etimologias” que escreveu, aborda o fabrico do vidro, na Ibéria, já pelos anos do século VI. Vasco Valente – um temático e arguto homem sobre o vidro – pode ser contestado. E não é, ainda, o momento de analisar contradições sobre épocas do vidro, em Portugal. Deslumbraram-se espíritos que vagueiam, pelo espaço, na mera convicção de que são os senhores conhecedores do assunto – únicos – e, como a capital lisboeta teve uma certa era –, logo, ali, no litoral, esse pobre e triste depenado litoral, sem o fulcro das matas, foi o berço do nascimento do vidro neste território lusitano. Mas ignoram – poucos mentores, é certo – é que Aveiro possuiu o maior campo da erva ou soda selvagem – a maçacote – e, para além dela, a areia ou caulium, como um imperativo. Vasco Martins – homem da época de D. Afonso V, vidreiro consagrado – teve a coragem de solicitar ao monarca a proibição de estrangeiros aportarem a Portugal para a colheita da “maçacote”. E, aqui, se encontram as tais contradições a que me referi. Portugal possuía, muito antes dos anos 1500, consagrados nomes e mestres na arte do vidro. Afonso V – nas poucas ideias aceitáveis do seu medíocre espírito – e ele, pobre de Cristo, mais não foi que o autor da assinatura de decretos, deu total valimento ao pedido de Vasco Martins e é, por isto mesmo, que se pode considerar, como certa, uma data quanto à existência do vidro no nosso reino. Importa, porém, referir que não é bem assim, como direi. Mas já que abordei nomes mui consagrados, na arte do vidro, em Portugal, refiro: João Rodrigues Vadilho, João Afonso, Afonso Anes, Ambrósio, Afonso Fernandes, um tal Mafamude, de origem moirama e que se fixara na então freguesia de Gaia – que, hoje, mantém, como freguesia urbana – aquele étimo; o tal Vasco Martins, Diogo Dias, Afonso Pires, e Fernando Anes.

Oliveira de Azeméis

considerado o génio do vidro, na então terra do Covo – (Vila Chã de São Roque) Oliveira de Azeméis.

Um Prólogo Não me debruço no contexto económico da indústria do vidro, mormente no Covo. Reporto-me à sua fabricação, enfim, como tudo se processa. Planos económicos e resultados demográficos, na base do próprio fabrico do vidro. Diz-se que o vidro é um líquido solidificado, face a viscosidade, durante o seu arrefecimento. Na obediência química, o vidro é um composto de óxidos orgânicos, não voláteis, isto é, que não se espraiam pelo espaço aéreo, quando levados à sua fusão, pelas altas temperaturas. E da mistura da sua massa constam, rigorosamente, três óxidos ácidos, quais sejam: SiO – NO – P O , a quem 2 3 2 5 chamam formadores ou vitrificantes. Facilmente se apresentam no estado vitroso, como sofrem, por vezes, a adição de elementos que lhe permitem não só a resistência como a definida qualidade..........................

O Covo Diogo Fernandes Este homem foi o homem compreendido por D. João III e o certo é que, por sua provisão régia de 1484, fixa um privilégio de excepção a favor daquele vidreiro, o homem,

Abordo o Covo como elemento importante para o desenvolvimento da indústria vidreira, no reino de Portugal e no norte deste mesmo reino. É ele – o Covo – o berço da indústria vidreira em Portugal e o primeiro a sediar-se ao norte do nosso rio Tejo.

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Esse belo rio não é, infelizmente, inteiramente português e não sei o destino que o futuro lhe reserva. Não há elementos, do tempo muito coevo, que permitam fazer a verdadeira história da forma como tudo isto começou. Acontece, porém, que o padre Pereira da Costa, ainda hoje muito lembrado por terras de Oliveira de Azeméis – antes se dizia – Azemil – e que era o abade de S. Roque (mais tarde Vila Chã de São Roque), deixou escrito que teve, por felicidade e mera casualidade, o feliz momento de encontrar vasta documentação, muito interessante, sobre a fábrica de vidro do Covo – prosseguimento da indústria vidreira no país, mormente, em Oliveira de Azeméis. Falo e escrevo, sobre Oliveira de Azeméis, com carinho muito natural que senti por ali, nos meus verdes anos e que limitei ao sonho lindo. Mas isto são contos do próprio destino e o vidro nada tem a ver com tal. O Covo não foi, rigorosamente, parte parcelar de Oliveira de Azeméis. Em época remota, era pertença do Condado da Feira, onde pontificava o senhorio mandão D. Manuel Pereira. Eu conheço muito bem o Covo e estudei a sua linda história. Lamento, eu, é que a ignorância crassa dos ditos titulares de qualquer coisa – tenham queimado documentos importantíssimos, autênticos autos de fé – que permitiriam o estudo, profundo, de uma indústria como foi, no arrojo e capacidade de uma época, de uma família que, de forma fidalga, ali prosperou. O Covo foi um sítio ermo, inculto, tendo como manto a vegetação, farta e verdejante, tal qual outros coutos, no exemplo das Ribas Altas da Ermida, onde se refugiou o bispo capicua – Manuel Mora Manuel. O Covo, tendo como berço um longo e muito cingido vale, é o píncaro de um outeiro.

Fala a lenda que um tal galego – Pedro Fernandes Moreno – que terá falecido pelo ano de 1545 – era mestre vidreiro e que ingressara em Portugal, onde casa, em primeiras núpcias, com Dona Baralides, irmã do pregador régio e de Baltazar Olmedo, capelão-mor do rei. Deste matrimónio houve geração: – Dona Ignez Olmedo – Dona Catherina Olmedo – Anna de Olmedo – Tareja de Olmedo e Jerónima de Olmedo. Dada a morte de Baralides – natural de Almeirim – facto que terá ocorrido pelos anos de 1520, o Moreno deslocase, para o norte do reino de Portugal. Homem hábil, dinâmico – timbre dos galegos – cedo se apercebe que as imensas matas que formam o couto do

Covo – território, ao tempo, dos condes da Feira – mormente de D. Manuel Pereira – lhe seriam muito proveitosas para o alimento de um seu sonho. O Moreno não ignorava que entre a Galiza e o Norte do rio Tejo era consabida a inexistência de qualquer fábrica ou fabriqueta de vidro. E é, desta forma, na certeza da ausência de instalações do género, tão perto do Porto, com barra e rio, com intenso movimento, ponto comercial, por excelência, que o “mago” iria construir e no Covo fixar-se, com os seus fornos do vidro. Consta, da tal lenda, que, viúvo, não passava sem mulher. Conhece, pois, prendada dama – Dona Violante Fernandes – irmã de Gaspar Fernandes, este, cavaleiro de el-rei e, já então, mãe de Estevão de Sousa, a qual, vivendo no Porto, do Moreno se enamora e casa. Pelo segundo matrimónio, nas relações com a régia pessoa, não foi difícil, ao Moreno, conseguir os seus fins. A lenda, essa, com laivos de verdade ou mera suspeição, foi dizendo que este Moreno era um foragido à Justiça de Castela e se chamava Pero de Almeida. Colocada ao rei a questão dos seus desígnios, recebe da pessoa régia permissão e assim inicia as suas viagens já com autorização de usar mula ou faca “de sella e freo” ainda que “nam seja de marca e não tenha” – ele, o Moreno – “cavalo”. D. João III, a 28 de Abril de 1533, dá-lhe plenos poderes para se tornar um homem célebre. Foragido ou não, importava era dar ao reino um grande impulso, no ramo do vidro. O Moreno, bem fornecido de segunda mulher, com pitoresco local, na abundância de lenha e água, jamais pensou em prosseguir para além do Covo. Mas não descura, aquele Moreno, a forte necessidade de se amparar aos donos do Covo – o tal D. Manuel Pereira, conde da Feira e de sua mulher, Dona Francisca Henriques. Toma, porém, aquele Moreno, o encargo de “não poder dar, doar, vender, trocar, escambar nem alhear a mata ou qualquer outro uso dela fazer, ou parte dela, sem dar conhecimento aos directos senhorios e deles obter licença, cumprindo sempre, neste caso, o costumado domínio ou laudémio.” De resto, a mata tem a aplicação, na finalidade acordada, como fateusim perpétuo. Foi importante para o Covo esta decisão. Terra inculta, abandonada – e, por isso, local de focos mortos – passa à extraordinária utilidade que se lhe veio a reconhecer. Aquele Moreno, já então, com toda a prosápia e circunstância – senhor cavaleiro de el-rei – é tido como o


a todas as minhas justiças hofficiaes pessoas outras a que este for mostrado e o conhecimento dele pertemcer que semdo requeridos por o dito Pero Moreno ho mamdem noteficar e se despois de notificado se algua pesoa asemtar alguu forno do dito vidro façam emxucaçam per a dita penna e em tudo lhe cumpra este meu alvara como se nele contem por que eu pelos ditos respeitos e outros justos ho ey bem e meu serviço. – Fernam da Costa o fez em Almeirim a XXXI dias do mes de Março de J de XXbiij. E esto me praz asy nam perjudicando alguu concelhos em suas lenhas ou outra cousa que recebam dano.../...”.

Côvo

verdadeiro cavalheiro do Covo. É imperativo que se transcreva, na obediência ao completo texto e à própria ortografia, a carta de D. Afonso III, como privilégio ao Moreno: – Torre do Tombo – Chancelaria de D. João III – Livro XIV – Folhas 107 v.º – in Sousa Viterbo: – Artes industriais e indústria portuguesa – Lisboa 1903 – in Vasco Valente: – O vidro em Portugal – Porto 1950 – pag. 110. “Dom Joham &. A quantos esta minha carta virem faço saber que Pero Moreno castelhano me apresentou húu meu alvará de que ho trelado hé o seguinte: – Eu el-rey faço saber a quantos este meu alvará virem que a my enviou dizer Pero Moreno castelhano que ele tem asemtado neste Reyno além da cidade de Coimbra húu forno de vidro e que ele se queria vir asemtar neste Reyno para mylhor me poder servir e que per quanto o nom podia fazer sem muita despesa a qual se poderia perder se outra pessoa asemtase o forno que pera se vir asemtar e estar seguro de se nam poder perder me pedia mandase que des a vila de Coruche até ao reyno da Galiza nam podesse aver nem asemtar outro forno de vidro. E visto seu requerimento, avendo respeito ao sobre dito e asy aos serviços que tem feito e fará em estar dasemto com o dito forno nestes meus reynos e estamdo dasemto neles nenhuma pesoa de qual quer comdiçam e calidade que seja nam asemte nem tenha nenhu forno de vidro des a dita vila de Coruche até o estremo de Galiza nem ao traves pera hua parte e outra em quanto o dito Pedro Moreno tever o dito forno e lavrar com ele como dito hé. E posto que o dito forno nam lavre húu anno ate dous se ele dito Pero Moreno tever vidros pera vemder em abastamça que tenha feitos no dito forno e nam em outro todavia se cumprira este alvara e se guardara soo penna de qual quer que ho comtrai o fizer pagar pera o dito Pedro Moreno duzentos cruzados. Porem mando

Pedro Moreno faleceu, em Almeirim, no ano de 1545, ignorando, eu, o dia e mês. Mas, pelo documento de partilhas – longo documento – sabe-se que a morte terá ocorrido entre Outubro e Dezembro daquele ano. Estabelecidas essas partilhas e outras formalidades, no Covo se fixou a única filha do matrimónio de Pero Moreno com Dona Violante – de seu nome Dona Antónia Fernandes de Almeida. Os livros paroquiais de Vila Chã de S. Roque – onde o Covo se inseria – não referem a data do nascimento da Dona Antónia. Sabe-se, porém, que ali faleceu, aos 13 dias de Outubro de 1599. Dona Antónia havia casado com Fernão de Magalhães Teixeira de Meneses, filho de António Magalhães de Meneses e de sua mulher – Dona Genoveva Teixeira – senhores da Quinta de Subdevezas, no concelho de Ponte da Barca. Fernão de Magalhães faleceu, na sua Quinta do Covo, no dia 6 de Abril de 1592, deixando geração. Fernão de Magalhães, do seu matrimónio com Dona Antónia, deixou geração da qual destaco, tão somente, a Dona Antónia de Menezes, nascida em 1578, e que teve dois matrimónios. O seu primeiro casamento ocorreu, em Vila Chã de São Roque, no dia 8 de Novembro de 1633, como se demonstra, pela seguinte transcrição, que obtive do próprio livro paroquial: Arquivo Distrital de Aveiro Livro de Recebimentos de Vila Chã de S. Roque Numero 1 – A Folhas 163 À margem: – Ano de 1633 “Aos outo dias do mês de Novembro do anno 1633 recebi publicamente a Luiz Pantoia Freire, filho do doutor Lopo Dias Gois, desembargador da Casa do Porto e de donna Luiza de Almeida, sua mulher – com – Donna Antónia de Menezes

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filha de Fernão de Magalhães Teixeira e de donna Antonia de Almeida, sua mulher, moradores que foram no Covo. – Foram testemunhas: – Domingos João e Gonçalo Manuel e mais dez ou doze pessoas, outras mesmas – certidão do abade da Vitoria do Porto, como corre o banho e não corre impedimento algum.”. Dona Antónia de Menezes enviuvou, por morte de seu marido, assassinado pelos escravos. Dona Antónia veio a contrair novo casamento com Diogo Leite de Vasconcelos. Houve geração. Dona Antónia faleceu – segundo o livro de óbitos do Covo – número 1 – a folhas 208, no dia 1 de Janeiro de 1656, tendo sido seu principal herdeiro Gaspar Meneses.

António Magalhães e Menezes 118

Ignoro-lhe, também, a data de nascimento, sabendo ter falecido aos três dias de Janeiro de 1717. Era o segundo filho de Fernão de Magalhães e de Dona Antónia de Almeida. Casou, aquele António de Menezes, na Quinta da Torre, em Felgueiras, com Dona Jerónima de Alvim, ela, a filha herdeira de Gonçalo Vaz Peixoto e de sua mulher – Dona Leonor Alvim. Deste matrimónio houve geração: – Gaspar – Antónia e Serafina.

Nota Luiz Pantoia faleceu, na sua Quinta do Covo, no dia 26 de Junho de 1640, como me é referido pelo livro paroquial de Vila Chã de S. Roque, número 1 – a folhas 235.


Grutas de Waitomo

Nas Cavernas de Waitomo *Joaquim Máximo Na Ilha Norte da Nova Zelândia existem umas interessantes cavernas subterrâneas conhecidas pelo nome de Waitomo Glowworm Caves, ou sejam, as Cavernas dos Vermes Incandescentes de Waitomo. O interessante destas cavernas resulta do facto dos tectos de algumas delas se encontrarem pejados de larvas, de um certo tipo de insectos, que emitem uma brilhante luz azulada. Essa luz atrai os pequenos insectos de que se alimentam, depois de os terem aprisionado nas suas teias, com a configuração de farrapitos delas pendentes. Um viajante que visite as cavernas, ao olhar para os tectos das que têm larvas, fica com a ilusão de se encontrar sob um céu pejado de estrelas muito mais brilhantes e em

* Joaquim Máximo de Melo e Albuquerque de Moura Relvas, nasceu em Coimbra e reside em Vila Nova de Gaia. Tem o curso de Engenharia Electrónica da Universidade do Porto. Exerceu a actividade profissional na Administração Geral dos CTT e obteve a especialidade de Instalações Exteriores de Transmissão; União Eléctrica Portuguesa, integrada depois na EDP; Professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, como Professor Associado; Colégio de Gaia onde leccionou disciplinas relacionadas com a Electrónica Digital, actualmente rege disciplinas de Sistemas Digitais e Microcomputadores no ISPGAYA. Faz parte da Direcção da revista Politécnica. É membro da Ordem dos Engenheiros da “American Association for the Advancement of Science”, da “New Iork Academy of Sciences" e da “Planetary Society".

muito maior quantidade do que a das estrelas que vê à noite num céu limpo sem nuvens. É um espectáculo maravilhoso, único e inesquecível. Não é pois de admirar que as cavernas sejam visitadas por uma média anual de cerca de meio milhão de turistas curiosos. Numa quinta-feira de Agosto, um grupo de viajantes portugueses, entre os quais me encontrava, visitava as cavernas de Waitomo. A boa disposição era quase geral. E era apenas quase geral, porque uma simpática viajante septuagenária se encontrava com grandes dificuldades de visão devido à penumbra existente nas cavernas do caminho que conduzia às das larvas incandescentes. Mas quase ninguém deu por isso. Estava quase tudo demasiadamente preocupado consigo próprio para dar conta das dificuldades em que se encontrava a companheira de viagem. E digo quase tudo, porque houve alguém que deu por ela e que a passou a ajudar com extremo carinho. Foi uma jovem senhora, companheira de viagem, da qual aliás já sabia da sua preocupação e bondade para com todos os que precisassem de ajuda. Eu, que me tinha apercebido das dificuldades da senhora idosa, nada fiz. O que é imperdoável. Senti-me envergonhado. Mas resta-me o consolo de sentir que o procedimento da jovem senhora me vai servir de exemplo a seguir para o futuro. Tempo depois, ao ver as fotografias da viagem, notei que entre elas se encontrava uma da jovem senhora. Estava a sorrir em frente a uma grande janela, através da qual se

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podiam admirar os cumes nevados das montanhas que, na Ilha Sul, existem ao longo do caminho que vai de Christchurch para Queenstown. Lembrei-me então de lha mandar, colocando-lhe atrás qualquer coisa que traduzisse a minha admiração pelo seu comportamento e que reproduzo, à guisa de fecho deste pequeno episódio.

Sorriso Montanha longínqua, coberta de neve. Vê-se através duma ampla janela. Sentada na frente, vê-se uma donzela. Com um sorriso que jamais alguém teve. Mas não é de Gioconda esse sorriso, Pois nele não se vê qualquer ar de troça. Também o sorriso nem sequer esboça Pertencer a alguém que não tenha siso. 120

Não é de alegria, não é de tristeza. De amargura não é, tenho a certeza. De que é o sorriso? Qual a sua razão? Também não é sorriso de mulher fatal. Mas donde lhe vem o sorriso afinal? Vem da extrema bondade do seu coração!

Grutas de Waitomo


O Ministro da Educação José Augusto Seabra

O Senhor Presidente da República General Ramalho Eanes

Monumento a Fernando Pessoa – IX (Continuação)

“Estimei muito receber o programa que fizeram o favor de me enviar. Em princípio deslocar-me-ei de automóvel à Vila da Feira, onde chegarei depois de almoço. Quanto aos meus Pais não tencionam, em princípio, participar no Jantar no Castelo da Feira, e ainda não decidiram se irão ou não assistir à inauguração do Monumento a Fernando Pessoa. Resta-me apoiar o entusiasmo com que se empenharam nesta iniciativa de homenagem ao poeta de Orpheu, e enviar-lhes os melhores e mais cordiais cumprimentos.

Sessão Solene na Escola Preparatória *Executivo LAF

A professora Doutora Clara Rocha concedeu-nos a honra de ser a oradora oficial na Sessão Solene. Em carta de 21 de Julho de 1983 informava-nos: “Fiquei muito sensibilizada pelo modo pronto e benevolente com que tomaram em consideração a minha proposta, e fico honradíssima com o vosso convite, que mais uma vez agradeço. Sugiro, como tema da minha palestra, o seguinte: «Fernando Pessoa, poeta do desassossego». Uma duração de vinte minutos/meia hora seria conveniente? O meu Amigo dirá. Tenciono preparar a conferência durante o mês de Setembro”. O nosso agradecimento, o nosso entusiasmo, e o convite que dirigimos aos Pais da ilustre conferencista, também pelo conhecimento que tínhamos da amizade entre Torga e Eanes, foram compensados. De Coimbra, datada de 13 de Outubro, recebemos a carta de que transcrevemos:

* Liga dos Amigos da Feira

Clara Rocha” E foi com ansiedade que vimos a ilustre investigadora levantar-se e dirigir-se ao micro onde dissertou sobre “Fernando Pessoa – poeta do desassossego” que transcrevemos a partir da página 85. Usou da palavra o Padre Albano Alferes que fez a a p r e s e n ta ç ã o d a i l u s t r e P r o f e s s o r a , r e f e r i n d o : “Irá, de seguida proferir uma conferência, a Sr.ª. Professora Doutora Clara Crabbé Rocha, filha do insigne escritor Miguel Torga, que nos deu a gentileza de estar connosco nestas horas, de guiar-nos para a Vila da Feira. Pedia-vos, pois, uma salva de palmas. E como diz o nosso povo, na sua linguagem simples e singela, mas sempre expressiva, “Filho de peixe sabe nadar”. Vamos, pois, ouvir a Sr.ª Professora.” A palestrante, que a todos encantou, foi vibrantemente

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aplaudida. O Associado Padre Albano Alferes, mestre do protocolo nesta cerimónia, entusiasmado e feliz, leu o telegrama que recebemos da irmã de Fernando Pessoa, Henriqueta Madalena Rosa Dias: «Estou presente em espírito convosco hoje homenagem a meu irmão Fernando Pessoa saudações Henriqueta Madalena Rosa Dias» Havíamos convidado a Exma. Senhora para as cerimónias da Homenagem a seu irmão. Por carta de 21 de Novembro de 1983 deu-nos conhecimento da sua impossibilidade de comparecer. «Tendo recebido honroso convite para assistir à inauguração do 1º. Monumento Nacional de Homenagem a meu irmão Fernado Pessoa na Vila da Feira, agradeço muito sensibilizada mas lamento profundamente ser-me impossível estar presente nessa ocasião. A Homenagem ao Fernando foi programada com muita minúcia e interesse. Espero, contudo, ter o prazer de um dia visitar essa linda terra e o monumento em homenagem a meu irmão. Renovando os meus agradecimentos: Atenciosamente, Henriqueta Madalena Nogueira Rosa Dias»

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De seguida fez a apresentação do Sr. Ministro da Educação. «Senhor Ministro da Educação, Senhor Professor Doutor José Augusto Seabra, que pronunciou, no passado Domingo, uma brilhante conferência no salão dos Bombeiros de Arrifana, vai agora dirigir-nos algumas palavras de estima e simpatia.» O Senhor Ministro da Educação, José Augusto Seabra, teve uma intervenção que registamos:

Carta de Clara Crabbé Rocha

“Senhor Presidente da República, Senhor Representante do Senhor Governador Civil, Senhor Presidente da Assembleia Municipal, Senhor Presidente da Câmara, digníssimas autoridades civis, religiosas e militares, escultor, poeta e querido amigo Aureliano Lima, queridos amigos escritores presentes, Srs. alunos e professores feirenses, minhas senhoras e meus senhores, Que dizer de um acto destes, em que temos o Senhor Presidente da República connosco, a homenagear um poeta. Isso significa, antes de mais, que o mais alto representante


do povo português sabe compreender que, numa pátria, a poesia é o valor essencial. E quem diz a poesia, diz a língua, porque Pessoa é essencialmente o poeta da língua portuguesa e, só por isso, o poeta da pátria. Um poeta que, como aqui foi bem dito pela professora Clara Crabbé Rocha, se multiplicou em linguagens, assumindo da língua aquilo que é essencial, que é o ela poder acolher o ser em todas as suas formas. Assim, poeta da língua, poeta da pátria, Pessoa é também o poeta da universalidade, não só porque da língua portuguesa soube fazer várias linguagens, mas também porque soube até incorporar as línguas estrangeiras, escrevendo em inglês, em francês, mas sobretudo assumindo o que nas outras línguas é para ler, porque as linguagens, quer sejam articuladas no som, quer sejam articuladas na pedra ou no bronze, são a forma que o homem tem de procurar um regresso a uma origem perdida, que é também não apenas a saudade do passado, mas a saudade do futuro, de que falava Pascoaes. Por isso, nós devemos assumir essa saudade imensa de um futuro melhor, que Pessoa, glosando Pascoaes, nos deu como mensagem, essa saudade imensa de um futuro melhor, pela qual, diversamente, todos nós, aqui, lutamos. Mas nesta oportunidade, eu queria, sobretudo, se me permitem, amigos feirenses, fazer desta comunidade local um símbolo do que pode ser o Portugal do futuro, porque, aqui, na vila da Feira, um punhado de homens, de homens cidadãos, de homens intelectuais, de homens na simples acepção da palavra, soube mostrar que não é necessário viver nas grandes capitais, nas grandes metrópoles, para assumir a universalidade pessoana. É possível, de facto, que, em cada comunidade enraizada na terra, surja sempre aquilo que fecunda Portugal e a humanidade: a poesia. E, por isso, eu queria dizer que Portugal ficará grato à Vila da Feira por este acto de civilização, por este acto de cultura, por este acto de cidadania, que é o monumento a Fernando Pessoa. Poderia invocar, para justificar que este monumento se tenha erigido no Norte, o facto de que foi no Porto, na revista Águia, que Fernando Pessoa se estreou literariamente. Foi no Porto, portanto, que ele fez a profecia de um Super Camões, que seria o poeta de uma nova Renascença. No Porto, também, ele fez nascer o seu heterónimo Ricardo Reis, que, depois, partiu para o Brasil. A esse respeito, penso que a professora Clara Crabbé Rocha fez muito bem em ter tomado a Rosa-dos-ventos como paradigma da obra pessoana. É que, de facto, se há um Norte, há um Sul e se há um Ocidente, há um Oriente. Os vários heterónimos de Fernando Pessoa assumiram essa Rosa-dosventos. Assim, se Ricardo Reis nasceu no Porto, no Norte, ele foi para o Sul, foi para o Brasil e para o Ocidente; se Álvaro

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Carta de Clara Crabbé Rocha


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de Campos nasceu no Algarve, ele foi para a Escócia e da Escócia para o Oriente. O que significa, minhas senhoras e meus senhores, que a dispersão dos heterónimos era, de facto, a dispersão a toda a Rosa-dos-ventos e, nisso, ainda, Fernando Pessoa interpreta a pátria língua, porque também a língua portuguesa se disseminou do Brasil à África, ao Oriente, e, ainda hoje, as nossas comunidades migratórias, ao falarem português em contacto com outras línguas, assumem, de facto, o que há de essencial na aventura pessoana, e eu penso que Pessoa poderia ser considerado o símbolo do nosso emigrante, sem ter necessidade de viajar, senão sentindo ou imaginando, mas sentindo e imaginando aquilo que historicamente foi toda a aventura das descobertas e toda a aventura da tributação. Fernando Pessoa – também foi aqui dito – assumiu ainda algo de outro, que, Senhor Presidente da República, eu gostaria de tomar como um símbolo da nossa democracia que encanta ao mais alto nível: é que não há democracia sem pluralidade, sem diversidade, sem contrários, sem opostos, sem aquilo que faz que, para lá do que nos opõe, há aquilo também que nos liga, que é a relação, justamente, entre o que é oposto, entre o que é contraditório. E se nós soubermos assumir a democracia a partir deste paradigma pessoano, nós seremos capazes, de facto, de a conservar, de a preservar, incluindo aqueles que, eventualmente, se lhe opõem, porque é isso, essa tolerância para com o adversário, aquele que não é propriamente um inimigo porque é também um amigo, que constitui a essência da democracia. E Pessoa multiplicou-se em heterónimos políticos, ele também, o que implica trabalho, o que implica esforço, o que implica rigor, aquele trabalho, aquele esforço, aquele rigor que é próprio dos poetas, dos que trabalham a língua. E não podia deixar de invocar o facto de que Fernando Pessoa, preocupado com Portugal, não deixou de, antecipadamente, assumir, ele próprio, aquilo que era fundamental numa época de crise e que foi essencialmente o trabalho; o trabalho poético, sim, mas o trabalho, também, do empregado de escritório, do tradutor de línguas estrangeiras, que abandonou o Curso Superior de Letras para se consagrar humildemente àquilo que era fundamental para ele – a poesia –, vivendo do seu trabalho diário e defendendo, aliás, com uma premonição que eu não posso deixar de acentuar, a importância que tinha o ensino técnico, o ensino profissional; ele que, na África do Sul, também tinha passado por escolas onde, na realidade, se aprendia a trabalhar. Essa lição nós devemos colhê-la de Fernando Pessoa, neste momento, mas, essa lição, seria o Eduardo Lourenço que no-la poderia dar, como, talvez ainda melhor, Miguel Torga, porque, ensaísta e poeta. Pessoa assumiu aquilo que era fundamental na criação, que era o desdobramento entre

Carta da irmã de Fernando Pessoa


o imaginário e o pensamento. Também queria tomar a nossa Agustina, aqui do Norte, como exemplo para nós, porque ela sabe aliar esse imaginário e esse pensamento que é, queridos amigos, o que há de fundamental para nós; se queremos preservar o nosso futuro, temos de imaginar o quanto escreveu e nos deu ali. Muito obrigado.”

Telegrama enviado no dia da Homenagem

Encerrou a Sessão Solene o Senhor Presidente da República, General Ramalho Eanes, que, em improviso atentamente escutado, disse: “Queria simplesmente dar parabéns aos feirenses pela iniciativa que levaram rapidamente a bom termo e gostaria de lhes dar os parabéns, não apenas porque homenagearam Pessoa, mas também porque, através dele, homenagearam o povo que somos, homenagearam a nação que somos. Disse a professora Crabbé Rocha que Pessoa foi desassossego. Eu diria que sim, que Pessoa foi desassossego, porque desassossego é a fase que antecede, é a fase que determina a criação, mas que, na criação, não se esgota, porque a ela se segue. E se há traço geneticamente carregado na história portuguesa, esse é efectivamente o desassossego. Foi ele que fez com que um Infante sonhasse, um Gama percorresse os mares, um Albuquerque construísse a Índia. Foi o desassossego que fez com que o nosso povo tivesse escrito esta história maravilhosa, esta história singular, que, muitas vezes, esquecemos, que, muitas vezes, não conseguimos olhar como devíamos para podermos continuar. Foi este desassossego que fez com que homens presentes entre nós tivessem ganho a dimensão que têm: um Eduardo Lourenço, uma Agustina Bessa-Luís, um To r g a , s ã o t a m b é m h o m e n s desassossegados. São também desassossegados porque são homens que criam, são homens que fazem. Precisamente por isto, repito, esta vossa homenagem é uma homenagem ao Pessoa, mas não apenas a ele, é uma homenagem também a todos os nossos antepassados, é uma homenagem ao povo que somos e é a esta homenagem também que eu me associo enquanto representante eleito do povo português Muito obrigado.”

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Postais do Concelho da Feira A - Postais Ilustrados *Ceomar Tranquilo

28 – A mesma fotografia, com os dizeres: Emilio Biel e C. Porto. Villa da Feira.

*Caminheiro por feiras, lojas e mercados


28-A – Reverso deste postal. Com os dizeres – Union postale Universelle Portugal -Carte Postale. Bilhete Postal. Espaços reservados para a correspondência e para a direcção.

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29 – (47). Emilio Biel e C. – Porto – Villa da Feira. Duas fotografias. Castelo e vista panorâmica.


29-A – Reverso do mesmo postal. Com ornamentos coloridos à esquerda e parte superior. Os dizeres: Bilhete Postal. Espaço em forma quadrangular para o selo. 133

30 – 47, Emilio Biel e Cº. Porto – As mesmas fotografias do Postal nº. 29.


30-A – Reverso deste postal. Ornamento diferente do Postal 29-A Espaço em losango para o selo. Postal circulado para a Ericeira, pelo Correio de Mafra, onde chegou no dia 10. Set. 1901, tendo como porte o selo de 10 Reis, verde, com a efígie de D. Carlos.

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31 – (47). Emilio Biel e C. – Porto – as mesmas fotografias dos postais nºs 29 e 30.


31-A –Reverso do mesmo postal – Ornamento diferente dos postais nº.29-A e

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32 – Datado de Arrifana (Feira) 21-6-901 “Meu caro Adão – Projectam-se pomposos festejos ao S. João, em S. João da Madeira”.


32-A – Reverso do mesmo postal. Bilhete postal em diagonal. Ornamentos vistosos e coloridos. Circulado com o selo de 10 Reis, verde, D. Carlos.

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Fábricas em Portugal Santa Maria da Feira e Pinhel Lojas de venda de calçado directamente ao público Santa Maria da Feira: Lugar do Cavaco 4520-909 Feira Pinhel: Lugar da Pedrosa 6400-429 Pinhel Lordelo/Guimarães: Rua da Giesteira, 4 - EN 105 4815-150 Lordelo Póvoa do Varzim: Rua Gomes Amorim, 1690 4490-091 A Ver-o-Mar Viseu: Rua Principal, 21-23 - Paradinha-S. Salvador 3510-777 Viseu Alfragide: Rua Quinta do Paisinho, 2 e 2A 2790-237 Carnaxide Rohde-Sociedade Industrial de Calçado Luso - Alemã, Lda. Lugar do Cavaco Santa Maria da Feira

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