Villa da feira 18

Page 1

1


2


3


4

Ficha Técnica Título: Villa da Feira - Terra de Santa Maria Propriedade: LAF - Liga dos Amigos da Feira ® Director: Celestino Portela Director Adjunto: Fernando Sampaio Maia Colectivo Editorial - Fundadores LAF: Alberto Rodrigues Camboa; António Luís Carneiro; Carlos Gomes Maia; Celestino Augusto Portela; Joaquim Carneiro Processamento de Texto: Carla Maria Costa Ferreira Coordenação Científica: J. M. Costa e Silva Supervisão Editorial e Gráfica: Anthero Monteiro Colaboração do TOC, Belmiro da Silva Resende Periodicidade: Quadrimestral Assinatura anual: 30 euros Assinatura auxiliar: 50 euros Este número: 15 euros Pagamentos por: Transferência bancária NIB 007900001127152910124 Cheque à ordem de LAF - Liga dos Amigos da Feira Capa: Marco da Ordem de Malta em Rio Meão. Fotografias: Óscar Maia, Câmara Municipal, LAF e Fotos Web por José Correia Redacção e Administração: Apartado 230 • 4524-909 Feira

Publicidade: Telef.: 965 310 162 | 256 379 604 Fax: 256 379 607 Tiragem: 500 exemplares Edição: N.º 18 - Fevereiro de 2008 Pré-impressão, Impressão e Acabamento: Empresa Gráfica Feirense, S. A. Apartado 4 - 4524-909 Santa Maria da Feira Sede Social: Edifício Clube Feirense - Associação Cultural Vila Boa 4520-283 - Santa Maria da Feira Email: villadafeira@portugalmail.pt Depósito Legal: 180748/02 ISSN: 1645-4480 Reg. ICS: 124038 Depositária: Livraria Vício das Letras Rua Dr. José Correia de Sá, 59 Telef.: 256 364 627 4520-208 Santa Maria da Feira Apoios: Câmara Municipal Santa Maria da Feira Irmãos Cavaco S.A. Zoo Lourosa - Parque Ornitológico Rohde - Sociedade Industrial de Calçado Luso-Alemã, Lda Termas das Caldas de S. Jorge Sociedade de Turismo de Santa Maria da Feira Patrícios, S.A.


PÓRTICO Com este número 18 concluímos o 6º. Ano de plena regularidade e algumas edições que nos enchem de júbilo. Com a excelente colaboração que não nos tem faltado tudo temos feito para continuarmos dignos dela. Neste número registamos o Congresso da Ordem Militar de Malta, que se realizou em Rio Meão nos dias 7 e 8 de Outubro de 2006, permitindo aos estudiosos meios de trabalho e aos leitores saberem o que se passou, o que foi e é a Ordem Militar de Malta. O Centenário do nosso sócio fundador, Padre Albano de Paiva Alferes, é evocado com chamada de atenção para estudos já publicados.* Começamos a estudar a segunda Invasão Francesa e os seus reflexos em Terra de Santa Maria, preparando o número especial de Fevereiro de 2009.

O Centenário de Miguel Torga é agora evocado num estudo de especialidade e na memória de quem o recorda em Santa Maria da Feira. Os nossos poetas, uns inspirados e atenciosos, outros a aumentarem a nossa saudade, são sempre momentos altos. Também a evocação dos 25 anos da Fundação da LAF, com um agradecimento a todos os que tornaram o sonho realidade, e uma sensação de que vale a pena...

Executivo LAF

* Villa da Feira, nº. 1, Junho de 2002, Artigo de Celestino Portela Velharias ..., Pe. Albano de Paiva Alferes.,Prefácio de Pe. José Alves de Pinho e In memoriam de António Sampaio Maia e Pe. José Alves de Pinho.

5


6


MENSAGEM Francisco Ribeiro da Silva* A realização da conferência ”A Ordem Militar de Malta” em Rio Meão, sede da antiga Comenda de Rio Meão merece uma apreciação muito positiva. Porquê? a) Porque foi uma iniciativa pioneira e rara de se ver a nível de freguesia, ainda que com o apoio da Câmara Municipal do Concelho. b) Porque foi uma oportunidade concedida ao povo da freguesia para conhecer o enquadramento histórico – religioso – cultural em que a mesma freguesia e os antepassados dos actuais habitantes viveram durante séculos. c) Porque foi a via mais fácil para que os habitantes da freguesia (e eventualmente do Concelho) recuperassem a Memória da Terra e, por essa forma, consolidassem os afectos que os ligam à mesma Terra. d) Porque, no conjunto, foi uma realização anormal digna do nível que o séc. XXI vai exigir aos * Professor Catedrático da Universidade do Porto.

Autarcas voltados para o Futuro. A satisfação das necessidades materiais básicas é naturalmente um desses objectivos dos Autarcas para com os seus conterrâneos e eleitores. Mas as necessidades culturais e de espírito não podem ser encaradas como um luxo mas como uma condição de conhecimento harmonioso das comunidades.

7


SUMÁRIO

8

Pórtico Executivo LAF Mensagem Franscisco Ribeiro da Silva Conferência “A Ordem Militar de Malta” Ângelo Castro Poesia Maria Fernanda Calheiros Lobo A Origem Religiosa e Militar do Hospital: breves notas da sua evolução histórica Paula Maria de C. P. Costa Ordem de Malta e Rio Meão David Simões Rodrigues Poesia Ilda Maria Breve História da Ordem Soberana Militar de Malta e Hospitalária de S. João de Jerusalém, de Rodes e de Malta Ant. Feijó de A. Gomes Poesia Judite Lopes Homilia Final Conferência “A Ordem Militar de Malta” D. Carlos Moreira Azevedo Poesia Ceomar Tranquilo Primeiro Centenário do Nascimento do Padre Albano Alferes Pe. José Alves de Pinho Poesia Maria Fernanda Calheiros Lobo P. Albano de Paiva Alferes - Um homem Culto Pe. Januário dos Santos Poesia Manuel de Lima Bastos A Pressa Serafim Guimarães A Importância do Comércio em Arnelas Pe. Manuel Leão Dicionário Biográfico de Personalidades Feirenses Francisco Azevedo Brandão Poesia Anthero Monteiro Um Padrão Histórico em Arrifana de Santa Maria da Feira Augusto Telmo Poesia João Pedro Mésseder Ordálias Jorge Augusto Pais de Amaral Poesia Manuela Correia À Sombra de Mestre Aquilino Continuando à Mesa com o Escritor Consersando sobre Perdizes e Galinholas Manuel de Lima Bastos Retalhos da História Feirense: Nogueira da Regedoura e a 2ª Invasão Francesa Armando de Sousa e Silva A Criação do Concelho de Espinho Franscisco Azevedo Brandão Poesia H. Veiga de Macedo Antologia Prática de Um Devocionário Tradicional Popular - VIII Pe. Domingos A. Moreira Poesia Edgar Carneiro Viagens por Mar, em Meados do Séc. XVIII Maria da Conceição Vilhena Apresentação de Escritos de Areia de Manuela Correia Anthero Monteiro Um Achado Arqueológico em S. Mamede Travanca (S. M.da Feira), no Séc. XIX Núria Quintino e Filipe Pinto Baile em Sangalhos Joaquim Máximo Alexandrino de Albuquerque Um Feirense que Conheceu Fernando Pessoa Celestino Portela Poesia Anthero Monteiro LAF 25 Anos Joaquim Carneiro Poesia Ilda Maria Sobre o Antigo Topónimo “Merdeses” de Canelas Gaia Pe. Domingos A. Moreira Poesia Edgar Carneiro O Ponto de Partida das Preocupações Religiosas em Unamumo e em Torga Carlos Carranca Poesia Manuela Correia Uma Bela Homenagem ao Poeta Miguel Torga António Rebordão Navarro Miguel Torga e Feirenses Executivo LAF Poesia João Pedro Mésseder Postais do Concelho da Feira Ceomar Tranquilo

5 7 9 10 11 21 32 33 54 55 60 61 68 69 72 73 75 79 86 87 90 91 94 95 101 105 112 113 124 125 131 143 149 151 154 155 180 181 184 185 190 191 193 194 195


CONFERÊNCIA “A ORDEM MILITAR DE MALTA” Ângelo Castro* A identidade de um povo e as razões da sua existência analisam-se pela sua história. Rio Meão, a sua história e o seu povo têm o privilégio de, na sua génese, terem coexistido com a Ordem Militar de Malta, razão pela qual ainda hoje serem visíveis elementos que atestam e referenciam Rio Meão como Comenda da Ordem de Malta. A Conferência “A Ordem Militar de Malta” realiza-se com o propósito de dar a conhecer à população de Rio Meão e das Terras de Santa Maria, a nossa história, reavivar a nossa memória e enriquecer os nossos conhecimentos. Espero e faço votos para que a partir deste dia, a relação de Rio Meão com a Ordem Militar de Malta seja mais estritamente ligada para que a * Presidente da Junta de Freguesia de Rio Meão.

curto prazo seja oficializada a criação da Comenda de Rio Meão da Ordem Militar e Hospitalar de Malta.

9


DE PASSAREM AVES Maria Fernanda Calheiros Lobo* 10

Em bando de onde? Pousaram em mim. Elas não sabiam que eu vivo inteira na árvore escolhida que está no jardim. Tem sol , são sorrisos, faz sombras é dor mas é tão fagueira tão verde e bela (como eu gosto dela) não há primavera que não fique em flor

* Universidade Sénior - Douro


A ORDEM RELIGIOSA E MILITAR DO HOSPITAL: breves notas da sua evolução histórica. Paula Maria de Carvalho Pinto Costa* O conceito de Ordem Religiosa e Militar encerra em si uma variedade e complexidade notáveis. Em linhas gerais, trata-se de um agrupamento de cavaleiros, que obedecem a uma regra (isto é, a um modo de vida próprio) habitam em conventos, professam os votos essenciais da vida religiosa (obediência, pobreza e castidade) e usam um hábito. As Ordens Militares foram criadas no contexto da reforma eclesiástica do séc. XI e dos propósitos concretos enunciados no Concílio de Clermont (Novembro de 1095), no qual o Papa Urbano II proclamou a primeira cruzada. O objectivo era a conquista da cidade de Jerusalém aos turcos, o que viria a ser alcançado em 1099. A partir deste momento, o número de * Departamento de História Faculdade de Letras da Universidade do Porto

peregrinos que se dirigiam à Terra Santa aumentou consideravelmente. O longo tempo de viagem agravava as já precárias condições de higiene e dieta alimentar, que, associadas às dificuldades de alojamento e falta de descanso, expunham os peregrinos a uma debilidade física favorável à contracção de numerosas doenças. Importava, por isso, receber cuidados assistenciais que minorassem o mal-estar físico. Mas o objectivo religioso que movia os homens que se deslocavam à Terra Santa impunhalhes, igualmente, a necessidade de enquadramento espiritual. Assim, o acolhimento numa casa de perfil religioso afigurava-se importante no apoio aos peregrinos. É então, para desempenhar este papel crucial – recordo, o cuidado dos enfermos – que a Ordem do Hospital é chamada à cena, precisamente em Jerusalém. É um grupo de homens, ligados à actividade comercial e oriundos de Amalfi, uma cidade da costa ocidental italiana, que decide fundar na Cidade Santa

11


12

uma casa, em meados do séc. XI, que respondesse às necessidades dos fiéis que lá se deslocavam. Inicialmente esta comunidade foi colocada sob a protecção de S. Bento e dependente do Mosteiro de Santa Maria Latina. Em pouco tempo, este espaço revelou-se exíguo, sendo necessário um novo hospital, agora dedicado a S. João Baptista. A protecção papal não se fez esperar e, em 1113, pela bula Piae Postulatio, o Papa Pascoal II legitima esta instituição – a Ordem de S. João de Jerusalém ou do Hospital, designação que faz eco das suas actividades sócio-caritativas. Através deste diploma, o Sumo Pontífice conferiu-lhe isenção em relação ao poder episcopal, tornando-a dependente somente da Santa Sé, ao mesmo tempo que garantiu a sucessão do responsável da comunidade, através de um processo eleitoral interno, em que participariam os irmãos professos, e imprimiu força económica à instituição, uma vez que confirmou as doações que tivessem recebido até à data e isentou-a do pagamento do dízimo. Os propósitos veículados nesta comunidade respondiam às expectativas do momento e, por isso, estes freires implantaram-se rapidamente em vários pontos da Cristandade, também fruto da sua rigorosa organização e gestão de bens. O apoio da Igreja foi constante ao longo da história dos Hospitalários, tanto mais que eram pessoas que tinham professado numa congregação religiosa, assumiram o ideal de luta contra o infiel e não descuraram a sua principal tarefa - a assistência aos peregrinos. A prossecução destes objectivos, fez com que os monarcas compreendessem que necessitavam desta Ordem para concretizar algumas das suas intenções. Como a própria designação da instituição indica

- Ordem Religiosa e Militar de S. João de Jerusalém - os freires, para além, da sua vocação religiosa e consequente cumprimento de tarefas a ela adstritas, tinham funções militares para desempenhar. Se bem que, no início desta comunidade, não tivesse sido a vida militar o polo aglutinador daqueles que dela faziam parte, em 1120, Raimundo de Puy viria a relembrar a importância da força das armas, para defesa da fé de Cristo, representando esta faceta bélica o corolário da inserção da Ordem na sociedade cruzada. A este nível, recorde-se que Santo Agostinho advogou a luta em nome de Cristo, como um ideal para qualquer cristão, legitimando, desta forma, a participação de religiosos nas actividades bélicas. As Ordens Religiosas e Militares, sínteses do espírito monástico e da mística cavaleiresca, aparecem, assim, associadas a uma nova forma de monacato e integradas nas exigências decorrentes da proclamação de Clermont. Para além da vida contemplativa, marcada pela oração, estes freires aspiravam à salvação pela via das armas, lutando em defesa dos lugares santos. O cerimonial de entrada para a Ordem do Hospital e os requisitos a que teriam de obedecer os pretendentes a fazer parte dela constituem cláusulas abundantes nos textos normativos, o que não é de admirar, uma vez que estes procedimentos seriam o ponto de honra da constituição do próprio instituto. Trajavam de hábito negro e usavam uma cruz branca de oito pontas sobre o lado esquerdo do peito, para a “amarem com o coração” (de acordo com a regra) e terem presente as Bem Aventuranças. Uma indumentária sóbria, de traços simples, que ia de encontro ao voto de “sine proprio vivere”, à prestação de cuidados assistenciais e ao exercíco das armas. Estas referências simbólicas são especialmente


13

importantes, já que são os únicos elementos de identificação do grupo, pelo menos, aos olhos daqueles que não o integram e, por isso, desconhecem outros laços que unem a comunidade. A Ordem era constituída por elementos que nela professavam, os chamados freires, dividos em três categorias distintas (cavaleiros, sacerdotes e serventes), coadjuvados na sua acção por numerosas pessoas anexas à estrutura da instituição. Os membros professavam os três votos substanciais (obediência, castidade e pobreza), de resto comuns a todos aqueles que ingressam na vida religiosa, e viviam de acordo com preceitos normativos próprios, mas inspirados na regra de Santo Agostinho. A presença de senhoras na comunidade hospitalária constitui também uma realidade importante. A origem das Hospitalárias radica na fundação de um hospício (1104), anexo ao hospital da Ordem de S. João, destinado a acolher devotas. Numa fase inicial as irmãs Hospitalárias ocupavam-

se dos cuidados prestados aos peregrinos e aos doentes e, mais tarde, dedicar-se-iam a uma vida mais contemplativa. Paralelamente aos membros da Ordem, existiam dentro desta estrutura os donatos, isto é, leigos que ofereciam os seus bens à Ordem, para participarem nos benefícios espirituais que uma instituição deste perfil assegurava. A partir do momento em que foi instituída, a Ordem do Hospital começou a registar um desenvolvimento rápido, visível numa ampla difusão geográfica. A protecção apostólica e os benefícios que os monarcas lhes proporcionaram, nos vários reinos onde se iam instalando, bem como a simpatia que gozavam junto de numerosos particulares, constituiram, por certo, atitudes marcantes neste sentido. Este dinamismo justificou, desde cedo, a necessidade de se imprimir uma organização própria a esta Ordem Religiosa e Militar. Uma das vias encontradas expressou-se através de uma divisão


14

territorial, em circunscrições conhecidas como Línguas ou Nações, às quais cabia a responsabilidade da actuação administrativa de um Bailio Conventual. Estas Línguas ou Nações eram: Provença, Alvernia, França, Itália, Espanha, mais tarde dividida nas Línguas de Aragão e Castela, Inglaterra e Alemanha. Cada uma delas estava confiada à responsabilidade de um Bailio Conventual, que, no tempo em que a Ordem esteve sediada em Rodes, residia nesta ilha, no respectivo Albergue da sua Língua, situado no Collachium. Estes oficiais tinham assento no convento e eram corresponsáveis, juntamente com o Grão-Mestre, pela administração da Ordem. Cada uma destas Línguas era subdividida em unidades territoriais e administrativas mais pequenas, designadas por Grão Priorados, aos quais superintendia um Grão Prior ou, tão somente, Prior. É precisamente neste nível que estamos quando falamos do Grão Priorado do Crato e que corresponde ao nosso actual país.

No governo da Ordem do Hospital participavam numerosos elementos, desde as figuras individuais até aos órgãos colegiais. Esta partilha do poder permitia o controle do seu exercício, evitando-se a prática de abusos e de acções menos claras. O Grão-Mestre do Hospital constituía a autoridade máxima e centralizadora de toda a organização. Paralelamente existiam órgãos colegiais de governo, como as reuniões capitulares, que, atendendo à sua convocação, constituição, presidência e âmbito de influência, eram designadas por Capítulo Geral e Capítulo Prioral ou Provincial. O Capítulo Geral tinha um carácter muito mais solene e celebrava-se de acordo com a iniciativa do Grão-Mestre. A este órgão de governo, cimeiro dentro da hierarquia da Ordem, estavam confiadas decisões que respeitassem a acções de grande destaque para a Milícia, como por exemplo, assuntos de administração geral, finanças e a reforma dos próprios estatutos. Os Hospitalários vão deslocando geografica-


mente a sede da sua casa conventual, de acordo com a geografia política ditada pela luta contra o Infiel. Na sequência da perda de S. João de Acre, em 18 de Maio de 1291, que representou a perda total de domínio na Terra Santa, os Hospitalários refugiaram-se na ilha de Chipre, onde permaneceram quase durante duas décadas, altura em que se instalaram em Rodes, que passou para o domínio cristão a partir de 1306. Por fim, e depois da capitulação de Rodes, em 1522, e de uma curta estadia em Tripoli, fixaram residência conventual na ilha de Malta, em 1530, que lhes foi entregue pelo imperador Carlos V. A Ordem do Hospital orientava a sua acção sobretudo em dois sentidos: a solidariedade social e a guerra. De acordo com as palavras dos documentos normativos, “Entre os outros officios de piedade e humanidade por comum consentimento de todo o povo christão sem duvida a hospitalidade possue o primeiro lugar; ...”. Era precisamente desta forma que os Hospitalários definiam a prioridade do seu programa sócio-caritativo. Inspirado numa vida de carácter religioso, pautada pela profissão dos votos substanciais, aos quais se juntava a obrigação de praticar a caridade para com os mais necessitados e desprotegidos, estes freires protagonizavam uma acção peculiar e de grande utilidade social. A assistência constituía a acção prioritária a desenvolver pelos Hospitalários, como era expresso na regra. Aliás, foi precisamente a vocação direccionada para a prática da hospitalidade, que deu o nome aos freires de S. João de Jerusalém. A sua origem, ligada à Terra Santa e, particularmente, ao cuidado dos peregrinos que aí se deslocassem, foi determinante nos objectivos e no percurso que estes religiosos viriam a desenvolver.

15


16

A enfermaria era a unidade que melhor expressava a prática da hospitalidade e, por isso mesmo, foi amplamente focada nos estabelecimentos. Ao seu abrigo eram tratados, de forma modesta, tanto os freires professos como as pessoas seculares. Os oficiais da enfermaria, no seu conjunto, eram responsáveis pelo cuidado dos que lá permanecessem, muito embora executassem tarefas distintas, de acordo com o cargo para que tinham sido indigitados. Assim, o enfermeiro estava obrigado a visitar todas as noites os enfermos e tinha que ter criados que participassem no serviço da enfermaria e duas mulheres honestas para criar os meninos órfãos cristãos. Os pródromos (este mesmo termo é utilizado para definir os sintomas que indicam a manifestação próxima de uma doença) eram em número de dois e juntamente com o enfermeiro tinham a obrigação de visitar diariamente os doentes, no sentido de garantirem o correcto cuidado dos mesmos. Os médicos tinham que prestar juramento perante um conjunto de freires, sendo um de cada uma das Línguas da Ordem e passariam visita à enfermaria pelo menos duas vezes por dia, na presença do enfermeiro e do escrivão, para que a estes dois últimos oficiais fosse possível proceder à concretização das instruções dadas pelos primeiros. Os cirurgiões, que dominavam uma arte mais especializada dentro da medicina, segundo a expressão da época, estariam presentes na enfermaria também em número de dois. O funcionamento deste espaço assistencial exigia ainda as tarefas de um boticário que, como responsável pela farmácia, tinha que assegurar o seu aprovisionamento e participar na distribuição dos

remédios. A enfermaria contava ainda com os trabalhos de um escrivão que, como a própria designação indica, teria que passar a escrito tudo aquilo que fosse necessário. O cuidado dos enfermos não passava somente pela preocupação com o mal-estar físico. A cura da alma também fazia parte da hospitalidade, tanto mais num período em que o corpo se encontrava debilitado e, por isso, mais exposto ao chamamento de Deus. Neste sentido, a figura do capelão ou prior da enfermaria adquiria um significado relevante. A ele cabia rezar missa, administrar os sacramentos e presidir às cerimónias fúnebres de todos aqueles que não resistissem à doença. Ainda dentro do âmbito da assistência inseremse as acções levadas a cabo pelas mercearias, enquanto instituições com fins religiosos e caritativos, onde eram recolhidos inválidos (de ambos os sexos), com a obrigação de assistirem a missas e rezarem por alma dos benfeitores. Paralelamente a esta vivência dos Hospitalários, em Portugal, pelo menos desde 1211, o monarca aparecia como defensor pauperis, o que, de facto, pode ter favorecido a prática deste tipo de actividades direccionadas para os pobres. Esta situação ganha especial significado se pensarmos na integração desta estrutura assistencial nos circuitos dos caminhos de Santiago. Este destino de peregrinação seria uma alternativa à longínqua Terra Santa e, com certeza, atraía numerosas pessoas que necessitavam dos cuidados assistenciais prestados pelos Hospitalários. Por outro lado, o serviço das armas constituiu outro vector da actividade destes freires, como revela o excerto documental que transcrevemos: “... procurarem


grangear as virtudes morais e theologais, com as quais prudente, temperada e fortemente inflamados da charidade pelo sagrado nome de Jesu Christo Salvador nosso, pelo sinal da cruz que nos deu vida, pela justiça, pelos orfãos, pelas viuvas com a espada desembainhada não temão acometer quaisquer perigos”. É esta uma das formas que a Ordem do Hospital utiliza para traduzir uma das facetas da legitimação da guerra, entendida enquanto fonte de vida e de salvação, e responder às solicitações de um mundo muitas vezes palco de cenas violentas. Apresentada a orgânica e funcionamento da Ordem do Hospital em geral, torna-se pertinente sistematizar algumas directrizes que caracterizaram a sua presença em Portugal. No tempo em que a Ordem do Hospital deu os primeiros passos em Jerusalém, Portugal ainda não existia como reino independente. A nível político a área geográfica na dependência do conde D. Henrique - Condado Portucalense - constituía uma fracção do reino de Leão. O local eleito para a implantação da Ordem de S. João no Condado Portucalense foi Leça (mais tarde, do Bailio), uma localidade pertencente ao actual concelho de Matosinhos e que, até, ao início do séc. XIV, acolheu a sede do Priorado de Portugal. A definição do momento em que ocorreu este facto é de difícil apuro, uma vez que se desconhece o documento que consagraria a doação do primeiro núcleo de propriedades outorgadas em benefícios dos cavaleiros. Neste sentido, as opiniões divergem, sendo aceite, como provável, um espaço de tempo que medeia entre 1122 e 1128. No entanto, investigações mais recentes permitem-nos colocar a hipótese de a Ordem do Hospital se ter fixado em Leça, pelo menos, desde

1112. Se, por um lado, esta data pode parecer precoce, atendendo à evolução da Ordem em geral, tanto mais se pensarmos que só recebeu bula confirmatória em 1113, por outro, é perfeitamente compaginável com a sua instalação em outros reinos peninsulares, como aponta a determinação de um legado apostólico, de nome Ricardo, que obrigava os prelados diocesanos da Península Ibérica a protegerem o Hospital de Jesusalém, não se intrometendo nas liberdades que recebia (1102-1114). Independentemente do momento exacto em que os freires de S. João chegaram ao território que viria a ser Portugal, foi no reinado de Afonso Henriques que os Hospitalários se integraram na vida do reino. Foi, com efeito, um processo célere, uma vez que já tinham adquirido experiência de adaptação noutros reinos e contavam com o apoio de uma super-estrutura que lhes imprimia força e orgânica. Como consequência do incremento patrimonial, foi-se organizando a propriedade da Ordem, pertencente ao Priorado de Portugal, em unidades mais pequenas, denominadas comendas. De uma forma pragmática, uma comenda é um conjunto de bens, gerido por um freire professo, que exerce o cargo de comendador, e cujo funcionamento conta com muitas outras pessoas, tanto pertencentes à hierarquia da instituição, como com uma numerosa massa de indivíduos, relacionados com a exploração indirecta da terra, de cuja administração resulta um rendimento. A origem das comendas esteve associada à dimensão e dispersão dos núcleos territoriais, que impediam o Prior de actuar directamente sobre todos os bens. Para esta situação contribuiram as dificuldades de comunicação entre as várias áreas geográficas onde a Ordem detinha património,

17


18

devido à distância que existia entre elas e às precárias vias de comunicação medievais. O património destes freires foi-se disseminando por grandes zonas do território nacional, apresentando-se mais concentrado numas do que noutras. O Norte de Portugal (incluindo o território até ao Mondego) e a Beira Interior (na sequência da nascente do Mondego) parecem ser as áreas de maior implantação patrimonial da Ordem, não faltando razões que justificam esta mancha cartográfica. Num primeiro momento, entende-se a concentração de bens no Norte, uma vez que a chegada da Ordem ao extremo ocidental da Península Ibérica se verificou numa época em que a reconquista do território pouco passava para sul do Mondego. Assim, no séc. XII, o território disponível para partilhar em doações confinava-se apenas a uma parte do que viria a ser o nosso país, o que justifica a posse de bens no Norte. No entanto, (inquirições régias de 1220) mesmo na área a norte do rio Douro existem assimetrias na fixação destes freires, na medida em que à data da sua chegada já haveria zonas controladas por outras instituições e pelo próprio rei, tornando o espaço respectivo menos acessível à penetração de outros agentes organizadores Por sua vez, a proveniência social dos freires de S. João relacionada com os estratos nobilitados, os quais estavam fixados sobretudo nesta região norte, pode ter favorecido a posse de bens patrimoniais nesta zona. Na Beira Interior surgiu um novo núcleo de implantação territorial, nos finais do séc. XII, inicialmente centrado em torno da terra de Guidimtesta (município do Gavião). D. Sancho I seria o responsável por esta segunda implantação, quando em 1194 lhes doou a referida terra, com a obrigação de os cavaleiros nela

edificarem o castelo de Belver mesmo junto à margem norte do rio Tejo, no contexto de difíceis anos de guerra peninsular. Os bens doados aos Hospitalários eram muito diversos e poderiam ser castelos, vilas, terras, direitos, privilégios e isenções fiscais. A sede dos Hospitalários portugueses vai ser transferida para o núcleo da Flor da Rosa / Crato, situado no Alto Alentejo, não muito longe de Belver. De uma maneira geral, as expectativas que recaíam sobre os Hospitalários impunham-lhes uma acção multifacetada, desde as suas obrigações enquanto membros de uma comunidade religiosa até à sua participação na reconquista, passando pela prestação de cuidados assistenciais, pela defesa do território português, pelo empenho no povoamento do mesmo, pela evangelização das pessoas que vivIam nas suas áreas de influência e pela rentabilização económica das propriedades, zelando pela exploração das mesmas. A gestão económica da rede de imóveis segue estratégias idênticas a outras instituições, pois os Hospitalários respeitavam o esquema senhorial de exploração da propriedade. Neste sentido, os cavaleiros exerciam direitos jurisdicionais de carácter civil e eclesiástico sobre a população que vivia enquadrada nos seus domínios. A mútua cooperação com a monarquia portuguesa durante os primeiros reinados foi determinante no engrandecimento patrimonial da Ordem, no acesso a cargos políticos de grande projecção, como ter assento no conselho régio ou participar em embaixadas em representação da corte portuguesa, e no desenvolvimento de laços familiares e de convivência pessoal entre a Família Real e algumas famílias com profunda tradição de ingresso na Ordem. No entanto, o fim da reconquista (1249) e


aparentemente da Cruzada para que as Ordens Militares tinham sido chamadas e o esboço da autoridade monárquica em novos moldes são factores que vão dar origem à definição de um novo comportamento em relação aos Hospitalários, ensaiado já no reinado de D. Afonso III, quando restringiu a cobrança do montado, isto é, um direito sobre o gado (1261) e confinou a cobrança da portagem aos lugares especificados pelo soberano. Será, porém, D. Dinis o responsável pela implementação de um programa de governo tendente a controlar as Ordens Militares existentes em Portugal. No que diz respeito aos Hospitalários, deve salientar-se o impedimento à herança dos bens dos Templários e a consequente fundação da Ordem de Cristo, bem como a promulgação de uma série de decisões judiciais por parte dos tribunais régios contrárias aos interesses dos Hospitalários. Nesta sequência e, sobretudo, no contexto da instabilidade política registada nos anos 80 do séc. XIV (recorde-se a crise de 1383/85), os cavaleiros de S. João vão reiterar a sua adesão aos primeiros monarcas da dinastia de Avis. Mais tarde, a fidelidade à causa da rainha D. Leonor, viúva de D. Duarte, surge no âmbito de uma forte discussão política que divide profundamente a sociedade portuguesa de então. Debelada a situação no campo de Alfarrobeira, pela via das armas, foi reabilitada a convivência com o poder político instituído, já no reinado de D. Afonso V. A evolução do poder monárquico, em sintonia com os sinais de desenvolvimento do Estado Moderno, são razões mais do que suficientes para imporem a intervenção directa da monarquia no funcionamento das Ordens Religiosas e Militares. Na verdade, o abandono progressivo da Medievalidade e o rumo à Modernidade levam D. Manuel I a interferir na escolha da pessoa responsável pelo

Priorado do Crato. Ou seja, no momento em que morreu o Prior Diogo Fernandes de Almeida, o rei indigitou para sucessor D. João de Meneses, mordomo-mor e 1º conde de Tarouca, contrariando a liberdade dos freires na escolha do cavaleiro que assumiria a sua liderança. Esta tendência vai ser claramente assumida no reinado de D. João III, altura em que numerosos contactos entre este monarca e os seus embaixadores na Corte de Roma se centraram na questão do provimento do Priorado do Crato, que, segundo a pretensão de D. João III, deveria ser confiado à administração do seu irmão, o infante D. Luís. À semelhança desta situação, também as outras Ordens Militares presentes em Portugal tinham sido alvo da integração directa no quadro da Coroa, através da nomeação de infantes para o seu governo, mas já no 1º quartel do séc. XV. A Ordem do Hospital aguardou este processo cerca de um século, por razões que decorrem das características peculiares. Recordamos: desempenhava um papel crucial tanto na defesa dos lugares santos, como na prossecução de uma programa sócio-caritativo, era uma instituição internacional, com bastante peso na política europeia, beneficiava da notoriedade alcançada por alguns cavaleiros nas lides da guerra discutida no Mediterrâneo, gozava de grande prestígio e contava com a influência de destacadas famílias. A vertente supranacional da Ordem de S. João assistiu nesta mesma época, ou seja, na transição do séc. XV para o XVI, a grandes mudanças. A sede conventual deslocou-se para a ilha mediterrânica de Malta, de onde, aliás, viria a nova designação atribuída a estes freires - Malteses, pois são membros da Ordem de Malta. Na base desta transferência geográfica esteve a perda do domínio da ilha de Rodes, em 1522, fruto do avanço

19


20

militar dos turcos-otomanos. Como consequência, o imperador Carlos V cedeu a ilha de Malta à Ordem de S. João, em 24 de Julho de 1530. Por trás desta concessão esteve o prestígio da Ordem, o seu papel ao nível da política mediterrânica e a contenção que faziam aos turcos impedindo-os de progredir em solo europeu, a influência do Papa Clemente VII, bem como de D. Catarina de Áustria, irmã de Carlos V e consorte de D. João III (1525). A sede conventual manter-se-á em Malta até que Napoleão Bonaparte toma a ilha (1789) e os cavaleiros se fixam em Roma (1834), depois de uma fase difícil da sua existência. A esta instabilidade, outros episódios conturbados se acrescentariam no caso do Priorado de Portugal, como, por exemplo, o terramoto que em 1531 se fez sentir na zona da Flor da Rosa e do Crato, responsável pela derrocada de património arquitectónico. Em 1662, a incursão de D. João de Austria nas terras do Crato, no quadro da guerra da restauração da independência nacional e legitimação da dinastia de Bragança, deu origem a uma destruição massiva do arquivo dos Hospitalários. A estes factos podemos acrescentar outras vicissitudes que contribuiram para a delapidação do espólio da Ordem. O terramoto de Lisboa de 1755 e a evolução da Casa do Infantado, que era a instituição patrimonial dos filhos segundos dos monarcas (1654-1834), e que, em 1789, obteve o controle do Grão Priorado do Crato. Por fim, e para concluir, em 1834, ocorreu, no nosso país, a extinção das Ordens Religiosas e a correspondente nacionalização dos bens da Igreja. As Ordens Militares, em geral, foram atingidas por este processo e, actualmente, mantêm-se na qualidade de Ordens Honoríficas associadas à Presidência da República e são utilizadas para condecorar cidadãos que

se tenham distinguido em determinadas áreas da vida pública. O caso da Ordem de Malta apresenta certas singularidades que não valerá a pena explanar neste contexto, destacando-se, hoje em dia, o seu estatuto de Estado Soberano e a permanência do seu papel ao nível de actividades hospitalares e assitenciais. Rio Meão, 7 de Outubro de 2006


ORDEM DE MALTA E RIO MEÃO (Conferência)

David Simões Rodrigues* 1. Palavras prévias da circunstância 1. Foi a riqueza de alma de povo singular realidade diante da qual tantas vezes me confrontei e o conhecimento da sua riqueza histórica e arquivística que em tão pouco tempo escrevi a vossa biografia. Antes Rio Meão terra para nós não passava da rua de acesso fugidio ao ColégioLiceal de Lamas. Só quando calcorreámos os seus Casais para traçar o perfil histórico de Povo buscando esclarecimentos, confrontando lugares e situações in loco com as informações dos arquivos, ficámos a conhecer a terra. Mas familiar era-nos já o seu Povo. Perguntar-me-á o ouvinte. Mas como, nada conhecendo da terra, para além da rua que atra-

vessava, não conhecia a alma deste povo, para tanto a apreciar? Muito simplesmente. Lá, na escola, e sobretudo nas minhas aulas. Mas, como, se a nossa escola eram os campos, as fábricas e as viagens de comércio? Estavam lá filhos vossos, nossos alunos, e se deles não foram alunos nossos, estivemos directamente ligados como responsável pelas direcções de turma, da disciplina geral, das operações de secretaria nos certificados de habilitações e cartas de curso. E se vossos filhos, imagens vossas. E não dizeis vós que sois povo do povo e que tais pais tais filhos? Por detrás dessas imagens de filhos via os pais e nestes um povo e ia dizendo para mim, há-de ter uma grande história este Povo de Rio Meão. Vamos então à descoberta da história do Povo de Rio Meão que viveu 700 anos à sombra da Comenda da Ordem de Malta.

* Licenciado em Filologia e Literatura Grega e Latina, Clássicas, com as variantes de Literatura Brasileira e Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Diplomado em Histórico e Filosófica. Curso de Teologia. Dedica-se à investigação Histórico-Científica.

21


E daí nasceram os dois volumes da História que vos escrevi, «Rio Meão a Terra e o Povo». Cremos que, de alguma forma, com algum orgulho, nos sentimos agora e aqui co-responsável por este simpósio, que muito deveria honrar o Povo de Rio Meão. Simpósio em boa hora levado a cabo pelo esforço conjunto da Ordem de Malta, desta Junta de Freguesia e da Câmara Municipal da Feira, merecedora de grande apreço pois à cultura destas terras tem prestado muitos e relevantes serviços. Com experiência própria o dizemos. 2. «A Comenda de Rio Meão da Ordem de Malta» 22

Minhas Senhoras e Meus Senhores Mais de 750 foram os anos de presença da Ordem de Malta em Rio Meão. Cremos que Rio Meão Histórico, dentro da concepção do que é, na sua essência, a Antropologia Cultural, será indissociável da presença efectiva e acção continuada da Comenda da Ordem do Hospital ou de Malta aqui, desde D. Sancho I, 1182, - pelo menos, até à vitória do Liberalismo vintista, 1834. Seria diferente hoje o povo de Rio Meão, sem qualquer Ordem? Seria outro com outra Ordem? Que percurso histórico teria feito a terra e o seu povo pelos séculos fora neste espaço em que veio vivendo? Sem a Ordem de Malta seria este mesmo, outro semelhante ou completamente outro? De certo sabemos que outra seria a igreja, outra a arquitectura, outras as talhas, outros os reitores, outros os visitadores, outros os agentes históricos, outros os marcos divisórios das freguesias limítrofes,

outras as obras, outras as fontes históricas e outra a história, porque outros os arquivos, (ou até nenhuns) outras as formas de vida, outra a alma, outros os factos políticos, judiciais, outras as fontes ou mesmo nenhumas, deixando-nos completamente privados de notas várias sobre as formas de vida, de economia, de relacionamentos reveladores de circunstâncias que só estas particulares podiam deixar e trazer até nós o conhecimento dess as formas de vida. As obras manifestam o carácter dos seus artífices. 3. As concepções da vida, do homem, do mundo, do universo e as suas resultantes práticas no tempo e no espaço concretos, são produto histórico de múltiplos e inelutáveis factores concentráveis em dois, ao mesmo tempo causa e efeito dialéctico. Primeiro factor: as concepções religiosas, éticas e económicas que estruturaram a massa social em todas as suas componentes vindas dos nossos ancestrais por imersão social e endosmose incorporadas em cada um de nós sua síntese aqui e agora. Segundo factor: adicionais influências exteriores introduzidas e que foram imprimindo indeléveis marcas mais ou menos visíveis, no espírito, na forma de ser, de encarar e viver a vida, na expressão geral do carácter do povo e analisável nas suas formas de economia, com especial relevo a rural, nas formas de exploração da terra, na relação das forças de produção, na influência de outras ordens de senhores da terra, na distribuição demográfica; na toponímia e na topografia. Basta assinalar este pormenor para se entender as razões das nossas referências. Não erraremos se afirmarmos que não haverá freguesia nas cercanias que seja tão bem conhecida


topograficamente pela quantidade de referências descritivas dos solos medidos, confrontados e escriturados para efeitos enfitêuticos como a área paroquial de Rio Meão. Desde logo, neste processo, se recebem caudais de informações históricas únicas e necessárias ao conhecimento dos terrenos, sua natureza, forma, contextura geológica, arborização e qualidade e espécies, e produção, cursos de água, referências arqueológicas, contiguidade de outros senhorios em presença, famílias, parentescos, profissões, formas de exploração da terra, evolução e mobilidade económica e social, litígios, indústria molinária, formas de aproveitamento dos cursos de água naturais e artificiais, no caso os «regos» que deram origem ao arabizado topónimo Alpossos. Regos que, atravessando o actual Santo António vinham regar os campos do Outeiro e de Sá. Tabeliães, testemunhas, importâncias e formas de cumprimento das banalidades. Às influências romanas e visigóticas se adicionaram as formas árabes.

Tal como o homem também terra alguma é uma ilha. Rio Meão viveu séculos com a Ordem de Malta por mestra, e desde sempre povo vizinho de Esmoriz, São Paio de Oleiros, Santa Maria de Lamas, São João de Ver, Espargo, Cortegaça, Arada e Maceda, ambas suas anexas praticamente desde o início e Paços de Brandão cujo pároco era da nomeação da Ordem à vez com o mosteiro de Grijó, senhor aqui de casais. Também o Conde da Feira e depois os príncipes senhores da Casa do Infantado; também o Cabido e o Bispo do Porto para além dos votos a Santiago de Compostela. Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és pois, mais ou menos impressivamente, moldam o carácter e definem os comportamentos. A de mais longa duração sem dúvida foi a da Ordem de Malta, 1182 a 1834. Talvez aqui uma das principais razões e um dos segredos por que neste espaço tão reduzido da freguesia de Rio Meão nasce e vive este povo, o Rivomedianense, marcadamente ele próprio igual a todos os que o

23


24

circundam e ao mesmo tempo tão diferente, por que factores diferentes lhe moldaram a alma e definiram o carácter. A esta complexa acção não será alheia a activa e secular presença da Militar Ordem de Malta. Desde os autarcas que lhe lavaram a cara e arrumaram a casa, à simples gente comum dos seus casais, aos empresários, aos operários das suas fábricas e oficinas, aos antigos e novos. E a verdade é que muita gente veio de fora em busca de trabalho, aqui se estabeleceu e de tal ordem se integrou que não se distingue de tal modo foram recebidos que não há memória do mais leve conflito. Diz dos que entram, mas muito mais dos da casa. E a Casa é Rio Meão cujas portas se abriram fazendo dos que lhe entraram irmãos e comensais. Será que para a textura desta alma colectiva de Rivomedianense contribuíram também a concentração dos seus Casais no estreito espaço geográfico à volta da sua igreja, estreitando entre si laços de coesão fraternal? Serão de excluir ainda a presença de reis, de muitos nobres, de conventos que de muito cedo aqui tiveram terras de presúria entradas depois em doações, tratos e contratos dispersos por arquivos públicos e particulares? E finalmente, desde 1220 (1182) a 1834, a Ordem do Hospital de São João de Jerusalém, mais tarde baptizada de Malta, designação que perdura nos vários recantos do mundo em que se encontra? Esta experiência e privilégio como poucos porque lhe desbravámos os arquivos, vimos os registos, vasculhámos os recantos, calcorreámos os casais, seguimos as confrontações das suas courelas, anotámos as rendas pagas dos foros, descobrimos admirados as referência pré e históricas gravadas nos topográficos, batemos à sua porta, sem nunca antes saber caminho nem carreiro, descobrindo topografias muito antigas. E sobretudo descobrimos

um Povo de alma branca revelada em toda a sua profundidade. 4. Rio Meão e Rossas, Comendas de Malta cada uma no seu tempo e a seu modo. Que valor acrescentado para a Terra e o Povo da Comenda de Rio Meão trouxe a Ordem de Malta? Se outras não houvesse, aqui e hoje estaria uma das respostas mais óbvias neste simpósio, que não sendo tudo é já muito porque, no País, em Roma, nos jornais e revistas se anunciou Rio Meão de que Malta foi comendatária. As duas igrejas romano-góticas no espaço geográfico a sul do Douro, os mais preciosos ex-líbris arquitectónicos, é no espaço que foi comenda de Malta que se ergueram, conservaram e se guardam, e constituem uma boa fatia da riqueza históricocultural destas freguesias. Porque só estas freguesias e não outras? Porque foram da Ordem de Malta que procurou dar às suas Comendas edifícios de culto o mais nobres possível, ao estilo da época. Ordem de Malta, para além disso, factor de conservação do que hoje deve constituir orgulho histórico-cultural para os seus povos, enquanto outras tendo ou não, é certo que hoje nada têm de notável em arquitectura e arte. Na sua construção e conservação está a Ordem de Malta que serviu de escudo contra furacões da iconoclastia cultural preservando, conservando os monumentos das suas sedes. Se outro mérito não houvesse que assacar à presença da Ordem de Malta em Rio Meão bastaria para lhe tecer os maiores encómios. Porque salvar arte é salvar cultura, é perpetuar memória, é dar voz aos valores, é permitir a continuidade da identidade de um povo vivo nessas formas.


5. A Comenda de Rio Meão da Ordem de Malta. Busquemos-lhe as raízes. Rio Meão, a presença árabe, a reconquista e D. Sancho Primeiro – O Povoamento

Quanta alma de povo sepultada, desde 1834, nos escombros dos seus monumentos de arte em cuja riqueza este nosso desgraçado País se poderia hoje orgulhar! Quem anda por aí, conhece a história e contempla ruínas e lugares em que nem ruínas já restam, não pode deixar de estremecer de alma caída aos pés perante a hecatombe. Quanto deste povo em devotado amor, em penoso trabalho, em dolorosos sacrifícios, em amargo suor, em salinas lágrimas, em inimagináveis privações, jaze para sempre sepultado nessas urinas e nesses escombros! Quanta da sua alma. Arte em cinzas, em vento, pelo tempo que parte já limpou. Por isso se não sente a desgraça, porque nos poupou ao sofrimento, tudo retirando da vista, penas que se não vêem não se sentem. Por acção do tempo só?

5.1. No ano de 709, início de séc. VIII, morre Vitiza, último rei dos Visigodos, aqui estabelecidos no século VI. Deveria suceder-lhe o filho Áquila, porém D. Roderico apodera-se violentamente do trono visigótico. O Povo fiel a Áquila comandado pelo bispo Opas secundado pelo conde Julião une-se aos judeus e chama em seu auxílio o inimigo muçulmano, que gulosamente espreitava já o momento de atravessar o estreito de Gibraltar para se lançar e islamizar a Península Ibérica visigótico-cristã. Entre Abril e Maio de 711, 7.000 guerreiros berberes desembarcam ali sob o comando de Táric. D. Roderico combatia então na Catalunha os francos e vascões. Corre a opor-se aos invasores e aos traidores. Mas, em 19 de Julho de 711, é completamente derrotado nas margens da lagoa de Janda. A partir daqui se franqueava o caminho livre para a ocupação islâmica de toda a Península, Rio Meão incluso, e tão célere foi a ocupação que no ano de 713 já Alpoços se encontrava ocupado. Esta a mais fácil e fecunda zona, devido aos célebres e históricos regos (poços) que alimentaram as culturas do lugar e donde partiam pelo lugar hoje de Santo António, Valas, indo até aos campos do Outeiro e de Sá. Pelágio assume o comando dos cristãos refugiados nas montanhas das Astúrias, tornadas agora sede do pequeno reino cristão donde o movimento da reconquista parte com a ajuda dos reforços e o apoio dos chefes cristãos da Europa.

25


26

5.2. A presença da Ordem dos Hospitalários ou de Malta em Rio Meão tornado sua Comenda, inserese neste espaço histórico que originou as Cruzadas do Oriente e do Ocidente, e estas dentro de outro caracterizado pelo expansionismo maometano desde 630 senhor dos lugares sagrados judaico-cristãos: Templo, Santo Sepulcro de Jerusalém, e outros correlacionados. Varrido todo o Norte de África, penetra em 711 na Península Ibérica cristã num ápice dominada na forma acima apontada. Aproveitando-se do enfraquecimento dos reinos visigótico-cristãos, transpostos os Pirinéus com tal ímpeto imperialista, em 732, 21 anos após a travessia de Gibraltar, se encontram às portas de Poitiers. Impede-lhes a triunfal progressão, o intento de dominar toda a Europa e a promessa de transformar os altares de Roma em manjedouras dos seus cavalos, a coragem militar de Carlos Martel que os faz recuar até às fronteiras Pirenaicas, onde lendárias batalhas se travaram, corporizadas nas figuras de Orlando Furioso e de Orlando Enamorado. (Lusíadas, I, 11). Gibraltar só mais tarde assim nomeado, porque de Táric tomou o nome a que juntaram o árabe «jabal», monte. E este inimigo não morreu. A história é espiral. E a história, não sendo uma das suas principais funções, deve constituir para o homem seu fundamental actor fonte de experiência formadora da ciência secundando a natural tendência humana para a memória curta. Tróia homérica está-se construindo nesta Europa de memória curta. 20 anos são passados sobre o que ouvimos ao saudoso e assaz avisado professor Dr. António José Saraiva em debate radiofónico ao regressarmos das nossas aulas de professor em Lamas. Discutia ele com outros ilustres participantes no debate

sobre os perigos da progressiva desnatalização europeia ocupado o défice por muçulmanos a transformar esta Europa política e religiosa, em novo cavalo da Tróia homérica. Aí está. O cavalo e a Tróia homérica. A verdade é que acontecimentos recentes apontam para progressivos perigos vindos de organizações árabes no seio europeu minando-lhe segurança e independência. O cavalo já está introduzido. A ameaça de guerra já soa. A Europa vai-se ajoelhando às vozes de intimidação. 5.3. As Cruzadas do Ocidente e do Oriente. Ignora-se a data exacta da entrada em Portugal da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém. Tudo leva a crer que no dealbar da nacionalidade. Se não já com D. Afonso Henriques, 1128-1185, pelo menos com D. Sancho I, o Povoador, 1185-1211, cerca de 1200. E chegam quando se tornava mais premente a necessidade da sua acção, quando estava em marcha a política de repovoamento do solo nacional lançada por este rei na sequência do movimento da reconquista. Nessas terras ermadas e precariamente seguras, imperiosa a criação de condições de fixação do povo. Aí e na visão ocupacionista reside a melhor defesa se insere toda a acção de D. Sancho I que trata da consolidação da reconquista. Buscando os seus agentes, dando continuidade à política do pai D. Afonso que levara a Ordem de Cister a estabelecer-se nas terras conquistadas aos Mouros, desde Tarouca a Alcobaça com mesma finalidade, cuja politica o filho continuava mais efectiva e intensamente, criando assim as condições de defesa pelos próprios povos. D. Sancho continua-a em mais larga escala. Veementemente concita as ordens religiosas regulares, contemplativas e militares e distribuindo-lhes terras para


António Feijó de Andrade Gomes, Paula Maria Pinto Costa, Francisco Ribeiro da Silva e David Simões Rodrigues.

a fixação de colonos através de novos forais próprios e a criação dos concelhos. D. Mafalda, irmã de D. Sancho I, juntamente e alguns nobres já possuíam herdamentos em Rio Meão a par do mosteiro de Grijó e de importantes próceres do tempo e destas terras da Feira. Com o estabelecimento de Malta, a igreja de Rio Meão sai da esfera do Bispo e fica sob a jurisdição directa da Ordem com sede em Leça que tomou o nome de Balio por ser sua sede. A Norte e a Sul do País, foi sendo dotada de terras e castelos como resposta à referida política de repovoamento pela fixação de casais. E daí que a entrega de Rio Meão como Comenda à Ordem de Malta fosse um acto mais que estava no caminho desta política real. Já acima ficou claramente sugerido que a presença das Ordens Religiosas e Militares constituíram para o tempo providencial recurso de modo a servirem de tamponamento à veleidade maometana em recuperar as terras perdidas para a Reconquista Cristã, a partir das Astúrias de Pelágio.

A retomada pelos Cristãos do território perdido fez ressurgir por diversas vezes tentativas de contra-ataques dos califados Árabes de Córdoba, Sevilha, Algarve e ainda do Norte de África, e de tal sorte a sua virulência surtiu efeito que as razias chegaram até a este nosso Norte, Rio Meão e Porto. Apesar dessas arremetidas dos sultões deixarem atrás de si rasto de morte e destruição as populações sentiam-se menos inseguras junto dos conventos, castelos e comendas. Além da sensação de segurança contra as arremetidas islâmicas, sentiam ali resposta às fomes recorrentes, às pestes cíclicas na Europa da Idade Média a que os Descobrimentos poriam cobro com a melhoria da alimentação, introduzidos, sobretudo, o milho grosso e a batata. Muito se fala do perigo muçulmano. É certo. Mas não era o único. Talvez o mais temível estava nos bandos de salteadores. Na contenção desse terrível flagelo e protecção das populações muito contribuíram as ordens militares em geral e em

27


28

particular a Ordem de Malta nas terras a si distribuídas. Numerosos, ferozes, frequentes, sempre actuantes, activos sobretudo em crises económicas e alimentares, lançavam-se armados sobre as populações em fuga e em pânico, cujas casas desventravam impiedosamente em saques casas simples de aldeões e palácios não poupando as vidas das vítimas. Constituíam-se num dos mais terríveis e devastadores flagelos medievais. No combate a este flagelo num tempo em que ainda não existia polícia organizada valiam as ajudas das Ordens Militares que, na sua perseguição sustentavam por vezes ferozes combates, pois os malfeitores se constituíam em autênticos exércitos de fora de lei. A política de aldeamentos em casais, aproximando os colonos, combatendo a dispersão e fortalecendo a coesão, permitia que entre si se estabelecessem sistemas de defesa mais eficaz e dissuasores sob a protecção e socorro de todas as ordens sociais. Fixos os colonos nos seus Casais podiam estes contribuir para a defesa própria, restabelecer a normalidade da vida económico-social com futuro, cuidar do arroteamento das terras, celebrar as festividades religiosas, incrementar as feiras e os mercados, as trocas e as transacções de produtos agrícolas, contribuir para o desenvolvimento das feiras vizinhas, servindo de incentivo geral à economia agrícola de mera subsistência paulatinamente tornada de mercado. Com o desenvolvimento económico e social, surge a prosperidade das populações e bem-estar geral, na melhoria de vida, na qualidade da alimentação, no vestuário e habitação, pois os colocavam mais a coberto das mortandades consequência das terríveis fomes

medievais, tornados mais resistentes às não menos avassaladoras pestes e aos assaltos dos bandos de ladrões. Embora só em 1827 Rio Meão obtivesse alvará de criação da sua feira. À sombra dos conventos, dos castelos, da cavalaria e da assistência religiosa, e em Rio Meão da Comenda da Ordem de Malta se criava o clima de confiança reforçada pela constituição e estabilização das hierarquias, pelo exercício da justiça e pela organização administrativa. E assim constituiu Rio Meão o seu carácter próprio à sombra da Militar Ordem de Malta que lhe foi moldando o espírito ao longo dos séculos de presença e de convívio. Devido a esta presença encontramos hoje funcional documentação de arquivo, enriquecimento histórico, na medida em que nela podemos ler, estudar e avaliar muito da vida deste Povo desde antiquíssimos tempos. Rio Meão e D. Afonso Henriques, D. Sancho I, D. Afonso II e sua irmã D. Mafalda, as trocas desta em 1220 com a Ordem em que entrava como matéria de troca a Bailia de Rio Meão. No mesmo ano, Fernando João e sua mulher Maria Mendes, senhor de Pessegueiro e alcaide da Feira, a esta Ordem de Malta «doa a igreja de Pereira com todas as suas pertenças e direitos... em montes, fontes, campos, vinhas e lugares velhos e novos, e também o direito de apresentação da sua igreja, mas como já a havia feito ao bispo do Porto, foi a questão de pertença dirimida a favor do prelado em 1242, cujo sucessor em 1272 nomeia seu cura o padre Gonçalo Esteves, até então «reitor de são Pedro de Fins sobre Feira».


Arada e Maceda, sua entrada como anexas da Comenda de Rio Meão. Em 1220, Maceda ainda não era freguesia e já fazia parte desta comenda de Rio Meão que apresentava o cura desde que lhe fora doada como anexa, por estes termos: «Esta carta he per que Goterre Trutusendo deu a Igreja de maceda ao Spital que he so Monte de Vilela, e ainda outros lhe deram o dito de padroado que aviam em Santiago de Lourosa». Arada, anexa de Rio Meão, a par de Maceda, entra na Comenda antes de 1220, por carta de doação de sua senhoria, uma D. Teresa e seus filhos que da igreja de São Martinho de Arada fizeram carta de doação à Ordem do Hospital (Malta). Seguiu-lhe o exemplo um Domingos Esteves morador na sua quinta em Arada que lha entrega juntamente com outros herdamentos que ali possuía. Os próprios marcos que lhe delimitam a geografia; os volumes de grossos tombos das propriedades, sua descrição topográfica, fonte preciosa de conhecimento de mais fundo passado e suas envolvências próprias, fornecendo elementos de leitura mais clara e aprofundada da sua história, documentos tabeliónicos, datas, nomes das pessoas, pormenores da enfiteuse, descrição dos foreiros, intervenção de testemunhas, termos em que os contratos se processavam, foros e quantidades, produtos, confrontações e descrições topográficas pormenorizadas, a menção de outras entidades possuidoras de bens próprios dentro do aro paroquial, intervenientes nesses actos diversos e a diversa qualidade, estatuto social; outras terras e concelhos por onde corria a tombação para além do casco da Comenda e suas anexas, Maceda e Arada, as relações sociais religiosas e civis, sombras e correcções ordenadas pelos visitadores de Malta, o estado da igreja

e cuidados e descuidos, tragédias e festas, costumes e atitudes e um sem número de particularidades. Mas tudo sem que se trate como história de um povo passado mas presente porque de presente se trata, pois não somos mais que esse passado actualizado, passado actualizado, com todas as profundas e pessoais implicações que o termo encerra. E aqui está o aliciante, o apaixonante lado do problema em que a história passada somos nós presentes, vivos, todos sem excepção em que ela vinda do passado desagua em nós presente. Numa árvore não são as raízes parte do tronco e o tronco parte das raízes? Os marcos da Ordem de Malta. Eles não se apresentam apenas como ornamento paisagístico. Constituem-se também em mais valia histórica. Questão aparentemente menor, na realidade importante na sua função documental: pelo material, pelos símbolos de que são portadores, ainda pelos problemas que ajudaram a resolver, sobretudo pelas actas de que foram alvo, ainda pela qualidade dos intervenientes, pelas notícias das circunstâncias em que as partes se encontraram incluso locais, outros tantos elementos a engrossar o caudal e alargar os horizontes históricos, sempre enriquecedores de uma terra, a que hoje chamamos curriculum vitae. Dão-nos ainda a conhecer um pouco das relações de Malta e Rio Meão com as freguesias suas vizinhas: Esmoriz , Lamas, Paços de Brandão, São João de Ver, Espargo; com instituições como o cabido da Sé do Porto e o convento de Grijó; a nobreza como os condes da Feira. Estes marcos, sentinelas de vigia das fronteiras da freguesia e Comenda da Ordem de Malta em Rio

29


30

Meão, constituem componente histórica do seu património cultural, adicionalmente concorrendo para a definição da área administrativa e religiosa mas também da identidade desta terra e deste povo. Cuidar deles é preservar património e ter junto de nós vivo o passado. Por isso, em nome dessa presença devem ser cuidados, preservados e os desaparecidos recolocados. Elementos aparentemente mudos e banais falam-nos de parte integrante e importante do percurso histórico da Comenda de Rio Meão, Terra e Povo. Rio Meão, a Ordem de Malta e o Zé do Telhado Por anedótico que pareça, até o Zé do Telhado tem a ver com toda esta história e constitui episódio do tempo que também teve repercussões em Rio Meão. Não fora a Ordem de Malta e talvez esta típica figura de bandoleiro por aqui não tivesse andado. Mas a história tem destas surpresas explicáveis apenas por elas próprias. Mas que tem a ver este capitão de ladrões com Rio Meão e a Ordem de Malta, ou vice-versa? Em História tudo tem a ver com tudo como numa teia um fio tem a ver com todos os fios da sua tecitura. José do Telhado visitou as casas abastadas do Chão do Rio na forma descrita e narrada no livro que sobre esta terra escrevemos. Não queremos atribuir aos factos uma relação directa de causa efeito. Assinalamos e cada um verá o que entender dentro dos factos. Sigamos o fio da teia em cada um explica o outro pela sua inter-relação. Não percamos de vista o peso e a função da tradição nas nossas aldeias mais funcional que jornais e revistas de hoje que se fecham e não mais se vêem. A tradição era jornal desses tempos constantemente aberto e tanto

mais vivo quanto mais recuados os factos no tempo: à lareira dos invernos, nas eiras das desfolhadas, nos campos das sementeiras, nas feiras, nas festas dos santos. Décadas diariamente avivadas entre velhos e novos. Vamos aos dados históricos: Em 1760, o tesoureiro da igreja de Rio Meão nomeado por Malta era o clérigo in minoribus padre Alexandre Coelho Ribeiro, natural do lugar da Pedra, da freguesia de São Martinho de Recesinhos, comarca de Penafiel. A tomada de posse teve solenidade própria e nela estiveram envolvidas várias personagens. Não sabemos até quando se manteve em Rio Meão. De São Miguel de Recesinhos era também Zé do Telhado, soldado, que, em 28 de Agosto de 1837, se bate valorosamente ao lado do barão de Setúbal, Schwalbach, na batalha ali em Souto Redondo, e tanto que este publicamente o louva e nomeia seu ordenança particular. Do lugar do Galego, freguesia de São Miguel de Recesinhos, era Joaquim Ferreira que em 1 de Junho de 1840 veio à Própria da Comenda de Rio Meão casar com moça cujos avós paternos eram também do dito Galego, naturalmente vindos na “charroda”1 do referido abade tesoureiro da Comenda de Malta em Rio Meão, naquele ano de 1760. Adversidades e injustiças meteram este herói, militar condecorado, na senda da marginalidade como capitão de salteadores de abastadas casas numa vasta área a norte e a sul do Douro. “Charroda” - Regionalismo que, embora não dicionarizado, como tantos outros correctos, será admissível. Significa: “nos passos de”, “atrás de”, “seguir depois”. Composto, por aglutinação, de “Charrua” que abre o sulco na linha marcada pela roda, da mesma charrua, na qual se apoia a extensão em que a aiveca e a relha se ligam. Charrua + roda > char(rua) roda > charroda. Deuse a elisão sincopada. Esta, no caso específico, dá pelo nome de haplologia. Dá-se esta elisão de silaba quando, na aglutinação, a última sílaba do primeiro elemento (ru), se inicia com a mesma consoante (ro) do segundo, como poderia ser outra a consoante em causa na mesma situação de haplologia. Consiste esta elisão de sílaba quando, na aglutinação, a última sílaba do primeiro elemento se inicia com a mesma consoante do segundo.

1


E é em todo este contexto histórico que vamos encontrar, em 1850, os assaltos às casas do Chão do Rio, não tendo escapado a da Portela de Paços de Brandão, capitaneados por Zé do Telhado, com as tragédias relatadas e o caso de Bernardina das Casas da Quinta da Paredinha, na madrugada desse mesmo dia a caminho do Seminário dos Carvalhos a qual no caminho se cruzou com os sabidos meliantes com todo o ar de quem demanda feira lá para os lados de Gondomar. Aqui deixamos estes salpicos de história da Ordem de Malta na sua Comenda de Rio Meão, sobre que escrevemos 700 páginas acompanhadas de notas que fariam outro tanto em corpo de texto. Hoje, sem vaidade e com algum orgulho, ao retomar contacto com o trabalho, partindo de quase nada nos meus arquivos, consegui produzir tanta história desta Terra e deste Povo que honrosamente ostenta as marcas de 650 anos de presença efectiva da Hospitalar Ordem de Malta, das quais a não menor, a igreja romano-gótica, verdadeiro ex-líbris da sua rica e variada história. Esta é também a Ordem de Malta em Rio Meão. Gratos pelo obséquio da vossa simpática atenção. Tenho dito.

Rio Meão - 07/10/2006

31


32

MENINO DO MAR Ilda Maria* Menino do Mar Nascido do mar Pró mar! Crestado, moreno, Menino pequeno Que andas a brincar No mar! É o teu brinquedo, Menino sem medo! E brincas sonhando Teus sonhos doirados No peito embalando Destinos salgados. Tens mar por brinquedo Na alma o segredo Que andas a embalar. Menino andrajoso Que dom venturoso Te leva pr’ó mar? Menino de estrigas No cabelo inculto Que segredo oculto No teu peito abrigas?

Tens mar por brinquedo Menino sem medo Brincas com o mar! E o mar rugindo Te vai incutindo N’alma o seu rugir. Menino que ris, Quando vês partir Uma caravela. Menino feliz Que fada ou estrela Te faz tão feliz? Verdes de mirar Menino, cautela Que o mar te cria É a tumba fria Dessa ideia bela! Mas o mar te grita, Nas vagas que agita Ouve-lo chamar Tens mar por brinquedo Menino sem medo Menino do mar! O mar te embalou

* Poeta. Faleceu em 20/07/1981


BREVE HISTÓRIA DA ORDEM SOBERANA MILITAR DE MALTA E HOSPITALÁRIA DE S. JOÃO DE JERUSALÉM, DE RODES E DE MALTA I – A TERRA SANTA António Feijó de Andrade Gomes* ocal Santo, meta por excelência da peregrinação das peregrinações, a Palestina, e muito em especial Jerusalém, desde os alvores do cristianismo, foi o termo das viagens dos peregrinos, o final de longas, penosas e angustiantes caminhadas. Ali chegavam, não raras vezes, exauridos pelas doenças que contraíram no percurso, ou maltratados e feridos pelos assaltos que sofriam ao longo das vias que utilizavam nesta difícil e, sabe-o Deus quanto, dramática jornada. As carências eram muitas * Coronel do Exército. Director da Delegação do Norte do Instituto da Defesa Nacional, no Porto.

e a insegurança uma constante, nestes caminhos penosamente percorridos em direcção aos lugares santos. Ao longo destes dois milénios, tal como ainda hoje e com a mesmo sentimento, em tempo e de modo bem diferente, incontáveis multidões continuam a rumar para aquelas paragens, não muito pela curiosidade turística como poderá pensar-se, mas sobretudo porque seguindo ali os passos de Jesus Cristo, nos caminhos que Ele trilhou, tal como ontem, tal como sempre acontecerá, os homens continuamente procuram, o conforto espiritual e a intimidade com Deus. Ali, de facto, naquela terra de vida e natureza inóspitas, onde a pequenos intervalos de paz se vão sucedendo longos períodos de instabilidade e de guerra, o Filho de Deus fez-Se Homem. O Messias esperado, tal como os profetas dos livros sagrados o anunciaram, veio ao mundo. E neste Seu percurso temporal, pelos Seus ensinamentos e pela Sua Paixão e morte na Cruz redimiu a humanidade. E na Sua Ressurreição, facto essencial da Fé, deu sentido à História, marcando indelevelmente

33


Para os Cavaleiros Hospitalários os quatro braços da cruz significam a Cruz da Cruxificação de Jesus e as oito pontas, as Bem Aventuranças do Sermão da Montanha (Mt 5,3-10): “3. Felizes os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus. 4. Felizes os que choram, porque serão consolados. 5. Felizes os mansos, porque possuirão a terra. 6. Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. 7. Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. 8. Felizes os puros de coração, porque verão a Deus. 9. Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.10. Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu”. 34

as relações do homem para com o seu próximo e, por elas e com o que isso implica e determina, a ligação e comunhão com Deus, o Senhor da Criação, da vida eterna, do grande amor e da infinita misericórdia: o A e o Ω. Na fidelidade a estes ensinamentos, ao Magistério da Igreja e ao sucessor do Apóstolo Pedro e no exercício da Caridade, no seu relacionamento com os homens, mormente na vincada opção pelos que sofrem, pobres, doentes, desprotegidos e vítimas da injustiça, nasceram os Cavaleiros Hospitalários de S. João de Jerusalém cujo lema que é seu, “Tuitio Fidei, obsequium pauperum”, expressa e afirma, com clareza, perfeição e intemporalmente o seu carisma.

II – A FUNDAÇÃO DO HOSPITAL É na vivência desta Fé e numa das suas mais sublimes expressões da ligação com Deus que é o exercício da caridade, que alguns ricos comerciantes de Amalfi, pequena cidade costeira, situada a cerca de 60 Km de Nápoles – que mantinham importantes negócios com a região da Ásia Menor e com o Egipto – condoídos com o estado de enfermidade como os peregrinos cristãos chegavam à Palestina, no ano de 1070 solicitaram ao califa do Egipto, que tinha sob a seu domínio administrativo os locais da Terra Santa, a concessão de poderem ali fundar um hospício com a finalidade de acudir, albergar e tratar os peregrinos que demandavam aqueles lugares santos. Autorizados, construíram um no bairro cristão de Jerusalém. Concluída a obra, colocaram esta casa sob a jurisdição da igreja beneditina de Santa Maria Latina, obrigando-se, os que ali iam servir para acudirem aos padecimentos de todos


grande número de pessoas. Devido a este facto, iniciouse a construção de um novo e amplo hospital, obra que se concretizou em curto espaço de tempo. Estas novas instalações tinham uma igreja anexa, que primeiramente, esteve sob a invocação de São João, Patriarca de Alexandria e, posteriormente, de S. João Baptista, o Precursor, aquele que foi o último profeta do Antigo Testamento e o primeiro do Novo Testamento. Este hospital chegou a ter uma capacidade para, simultaneamente, atender, internar e tratar, nas circunstâncias de maior afluxo de gente, cerca de um milhar de pessoas, sendo pelo facto considerado

Beato Gerardo de Tengue

quantos deles necessitassem, a seguirem a regra de São Bento de Núrsia, na qual a hospitalidade foi sempre e é, senão a primeira, umas das proposições fundamentais daquele texto. Pela forma como era dispensado o acolhimento e prestado o auxílio, a afluência que logo teve, não só por parte de quem demandava a Terra Santa, como de gentes de outros credos que ali se dirigiam com intenções várias, cedo se constatou que as instalações deste hospício eram insuficientes para acolher tão

o primeiro estabelecimento hospitalar dotado com um serviço de urgência, modelarmente montado e eficientemente gerido. Era nessa altura seu superior um dos mais insignes vultos da Ordem, o Beato Gerardo de Tengue, natural de Martigues ou de S.Didier da Provença (108? - † c. 1098).1 Pela bula “Piæ Postulationes”, de 15 de Fevereiro de 1113, o Papa Pascoal II, Gerardo havia sido nomeado como “Instituidor” desta Ordem. Importante reorganizador dos hospitalários, o Beato Gerardo, transforma profundamente esta instituição, dando-lhe o nome de “Ordem de São João Baptista”, e uma regra própria. Corriam então os primeiros anos do Reino Latino de Jerusalém, com capital na Cidade Santa. Aquando da sua tomada em 1099, a actuação dos hospitalários foi relevante. Em reconhecimento dos seus valiosíssimos serviços e, posteriormente, pelo seu empenhamento na

Gerardo – Conhecido também como Gerardo de Tum, Tom, Thoms, Tunc e Tengue. Estes nomes provêm de uma leitura incorrecta de uma inscrição latina que se fez num livro do Séc. XVI. Porém, há historiadores que preferem usar como seu apelido Martigues, nome que vem de uma localidade situada na Provença, onde provavelmente tenha nascido.

1

35


36

formação e consolidação deste novo reino, Godofredo de Bulhão2 fez bastantes doações à Ordem e concedeulhe grandes privilégios que, dez anos mais tarde, foram confirmados pelo Papa Calisto II. Os muitos e generosos donativos que os hospitalários foram recebendo como preitos de gratidão dos reis e príncipes da cristandade e por muita outra gente, deram origem a um aumento significativo do seu património e por ele, naturalmente, a Ordem foi alargando o âmbito da sua acção de bem-fazer ao resto da Palestina e no continente europeu, mormente ao longo dos caminhos utilizados pelos peregrinos não só para a Terra Santa, como também, aos túmulos do apóstolo Pedro e dos mártires cristãos, em Roma e, mais tarde, ao de S. Tiago Maior, na Galiza. O gesto de profunda caridade de que estes monges davam constante mostra era muitíssimo admirado por todos e constituía um paradigma de serviço a Deus, pelo auxílio, socorro e guarida que prodigali-zavam a quem precisasse de ajuda, não raras vezes recolhendo no seu seio órfãos e viúvas dos peregrinos que faleciam durante o seu trânsito, mormente aqueles que demandavam os Lugares Santos. III – OS CAVALEIROS HOSPITALÁRIOS É, porém, com o francês Raimundo du Puy, eleito primeiro Mestre por volta do ano de 1120, após o falecimento de S. Gerardo, cerca de dois anos antes, que se vai dar a importante modificação no cariz da Ordem e que será marcante para o seu futuro. Nunca se eximindo aos princípios que estavam na origem do 2 Godofredo de Bulhão foi, sem dúvida, um dos mais destacados chefes da Primeira Cruzada. Cavaleiro asceta, vendeu o seu Ducado da Baixa-Lorena para tomar parte nesta Cruzada. Eleito Rei de Jerusalém, recusou o título porque não seria justo, no seu dizer, usar uma coroa real onde Jesus Cristo usou uma de espinhos. Aceitou contudo ser o «protector do Santo Sepulcro»

Bandeiras da Ordem

seu aparecimento, antes complementando-os com ajustadas decisões, Frei Raimundo du Puy, com base num código de disciplina e ordem que constituíam os vinte cânones capitulares da Ordem de Cavalaria do Santo Sepulcro, criada por Godofredo de Bulhão pouco antes da sua morte, vai acrescentar aos Hospitalários a componente castrense, transformando a Instituição numa ordem de monges militares, característica que irá torná-la famosa ao longo dos séculos. No ano de 1130, a Ordem consegue que o Papa Inocêncio III aprove o seu estandarte, cujo desenho era uma cruz branca, centrada e limitada pelos lados do campo que era de vermelho. Considera-se ser esta a primeira bandeira de uma entidade soberana, muito antes de se instituírem estes símbolos como


representativos de entidades nacionais, tal como hoje se entende. A Ordem tinha, como agora possui, duas bandeira, sendo uma, esta que se acabou de descrever, e uma segunda, num campo com igual cor e nele também centrada, a conhecida cruz branca octógona.3 Fruto desta nova vivência da Ordem dos Hospitalários, no ano de 1152, o Papa Eugénio III dotou-a com uma nova regra, a de Santo Agostinho e, aumentando e reforçando-lhe o seu prestígio e autonomia, colocou-a na dependência directa da Sé de Pedro, facto de enorme significado e grande relevância para o seu futuro, já que vai permitir-lhe uma maior liberdade e independência no governo da instituição, não só no que concerne à gestão dos assuntos relacionados com a sua actividade interna, como também no âmbito da tomada oportuna de decisões no que respeita à condução operacional da sua vertente militar. Doravante deixou

3 A Dinamarca tem uma bandeira idêntica à da Ordem Soberana de Malta. A única diferença é a cruz ter o seu centro não coincidente com o centro do campo.

de haver a necessidade do beneplácito das autoridades eclesiásticas locais. Notabilizados pela ajuda e o socorro que prodigalizavam a quem se acolhia às suas casas, os Cavaleiros Hospitalários caracterizaram-se pela abnegação e coragem que colocavam nas suas intervenções militares, empenhando-se sempre nos locais onde o perigo era maior ou se travavam combates decisivos. Quando em guerra, os cavaleiros usavam sobre a cota de malha e armadura, em vez do seu hábito negro, uma capa de cor vermelha com a cruz branca, para assim assinalarem melhor a sua presença e também para facilitar a manobra dos seus corpos militares, por este modo identificados.

37


38

Jerusalém no tempo das Cruzadas

Acudindo aos peregrinos, combatendo os infiéis nas fronteiras do Reino Franco de Jerusalém, mas também envolvidos, quantas vezes, nas lutas fratricidas entre os cristãos e nas rivalidades políticas e militares que minaram este reino, quase logo desde a sua fundação, os Cavaleiros do Hospital, assim como os das outras ordens militares e as restantes forças cristãs, por má sorte das armas, pela inépcia dos chefes e, sobretudo, pelo clima de guerra civil em que muitas vezes se encontravam, não foram capazes, nem suficientes para garantirem a defesa e posse do Reino Cristão da Terra Santa que, desde a perda de Edessa em 1114, havia iniciado o seu ocaso.


IV - A PERDA DA TERRA SANTA De desastre em desastre, os cristãos foram sendo expulsos da Terra que haviam conquistado. Jerusalém é perdida no ano de 1243 e jamais voltará à posse dos cristãos. Em 1271, o “Krak dos Cavaleiros”, o celebérrimo castelo dos Hospitalários soçobra e cai na posse dos muçulmanos. Trípoli, perde-se poucos anos mais tarde. E, por fim, após oito semanas de cerco, em 1291, dá-se a queda de S. João de Acre, localidade situada a sul da colina de Lattakieh, derradeiro reduto cristão e última sede dos Hospitalários na Palestina, soçobrando ao ímpeto de numerosas e aguerridas forças muçulmanas. Era então Grão-mestre da Ordem o Frei Jean de Villiers.

Castelo de Margat que com o Krac dos Cavaleiros foram fortalezas importantes dos Cavaleiros Hospitalários

Pese embora a heróica resistência protagonizada pelos Cavaleiros do Hospital e pelos Cavaleiros da Ordem do Templo, cujo Grão-mestre sucumbiu na refrega, estas ordens militares então irmanadas na mesma missão e no mesmo combate, nada puderam fazer para além do seu heróico sacrifício. Foram vítimas de uma situação

de debilidade que ambas, algumas vezes, propiciaram com as suas rivalidades e que, com muitas outras que lhes eram estranhas, constituem razões do ruir do Reino Latino de Jerusalém.4 V - OS CAVALEIROS DE RODES Expulsos da Terra Santa, os Hospitalários vão estabelecer-se na Ilha de Chipre, no castelo de Colos e em Limassol, fortalezas que lhes pertenciam. Não podendo, todavia, desenvolver as suas actividades por causa da hostilidade do monarca daquela ilha, receoso que era do poder da Ordem, o Grãomestre Guilherme de Villaret obteve do Sumo Pontífice a autorização para conquistar a Ilha de Rodes e, nesse sentido, o seu sobrinho Foulques de Villaret, que lhe havia sucedido no cargo, iniciou as operações militares em 11 de Novembro de 1307 com trinta e cinco cavaleiros e algumas tropas auxiliares, tomando o castelo de Filermo que transformaram em seu quartel-general. Deste local planearam, organizaram e conduziram a tomada da cidade fortificada de Rodes que capitulou perante os Hospitalários no dia 15 de Agosto de 1309.

Em 1258, Acre tinha sido palco de sangrentas refregas entre os cavaleiros hospitalários e templários

4

39


40

Rodes dos Hospitalários

Em 1310 toda a ilha mais as adjacentes, Episcopia, Leros, Nisara, Calchi, Symi, Pylo e Cós, estavam sob o domínio total da Ordem. Aqui ficou a sede da Ordem Militar de São João de Jerusalém e, por tal, os seus membros passaram a ser denominados como Cavaleiros de Rodes. Mal tomaram posse deste seu novo domínio, os cavaleiros trabalharam num cuidado plano defensivo deste território, inovador em muitas técnicas aplicadas, mas as suas atenções foram dirigidas para a melhoria significativa das fortificações e da muito cuidada organização do terreno, em especial na cidade capital. Para execução eficaz deste pormenorizado planeamento, foram chamados à ilha os mais reputados engenheiros e arquitectos militares do tempo, que souberam dotá-la de poderosas edificações, destacando-se entre elas as que constituíam a fortaleza da cidade de Rodes cujas muralhas pareciam inexpugnáveis e assim eram tidas pelos potenciais adversários da Ordem.

Durante a sua permanência em Rodes, os Hospitalários desenvolveram muito a capacidade e qualidade hospitalar das suas enfermarias que, à semelhança do que tinha acontecido na Terra Santa, continuaram a ser conhecidas, não só pelo auxílio e socorro que prontamente era prestado, como pelos tratamentos inovadores de muitas das moléstias que martirizavam aqueles que ali procuravam a cura dos seus padecimentos, nunca se olhando para o credo ou a raça de quem necessitava de socorro e ajuda. Sem nunca olvidar as causas e razões que estiveram na origem dos dramáticos tempos que viveram na Palestina, a Ordem empenhou-se activamente na preparação e adestramento militares dos seus membros, organizando e equipando uma eficiente esquadra que, no Mediterrâneo Oriental, era relevante garantia da defesa e segurança de parte do flanco sul da Europa cristã, contra o poderio naval otomano e o corso árabe. Ela própria, desenvolvia operações navais de guerra de corso, atacando as linhas de comunicações das frotas mercantes e militares turcas e egípcias que cruzavam o Mediterrâneo oriental. É neste período, nesta sua passagem por Rodes que a Ordem Hospitalária de S. João de Jerusalém vai cunhar moeda própria e ser reconhecida como entidade soberana, atributo que ainda hoje mantém. Com a queda de Constantinopla em 1453, Rodes passou a ser o último baluarte do cristianismo no Oriente.5 O Sultão Mohamed ou Maomé Fatih, “o Conquistador”, o segundo de seu nome na dinastia de Osman, que, no Verão de 1452 havia derrubado Constantino Palaeológo Dragases, o Basileus No início do século XV. O chefe mongol Tamerlão que havia sido chamado pelo basileu bizantino para contrariar as ambições turcas sobre Constantinopla, em 1402, perto de Ancara, derrotou totalmente as forças do sultão Bajazet I que morreu nessa batalha. Por este facto, a ameaça otomana sobre Rodes foi reduzida ou quase nula durante perto de cinquenta anos.

5


Constantino XII, o último imperador do Império Romano do Oriente, pretendeu, depois, fazer o mesmo com a sede dos Hospitalários. Neste sentido, cercou a ilha durante quatro meses, iniciando o sítio em 23 de Abril de 1480,6 operação sem resultado, averbando, em consequência, uma humilhante derrota, sofrendo vinte e quatro mil mortos e milhares de feridos. Era, nessa altura, desde 1476, Grão-mestre dos Hospitalários, o francês Fra’ Pierre d’ Aubusson.7 Maomé II faleceu no ano seguinte, sem poder redimir-se deste desaire militar. Embora o sultão Selim I, “o Feroz”,8 seu neto, grande e cruel general, tivesse querido vingar esta humilhação, não teve possibilidade de o fazer, porque o seu curto reinado não lho permitiu.9 É, porém nos primeiros tempos do governo do seu filho e sucessor, o sultão Solimão, o “Magnífico” ou “o Justo”,10 que Rodes vai cair, capitulando honrosamente perante as forças turcas de mais de duzentos mil homens,11 sob comando directo deste sultão. Frei Philippe Villiers de L’Isle-Adam, grão-mestre da Ordem, iniciou a sua defesa com apenas seiscentos cavaleiros e quatro mil e quinhentos auxiliares. Embora estivessem apoiados, não só nas boas e antigas fortificações que a Ordem havia reconstruído e substancialmente

6 Neste dia surgiu diante de Rodes uma esquadra otomana constituída por cento e cinquenta navios que transportavam a bordo cem mil homens em armas para realizar o cerco. Comandava esta força o paxá Misach que mais não era que Miguel Palaeólogo que se havia passado para o serviço de Maomé II. Misach foi derrotado por uma esquadra hispano-napolitana que veio em socorro dos cavaleiros de Rodes. 7 Foi o gão-mestre Lastic que preparou as defesas de Rodes contra o provável ataque turco. Foi, porém, no governo de d’Aubusson que o cerco se realizou. 8 Selim era filho de Bayazid que mandou matar, após este lhe ter entregue o trono. 9 Nos oito anos que durou o seu reinado, Selim mandou executar sessenta e dois parentes, por várias razões, sendo a mais importante a de preservar o seu trono, e sete dos seus mais categorizados conselheiros, os grão-vizir. 10 Solimão tinha os seguintes títulos: o Sultão, Sombra de Deus na Terra, e pela graça de Deus Soberano dos Soberanos, Rei dos Reis, o mui alto Imperador de Bizâncio e Trebizonda, e o mui poderoso Rei da Pérsia, da Arábia, da Síria, e do Egipto, Senhor de Jerusalém. 11 Esta poderosa força foi embarcada numa esquadra de quatrocentos navios.

41

Rodes dos Hospitalários

melhorado, e também em notáveis chefes militares e experimentados oficiais sapadores, peritos na luta anti-minagem,12 as grandes baixas que sofreram,13 a ausência de reforços, o esgotamento dos seus paióis, e o sofrimento da população rodiota foram as razões determinantes que levaram o Grão-mestre à capitulação.

A minagem nestes tempos consistia na escavação de túneis por debaixo das muralhas, com o intuito de as derrubar. A Ordem tinha nas suas fileiras homens que conheciam perfeitamente estas técnicas e que recorrendo a aparelhos, por si inventados, que detectavam, partindo das suas escavações, as do inimigo, neutralizavam-no por meio de carga explosivas dirigidas, provocando-lhes enormes baixas. 13 Diferentes fontes afirmam que Solimão teve entre oitenta mil a cem mil mortos nos cerca de cinco meses que demorou o cerco. 12


42

O Grão Mestre Filipe Isle d’Adam, acompanhado dos seus Cavaleiros deixa Rodes, na tarde de 1 de Janeiro de 1523, após a capitulação perante o Sultão Soleimão

No fim de cento e quarenta e cinco dias de heróica defesa, desde 29 de Julho até às vésperas do Natal de 1522, durante a qual o próprio Grão-mestre se havia coberto de glória na condução da batalha onde a sua bravura em combate foi exemplo motivante para todos, posto perante o dilema entre o extermínio da Ordem e a rendição honrosa como alternativa, teve de escolher a segunda. Os que restaram deste terrível sítio, cavaleiros e auxiliares, com as suas famílias e haveres, com o direito ao uso das suas armas, e levando os seus arquivos, as Sagradas Relíquias e o tesouro, abandonaram Rodes

no final da tarde de 1 de Janeiro de 1523, pondo assim termo a uma presença de mais de duzentos anos. Com os cavaleiros saíram cerca de quatro mil rodiotas que recusaram ficar sob o domínio dos turcos Tinha assim terminado mais uma etapa na vida já secular da “Religião”14 do Hospital, tingida neste seu final por factos dramáticos que envolveram tragicamente um heróico cavaleiro português, de seu nome Frei André do Amaral, Grande-chanceler da Ordem, que foi condenado à morte num processo iníquo que o Grão14

Modo como era também referida a Ordem do Hospital.


mestre L’Isle-Adam, seu visceral inimigo, lhe moveu, acusando-o de alta traição.15 O Grão-mestre e o que restava de cavaleiros e tropas auxiliares retiraram primeiramente para Creta, depois para Messina, na Sicília e por fim, conforme o convite do Santo Padre, a cabeça da Ordem ficou em Viterbo e a sua esquadra fundeou em Civita Vecchia.

domínios que estes prontamente ocuparam, em 26 de Outubro de 1530, como o fizeram a Tripoli, cidade situada em plena costa africana. Por ficarem senhores de Malta, os cavaleiros tornaram-se vassalos do reino das Duas Sicílias que, por sua vez, o era da Santa Sé. Assim, por mera circunstância, a Ordem reafirmou um vínculo que já possuía e sempre soube manter ao longo da sua existência. Nesta altura a população hospitalária, contava à volta de trezentos cavaleiros e mais de cem outros membros, entre capelães conventuais e serventes de armas.

43

VI – OS CAVALEIROS DE MALTA Volvidos oito anos após a sua saída de Rodes, o imperador Carlos V, atento à segurança das fronteiras mediterrânicas dos seus domínios e conhecendo a larga experiência naval dos Cavaleiros do Hospital, apercebeuse do precioso auxílio que eles representavam para o Ocidente e, a solicitação do próprio Grão-mestre Lisle d’Adam, fez-lhes a doação da ilha de Malta16 e dos seus ALBUQUERQUE Martim de. Direcção de. Portugal e a Ordem de Malta – Aspectos da Europa –1992. Submetido a tormentos, André do Amaral, “suportou tudo com ânimo inquebrantável – limitou-se a dizer que nada tinha a revelar e a recordar a sua longa vida de sacrifício pela Ordem: «Tenho eu agora que mentir – afirmou – para salvar os meus velhos membros do potro.» O orgulho e descanso que fez da própria defesa revelam que se sabia condenado de antemão, independentemente do que se dissesse... A tragédia de Amaral residiu na paz com honra ter sido o que L’Isle-Adam concluiu enquanto os vituperados ossos do Chanceler, constituíam ainda nas muralhas carne para os corvos”. 16 Por instrumento de 24 de Março de 1530, Carlos V cedeu à Ordem as ilhas de Malta, Gozo e Comino e a cidade de Tripoli, na costa líbia, a sul de Malta, devendo os cavaleiros pagar ao imperador, anualmente, o tributo simbólico de um falcão.

15

Malta, Forte de Sant’Ângelo

Reedificando e valorizando as fortalezas existentes e construindo outras e, ao mesmo tempo, voltando a desenvolver as suas tradicionais actividades hospitalárias, como era seu uso, dotaram o arquipélago de valiosas infra-estruturas, atingindo grande notoriedade, pela fama que desfrutava, o hospital que construíram e foi chamado de “Sacra Enfermaria”. Este tinha onze salas, medindo a maior 162 por 9 metros, tanto de largura como de altura, e na sua estrutura organizativa dispunha de uma sala de cirurgia, uma sala de medicina, instalações destinadas a doenças infectocontagiosas, outras para doentes mentais e lugares


para os convalescentes.17 A Sacra Enfermaria, em 1752, foi considerada o maior e melhor apetrechado hospital de toda a Europa. Nele funcionavam reputadas escolas de estudos superiores de medicina, cirurgia, anatomia e farmácia onde, para além das actividades próprias no tratamento dos doentes, dava-se realce ao desenvolvimento de investigação médica, mormente no campo da oftalmologia.18 A universidade de Medicina,

44

como instituição própria, foi fundada em 1771 pelo Grão-mestre português, Frei Manuel Pinto da Fonseca. Nesta escola superior, a formação dos médicos durava dez anos.19 Funcionava também nesta ilha uma importante escola de marinharia que providenciava os quadros e tropas para a esquadra maltesa. A universidade e as escolas superiores existentes na ilha, a importante biblioteca que havia sido fundada dois anos antes e, naturalmente, as actividades comerciais que transformaram Malta como um grande centro cosmopolita, foram fautores do brilhantismo da sua vida cultural. Este desenvolvimento ficou a dever-se à cuidada direcção de esclarecidos grão-mestres da Ordem que souberam sempre rodear-se de qualificadas equipas governativas, sendo de relevar entre estes, os grão-mestres portugueses, Frei Luís Mendes de Vasconcelos (1622-1726), Frei António Manuel Vilhena (1722-1736) e Frei Manuel Pinto da Fonseca (1741-1773).

Na Sacra Enfermaria prestavam serviço três médicos chefes que eram auxiliados, cada um, por dois médicos assistentes, três cirurgiões, um farmacêutico, e outros supra numerários, vinte enfermeiros e os cavaleiros que ali eram obrigados a prestar serviço. 18 Os cirurgiões, médicos e outros mestres eram de origem grega, rodiotas, malteses, espanhóis, franceses e da Itália, alguns deles de fé judaica, e a sua generalidade oriundos das reputadas universidades de Nápoles, Florença, Montpellier e Sorbonne. 19 O grau de doutor em medicina era atribuído por esta universidade aos seus alunos depois de um exame privado, outro público e a apresentação de um trabalho individual sobre um assunto da sua especialidade. 17

S.A.E. Frei Manuel Pinto da Fonseca, Cavaleiro Português que foi um dos maiores grão-mestres dos Hospitalários

Nunca descurando a preparação militar das suas forças, possuía uma bem equipada e muito aguerrida armada,20 para além das suas forças terrestres de guarnição. Todas elas distinguiram-se heroicamente na defesa da ilha, aquando do “Grande Cerco” realizado, durante quatro longos meses do ano de 1565, por trinta mil homens do já referido sultão Solimão, “o Magnífico” que havia expulso os hospitalários da ilha de Rodes, como foi referido. Neste violento cerco,

Muitos cavaleiros, após servirem na armada maltesa, eram autorizados pelo grão-mestre a servirem os seus soberanos nas armadas nacionais, sendo este facto muito aproveitado pelo cardeal Richelieu que teve na marinha de guerra francesa reputados almirantes que eram cavaleiros hospitalários.

20


45

Catedral de S. João em Malta. A Catedral dos Cavaleiros de Malta

Malta, Albergue de Castela e Portugal. Mandado edificar pelo Grão-mestre Pinto da Fonseca

em que as forças turcas foram derrotadas, foi marcante e lendária a bravura do Grão-mestre Frei Jean Parisot de la Vallete, justamente considerado herói da Europa, por ter derrotado as forças otomanas que constituíam um sério perigo para os reinos cristãos do Velho Continente. Em memória desta vitória de tão ilustre cavaleiro, a nova capital de Malta houve o nome do seu distinto e valente grão-mestre: - La Valleta. No mar, na famosa Batalha de Lepanto, travada em 7 de Outubro de 1571, a esquadra naval da Ordem, integrada com as de Espanha, Veneza, Santa Sé, Saboia, Parma, Toscana, Génova e Urbino, na armada

da “Santa Aliança”, sob o comando de D. João de Áustria,21 tomou parte no extraordinário sucesso militar sobre a imensa esquadra turca cujas forças, reunidas A Batalha de Lepanto é considerada como o facto histórico que determinou o início da decadência do expansionismo otomano e a maior batalha naval do século XVI, não só pelos meios envolvidos como pelas consideráveis perdas dos turcos, em homens e navios. O comandante das forças cristãs nesta batalha foi D. João de Áustria, filho bastardo de Carlos V e de Ana de Bloomberg, generalíssimo das tropas espanholas e um dos mais prestigiados chefes militares de então. Foi governador da Itália e da Flandres. Por curiosidade, será de referir que um outro D. João de Áustria, quase cem anos depois, é referido na História de Portugal. Trata-se também de outro bastardo real, desta feita de D. Filipe IV de Espanha, III de Portugal, que comandou o exército espanhol invasor e que foi totalmente desbaratado na Batalha do Ameixial, em 8 de Junho de 1663, em pleno período da Guerra da Restauração. Entre muitos títulos que este bastardo usava, contava-se o de Grão Prior da Ordem de Malta em Castela. A ele se deve a destruição da sede dos cavaleiros de Malta em Portugal, o convento da “Flor da Rosa”, no Crato, e a destruição do tombo dos hospitalários portugueses.

21


dos seus domínios europeus, asiáticos e africanos, foram completamente esmagadas. Esta vitória marcou o início do termo da supremacia naval da “Sublime Porta”22 no Mediterrâneo. VII - O EXÍLIO E O ESTABELECIMENTO EM ITÁLIA

46

Em 9 de Junho de 1789 quando Napoleão de Bonaparte se dirigia para o Egipto, não respeitou a tradicional neutralidade da Ordem e sem qualquer declaração de guerra, invocando o falso pretexto de que os cavaleiros se haviam recusado fornecer água à esquadra francesa, ocupou as ilhas de Malta, Gozo e Comino. Os efectivos hospitalários eram constituídos por trezentos e sessenta e dois cavaleiros, dos quais cento e sessenta eram franceses, dois mil efectivos de tropas auxiliares maltesas. A acção de uma parte dos cavaleiros franceses, cerca de cinquenta, que eram partidários do futuro imperador da França, a pouca vontade dos malteses em combater, levou o grãomestre Frei Fernando Von Hompesch a assinar em 12 de Junho de 1789 um tratado de capitulação pelo MACEDO, Jorge Borges de. História Diplomática Portuguesa, Constantes e Linhas de Força, - Edição da Revista Nação e Defesa). - Se a Batalha de Lepanto reforçou a hegemonia espanhola no Mediterrâneo, não lhe proporcionou todavia as mesmas condições em terra. E é neste domínio que assumem relevante importância as possessões portuguesas no Norte de África já que vão ser, na estratégia diplomática portuguesa de então, um factor de poder que irá ser jogado como um vector fundamental no jogo de equilíbrio com Espanha que livrasse o Reino do predomínio de Filipe II. A interferência turca em Marrocos, onde procurava colocar governantes favoráveis aos seus interesses, vai desviar a atenção de Portugal da Europa, onde deveria envidar os seus esforços diplomáticos, e determinar a sua intervenção em África para garantir a posse das suas praças, chave da sua política de equilíbrio e afirmação soberana. É neste quadro que se vai travar a Batalha de Alcácer-Kibir, em 4 de Agosto do fatídico ano de 1578. Se, com a vitória de Lepanto, as forças cristãs, sob o comando de D. João de Áustria, tinham iniciado o declínio do expansionismo da Sublime Porta no Mediterrâneo, o seu ocaso vai ser determinado com a derrota do malogrado e caluniado Rei D. Sebastião de Portugal, já que desta batalha resultou a expressão da dificuldade extraordinária, insuperável, da realização do objectivo turco. Mas o seu preço para Portugal foi a perda do seu Rei. Não da independência. Essa responsabilidade pertence ao corpo nacional dividido e inferior ao adversário, em força e capacidade de manobra...

22

Fra´Fernando Von Homspech, o último e infeliz Grão-mestre em Malta

qual a ilha é entregue à República Francesa obrigando a Ordem Militar de S. João a abandonar o arquipélago de Malta, comprometendo-se os franceses a pagarem indemnizações pelo facto, o que, naturalmente, não foi para ser cumprido. O infeliz Grão-mestre Von Hompesch e os seus leais cavaleiros partiram para Trieste e os franceses que não seguiram integrados no corpo militar francês, rumaram para a sua pátria. No exílio, os primeiros tempos foram verdadeiramente dramáticos. Naquele conturbado período, alguns cavaleiros que tiveram a possibilidade


de regressar aos seus países, recolheram aos lares das suas famílias ou a comendas da Ordem. Outros, foram para o Grão-priorado da Rússia, sob a protecção do Czar Paulo I que generosamente os acolheu.

Paulo I, Imperador de todas as Rússias, Grão-mestre “de facto” que não de “Jure”

Os cavaleiros deste Grão-priorado, situado em S. Petersburgo, numa proclamação datada de 26 de Agosto de 1798, acusaram de incompetência e cobardia perante os franceses, o Grão-mestre Hompesch e, em consequência disso e por razões então ocultas,

determinaram a sua deposição. E, num golpe político que tornou evidente a razão da animosidade contra o infeliz Grão-mestre Hompesch, em 27 de Outubro desse ano, elegeram o Czar Paulo I como Grão-mestre, que possuía o título honorífico de “Protector da Ordem” que o deposto Grão-mestre lhe havia conferido. Esta eleição, sem qualquer respeito pela Regra e pelos antigos usos da Ordem, não foi reconhecida pelo Papa Pio VI, nem pelos restantes cavaleiros que não estavam na Rússia, que logo e de imediato a consideraram totalmente ilegal. Fundamentava-se a não aceitação num real conjunto de fortes razões, entre as quais a de o Czar Paulo não ser católico, de não ser membro da Ordem - mas apenas ter um título honorífico - e de não poder ser professo, por ser casado. Foi por isso considerada uma eleição inconstitucional, sem qualquer validade canónica. No entanto, não sendo “de jure”, Paulo I foi Grão-mestre “de facto”. Assim está considerado no rol dos grão-mestres da Ordem e na história dos hospitalários. Paulo I foi assassinado em 3 de Março de 1801 e o seu sucessor, o Czar Alexandre I, renunciando a esta função que o seu pai ambicionou e não desejando prolongar uma situação ilegal, quatro dias após a sua subida ao trono, em 16 de Março de 1801, ordenou que se procedesse à eleição do grão-mestre que devia suceder ao 71.º Grão-mestre, Frei Fernando Von Hompesch, de acordo com a tradição e os estatutos da Ordem. Como era quase impossível convocar um capítulo geral dos seus membros, foi solicitado ao Santo Padre que nomeasse, extraordinariamente e por esta única ocasião, o grão-mestre da Ordem,

47


entre os cavaleiros que fossem designados pelos seus priorados. Em 9 de Fevereiro de 1802, Pio VII escolheu o candidato proposto pelo grão-priorado da Rússia, o Bailio Fra’ Giovanni Battista Tommasi que, deste modo, se tornou o seu 73º Grão-mestre, considerando-se nesta contagem o Czar Paulo I como o 72.º Grão–mestre “de facto”. Entretanto, em Malta, as esquadras da GrãBretanha e de Portugal, esta sob o comando do Marquês de Nisa, haviam expulso os franceses no mês de Novembro de 1800.23, Em 1802, pela Paz de Amiens,

48

foi consignado à Ordem os direitos de posse sobre a Ilha e as suas dependências, cláusulas que jamais foram cumpridas pelo governo britânico que assumiu não ir abandonar Malta. O seu valor geoestratégico era importante para o poderio naval britânico e, por essa única e exclusiva razão, o governo de Londres, desde logo, foi tornando progressivamente esta ilha numa sua grande e importante base militar que controlava o Mediterrâneo Central. Esta ocupação, em 1814, foi ratificada pelo Tratado de Paris que reconheceu ao Reino Unido a posse das ilhas de Malta, de Gozo e de Comino. O congresso de Viena não abordou a questão maltesa, embora os cavaleiros fizessem enorme pressão para que isso fosse considerado, mas o governo britânico evitou que isso acontecesse. Em 1822, em Verona, foi reconhecido à Ordem a legitimidade das suas reclamações sobre o direito a ter um território e, nesse sentido chegaram-se a No ano de 1797, o secretário de estado D. Rodrigo Coutinho mandou aparelhar uma esquadra de seis navios (três naus de linha, uma fragata de guerra e dois bergantins) sob o comando do Marquês de Nisa, com destino ao Mediterrâneo a fim de se reunir a esquadra de Nelson. Não conseguido juntar-se a tempo aos ingleses para tomar parte na Batalha de Aboukir, entrou porém em várias outras acções contra os franceses onde se notabilizou pelo seu valor militar, entre as quais é de destacar o bloqueio que efectuou à Ilha de Malta, para o qual teve o reforço de três navios britânicos, e que vai provocar a desocupação da Ilha pelas forças napoleónicas.

23

estabelecer as bases de um projecto de um tratado, a estabelecer com os representantes do povo grego que se encontrava em rebelião contra os seus ocupantes otomanos, no sentido de Rodes voltar à posse da Ordem em 1823, mas estas expectativas, infelizmente, saíram goradas. Após ter estado temporariamente em Messina, Catânia, em 27 de Maio de 1827, o lugar-tenente do Grão Magistério, Fra’ Antonio Busca (1821-1834) recebeu do Santo Padre Leão XII um convento e uma igreja na cidade de Ferrara, para ali instalar o Grão Magistério da Ordem. Porém, sete anos depois, os cavaleiros, tendo em atenção a profunda alteração que a Ordem sofreu, resolveram instalar-se definitivamente em Roma, ocupando um seu palácio na via Condotti e as instalações que tinham no monte Aventino, designada como Villa de Malta, ocupadas provisoriamente, desde 1801, pelos órgãos directivos da Ordem. Começou então o período contemporâneo da quase milenar História da Ordem de Malta.


VIII - A ORDEM DE MALTA NOS DIAS DE HOJE Despojada da vertente militar, os hospitalários retornaram à finalidade que levou os amalfianos a fundarem a Ordem: o serviço prestado aos pobres e aos enfermos. Desta forma, cumprir este objectivos, voltou a ser a única e principal missão da Ordem de Malta. Foi assim que as actividades caritativas e hospitalárias foram grandemente desenvolvidas e em larga escala realizadas, durante a Primeira Grande Guerra (191418). Em situação idêntica, as operações hospitalárias foram ampliadas durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45) e, desde então, através do Mundo, em todos os continentes, desenvolveram uma série enorme de serviços médicos e de assistência social, assumindo uma crescente importância em prol dos que sofrem, independentemente do credo que professem ou raça e etnia a que pertençam. Hoje, a “Ordem Soberana e Militar de S. João de Jerusalém, de Rodes e de Malta” – assim se designa oficialmente - é uma Monarquia electiva e constitucional. É pessoa jurídica e sujeito de direito internacional público e o seu pequeno território situa-se em Roma, dividido pelos dois locais atrás referidos que gozam do estatuto de extraterritorialidade. O do Monte Aventino; era uma antiga dependência dos Templários, doada à Ordem em 1312 e tornada sede do Grão Priorado de Roma; hoje é a residência dos embaixadores junto do Quirinal e da Santa Sé. O segundo território, é o dito palácio da via Condotti, conhecido como o “Palácio de Malta”, lugar onde se situa o grão-magistério que é o governo da Ordem. O grão-mestre tem neste palácio a sua residência permanente. A Ordem de Malta cunha moeda – embora agora apenas com interesse numismático - e possui correios

S.E. o Dr. Durão Barroso, Presidente da Comissão Europeia, recebe S.A. E. o Grão-Mestre Fra’ Andrew Bertie

próprios cujos selos são válidos na correspondência enviada para cerca de uma centena de países. No âmbito diplomático, a Ordem Soberana de Malta tem embaixadores em noventa e cinco países que, por sua vez, também têm os seus junto do Governo da Ordem. Para além destas ligações diplomáticas, na Organização das Nações Unidas, tem também representantes permanentes nas suas sedes de Nova York,24 Genebra e Viena, nas delegações especializadas para: Educação, Ciência e Cultura, UNESCO (Paris), Alimentação e Agricultura, FAO (Roma), o Programa Mundial de Alimentos, WFP/PAM (Roma), Organização Mundial de Saúde, WHO/OMS (Genebra), Alto

A Ordem de Malta foi admitida como “Observador Permanente” em Setembro de 1994. Em resposta às palavras de boas-vindas proferidas pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros Italiano, durante a recepção em que estiveram presentes todos os representantes diplomáticos dos países que votaram favoravelmente esta admissão, o representante da Ordem, no seu agradecimento, referiu que a presença da Soberana Ordem de Malta na Assembleia Geral da ONU iria facultar a possibilidade de poder trabalhar-se no âmbito dos objectivos traçados pela Ordem para o terceiro milénio, com outros países com quem ainda não estão estabelecidas relações diplomáticas, no sentido do desenvolvimento da solidariedade humana e numa mais racional distribuição dos recursos.

24

49


Internacional para a Unificação do Direito Privado, UNIDROIT, (Roma) no Comité Internacional de Medicina Militar, (Bruxelas), na Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (Genebra), no Comité Internacional da Cruz Vermelha (Genebra) e Instituto Internacional do Direito Humanitário (Sanremo e Genebra) e com a Federação Russa.

S.A.E. o Grão-Mestre Fra´Andrew Bertie recebe os cumprimentos dos membros do Corpo Diplomático acreditado na Ordem de Malta

50

Comissariado para os Refugiados, UNHCR/ACNUR (Genebra) e Alto Comissariado para os Direitos Humanos UNHCHR (Genebra). Tem representantes permanentes na Comissão Europeia (Bruxelas), no Conselho da Europa (Estrasburgo), na Organização Internacional das Migrações, IOM, (Genebra), no Instituto Malteser International em Banda Aceh - 2005

No que concerne ao governo da Ordem, o Grãomestre é um príncipe soberano e um superior religioso. Preside ao Soberano Conselho, órgão de governo que é formado por quatro altos cargos, o Grande Comendador (responsável pela espiritualidade e religiosidade da Ordem), o Grande Chanceler (equivalente a primeiro ministro e ministro dos negócios estrangeiros), o Grande Hospitalário (equivalente a ministro da saúde) e o Recebedor do Comum Tesouro (equivalente a ministro da finanças e da economia) e ainda por seis outros membros, todos eleitos para um mandato de cinco anos pelo Capítulo Geral. Estes membros são escolhidos entre os cavaleiros professos e os de obediência. O grão-mestre tem de ser um cavaleiro professo, com votos perpétuos, e é eleito “ad vitam” Hospital de S. João Baptista em Roma


51

SAE Fra’ Andrew Bertie cumprimenta SS o Papa Bento XVI

para o cargo. Tem o tratamento protocolar de “Sua Alteza Eminentíssima o Príncipe e Grão-mestre, Fra’..., pela Graça de Deus, Humilde Mestre do Hospital de S. João de Jerusalém e da Ordem Militar do Santo Sepulcro do Senhor e Guardião dos Pobres de Jesus Cristo”, e tem direito às honras militares regulamentares e protocolares inerentes à sua qualidade de chefe de um estado soberano. O Conselho de Governo e o Tribunal de Contas cuja composição reflecte a estrutura internacional da Ordem, têm por missão assistir o Grão-Mestre e o Soberano Conselho. Da mesma forma que os anteriores,

estes cavaleiros são eleitos por cinco anos pelo Capítulo Geral. Desde 1630 que os grão-mestres gozam de honras cardinalícias, usando o título de “eminência” mas não participa em quaisquer das reuniões do Sacro Colégio. A chefia da Ordem cabe hoje a Sua Alteza Eminentíssima o Príncipe e Grão-Mestre Fra’ Andrew Willoughby Ninian Bertie que assumiu este cargo no dia 8 de Abril de 1988 como 78º Grão-mestre. A Ordem está presente de uma forma estável, em cinquenta e cinco países, com seis Grande Priorados,


52

cinco Subpriorados, e quarenta e sete Assembleias ou Associações Nacionais, englobando um total de cerca de doze mil e quinhentos cavaleiros, damas e capelães e mais de oitenta mil voluntários, entre os quais se encontram pessoas de alto perfil profissional – mais de dez mil médicos, enfermeiros, auxiliares paramédicos e uma infinidade de outros colaboradores. Todos se dedicam à assistência aos pobres, aos enfermos e a todos aqueles que sofrem, numa doação constante e altruísta em numerosos hospitais, centros médicos, corpos de ambulâncias, corpos de socorro, fundações e estruturas especializadas, distribuídos por cento e dez países. A actividade de socorro em situação de catástrofes, sejam elas naturais ou por acção dos homens, mormente nos conflitos armados, é uma importante tarefa da missão da Ordem. Para isso dispõe de um corpo internacional de emergência, muito especializado e altamente operacional, denominado “Malteser International” 25 que hoje se encontra em serviço em muitas zonas do Mundo, onde as populações necessitam de socorro urgente. A Assembleia Portuguesa é um dos membros fundadores deste organismo de socorro da Ordem de Malta. 26 No acto de criação que ocorreu no Palácio de Malta, em Roma, em Março de 2005, a Assembleia dos Cavaleiros Portugueses esteve representada pelo seu Cavaleiro que ocupa as funções de Hospitalário. O “Malteser International” foi criado com base no “Emergency Corps of Order of Malta”, organismo de socorro cuja orgânica era já insuficiente para as solicitações que lhe eram colocadas. Houve que reestruturar toda a organização, com mais meios humanos e melhores equipamentos e dotando-a de indispensáveis meios financeiros de modo a proporcionar uma efectiva, pronta e cabal operacionalidade. 26 Intervenções desenvolvidas ou em desenvolvimento nos últimos dez anos pelo Malteser Intrernational ou pelo ECOM (Emergency Corps of Order of Malta), antecessora daquele: Kosovo, Macedónia, Moçambique, El Salvador, Índia, Tailândia, Birmânia, Ceilão, Indonésia, Timor-Leste, Angola, Zimbabwe, Peru, Afeganistão, Darfur e Iraque

Médicas do Corpo de Voluntários da Assembleia Portuguesa, em Timor-Leste

Investidura de um cavaleiro português, acompanhado pelo seu padrinho, na Sé Patriarcal de Lisboa, perante o Presidente da Assembleia Portuguesa e na presença do Embaixador da Ordem junto do Governo Português.

25

No seu vínculo com a Ordem, os seus membros, cavaleiros, damas, capelães e donatos, dividem-se por três classes, sendo a primeira constituída pelos Cavaleiros de Justiça e pelos Capelães Conventuais que são professos de votos religiosos, a segunda classe pelos Cavaleiros e Damas em Obediência que


têm promessa de obediência; os restantes Cavaleiros, Damas, Donatos, Capelães Conventuais “ad honorem” e Capelães Magistrais, formam a terceira classe que é caracterizada apenas por haver um compromisso em cumprir os regulamentos da Ordem, sem contudo se assumir qualquer voto ou promessa.

BIBLIOGRAFIA ALBUQUERQUE, Martim de – Direcção de. Portugal e a Ordem de Malta – Aspectos da Europa – 1992 CARDOSO, Brig Avelino Barbieri - Ordens Monástico-Militares em Portugal. Rev.Inf. 1957 COSTA, Dr.ª Paula Maria de Carvalho Pinto -Artigo: «Breve Abord. da O.M.H. em Portugal» - Filermo – 1993 FLAVIGNY, Bertrand Galimard – Les Chevaliers de Malte, des hommes de fer et de foi. Ed. OHFOM GOODMAN, Anthony A. – A Sombra de Deus, uma história de guerra e religião. Ed. Difel HENRIQUES, José G. F. - História Militar ME 73-00-00 IAEM - 1989 MACEDO, Jorge Borges de - História Diplomática Portugal. - Constantes e Linhas de Força -Rev. Nação e Defesa 1989 MARTINS, General Ferreira - História do Exército Português SELVAGEM, Carlos - Portugal Militar – Edição do INCM SERRÃO, Joel - Direcção Dicionário da História de Portugal VASCONCELOS, Adriano Mendes S. de - Breve Notícia das Ordens Monástico-Militares em Portugal 1909 WISE, Terence - The Knights of Christ - Ed. Martin Windrow ANNUAIRE 2003/2004 - SMOM RIVISTA Internacionale - Sovrano Milit. Ord. Osped. de S. Giovanni de Gerusalemme di Rodi e di Malta - Dicembre 1994 RUOLO Generale, 1997. SMOM

53


54

NA TUA ERMIDA Judite Lopes* A luz branca da manhã traz-te no olhar de névoa onde espreita o sono de uma noite mal dormida. Abre-se a cortina das horas para o desfolhar de silêncios habitáculos dos pensamentos que alimentam sonhos na roda gigante do tempo. Ergo nos dedos da alma o toque quedo dos sentidos e quebro em estilhaços a distância que me leva à tua ermida. Subo, a medo, tuas veredas e entra-me no peito aberto a voz serena da brisa que semeia abraços. Afundo-me no teu regaço de paz e elevo-me renascida à imensidão da fantasia onde mora esse olhar infindo que dá sentido ao meu viver. * Licenciada em Animação Sociocultural. Autora do livro de poemas Vislumbres.


HOMILIA FINAL CONFERÊNCIA “A ORDEM MILITAR DE MALTA” D. Carlos Moreira Azevedo* Entre vós não será assim (Mc 10) 1. Termina, com esta celebração, a Conferência que reuniu especialistas da história da Ordem de Malta para aprofundar o conhecimento de algumas páginas da vida desta notável terra de Rio Meão. Conhecer com mais detalhe o passado, cultivar a memória à sábia virtude para quem celebra a presença de Deus na história e reconhece os estragos que causa a sua ausência. Bem sabeis que as ordens militares, como a Ordem dos Hospitalários, juntavam motivações religiosas com actividades guerreiras. As circunstâncias criadas no século XI, com o movimento das Cruzadas e a luta em nome da fé, juntavam a estas associações finalidades novas, uma vez que inicialmente assumiam * Bispo Auxiliar de Lisboa. Narural de Milheirós de Poiares.

fins caritativos. Várias confrarias com espírito bélico vão seguir as espiritualidades disponíveis das ordens religiosas. São leigos militares, Soldados de Cristo, com uma disciplina de vida seguidora de uma escola religiosa. Por isso se chamam freires, comprometidos com votos os que na sua maioria são freires cavaleiros. Há também freires clérigos que se encarregam de presidir à liturgia. A estrutura é chefiada militarmente por um Mestre. Na hierarquia segue-se o comendadormor, que é o administrador. Mais tarde, aparecem estruturas mais pequenas denominadas comendas, com comendadores nomeados pelo mestre. A Ordem de S. João do Hospital, criada em Jerusalém em 1048, por mercadores italianos, como hospital acolhedor dos peregrinos, depressa se espalha com diversas casas. Em 1113 tem regra própria e pouco depois tem finalidades militares. A partir de 1530 adquire o nome de Ordem de Malta, dada a fixação nessa ilha. Em Portugal era governada por um prior. A Comenda de Rio Meão surge nos princípios do século XIII. Quando acontece a conquista definitiva

55


56

do Algarve, em meados do século XII, a actividade militar esmorece e vai diminuindo, reservada às praças e castelos situados em regiões fronteiriças. Os condicionalismos alteram as funções das ordens militares e pautam-se por grupos de interesses económicos e políticos, atenuando a dimensão guerreira e religiosa. Cresce a propriedade fundiária, resultado da colonização territorial, sobretudo no centro e sul. Mais uma vez, instituições nascidas cheias de intenções profundamente cristãs, com o andar dos anos, desviam os seus percursos, alteram as finalidades, reduzem a sua dimensão espiritual, canalizam os seus bens para interesses distantes dos originais. 2. Aqui entronca a reflexão que quero fazer convosco a partir das leituras da Palavra de Deus. Jesus forma os discípulos na diferença de critérios. É claro na demarcação: “entre vós não será assim”. Optar por seguir Jesus é de facto aceitar caminhos de vida novos, diferentes, radicais. Nós somos tentados sempre a querer jogar na maioria, arrastados pelos critérios das conveniências, seduzidos pelo aparente sucesso dos

outros, cada um a cuidar de se arranjar, de tratar da sua vida, mesmo optando por esquemas injustos, vias imediatamente agradáveis mas com consequências prejudiciais... Entre vós não será assim. A conquista de posições no Reino de Deus não corresponde aos mundanos critérios. Jesus multiplicou as recomendações para esclarecer a novidade do seu caminho. Com entusiasmo muitos entraram na via cristã, mas depressa se desviaram na tentação do mando, da infidelidade, das paixões, sem o juízo da sabedoria de Deus. A epístola aos Hebreus ensina-nos que a bondade de Deus, sempre operante na paixão, quis que Jesus provasse a morte “a vantagem de todos” e que depois, exactamente pela sua morte, fosse coroado de glória e honra. O mistério pascal revela-se assim mistério de comunhão, de comunhão de Cristo connosco e de nós, mediante Cristo, com Deus. Cristo faz-se solidário com a humanidade. Trata-se de uma solidariedade salvífica, que reentra no


projecto de Deus, “origem e fim de todas as coisas”. Solidariedade que “aperfeiçoa” Cristo e o torna o “Chefe-guia” da salvação. Deus, princípio e fim de todas as coisas, para levar muitos filhos à glória celeste, torna perfeito o seu divino Filho. E o Pai torna perfeito o Filho mediante o sofrimento, para que o Filho se torne o chefe que guia à salvação. Deus quer que os cristãos sigam o seu chefe-guia Jesus, que os leva à salvação. De Deus provêm Jesus, verdadeiro Filho de Deus e os cristãos, filhos adoptivos de Deus; por isso Deus nos considera irmãos de Jesus. Esta fraternidade é uma das marcas fundamentais da proposta cristã. Estender a todos esta fraternidade, criar condições para nos podermos reconhecer como verdadeiros irmãos é o desafio permanente do cristão e das instituições inspiradas no cristianismo. As confrarias, agora na moda e com muitos nomes, têm mais inspiração na débil fraternidade da revolução francesa, do que na fraternidade universal e

cristã do Pai comum. Os confrades que se protegem uns aos outros, em oposição ao resto e não ao seu serviço, ouvem Jesus dizer: entre vós não será assim! 3. E se seguirmos a orientação da primeira leitura, podemos ver como a unidade do par humano e a recíproca fidelidade dos esposos não são só exigência moral. Isso seria apenas obedecer a uma conveniência, a uma lei exterior a eles. A exigência de fidelidade na perspectiva cristã está inscrita no que cada um é um para o outro. Ninguém pode ir contra esta realidade, nem as pessoas, nem a Igreja. A fidelidade dos esposos não é requerida por uma norma exterior, por uma moralidade que vem de fora do coração. Deus concebeu o mundo e pensou o ser humano assim, de modo que dois pudessem ser um só. Se ser irmãos é a verdade da nossa relação com qualquer ser humano, mais é pedido aos esposos cristãos. Perante tanta infidelidade que anda diante dos nossos olhos, perante a multiplicação de casos passamos a considerar vulgar e do frequente passamos ao certo e do certo ao aprovado.

57


58

Também nesta dimensão do amor humano ouvimos Jesus proclamar: entre vós não será assim! Alguns podem considerar estas páginas do Génesis umas historinhas ultrapassadas pela ciência. Assim perdem a mensagem profundamente verdadeira destes textos poéticos cheios de verdades. Reparem: a mulher não é cópia do homem, é um ser próprio da mesmíssima espécie e dignidade, mas profundamente diferente, embora complementar do homem. Não interessa a origem exacta do homem e da mulher, ainda envolvidos em mistério impenetrável. O sono profundo do homem, referido no texto, indica que a mulher é obra do Criador, como o homem. A inclinação natural e a atracção dos sexos explica-a o Génesis de modo interessante: a mulher como que sente saudades do varão do qual se originou e o varão sente-se atraído pelo osso e carne que dele saiu. No matrimónio voltam a ser uma só carne, como no início do processo. A sabedoria desta explicação é mais bela do que a explicação científica. A existência humana é essencialmente uma vida para o outro. Existimos para a comunhão e para a comunidade. Só assim curamos a solidão existencial que mina a alma humana. Deus é comunhão e a sociabilidade humana e o seu aperfeiçoamento proposto pelo Homem novo, Jesus Cristo, aponta-nos uma plenitude do ser humano. Foi para promover essa plenitude, para incentivar a fraternidade que foram criadas as ordens militares. As casas humanitárias vão desde a família ao âmbito internacional. O juízo histórico analisa se as instituições foram ou não fiéis ao desejo de Cristo: servir a fraternidade entre os povos, criar espaços de livre convivência, libertar da opressão, construir comunhão, abrir-se ao diálogo.

Todos os que hoje celebramos Jesus Cristo renovemos o desejo de corresponder à diferença fraterna, ao serviço por amor que Ele nos propôs. Igreja de Rio Meão, 8 de Outubro de 2006


Presenรงa de Sua Alteza Real Dom Duarte de Braganรงa em Rio Meรฃo.

59


MEMÓRIA DO PADRE ALBANO Ceomar Tranquilo*

60

Há cem anos – tanto tempo – foi o teu nascer Há muitos - mas não distantes – que partiste Sem espaço no tempo para algo dizer

As tuas Velharias... Viraram livro novo A Vila da Feira não morreu

Como é bom retornar a recordar E estar aqui inteiro a saudar Sem parabéns sem artifício sem um bolo Apenas ciciando devagar – obrigado – Com estas parcas e pobres palavras Mas que são de mágoa e sem consolo

O António levou-te a Mensagem

“Ergue-te indómito e foge Dessa poalha em que tu não és tu Ascende aos lugares onde sonhas Vive os teus amores E aí sim serás feliz”

É agora uma Que em percurso cintila Nos painéis da grande paisagem Ouvir enternecido a tua voz Acreditar no rumo de outra Viagem Mesmo que só de passagem Para te sentir mais entre nós.

* Caminheiro por alfarrabistas, arquivos e livrarias.


PRIMEIRO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO PADRE ALBANO ALFERES Pe. José Alves de Pinho* 1908-2008 Todos nós vivemos envolvidos por movimentos ritmados. Esse movimento é tão natural, que nem damos por ele. Entretanto esse ritmo, que nos encaixa no tempo, manifesta-se de modo tão simples e contínuo como o arfar dos nossos pulmões ou como o pulsar do nosso coração. E, se saímos para fora de nosso organismo, logo damos conta de outros ritmos naturais, constantes e regulares, como aqueles que se verificam na contínua sucessão do dia e da noite, ou, por outras palavras, no repetido nascer do sol em cada dia que começa. Uma outra manifestação de natureza cósmica, igualmente ritmada, vamos encontrar na contínua sucessão das estações, mas a um mais longo prazo * Pároco de Fornos.

– alargada à duração dum ano. Os cosmógrafos chamam-lhe a sequência sazonal dos solstícios e dos equinócios. Este movimento contínuo envolve-nos de tal maneira, que é ele que nos dá a consciência do tempo que passa. Já os antigos paripatéticos afirmavam que o «tempo é movimento». E Camões, influenciado pelos pensadores clássicos greco-romanos em que foi iniciado, também já lá o dizia naquele celebrado soneto «Mudamse os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades. (...) E, afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto, Que não se muda já, como soía»1 E porque o tempo é para nós uma circunstância tão influente, não nos limitamos a observá-lo nos movimentos da Natureza, que marcam os dias e os anos. Não; construímos máquinas, que nos ajudem a medir o tempo, para nos dar consciência do «tempo que voa». 1 Clássicos Sá da Costa, Obras Completas de Luís de Camões, vol.I, pg.305, n.º 201, Lisboa.

61


62

Desde a clepsidra até ao mais perfeito dos relógios actuais – os quartzos ou os atómicos, passando pelos maravilhosos relógios mecânicos dos três últimos séculos, o homem não se conteve, enquanto não conseguiu a máquina do tempo, que o ajudou a fragmentar o dia em horas, minutos e segundos. De igual modo, para ele não bastou dar conta dos períodos, em que, ciclicamente, os dias crescem e diminuem, para ir inventar os calendários, que lhe indiquem dentro do ano as fracções dessa temporada, dividida em dias, semanas, meses, estações e anos. Se todos esses movimentos ritmados, nas suas fracções maiores ou menores, permitem a contagem matemática do tempo cósmico, já não tanto assim com a medida do tempo correspondente à medida comum da vida humana. Esta medida tem por padrão a duração da vida, daquela vida que, a cada um de nós, nos é dado viver. A nossa experiência, porém, diz-nos que mais longa, ou mais breve, ela é marcada pela precariedade; mas se, por hipótese, a cada um de nós, de improviso, fosse perguntada qual a duração que desejaríamos para a nossa própria vida, certamente nos ocorria o desejo de viver até aos cem anos. * Objectivamente, a duração média da vida do ser humano, que, felizmente, tem vindo a crescer nos últimos séculos, conta-se por algumas décadas. Ora, a pouca probabilidade de se chegar ao século de vida, levou a humanidade a fraccionar o século em metades e quartos de século, estabelecendo aqueles marcos do tempo, como datas redondas, merecedoras de consideração e aplauso. E, se isso está estandardizado no cômputo da nossa vida social quotidiana, é particularmente tida em conta na adultez, a partir de um novo estado de vida, da iniciação de uma nova profissão, ou numa carreira

dignificante, servindo a própria promoção, ou prestando um serviço beneficente à comunidade. Diz-se então que, passados esses primeiros vinte e cinco anos, a data vai ser celebrada como uma data jubilar, isto é, carregada de alegria e de contentamento: – são as «bodas de prata». Mas se as circunstâncias de tempo igualmente envolverem situações gratificantes de alegria, partilha e honra, e ao mesmo tempo tiverem uma duração dobrada, isto é, se tiverem já cinquenta anos, então a data é duplamente jubilar e digna de maior solenidade e de maiores congratulações: é a festa das «bodas de ouro». Estas datas, relativas às celebrações dos vivos estão agora generalizadas, e, como todos sabemos, ao celebrarem-se, multiplicam-se as festas familiares e sociais. Se as bodas de prata e de ouro são as celebrações jubilares mais vulgarizadas e correntes, há ainda outras, embora mais raras, que supõem um motivo de júbilo três vezes mais alargado, porque perfazem um todo de setenta e cinco anos: - são as «bodas de diamante». * O homem caminha a par do tempo e nele se realiza, fazendo dele o seu tempo pessoal, com uma elasticidade diferente conforme a sua vida é marchetada de triunfos, êxitos e venturas, ou é cruciada por frustrações, fracassos e dores. A par com estas considerações acerca do tempo, como experiência da vida que se vive e de que cada qual tem a própria consciência, há uma outra experiência do tempo. É aquele que, já passado, fechou o seu ciclo; aquele que vai para além daquela materialidade, que o nosso quotidiano, arrastando, nos oferece. Então é a Memória! o tempo da Memória.


Óleo s/ tela - 1960 - António Joaquim

Memória, que poderá ser gratificante ou incómoda. Mas entre uma e doutra, aquela que mais nos toca, mais nos enche e nos consola, é, entretanto e sem dúvida, a memória gratificante daqueles que nos impressionaram e que se mantêm sentimentalmente vivos no nosso subconsciente: «aqueles que pelas suas obras, da lei da morte se vão libertando», para utilizarmos a perífrase do poeta. Buscamos e agrada-nos recordar essa memória que, a diversos títulos, nos foi cara, ou admirável; pois a memória daqueles, que nos incomodaram,

afastámo-la, como quem se livra duma pungente agressão. E o que dizemos de pessoas, igualmente o sentimos relativamente a factos passados, com as suas circunstâncias. * Chegados a este ponto, entendemos melhor o desejo e a proposta surgida para que se evoque a memória do Padre Albano de Paiva Alferes. De facto, a Liga dos Amigos da Feira ao debruçar-se sobre si e sobre a sua história topa com gratas lembranças de amigos que a integraram, mas que agora não fazem parte activa da sua assembleia. São aqueles que já partiram, e que, ao deixar-nos, rasgaram o nosso espírito com um rasto de saudade, de agrado e até de brilho, que não se desvanece com o tempo que passa. Daí que, posto de lado o tempo que vai escorrendo, a LAF faça apelo ao tempo pretérito da Memória, para celebrar o primeiro centenário do nascimento do Padre Albano de Paiva Alferes. De facto, ele que fez parte da Liga dos Amigos da Feira e dela foi co-fundador, nasceu em Romariz, deste concelho de Santa Maria da Feira, no dia 20 de Março de 1908, há, pois, cem anos – um século! A personalidade de Albano Alferes é suficientemente conhecida, pois dele já outros dados biográficos foram publicados, quer nesta publicação «Villa da Feira, Terra de Santa Maria, no seu primeiro número, quer no prefácio de «Velharias / Homens e Mulheres / Factos e Curiosidades», além doutras referências. * Num conspecto de conjunto e resumidamente, diremos agora que ele, além de membro activo da LAF e co-fundador desta revista, exerceu claramente um

63


64

magistério cultural e social no ambiente plurifacetado de Vila depois Santa Maria da Feira. Ligado à Comissão de Vigilância do Castelo da Feira, à Liga dos Amigos da Feira, ao semanário Correio de Feira, assistiu ao estado letárgico do pequeno e antiquado burgo da Feira, para, a partir do momento em que passou a residir na Feira (1-03-1979), dinamizar e participar no seu acordar, acompanhar a sua aurora cheia de luz e de esperança, a caminho do seu zénite, que se vem manifestando no centro urbano e alargado em que se tornou, polarizador dum futuro brilhante. Com efeito, ele afirmou-se como uma estrela brilhante no conserto das diversas constelações feirenses. Agora, não ficou ignorado. Daí a vontade que a Liga dos Amigos da Feira tem de, momentaneamente, fazer parar o tempo para evocar a sua memória, e, saudosa e reverentemente, lhe prestar a sua homenagem. É que o Padre Albano de Paiva Alferes nasceu há um século, a 20 de Março de 1908 vindo a falecer na Feira, no dia 1 de Fevereiro de 1994. Já há um ano, no dia 1 de Fevereiro de 2007, se fez memória da sua personalidade ao publicar postumamente os seus escritos e croniquetas, treze anos depois da sua morte. Naquela altura, no auditório da Junta da freguesia de São Miguel de Souto, ao apresentar-se a colectânea dos seus artigos no Correio de Feira fizeramse diversas alusões à sua pessoa, de que destacamos aqui as seguintes: -o«Para dar relevo à memória do seu associado, a LAF teve a feliz ideia de compilar os seus escritos, dispersos, por um alongado período de anos, nas páginas frágeis duma publicação periódica da Feira e

publicá-las em livro. Hoje, é o dia da sua apresentação pública». * A publicação dos escritos de alguém é sempre uma evocação expressa e amiga dessa pessoa. No caso presente, é o recordar e o preservar da corrupção do tempo, essa faceta tão gratificante e tão significativa do Padre Albano de Paiva Alferes. Agradava a leitura das suas croniquetas como agradava integrar a tertúlia, à mesa do café, onde ele dissertava, em franca cavaqueira e interessado diálogo sobre um dos muitos e variados temas, que a sua memória guardava. Tinha-se em conta a variedade dos eventos culturais, históricos e tradicionais, as linhas de força das opiniões, as propostas de iniciativas oportunas e válidas, o recordar leve dos factos caricaturais ou hilariantes de pessoas ou coisas do passado… relativas a este centro urbano da Feira e do seu alfoz. Mas, nomeadamente se tinham em conta, as preocupações da conservação e valorização das possibilidades do Castelo, as conferências de informação e estudo, a revitalização da Biblioteca, as possibilidades da imprensa e da rádio locais, as estruturas e equipamentos ligados aos serviços e à administração local, quer por parte das instituições, quer por parte de personalidades mais ou menos influentes. * Esse círculo de conversadores tinha uma grande variedade de participantes: uns com aprofundados conhecimentos e grande cultura sectorial sobre literatura, filatelia, arte, história local, ou sobre a biografia de seus autores… outros cultores do coleccionismo ou da bibliofilia; uns conhecedores de diversos ramos de actividades: estabelecimentos de comércio de antiqualhas, restauros de mobiliário e semelhantes;


outros ainda com saber enciclopédico, mais ou menos difuso, sobre uma multiplicidade de assuntos, onde as fontes literárias e históricas de referência local também estavam patentes. Cumpre aqui dizer que este núcleo de “cavaqueira” não funcionava só com o seu bla-bla… Frequentemente integrava personalidades de grande visão, oportuno sentido crítico e de profícua acção, prestigiados e oportunos mediadores, que encontravam ambiente propício para passarem das palavras aos actos. * O Padre Albano Alferes, depois de jubilado veio residir para o centro da sede concelhia, da então Vila da Feira, podendo depois com maior disponibilidade e despreocupação dedicar-se aos seus variados hobbies, ao prestar maior atenção e dinamismo a causas e valores esquecidos ou preteridos por falta de dedicações... A sua tribuna, começou a ser mais notória e influente, quando se desdobrou numa coluna escrita dum periódico da sede do concelho. Então Albano Alferes, através das suas achegas escritas, passou a ter uma maior audiência e a impor mais a importância do seu saber acumulado. * Albano Alferes nasceu em 20 de Março de 1908 na abonada Casa do Alferes, da extinta freguesia de Duas Igrejas, agora integrada na freguesia de Romariz, deste concelho. Falar dele para um indefinido público e na condição de amigo, tem a sua dificuldade. A amizade e a confidencialidade têm os seus cânones, que, por maior que seja a consideração, exigem a delicadeza da discrição e o respeito pela memória, de quem nos confiou as interpretações e leituras da vida.

Ele era um espírito independente, convencido das suas razões, ordenado e programado, cioso da sua opinião, continuamente preocupado em afirmar os seus critérios e a sua pessoa, consciente dos seus conhecimentos, impacientando-se perante as teimosias de quem, a seu ver sem fundamento, pretendia contradizê-lo; então, assumia um porte reservado, distante e frio, como que convencido, de que com determinados feitios não adiantavam argumentos, por mais evidentes que eles fossem. Entretanto, era dócil e atento quando as ocasiões lhe apresentavam novos horizontes de conhecimento, cultura ou prática de vida. Nessas circunstâncias abriase à amizade, que obsequiava com a sua sinceridade e fidelidade e admiração. Mas sempre se revelou como um espírito inconformado e insatisfeito, dominado pela ideia continuada de ir cada vez mais além, e não se limitar a ser um padre com uma «cultura de letras gordas». * O Padre Albano não estava sozinho nesta ambição de cultivar o seu espírito, dedicando-se à plural faceta da cultura geral, quer no domínio das ideias, quer nas artes, quer no estudo, quer na História, quer na atenção aos movimentos dominantes do pensamento e da acção. No passado, foram muitos os estudiosos, professores e escritores, que estiveram ligados à condição eclesiástica e que nos deixaram um espólio abundante das diversas espécies de cultura. Recordamos alguns, poucos, a título de simples amostra, porque seria inumerável a lista de nomes, se os quiséssemos inventariar a todos, mesmo que por alto. Da condição de abades referimos o Abade de Baçal (Francisco Manuel Alves, arqueólogo e historiador transmontano, de valor

65


66

reconhecido); falando de padres e bispos, citamos o Padre Luís Cardoso (o das Memórias Paroquiais) e D. Rodrigo da Cunha (bispo do Porto e de Braga, autor dos Catálogos dos bispos destas dioceses); falando de frades, ficamo-nos por Fr. Francisco de S. Luís (o futuro e famoso Cardeal Saraiva). Se nos voltarmos para o coleccionismo, referimos unicamente o grande humanista nacional e europeu que foi André de Resende, admirador e discípulo de Erasmo de Roterdão, que, em pleno séc. XVI, foi um persistente coleccionador de lápides, estátuas e monumentos romanos. Foram clérigos como estes que despertaram o interesse do Padre Albano Alferes pelo estudo, pela arte e pelo coleccionismo. * A figura do pároco de Aldeia, romanticamente apresentada entre nós por diversos escritores dessa corrente literária, descreviam o padre como o homem bonacheirão, paternal, conviva com todos os seus paroquianos, bom conselheiro, oportuno coadjuvante em momentos difíceis. Identificava-se com o seu povo, conhecia as suas virtudes e os seus defeitos, conhecendo os caminhos ínvios da libertinagem, mas também os caminhos da beleza e perfeição moral, da redenção e emenda de erros e de condutas. Particularmente avulta esta imagem do pároco de aldeia, na figura bem tipificada do simpático, venerando e paternal sr. Reitor, idealizado por Júlio Dinis, no romance As Pupilas do Senhor Reitor. Não menos sugestiva a figura do pároco de aldeia devida ao solene e profético estilo romântico de Alexandre Herculano. Na exploração da mesma temática aparece-nos também o turbulento e descritivo Camilo, onde se topam algumas reverendas figuras de padres, ao lado de outras de comportamentos menos

dignos. Com o seu estilo modelado, incisivo e directo, mas também escarninho, equívoco e verruminoso a figura dum padre (o Padre Amaro) também nos é apresentada por um Eça de Queirós, na versão de um clérigo pervertido, de vida dúplice, num quadro doentio duma literatura que pretendeu ter impacto. Era a projecção da escola francesa dum E. Zola e outros, que se tornou moda corrente do tempo. Albano Alferes, no seu modo habitual de ser, está acima destas diversas versões de clérigos. Pautou a sua vida pelo porte reservado, exigente, mas também sabedor e culto, atento às constantes dos valores decorrentes do tempo, que era o seu. * Num juízo de valores, que não é fácil, porque equivale a um juízo de intenções exclusivas da própria consciência, só nos é permitido julgar alguém, e, consequentemente, o Padre Alferes, tendo em conta que – e digamo-lo na palavra feita e lapidar – «o homem, é ele e a sua circunstância». Foram envolvimentos circunstanciais para Albano Alferes o ano de 1908, data do seu nascimento, com as contradições do iniciado regime republicano; foram depois as dificuldades sociais e políticas do pós Primeira Grande Guerra, que se continuaram por toda a década de 20. A influência dessas forças constantes, sociais e políticas, levando à agitação e à imposição, naqueles momentos em que se moldam caracteres, influíram na modelação da sua personalidade, com a naturalidade do processo físico da osmose. Na época do seu nascimento vinha-se de um tempo em que o liberalismo tinha semeado um conjunto de ideias novas, mas ainda não temperadas pela experiência, que gera o verdadeiro equilíbrio. Eram as doutrinas filosóficas do positivismo e do laicismo,


materializadas na República, e nas sociedades secretas, que, no nosso meio, originaram diversos conflitos, nomeadamente entre a Igreja e o Estado. Dentro da Igreja também se manifestaram alguns conflitos e desvios da doutrina tradicional católica, tais como o jansenismo e o modernismo que, para serem erradicados moveram os jerarcas da Igreja a exigirem que todo o clérigo, antes de assumir qualquer ofício e benefício eclesiástico, tivesse de proferir um juramento anti-modernista. Por reacção a uma situação de instabilidade estabelecida, na década de 30 e nas sociedades civis, os regimes políticos organizaram-se em novas formas de ser e governar para manterem, conforme se dizia, a ordem pública, a hierarquia de valores, a prosperidade temporal, o bem dos povos… Foi com estes lemas, utopias e sonhos semelhantes, que à situação de guerra acabada se sucederam os regimes de força com o pico nos regimes nazista e fascista, como regimes totalitários. A Igreja no cruzamento destas forças e teorias sentiu necessidade de se organizar por dentro, numa atitude de defesa, em forma de baluarte. No tempo de Pio XI essa preocupação traduziu-se no lema «instaurar todas as coisas em Cristo», que a Acção Católica materializou e procurou realizar. Então, havia os militantes e os filiados; os estandartes, os hinos, os juramentos, as paradas, os desfiles, os grandes encontros, o estudo, o compromisso, a militância e o testemunho. O empenhamento e a disciplina eram os melhores meios de potenciar os resultados a obter. O Padre Albano Alferes foi contemporâneo de todos estes movimentos; não podia deixar de ser afectado pelas influentes variações e dinamismos, que eles introduziram. O seu espírito fora moldado num quadro

complexo de exigência e de disciplina, conforme as premissas referidas. * Além da actividade paroquial a que o Padre Albano estava ligado, ele mantivera abertas as portas do estudo, do convívio e da acção, fazendo render nestes campos os seus talentos. Como é sabido ele também se dedicou ao coleccionismo fino. Esta actividade supõe o conhecimento das peças coleccionáveis e dos circuitos por onde elas correm; supõe interesse continuado, relacionamentos, e um investimento relativamente importante. Como objectos que quis coleccionar e aos quais se dedicou com êxito foram os livros; foi o desejo de formar uma biblioteca, mais do que os objectos do brique-a-braque da curiosidade. Ele adquiriu muitos livros, que procurava ler e estudar. Daí o seu brio, o seu saber, a sua cultura. Seria um interessante trabalho, para quem tivesse disponibilidade, catalogar e ordenar a sua abonada biblioteca, essencialmente humanista. Mas já não é do âmbito destas notas, apresentadas para avivar a memória do Rev. Padre Albano de Paiva Alferes, pretender ir mais além. Ficamonos por aqui com a nossa saudade, a nossa homenagem e a nossa amizade, solidários com a intenção de VILLA DA FEIRA, TERRA DE SANTA MARIA, não deixar passar em branco o dia 20 de Março de 2008, o dia jubilar do primeiro centenário de nascimento dum dedicado membro da Liga dos Amigos da Feira.

67


FOI MAS NÃO É Maria Fernanda Calheiros Lobo*

68

Não era o coucher du soleil Mas o nascer do sol. O fantasma das sombras Do crepúsculo Era uma recordação De ontem. Amizade Sinceridade Saudade com esperança Cheguei lá Mãe, Amor, Amor, Libertei-me Ao nascer Gritei, na água Com lágrimas? Sinceramente Não sei Tenho pressa De viver Outra vez, o natal Contigo Em Serpa(?) No Porto( ? ) No nosso lar Que hoje é, Uma recordação De afecto Uma esperança Consciente Um sol De loucura Voltei para o retrato E o telemóvel tocou...

* Universidade Sénior - Douro


P. ALBANO DE PAIVA ALFERES – UM HOMEM CULTO P. Januário dos Santos.* A celebração do centenário do nascimento do P. Albano Alferes dá-me ocasião para recordar a sua figura de homem e sacerdote culto que denotava, na apresentação e no trato, até uma certa fidalguia. Tudo o que vou dizer sobre o P. Alferes é fruto de uma imagem longínqua dos meus tempos de menino e moço e de encontros ocasionais, porque não convivi muito com ele. Quando o conheci, já ele era sacerdote e pároco. Mas a sua personalidade sempre me impressionou. Era um sacerdote moderno que trajava bem e me parecia muito humano. Numa época em que os sacerdotes quase só envergavam a batina ou o casaco preto comprido, já ele usava o casaco curto e, no Inverno, o cachecol de cor. * Missões de Cucujães

Sei que na juventude foi um apaixonado pela fotografia e pelos carros. Entre as recordações dos meus familiares há duas fotos velhinhas, lembrança da Comunhão Solene de meus irmãos. Foram feitas por ele que, nessa data, seria aluno do último ano de Teologia. Estão bem identificadas com um carimbo que reza assim: Albano Alferes – Fotógrafo Amador – Duas Igrejas. Nos meus tempos de aluno da Escola Primária de Romariz, via frequentemente o P. Albano Alferes na marcenaria do Zé do Rei em conversa com os filhos do patrão, talvez colegas de banco da escola. Esta marcenaria tinha nome no Concelho pela perfeição dos seus trabalhos e, à falta de botica na aldeia, funcionava um pouco como local de encontro das pessoas mais cultas. Curioso, aproximei-me algumas vezes e pude constatar que um dos temas mais comuns eram os carros. P. Alferes já tinha o seu carro o que, naquela época, era coisa rara. Mas, a julgar pelo que me confidenciou mais tarde, essa “paixão” vinha da meninice. Um dia falou-me do primeiro carro

69


que tinha visto em Romariz, pertença de um primo de meu pai que vinha do Porto, de tempos a tempos, visitar a minha avó. E descreveu-me com entusiasmo a admiração dos pequenos que acorriam de todos os lugares admirar aquela maravilha. Ele era um deles. Albano Alferes, seminarista do Porto, terminou o Curso de Teologia sem ter a idade canónica para ser ordenado presbítero. Por isso, foi cedido, durante um ano, à Sociedade Missionária Portuguesa (Missões de

70

Cucujães) para dar aulas e desempenhar o cargo de Prefeito dos alunos do 1.º ano no Seminário de Tomar. Ele gostava de recordar os episódios curiosos dessa etapa da vida. Havia sobretudo uma coisa que o enchia de alegria e que contava muitas vezes: a intuição que tivera sobre os dotes intelectuais de um aluno. Quando via aquele pequeno, de olhos vivos e transparentes, responder com graça e muito à vontade às perguntas que lhe eram feitas, muitas vezes ele pensou: aqui está uma grande inteligência E não se enganou. O pequeno de Tomar cresceu, foi sempre aluno brilhante, excelente professor que leccionava qualquer disciplina com proficiência e que marcou gerações de discípulos sobretudo nas aulas de Filosofia e Literatura. Foi um homem de uma capacidade invulgar, um apaixonado pelos livros (quando ia ao Porto comprava, logo ao chegar, o bilhete de regresso porque, entrando nas livrarias, corria o risco de gastar todo o dinheiro) que deixou ao Instituto muitos e valiosos livros. Esse intelectual invulgar, que lia o jornal ou um livro em diagonal e ficava com todo o seu conteúdo, foi o P. Alfredo Alves. O P. Alferes gostava imenso de falar com ele e escutava-o com o respeito e docilidade de um grande Mestre. O P. Alferes era também um grande comunicador. A sua conversa era fácil e agradável, salpicada de

pequenas histórias, de ditos humorísticos ou mordazes. Quando preparava alguma intervenção pública burilava as expressões com tanto cuidado que, por vezes, quase roçava o gongorismo. Mas o seu desejo de dizer bem, de apresentar um texto brilhante estava subjacente em tudo o que escrevia ou dizia publicamente. Mas era sobretudo um bom conversador. As confissões quaresmais, na paróquia de S. Miguel de Souto, prestavam-se para que, ao jantar, tradicionalmente de enguias, desse largas aos seus conhecimentos e saberes contando experiências e episódios, próprios e alheios, indo sempre cair no tema em que era especialista: o coleccionismo. Com quanto entusiasmo e gozo íntimo ele contava a história da revista ou do livro que fora descobrir no monte de papel velho pronto para ser moído ou do objecto que tinha comprado, em tal ou tal parte, a fulano ou sicrano. A casa paroquial era um autêntico museu que ele, guia competente, gostava de mostrar demonstrando o seu valor pelo material utilizado, pelas características que tinha, pela antiguidade, pela raridade. Onde quer que entrasse, o P. Alferes tinha aquela intuição própria do “apaixonado” que o fazia descobrir imediatamente o objecto de interesse ou porventura mal classificado. Foi o que aconteceu, um dia, no Seminário de Cucujães. Entrando numa sala viu, na vitrina, um objecto em forma de tesoura mas com um feitio muito especial, que tinha sido oferecido ao Instituto por um bispo missionário que passou os últimos anos em Alvações do Corgo. Já não sei a classificação que lhe tinham atribuído mas penso que devia ser um pouco bizarra porque ninguém sabia ao certo a que ele se destinava. P. Alferes viu, sorriu e emendou: este objecto é um corta-pavios. Estava normalmente junto


do altar nas capelas particulares ou sobre a mesinha de cabeceira, no quarto, das pessoas ilustres, ao lado da candeia. Servia para cortar o pavio da vela que se apagava. Outra característica do P. Alferes era um certo bairrismo. Já vem de longa data uma certa rivalidade ou animosidade entre Duas Igrejas, outrora freguesia anexa, e Romariz. Os seus habitantes mimoseavam-se mutuamente com os termos sonantes de “bacamartes” e “morteiros”. Os de Duas Igrejas eram “morteiros” e os de Romariz “bacamartes”. E isto aprendia-se, no seio da família, desde os mais tenros anos. No tempo do P. Alferes esta animosidade estava ao rubro. O P. Manuel Fernandes de Sá, da Casa da Costa Velha, tinha escrito uma breve monografia sobre Duas Igrejas defendendo a tese “independista” do lugar. Respondeu-lhe o P. Manuel Fernandes dos Santos, Pároco de Romariz, com um livro intitulado “ A Anexação de Duas Igrejas”. Estes dois livros foram achas deitadas à fogueira para alimentar a antiga animosidade entre os habitantes de Duas Igrejas e Romariz. Era mais que sabido que o P. Albano Alferes comungava, como é natural, das ideias do P. Sá. Manifestava-o frequentemente em conversas particulares ou até em referências públicas mas nunca, que eu saiba, veio a terreiro defender por escrito as suas convicções. Mas era um grande bairrista. Amava a sua terra, Duas Igrejas, e não se envergonhava de o proclamar. Fruto deste bairrismo foi também a acção que ele desenvolveu para que Vila da Feira passasse a chamar-se Santa Maria da Feira. Uma iniciativa feliz assente em sólidos fundamentos históricos que lhe mereceu a atribuição de uma condecoração, imposta

pelo Presidente da República, que ele gostava de exibir.1 O seu gosto pelo coleccionismo contribuiu para aumentar a sua cultura histórica, literária e etnográfica. Escutei-o algumas vezes a dissertar sobre correntes literárias contando episódios e citando nomes de escritores. Animava-se narrando sobretudo o lado jocoso dos acontecimentos ou situações. Falando sobre determinadas peças do seu acervo, ele historiava o aparecimento, a evolução, o contexto histórico da região onde tinham surgido e, se era o caso, a industrialização. Tudo isto era fruto de muitas leituras. Quanto às peças usadas pelo nosso povo ele narrava a sua utilidade ou conveniência, quando se tratava de adereços de beleza ou de estatuto social, e punha diante dos nossos olhos, com vivacidade, cenas da vida campestre ou social de outras eras. O P. Albano Alferes embora virado para o passado pelo gosto de coleccionador, era um homem do seu tempo muito voltado para o futuro. Amava a vida e gostava de viver. Por tudo o que ele foi e nos doou, é de toda a justiça lembrá-lo no primeiro centenário do nascimento. Pisando os nossos caminhos, deixou pegadas gravadas no nosso chão. Dele se pode dizer a conhecida frase: não foi em vão que viveu. Por isso, o recordamos agora com saudade e gratidão.

1

v. Villa da Feira, nº 1, p. 17e23.

71


72

LÍRICA BREVE E AMARGA DUM HOMEM FELIZ Manuel de Lima Bastos* Não sei donde venho, não sei o que sou, tão pouco sei para onde vou. Na improfundável ignorância do meu ser, apenas recordo que a primavera trazia as flores, o verão a época dos amores, o outono os frutos sazonados e o inverno os ásperos frios. E, vendo passar a via crucis das estações, sempre os natais me encheram o sapatinho com a memória de que o meu adn povoará os espaços siderais no sangue do meu sangue de filhos e netos. Recordando o meu amigo Pablo Neruda, e na miséria da minha imperfeição, posso dizer que me elevei à suprema dignidade dos homens comuns. Dezembro de 2007 *Advogado Devoto aquiliniano


A PRESSA Serafim Guimares* Nunca vi gente tão apressada como a portuguesa. Ter pressa, apressar-se, viver sob pressão. Coisas do nosso tempo, mas, sobretudo, coisa muito nossa. Mas, afinal, para quê e quando? Os portugueses têm tendência a ter pressa quando estão parados, quando estão à espera. Têm pressa nas plataformas, nas antecâmaras, na véspera. Nunca a trabalhar ou no momento da acção útil! Ultrapassar nas bichas quem chegou antes, atravessar as ruas com o semáforo vermelho – fora de tempo e das passadeiras –, ultrapassar todos os limites de velocidade quando se vai sentado a conduzir um carro. Nunca vi, em nenhum país do Mundo como no nosso, os desmandos de condução e as suas consequências desastrosas, com origem nessa pressa. Será mesmo pressa, ou nervosismo e * Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

má educação? Será urgência no desempenho da missão ou arritmia no comando do comportamento? Pressa deve ter-se no aprender, no esforçar-se por melhorar, no aperfeiçoar-se, no dar, no fazer bem; a pressa tem sentido se for altruista. Mas a nossa pressa é egoista e vã, gera atropelos e não visa nada. A pressa é um mau hábito que se adquire, por herança ou por contágio, e que menospreza os outros. É deseducada. Existe em si mesma, é inconsequente, não tem finalidade. A pressa é, quase sempre, um mal com consequências nefastas para quase todos! A presssa nas bichas gera protestos, desconforto e mal-estar. A pressa no atravessar as ruas gera acidentes. A pressa dos condutores torna-os agressivos e perigosos As nossas pressas são como a pressa das águas dos rios que os torna tumultuosos e desvastadores ou como a pressa do ar, que gera o vento que derruba árvores e casas e torna medonhas as ondas do mar!

73


A pressa no Homem é, também, uma força incontrolável não da mãe natureza, mas da natureza dos homens. Devagar se vai ao longe! Sejamos como a brisa! “E a brisa de tão naturalmente matinal Como tem tempo, não tem pressa”

Porto, 23 de Março de 2006

74


A IMPORTÂNCIA DO COMÉRCIO EM ARNELAS Pe. Manuel Leão* O título não pretende contabilizar a actividade comercial corrente em Arnelas. Apesar de todo o progresso tanto na população como nos circuitos económicos, a grandeza de Arnelas vem de longe. Não sabemos se este nome terá antiguidade garantida, porque num documento de 1580, lê-se num casal de Currall que hora se chama de Arnellas. O grande comércio de Arnelas, nos tempos antigos, girava à volta do vinho que tanto aí chegava através das terras da Feira, porque era colhido na Bairrada, como descia da região do Douro. No Porto e seu termo, consumia-se muito vinho. O excesso de bebida alcoólica tinha efeitos desastrosos, como desordens com resultados mortais. Foi o que aconteceu em 1596, em pleno domínio político filipino. Domingos Tomé, atingido por Sebastião Godinho, de Moselos, morreu deixando filhos menores órfãos. Houve uma

escritura de perdão para o autor da proeza, embora o pobre do Domingos Tomé, com hua pedrada que lhe derão hem Arnellas do concelho da Feira se fallecera. Os impostos sobre o vinho eram permanentes, sofrendo agravos, quando as circunstâncias políticas exigiam maior rendimento para fazer face a encargos contraídos. Próximo do fim das guerras da Restauração, em 1663, os mercadores de vinhos da terra da Feira assinaram um contrato com o representante do rei e na presença do síndico da Câmara Municipal do Porto. Tratava-se dum imposto de dois cruzados por pipa de vinho, que era pago pelos vinhos que vinham desde o porto de Entre-os-Rios com destino à cidade do Porto. Agora seria agravado com mais um cruzado. Mercadores de vinhos desta vasta região que traziam vinhos através de Arnelas, Carvoeiro e Crestuma, para a cidade e arredores, comprometiamse a fazer entrar no termo do Porto, anualmente, mil e quatrocentas pipas. Se esta quantidade não fosse atingida, o imposto seria pago na totalidade prevista no contrato.

* Natural de Milheirós de Poiares, concelho de Santa Maria da Feira, fez os seus estudos no Porto, tendo concluído o curso de Teologia e sido ordenado presbítero, na Sé do Porto, em 1943. Dedicou-se à educação e ensino, dirigindo o Colégio de Gaia, durante décadas. Esteve ligado à Fundação do Instituto Superior Politécnico de Gaia e Escola Profissional de Gaia, a cujas direcções pertence. Tem publicado numerosos estudos sobre história cultural do Porto e Vila Nova de Gaia, com incidência nos domínios da arte, da actividade livreira e do teatro portuense antigo. Tem promovido várias iniciativas de carácter social. Criou, em 1996, a Fundação Manuel Leão, com fins culturais e sociocaritativos.

75


76

Francisco Borges da Cunha foi mandatado para subscrever o contrato pelos negociantes. À conta dos mercadores ficava pagar os impostos locais na Câmara da Feira, visto que todos eles se situavam nos limites do concelho da Feira. Eram Sebastião Godinho Ferreira e João Jorge, da Vila da Feira; João Moutinho de Resende, António Francisco e João Rodrigues, de Arrifana de Santa Maria (assim era designada a vila de Arrifana); de Oliveira de Azeméis eram António Soares Homem, Manuel Coelho Soares e Aires Ferreira Coelho. Manuel de Azevedo morava no Couto de Cucujães, na sua quinta de Fermil. O próprio Francisco Borges Mascarenhas era de Cesar. Manuel de Castro Henriques residia em Lobão, no lugar de Mirelo. Paulo Coelho de Ascensão era de Souto, do lugar de Tarei; Manuel do Couto era de Crestuma. Manuel Fernandes Rodrigues morava em Sandim; Paulo Monteiro morava em Sanguedo. Completa a lista, apareceu mais um mercador de vinhos da Vila da Feira, Domingos Ferreira. Todos eles queriam, graças à garantia de pagamento do imposto usual, livrar-se do agravamento. De facto, representaria um agravamento no custo de vida, porque, além da água, não havia outra bebida para consumo da população. A Câmara da Feira não ficou tranquila, enquanto não tributou o próspero negócio do vinho na bacia do Douro, em Arnelas e Crestuma, cujos vendeiros tiveram de depositar um real por cada quartilho de vinho vendido no couto de Crestuma. Estavam confiantes que tal imposto seria anulado nas instâncias superiores, para onde seguiria demanda de recurso ou agravo, como se dizia na época. Assim fizeram, em 1684, Manuel Pereira Soares, de Arnelas, e Cristóvão Ferreira, de Crestuma. Manuel Alves, do lugar de Fioso, ficou como depositário

do dinheiro provável que os dois negociantes calculavam que teriam de pagar, se Lisboa não viesse a anular o imposto. A falta de pagamento de impostos era de muito sérias consequências naqueles tempos. Este depósito de valores diferentes valia pelos vinhos já vendidos: Manuel Pereira Soares devia catorze mil reis e Cristóvão Ferreira estava em dívida de trinta mil reis. O prazo calculado era do dia em que impos o dito tributo athe oie. O poder popular tinha alguma influência e aceitação, porque se lê na escritura, pera depozitario do dito dinheiro emlegeu o pouo do dito couto a elle Manoel Alues. Não fica por aqui a questão dos vinhos. Em 1694, houve quem recebesse reembolso de imposto cobrado. Foi João António, de Pedroso, embora morasse no lugar de Cardal, mas passou procuração para Manuel Dias e António de Sousa, de Arnelas, a fim de cobrar quatorze mil reis ou o que constar lhe pertense no dinheyro que se lhe manda restituir prosedido dos direytos dos dous cruzados que estauão impostos em cada pipa de vinho que se despachaua no lugar de Arnellas. Estava baseado em decisão superiormente tomada de que beneficiavam todos os mercadores da região cuja actividade principal era o vinho de consumo, ou como se lê huã sentensa que ouuerão os mesmos mercadores da terra da Feira. Ainda em 1704, tinha havido um acordo de defesa comum entre mercadores de vinhos da terra da Feira e os de Ovar contra impostos, porque eles trazião hã pleito com o Cenado da Camera desta cidade sobre certos direytos. Aparecem à frente deste documento Manuel Cardoso e Manuel Dias Lopes, de Arnelas. Domingos da Silva, sócio de António Rodrigues Rio, ambos de Ovar, tinham assumido a defesa em


Lisboa, para onde se tinha deslocado Domingos da Silva. Assim se refere que ele esta assistente na dita cidade de Lisboa com certos requerimentos. Estavam, portanto, a desenvolver diligências burocráticas tanto no Porto como em Lisboa. A propósito desta actividade comercial à volta do vinho, houve um poeta do século XVII, chamado Tomé Tavares Carneiro, cujos versos ficaram registados em autores seus contemporâneos, embora não tivessem sido publicados, porque se encontram inéditos na Biblioteca Municipal do Porto. Trata-se dum poeta satírico, que parece nem sequer poupar parentes seus, razão para estes, que eram abastados, nunca terem promovido publicação desta produção poética. O poema tem como pretexto uma viagem de barco Douro acima em companhia dum amigo. À medida que a viagem prossegue, o poeta vai fisgando tanto à direita como à esquerda. Vamos reproduzir a oitava onde Arnelas ocupa o centro da atenção do poeta: Eis quando a insigne Arnellas aparece Arnellas conhecida bem por fama Terra que mais em bebados florece Que todas quantas Baco no mundo ama E porque o vinho aqui jamais fallece Terra dos Beberrões esta se chama Estando de contino aqui cem mil E de ordinario todos ao funil.

O Comércio do Sal A importância do sal na vida económica não sofre contestação, a não ser depois que a medicina começou a apontar o seu consumo como uma autêntica

calamidade para a saúde humana. No entanto, naquelas épocas era tão importante como a pimenta, por cuja posse houve guerras. A região de Aveiro sobreviveu à ruína de outras salinas que existiram no norte. Ainda em pleno século XX, proprietários do norte do concelho da Feira iam buscar as rasas de sal necessárias para consumo das suas casas agrícolas e salga da matança de cevados, geralmente feita nos meses mais frios do inverno. A refrigeração era quase desconhecida. O sal, graças ao consumo obrigatório geral, também foi tributado. Arnelas era um porto fluvialchave do comércio do sal que aí era descarregado, vindo de Ovar, extremidade da ria de Aveiro. Em 1679, os arrais dos barcos juntaram-se para mandatarem quem os defendesse perante as exigências camarárias do Porto. Eram vários e de diversas procedências: Arnelas, Crestuma, Pala, Caldas de Aregos, Penajoia, Entre-os-Rios, Corvaceira, Gravato, Barrô. Estavam contrariados porque a Câmara do Porto obrigava-os a trazerem a esta dita cidade o sal que tem e recolhem em suas cazas no dito lugar de Arnellas aonde são moradores e impedirem cõprando e pena de dinheyro e prizão aos arraes das barcas e barcos de sima do Douro os que não carreguem nem leuem o dito sal do dito lugar e seus arredores. Em 1708, Manuel Cardoso, contratador e mercador de sal, morador em Arnelas, passa procuração a Manuel Dias Lopes, de Arnelas, para cobrança dos créditos de José Lopes, seu sogro, de quem fiquou seu erdeyro. Através desta procuração, poderá fazer-se uma ideia bem exacta da extensão do negócio do sal a partir de Arnelas. Apesar de Arnelas ser um entreposto do sal, onde comerciantes, situados a montante do Douro,

77


78

tinham seus armazéns, a clientela do falecido José Lopes abrangia toda uma região onde barcos podiam acostar. O documento refere partes de cima do Douro, descrevendo Aregos, Resende, S. Martinho de Mouros, Lamego, Mesão Frio, Barqueiros, Baião, Marco de Canaveses (então chamava-se Bemviver), Ancede e Penaguião. O rumo dos negócios desviou-se do Douro, quando as vias terrestres começaram a melhorar tanto no traçado como no piso, o que viria a acontecer a partir do segundo quartel do século XX. Entre 1725 e 1727, aparecem transcrições notariais de inspecções feitas ao despacho de sal para o ultramar. Era responsável, por provisão régia, Manuel Fernandes, contratador geral do sal do Reino para as conquistas. Em companhia do patrão-mor e do respectivo escrivão, andaram a percorrer os navios que estavam carregados para sair a barra do Douro. Ficou registada a quantidade de caixas de sal que cada navio carregava, ao mesmo tempo que ficava escrito o destino da carga, porque o contratador era senhor das terças. Nos livros da vereação portuense, em 1746, Damásio da Silva era medidor de sal nas caravelas; António Gonçalves, de Oliveira do Douro, também era medidor de sal.


DICIONÁRIO BIOGRÁFICO DE PERSONALIDADES FEIRENSES Franscisco Azevedo Brandão* AZEVEDO, Álvaro Moreira de (1941-2007). Nasceu em Romariz em 9 de Maio de 1941. Era filho de Américo Moreira Azevedo e de D. Alexandrina Rosa de Pinho. Foi funcionário comercial e empresário. Cedo se interessou pela política, tendo integrado uma lista concorrente às eleições para a Junta de Freguesia antes do 25 de Abril. Após a Revolução integrou e presidiu à Comissão Instaladora da Junta de Freguesia. Foi fundador da secção local do PSD, a que presidiu durante vários mandatos. Presidiu também à secção concelhia do PSD, de Santa Maria da Feira. Concorreu, em 1976, às primeiras eleições autárquicas, vencendo-as com grande destaque. Nos últimos quatro mandatos continuou como Presidente da Junta. A ele se deve a sede social da Junta, o polidesportivo, a zona industrial, o apoio

à sede dos escuteiros e à abertura de novas ruas. Foi fundador do Romariz Futebol Clube, tendo sido o seu primeiro director, cargo que repetiu durante vários mandatos. Pertenceu ainda aos corpos gerentes do Clube de Caçadores de Romariz. Era casado com D. Emília Fátima Alves de Sá, de quem teve quatro filhos: Célia, Helena, Corina e Ricardo. Faleceu em 5 de Abril de 2007. Bibliografia Correio da Feira, 9.4.2007; Jornal de Romariz, Abril de 2007 AZEVEDO, Anídio Nunes de (1906-1991). Nasceu em Arrifana em 1906. Foi sócio fundador, 2.º Comandante do primeiro corpo activo e dirgente da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Arrifana. Era casado com D. Maria Isolina Casals da Silva de quem teve dois filhos: Anídio e Renato Manuel Casals. Faleceu em 21 de Abril de 1991. Bibliografia Correio da Feira, 26.4.1991

* Licenciado em História pela Universidade do Porto e Bacharel em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra. Historiador local. É autor de Anais da História de Espinho, O Associativismo em Espinho, Joaquim Pinto Coelho, um político de Espinho, O campo de Aviação de Espinho, O culto de Nª Sª da Ajuda em Espinho e Manuel Laranjeira, por ele mesmo.

79


AZEVEDO, António de (? - 1768?). Natural da Vila da Feira, o padre António de Azevedo faleceu em 9 de Junho de 1768 em casa do seu parente José Pedro da Fonseca, de Alpossos, Rio Meão, deixando como herdeira uma sua sobrinha, casada com Gabriel Teixeira Futriane de Carvalho, moradores na sua Quinta de Erguedeira (Ervedeira?), bispado de Lamego. Foi sepultado dentro da igreja de Rio Meão. Bibliografia David Simões Rodrigues, Rio Meão – A Terra e o Povo na História. Edição da Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001

80

AZEVEDO, António da Fonseca e Sousa Veloso de (ou Frei António de Santa Maria) (? - ?). Natural da Quinta do Rego (?) de Alpossos, Rio Meão. Era filho do Dr. Domingos da Fonseca e Sousa e de D. Felícia Luísa de Azevedo. Em 1774 e 1787, era cura da freguesia de Espargo. Seu irmão José Pedro da Fonseca de Sousa Veloso de Azevedo era, em 2 de Março de 1775, Juiz da Confraria do Santíssimo e faleceu em 19 de Maio de 1780, com 50 anos de idade. Bibliografia David Simões Rodrigues, Rio Meão – A Terra e o Povo na História. Edição da Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001; Padre Joaquim Correia da Rocha, Recordar 900 Anos de Paços de Brandão. Edição da Junta de Freguesia de Paços de Brandão, 1995; AZEVEDO, Bartolomeu Bento de (1724 -?). O relatório das freguesias da Feira feito por ordem do Vigário Capitular, D. Nicolau Joaquim Thorel da Cunha Manuel, em 1769 e no que se refere a Canedo, diz que Pedro Bartolomeu Bento de Azevedo

era formado em Cânones, tinha sido ordenado em 1749 e tinha 45 anos de idade, Bibliografia Cónego A. Ferreira Pinto, S. Pedro de Canedo. Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 15, 1938 AZEVEDO, Caetano de (? - ?). Foi pároco da freguesia de S. Jorge, de 1756 a 1792. Bibliografia P.e José Inácio da Costa e Silva, A Freguesia de S. Jorge, jornal Tradição, número especial das Comemorações dos Centenários, Setembro, 1940; e Caldas de S. Jorge. Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 22, 1940 AZEVEDO, Dionísio de (? -?). Vivia em 1747, segundo Carta de Familiar do Santo Ofício que lhe foi concedida nessa data e que a seguir se transcreve: «Capitão de mar-e-guerra; natural e morador no Porto, em Cima do Muro; filho de Manuel Dias, de Presas, freguesia de Santo André de Mosteiro, Feira, e de Antónia de Azevedo, de Fermilhe, freguesia de Santo André de Cucujães, Oliveira de Azeméis; neto paterno de Manuel Dias, o «Rato» e de Maria Manuel, naturais e moradores em Presas e materno de Manuel de Azevedo, casado, e de Maria, a «Charnica», solteira, naturais e moradores em Fermilhe; casado com Teresa de Brito, filha de João de Brito, natural da Eira da Vila, freguesia de S. João de Rio Frio, Arcos de Valdevez, e de Ana Cardosa, natural de Sobrado, freguesia de Santa Maria de Tarouquela, Sanfins, neta paterna de Domingos Barreiro e de Maria de Brito, naturais e moradores em Eira da Vila, e materna de Manuel Cardoso e de Maria de Sousa, naturais e moradores em Sobrado. Carta de Familiar de 20 de Fevereiro de 1747 Dionísio – m. 3, n.º41.


Bibliografia Jorge Hugo Pires de Lima, O Distrito de Aveiro nas Habilitações do Santo Ofício. Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 113, 1963 AZEVEDO, Domingos da Costa (? – 1704). Vivia em 1682 na Casa e Quinta de Alpossos, Rio Meão. Era descendente dos Azevedos de S. João de Rei e por isso a casa ostentava no frontispício da porta principal o brasão de armas desta linhagem. Era licenciado em Direito Casou com D. Maria de Sá e deste casamento houve seis filhos: Domingos, António, Páscoa, Manuel, João e Baptista. Faleceu em Rio Meão em 1704. Bibliografia David Simões Rodrigues, Rio Meão – A Terra e o Povo na História. Edição da Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001; Francisco Azevedo Brandão, Família Azevedo Aguiar Brandão. Revista Villa da Feira – Terra de Santa Maria, n.º 14, 2006 AZEVEDO, Domingos da Costa (? -1736). Nasceu na Casa e Quinta de Alpossos, hoje do Sardão. Era filho do Dr. Domingos da Costa Azevedo e de D. Maria de Sá. Em 1693 era Presbítero e Licenciado em Cânones pela Universidade de Coimbra. Em 1703 era pároco de Travanca do concelho da Feira e em 1734 era pároco na sua terra, Rio Meão. Faleceu na Quinta de Alpossos em 15 de Julho de 1736 e foi sepultado na capela-mor da igreja paroquial. Bibliografia David Simões Rodrigues, Rio Meão - A Terra e o Povo na História, Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001.

Francisco Azevedo Brandão, Família Azevedo Aguiar Brandão. Revista Villa da Feira, Terra de Santa Maria, n.º 14, 2006. AZEVEDO, Gonçalo de (? - ?). Era pároco de Fiães em 1619. Em 1621 teve a visita pastoral do Bispo do Porto, D. Rodrigo da Cunha. Bibliografia Padre Manuel Francisco de Sá, Santa Maria de Fiães da Feira. Casa Nun’Álvares, Porto, 1940 AZEVEDO, Fernão ou Fernando de Magalhães (? - ?). Pertencia à família do navegador Fernão de Magalhães e aos Azevedos, senhores de Pardilhó, Estarreja. Era filho de Francisco de Azevedo de Magalhães, da Quinta de Azevedo, em S. Vicente de Pereira, Ovar, e de sua mulher Catarina de Pinho Sampaio; neto paterno de André Homem da Costa e de Catarina Vaz de Sampaio. Foi casado com D. Brites Pinto de Amorim, de quem teve duas filhas: Maria de Magalhães Azevedo e Catarina de Pinho Amorim. Esta casou em Arrifana, Feira, em 27 de Novembro de 1629 com Cristóvão Soares Coelho de Albergaria, de Ovar, filho de Diogo Soares de Albergaria e de Maria Coelho. Tiveram vários filhos, entre os quais, o clérigo e reitor de Gemunde e se chamou como o avô, Fernão de Magalhães Azevedo e nasceu em Arrifana em 31 de Março de 1630. Fernão de Magalhães Azevedo viveu em Arrifana e «foi bom cavaleiro e muito honrado», com diz Cristóvão Alão de Morais no seu livro «Pedatura Lusitana». Bibliografia António de Souza Brandão, Moutinhos de S. João da Madeira e Pinhos de Arrifana de Santa Maria. Revista «Armas e Troféus», 1980

81


82

AZEVEDO, Francisco (? - ? ). Era tabelião da Feira em 1576 e esteve na venda da Quinta de Pigeiros efectuada por Isabel de Andrade, viúva de António Pereira, a favor de Tomé Rocha do Porto. Bibliografia Padre Domingos Moreira, «Documentos sobre Pigeiros». Revista Aveiro e o seu Distrito, n.31

AZEVEDO, João Álvares de (1413? –?). Nasceu cerca de 1413. Era filho de D. Violante Rodrigues de Azevedo, filha natural e legitimada de João Rodrigues de Azevedo, infanção e senhor das honras e quintas de Vila Maior (Feira) e da Roda (Vila Boa da Roda), e de Álvaro Gonçalves Aranha, da quinta do paço, Oliveira de Azeméis e senhor da Vila Nova de Foz Côa e de Parada, no Prado. Foi capitão-mor de Ceuta e Tânger, contador de Tânger, fidalgo da Casa de D. Duarte

AZEVEDO, Jacinto Luís de (? - ?). Natural de Alpossos. Rio Meão, onde nasceu cerca de 20 a 23 de Abril de 1697. Era filho do Dr. Manuel Luís Branco e de D. Páscoa da Costa Azevedo, filha do capitão de Milícias da Vila da Feira, João da Costa Azevedo e neta paterna do Dr. Domingos da Costa Azevedo. Foi baptizado na igreja de Rio Meão pelo padre Domingos da Costa Azevedo, seu tio a 1 de Maio de 1697, sendo padrinhos o Dr. Manuel Gouveia de Figueiredo, cavaleiro da Ordem de Cristo, escrivão da Câmara Eclesiástica de Braga que deu procuração a Matias da Silva Ribeiro, abade de Paços de Brandão, e D. Jacinta Teixeira de Melo, mulher do licenciado Matias Soares, da Vila da Feira. Foi cura na igreja de S. Martinho de Arada em 1730. Em 1747 vivia no lugar e Quinta do Rego, em Rio Meão. Bibliografia David Simões Rodrigues, Rio Meão – A Terra e o Povo na História. Edição da Junta de Freguesia de Rio Meão 2001; Padre Joaquim Correia da Rocha, Recordar 900 Anos de Paços de Brandão. Edição da Junta de Freguesia de Paços de Brandão.

e D. Afonso V, comendador da Ordem de Cristo, e viveu na quinta de Azevedo, na freguesia de S. Vicente de Pereira Jusã (Ovar), que constituiu em morgadio. Casou cerca de 1441 com D. Beatriz Afonso Alão, senhora do morgadio da quinta de Pereira, também na freguesia de S. Vicente de Pereira Jusã, que o seu antepassado Afonso Fernandes Alão tinha instituído morgadio no ano de 1275, conforme informam as genealogias. Teve uma filha, D. Leonor de Azevedo, que garantiu a continuação da linhagem deste ramo dos Azevedos. Bibliografia Manuel Abranches de Soveral, Uma Linha Azevedo em Viseu. Página da Internet. AZEVEDO, João da Costa (?- ? ). Nasceu na Casa e Quinta de Alpossos, hoje do «Sardão», em Rio Meão. Era filho de Domingos da Costa Azevedo e de D. Maria de Sá. Casou com escritura antenupcial de dote, com D. Leonarda Pereira Aguiar Godinho, senhora da Casa e Quinta da Torre ou da Capela de invocação das almas, em Paços de Brandão, dos prazos da Ponte do Fundo e do Morgado e Vínculo da Capela de Estorninho, na freguesia de Mozelos e de Lourozela, na freguesia de Lourosa, filha de João Pereira Pinheiro e de D. Maria Aguiar Godinho, moradores na freguesia de Várzea, concelho de Benviver, hoje Marco de Canavezes.


João da Costa Azevedo foi capitão de milícias da Vila da Feira e avô de D. Jacinta Luísa de Azevedo Aguiar e Melo, filha de Eusébio da Costa Azevedo e Aguiar e de D. Bernarda Caetano de Melo, que casou com José de Sá Pereira Brandão e que deu início à família Azevedo Aguiar Brandão em Paços de Brandão. Bibliografia David Simões Rodrigues, Rio Meão - A Terra e o Povo na História, Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001; Francisco Azevedo Brandão, Família Azevedo Aguiar Brandão. Revista Villa da Feira – Terra de Santa Maria, n.º14, 2006; Padre Joaquim Correia da Rocha, Recordar 900 Anos de Paços de Brandão, 1995; Livro de Assentos de Paços de Brandão. AZEVEDO, João Rodrigues de (1355? - ?). Nasceu cerca de 1355 em Vila Maior, Feira. Era filho de Rui Gomes de Azevedo, «cavaleiro de Azevedo», vassalo de D. Afonso IV, e de D. Guiomar Pires, filha de Pedro Esteves, de Vila Maior. Era infanção e foi senhor das honras das quintas de Vila Maior (Feira) e da Roda (Vila Boa da Roda, antigo concelho que hoje corresponde à freguesia de Guilhofrei, concelho de Vieira do Minho), e dos direitos reais de Roças (Sever do Vouga). Era também padroeiro do mosteiro de Grijó, pois vem incluído na lista da «comedorias», de 1365, designado como infanção, juntamente com seus irmãos Diogo e Maria, na altura ainda menores. Casou com D. Catarina Rodrigues Toscano, filha de Martins Toscano e que, depois de viúva, professou no convento de Santos. Não teve filhos. No entanto, João Rodrigues de Azevedo teve uma filha natural, D. Violanta Rodrigues

de Azevedo que foi legitimada por carta de D. João I e portanto herdeira de João Rodrigues de Azevedo. Bibliografia Manuel Abranches de Soveral, Uma Linha Azevedo em Viseu. Página da Internet. AZEVEDO, José Cândido Marques de (1863 - 1927). Nasceu em Barcelos em 25 de Janeiro de 1863. Era filho de Domingos Miguel de Azevedo, escrivão de Direito e de D. Mariana Cândida Marques da Costa Freitas. Era casado com D. Josefina da Silva Campos Marques de Azevedo, de Viana do Castelo. Foi Director do Notícias da Feira e um dos fundadores do Comércio de Barcelos. Em 24 de Março de 1891 tomou posse do cargo de escrivão substituto do 2.º Ofício do Tribunal da Vila da Feira com provimento definitivo em 1893. Em 1899 foi transferido para Ponte da Barca, tendo sido reintegrado na Vila da Feira em 20 de Novembro de 1900. Foi administrador do concelho de Vieira e mais tarde administrador do concelho da Feira, de 17 de Junho de 1911 a 15 de Março de 1915 e desde Abril de 1922 a 28 de Novembro de 1923. Era militante do Partido Progressista e após a proclamação da República aderiu ao Partido Democrático. Faleceu em 16 de Março de 1927. Bibliografia Roberto Vaz de Oliveira, Imprensa Periódica da Vila e Concelho da Feira. Revista Aveiro e o seu Distrito, n.º 8, 1969. AZEVEDO, José Pereira de (? - ?). Vivia em 1771, segundo Carta de Familiar do Santo Ofício que lhe foi concedida nessa data e que a seguir se transcreve:

83


84

“Homem de negócio no Rio de Janeiro, na rua Travessa da Alfândega, freguesia da Candelária. Natural da freguesia de Santo Ildefonso, extra-muros da cidade do Porto, filho de André Pereira dos Santos, natural da freguesia de Santa Maria de Landim e de Francisca Maria da Silva, natural da dita freguesia de Santo Ildefonso e aí moradores: Neto paterno de João Pereira e de Maria Pereira, naturais da freguesia de Santa Marinha, unida à de Landim e nesta moradores, e materno de Manuel de Azevedo, natural de São Paulo, freguesia de São João das Caldas, Guimarães, e de Natália da Silveira, natural de Freguesia de Santo Tirso. Ajustado, em 1777, para casar com Ana Clara de Sousa e Sá, natural da freguesia de Santo Ildefonso, já dita, e moradora na rua Nova do Almada do Porto. Filha de Inocêncio de Sousa Santos, natural da freguesia de Santiago de Rio Meão, e de Maria Joaquina da Conceição, natural de freguesia de Guilhabreu, concelho de Vila do Conde, neta paterna de Manuel Gomes dos Santos, natural de Santiago de Rio Meão, e de Joana de Sousa, natural de Ronfe, Guimarães, e moradores em Rio Meão; e materna do sargento-mor Luís Camelo de Sá, natural da dita de Guilhabreu, e de D. Ana Maria Carneira de Azevedo, natural da freguesia de Santa Clara do Torrão; Marco de Canavezes e moradores em Guilhabreu.” Carta de Familiar de 22 de Maio de 1771. A.N.T.T. José – m.127, n.º2674». Bibliografia David Simão Rodrigues, Rio Meão, - A Terra e o Povo na História. Edição da Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001. AZEVEDO, Manuel Cardoso (? - ?). Vivia em 1715, segundo a Carta de Familiar do Santo Ofício que lhe foi concedida nessa data e que a seguir se transcreve: “natural da freguesia de S. Jorge,

Feira, e morador em S. Pedro, freguesia de N.ª Sr.ª da Purificação de Sergipe do Conde, Brasil; filho de Adrião Cardoso, natural de Azevedo, freguesia de S. Jorge, e de Isabel André, natural de Ribeiro, freguesia de Santiago de Lobão, Feira; neto paterno de Adrião Cardoso, natural de Bajouca, freguesia de S.tª Maria de Pigeiros, Feira, e de Maria Gonçalves, natural de Azevedo, e aí moradores, e materno de Sebastião Dias, natural de Ribeiro, e de Maria João, natural de Cedofeita, freguesia de Santa Maria do Vale, Feira, moradores em Ribeiro.” Carta Familiar de 19 de Fevereiro de 1715.A.N.T.T. Manuel, m.78, n.º 1506» Bibliografia Jorge Hugo Pires de Lima, O Distrito de Aveiro nas Habilitações do Santo Ofício. Revista Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 154 (Abril, Maio e Junho), 1973. AZEVEDO, Rui Pereira de (? -?). Foi o 4.º senhor de Fermedo e Honra de Cabeçais e Vila Maior da Feira. Era filho de João Álvares Pereira, 3.º senhor de Fermedo, Cabeçais e Vila Maior da Feira e de D. Joana Vilhena de Azevedo. Casou com D. Margarida da Silva Freire, filha de Bernardo Freire e de sua segunda mulher D. Francisca da Silva. D. João III, a 17 de Janeiro de 1553, nomeou-o em Lisboa, para que este em Fermedo, elegesse ao seu arbítrio, Tabelião Judicial e Notificador. Do seu casamento houve 5 filhos: João Álvares Pereira, 5.º senhor de Fermedo, Cabeçais e Vila Maior da Feira; Bernardo Freire que mataram na Índia; Brás Pereira que morreu na Índia; D. Francisca Pereira, mulher de Bernardo da Veiga de Sacavém; e D. Branca, freira em Monchique. Bibliografia Alfredo Gonçalves de Azevedo, Os Senhores de Fer-medo e Cabeçais. Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 148, 1971.


AZEVEDO, Rui Gomes de (1298?-1365?). «Cavaleiro de Azevedo», foi vassalo de D. Afonso IV, infanção, «natural» dos mosteiros de Vilar de Porcos 1329) e de Grijó, nasceu cerca de 1298, provavelmente no castelo de Albuquerque. A 2 de Julho de 1308, portanto ainda menor e certamente vivendo em Castela, foi beneficiado com 250 libras portuguesas no testamento de Pedro Martins Carpinteiro, feita em Burgos naquela data. Em 1328, já em Portugal, esteve incluído no lote de 40 fidalgos que D. Afonso IV indicou como reféns, segundo o Tratado de Escalona assinado entre os reis de Portugal e de Castela. Nesse mesmo ano fez uma escritura com o Cabido da Sé do Porto sobre uns bens que este lhe emprazara e pertenciam ao mosteiro de Canedo (Feira). A 9 de Junho de 1333, ele e sua mulher, D. Guiomar Pires, senhora da honra e quinta de Vila Maior (Feira), doaram ao mosteiro de Vila Cova de Sandim dois casais que tinham em Sever e receberam em troca tudo o que o dito mosteiro tinha em Ossela. Passou a viver no paço da quinta de Vila Maior (Feira), que era de sua mulher. A 12 de Fevereiro de 1341, arrendaram as quintas de Armir e Sanguinhedo por 150 libras anuais Em carta de D. Afonso IV de 19 de Setembro de 1355, este proibiu-o de cometer mais abusos contra o mosteiro de Arouca. Num documento de 21 de Setembro de 1333, intitula-se «cavaleiro de Azevedo». D. Guiomar Pires era filha herdeira de Pedro Esteves, de Vila Maior e de sua 2.ª mulher D. Sancha Vasques Peixoto. Rui Gomes de Azevedo e sua mulher D. Giomar Pires outorgaram uma doação que fez um irmão dela, Gonçalo Peres, de Vila Maior, falecido solteiro, de um casal de Macinhata do Seixo ao mosteiro de Pedroso. Deste casal houve um filho herdeiro, João Rodrigues de Azevedo. Faleceu cerca de 1365.

Bibliografia Manuel Abranches de Soveral, Uma Linha Azevedo em Viseu. Página da Internet. AZEVEDO, Violante Rodrigues de (1390? - ?). Nasceu cerca de 1390. Era filha natural de João Rodrigues de Azevedo, infanção de Vila Maior e legitimada por carta de D. João I, foi herdeira e senhora das honras e quintas de Vila Maior (Feira) e da Roda (Vila Boa da Roda). Enquanto órfã, teve como tutor seu primo, Gonçalo Mendes de Vasconcellos, bisavô paterno de Violante, por não haver parente mais próximo. Casou cerca de 1410 com Álvaro Gonçalves Aranha, nascido cerca de 1387, senhor da quinta do Paço, em Oliveira de Azeméis e que era um prazo do mosteiro de Arouca de 27 de Agosto de 1448. Este Álvaro Gonçalves era filho de Gonçalo Aranha, nascido cerca de 1360, morador em Viana, vassalo de D. João I que o nomeou senhor de Vila Nova de Foz Côa, em 10 de Março de 1384 e de Parada, no Prado, em 1384, e de sua mulher Aldonça Anes de Alvello, que levou por dote a quinta honrada e coutada de Serzedelo (Guimarães?), que o rei confirmou a seu marido naqueles anos. Segundo o linhagista Felgueiras Gaio, Gonçalo Aranha era irmão de Gil Aranha, senhor de uns foros que se pagavam em Castro Daire, e de João Fernandes Aranha, senhor de Vila Nova da Roda, todos filhos de Fernando Afonso Aranha, irmão do Bispo do Porto João Afonso Aranha. D. Violanta Rodrigues de Azevedo e seu marido tiveram um filho herdeiro, João Álvares de Azevedo. Bibliografia Manuel Abranches de Soveral, Uma Linha Azevedo em Viseu, Página da Internet.

85


86

CILADA Anthero Monteiro* sentado à mesa sob as árvores de verão pergunto-me se também elas já terão almoçado já que tanto trabalham para mim sem almoço está o pardal que chega sempre à hora exacta e ali fica estátua da espera reclamando os meus sobejos deixo-o à estaca um longo minuto porque a minha sobremesa é a sua companhia e quando lhe atiro um pedaço de comiseração logo ele se desmultiplica em cinco fotocópias fecho então à pressa o meu caderno e enquanto disputam a mísera iguaria apanho-os a todos na esparrela do poema Porches, 7 de Setembro 2007

* Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros, autor de Canto de Encantos e Desencantos, Desesperânsia, Esta Outra Loucura e outros livros.


“UM PADRÃO HISTÓRICO EM ARRIFANA DE SANTA MARIA” Augusto Telmo (*) Em 17 de Abril de 2009, passarão 200 anos desde esse fatídico dia de 1809, que ficou conhecido para a história como o ‘Massacre de Arrifana’, às mãos das tropas napoleónicas, nas segundas Invasões Francesas, a mando do Comandante, Marechal Soult, Duque da Dalmácia. Nesse dia de 2009, irá ser lançada, na ‘Colecção Santa Maria’, pela ‘Liga de Amigos da Feira, a obra “Um Padrão Histórico em Arrifana de Santa Maria”, de autoria de Augusto Telmo, uma obra que pretende registar tudo o que envolveu a construção desse maravilhoso obelisco, inaugurado a 19 de Abril de 1914, existente na Praça da Guerra Peninsular, em Arrifana, e que pretende assinalar esse acontecimento. A obra referida vai publicar tudo o que o autor conseguiu recolher sobre esse monumento, desde o (*) Licenciado em Engenharia Civil. Licenciado em Engenharia e Gestão Industrial. Professor do Ensino Secundário. Director do Jornal “O Arrifanense”. Tem 3 livros publicados sobre a história local.

dia em que Américo Rezende, o primeiro Presidente da Comissão para a Construção desse Monumento, teve essa feliz ideia, passando pela inauguração, aniversários, todas as publicações. Publicar-se-ão muitos textos inéditos a grande maioria, assim como várias fotos inéditas e que foram o resultado de vários anos de pesquisas já efectuadas. Nas cinco publicações seguintes da revista “Villa da Feira”, já com esta edição, o autor irá publicar enxertos da obra que verá a luz da publicidade em 17 de Abril de 2009. O seguinte parágrafo que será publicado na primeira página dessa obra, é bem demonstrativo do que será publicado nessa obra que, desculpem-me a imodéstia, vai extravasar as fronteiras locais e concelhias. Penso que será uma obra com algum interesse para a história do País. «O escrito que hoje damos à estampa relata esse episódio, “O Morticínio levado a cabo em Arrifana pelas Tropas de Napoleão Bonaparte” materializado no Monumento da Guerra Peninsular,

87


88

existente em Arrifana, na Praça da Guerra Peninsular, que, pensamos, merece uma atenção especial por parte de todos nós Arrifanenses, neste 200º Aniversário do ‘Massacre em Arrifana’, pois é ele que está a perpetuar esse trágico acontecimento que as tropas francesas levaram a efeito, em 17 de Abril de 1809.» Ir-se-á, a partir desta edição da Revista ‘Villa da Feira’, fazer algumas publicações de enxertos e passagens dessa obra. «A ideia de partilhar com a posteridade a memória dos que morreram pela sua terra já vem de longe. À falta de melhor, pessoas piedosas registaram em retábulos pintados ou ergueram na beira do caminho alminhas, nichos, oratórios que perpetuam os massacres perpetrados pelos franceses. (......) Arrifana não quis ficar alheia às comemorações nacionais e perder a oportunidade de lembrar os seus mártires. A ‘Comissão do Monumento’, presidida inicialmente pelo arrifanense Américo de Resende, convida então o artista local amador, Domingos Reis Maia, para fazer o desenho de um padrão comemorativo. O projecto do Monumento constava de um obelisco, todo em granito, com 8,30 m de altura, encimado por uma esfera armilar (círculo fixo da esfera celeste que apresenta o equador, o meridiano, etc.) metálica. A base assenta sobre três degraus, media do lado maior 1,27 m e era circundada por uma grade metálica (em quadrado) com 5,10 m de lado. Nas suas faces apresentava lápides embutidas, com dizeres e datas relativas ao trágico acontecimento e, na face principal, tinha uma cavidade onde se colocaria o Retábulo pintado que recordava a cena da morte do irmão de

Pedro de Azevedo (Manuel de Azevedo), existente no nicho próximo, desde 1822.» (......) «Começamos a presente pesquisa, com a publicação de um artigo publicado no jornal ‘Correio da Feira’, com data de 31 de Agosto de 1909, cuja primeira publicação foi feita num jornal de Lisboa, e intitulado ‘Centenário da Guerra Peninsular – O Retábulo de Arrifana’. “O Presidente da Comissão official da commemoração do Centenário da Guerra Peninsular, General Rodrigues da Costa, e o Secretário Capitão Amílcar Motta, foram à freguesia de S.ta Maria da Arrifana, concelho da Feira, examinar o Retábulo Padrão, que alli existe, e que commemora o morticínio, feito em 17 de Abril de 1809, pelas tropas do General Soult, quando cercando a povoação e encerrando na Igreja os homens válidos, quintaram e fuzilaram estes, em desforço da guerra que os guerrilheiros portugueses faziam à invasão. A pintura do retábulo carece de ser restaurada, o que vae fazer-se, vindo o quadro para Lisboa, onde deve chegar brevemente. Mas é interessante e suggestivo relatar-se que os habitantes da Arrifana teem sempre cercado de piedoso culto aquella memória, honra para o patriotismo dos seus maiores, e que, com as suas esmolas espontânea e prematuramente dadas, manteem, há perto de um século, o suffrágio das almas dos cento e sete martyres que alli cahiram varados pelas balas dos invasores. Na Arrifana há o maior entusiasmo pela restauração do seu quadro commemorativo, pensandose em dar-se-lhe melhor collocação n’um pequeno obelisco, erguido ao meio do campo onde se deram os


fuzilamentos, e, onde se diz, que há ainda árvores, que tiveram pendurados os cadáveres das victimas. O fervor patriótico dos arrifanenses não só muito os honra, mas é até um alto e nobre exemplo, e fecunda lição, dada a outras povoações para as quaes o centenário da lucta peninsular não teve o condão de acordar o sentimento patriótico. O padrão da Arrifana, depois de restaurado, e adequadamente collocado, ficará sendo monumento millitar nacional”.» (......) «Publicamos na integra, o artigo, saído no jornal A Tradição, pequeno jornal saído no dia da inauguração do Monumento, com data de 17 de Abril de 1914, e assinado por Saul Eduardo Rebello Valente e intitulado, À Memória de Américo Rezende, mentor e primeiro ‘Presidente da Comissão’ responsável pela erecção do monumento, falecido a 10 de Outubro de 1913: “UM MONUMENTO... livro cujas páginas sem letras folheamos com interesse, lendo avidamente frases palpitantes de vida, que sentimos latejar junto de nós, embora pronunciadas lá muito ao longe, muito!... Quer paremos atónitos ante os gigantes tumulares egípcios, cuja origem se esbate nas brumas d’um passado quasi misterioso; nos assombremos olhando os colossos de arte da hora prezente; alonguemos nosso pensamento para o horizonte infindável da sciencia; ou nos deleitemos mirando linhas e traços geniais; quantos nomes soletramos! Quantas datas! Algo falta, porém, vezes muitas – a ideia – espiritual emanação que teve um involucro, involucro que se chamou homem, homem que teve um nome, e esse nome falta, ... o primeiro.

Aqui não falta; eis a ideia, Américo de Rezende; e essas letras, esse nome, ficarão profundamente vincados na primeira página em branco d’aquele livro de granito, com a inapagável e sempre rediviva tinta, que é a suave e amorosa união de duas côres tão docesGratidão, Saudade!”

89


90

MAR DE CRETA João Pedro Mésseder* Branco sobre azul – A cólera não leveda neste mar. Só as crinas de espuma no seu dorso brancamente se inquietam nos raros dias de vento. Fim de tarde – Não é o azul sarónico. É um manto que a esta hora se tinge de azul espesso, e os olhos o mancham de azeite. Ilhéu de Nisos Dia – Do mar emerge um rochedo, envolto num véu de neblina. Começa aí outro tempo? Quem se ergue e caminha na praia em busca de embarcação? Mas já os cavalos de espuma apartam os olhos da ilha, que às horas primeiras do dia em névoa se tornará. Ossos – Morre aqui a rebentação. Os deuses partiram há muito. Sob os pés, na areia molhada, estilhas dos ossos de Ícaro.

* Nasceu em 1957, no Porto, onde completou os seus estudos universitários e exerceu a docência. Publicou seis livros de poesia (os últimos intitulam-se Abrasivas e Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética), catorze títulos na área da literatura para a infância e uma antologia da poesia de Carlos de Oliveira. Três dos seus livros foram premiados.


ORDÁLIAS Jorge Augusto Pais de Amaral* Foi para mim muito gratificante a viagem que fiz à Polónia. Não a vou descrever na totalidade, pois não é essa a finalidade do presente artigo. Apenas farei uma breve referência a Cracóvia e facilmente se compreenderá o motivo da eleição desta cidade, considerando o tema em causa. Cracóvia fica situada a cerca de 250 Km a sudoeste da capital, Varsóvia. A cidade nasceu no ponto onde se estreita o rio Vístula, numa encruzilhada de importantes rotas comerciais. Foi capital da Polónia entre 1138 e 1596. Na sua Universidade, a mais antiga do País, fundada em 1364, estudou Copérnico (1473-1543), o astrónomo cujas teorias constituem a base da astronomia. A sua catedral foi a Sé do Cardeal Wojtyla que, como é consabido, veio a ser o Papa João Paulo II, imediato antecessor do Papa actual. (*) Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.

Na parte velha da cidade, a praça central é dominada pela torre da Câmara Municipal e a Igreja da Virgem Maria onde todas as horas soa uma corneta na respectiva torre, sendo o toque interrompido a meio em memória do corneteiro que morreu atingido por uma seta que lhe perfurou a garganta, quando procurou alertar a cidade do iminente ataque dos Tártaros. Segundo a lenda, Cracóvia foi fundada por um sapateiro, Krak, que teria sido o primeiro príncipe, após ter vencido um dragão que devorava as virgens locais. O que mais me impressionou nesta cidade foi a visita às Minas de sal, em Wielczka. Tive oportunidade de visitar uma Catedral cavada no sal da mina, sendo as imagens e toda a “talha”, de grande valor artístico, esculpidas também no próprio sal. Nestas minas foi-nos dado contemplar um lago onde, como se compreende, sendo a água de elevado teor de salinidade, faria manter à superfície qualquer corpo que no mesmo caísse. A propósito deste lago, o guia local – que tinha grande espírito de humor - contou,

91


92

com muita graça, que era usual ser lançada à água a mulher cujo marido suspeitasse que ela lhe seria infiel. Se a mulher fosse ao fundo, era porque estaria inocente. Se, pelo contrário, viesse à superfície, isso seria interpretado como estando culpada, o que levava o marido a matá-la pelas suas próprias mãos. Esta brincadeira do guia trouxe-nos à memória as denominadas ordálias ou juízos de Deus. As ordálias constituíam uma forma de “prova” usada na antiguidade para se poder concluir se uma determinada pessoa era culpada ou inocente do crime que lhe era imputado. Tratava-se de uma prova indirecta de carácter religioso. A religião era, pode dizer-se, o principal elemento de ligação entre os membros das sociedades primitivas. A religião “doméstica” ligava os membros da mesma família, podendo, em contraposição, apelidarse de religião “nacional” a que era abraçada pelo grupo mais alargado. No seio de tais sociedades, a religião confundia-se com a própria lei. Entendia-se que a divindade estaria à disposição da pessoa que a invocava para dirimir um determinado litígio. Não existindo outros meios de descobrir a realidade dos factos, a divindade não podia deixar de dar o seu contributo para a descoberta da verdade. Este meio de “prova” consistia em usar elementos da natureza (água a ferver, ferro em brasa, etc.) partindo da ideia de que Deus, como criador de todas as coisas, se manifestaria por forma a que o criminoso pudesse ser punido e o inocente ficasse livre de castigo. Os juízos de Deus generalizaram-se na Europa a partir do século VIII e o seu uso prolongou-se até ao século XIII. Ivo de Chartres, no princípio do século XII, aceita as ordálias apenas “como prova subsidiária a que não deve recorrer-se facilmente, pois seria tentar

a Deus”.1 O IV Concílio de Latrão (1215) veio a proibir as ordálias. As ordálias representam um primeiro esforço no sentido de resolver os conflitos por outra via que não fosse o recurso à força bruta. Considerando que até então imperava a lei do mais forte, pode dizerse que as ordálias, apesar do seu carácter aleatório, constituem um primeiro passo para colocar o agente do crime sob a alçada de um poder superior ao dos homens. As modalidades de ordálias variavam conforme os delitos. No Ocidente foi muito usado o duelo em que cada uma das partes escolhia um campeão que, pela sua força e destreza, devia fazer triunfar a justiça. Para o adultério, foi muito usada entre os Hebreus a prova das águas amargas. Consistia em dar a ingerir à mulher apontada como adúltera uma bebida preparada pelo sacerdote. Se ela fizesse um esgar ou contraísse algum músculo facial de forma a denunciar o seu desagrado pelo sabor, seria tida por culpada. As modalidades mais referidas eram, sem dúvida, as da água e as do fogo. A prova da água quente (judicium aquae calidae) consistia em obrigar o paciente a retirar do fundo de uma panela cheia de água a ferver algum objecto como, por exemplo, umas pedritas. Depois a mão e o braço eram envolvidos por um pano no qual o julgador colocava um selo. Alguns dias depois era o pano retirado e examinado o resultado da prova. Se existia queimadura o arguido era considerado culpado e era tido por inocente no caso contrário. A água podia ser substituída por azeite a ferver. De forma idêntica se fazia a prova do fogo. Neste caso, porém, em vez da água quente se utilizava um ferro em brasa que o arguido teria que aguentar 1

Cfr. Enciclopéia Luso-Brasileira de Cultura.


durante o tempo necessário para dar alguns passos. Também era usada a variante que consistia em caminhar descalço sobre brasas. Destes “juízos de Deus” derivou a expressão pôr as mãos no fogo por alguém quando se quer significar que se acredita na inocência de determinada pessoa. Pertencendo à nobreza a pessoa a quem era imputado o facto criminoso podia, em seu lugar, mandar submeter à ordália um escravo seu. Na “prova da sorte”, largamente difundida entre os germanos, o culpado do homicídio era encontrado através do sorteio de uns pauzitos entre sete indivíduos aleatoriamente seleccionados pelo julgador. A “prova do pão e queijo” era outra das ordálias, bem diferente das anteriores. Estes alimentos eram previamente benzidos e consagrados segundo certos rituais. Se o arguido fosse culpado, os seus dentes não chegariam a mastigá-los ou as suas entranhas seriam devoradas por um fogo interior, sofrendo os efeitos da oração sacramental. Segundo a “prova da cruz”, o arguido para ser considerado inocente teria de, em frente do altar, aguentar imóvel, de pés juntos e de braços abertos, em atitude de crucificado, enquanto assistia à missa ou à leitura de certos actos religiosos. Se se movesse era tido por culpado. As ordálias tenderam a desaparecer na Europa no fim da Idade Média, com a admissão do Direito Romano e do Direito Canónico. Com o fim das ordálias a prova testemunhal passou a ser largamente utilizada. No sistema legal, nem sempre o juiz consegue apurar da veracidade dos factos. Existem, porém, regras que o levam a proferir a decisão. Em processo penal se, no fim da produção da prova, o juiz fica com dúvidas acerca da culpabilidade

93

Ordalia

do arguido, deverá absolvê-lo, em conformidade com o conhecido princípio in dubio pro reo. No domínio do processo cível, a prova tem contornos diferentes. Se, terminada a produção da prova, o juiz ficou com dúvidas quanto à verdade dos factos alegados pelas partes, não poderá deixar de decidir, visto que não lhe é lícito proferir um non liquet. Servir-se-á então das regras que determinam a distribuição do ónus da prova dos factos e proferirá, em consonância, sentença a condenar ou a absolver o réu do pedido. Podemos, pois, facilmente constatar uma grande evolução quanto ao alcance da prova, a qual perdeu o carácter aleatório que tinha primitivamente.


94

VISÃO Manuela Correia* Era no espelho o meu retrato aberto mas havia uma sombra a fazer cerco Era como se atrás da claridade um negativo mais me revelasse Era no espelho a luz da minha vida mas sempre numa linha de evasiva Era como haver encontros marcados mas que por excessivos resvalavam Era no espelho uma paixão antiga mas já sem o calor de quando vibra Era como se ainda fosse espaço mas sem que o coração a soletrasse Era no espelho um verbo sem futuro e a percepção de não haver recuo Era como haver um infinito lago que só me convocava pra habitá-lo Era espectral no espelho o meu naufrágio mas um círio de Olimpo me esperava 01.05.20

* Nasceu na aldeia de Cabrum, concelho de Vale de Cambra, em 1961. Em Vale de Cambra, durante a frequência do liceu, aprendeu o gosto pela poesia. Iniciou a sua actividade profissional aos 18 anos e aí viveu durante anos. Actualmente exerce a sua actividade profissional no Porto e reside em Santa Maria da Feira, Vila Boa. Tem colaborado em muitas sessões e tertúlias de poesia. Livros publicados: - “As nuvens não são mais de algodão”, de 2000. - “Poemas Tri Angulares”, de 2002. - “Interlúdio d’ Eros”, de 2003. - “Escritos de Areia” de 2005.


À SOMBRA DE MESTRE AQUILINO CONTINUANDO À MESA COM O ESCRITOR CONVERSANDO SOBRE PERDIZES E GALINHOLAS Manuel de Lima Bastos* Ofertório Eu tenho uma amiga, nascida como eu sob a égide de Capricórnio e, por isso, de feitio resmungão e sem papas na língua, mas que, sob esse disfarce de mau génio (mala leche, com perdão do castelhanismo), esconde um espírito capaz de todas as delicadezas e que vive para os outros, família, amigos e próximos, adivinhando e ajudando a resolver as dificuldades de cada um, mas sempre sem tirar a máscara de quem anda de mal com os homens e com Deus. Faz o favor de dispensar, à minha mulher e a mim, uma afectuosa amizade, que naturalmente é retribuída e agradecida. Não lhe faltando nada que o bem-estar material pode propiciar, vive hoje horas (*) Advogado. Devoto Aquiliniano.

amargas por razões de saúde que seguramente a sua coragem irá vencer. Dra. Maria Fernanda Pinto de Magalhães: rebusquei os meus bolsos de remediado e nada encontrei que lhe pudesse oferecer salvo a prosa deslavada que aí vai. Aceite a insignificância como preito da nossa amizade e admiração e perdoe se, invocando o seu nome, feri a sua natural discrição. Intróito Sou um agnóstico nado e criado no seio da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Minha mãe, sem ser beata ou santanária, era a última da família a ir para a cama e a primeira a levantar-se para, diariamente, ouvir a missa das sete da manhã. Mas às oito, tinha meu pai o pequeno almoço numa bandeja na cama e o Primeiro de Janeiro que folheava antes de se levantar. De modo que recebi uma educação religiosa, continuada por sete anos de liceu em Braga, pois vivi esse período da minha vida num internato anexo ao liceu

95


96

dirigido por padres de quem conservo a mais grata das recordações, em especial do seu director Padre Alípio. Aí fui depositado nos primeiros dias de Outubro de 1950, com dez anos de idade, menino bisonho cujo pequeno mundo se circunscrevia a umas centenas de metros à roda das saias da mãe. Até neste aspecto o símile com Mestre Aquilino é curioso pois ocorreu o mesmo com o menino Amadeu no romance Cinco Réis de Gente, personagem principal e alter-ego do próprio escritor na parte que relata o seu internamento no colégio dos jesuítas na serra da Lapa. Como homenagem tardia, aqui deixo inscrito o nome daquele Padre Alípio, homem corpulento de abdómen saliente, de carão severo e modos ásperos, incapaz dum afago, mas um segundo pai para os alunos. Vem esta história de tempos pregressos a propósito dalguns comentários que recebi de dois ou três amigos por ter utilizado na croniqueta gastronómica anterior a expressão muito do agrado de Aquilino “juvante Deo” que levaram à conta de invocação da ajuda divina para o meu trabalho de escriba e não, como foi realmente, à conta de liberdade literária já que ainda não obtive a graça da fé perdida há quase cinquenta anos. Mas disse um doutor da Igreja, já não me recordo se Santo Agostinho, Santo Anselmo, Santo Atanásio ou outro qualquer: “comporta-te como se tivesses fé que ela te será concedida”. Assim tenho feito mas até ao momento sem resultado. Não desespero. Paul Claudel no drama teatral A Anunciação Feita a Maria assegura que os que mais esperarem terão a mais bela revelação. Desta vez, e para equilibrar as coisas, invocarei o Olimpo grego utilizando a expressão propriciatória “juvante Jove” – tantas vezes citada pelo Mestre – e a bênção do meu santo preferido do hagiológio cristão:

São Francisco de Assis, o suavíssimo “poverello” da Úmbria, fundador duma ordem religiosa ambientalista e ecologista “avant la lettre” e que pregava, além do despojamento dos bens materiais, o respeito pela Mãe Natureza em todas as suas formas. Chamava à água a “casta soror acqua”, ao melro “irmão melro” e considerava que cortar uma flor era assassinar um ser vivo. Temperava a sua ortodoxia católica com um benigno panteísmo que mais não é que a bondade pura e o amor ao próximo, ser vivo ou inanimado. Vamos pois com Júpiter e o seráfico Padre São Francisco e comecemos com As perdizes Quem tem dois dedos de entendimento e conhece a obra de Aquilino, adquire a certeza que o escritor era um apaixonado pela caça praticando-a regularmente e dotado de grande talento e habilidade. Fala-nos dalguns abades (muitas vezes pouco exactos no cumprimento do seu múnus apostólico) e outros caçarretas das serranias beirãs, armados de velhas espingardas de carregar pela boca mas de perna rija, fôlego inesgotável e olho telescópico que, saindo de casa ao clarear do dia, levantavam um bando de perdizes e, por montes e barrocais, uma a uma as iam chacinando. E conta, de forma saborosa mas verdadeira, que levantar uma perdiz no monte e persegui-la durante horas e horas até conseguir abatê-la, exige, além da robustez física, mais talento do que para compor um soneto em verso alexandrino com as sílabas todas no seu lugar. Eça de Queirós disse algo semelhante em A Cidade e as Serras quando referia que o vinho de Tormes, Santa Cruz do Douro – um verde macio da casta “avesso” produzido numa zona já de transição


para o vinho maduro – tinha mais espírito e inebriava mais a alma que muito livro santo. E é curioso constatar que ambos os escritores, já no terço final das suas existências, se apaixonaram por zonas geográficas até aí absolutamente alheias à alma mater territorial donde provinham. Também em ambos os casos em resultado de heranças recebidas pelas mulheres: Aquilino com a Quinta de Nossa Senhora do Amparo, em Romarigães, Paredes de Coura, e Eça com a Quinta de Tormes, em Santa Cruz do Douro. Em toda a obra de Aquilino as cenas de caça são um tema constante contadas de forma apaixonante (ler, por exemplo, o extenso conto António das Arábias e o seu cão Pilatas é tão impressivo, ou mais, que ver um filme) em resultado dum profundo conhecimento da arte cinegética e descritas pela pena do maior prosador que a língua portuguesa já conheceu. A perdiz ibérica autóctone, dita de perna vermelha, já raramente se encontra em consequência duma legislação que era aberrante e duma caça desenfreada. O que por aí aparece é perdiz criada em cativeiro, morta a tiro para que tenha bagos de chumbo e imite a vera efígie da perdiz silvestre. Vende-se também já amanhada e congelada, sem penas, sem vísceras e sem paladar. Da sua rarefacção já se queixava o escritor há mais de cinquenta anos. O mesmo sucede com os faisões: é raríssimo encontrar-se uma destas aves criadas na natureza e o que aparece são apenas as de aviário alimentadas a rações que é melhor não saber de que são feitas. Há uns anos tive a sorte de encontrar um faisão macho verdadeiro e, só com cozinhá-lo, a casa ficou inundada dum aroma magnífico. A faisoa, pese embora o seu belo manto de cores variegadas, é menos corpulenta que o

Mestre Aquilino Ribeiro

macho, de cor parda, e não é tão boa para se comer, exactamente o contrário do que ocorre com os seres humanos. Quanto à confecção gastronómica das perdizes, recordo que Aquilino fala em perdizes ao molho de vilão e de escabeche que são os modos clássicos de preparação da cozinha da Beira Alta. Interlúdio A família de minha mulher, tanto paterna como materna, é originária da Beira Alta na sua parte mais a norte, junto ao Rio Douro: S. João da Pesqueira, Vila Nova de Foz Côa, Meda e Penedono. Passavam habitualmente o mês de Setembro em casa dos padrinhos numa aldeola chamada Horta de Numão, no termo de Vila Nova de Foz Côa. Pelos idos dos finais dos anos cinquenta do século passado eu, com 19 anos, ia vez por outra namorá-la depois duma longa viagem pela linha do caminho de ferro até ao Pocinho e tomando a camioneta da carreira até ao Vale da Teja.

97


98

O resto do percurso até à Horta de Numão, uns três quilómetros por carreiros, era feito “pedibus calcantibus”. Esse namoro rematou-se em casamento já lá vão quarenta e tal anos e produziu três filhos e quatro netos (por enquanto). O padrinho de minha mulher e de mais família era um cavalheiro de origem castelhana chamado Alonso, na altura com mais de 70 anos. Na época da caça tinha ao seu serviço dois ou três caçadores profissionais vendendo perdizes, coelhos, lebres e outras espécies para algumas bancas no mercado do Bolhão. A mim, que era afilhado por arrastamento, muitas vezes me disse: “Afilhado, quando precisar de caça, vá ao mercado do Bolhão, procure a banca da Ana de Soiza Leite e leve o que quiser”. Nunca aproveitei a generosa oferta nem conheci a dita Ana de Soiza Leite. Este Alonso – talvez devesse dizer D. Alonso, como o personagem cervantino do Quixote – cozinhava primorosamente as perdizes ao molho de vilão, algumas vezes acompanhadas de castanhas e “aboboro” (que é a abóbora porqueira ainda mal desenvolvida, pouco maior que uma meloa) guisado com tomate e alho num fio de azeite a cobrir fatias finas de pão de centeio. Pendurava as perdizes que destinava ao consumo da família no travejamento da adega, situada abaixo do nível do solo da casa, e dizia que estavam boas para comer quando se quebravam as vértebras cervicais e caíam ao chão. Este processo de maceração é bem conhecido da grande gastronomia e permite que a peça de caça, sobretudo de pena, abra todo o seu aroma e paladar em consequência de se ter iniciado uma ligeira putrefacção sendo requisito essencial que se lhe não retirem antecipadamente as penas e as vísceras.

Daí o ditado: “a perdiz come-se com os dedos no nariz”, mas, nas minhas deambulações gastronómicas, a tanto não chego eu. Morreu este D. Alonso com os dias cheios – aos noventa e tal anos – mas tinha um tal pavor da morte que se agarrava dia e noite a uma pequena estatueta de marfim de Nossa Senhora, a quem comeu o nariz de tantos beijos que lhe dava. Que descanse em paz pois era um homem bom e generoso que gostava de comer bem e beber melhor. Já tenho cozinhado outra receita de perdizes, que prefiro e acho excelente, lida em Fialho de Almeida, alentejano, cozinheiro de mão cheia e escritor de mérito injustamente esquecido e ignorado. A quem possa aproveitar aqui deixo essa receita de Arroz de perdizes no forno Depois de depenadas e limpas as perdizes, orçando-se em meia perdiz por comensal se não forem glutões, corte-se cada uma em quatro pedaços (ou até em seis se forem taludas) e ponham-se a cozer em água, temperada com sal a gosto, que as cubra e seja suficiente para a calda do arroz. Junte-se uma cebola grande cortada ao meio, uma cenoura, meia cabeça de alhos cortada horizontalmente e um bom naco de salpicão de boa qualidade; se as perdizes não forem do monte (como aquelas que acima referi), é conveniente juntar ao caldo um ramo de cheiros composto de alecrim, carqueja e louro para lhes dar algum paladar – conselho de minha autoria, que não de Fialho de Almeida, pois as que este utilizava eram silvestres por não haver outras. Coze o caldo durante cerca de meia hora, côa-se e retiram-se os pedaços das perdizes. Numa sertã com um pouco de azeite (ou banha de porco feita em casa) frigem-se as perdizes até ficarem douradas; num tacho


de dimensão suficiente faz-se um estrugido de cebola picada fina aproveitando o azeite de frigir as perdizes e junta-se o caldo da cozedura na proporção de duas partes de caldo para uma de arroz agulha. Quando o arroz estiver meio cozido mas ainda caldoso, muda-se para uma caçarola de barro, introduzem-se as perdizes e o salpicão cortado em pedaços pequenos no interior do arroz e vai ao forno para acabar de cozer. No fim da cozedura pode e deve-se deixar tostar um pouco a superfície do arroz. Não garanto que esta seja a precisa receita original de Fialho de Almeida mas é a que me vem à memória e já cozinhei um par de vezes. Estou em crer que Mestre Aquilino terá degustado algumas vezes perdizes feitas segundo esta receita pois, sendo amigo de Brito Camacho (também alentejano e escritor de quatro ou cinco livros de romances e contos tão bons ou tão maus que Aquilino lamentava que se tivesse perdido um singular talento para as letras pátrias por via da dedicação à actividade política) que era um admirador de Fialho, não podia deixar de conhecer esta sua invenção culinária. Rematada a faena das perdizes, vamos então com As galinholas Aprende-se em Aquilino que as galinholas – ou galinhas do mato, se não erro – são aves de arribação que chegam aos urgueirais das encostas das serranias beirãs quando entra o outono, vindas de climas mais frios. São de caça dificílima tal é a sua capacidade de mimetismo e de se confundirem com os tons pardos e cinerários da natureza nesta época do ano. Descobertas, mantêm-se em perfeita imobilidade e de todo invisíveis no meio que as rodeia. Como são quase inodoras, os

cães passam junto delas sem as pressentir. Diz Aquilino que só o olho apurado do lapuz beirão é capaz de as discernir no meio da vegetação montesinha e, vez por outra, deitar-lhes a unha para adubarem o caldo da panela. Em abono da verdade, declaro que nunca cozinhei nem sequer provei tais bichos e o que fica dito, e o que se segue, mais não é que pôr os meus sapatos e citadino que nunca deu um tiro com arma de fogo nas pegadas deixadas pelas botas venatórias do Mestre. Relata o escritor que, um belo dia de outono, teve a sorte de levantar e abater duas galinholas. Chegado à sua casa da Soutosa com os troféus esplêndidos, entregou-os à criada que também exercia de cozinheira. Preparava-se esta para as arranjar quando o escritor trovejou a sua indignação de refinado gastrónomo parisiense: ”Alto, mulher bárbara! Pendura as galinholas num lugar fresco e só as amanhas daqui a dois ou três dias”. Respondeu a serventuária humilde e assustada: “Mas daqui a dois ou três dias estão podres! Retorquiu Aquilino: “Não é bem assim, mas quase”. Tornou a criada:”Mas então nós temos que comer estes bichos podridos? ” Tornou o Mestre:” É assim!” Lá decorreram os dois ou três dias determinados e a cozinheira preparou as galinholas consoante as instruções do Mestre. Remata Aquilino: chegaram à mesa e ninguém, nem ele próprio, as quis provar. Deitadas na gamela do cão, este farejou-as por todos os lados, deu duas voltas e ergueu os olhos inteligentes para o dono significando sem sombra de dúvida:

99


“o diabo que as coma”. E nem lhes tocou. Devo declarar que a história é contada por Aquilino e é exacta quanto à substância. A redacção, libérrima, é minha e aí fica. Finalmente: à meia dúzia de leitores destas prosas agradeço os seus comentários, favoráveis ou desfavoráveis. Se quiserem dar-se a essa maçada poderão fazê-lo para mlimabastos@gmail.com na certeza de que com a crítica, mesmo áspera, sempre se aprende alguma coisa.

100


RETALHOS DA HISTÓRIA FEIRENSE: NOGUEIRA DA REGEDOURA E A 2ª INVASÃO FRANCESA. Armando de Sousa e Silva* Em 29 de Março de 1809, dava-se a trágico desastre da Ponte das Barcas1. Perante o avanço das tropas francesas que vinham do Norte, a população correu, assustada, para Gaia, tendo, para isso, de atravessar o Douro pela Ponte das Barcas e originando, assim, uma tragédia imensa. Isso passou-se em 29 de Março de 1809. Na verdade, os Franceses pouco avançaram para além do Porto rumo ao Norte. Rapidamente tiveram de bater em retirada. Mas tiveram tempo e coragem (ou cobardia?) para provocarem toda uma série de desmandos e até de crimes inenarráveis2 , entre os quais o de Arrifana e o do Pinheiro das Sete Cruzes. Este último tem uma relação directa com Nogueira da Regedoura.

É que, na altura residia em Olivães3, um indivíduo de má fama e catadura, e piores acções, chamado Catafula. Um dia, num atrevimento que lhe veio a custar, posteriormente, a vida, matou três oficiais franceses4 dos muitos que cavalgavam ou se deslocavam a pé pela Estrada Real (mais tarde Estrada Nacional nº 1, hoje desclassificada). Foi rapidamente delatado5 e descoberto numa espécie de gruta onde se refugiara em Olivães,

Houve várias pontes de barcas a ligar Gaia ao Porto. A que este trabalho refere era constituída por 20 barcas ligadas por cabos de aço e que permitiam a passagem de pessoas de uma margem do rio para a outra. Era aberta em dois locais para possibilitar a navegação fluvial. Nesse dia morreram, segundo os cronistas, mais de 4000 pessoas que fugiam do Porto para Gaia, pressionadas pelas tropas francesas que vinham de Braga. 2 Em carta dirigida ao Ministro da Guerra sobre as operações no Minho, dizia o Duque de Wellington (Lorde Arthur Wellesley): «Tenho visto muitas pessoas pendentes, enforcadas em árvores ao longo das estradas, executadas por nenhuma outra razão que eu possa saber senão porque não eram amigos da invasão dos franceses, nem da usurpação do seu país, e podia traçar-se a rota da sua retirada [das tropas francesas] pelo fumo das aldeias a que eles lançam fogo». (A. P. Taveira- Doc 97) 3 Um dos quatro lugares em que se divide a freguesia de Nogueira da Regedoura. 4 Algumas versões falam em três soldados, como a do Pe. Miguel de Oliveira, mas para a verdade nuclear da história, isso não nos parece muito importante. NA. 5 Um aspecto pouco estudado das invasões foram as delações. Infelizmente foram muitos os informadores portugueses dos franceses, a troco de quase nada ou até de coisa nenhuma. Não esqueçamos que havia francófonos entre a população. 1

* Professor do Ensino Secundário. Mestre em História e Filosofia da Educação pela UBI, e mestre em Teoria e Filosofia da Educação pela UM. Doutor em Filosofia e História da Educação pela Universidade de Santiago de Compostela. (USC) Autor do livro: Nucaria da Rugidoira. Breve Incursão Monográfica Colaborador eventual do Jornal Terras da Feira e Correio da Feira.

101


e muito perto da qual, mais tarde, alguém construiu umas alminhas6, que desaparecerem com o tempo. Posteriormente foi lá construída uma capela, a Capela do Monte da Fonte, num lugar chamado «Chão do Rio» em Olivães, bem em frente da Avenida das Alminhas, assim chamada pelos motivos expressos antes.

102

Capela do Pinheiro das Sete Cruzes, muito perto do local onde foram enforcados os sete resistentes.

Outros cinco cúmplices7 foram igualmente presos e condenados à mesma sorte do Catafula. Este último quis confessar-se e foi chamado o Pe. João de Sá Rocha, capelão do Convento de Monchique (Porto), o qual, na altura, se encontrava em Anta, sua terra natal. Os franceses, na esperança de encontrarem os verdadeiros culpados pelo triplo homicídio, quiseram obrigar o padre a revelar os termos da confissão que a este fizera o Catafula. Sucedeu, porém, que o venerável sacerdote não revelou uma palavra sobre essa confissão, sendo arcabuzado, arrastado pela Estrada Real até Moselos e enforcado8 num pinheiro que havia mesmo ao lado direito da Estrada, no lugar do Picoto, em Moselos, juntamente com seu irmão Manuel Sá Rocha, e outros cinco «cúmplices». As circunstâncias em que morreu Manuel de Sá Rocha foram especialmente dramáticas pois os franceses mataram-no à vista de sua mãe. Existe ainda, semi-enterrada e em péssimo estado de conservação uma pequena capela no sítio das Barrancas, num local que praticamente divide Grijó de Pedroso. No frontispício dessa capela está inscrita uma placa com o seguinte texto: «Barrancas-11 de Maio de 1809- Manuel de Sá Rocha foi fusilado pelos franceses à vista de sua mãe. Esta cai, também, morta de dor. Dai-lhes Senhor, o eterno descanso» Passados anos, uma sobrinha do Pe. Rocha de nome Francisca Alves de Sá, oriunda da Idanha, Não há registo documental sobre quem mandou construir ou construiu essas alminhas. Na verdade elas estavam, até há poucos anos muito próximas do covil ou gruta onde Catafula se refugiara. No seu lugar foi erigida uma capela em tudo igual à Capela do Pinheiro das Sete Cruzes… 7 Nunca ficou estabelecida a directa responsabilidade desses «cúmplices». Tratou-se de um acto para servir de exemplo e para dissuadir ulteriores eventuais atentados. NA. 8 Fala-se em enforcamento com não muita propriedade, uma vez que os desgraçados já eram cadáveres quando foram pendurados ao pinheiro. NA. 6

O Catafula foi descoberto e imediatamente arrastado do «covil», preso e condenado à morte pelo comandante do Batalhão francês que operava na zona.


Placa no frontispício das Alminhas das Barrancas.

103

Capela das Barrancas, perto do sítio onde foi morto o Pe. Manuel de Sá Rocha

mandou construir junto ao Pinheiro das Sete Cruzes uma capelinha que ainda lá se encontra, muito bem preservada. No seu retábulo estão ainda inscritas estas singelas palavras: «Aqui foram mortos pelos franceses a 11 de Maio de 1809, o venerando Padre João de Sá Rocha, seu irmão Manuel e outros9 nascidos no Lugar de Esmojães, Anta» e mais abaixo os seguintes versos: «Vós que tendes sentimentos lembrai-vos dos nossos tormentos

9 Não se escreve «quantos», ao mesmo tempo que se infere daqui que o Catafula poderia ser originário de Esmojães, isto não altera o essencial da história. 10 O termo «os» merece-nos algumas reservas, uma vez que foram assassinadas 7 e não 5 pessoas. NA.

Capela do Monte da Fonte, em Olivães, muito perto da taloca onde se refugiava o Catafula. Note-se a extraordinária semelhança arquitectónica com a Capela do Pinheiro das Sete Cruzes. Não foi por acaso. Tratou-se de uma emulação justificável.

Vós que por aqui passais lembrai-vos de nós cada vez mais» «A porta rectangular [da Capela] data de 1865 […] [dentro e] em cima vê-se no alto […] Cristo crucificado. À esquerda […] Santo António e, em baixo, a Senhora do Carmo e as Almas do Purgatório. À direita e em cima, o sacerdote a conversar ou a confessar os10 quatro outros. A seu lado, o pinheiro donde pendem os enforcados e, na parte inferior, a


104

cena do fuzilamento»11 A Professora D. Fernanda Miguel12, de Espinho, num trabalho a este propósito, escreveu: «Quem vai de Lisboa ao Porto pela antiga Estrada Real […] encontra, à esquerda, no Lugar do Picoto, freguesia de Moselos, em sítio outrora bordejado de densos e lendários carvalhais, com covis e bafo de extintos javalis, e de taludes com rumores de salteadores a liteiras e mala-postas, as «Alminhas do Pinheiro das Sete Cruzes» que recordam que aqui, num pinheiro, foram enforcados […] seis camponeses suspeitos de terem atacado em emboscada 3 oficiais franceses aboletados na Quinta das Corgas, na Vergada, e o reverendo que, à hora da morte os confessou e não violou o segredo de confissão. É uma singela capelinha e última estação de uma via dolorosa começada no lugar de Goda, da freguesia de Moselos, onde, a 11 de Maio de 1809, numa manhã de quinta-feira da Ascenção foram apanhados e torturados os resistentes.

Nogueira Gonçalves (1981); Inventário Artístico de Portugal. Distrito de Aveiro. Edição da Academia Portuguesa de Belas Artes. Lisboa. 12 Autora de uma publicação denominada Ex-voto ou tábua-votiva. Este trabalho foi elaborado com base em escritos de um padre, familiar do malogrado Pe Rocha, assim como alguns excertos retirados da História de Portugal de Pinheiro Chagas. 13 Uma capela é «uma igreja pequena onde existe um altar» enquanto que Alminhas são «pequenos e singelos monumentos de piedade religiosa erguidos em montes e vales, povoados e caminhos, encruzilhadas e solidões. Em muitos arde um lume votivo sustentado pelo fervor de alguém, em cumprimento de promessa. (Extraído de Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. V2, pp 85-86. Porém, a circunstância de algumas alminhas terem uma construção sólida do tipo de um monumento faz com que se lhe atribua por vezes, a designação de Capela. 14 Na Ordem do Dia do General Beresford, de 27 de Maio do mesmo ano, pode ler-se: « O 1º Batalhão do coronel Machado recebeu do Marechal General Sir. Arthur Wellesley […] os seus agradecimentos em tudo, distintos, na Batalha de 11 deste mês (Batalha de Grijó, designação, contudo, bairrista pois não corresponde aos registos da história da unidade militar, com esse nome). O Regimento de Caçadores 3, herdeiro deste Regimento 16 de Infantaria, elegeu o dia 11 de Maio como Dia da Unidade, precisamente devido a este evento. 15 Alguns autores têm versões ligeiramente diferentes mas que não colocam em causa o essencial da história. É o caso do Pe Miguel de Oliveira conhecido e ilustre historiador. 11

A estação seguinte fica nas «Alminhas da Fonte» da freguesia de Nogueira da Regedoura, entre musgos e heras. Nesse lugar, em escusa taloca onde se escondera, foi apanhado o legendário […] Catafula de Olivães que, depois de espancado [ainda] conseguira ludibriar os soldados franceses e fugir. Foi também aí que, num atalho esconso e ermo, os franceses o mataram, arrastando-o para o pinheiro onde foi suspenso com os seus companheiros […]. Manuel de Sá Rocha […] foi fuzilado no Lugar das Barrancas, da freguesia de Pedroso e, como os outros, também arrastado para o Picoto. A terceira estação desses passos do Calvário é o nicho das «Alminhas das Barrancas» nas quais se pode ainda ler o seguinte: «Barrancas-11 de Maio de 1809Manuel de Sá Rocha foi fusilado pelos franceses à vista de sua mãe. Esta cai , também, morta de dor. Dai-lhes Senhor, o eterno descanso» No pinheiro onde os invasores penduraram os desgraçados patriotas foram fixadas sete cruzes em sua memória. Essas cruzes caíram num mês agreste do ano de 1954. As «Alminhas», impropriamente chamadas de Capelas13, ainda lá estão a lembrar os movimentos das tropas napoleónicas que, reunidas em Albergariaa-Velha e escaramuçando por Oliveira de Azeméis, se entrincheiraram nos bosques de Grijó, oferecendo resistência às tropas Anglo-Portuguesas, mas de onde foram rechaçadas devido ao ímpeto decisivo do Regimento nº 16 de Caçadores a mando do coronel D. Luís de Macedo de Mendonça que foi louvado por Wellesley e Beresford14. Isto passou-se no mesmo dia em que foram enforcados os homens que as «alminhas evocam. Afora um ou outro pormenor, como é de aceitar em factos já distantes no tempo, a história revela-se essencialmente como aqui é contada15.


A CRIAÇÃO ESPINHO

DO

CONCELHO

DE

Francisco Azevedo Brandão* O Concelho de Espinho foi criado pelo Decreto de 17 de Agosto de 1899, publicado no «Diário do Governo», n.º 189, de 24 de Agosto e era do seguinte teor: «Dom Carlos, por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, etc…. Fazemos saber a todos os nossos súbditos que as cortes gerais decretam e nós queremos a lei seguinte: Artigo 1.º É separada do actual concelho da Feira a freguesia de Espinho, que constituirá um concelho com esta nova denominação. § único – A cargo do concelho, assim criado, ficará o pagamento dos juros e amortização da parte correspondente das dívidas activas do concelho da Feira.

Artigo 2.º – Fica revogada a legislação em contrário. Mandamos portanto a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da presente lei pertencer, que a cumpram e guardem tão inteiramente como nela contém. O presidente do Conselho de Ministros, ministério e secretário de Estado dos Negócios do Reino, a faça imprimir, publicar e correr. Dado no Paço em 17 de Agosto de 1899 – ElRei, como rubrica e guarda – José Luciano de Castro. Carta de lei pela qual Vossa Majestade, tendo sancionado o decreto das cartas gerais de 15 de Julho do corrente ano, que separa do concelho da Feira a freguesia de Espinho para constituir um concelho, ficando a cargo deste os juros e amortização da parte correspondente das dívidas daquele, manda cumprir e guardar o mesmo decreto como nele se contém, pela forma retro declarada. Para Vossa Majestade ver, José de Mendonça Arez a fez». Escassos dez anos se tinham passado desde que o lugar da Praia de Espinho, da freguesia de Anta, concelho da Feira, tinha sido elevado a freguesia, para

* Licenciado em História pela Universidade do Porto e Bacharel em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra. Historiador local. É autor de Anais da História de Espinho, O Associativismo em Espinho, Joaquim Pinto Coelho, um político de Espinho, O campo de Aviação de Espinho, O culto de Nª Sª da Ajuda em Espinho e Manuel Laranjeira, por ele mesmo.

105


106

agora ter conseguido a sua autonomia administrativa, constituindo um novo concelho, desanexado do da Feira. Com efeito, o surto de desenvolvimento social, urbanístico, industrial, cultural e político durante o período de 1889 e 1899 foi de tal ordem que justificava, sem dúvida, a sua desanexação da Feira e constituir um novo concelho. Neste período assistiu-se à fundação do Oporto Golf Club (1890), à inauguração do Teatro Aliança (20.8.1890), à visita da Rainha D. Maria Pia (17.9.1892), «para ver pessoalmente as condições de miséria em que ficaram os pescadores depois das invasões do mar (1890), à fundação da Associação de Socorros Mútuos (1894), à fundação da Fábrica de Conservas Brandão, Gomes e Cª (1894), ao início da Feira de Espinho (1894), à fundação dos Bombeiros Voluntários de Espinho (1895) e à inauguração da Praça de Touros (1899). Criados estes empreendimentos aliados à abertura e calcetamento de novas ruas, à construção de habitações particulares, ao desenvolvimento do comércio e à exploração turística da Praia, algumas personalidades, oriundas de Espinho e do concelho da Feira, começaram a pensar na autonomia concelhia da freguesia de Espinho. As representações a favor da autonomia de Espinho no Parlamento. Assim, o povo de Espinho foi convidado para uma reunião que se realizou no dia 5 de Fevereiro de 1899, no Teatro Aliança, para tomar conhecimento dos trabalhos que, desde Janeiro, se vinham efectuando em prol da autonomia administrativa de Espinho.

Nessa reunião aprovou-se o texto de uma circular que se enviou à imprensa e foi nomeada uma comissão que tomou a designação de «Comissão Promotora do Concelho de Espinho», constituída pelos seguintes cidadãos: Augusto de Oliveira Gomes, sócio fundador da Fábrica de Conservas Brandão, Gomes e C-ª, Dr. António Augusto de Castro Soares e José de Sá Couto Moreira, ambos de S. Paio de Oleiros. No dia 24 de Fevereiro esta Comissão partia para Lisboa com uma representação assinada pelo povo de Espinho e não só, para ser entregue ao presidente do Ministério, Conselheiro José Luciano de Castro. A representação, lida na Câmara dos Deputados por Frederico Ressano Garcia, na sessão de 28 de Fevereiro, foi a seguinte: «Senhores Deputados da Nação Portuguesa. A Praia de Espinho, por um conjunto de circunstâncias, hoje uma povoação importante, cairá em decadência se os males de que enferma não forem prontamente remediados. E, porque as vereações feirenses, pelo abandono a que a lançaram, perderam o direito à confiança que ao povo mereceu os seus representantes, vimos pedir-vos uma autonomia administrativa que salvaguarde os nossos interesses. Espinho que está contribuindo para o cofre do município com quase tanto como as restantes 35 freguesias que compõem a comarca, tem recursos de sobra para fazer face aos encargos dum concelho seu. Por isso, Srs. Deputados, nós, habitantes desta praia, vos rogamos que, ponderando os factos aludidos, decreteis o concelho de Espinho a que por conveniência própria deverão ser anexadas as freguesias de Anta, Silvalde, Paramos, Oleiros, Nogueira da Regedoura, Mozelos, Lamas e Paços de Brandão. Espinho, 23 de Fevereiro de 1899». «Seguem-se oitocentas e


tantas assinaturas de proprietários, comerciantes e industriais de Espinho». A seguir, o mesmo ilustre deputado, que era o «leader» da maioria progressista, depois de ter apresentado o projecto de lei, pronunciou as seguintes palavras: «Todos conhecem aquela formosa localidade e as magníficas condições climatéricas que a tornam uma das mais aprazíveis estações balneares. À importância que este facto lhe dá, acresce o grande desenvolvimento que a localidade tem tomado nos últimos tempos, mesmo na quadra em que não é frequentada por forasteiros. Dois ou três capitalistas montaram ali uma fábrica de conservas, onde trabalham 400 ou 500 operários e cuja exportação anda por 350 contos por ano. Todavia a importantíssima freguesia que contribui anualmente com 20 contos de reis, vê que oito ou nove contos das suas contribuições municipais vão aproveitar ao concelho da Feira a que está anexada. A Câmara Municipal da Feira vai buscar só à freguesia de Espinho tanto quanto recebe das restantes 35 freguesias daquele concelho. Isto é uma injustiça tanto maior, quanto é certo que a Espinho falta, por completo melhoramentos que as suas condições exigem. Não há abastecimento de água para a grande população flutuante na época de verão, sendo a água extraída de poços nem sempre em bom estado para a salubridade pública. Durante uma parte do ano não há iluminação nas ruas, a polícia também não existe e os meios de viação estão em péssimo estado, além de serem deficientes. Portanto Espinho está condenado a uma próxima decadência, se não lhe acudirem a tempo». Entretanto a Câmara da Feira, como lhe competia, e era seu legítimo direito, mandou logo a Lisboa várias comissões munidas de representações de

107

Augusto Oliveira Gomes

protesto contra a representação de Espinho, em que se pedia que não fosse aprovada. A primeira representação da Feira foi apresentada ao Parlamento na sessão de 3 de Março de 1899 pelo deputado pelo círculo da Feira, Manuel Pinto de Almeida, com o seguinte teor: «Tenho a honra de mandar para a mesa uma representação da Câmara Municipal da Feira, protestando contra a elevação da freguesia de Espinho a concelho. Abstenho-me de fazer considerações sobre este assunto, porque nesta questão que tem irritado o espírito daqueles povos, desejo conservar-me neutral. Tenho nas duas localidades amigos sinceros e dedicados a quem devo muitos testemunhos de consideração e muitas provas de estima.


108

Nestas circunstâncias, Sr. Presidente, a consciência aconselha-me a não intervir neste pleito em que se debatem aspirações de independência e interesses locais, deixando ao Governo toda a responsabilidade dos acontecimentos». Esta intervenção no Parlamento do deputado Manuel Pinto de Almeida caiu muito mal na Vila da Feira, pelo que a sua casa foi assaltada como veremos mais abaixo. Em apoio da criação do concelho de Espinho, o deputado pelo Porto, Adriano Antero enviou para a mesa, na sessão de 13 de Março a seguinte representação da Associação Industrial Portuense: «Senhores deputados da Nação Portuguesa: - Achando-se submetido a Sanção parlamentar um projecto de lei no sentido de ser decretada a autonomia de administrativa de Espinho, a Associação Industrial Portuense tem a subida honra de vir solicitar dessa ilustrada Câmara, que haja por bem dar a sua aprovação ao referido projecto, a fim de que venham a ser um facto as justíssimas aspirações dos povos daquela localidade, cujo procedimento tanto depende da sua independência. É de sobejo conhecida a importância industrial de que já goza actualmente Espinho e fácil é de prever o grau de desenvolvimento fabril que ainda pode atingir, caso lhe seja concedida a autonomia administrativa que ambiciona. Por estas razões e pelas que são aduzidas pelos peticionários, esta Associação permite-se esperar que, julgando procedente o pedido, a Câmara se dignará deferi-lo, como requerem a necessidade e os interesses duma terra que, liberta de peias, pode engrandecer-se em benefício próprio e proveito do país. Porto e Secretaria da Associação Industrial Portuense, 10 de Março de 1899. O presidente, Alfredo da Fonseca Meneres, Os secretários, António Alves Cálen Júnior, Henrique Pereira de Oliveira».

O deputado, após a leitura do documento, terminou a sua intervenção com as seguintes palavras: «A causa é de todo justa, e estou certo de que a própria oposição lhe dará o seu voto e envidará esforços para que Espinho tenha a sua autonomia, constituindo um concelho urbano. São de longa data as opressões de que aquele povo é vítima por parte do concelho da Feira que o vota ao abandono e arrecada as suas contribuições em proveito próprio. Sei que em breve vai ser presente ao parlamento uma representação dos povos da Feira, protestando contra a autonomia de espinho. A Câmara há-de negar-se a dar a Espinho o que se dá aos povos oprimidos: - a liberdade». O projecto de lei a criar o concelho de Espinho foi votado pela Câmara dos Deputados em 11 de Julho, sendo em 15 do mesmo mês aprovado por aclamação, pela Câmara dos Pares. A este propósito, o Padre André de Lima, testemunha privilegiada, por ter sido um dos subscritores da representação de Espinho, conta o seguinte: «A várias portas bateram as comissões da Feira. Uma que logo se lhes abriu, o que era de esperar, foi a de Manuel Pinto de Almeida, deputado do Círculo, que, como prometera, apresentou ao Parlamento uma dessas representações, mas fazendo-a acompanhar duma declaração em que dizia que representando ali a Feira e Espinho e tendo nas duas povoações amigos pessoais e políticos, se declarava neutral nessa contenda que a Câmara resolveria como entendesse e fosse justiça. Todas as demais portas se lhes fecharam por na Feira se terem dado acontecimentos revoltantes que em todo o país causaram a mais profunda indignação. Mas houve uma que nessa emergência se lhes abriu.


Foi a do mais catado granjola desse tempo a do ilustre Conde de Burnay que, só pelo facto de ser nessas alturas o homem de maior destaque na Granja, nossa vizinha e que devia ser nossa amiga, ou pelo menos não ser nossa inimiga, devia recusar-se a intervir na contenda…Mas meteuse nela, prometendo combater aquele projecto, de certo porque ele ia beneficiar e engrandecer Espinho…que a sua adorada Granja não via com bons olhos. No entanto Augusto Gomes, que se encontrava em Lisboa a patrocinar a nossa causa desde há cinco meses, sem de lá arredar pé, e que tendo andado de hotel em hotel, onde sabia estar hospedado um deputado ou um Par do reino, diante deles fazer a apologia da nossa autonomia e conseguir que o seu projecto fosse votado por unanimidade nas duas Câmaras, tendo conhecimento do que ia dar-se, pôs-se em guarda e teceu os pauzinhos de modo que, chegado o momento solene da votação…surgiu diante do nobre Conde um contínuo com um almiscarado cartão de visita, em rica salva de prata, no qual uma ilustre personagem lhe dizia esperá-lo nos Passos Perdidos do Parlamento para lhe falar rapidamente e com toda a urgência e…Sua Excelência ergueuse e…correu apressado ao local indicado, mas quando regressou à sala, já o projecto tinha sido votado e por unanimidade, como Augusto Gomes queria que acontecesse, tendo trabalhado imenso e dispendido grossos cabedais para o conseguir… O nobre granjola reconheceu a partida que lhe fizeram, mas limitou-se, para descargo de

1

«Correio da Feira, n.º 172, de 21.7.1900

109

Rainha Dona Maria Pia

responsabilidades no caso, de dizer ao presidente que, se estivesse presente, votaria contra!...».1 A Reacção da Feira Como é óbvio, a notícia de que a autonomia de Espinho tinha sido aprovada no Parlamento irritou sobremaneira os dirigentes feirenses que tinham lutado «quanto lhes fora possível» para ter evitado este desenlace que lhes fazia perder «a jóia mais querida do


110

Marquês da Graciosa

Conselheiro Correia Leal

seu concelho». A desilusão espalhou-se pelo povo da Feira, a tal ponto que no dia 12 de Julho se amotinou e praticou vários desacatos e estragos nas casas do Conselheiro Correia Leal, Dr. Noronha e Moura e Manuel Pinto de Almeida que apoiavam a autonomia de Espinho, como nos conta o jornal «Comércio do Porto», de 14 desse mês: «Ontem à noite um grupo de indivíduos dirigiu-se à casa do snr. Conselheiro Leal, Juiz do Tribunal de Relação do Porto, que possui no lugar da Reboleira, destruíram as portas de ferro do jardim, danificando este, partindo todos os vidros, ficando o chão cheio de destroços. Antes disso os vândalos, tinham ido à casa do Dr. Noronha e Moura, ex-administrador do Concelho, fazendo ali alguns estragos. O snr. Conselheiro Leal, tenciona deixar tudo como está, para que os autores de

tais cenas se recordem das suas proezas. Agora, à noite, grande número de pescadores foi em comissão a casa do snr. Conselheiro Correia Leal, e manifestaram-lhe o seu pesar pelos desacatos na sua propriedade. É geral a indignação contra estes actos de vandalismo. Logo que em Aveiro houve conhecimento destes sucessos, o sr Governador Civil, mandou para ali seguir uma força de 40 praças de cavalaria e o sr. Comissário da polícia acompanhado de alguns guardas-civis. Diz-se que tudo isso foi aconselhado por um antigo advogado da Feira, sogro de um dos dirigentes do movimento e hoje lente de uma academia de ensino. Parece incrível! Confirmase a notícia que vão ser transferidos da Feira todos os empregados dependentes dos ministérios da Justiça e Fazenda Publica e se ainda o não foram, deve-se


à intervenção do sr. Marquês da Graciosa, que pediu fosse feita uma sindicância para se apurar quais os culpados e quais os inocentes…Censura-se acremente o procedimento de alguns indivíduos que devendo ao sr. Conselheiro Leal, os lugares que ocupam, cometeram a seu sobrinho, Manuel Pinto, as indignidades sem nome destroçando-lhe os móveis da sua casa e as janelas e portas…». Correu, na altura o boato de que se estava a preparar a destruição, em Espinho, das casas do Marquês da Graciosa e da Fábrica de conservas Brandão, Gomes e C.ª à força de dinamite, o que nunca foi provado. Em consequência destes desacatos foram presos por ordem do Governador Civil de Aveiro, Albano de Melo, o Dr. Eduardo Vaz, advogado e o Dr. Vitorino Correia de Sá, também advogado e chefe local do Partido Regenerador, com o fundamento de serem alguns dos instigadores dos «deploráveis acontecimentos» que ali tiveram lugar, que foram recolhidos na Casa da Santa Misericórdia de Aveiro, e ainda os cidadão Henrique Neves José Augusto da Silva Abelha, António Gomes Ferreira de Lima e mulher, Maria Coelho Alves de Amorim, Domingos Coelho de Amorim, Joaquim Gomes dos Santos, José Maria Fernandes Pereira, amanuense da Câmara Municipal, José Maria Martins, Joaquim Ferreira Cardoso e Roberto Brandão que recolheram à cadeia municipal de Aveiro, onde «lhes foram infligidas torturas no sentido de lhes arrancarem falsos depoimentos, mas nada conseguiram os seus algozes». 2 O Correio da Feira, que desencadeou uma acérrima campanha contra a autonomia alcançada por Espinho, de que falaremos mais abaixo, concluía: «De Tristes recordações é este aniversário! De tristes recordações a semana que passa! A Feira, traída 2

«Correio da Feira, n.º 172, de 21.7.1900

por alguns dos seus filhos, enganada pelo deputado Manuel Pinto de Almeida, ludibriada pelo governo do sr. Luciano de Castro, irritara-se contra a indignidade dos que renegaram o seu berço natal, procurando cavar-lhe a sepultura. A Feira, vilipendiada, ofendida no seu pundonor, roubada no que tinha de mais caro, viu arrastar para a cadeia de Aveiro, alguns dos seus filhos mais queridos, alguns dos seus defensores mais acérrimos. Sem respeito pela lei, sem decoro por princípios de justiça, os nomes dos que acirraram ódios, dos que exigiram crueldades para satisfação de vinganças dos que pediram injustiças e dos que a praticaram e sancionaram… Breve foi aos traidores o prazer da bambochata. E ameaçava «Longo há-de ser o ajuste de contas e enorme e indizível será o nosso desespero! Entretanto a Feira, sente-se já livre do peso brutal do toupeirismo. Respira enfim! Bendito seja Deus».

111


112

INFINITO DO VERBO AMAR H. Veiga de Macedo* Ela chegou aqui... a Língua marinheira, E tudo a comoveu: as gentes inocentes; A floresta, a montanha, as estrelas fulgentes; O cântico da flor, a graça da palmeira; O céu doirado, o mar, o rio, a cachoeira; A luxúria das cores, as asas frementes; A natureza farta, o Sol, as chuvas quentes, E as promessas de Mãe da Terra brasileira. Ela chegou, e disse a Álvares Cabral: - “Podes seguir o teu caminho. Eu fico aqui. Espalharei a Fé. Aprenderei Tupi. Farei um Povo novo: o luso-tropical. O infinito estará em mim no Verbo Amar: - O Verbo que o meu beijo ensina a conjugar.” Praia de Barequeçaba – São Sebastião 13 de Janeiro de 1981

* Poeta. Foi Ministro de Portugal. Faleceu em 25 de 01 de 2005.


ANTOLOGIA PRÁTICA DE UM DEVOCIONÁRIO TRADICIONAL POPULAR VIII Padre Domingos A. Moreira* SACRAMENTOS SACRAMENTO DA CONFISSÃO HOJE DITO RECONCILIAÇÃO Antes de confessar: Ó almas, servi a Deus, Que não é nenhum enfado. Servir a Deus é um gosto, Amá-lo é um regalo. (O 35) Ó Senhor da minha alma, Pai do meu coração, * Pároco de Pigeiros.

Perdoai os meus pecados, Bem sabeis quantos eles são. Ouvi-me de penitência, Deitai-me a absolvição. Dai-me nesta vida a graça E na outra a salvação. (Ob 131) Ó meu amável Jesus, Esposo do meu coração, Ouvi minha penitência, Botai-me a absolvição. Perdoai os meus pecados, Que sabeis quais eles são. Procurai o remedinho Para a minha salvação. (TP 153) Por meus grandes pecados, Esquecidos ou lembrados, Pedi, Senhora, a Jesus

113


Que m’os queira perdoar, Que a minha alma se não perca E vá para bom lugar. (CPR 54) Ó bom Jesus da minh’alma, Dono do meu coração, Perdoai os meus pecados, Vós sabeis quantos eles são. Dai-me neste mundo a graça E no outro a salvação. (CPR 53)

114

Ó Senhor da minha alma, Senhor do meu coração, Perdoai-me os meus pecados, Vós bem sabeis os que são. Entrego a minha alma À sagrada morte e paixão De Nosso Senhor Jesus Cristo Que tanto quis padecer E morrer na cruz por nosso amor. (O 12) A vossos pés me ajoelho Para a minha confissão. Ó médico da minha alma, Deitai-me a absolvição. (L 63) Deus o que quer de mim É uma boa confissão, Lágrimas nos meus olhos, Dor no meu coração Para que eu saiba fazer Uma boa confissão.

E por mim subiu ao céu A Virgem Maria rogando Para que eu daqui saia Minhas culpas chorando. (CPR 51) Ai de mim se eu calar As culpas na confissão. Se eu as confessar bem, Eu de Deus tenho o perdão. Quem quiser ir para a glória, Faça confissão geral. Riqueza como a glória Não há outra semelhante Onde está Nossa Senhora Com o seu divino Amante. (CPR 52) Só aos pés do confessor Beijarei a santa cruz P’ra que a minha alma veja luz. Beijarei a santa pedra [de ara] Que a minh’alma se não perca. (CPR 52) Acuso-me, Senhor, De todos os meus pecados, Esquecidos e lembrados, Que eu fiz e consenti, Desde a hora em que nasci. Eis-me aqui, estou presente, Me acuso gravemente. Assim como o Senhor sabe Assim lhe peço perdão E ao confessor a absolvição. (RL 9. 233)


Ó Virgem Mãe Dolorosa, Amparo dos desgraçados, Pelas vossas sete dores Dai-me (?) a dor dos meus pecados. (Mon 209) Rezemos um Pai-Nosso: - Este mundo não é nosso. Rezemos uma Ave-Maria: - Esta vida é um dia. Rezemos uma Salve Rainha: - Em honra da Virgem Maria. (CPR 49) Amado Jesus do meu coração, Perdoai os meus pecados Pela vossa paixão. Eu fui ao calvário, Achei lá a cruz De cama e mesa De Cristo Jesus. Eu deitei-me nela, Pus-me a considerar Que modo faria P’ra Deus me salvar. Salvador do mundo, Que a todos salvais, Salvai minh’alma, Bendito sejais. (CPR 55) Dá-me olhos com que veja, Coração com que Vos sirva, Salvação para a minha alma E remédio para a minha vida. (O 35)

Ó bom Jesus da minh’alma, Senhor do meu coração: Ouvi-me de penitência, Deitai-me a absolvição. Eu confesso os meus pecados, Bem sabeis quantos eles são. Dai-me neste mundo a graça E no outro a salvação. (OPS 10) Tesoureiro da minha alma, Ouvi-me de confissão, Botai-me vossa absolvição Por sagrada morte e paixão. (MT 3) Perdoai os meus pecados Que sabeis quais eles são; Na hora da minha morte Que me dê a salvação. (MT 3) Cada vez que te confessas, vais lavrar uma escritura. Isto quem se vai confessar, no seu coração deve levar, uma guia que vai dizendo: mais vale morrer que pecar. (RO 275) Agora chora, suspira, Considera a doutrina, Segue a lei divina, Emenda a tua vida. (Ob 137)

115


Vinde para mim, Meu Deus e Senhor, Salvai a minha alma, Que eu sou pecador. (CPA 158) Confessai-me e perdoai-me E deitai-me a absolvição. Dai penitência ao meu corpo, À minha alma a absolvição Grande pesar e dor E direi o Acto de Contrição. (Mir 275)

116

Agora, agora me confesso Ao meu divino Senhor. À hora da minha morte Que me chamem confessor. Se eu não puder falar, Eu direi “Jesus, Jesus”: Remi-me, Senhor, salvai-me Na árvore da bela cruz. (CPR 50) Seguirás a lei divina, Não te deites em pecado, Que podes amanhecer No inferno condenado. (DL 139) Doce Jesus da minha alma, Dono do meu coração, Senhor, ouvi-me por penitência, Botai-me a vossa santa absolvição, Dai-me o perdão das minhas culpas, Que eu não morra sem confissão. (TP 148-149)

Desde o purgatório, Virgem Mãe de Deus, Eu vos entrego a minha alma E a minha pessoa, para que guardes Como guardastes a Santa Humanidade, Como guardastes o Vosso Santíssimo Filho. (TP 148-149) Por serdes Deus de verdade, Na hora da minha morte Tende de mim piedade. (CPR 47) Aos vossos pés, meu Jesus, Venho pedir misericórdia. Desenganado do mundo, Venho pedir-vos a glória. (CPR 53) Dai-me auxílios, Senhor, Luzes e amor Para eu rezar e louvar Onde Deus faz a promessa De emendar a criatura Cada vez que se confessa. (CPR 56) Não é por pecados não ter, É por faltar a circunstância De os saber conhecer. (CPR 54) Por meus grandes pecados, Esquecidos ou lembrados, Pedi, Senhora, a Jesus Que m’os queira perdoar,


Que a minha alma se não perca E vá para bom lugar. (CPR 54) Deus me ampare e favoreça, Deus me dê a sua mão, Uma firme contrição Para que a minha alma floresça. Deus de mim se compadeça, Deus me dê todo o preciso, Deus me dê salva[ção] e juízo, Deus me dê alegria na alma E no fim o paraíso. (OL 106) Ao ser impossível confessar-se (acto de contrição perfeita): Ó meu bom Senhor do Horto, Fostes vivo, fostes morto, Perdoastes vossa morte Tão dolorosa e tão forte. Não me posso confessar Ao ministro do altar. Faço de Vós, meu Senhor, O Divino Confessor. Perdoai os meus pecados. (L 64-65) Não me posso confessar Ao ministro do altar. Faço de Vós, meu Senhor, O Divino Confessor. Perdoai os meus pecados, Esquecidos e lembrados

Para que o meu inimigo Não possa nada comigo. (L 64-65) Perdoai, ó bom Jesus, Os meus imensos pecados Pela vossa santa cruz. Dai-me fé, graça e luz Para sempre, Amén, Jesus. (CPR 55) Pecados meus, não m’atentais, Que eu vou dar uma jornada, Vou visitar o Sol Divino E Hóstia consagrada. (F 177)

Oração pelo confessor: Eu vos entrego, Jesus, Os meus pobres confessores. Fazei-os castos e puros Para salvarem pecadores. Dai-lhes forças p’ra esmagarem O perigo da salvação. São apóstolos do Senhor, Tende deles compaixão. (CPR 58)

117


Ao confessar: Confissão:

118

Eu me confesso com grande dor A Vós, Pai e meu Senhor, E à Santa Imperatriz [= Santa Igreja] P’ra que m’alcance o perdão Dos pecados qu’eu já fiz, Qu’eu já fiz e cometi A Deus peço desculpa, Confesso-me com grande culpa. Padre, estais na clemência, No lugar de Deus estais. Peço-vos com reverência [Que] meus pecados absolvais. (AB 3.269)

Acto de contrição: Ó Senhor do Horto [.......................] Dai-me uma hora de arrependimento E outra de salvação Para que neste mundo haja glória E no outro haja perdão. Para que a minh’alma se não perca, Dai-me, Senhor, vossa bênção. (F 177) Agora, Amante Divino, Convosco quero falar: Fui menina e sou mulher E sem nunca me emendar.

Uma alma que me destes Nunca dela caso fiz. Mas agora já é vossa, Se acaso m’a pedis. (L 65)

Depois de confessar: Obrigado, meu Jesus, Pelo vosso grande amor. Perdoastes meus pecados, Ajudai-me a ser melhor. (L 64) Minha vontade está pronta Para seguir-Vos, Senhor. Sejam firmes os meus desejos, Seja firme o meu amor. Quem me dera estar seguro Se não tornar a ofender-Vos! Quem me dera poder ser O menor dos vossos servos! Bendito e louvado sejais, Ó meu Jesus adorado, Bendito sejais p’ra sempre No altar sacramentado. Aceitai-nos, ó Senhor, Na vossa santa presença. Quanto temos, quanto somos É tudo vossa pertença. (L 64)


SACRAMENTO DA SANTA UNÇÃO DOS DOENTES E VIÁTICO: Preparação para a Santa Unção: E sempre a pecar Sem emenda ter! Ninguém considera Que há-de morrer! Que há-de morrer, Contas há-de dar Àquele Senhor Que nos há-de julgar. Que nos há-de julgar. Estrelinha do Norte, Pedi ao Senhor Nos dê boa sorte. Nos dê boa sorte Não (n)a sei pedir. Não sou merecedora, D’o Senhor me ouvir. D’o Senhor me ouvir Não sou merecedor. Salvai-me, Senhor, Quando eu desta vida for. Quando eu desta vida for, Quando eu abalar, Levai as nossas almas Para bom lugar. (CP 245) No fim desta vida, Triste e dolorida, Ao peso da cruz, Menino Jesus,

Fechai-me os olhos Com suavidade, Tão bom que Vós sois! E, ao abri-los depois Lá na eternidade, Na glória dos céus, De novo nascemos Aos olhos de Deus E, livres do mal, Para sempre gozaremos Um eterno Natal! (CPMB 131) Ó Mundo, que foste mundo, Ó mundo, que tudo se acaba! Acabam-se as minhas penas, A minha hora está chegada. (RL 38.79) Senhora do Monte, Senhora do Vencimento, Ajudai-nos a vencer Este nosso sofrimento, Salve-Rainha. (O 26) Senhor, eu bendigo a hora do vosso santo nascimento. Abençoai, Senhor, a hora da minha morte. [3 vezes] (Foz 28) Nós cuidamos que este mundo Que nos dura para sempre. É uma luz que se acende, Que se apaga de repente. (CPA 164)

119


A Deus Pai me encomendo, O Espírito Santo me dê luz, Que eu vou entregar a minha alma Ao santo Nome de Jesus. (L 115)

120

Ó Virgem esclarecida, Sempre fostes escolhida, Sempre destes bom remédio A toda a alma perdida. Sede minha advogada Nesta hora atribulada P’ra que o inimigo maior Não tenha parte na minha alma. (OL 49) Quatro cantos tem a casa, Quatro velas a arder. Quatro anjos me acompanhem Na hora da minha morte, Quando eu morrer. (EB 6. 292) Fica-te com Deus, ó mundo, Qu’eu contigo não quero nada. Chama-me Deus a contas, Vou a subir a minha jornada. Oh, jornada tão dolorosa, Que eu não sei p’ra onde hei-de ir. Nossa Senhora me acompanhe P’ra onde, deste mundo, partir. (CS 74)

Adeus, mundo, que te deixo, Já de ti não espero nada, Que me chama Deus a contas, Vou seguir minha jornada. Oh, que jornada tão escura! Valha-me Nossa Senhora! O Anjo da Guarda Ande comigo a meu lado, Que no tribunal divino Eu vou ser sentenciado. Aqui estou, Deus e Senhor, Na vossa real presença. Perdoai os meus pecados E deitai-me a vossa bênção. (L 114) São Francisco do Monte, Capitão da cristandade, Dai-me do que vos deu Cristo: Dor na alma, dor no coração, Para que a minha alma não morra Sem uma verdadeira confissão. (O 10) Despede-te, alma, do corpo, Vai ver a face divina. Vai dar contas ao Senhor Da sua santa doutrina. (OPS 10) Não me queixo contra a hora Nem contra o meu nascimento. Queixo-me contra mim mesmo Que não tomei bom exemplo. (CPA 163)


Quando eu desta vida for, Quando eu abalar, Levai as nossas almas Para bom lugar. (CP 245) Livrai, Senhor, da má morte, Da morte da amargura, Aquela que sempre dura. (CPA 162) Comunhão de Viático: Já se tocam os sinos, Sai o Senhor fora, Vai visitar uma alma Que está para se ir embora. (OPP 119) Prepara a tua alma e adora, Que aí vem o teu Esposo. Recebe-O com humildade, Que é o Senhor Todo-Poderoso. (OPP 120) O divino Sacramento É ele o mesmo Senhor Que acompanha a nossa alma Quando deste mundo for. (Ci 81) Sacrário aberto, Vai o Senhor fora Visitar uma alma Que vai para a Glória.

Glória do céu Quem a alcançará? Quem por ela fizer No céu a achará. (Estre 253) Lá vem o Verbo Divino, Criado de carne humana. Vem visitar os enfermos Que estão doentes na cama. Deus lhes dê graça e luz E lhes dê entendimento Para que recebam em graça O Santíssimo Sacramento. (O 32) Já o sacrário está aberto, O Senhor vai fora. Vai visitar uma alma Que está para se ir embora. Prepara a tua alma e adora Que aí vem o teu Esposo! Recebe-O com humildade, Que é o Senhor Todo-Poderoso. (CPP 120) Eu quero morrer em paz, Jesus do meu coração. Mandai os anjos do céu Com a sagrada comunhão. Vem minha alma buscar. Quero com os anjos cantar, Na presença do Senhor Glória eterna gozar. (CPR 132)

121


SACRAMENTO DA EUCARISTIA: Adoração: Eu Vos adoro A cada momento, Meu doce Pão do Céu, Meu divino Sacramento. (CM 193) Visita:

122

Ó meu Jesus, aqui vos venho visitar E neste primeiro olhar Quem sois Vós? E quem sou eu? Vós sois Criador e eu criatura. Vós sois tudo e eu sou nada. Amante Jesus, toma posse da minh’alma. (AB 4.304) Comunhão: Aqui me ajoelho, Senhor, A esta mesa da divindade. O meu coração se alegra Ao ver tão belo manjar, Um manjar tão delicado, Feito pela mão do Senhor. (TP 171) Ó Sacramento Divino, Ó Divino Sacramento! Já que nos destes a alma, Dai-nos também o sustento. (CA 225)

Salve Rainha, Rosa divina, corvo de amor, Mãe de Nosso Senhor, Dai remédio aos defuntos E a mim juizo e entendimento P’ra receber o Santíssimo Sacramento, Amem. (OD 255)

Procissão da Comunhão aos doentes: 1 - Sacerdote do Senhor Chegai-vos para o altar: Ditosas são vossas mãos Que dão tão belo manjar. 2 - É um manjar tão excelente, Pois o seu sabor é tanto: Encarnou e se fêz homem Pela graça do Espírito Santo. 3 - Sacerdote do Senhor Saí lá da sacristia: Está a minh’alma consternada, Vinde dar-lhe alegria. 4 - O Nosso Senhor vai fora, Vai fora, vai de visita, Vai visitar uma alma, Não há coisa mais bonita. 5 - Ó Sacramento divino, Ó divino sacramento Já nos destes a alma, Dai-nos também o sustento.


6 - Ó sacramento divino, Que estais lá nessas alturas, Vinde alumiar a minh’alma, Não a tragais às escuras. 7 - Ó Sacramento Divino, Cortininha de retroz, Virai-vos para a minh’alma, Que eu me viro para Vós. 8 - O sacrário está dourado Por dentro e mais por fora: Adoremos, adoremos Ao rico Pai da Glória. 9 - Ora vinde, meu Deus, vinde Que eu por Vós estou esperando: Vós sois o rei da Glória Que a minha alma estais roubando. (António Francisco Ramos, Lavra – Apontamentos para a sua Monografia, Porto, 1943, p. 209-210)

123


124

AS TRÊS PONTES Edgar Carneiro* No começo longínquo dos meus dias, a sentir-me inseguro sem rumo e sem guias, de três pontes havia que escolher. Era uma de pedras preciosas, tapetada de rosas, por onde iam os donos do poder. Era outra dos arcos de triunfo, tapetada de junco, por onde iam as almas de eleição. Era outra de sonhos e suspiros. Com luar a mantê-la é ainda por ela que vai meu coração.

* Nasceu em Chaves em 1913. Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra. Foi professor dos ensinos técnico-profissional e secundário. De 1967 a 1974, dirigiu a Escola D. Pedro V, a primeira a funcionar em Fiães, neste concelho. Reside há 38 anos em Espinho, foi distinguido pela Câmara local com a Medalha de Mérito. Tem 11 livros de poesia publicados, o último dos quais saiu a lume em 2003 e tem por título «Depois de Amanhã».


VIAGENS POR MAR, EM MEADOS DO SÉC. XVIII Maria da Conceição Vilhena* 1. Escreve Jean Merrien, em A vida quotidiana dos marinheiros no tempo do Rei-Sol (p.141), que os colonos transportados nos barcos portugueses tinham direito apenas ao biscoito (ou bolacha) e à água. Aqueles que para isso tinham meios, compravam os alimentos a bordo, o que não seria o caso de muitos dos emigrantes; e depois mandavam fazer a comida, na sua panela privativa. Por isso se viam às vezes mais de duzentas panelas à espera da sua vez. Os emigrantes eram instalados na ponte, com as suas trouxas, mal se podendo mexer, muitas vezes encharcados até aos ossos. Comiam acocorados, por grupos de 7 ou 8, numa grande gamela, usando como garfo as próprias mãos. Dormiam vestidos estendidos no chão, uns contra os outros, quase sem espaço para se voltarem, no meio dos enjoados, aos vómitos.

Como sabemos, no séc. XVIII não havia um grande refinamento higiénico, desconhecendo-se nos meios mais pobres o hábito de tomar banho. Mas as pessoas vestiam roupa lavada, andavam pela rua, e os maus odores diluíam-se. No barco, ao contrário, estavam muito juntos, não mudavam de roupa, o cheiro a suor e sujidade acumulava-se e tornava-se insuportável. O lugar onde dormiam era lavado todos os dias, ou mesmo duas vezes ao dia; mas, como não chegava a secar, o cheiro da humidade vinha ainda agravar a pestilência do ar, de modo que este se tornava quase irrespirável. Após os primeiros dias de enjoo, as enfermidades começavam a fazer a sua aparição. Os emigrantes eram gente rústica e enérgica, habituada ao esforço e ao desconforto. Mas, ali, as condições eram ainda mais duras: faltava o ar puro, a vida ao ar livre, a água fresca, as hortaliças, o leite. Se em casa se lavavam pouco, ali não se lavavam nunca. Se em casa a alimentação era sóbria, ali é deficiente e corrompida. Há a saudade e o medo das tempestades. Surgem as

* Licenciada em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras de Lisboa, 1965. Doutoramento de Estado ès-Lettres, pela Sorbonne, Paris, 1975; Professora Catedrática. Leccionou na Universidade de Aix-en-Provence, França; na Universidade dos Açores; na Universidade Aberta de Lisboa e na Universidade da Ásia Oriental, em Macau. Tem publicado perto de cento e cinquenta trabalhos (livros e artigos) sobre literatura, linguística, etnografia e história. Actualmente é aposentada e Presidente Honorária e Vitalícia da Associação de Solidariedade dos Professores.

125


126

febres, as pneumonias, as crises de fígado, as infecções intestinais, o escorbuto. A medicina é precária e a mortalidade assustadora. Segundo cartas e relatórios, datados de 1750, do governador da Ilha de Santa Catarina, Brasil, Manuel Escudeiro de Souza, causava horror ver chegar esse pequeno resto dos embarcados, doentes, estropiados e moribundos. A causa de tanta mortandade era devida sobretudo ao excessivo número por viagem, a fim de satisfazer as condições impostas pelo rei. Como ao armador interessava apenas o lucro, convinha-lhe então, durante a viagem, libertar-se ao máximo daquele peso humano, inútil às suas transacções comerciais e só em função destas transportado. Por isso protesta Oldenberg, quando é castigado um capitão, pela crueldade com que havia tratado os emigrantes; ou quando lhe exigem a entrega de outros casais, em substituição dos que haviam morrido. Em breve, porém, o transporte de emigrantes deixa de ser feito apenas em troca de vantagens concedidas para comerciar no Brasil; e quando o rei se decide a pagar o transporte dos casais açorianos, o Conselho Ultramarino, com o fim de reduzir o número dos mortos em viagem, propõe que metade do preço seja paga no acto do embarque e a outra metade só à chegada, no Rio de Janeiro. O armador não teria, deste modo, um grande interesse em que a maior parte morresse durante a viagem, como acontecia anteriormente. 2. Não conhecemos nenhum diário de bordo relativo a estas viagens, mas estamos convencidos de que existem. Talvez se encontrem nos arquivos da Companhia de Jesus, que estão a ser publicados cronologicamente, não se tendo chegado ainda à data

das maiores levas de açorianos para o sul do Brasil, isto é, a meados do séc.XVIII. Conhecemos, porém, a carta-relatório do vice-rei marquês de Távora (1750-1751), enviada ao secretário de Estado Marco António de Azevedo Coutinho, e o relatório enviado a este vice-rei pelo físico-mor do Estado da índia, Dr. Baltasar Manoel de Chaves, datado de 1-12-1750. Foram ambos publicados no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, de 1958 (p.280295), pelo Capitão de Mar-e-Guerra António Marques Esparteiro, e nele se trata da higiene a bordo das naus de viagem, em meados do séc. XVIII. Dizem, pois, respeito, não a viagens ao Brasil, mas à Índia. Estamos, todavia, convencidos de que as condições de higiene a bordo, nessa época, não deviam divergir muito, quer a viagem se fizesse para Oriente, quer para Ocidente; a não ser que seriam agravadas no caso do transporte de emigrantes, pelo interesse do armador em fazê-los perecer durante a longa travessia, como já referimos. Com a leitura destes relatórios tivemos não só a confirmação da dureza do sofrimento a que os documentos citados por F. Riopardense Macedo fazem alusão, mas também a explicação pormenorizada das suas causas. Tudo era feito em função do proveito a colher; e assim é que o físico-mor, ao sugerir que sejam melhoradas as condições de vida a bordo, faz notar ao rei que aquilo que se gastará a mais não prejudicará a fazenda real, pois o preço de cada soldado cuja morte se evitar compensará largamente a despesa feita. Acrescia ainda “a tirania dos Ministros de S. Mag.e” a que se refere o físico, e que nos faz pressentir uma certa avareza em prover as naus reais de suficientes alimentos. Na sua carta-relatório, o vice-rei marquês de Távora dá conta, ao secretário de Estado, de todos os


cuidados que teve com os passageiros da nau em que viajou, do seu desejo de que se alimentassem bem e como se preocupava com o tratamento dos doentes. Segundo afirma, sempre que não vem algum oficial de respeito que faça cuidar dos enfermos, a maior parte deles é deixada morrer ao abandono, pois “a impiedade e falta de Caridade da gente do Mar he indezivel”; e acrescenta que “esta Casta de Gente sente mais a ~ das suas galinhas do que a de 5 ou 6 morte de hua homens dos que vem na Nao”. O relatório do físico-mor foi feito a pedido deste vice-rei, a fim de conhecer as causas de tão grande mortandade, para melhor poder evitá-las: “Manda-me V. Excia (...) lhe pondere as cauzas de tam frequentes infermidades, o possível meyo de as precaver e ultimamente o mais prompto modo de as remediar”. As doenças assinaladas são, em primeiro lugar, aquelas “doenças gerais, como constipações, pleurizes, catarrais, sarampos, esquinências”, que há em toda a parte e que, dado o estado de debilidade dos passageiros, mais facilmente são contraídas. Além disso, há pessoas que embarcaram já doentes, pelo que propõe o físico-mor, como medida preventiva, que, antes do embarque, sejam as pessoas submetidas a um exame médico. Assim se impedirá de seguirem viagem aqueles que já são portadores de certos males em incubação, como o tísica, a lepra (leprosos, héticos e galicados...) Em razão do mau estado dos alimentos, são muito frequentes os males provenientes de infecções do aparelho digestivo, tais como febre, diarreias, desinterias, entumescências, dores, vómitos, delírios e frenesins. Como doenças particulares do mar, o físico aponta a “chiringoza”, a que os “americanos” chamam

“bicho” e que é uma inflamação intestinal; e o escorbuto ou mal de Luanda, aquela que mais estragos causa na guarnição das naus. Sobre as características desta doença e seu processo de cura, dá-nos o autor do relatório as seguintes informações: “Os cirurgioens podem saber que este Escorbuto Marino he fuzivo e corrozivo, e não coagulativos, e que só com diluentes juntos com acidos vegetais como hé limão, tamarindos e outros, a experiência que se remedeão em falta do leite que para estes cazos hé o melhor antidoto dulcificante”. Na viagem a que se refere, os quatro casos de enfermos com escorbuto foram logo remediados; e para a sua melhoria muito concorreu não só o leite da vaca destinado ao vice-rei, por este posto à disposição dos doentes, mas sobretudo a água em abundância que igualmente mandou distribuir. A este respeito escreve: “Entre as vacas e vitelas da matolotagem podem vir algumas cabras e vacas de leite para esta casta de doentes, porem se a água de beber for em abundância como foi a da nossa nau (...) menos antidotos necessitarão”. Além da sua habitual restrição, um outro problema não menos grave, relativamente à água, é que, conservada muito tempo em pipas de madeira, como era então, tomava um gosto horrível, enchia-se de bichos (das pequenas larvas que continha) e começava a cheirar mal. Os tratamentos seguidos nas viagens marítimas são a transpiração, os vomitórios e a sangria, a que se junta a aplicação de medicamentos preparados com ervas e raízes, levadas do Reino. Segundo este físico, não devem ser tomados remédios químicos, quentes e espirituosos, porque “aly de nada servem para bem dos enfermos, e só serve de tentação aos cirurgioens”.

127


128

3. - Vejamos agora quais as causas dessas tão frequentes enfermidades. Em primeiro lugar podemos apontar o número demasiado de embarcados, sobre o que escreve o físico-mor: “metão-Ihe no Reino menos cem homens do que hé a lotação, e mais cem pipas de agoa do costume, para que todos bebão sem reção, a toda a hora; logo a viagem será mais favorável”. O número demasiado não só contribuía para a insuficiência de alimentos e água, como acentuava o desconforto: falta de espaço para se movimentarem, agravamento da falta de higiene, transmissão fácil de piolhos e moléstias, mau cheiro, ar abafadiço e irrespirável. O cheiro insuportável que se fazia sentir na coberta das naus era, de certo modo, a primeira causa das doenças, pois as pessoas, não podendo suportá-lo, iam dormir para o convés; aí, com o frio e a humidade da noite, facilmente se constipavam, o que os debilitava e tornava particularmente aptos a contrair infecções de maior gravidade. É muito sugestiva a metáfora que emprega o autor do relatório sobre este facto: “se fogirem da Caribdis do convés que os constipa, hirão cahir na Scila da coberta que os abraza”. É que a coberta da nau já de si era abadiça; e depois, com a excessiva multidão de passageiros, nem” por degredo” se podia lá parar para dormir. Como o tempo da viagem é “dilatado” e a gente numerosa, havia que ter muito cuidado com a higiene. Ora sucedia que os cirurgiões e os sangradores, a quem competia fazer barbas, cortar cabelos e arrancar dentes, começavam a sentir desprezo por tais trabalhos. Então o físico-mor insiste, para que sejam obrigados a fazêlo: o cabelo cortado “a miúde” e a barba feita todas as

semanas, assim se evita “muita immundícia que lhes nasce na cabeça, e della se comonica ao corpo, e do corpo a toda a nau”. A frequente limpeza, recomendada no Regimento dos Comandantes, e por estes muito descurada, é indispensável para evitar os contágios. Por isso recomenda “que todos os dias se levantem as camas e se lavem os lugares dos que dormem no chão, e elles também se fação lavar, porque muitos são de sua natureza immundos.” A propósito de camas, devemos fazer notar que só os doentes tinham direito a colchões, dormindo os outros no chão. A seguinte frase dá-nos bem a medida do desconforto suportado nas viagens marítimas do séc. XVIII: “traz também a nau sincoenta, ou sessenta colchoens, que logo apodrecem com a immundicia das doenças, e com a agoa que entra na Nau, principalmente sendo Nau de Poço como a nossa hera, em que os doentes em occazião de tromenta andavão a nado, e em semelhante nos morrerão dous a que se não poude acudir promptamente. Bom será que venhão mais colchoens para se enxugarem huns, enquanto servem os outros, e assim todos ficarão aproveitados, e os doentes bem servidos; porque faz compaixão ver (já que não faz o ouvir) que os doentes com malignas estejão deitados no chão sem cama”. Isto passava-se nos navios reais, nos quais o comandante não tinha qualquer interesse em fazer perecer os passageiros. Por aqui poderemos imaginar o que não seria nos navios de particulares, que tinham de sustentar os passageiros à sua conta e que, portanto, quanto mais depressa morressem mais proveitoso era para o proprietário do barco. Podemos mesmo supor que a forma como eram tratados os emigrantes, a bordo, não diferiria


muito daquela que conhecemos relativamente aos navios negreiros. Diz ainda respeito à higiene, a recomendação sobre o uso das gamelas, onde se comia. Para os sãos havia uma de madeira, por cada grupo de sete ou oito. Para os doentes, usavam gamelas individuais, mas de barro, que se partiam facilmente. Por isso acha que estas devem passar a ser também de madeira. 4. Como segunda causa da proliferação de moléstia, poderá ser apontada a má qualidade da alimentação. Esta era constituída por biscoito e comida da caldeira: geralmente toucinho salgado, bacalhau inferior, vaca inferior e legumes (feijão, grão). O físicomor recomenda que o bacalhau deverá ser sempre de boa qualidade, para aguentar a viagem; e que se junte ao toucinho, ao menos três vezes por semana, vaca, carneiro e porco fresco; e lembra ao vice-rei que, daqueles que tiveram a honra de comer à sua mesa, só um adoeceu, por terem sempre carne fresca, pão mole, biscoito limpo e água quanta queriam. Não só a alimentação dos sãos está errada, como também o que se traz para dar aos doentes não convém ao estado dos seus intestinos e estômago. O provimento de dietas constava de uns barris de tripas e mãos de carneiro mal lavadas, salgadas, mal cheirosas, que se serviam mal cozidas, com arroz, e que o físicomor teve de proibir, por ser indigesto. Como mesmo em sal a carne se deteriora, lembra que “bom será que venhão os carneiros vivos e no mar se lhe tirarão as mãos e tripas frescas, que se poderão comer sem tanto damno”. Igualmente proibiu os doces, de que haviam levado oito arrobas; é que “referviam”, à aproximação do equador, e tornavam-se autênticos venenos. Se,

como diz Jean Merrien, os colonos tinham apenas direito a biscoito e água, os emigrantes açorianos terão certamente sofrido mais de fome e sede, do que propriamente da indigestão desses alimentos deteriorados. Em vez de doces, propõe o físico que se traga antes a bordo suficientes galinhas para a dieta dos enfermos. E conta a este respeito: “Lembra-me que em tempo que tinhamos noventa enfermos se matarão nove galinhas para todos, porque já havia poucas na despença sendo a cauza desta falta a que houve em meter só quatrocentas para tam grande enfermaria, como se deve suppor que pode ser a de huma nau da India, onde de comum tudo adoece”. Os parques de gado e capoeiras de criação situavam-se geralmente na ponte ou tombadilho, logo por cima do porão (geralmente de dois andares), onde se guardavam as provisões e as mercadorias. Conhecemos uma lista dos animais a bordo de um navio de 600 toneladas, equipado para uma viagem de longo curso, que era assim constituída: 500 galinhas, 8 bois, 2 vacas leiteiras, 4 porcos, 1 varrasco (para que os grandes senhores pudessem ter leitões), 12 porcos, 24 peruas, 48 patos, 24 carneiros, 12 patas, 6 vitelos e 36 pombos. Podemos imaginar o fedor que se espalhava pelo barco e o ruído que não fariam todos estes animais empilhados em tão reduzido espaço. Embora considerados grandes no seu tempo, os navios de longo curso (entre 600 e 1100 toneladas) tinham geralmente apenas 60 metros de comprimento e 16 de altura. Todavia Jean Merrien, na obra já citada (p.28), diz que as naus de viagem dos portugueses, que faziam a viagem à Índia, chegaram a ultrapassar as 2000 toneladas. Estas seriam, pois, de maiores dimensões; mas também maior seria o número de viajantes e,

129


130

consequentemente, maior o número de animais a bordo. Aos já citados, devemos ainda acrescentar os gatos e doninhas, animais imprescindíveis pelos bons serviços que prestavam na caça aos ratos. Os barcos do séc. XVIII eram, pois, um quase jardim zoológico em miniatura. 5. E vamos terminar com as palavras de Erico Veríssimo, que tão bem conhecia o fenómeno da emigração açoriana para o Rio Grande do Sul. Eis como evoca os tormentos da viagem transatlântica na sua obra. O Continente: “Há setenta casais a bordo, mas a Morte embarcou também. Não se passa um único dia em que não lancem um defunto ao mar. São as febres malignas e o medonho mal de Luanda. Cinzentos como cadáveres, homens e mulheres vomitam os dentes com sangue. E de suas bocas purulentas sai um hálito podre de peste. Outros rolam no beliche tremendo de febre. E o capitão, indiferente, aponta para o céu, mostra a alguém o cruzeiro do Sul”.


APRESENTAÇÃO DE ESCRITOS DE AREIA de MANUELA CORREIA Anthero Monteiro* Não é a primeira vez que apresento um livro de poesia de Manuela Correia. Conheço os seus poemas em muitos casos desde o pecado original. O pecado original é aquele momento em que o poeta decide macular a brancura do papel, assumindose assim como um criador à imagem do Deus genesíaco. Lembremos que poesia nos chegou do grego poiéw, verbo que significa fazer, criar. É de crer que, sendo os poetas seres com poderes análogos aos do Dono do Jardim das Delícias, seriam de lá expulsos como foram Adão e Eva, por comerem dos frutos da árvore da ciência, certamente também a árvore da arte, da cultura e da poesia. Não foi por acaso que também Platão achou que os poetas não tinham lugar na cidade. Os poetas não serão, pois, cidadãos normais, o que terá levado Florbela Espanca a escrever (mas a

afirmação de um poeta é sempre suspeita) que «ser poeta é ser mais alto, é ser maior do que os homens». Por isso, os homens ditos normais consideram loucos os poetas. Bernardim Ribeiro era um louco, atente-se no exacerbamento sentimentalista da Menina e Moça. É Nuno Júdice quem no-lo recorda, para nos dizer em seguida que Camões foi readmitido na cidade apenas como génio que era. Eu acrescentaria: readmitido, mas, mesmo assim, só postumamente. Os meus ouvintes estão certamente impacientes e a pensar que este meu exórdio é uma divagação sem sentido e sobretudo a evitar falar do que nos trouxe aqui. Eu sei, até por experiência própria, que muito mais impaciente estará a autora do livro, que eu devia estar a apresentar, e a perguntar: afinal, quando falará ele de mim e do livro a que dei o belo título de Escritos de Areia? Será que está a evitar fazê-lo, por considerar que os meus versos não têm qualquer valor? Pois é justamente o contrário: o que estive a fazer até agora foi a incluir a autora no rol dos poetas, dos verdadeiros poetas, e não dos simples

* Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros, autor, entre muitas outras obras, de O Misticismo Laico de Manuel Laranjeira (Roma Editora), um ensaio sobre o genial escritor nascido na Vergada. Organizador de várias tertúlias poéticas, começou recentemente a coordenar as Quartas Mal - ditas do Clube Literário do Porto

131


Ricardo Pinto Teixeira (Corpos Editora), Manuela Correia, Anthero Monteiro e Diana Devezas. 132

versejadores, aliás tão abundantes e tão impertinentes como os mosquitos… O que pretendi dizer (e tenho-o dito reiteradamente, embora consciente da inutilidade de palavras proferidas por boca tão modesta) é que Manuela Correia é um nome a reter na poesia nacional e que Santa Maria da Feira, que a nossa autora adoptou como sua terra, se é verdade que tem orgulho nos seus ilustres da cultura, tem que lhe reservar um lugar de especial destaque. Conheço a Manuela Correia há vários anos: aparentemente uma cidadã normalíssima com quem falo dos assuntos mais banais como com qualquer outra pessoa. Mas também conheço a outra Manuela Correia e a sua obra – repito – desde o início. Ora esta não tem nada de banal e deixou-me sempre surpreso: sempre me perguntei, sem achar grandes respostas, onde foi ela buscar aquela capacidade ímpar de modelar a língua ao mesmo tempo com rigor e graciosidade, aquele sentido rítmico e aquela leveza de quem faz um bailado com as palavras, aquele domínio aparentemente fácil da metáfora, que é o verdadeiro segredo da poesia do

nosso tempo. Bem sei que todos os poetas têm os seus modelos tutelares e que aquele que, antes de todos os outros, norteou a nossa escritora – David MourãoFerreira – é um poeta de enorme mestria estética que marcou de alguma forma a Manuela Correia, nos primeiros livros. Inalemos algum perfume desta influência em Poemas Tri Angulares. Um poema ao acaso – «Interlúdio»: É tão intenso este planalto e ao mesmo tempo tão refracto pelo que em ti é proeminente pelo que em mim é amarrotado É tão vibrante este quadro e ao mesmo tempo paraíso pelo que em ti há de sensato pelo que em mim há de excessivo É tão de sol este interlúdio e é tão de sombra ao mesmo tempo


Manuela Correia. Uma autora feliz.

pelo que em ti há de firmeza pelo que em mim há de suspenso No entanto, o poeta, entre irrecusáveis afinidades, influências e experiências, vai procurando a sua voz própria e o tom que ela deve assumir. Escritos de Areia é possivelmente uma experiência, mais uma tentativa para encontrar esse tom e essa voz próprios, o seu próprio caminho. Só talvez o primeiro poema da colectânea estabeleça uma ponte mais nítida com o passado bebido no poeta de Música de Cama. Noutro poema, talvez a nossa escritora tivesse querido deixar ainda algumas pegadas na areia, já a desvaneceremse, das viagens que fez sob a inspiração daquele poeta. Esses traços são denunciados pela estrutura anafórica, por aquela isocronia de cadência e outros indícios formais: de que marca a mímica da areia está despida

Diana Devezas, encantou a dizer versos.

de que sono as pequenas rochas são represas de que orquestra a espuma das ondas tem o espasmo de que silêncio todo o céu está coroado de que tempo este sol ainda intacto Depois, começa a libertação. Como se dissesse a Mourão-Ferreira: obrigado pela companhia que me fizeste, mas agora não me leves a mal se eu quiser ir sozinha por esses areais fora. Como o jovem que, um dia, decide dizer adeus aos pais e “partir com as aves” como diz o agora eterno Eugénio de Andrade.

133


E lá foi pelo litoral fora, percorrendo as nossas praias do Minho ao Algarve. Os poemas resultantes são como algumas das melhores fotografias do seu deambular. Flashes rápidos, muito diferentes da poesia aparentemente mais elaborada que praticou até agora. Fica-se, pois, pelos instantâneos, porque, sentindo o sujeito poético que os seus olhos são parcos para tamanha beleza, muito mais sentirá que não há palavras para ela. Um poema da praia de Olhos de Água:

134

olhos olhos olhos olhos de água e a água espelho de cristal olhos de céu e o céu surdina de catarse olhos de sol e o sol candelabro de alogénio olhos de areia e a areia leito de sumaúma olhos de falésia e a falésia vulto hipnótico e que minúsculos os meus olhos perante a profusão destes olhos olhos olhos Faz lembrar o mais pequeno poema de António Gedeão – “Catedral de Burgos”: A catedral de Burgos tem trinta metros de altura e as pupilas dos meus olhos dois milímetros de abertura. Olha a catedral de Burgos com trinta metros de altura!

É, pois, uma poesia sensorial em que predominam as sensações visuais, que vêm, contudo acompanhadas da audição (o céu surdina de catarse) e o tacto (a areia leito de sumaúma). Mas os olhos que vêem, ou se quiserem, a objectiva desta máquina fotográfica, apesar da sua pequenez, consegue fotografar não apenas os pontos mais altos da falésia e a fundura do espaço até ao infinito, mas algo mais do que o que podem enxergar os olhos mortais. Num poema da Praia da Costa Nova, Manuela Correia escreve sobre elementos concretos – a água (o mar) e o fogo (o sol) – mas quem os suporta é um tempo abstracto, como se se tratasse de uma fotografia de eternidade: olho o mar e pressinto uma maresia olho o sol e comove-me um solstício olho o tempo e reconheço o nada intemporal Noutro poema descreve a ria, a avenida, as casas listadas da Costa Nova, mas trata-se de uma geometria interior, que – ficamos surpresos ao sabê-lo – traça de olhos fechados para ver melhor: e é quando fecho os olhos que vejo com mais sólida nitidez o requebro transversal da ria a avenida acesa de movimento e sobretudo a simetria expressa das listas ímpares das tuas casas. E não é o único texto proveniente de uma observação de dentro. Veja-se este outro que fala da Praia do Furadouro:


Anthero prendeu a numerosa assistência.

cerrai-vos olhos meus ante esta bruma estática todo o sentir é meu mas perde-se o pensar olhar de frente a bruma faz-me não ser capaz de exumar os fantasmas Tudo isto porque os olhos do poeta são especiais e lobrigam para além do visível, num processo de transformação das coisas para melhor. Faz lembrar a repovoação do mundo feita por Deucalião, após o dilúvio, atirando pedras para trás das costas, que se transformavam em homens. Com o poeta acontece o mesmo: atira elementos da natureza e nascem elementos corporais do homem: junto conchas e lembro coxas

Sessão de autógrafos.

junto verdes e lembro ventres junto espuma e lembro esperma É a função poética a exercer-se, as palavras a gerarem palavras, a comporem o texto-surpresa. É o que há de divino no poeta a tentar transcender a realidade, a procurar dizer o indizível, mesmo sabendo que esta matéria de criação – a palavra – é a mesma de todos os dias e por isso imperfeita: algo me chama no centro desta praia voz frgrância azul silêncio talvez tudo isto mais o que não alcança a minha imperfeição

135


No entanto, o poeta continua a tentar superar em si o homem ou a mulher banais e perecíveis. O segredo vem expresso num dos poemas da Praia de Cabanes, onde se faz a distinção entre a areia e o mar. a areia é o leito fixo onde são limitados os movimentos o mar é rede baloiço onde são permitidos os excessos

136

Se quisermos utilizar a terminologia de Edgar Morin, poderemos associar a areia ao estado prosaico e o mar, que «permite todos os excessos», ao estado poético. A cada estado, explica o grande pensador francês, corresponde uma linguagem própria: a primeira «uma linguagem que é a linguagem racional, empírica, técnica; a outra que é simbólica, mítica, mágica. A primeira tende a precisar, denotar, definir, apoia-se na lógica e tenta objectivar sobre o que fala. A segunda utiliza de preferência a analogia, a metáfora, isto é, o halo de significações que envolve cada palavra, cada enunciado e ensaia traduzir a verdade da subjectividade.»1 É esta segunda linguagem – a poética – a predominante nos textos de Manuela Correia. Por isso, não é uma simples escrevinhadora ou escritora: ela é poeta, como sempre tenho afirmado. Mesmo quando dá conta do que vê, ela está em «estado de vidência», que o jovem Rimbaud – e é ainda Edgar Morin2 quem no-lo recorda – tinha distinguido do simples «estado de visão». No pequeno poema que ouvimos de apenas quatro versos, a linguagem poética ressalta das analogias que se estabelecem entre a areia, que é 1 Edgar Morin, «A Fonte de Poesia», in Idem, Amor, Poesia, Sabedoria, Lisboa, Instituto Piaget, 1999, p.35ss. 2 Id., ibid.,p.38.

prisão, e o mar, que é liberdade, e nas conotações que decorrem desta tensão entre ambos os elementos e que nos pode conduzir à leitura que ousamos fazer da antinomia prosa/poesia. Quando o poeta domina esta arte difícil (a poesia não é, como muitos supõem, apenas a linguagem da afectividade, a simples rima do amor com a dor, é algo muito mais complexo), ele é capaz de transformar o real noutra realidade, distorcê-lo usando o real próximo, colocar-nos, com poucas palavras, perante uma constelação de possibilidades todas elas viáveis, todas elas enriquecendo-se mutuamente. Reparem como, ao falar da praia de Moledo do Minho, todos os significantes, exceptuando talvez o vocábulo «corpo», parecem reportar-se a referentes de um mundo completamente estranho: deposito-me no teu corpo na sombra dos segredos e não há margens a medir o compacto que somos procuro a tua alma ao fundo dos segredos e há uma luz inapagável a rodar nos nossos nomes E é assim que o poeta, de uma forma algo misteriosa, que designamos por metafórica, fala de aconchego, de uma estreita afeição entre dois seres, ideia que se repete noutros poemas, sobretudo os que apresentam um sabor mais erótico. Atente-se nestoutro poema sobre a Praia da Rocha, porventura o mais sugestivo e conseguido da colectânea:


com alguma inquietude lá fui adormecendo no barlavento do teu peito e todo o sono foi perpassado por um litoral perfeito quando de madrugada acordei achei-me numa enseada serena no sotavento do teu peito O poema, adornado de metáforas, parte do desassossego que antecede o sono, associado ao barlavento ou oeste algarvio, onde as praias são mais agitadas, e chega ao final feliz da máxima serenidade de dois corpos que acabaram por adormecer aconchegados, associados ao sotavento, onde as praias, porque sofrem já influências mediterrânicas, são mais suaves. É, afinal, o sono tranquilo de um barco que descansa num porto calmo e seguro. Eu disse que o poema vinha “adornado de metáforas”, mas retiro a expressão: é que aqui a metáfora não exerce a função ornamental e retórica do estilo clássico; o tecido textual é todo cerzido com metáforas e, fortalecendo-se gradativamente por uma coerência nova que elas transportam, transforma-se em alegoria, desvia-se claramente de todas as expectativas racionais e desloca e redescreve o real criando outra realidade. É por isso que Octávio Paz (é Nuno Júdice quem no-lo recorda) assevera que «a Poesia diz: Isto é Aquilo.» E é por isso também que, para Eugénio de Andrade, «a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta

Edgar Carneiro, uma presença sempre querida.

o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar.»3 Depois da revolução surrealista, que rasgou novos horizontes aos poetas, nunca mais a Poesia foi o que era. E a Poesia era, anteriormente, algo disciplinado, demasiado regrado, reflexivo, iluminado pela luz de Apolo, que presidia ao Parnaso e aos jogos das Musas. Nem tudo o que fazia parte da vida tinha licença para figurar na Poesia. Os assuntos obedeciam a critérios de suposta elevação e dignidade e giravam predominantemente em torno de temas filosóficos, culturais, artísticos. A luz de Apolo, porém, não ilumina simultaneamente todos os lados das coisas, pelo que nos deixa apenas enxergar as aparências. O homem que dela sobressaía era mais um indivíduo entre os demais, ficando oculta a natureza do homem-ele-mesmo. Este – o apolíneo – é um dos registos de nomenclatura nietzschiana, que é, todavia, completado por outro – o dionisíaco. Ora Dionísio ou Baco, para além do deus da inspiração, era, como

3

Eugénio de Andrade, Antologia Breve (introdução),

137


138

sabemos, o deus do vinho, a que estão associados o delírio, a licenciosidade, a orgia e todos os excessos. Recordemos que o Senado romano, em 186 a.C., teve que proibir as celebrações das Bacanais em sua honra. Ora, hoje, o poeta, influenciado pelo espírito dionisíaco, procura captar a essência eterna do real, sondar os instintos e as paixões, devassar a noite do espírito e do corpo, o irracional e o biológico, encarnar os deuses, involuir até ao Caos, descobrir a totalidade do ser. Essa busca exerce-se muito para além da razão. O homem transborda, numa afirmação de rebeldia, ébrio de vida plena, para encarnar a própria divindade e rivalizar com ela no esforço da criação. E é por isso que há quem considere mesmo que o poeta deve ser um pouco como o árbitro de um jogo de futebol, que se apaga para deixar o jogo aos jogadores. Mallarmé escreveu que «a obra pura implica o desaparecimento elocutório do poeta, que cede a iniciativa às palavras...».4 Cada vez menos o poeta procura transmitir o sentido das coisas, porque o sentido passa a residir, sobretudo, na palavra e no halo de múltiplas significações que cada palavra transporta. O poeta de hoje é glossolálico, isto é, tem a capacidade de falar uma língua desconhecida que se afigura mágica. Repare-se, por exemplo, como fala o sujeito poético do calor tórrido do verão, que as águas da Praia da Rocha, quando se entra nelas, logo atenuam: assisto a assimétricos arabescos no ar numa mistura sórdida entre o real e o irreal sem que se vislumbre brisa que o conjugue no terraço do bar começam a desferir-se arrepios de rugidos insustentáveis e brechas de remorsos sem matriz definida 4

Citado por Nuno Júdice, in As Máscaras do Poema, Lisboa, Aríon, 1998, p. 57.

adentro-me no mar e tudo se volve apenas no imperceptível estertor de um insecto É a linguagem do impossível («brechas de remorsos» é um exemplo, expressão que, neste contexto, empresta uma dimensão cósmica ao pecado). Mas quem se habituou a ler poesia (e quem a escreve) sabe quanto o impossível pode ser sugestivo e insinuar significações imprevisíveis. Jorge Luís Borges lembra que os longos argumentos «não convencem ninguém porque são apresentados como argumentos […], mas quando uma coisa é apenas dita – melhor ainda – insinuada, há uma espécie de hospitalidade na nossa imaginação. Ficamos prontos a aceitar.»5 Veja-se ainda como ao poeta é permitido repetir a mesma palavra no final de cada verso (é o contrário da anáfora, uma epanalepse) com um determinado objectivo (é que, afinal, esta linguagem de outra galáxia tem tanto de aleatório quanto de rigoroso). Trata-se de um poema sobre a praia de Espinho: era a extensão da tua pele sobre a brancura da minha pele e adornava-se a minha pele do suor da tua pele enquanto suspirava a tua pele brilhava a minha pele e adormeceste com a tua pele a desaguar na minha pele Há aqui uma espécie de harmonia imitativa, ao colocar no poema a pele de um sobre a pele de outro, como para ilustrar, com uma imagem irrecusável, o contacto «da 5

Jorge Luís Borges, Este Ofício de Poeta, Lisboa, Teorema, 2002, p.39s.


extensão da tua pele sobre a brancura da minha pele»: uma técnica muito engenhosa para fazer do poema, que, ainda por cima, termina com aquela eloquente metáfora da «tua pele a desaguar na minha pele», um todo mais coerente, mais significante e insinuante. O poeta esconde-se sob as palavras, deixa-as aparentemente conluiarem-se para conquistar o leitor, mas o certo é que este, se está mais atento, descobre as impressões digitais de quem andou por ali a mexer nelas. Lá está ele outra vez a usar essa espécie de harmonia imitativa, usando o “erre” em contínuas aliterações para emprestar ao poema os mesmos sons que enchem as praias de Vila Nova de Mil Fontes, lá onde o rio Mira vem desaguar no oceano: o rio é o rumor que rola em retentivas o mar é o marulho que excede as enseadas eu sou o ermo estro que remorde as reentrâncias O poema seguinte insiste no mesmo artifício de um mar “ronronante”, com um verso final que recorre a outra aliteração a partir da consoante “p”: recentes reticências do rastro de uma lágrima que dormente rolou num redondel de areia lágrima branca-ebúrnea de perca ou de permissa de rota transviada de vertigem ou brecha de amor ou desamor

mas o rastro irregular respira nos poros permeáveis da penumbra Poderíamos ficar aqui mais tempo a analisar o modo exímio como Manuela Correia exerce o seu “ofício de Poeta”. Mas, como os longos argumentos, como dissemos, não convencem ninguém, fiquemo-nos por mais alguns dos seus poemetos, que poderemos saborear agora como aperitivo para uma leitura posterior a sós (as coisas boas saboreiam-se egoisticamente às escondidas). E digo que são boas, também porque vêm impregnadas de erotismo. Vejamos alguns exemplos: Sobre a Praia da Granja: não me vistas palavras desnuda-me antes o manto e a saia para eu ser livre e dançar até ao excesso nesta praia Sobre a Praia de Cabanes, lá em baixo no reino dos Algarves: e surpreendem-me os teus olhos suspensos nos meus seios como se eu tivesse um abismo debruçado na cintura Sobre a Praia da Luz, pelos vistos testemunha de um excitante orgasmo: hoje houve mais ondas no teu corpo que no mar

139


depois a espuma branca e leve que me deixou a levitar

140

Pode dizer-se que a escritora aproveitou bem as várias férias nas praias portuguesas, que originaram estes Escritos de Areia, um livro que, além do mais, é um objecto extremamente agradável, como a Editora Corpos nos está a habituar, e que lhe deu uma capa solar que não nos engana sobre o seu conteúdo. Lá dentro há também uma poesia solar, em busca de serenidade interior, de equilíbrio e também de azul. Esta serenidade, que identifica o sujeito poético com o sonho está bem expressa neste poema escrito na Praia da Luz: entre a brancura desta praia e a falésia azul morena perco o limite

dona de mim restaurada e inteira contemplei o mar horas a fio O equilíbrio, esse reside na Praia da Rocha e na simetria de um céu azul que se espelha num mar da mesma cor: um tom de azul o tecto do céu outro tom de azul o chão do mar equilíbrio de asas não sei a qual dos dois me hei-de entregar Tranquilidade, desprendimento, divagação, vagar, pouca preocupação com o tempo, calma na observação, o infinito a presidir a tudo, sobretudo no azul sempre presente, não só na paisagem natural, como naquela que o homem vai modelando (o exemplo é da Praia da Rocha):

entre mim e o sonho eis-me serena Parece que aquela praia tem um efeito regenerador e dá ao sujeito a possibilidade de se reconciliar consigo mesmo: hoje fui atingido pela raiva que sobrevoa as coisas materiais mas assim que me entreguei ao mar vi-a sumir-se a pique nos limos e corais depois nem raiva nem vazio

desprendida dos ponteiros de todos os relógios alongo-me na observação curiosa e cuidadosa das vitrinas penduradas na lateralidade da rua na miscelânea de tantos e variados objectos retenho a predominância dos tons de azul a habitar reluzente o interiorismo do vidro Enfim, o azul como regresso à comunhão com o todo primordial, como retorno às fontes, ou não fosse um poema de Vila Nova de Mil Fontes:


azul azul azul como se fosse o reacender do ancestral big bang A serenidade que se obtém assim do regresso da parcela que somos do infinito à comunhão com o Absoluto não impede o sujeito de lançar também um olhar para o lado contrário ao mar. É que do lado da terra, pelo menos lá em Vila Nova de Mil Fontes, também há as searas que os poetas sempre identificaram metaforicamente com as ondas e que, neste caso, também têm propriedades regeneradoras: bebo a desmesura das searas quentes seiva bastante para diluir a pique a minha solidão O sujeito poético está, pois, em férias, entregue ao devaneio e ao desprendimento. No entanto, não deixo de reparar neste rebate de consciência, uma espécie de espinho na garganta do poeta, de uma cidadã empenhada nas grandes lutas do homem por um mundo mais justo. É que a poesia de um poeta remete intertextualmente para toda a poesia do mundo e é, por isso, que a Praia de Espinho faz lembrar à autora um poema de Manuel Alegre que fala de um homem bom que, na década de 30/inícios da 40, segundo ele nas proximidades daquela cidade, mas afinal no concelho de Santa Maria da Feira, mais propriamente em Nogueira da Regedoura, se tinha que esconder, à noite, numa árvore (a célebre japoneira) para fugir aos esbirros da Pide, que, numa madrugada de 1942, o assassinaram a tiro e à traição. Era o célebre Dr. Carlos Ferreira Soares,

mais conhecido por Dr. Prata, que, ainda há alguns anos, tinha aqui na Feira, um descendente, que era um distinto advogado. Manuela Correia, no meio daquela música entorpecente de um mar de férias, acorda de repente. O seu lado resistente está vivo e é assim que faz alusão ao poema de Manuel Alegre: a praia grande pauta aberta hoje perpassada por um vento prestes tão prestes a adormecer e com a leveza do ar e da espuma quase me absorvia totalmente e domava o que em mim existe de inegavelmente indomável de súbito atravessou-me o solfejo espinho e nem na memória a praia resiste emerge do meu lado indomável o pensamento que ergue o poema “havia uma árvore à beira do caminho” E termino, abrindo o livro de Manuela Correia na praia mais a Norte, a de Moledo, no primeiro poema da colectânea. É o poema que me parece mais pertinente para transmitir esta imagem do poeta que busca o sentido da vida e o encontra no sem-sentido que é escrever, escrever, escrever, sem alternativa e inelutavelmente, para o tempo apagar tudo. somos agora secretamente cúmplices eu e todas a fachada deste mar ele apaga tudo o que na areia escrevo e eu continuo a escrever para ele apagar O poeta dá-se aos pedaços, vai-se assassinando. Não foi por acaso que Pedro Sena-Lino, neto de Natércia

141


Freire, deu ao seu último livro de poemas o título de Autofagia. Mas o poeta não pode parar de se dar, de se ir matando a si próprio para dar vida à poesia, que ele ama. E amando-a tão visceralmente, tendo-a tão entranhada em si, seria difícil ao poeta defini-la. Jorge Luís Borges diz que, apesar de não sabermos defini-la, «assim como não sabemos definir o sabor do café, a cor vermelha ou amarela […], quando ela chega, sentimos o toque da poesia, esse especial roçagar da poesia.»6 Também eu a reconheci neste livro. Eu sei que ela está bem presente nestes belos Escritos de Areia da escritora feirense Manuela Correia. Santa Maria da Feira, 17 de Junho de 2005

142

6

Jorge Luís Borges, op. cit., p.24s.


UM ACHADO ARQUEOLÓGICO EM S. MAMEDE TRAVANCA (SANTA MARIA DA FEIRA), NO SÉCULO XIX Núria Quintino* Filipe Pinto** 1. A Notícia Em 1877, foi publicada uma das primeiras monografias referentes ao actual distrito de Aveiro, no qual se insere o espaço santamariano; foi seu autor Marques Gomes e a obra dava pelo singelo nome de “O Districto de Aveiro”. De entre os vários assuntos abordados, como era e continua a ser hábito neste tipo de publicações, e de entre as numerosas freguesias que foram alvo de atenção pelos mais diferentes aspectos, deparámo-nos com uma curiosa referência, para a localidade de S. Mamede de Travanca, para o lugar de Macieira mais precisamente. Esta constava do seguinte: “Em Maio * Licenciada em Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2000-2004. ** Licenciado em Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2000-2004.

de 1877 descobriu o sr. Antonio Valente de Rezende, n’um terreno seu, um sarcophago de pedra lavrada, todo forrado de tijolos bem cimentados. Tem 2 metros de comprimento, e 0,6 de largura. Suppõe-se que ainda existem mais tumulos similhantes (sic) a este.” (Gomes, 1877, 218). E nada mais redigiu sobre este achado arqueológico isolado, igual a tantos outros que ocorrem neste país. Três anos depois, Pinho Leal, no seu dicionário “Portugal Antigo e Moderno”, revela-nos uma indicação, na generalidade, similar do mesmo achado: “Em Maio de 1877, foi aqui achado, em uma terra do sr. Antonio Valente de Resende, uma sepultura, de pedra lavrada, forrada de tijolos, assentes em argamassa, com 2 metros de comprimento, 0,6 m de largo e 0,6 m de alto. Parece ser obra romana, e é provável que por estes sítios ainda haja mais algumas da mesma época” (Leal, 1880, 728). Apesar de versarem sobre o mesmo monumento, descrevendo-o com alguma minúcia, existe uma pequena diferença na caracterização da sepultura por parte dos dois autores; Pinho Leal indica

143


144

a altura – não sabemos se da parte interior ou exterior – da estrutura, ou seja, 60 centímetros, dado que Marques Gomes não adianta, embora nos pareça que Leal se tenha baseado na indicação do primeiro autor, pela extrema semelhança da descrição e enunciação da ordem dos materiais constituintes do monumento. Elemento subtil no texto, mas importante para a descrição deste achado arqueológico. Será, então, em torno destas indicações – que cremos serem as únicas sobre o sucedido –, que este pequeno artigo se vai basear, não com o intuito de chegar a conclusões definitivas, mas pegar nesta pequena notícia, abordá-la, injectando-lhe mais alguns dados, criando um quadro de envolvimento, podendo, dessa forma, contribuírem para uma melhor compreensão da problemática arqueológica local e regional. 2. Enquadramento Uma das referências documentais mais antigas sobre o lugar de Macieira remonta ao segundo quartel do século XII, mais precisamente num documento datado de 4 de Dezembro de 1141, numa doação de Godinho Guemiriz a Paio Christoforiz1 de uma propriedade “jacentia in villa Mazaneira, prope castellum Sancte Marie, discurrente rivulo Guandia, território portugalensi” (Durand, 1971, 201, nº 217). Aí próximo, está documentada, igualmente, a existência de um mosteiro, no actual lugar de S. Gião (por corruptela de S. Julião), pertença à freguesia de S. Miguel de Souto, que terá como fundadora Ilduara Eriz, em meados do século X, segundo a passagem do documento de 1050: “item in porcelli monasterio que

1

Respeitamos a grafia documental.

uocitant salla cos fuit de comissa domna ilduara (…) item inter porceli et mazanaria monastario de sancto iuliano ab integro” (PMH, 1868, 230, nº 378), mas, a partir desta data não são registadas mais notícias sobre este cenóbio (Mattoso, 1968, 44). Deste mosteiro não encontrámos vestígios durante a visita aí efectuada. No entanto, registamos a presença de uma pequena ponte de um só arco de volta perfeita, com cavalete e siglas espalhadas pelo arranque da arcaria e na abóbada, características de época medieval. A população indica que aí passaria a «estrada real», que seguiria em direcção ao burgo da Feira, passando, certamente, muito junto do castelo, dada a sua proximidade. Desta forma, na eventualidade de uma área com potencial arqueológico elevado, alertamos para o risco de dano nas movimentações do solo, com maior profundidade, que venham a ocorrer, perturbando e/ou destruindo possíveis vestígios que aí se encontrem. Para além destes elementos, existem mais alguns que achamos por bem incorporar neste trabalho de forma a reforçar e enquadrar o achado em análise. Nas redondezas, detectámos alguns topónimos que, pelo seu significado e enquadramento geográfico, poderão ser reveladores de alguma dinâmica local de povoamento. São os casos de Portela, Atalaia, Póvoa de Macieira e Barracão. O primeiro, indica-nos um local de passagem ou de junção de caminhos (Moreira, 1969, 60; Silva e Fernandes, 1995, 143-144), situação que realmente se poderá verificar com o cruzamento da via que vinha de Cabanões/Ovar e da «estrada real» que passaria na ponte medieval de S. Gião, seguindo depois para a Feira. O topónimo Atalaia alude a um local de vigia (Machado, 1958, 330; Baptista e Fernandes, 2001, 25), proeminente na paisagem, dominando-a visualmente, controlando certamente neste caso, a via


que vinha do litoral em direcção ao castelo e povoações limítrofes, podendo existir, nesse local, ramificações para o lugar da Barrela (S. Mamede de Travanca), Vila Boa e Balteiro (S. Nicolau de Santa Maria da Feira)2. A área que abrange este topónimo é plana, tendo existido, com certeza alguma estrutura que permitisse um maior raio de visão da envolvente. Não conseguimos descortinar vestígios desse ponto de observação, visto estarmos numa zona de acentuada alteração dos terrenos devido à construção, principalmente. Quanto a Póvoa de Macieira, implantado ao longo da encosta até ao vale onde corre uma linha de água (o rivulo Guandia da documentação?), virado a Sul, bem próximo da Portela, de S.Gião, fronteiro com Macieira, estará ligado ao fenómeno de criação de póvoas, por iniciativa régia, nos primeiros séculos da nacionalidade, ocupando manchas de terreno desabitadas. Apesar de não surgir na documentação apresentada neste estudo, podendo ser, pois, posterior, poderá estar relacionado com parcelas territoriais existentes, preenchendo espaços mais ou menos latos de terreno ermo. Por último, temos o exemplo de Barracão, que apesar da possibilidade de estarmos perante o aumentativo de barraca, não será de colocar de lado a hipótese de muros divisórios, estruturas muradas (Silva e Fernandes, 1995, 46; Fernandes, 2002, 30), dada a sua proximidade com Póvoa de Macieira. 3. Dados recolhidos O lugar de Macieira é pertença de duas freguesias: S. Mamede de Travanca e S. Miguel de Souto, correspondendo a esta a esmagadora maioria da 2 No lugar de Vila Boa, detectámos a presença do arqueotopónimo Mamoas, por si só revelador do potencial arqueológico da área, para além da atestada antiguidade de actividade antrópica.

área e cabendo àquela somente alguns arruamentos, isolados da restante povoação, qual enclave. Fazendo fé na indicação dos dois autores – se não existiu engano na designação da freguesia e se, entretanto, não ocorreram alterações significativas nas fronteiras entre as povoações –, o sítio da descoberta será muito próximo do vale, marcado pela linha de água que aí corre, em terrenos agrícolas, em zona de lameiro, praticamente. Mas, se porventura, os terrenos integram-se na área pertencente a S. Miguel de Souto, o espaço de busca passa a ser muito mais vasto, sempre próximo do vale, orientado a Sul-Sudoeste. O proprietário dos terrenos e pretenso descobridor da sepultura, Antonio Valente de Rezende, é indicado em ambos textos. Numa tentativa de conseguir obter um conjunto de informações mais precisas sobre propriedades que teria à altura, recorremos às Matrizes Prediais Provisórias de S. Miguel de Souto e de S. Mamede de Travanca, de 1854. Aí, constatámos que tinha somente propriedades sediadas em S. Miguel de Souto, localizadas no lugar de Macieira, onde era morador. No entanto, em 1859, adquiriu mais algumas propriedades a dois habitantes de Macieira de Travanca; algumas coincidem com a área em questão e outras não são alvo de discriminação na escritura (Quadro 1). Temos, também, presente que no interregno que medeia a notícia espelhada nos textos e a data que avançámos em que foram adquiridas algumas propriedades, novas trocas e compras podem ter sido efectuadas, tornando mais difícil a redução ao mínimo do espaço de prospecção.

145


Quadro 1 – Lista de propriedades em 1854 e 1859

146

Ano 1854 “ “ “ “ 1854 “ “ “ “ 1854 “

Proprietário Antonio Vallente de Rezende “ “ “ “ Antonio Vallente de Rezende “ “ “ “ Antonio Vallente de Rezende “

Identificação da Propriedade “Cortinha da porta” “Bacello debaixo” “Bacello de cima” “Pomar” “Choupello de cima” “Choupello de baixo” “Ribeira” “Ribeira de cima” “Monte” “A Deveza chamada do Sairo” “Outra dita chamada do Pomar” “Outra dita chamada do pinhal”

Local Macieira de Souto “ “ “ “ Macieira de Souto “ “ “ “ Macieira de Souto “

“Dous bocados de Deveza sitas no Sairo”

1854

1859 “ “ “

(adquiriu a) Antonio Alves dos Santos “ “ (adquiriu a) Manoel Fernandes Leite

“Os Mattos chamados dos Sairo a da Lavoura” “A tapada de matto sita na Leira do Monte”

“ “

“Um Campo lavradio sito nos Carvalhaes”

Macieira de Travanca

“Outro dito sito na Lavoura” “Outro dito chamado da Lavoura”

“ “

(quantas propriedades?)

Esta lista de propriedades representa um conjunto de pistas que se poderão articular com o anteriormente exposto neste ponto, sendo possível criar algumas manchas de prospecção com vista à localização da área onde se registou a descoberta da estrutura tumular. Se confinarmos o espaço de intervenção à freguesia de S. Mamede de Travanca, a mancha de intervenção será mais restrita.

4. Uma sepultura tardo-romana? No estudo de necrópoles ou até de sepulturas individuais, existem algumas características formais que permitem estabelecer tipologias, mais ou menos bem definidas, que actualmente se encontram estudadas e com bastantes exemplos conhecidos que servem de base a comparações ou paralelos. Para a formulação destas tipologias observam-se várias características: a quantidade de sepulcros, se estamos perante um caso isolado ou uma necrópole, o local de implantação, nas imediações ou não de templos, os materiais utilizados na sua construção, a sua forma,


a presença ou não de espólio funerário, e, a sua orientação espacial. Com base na descrição feita sobre esta sepultura em particular3, algumas informações perderam-se, foram omitidas ou puramente negligenciadas, como por exemplo a sua orientação, a presença ou não de elementos pertencentes à cobertura do monumento funerário, a existência de espólio ou outro(s) elemento(s) no seu interior (vestígios de cinzas ou material osteológico); contudo, apesar desta detecção de falhas, os elementos mencionados permitem criar um quadro geral com informação suficiente para a poder integrar numa tipologia e consequentemente chegar a uma baliza cronológica. A primeira observação a registar prende-se com as dimensões da sepultura, as medidas descritas indiciam uma sepultura de inumação. Isto é, por si só, um indicador cronológico pois a inumação é rito funerário que vai ganhando relevo a partir do século II, tornando-se exclusivo no século V (Frade e Caetano, 1993, 869). Apesar de se tratar de um achado fortuito, o autor levanta a hipótese da existência de mais sepulturas, talvez uma pequena necrópole, da qual resultou este achado isolado. Pela descrição feita depreende-se que esta tinha uma forma rectangular e foi construída de forma cuidada com pedras e tijolos, e, não sendo mencionada a presença de espólio funerário, tudo se coaduna com a descrição de uma sepultura tardoromana, apesar que a presença ou ausência de espólio não é um indicador fiável de paganismo ou cristianismo (Barroca, 1986, 37). A tradição pagã de oferendas funerárias não foi suplantada de imediato por uma tradição cristã, antes pelo contrário, as duas tradições 3

Tomando como referência a descrição de Marques Gomes (1877).

subsistiram pacificamente durante algum tempo e disso são exemplos várias necrópoles estudadas, a de Parada de Todeia (Paredes) (Corrêa, 1925) e a de Gulpilhares (Vila Nova de Gaia) (Lobato, 1995), por exemplo. A sepultura aqui descrita enquadra-se num quadro de transição destes rituais que é bem atestado na necrópole romana de Gulpilhares, onde inclusivamente os autores descrevem uma estrutura funerária deveras semelhante à aqui em análise: “sepulturas de planta rectangular com paredes internamente forradas a tijolo, pavimento de tegulae e cobertura com capas de pedra.” (Lobato, 1995, 36). Apesar de este tipo ser o mais cuidado no conjunto das sepulturas encontradas, ele enquadra-se perfeitamente no conjunto de “(…) sepulturas sem mobiliário datáveis dos finais do séc. IV e V (…)” (Lobato, 1995, 37). Posto isto, através dos elementos recolhidos e da sua comparação com paralelos locais e regionais, somos da opinião de que estamos perante uma sepultura tardo-romana, com uma cronologia situada entre os sécs. IV e V. No entanto, as conclusões que aqui adiantamos não têm um teor definitivo, visto que baseiam-se em confrontações de locais devidamente estudados (não existe um registo gráfico, mesmo que sumário, do túmulo, que permitisse esclarecer convenientemente a sua tipologia), sendo, pois, importante que a área fosse estudada com rigor, em busca de mais alguns dados que permitissem acrescentar um maior contributo ao aqui exposto e fornecer mais pistas para a discussão sobre a Arqueologia da Morte no plano local e regional e a sua articulação com a dinâmica de povoamento desta área.

147


Bibliografia Fontes Manuscritas “Matrizes Prediais Provisórias”, respeitantes às freguesias de S. Mamede de Travanca e S. Miguel de Souto – 1854. Fontes Impressas

148

Durand, Robert (introdução e notas); Le Cartulaire Baio-Ferrado du Monastière de Grijó (XIe – XIIIe siècles), Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1977. Herculano, Alexandre; Portugaliae Monumenta Historica, Diplomata et Chartae, vol. I, Lisboa, 1867-1873. Estudos Baptista, António José e Fernandes, A. de Almeida (2001); Toponímia de Ponte de Lima, Câmara Municipal de Ponte de Lima, 2 vols. Barroca, Mário Jorge (1987); Necrópoles e sepulturas medievais de Entre-Douro-e-Minho (Sécs. V a XV), FLUP, Porto, dactil. Corrêa, A. A. Mendes (1925); A necrópole de Parada Todeia, O Archeologo Português, 1ª série, vol. XXVI, Lisboa. Fernandes, A. de Almeida e Silva, Filomeno (1995); Toponímia Arouquense, Associação para a Defesa da Cultura Arouquense, Arouca. Fernandes, A. de Almeida (2002); Toponímia de Armamar, Edição Câmara Municipal de Armamar e Associação da Defesa do Património Arouquense, s/l.

Frade, Helena e Caetano, José Carlos (1993); Ritos funerários romanos no Nordeste alentejano, Actas do 2º Congresso Peninsular de História Antiga, Coimbra, pp. 847-875. Gomes, Marques (1877); O Districto de Aveiro, Imprensa da Universidade, Coimbra. Leal, Augusto A. B. Pinho (1880); Portugal Antigo e Moderno. Diccionario Geographico, Estatístico, Chorographico, Heraldico, Archeologico, vol IX, Lisboa. Lobato, Maria José Folgado (1995); “A necrópole romana de Gulpilhares (Vila Nova de Gaia)”, Portugália, Nova Série, vol. XVI, FLUP, Porto, pp. 31-110. Machado, José Pedro (1958); Influência Arábica no vocabulário Português, 2 vols., Lisboa. Mattoso, José (1968); Le Monachisme Ibérique et Cluny – Les monastères du diocèse de Porto de l’au mille à 1200, Louvain. Moreira, Domingos A. (1969); Paisagem Toponímica da Maia, Câmara Municipal da Maia, Maia.


BAILE EM SANGALHOS

a hierarquia da Igreja excomungava por dá cá aquela palha.

Joaquim Máximo* As nossas bicicletas rodavam, nervosas, aos saltos, sobre aquela estrada esburacada de terra batida. Não vínhamos de automóvel porque este tipo de transporte era utilizado, naquela época, só por gente muito abastada. Já tinha caído a noite e viam-se as estrelas a brilhar muito, porque o tempo não estava de chuva e porque ainda não havia a poluição provocada pela fumaça da indústria de hoje. A lua ainda estava escondida, não sei bem onde. Íamos a caminho de Sangalhos, para um baile que aí se realizava. Éramos cinco: eu, o meu irmão, o meu primo Vítor e dois amigos dele, da casa de quem vínhamos. Tenho uma ideia, mas não a certeza, que a casa deles era no Troviscal, onde a banda de música lá da terra tida sido excomungada, algum tempo antes. Naquele tempo, há já bem mais de meio século,

Depois de termos percorrido alguns quilómetros, começamos a ver as luzinhas de Sangalhos. Estávamos a chegar. E por fim chegamos ao local do baile: dois barracões razoavelmente iluminados. Num dos barracões tinha lugar a dança e no outro a comida e a bebida. Ali não se misturavam as duas coisas. Primeiro dançava-se, até fartar, no barracão da dança, enquanto o barracão da comida estava fechado à chave. Depois parava a dança, a orquestra ia descansar e, enquanto isso, abria-se a porta do barracão da comida, onde todos se iam recompor dos desgastes da dança. Depois de tudo bem comido e bebido, voltava-se à segunda e última parte da dança, após terem novamente fechado à chave o barracão da comida. Era como se fosse uma sessão de cinema daquele tempo: primeira parte do filme, intervalo para mudar de bobina e, a acabar, a segunda parte do filme.

* Joaquim Máximo de Melo e Albuquerque de Moura Relvas, nasceu em Coimbra e reside em Vila Nova de Gaia. Tem o curso de Engenharia Electrónica da Universidade do Porto. Exerceu a actividade profissional na Administração Geral dos CTT e obteve a especialidade de Instalações Exteriores de Transmissão; União Eléctrica Portuguesa, integrada depois na EDP; Professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, como Professor Associado; Colégio de Gaia onde leccionou disciplinas relacionadas com a Electrónica Digital. Faz parte da Direcção da revista Politécnica. É membro da Ordem dos Engenheiros da “American Association for the Advancement of Science”, da “New Iork Academy of Sciences” e da “Planetary Society”.

149


150

Na primeira parte das danças havia muito sexo masculino e pouco sexo feminino. Por isso, durante essa parte, não consegui dançar uma que fosse. Antes de começar cada dança, ao aproximar-me do grupo de raparigas que me tinham sido apresentadas, formava-se um magote de rapazes tal que, depois de desfeito, só se podia ver um conjunto de cadeiras vazias de raparigas. Só se viam, aqui e ali, umas velhotas mal encaradas que serviam de pau-de-cabeleira. Chamava-se, naquele tempo, pau-de-cabeleira, de uma rapariga, a qualquer pessoa, de preferência velha e feia, normalmente da família dela e que se destinava a salvaguardar-lhe a sua virgindade. Na segunda parte a situação melhorou consideravelmente e foi assim que, às tantas, quando se desfez o habitual magote, me encontrei, frente a frente, com uma gorda jovem que me tinha sido apresentada, estando então sentada, mas da qual tinha a ideia de possuir também uma estatura avantajada. Quando ela, então, sorriu para mim, não tive outro remédio senão o de formular, de acordo com a etiqueta vigente, o habitual pedido daquela época: – Dá-me a honra desta dança? – Pois não – respondeu ela, também de acordo com a mesma etiqueta. E então, quando se desdobrou ao levantar-se, é que me apercebi do sarilho em que me tinha metido. Era uma criatura enorme, muito maior que a alemã Gisela Mauermayer que tinha conquistado a medalha de ouro, na prova do lançamento do disco, nos jogos Olímpicos de 1936. Para a minha pouca sorte tinha saído uma valsa. E então começamos a dançar, ela a conduzir e eu com o meu pescoço encaixado entre as enormes mamas dela. Com as voltas da valsa e pela acção da força centrífuga, estava frequentemente com os pés

levantados do chão, até que ela se saiu com esta: – É pena você não ser um bocadinho mais alto, porque me saberia muito melhor esta dança. Confesso que me senti ofendido então no meu amor-próprio de adolescente e não me contive em lhe dizer: – Olhe aí, oh gorda! É favor abrandar, que eu apeio-me já na próxima estação! – Foi aí que então ela me largou no chão, como se fosse para se desembaraçar assim de uma coisa inútil, desprezível, e me pregou dois pares de estalos. Nunca mais tornei a ir a um baile a Sangalhos! Todo este episódio se pode resumir como se mostra no soneto seguinte. FECHO Quando ainda era um rapaz Fui a um baile em Sangalhos. Meti-me aí em trabalhos, Foi há muito tempo atrás. Gorda e alta era a mulher Que na valsa me calhou E o meu corpo então voou, Tendo então de lhe dizer: Oh gorda! Tens que abrandar Porque eu quero-me apear Já na próxima estação Quando eu disse isto, parou E dois estalos me aplicou, Depois de me pôr no chão!


ALEXANDRINO DE ALBUQUERQUE UM FEIRENSE QUE CONHECEU FERNANDO PESSOA Celestino Portela* Sobre o misterioso desaparecimento do mago e escritor Aleister Crowley e do enigmático aparecimento de uma carta dirigida a Miss Jaeger e da cigarreira pertença do escritor na Boca do Inferno, em Cascais, muito se tem escrito, e para esses autores se remetem os leitores interessados.(1) Augusto Ferreira Gomes encontrou a carta e a cigarreira “fui fazer entrega do meu achado ao Exmo Senhor Dr. Alexandrino de Albuquerque.” “Muito atencioso, o Sr. Dr. Alexandrino de Albuquerque, ouviu a minha breve exposição e mandou, imediatamente, à repartição respectiva, buscar as fichas de Crowley e de Miss Jaeger”. “Teve palavras amáveis para o jornalista e citou nessa altura, no meio da conversa, a necessidade crescente que tem a nossa polícia – com tantas e tão * Advogado.

grandes qualidades de honradez e disciplina – de se aperfeiçoar nos novos processos do crime para, assim, com outra preparação, estar apta a poder enfrentar os criminosos complicados que, embora felizmente não abundem, já vão aparecendo em Portugal”. “Nesta altura apresentou-se ao Sr. Dr. Alexandrino de Albuquerque o escritor Fernando Pessoa – diga-se de passagem uma das mais interessantes se não a mais interessante e superior mentalidade da minha geração – meu amigo de há muito e que, sabendo pelo “Diário de Notícias” do sucesso vinha dar algumas explicações”. (1) – Notícias Ilustrado. O Dr. Alexandrino de Albuquerque nasceu pelas três horas da tarde do dia 31 de Outubro de 1887, filho legítimo de José Albuquerque e de Matilde Antunes Vinagre, na aldeia de João Pires, concelho de Penamacor. Foi baptizado no dia 17 de Dezembro do mesmo ano na Igreja Paroquial de Santa Maria Madalena da referida aldeia.

151


152

1º Plano - Dr. Alexandrino de Albuquerque, Dr. Roberto Vaz de Oliveira, Dr. Ângelo Sampaio Maia e Esposa Senhora Dona Maria Emília Sampaio Maia e Dr. Domingos Trincão. 2º Plano - Eduardo Coimbra, Aníbal Alves, Dr. Fernando Ferreira Soares, Dr. José Correia de Sá, Dr. Alcides Monteiro, Dr. Domingos Sousa, Francisco Neves, António Carneiro e Artur Lima.

Casou com Maria da Piedade Melo Sá Nogueira na área da 2ª. Conservatória de Lisboa no dia 20 de Maio de 1922. O casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 12-01-1933, transitada em julgado em 11-02-1933, proferida pelo Tribunal da 6ª. Vara Judicial de Lisboa. Casou com Isaura Amélia de Mendonça Graça na Avenida 24 de Julho, nº. 36, em Lourenço Marques,

a 8 de Abril de 1933. Faleceu na freguesia e concelho do Bombarral no dia 30 de Junho de 1969.(2) Na certidão de óbito, por lapso da declarante, consta ser filho de António de Albuquerque e de Maria Matilde Antunes de Albuquerque.(3) O Dr. Alexandrino Albuquerque, homem de grande cultura e saber, leitor assíduo do “Le Monde”, exerceu a advocacia em Lourenço Marques, regressou


à Metrópole e foi nomeado Conservador do Registo Civil da Feira, em 12 de Março de 1934, funções que exerceu até 31 de Outubro de 1957 e que acumulou também com funções de Juiz substituto na Comarca.(4) Já reformado voltou a dedicar-se à Advocacia, após o falecimento imprevisto do Dr. Augusto Chaves, Distinto Advogado com escritório em Ovar, ocorrido em 2 de Fevereiro de 1959, até que os filhos, Augusto e Eduardo, estudantes de Direito, concluíssem os cursos e iniciassem a advocacia, que exercem com proficiência. Foi um dos impulsionadores da fundação do Externato de Santa Maria. Em Vila da Feira viveu na sua casa, Rua 5 de Outubro, nº. 6, até à sua fixação definitiva no Bombarral. A Direcção Geral dos Registos e Notariado, para além da informação relativa ao período em que exerceu funções como Conservador do Registo Civil não forneceu outros elementos relativos ao seu curriculum profissional.(5) O Dr. Alexandrino Albuquerque exerceu funções na Polícia, em Lisboa, na década de 20 do século passado. A Polícia Judiciária informou-nos que “só em 1977, com o Dec.-Lei nº. 364 a Polícia Judiciária passa a ter autonomia administrativa em matéria de movimentos de pessoal e organização dos Processos Individuais dos seus Funcionários, o que até à data era centralizado no Ministério da Justiça – Secretaria Geral”. “Estes serviços foram oportunamente contactados mas fomos informados ser quase inacessível o arquivo respeitante a Pessoal, à data, ao serviço do Ministério da Justiça” – (6)

Um processo em aberto, pois não encontrei ainda ninguém que tenha referido ou estudado, o processo da Polícia, e que pode revelar pormenores das investigações conduzidas pelo Dr. Alexandrino de Albuquerque. “O suicídio nunca deveras se provou (só o aparecimento do cadáver, como bem pensou a nossa Polícia). Também ninguém pode provar que houvesse“ blague. “E o caso em boa verdade, ficou sempre misterioso”. (1) – Girassol.

153

Hoje, com o caso estudado e esclarecido, com a revelação que Miguel Roza nos apresentou(1) sinto que o processo da Polícia pode revelar aspectos interessantes sobre as pessoas ouvidas, as diligências feitas e as conclusões a que chegou o Sr. Dr. Alexandrino Albuquerque. Esperemos que esse momento chegará!... - Notícias Ilustrado, 5 /Outubro/ 1930 - Girassol – 16/Dezembro/1930 - Todos os biógrafos de Pessoa - O Mistério da Boca do Inferno – Vitor Belém. Casa Fernando Pessoa – 1995. - Encontro Magick – Miguel Roza – Hugin Editores, 2001. (2) - Assento de Baptismo, Arquivo Distrital de Castelo Branco. (3) - Assento de óbito nº. 118, Bombarral. (4) - Francisco Azevedo Brandão – Subsídio para um Dicionário de Personalidades Feirenses. (5) - Ofício nº. 5139 de 21 de Maio de 1996 da RN (6) - Ofício nº. 033299 de 14 de Outubro de 1996 da Polícia Judiciária. (1)


ESBOÇO OUTONAL Anthero Monteiro* sentado na esplanada vejo passar a indolência de outubro lá vai doirando os plátanos com a mesma mansidão das folhas submissas a umas mãos de brisa roubo à tarde a suavidade das crianças que sorriem aos dias por vir na crença inocente de que tardes como esta basta um beijo de uns lábios cândidos para multiplicá-las bebo o mosto que ferve nas mãos dadas dos namorados e mastigo esta infinita concórdia que habita mesmo nas efémeras saudações dos transeuntes 154

chego mesmo a acreditar que a minha pena resvala ao ritmo da tarde e se deixa conduzir sem esforço sem assentimento e sem recusa para o verso final de um poema que nunca deveria chegar ao fim

* Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros. É autor de vários livros de poesia e de ensaio.


António Joaquim - óleo s/ tela, 2000.

I - MEMÓRIA DESCRITIVA Joaquim Carneiro* Constituída por escritura pública de 09 de Março de 1983 - há 25 anos - com vivência de muitos anos antes, exerce uma actividade de divulgação dos motivos feirenses a par de manifestações culturais. — Mandou cunhar uma medalha de “Homena-gem ao Concelho da Feira”, sendo autor da escultura José Aurélio, 1972. * Designer gráfico. Executivo LAF - Liga dos Amigos da Feira.

— Mandou executar peças em porcelana, bronze e grés, em variados temas; 1978, 1979 e 1980. — Mandou executar na «Fabrica Aleluia», Aveiro, Paineis de Azulejos, com as dimensões de 1,95x1,35m, “Vista Aéria do Castelo da Feira”, em 1980, estando o exemplar n.º 1 exposto no «Café Castelo» em Santa Maria da Feira. — Foi Comissão Executiva na angariação de fundos para a construção do Pavilhão GimnoDesportivo da Lavandeira. — Mandou executar serviços de jantar, chá e café, tendo o castelo da Feira como motivo, em porcelana, na «Fábrica de Porcelanas de Coimbra», 1980. — Em 1 de Março de 1980 deslocação a Coimbra em visita de Homenagem a Miguel Torga. — Realizou a “1ª. Mostra de Coleccionismo do Concelho da Feira”, em temática Camoneana, integrada nas “Comemorações do IV Centenário da Morte de Camões”, no Centro de Cultura e Recreio do Orfeão da Feira, 1980.

155


156

— Promoveu em 10 de Junho de 1980, uma Sessão Pública de “Homenagem a Camões”, na sede do Centro de Cultura e Recreio do Orfeão da Feira, com palestra pelo Companheiro Pe. Albano de Paiva Alferes, Ao Redor de Camões. — Realizou em Outubro de 1982 a “1ª. Mostra de Filatelia e Maximafilia do Concelho da Feira”, com Carimbo Comemorativo editado pelos CTT, na Escola Secundária da Feira, primeiro “Inteiro Postal” obtido no Concelho da Feira; — Promoveu em 30 de Novembro de 1982 as “Comemorações do 47.º Aniversário da Morte de Fernando Pessoa, aos 47 Anos de Idade”, com o seguinte programa; — “Jantar Íntimo” com os convidados; — Conferência pelo Prof. Doutor Salvato Trigo, no Salão Nobre da Câmara Municipal, sobre Actualidade de Fernando Pessoa; — Apresentação de uma Medalha Comemorativa da autoria do escultor José Aurélio; — Apresentação de um poster da autoria de Joaquim Carneiro; — Edição de uma Silva Poética, com poemas dedicados a/ou inspirados em Fernando Pessoa; — “Ceia Convívio” em casa do companheiro Carlos Maia; — Neste convívio o Prof. Doutor Salvato Trigo incitou a Liga dos Amigos da Feira a erguer em Vila da Feira, o primeiro monumento nacional a Fernando Pessoa.

Constituição oficial da LAF - Liga dos Amigos da Feira por escritura pública de 9 de Março de 1983. NIPC 501908382 - Actividade 91331 Marca Registada n.º 398244 I - Acordo com o escultor Aureliano Lima para a execução do projecto do Monumento, Março de 1983. II - Execução do Monumento na «Fundição de Fernando Lage”, em Oliveira do Douro, Setembro/ Novembro, 1983. III - A Câmara Municipal procedeu, em colaboração com a LAF, ao arranjo da Praça Fernando Pessoa com estudo de arquitectura de Rui Lacerda Machado e direcção técnica no terreno do Eng. Artur Brandão. IV - Instalação do Monumento, 28 de Novembro de 1983. V - Edição da Conferência do Prof. Doutor Salvato Trigo, Actualidade de Fernando Pessoa. VI - Edição de Ele e os Outros, Aureliano Lima, Poemas. VII - Ciclo de Conferências integradas na “Inauguração do Monumento a Fernando Pessoa”. Em 26-11-1983, em Fiães, Fernando Pessoa e o Movimento Saudosista, pelo Dr. Fernando Guimarães;


— Em 27-11-1983, em Arrifana, Fernando Pessoa, a Poesia e o Mito, pelo Prof. Doutor José Augusto Seabra; — Em 28-11-1983, em Paços de Brandão, Fernando Pessoa e a Poética da Nostalgia, pelo Prof. Doutor Salvato Trigo; — Em 29-11-1983, em Vila da Feira, O Mito Pessoa, pelo Prof. Doutor Eduardo Lourenço; — Em 30-11-1983, em Vila da Feira, “Apresentação do Monumento”, pelo Dr. Aurélio Pinheiro; — Em 30-11-1983, em Vila da Feira, Fernando Pessoa, Poeta do Desassossego, pela Prof. Doutora Clara Rocha. VIII - Em 30-11-1983, “Inauguração do Primeiro Monumento de Homenagem a Fernando Pessoa”, escultura de Aureliano Lima, pelo Senhor Presidente da República General António Ramalho Eanes e Miguel Torga; — Edição de uma Medalha Comemorativa do “Primeiro Monumento a Fernando Pessoa em Vila da Feira”, da autoria de Joaquim Carneiro; — Realizou o “Jantar de Encerramento” das Comemorações da Inauguração do Monumento, no Salão Nobre do Castelo da Feira, a que presidiu o Senhor Presidente da República General António Ramalho Eanes; — Promoveu a exibição do filme Conversa Acabada, no Cine Teatro de Santa Maria. IX - De 1 a 8 de Dezembro de 1983, realizou em Paços de Brandão a “2ª. Mostra de Filatelia e Maximafilia do Concelho da Feira”. X - Editou uma colecção de postais ilustrados, na “Série - LAF 1”, com motivos do Monumento.

XI - Em 13 de Abril de 1985 promoveu a “Homenagem do Concelho da Feira ao Dr. Henrique Veiga de Macedo”, em colaboração com a Junta de Freguesia de Santa Maria de Lamas, que teve como pontos altos: — Inauguração de dois bustos do Homenageado; — Em Santa Maria de Lamas com descerramento do busto pela Ex.ma Senhora D. Ália Veiga de Macedo, intervenções de Rui Serrano, Presidente da Junta de Freguesia, e do Homenageado; — Em Santa Maria da Feira com descerramento do busto pela Ex.ma Senhora Drª. D. Manuela Eanes, esposa do Ex.mo Senhor Presidente da República General António Ramalho Eanes e intervenção do Dr. Celestino Portela, membro do Executivo LAF; — Edição de uma plaquete com versos do Homenageado; — “Almoço de Homenagem”, nas instalações do INATEL, que reuniu mais de 800 pessoas, com intervenção do Dr. António Joaquim Vieira. XII - Promoveu em 13 de Junho de 1986, as Comemorações do “98.º Aniversário do Nascimento de Fernando Pessoa”, com o seguinte programa: — Deposição de uma coroa de flores no Monumento. — Cartaz Comemorativo por Joaquim Carneiro. — Edição de uma pagela “Programa”, anunciadora das Comemorações”. — “2ª. Mostra de Coleccionismo Evocativa de Fernando Pessoa”, de 13 a 15 de Junho, com Carimbo Comemorativo editado pelos CTT, na sede da Junta de Freguesia de Santa Maria da Feira; — Edição de uma pagela “Guia da Mostra”, que reproduz o Carimbo Comemorativo.

157


158

— Conferência pelo Dr. David Mourão Ferreira, sob o tema Fernando Pessoa, a Mulher e o Amor, no salão Nobre da Câmara Municipal. XIII - Em 13 de Junho de 1987 organizou as “Comemorações do 99.º Aniversário do Nascimento de Fernando Pessoa”, sob o tema, Fernando Pessoa e a Música do seu Tempo: — Conferência proferida, pelo Prof. Doutor Mário Anacleto, na Junta de Freguesia de Santa Maria da Feira. — Edição da uma pagela “Programa”, anunciadora das Comemorações. XIV 1988 “Comemorações do I Centenário do Nascimento de Fernando Pessoa”, com o seguinte programa: — Medalha Comemorativa por Joaquim Carneiro; — Cartaz Comemorativo por Joaquim Carneiro; — Palestra pela D.ra Lucília Lencart, no Salão Nobre da Câmara Municipal, sob o tema As Raízes de Fernando Pessoa na Terra de Santa Maria da Feira, em 11 de Junho de 1988; — Representação de O Marinheiro, na Praça de Armas do Castelo, pelo “Grupo Caixa de Pandora”, Porto, em 12 de Junho de 1988. — “Homenagem Florida” no Monumento e “Convívio Pessoano”, em 13 de Junho de 1988. XV - Participou, como Co-organizador, na “Interpor/88 . — IV Exposição Filatélica de Inteiros Postais”, realizada no Centro de Cultura e Recreio do Orfeão da Feira, de 1 a 8 de Outubro de 1988, com Carimbo Comemorativo editado pelos CTT. — Navegando - O Universo de Fernando Pessoa, interpretação e coreografia de Brenno

Mascarenhas, no Cine Teatro Santa Maria, em 28 de Novembro de 1988. XVI - É membro Fundador da Cooperativa Rádio Clube da Feira, em 28 de Janeiro de 1988. XVII - Em 13 de Junho de 1992 promoveu um “Almoço Original”, no Salão Nobre do Castelo de Santa Maria da Feira, “Evocativo do 104.º Aniversário do Nascimento do Poeta Fernando Pessoa”, em colaboração com o Centro de Estudos Americanos Fernando Pessoa de S. Paulo - Brasil: — Concentração junto ao Monumento em memória de Fernando Pessoa, onde foram lançadas flores; — Palavras por Isabel Nogueira Murteira França, sobrinha-neta do Poeta; — Leitura de poemas por Teresa Rita Lopes e interveção de João Alves das Neves, Henrique Veiga de Macedo e Alfredo de Oliveira Henriques; — Edição de uma plaquete com um poema inédito, de Fernando Pessoa, cedido gentilmente por Teresa Rita Lopes. XVIII - Participou na “Exposição do Painel Colectivo - Um Retrato para Fernando Pessoa - Quadros e Quadras”, que se realizou no Museu Municipal, em 16 de Outubro de 1999: — Recepção de boas vindas à Associação Fernando Pessoa, de Lisboa; — Visita ao Monumento a Fernando Pessoa, Europarque e Castelo; — Espectáculo no Museu dos Lóios, com intervenção de D. Manuela Nogueira sobrinha de Fernando Pessoa, Victor Belém e César Máximo; — Leitura de poemas por João d´Ávila e César Máximo;


XIX - Em 14 de Março de 2001 promoveu, com a Escola de Hotelaria e Turismo do Porto - Núcleo Escolar da Feira, um “Jantar Pessoano”: — Intervenção do Dr. Celestino Portela; — Edição de uma pagela, numerada, alusiva ao evento.

XIX - Em 1 de Junho de 2002 edita o n.º1 da revista Villa da Feira-Terra de Santa Maria, com periodicidade quadrimestral, de que este é o nº. 18, Fevereiro, 2008. - Marca Registada n.º 380482. - Apresentação pública do n.º1 da Revista, no «Restaurante do Villa», Espaço da Feira Medieval, em 13 de Junho de 2002.

XXI - Edita a Colecção Santamariana, na qual foram já publicados os seguintes títulos: 1 - Ao Redor de Camões, Pe. Albano de Paiva Alferes,1981. 2 - Silva Poética - Homenagem a Fernando Pessoa, vários Autores, 1982. 3 - Actualidade de Fernando Pessoa, Salvato Trigo,1983. 4 - Ele e os Outros - Poemas Pessoanos, Aureliano Lima, 1983.

5 - Fernando Pessoa - O Poeta do Desassossego, Clara Crabbé Rocha, 1984. 6 - Antinous - Poem by Fernando Pessoa, tradução e estudo de Maria Lucília Lencart, 1988. 7 - As Cinco Sentidas, J. M. Matos Vila, 2002. 8 - Um Livro, Celestino Portela, 2003, Palavra Introdutória de Henrique Veiga de Macedo, 2.ª edição. 9 - Capela da Senhora das Necessidades Nadais - Escapães, Pe. Domingos A. Moreira, 2003, Palavras Introdutórias de Alfredo de Oliveira Henriques, Gastão Valente, Carlos Martins, Pe. Domingos Milheiro e Pe. Fernando Milheiro, Separata da Revista Villa da Feira - Terra de Santa Maria. 10 - Museu, Celestino Portela, 2003, Depoimento de Manuel Cunha Rodrigues. 11 - Castelo de Santa Maria da Feira - Comissão de Vigilância, Compilação de Celestino Portela, 2006, texto de Ludgero Marques. 12 - Fernando António - O Pessoa, Celestino Portela, 2003, Introdução de António Rebordão Navarro, Ilustrações de Alfredo Luz, António Joaquim, Joaquim Carneiro e Paulo Neves. Edição especial, com Testemunho e Tributo de Salvato Trigo. 13 - Do Alto da Piedade, Francisco Neves, 2003, Depoimento de Eduardo Vaz de Oliveira. 14 - Misticismo em Manuel Laranjeira - o autodiagonóstico de um médico doente de santidade, Anthero Monteiro, 2004, Prefácio de Luís Machado de Abreu, Separata da Revista Villa da Feira - Terra de Santa Maria. 15 - Seria Aquela... “A Ilha dos Amores”?, Abílio Ferreira da Silva, 2004, Separata da Revista Villa da Feira - Terra de Santa Maria.

159


160

16 - Outrora... Fornos, Pe. José Alves de Pinho, 2005, Palavra de Gratidão de Celestino Portela. 17 - A Festa das Fogaceiras e o Feriado Municipal de Santa Maria da Feira, Anthero Monteiro, 2005, Separata da Revista Villa da Feira - Terra de Santa Maria. 18 - Fogaceiras - Oitocentos Anos de História, David Simões Rodrigues, 2005, Separata da Revista Villa da Feira - Terra de Santa Maria. 19 - Fundamentos para o Brasão de Fornos, Pe. José Alves de Pinho, 2005, Separata da Revista Villa da Feira - Terra de Santa Maria . 20 - Memórias Paroquiais de Santa Maria da Feira -1758, Roberto Carlos, 2006, Prefácio de Luís Miguel Duarte. 21 - Na Melhor das Intenções, José Fial, 2006, Selecção e Prefácio de Anthero Monteiro. 22 - D. Sebastião Soares de Resende - 1.º Bispo da Beira, textos de: José Manuel Cardoso da Costa, Alfredo de Oliveira Henriques, D. Jaime Pedro Gonçalves, Pe. Manuel Leão, D. Eurico Dias Nogueira, D. Carlos Moreira Azevedo, Adriano Moreira, António Almeida Santos, David Simões Rodrigues, Sebastião Brás, José Soares Martins, Roberto Carlos e D. Sebastião Soares de Resende, 2006, Separata da Revista Villa da Feira - Terra de Santa Maria, 23 - Velharias..., Pe. Albano de Paiva Alferes, 2007, Prefácio de Pe. José Alves de Pinho. 24 - Construção da Actual Igreja de Escapães, Pe. José Alves de Pinho, textos de: Alfredo de Oliveira Henriques, Pe. Domingos Milheiro, Pe. Fernando Milheiro e Manuel de Castro Almeida. 25 - I Centenário da Igreja Paroquial de Milheirós de Poiares, D. Carlos A. Moreira Azevedo, Prof. Manuel Joaquim Santos Conceição, Padre Manuel Leão

e Padre Fernando C. Gonçalves, 2007. 26 - Contributos da Toponímia para a Arqueologia: Estudo da algumas Freguesias do Concelho de Santa Maria da Feira, Filipe Pinto, 2007, Prefácio de Carlos A. Brochado de Almeida, Separata da Revista Villa da Feira - Terra de Santa Maria. XXII - Livros que tiveram Sessão Pública de apresentação. 1 - Ao Redor de Camões, na «Livraria Minerva», em 10 de Junho de 1981, com apresentação de Celestino Portela; 7 - As Cinco Sentidas, na sede do Centro de Cultura e Recreio do Orfeão da Feira, em 12 de Julho de 2002, com apresentação de Celestino Portela; 8 - Um Livro, no Monumento ao Espírito Feirense, em 8 de Março de 2003, com apresentação de Henrique Veiga de Macedo; 9 - Capela da Senhora das Necessidades - Nadais - Escapães, na Capelinha de Nadais, em 14 de Junho de 2003, com apresentação de Alfredo de Oliveira Henriques, Carlos Gomes Maia, Gastão Valente e Pe. Américo Dias Pereira; 10 - Museu, na sede do Clube Feirense Associação Cultural, em 27 de Junho de 2003, com apresentação de António Rebordão Navarro; 12 - Fernando António - O Pessoa, na sede do Clube Feirense Associação Cultural, em 15 de Novembro de 2003, com apresentação de Serafim Guimarães; 13 - Do Alto da Piedade, na sede do Centro de Cultura e Recreio do Orfeão da Feira, em 12 de Dezembro de 2003, com apresentação de Roberto Carlos; 14 - Misticismo em Manuel Laranjeira - o autodiagonóstico de um médico doente de santidade,


na Biblioteca Municipal, em 19 de Junho de 2004, com apresentação de Luís Machado de Abreu e Miguel Miranda; 15 - A Festa das Fogaceiras e o Feriado Municipal, no Salão Nobre da Câmara Municipal, em 19 de Janeiro de 2005, com apresentação de Alfredo de Oliveira Henriques e do Autor; 16 - Outrora... Fornos, e 19 Fundamentos para o Brasão de Fornos, Pe. José Alves de Pinho, 2005, na Junta de Freguesia de Fornos, em 12 de Novembro de 2005, com apresentação de Cândido Augusto Dias dos Santos; 21 - Na Melhor das Intenções, na Biblioteca Pública de S. Paio de Oleiros, em 24 Março de 2006, com apresentação de Anthero Monteiro; 22 - D. Sebastião Soares de Resende, no salão Paroquial de Milheirós de Poiares, em 29 de Abril de 2006, com apresentação de David Simões Rodrigues; 23 - Velharias..., no Salão Nobre da Junta de Freguesia de Souto, em 1 de Fevereiro de 2007, com apresentação do Pe. José Alves de Pinho. 25 - I Centenário da Igreja de Milheirós de Poiares, no Auditório Paroquial, em 29 de Setembro de 2007, em Sessão Solene presidida por D. Carlos A. Moreira Azevedo e apresentação de Joaquim Moreira Azevedo. 26 - Contributos da Toponímia para a Arqueologia: Estudo da algumas freguesias do concelho de Santa Maria da Feira, na «Livraria Vício das Letras», em 20 de Outubro de 2007, com intervenção de Celestino Portela e do Autor. XXIII - 30 de Novembro de 2002. 20.º Aniversário do “Dia Triunfal LAF”:

— “Ceia Medieval” no Salão Nobre do Castelo de Santa Maria da Feira; — Homenagem ao Prof. Doutor Salvato Trigo e aos Amigos da Villa da Feira; — O Senhor Prof. Doutor Salvato Trigo, proferiu uma palestra sob o tema Fernando Pessoa na Actualidade. XXIV - Em 29 de Novembro de 2003 “Comemoração do 20º. Aniversário da Inauguração do Monumento a Fernando Pessoa”, com o seguinte programa: — Recepção ao Senhor General António Ramalho Eanes e esposa; — Visita ao Monumento e deposição de uma Coroa de Flores; — O Senhor General António Ramalho Eanes, proferiu uma palestra na Biblioteca Municipal sobre o tema A inevitabilidade de Abril e a feira de legitimidades com o PREC - O regresso ao propósito originário; — Jantar na Casa das Ribas, cedida por gentileza do casal Vaz de Oliveira. XXV - Co-participou na Homenagem promovida, pela Câmara Municipal e outras entidades, em 21 de Junho de 2003, ao Prof. Doutor José Manuel Moreira Cardoso da Costa, com o seguinte programa: — Sessão Solene no Salão Nobre da Câmara Municipal, com intervenção de Barbosa de Melo; — Almoço na Casa da Torre, cedida por gentileza da Família Sampaio Maia, com intervenção de Henrique Veiga de Macedo. XXVI - Promoveu com a Fundação Comendador Joaquim de Sá Couto um “Jantar Convívio” com o Mestre António Joaquim, realizado em 1 de Junho de 2004, com intervenção de Serafim Guimarães:

161


162

— Edição de uma Medalha Comemorativa, da autoria do escultor Alves André. XXVII - Promoveu com a Santa Casa da Misericórdia da Feira, Fundação Comendador Joaquim de Sá Couto, Comissão de Vigilância do Castelo de Santa Maria da Feira e Clube Feirense Associação Cultural um “Jantar Convívio” com o Prof. Doutor Serafim Guimarães, realizado em 30 de Outubro de 2004, com intervenção de Daniel Filipe de Moura. XXVIII - Promoveu com outras Associações, em 23 de Dezembro de 2004, a “Homenagem ao Professor José Valente de Pinho Leão”: — Inauguração de dois bustos do Homenageado; — Em Milheirós de Poiares, com intervenção do Padre Manuel Leão; — Em Santa Maria da Feira, com intervenção de José Manuel Cardoso da Costa; — Romagem ao cemitério; — “Almoço Convívio” com familiares do Homenageado. XXIX - “Homenagem ao Padre Manuel Leão”, realizada em 23 de Dezembro de 2004, durante o “Almoço Convívio”, com intervenção de Barbosa da Costa. XXX - Promoveu um “Jantar Convívio”, com o Padre Manuel Soares dos Reis, realizado em 24 de Janeiro de 2005, com intervenção de D. António Maria Carrilho e intervenção de outras individualidades. XXXI - Assinado a 02 de Junho de 2007, um Protocolo de Colaboração Geral com o Agrupamento de Escolas Prof. Doutor Ferreira de Almeida. XXXII - “LAF - 35 Anos de Actividade - Breve Exposição”, na Sede da Junta de Freguesia de Santa

Maria da Feira, integrada na “Semana Cultural 2007”. XXXIII - 12 de Agosto de 2007 “Centenário de Miguel Torga”: — Inauguração de uma Escultura do Poeta, de autoria do escultor Alves André, com intervenção de António Rebordão Navarro e leitura de textos e poemas. XXXIV - “Convívio Comemorativo” do 75.º Aniversário do Dr. António Simão Toscano, conjuntamente com o Clube Feirense Associação Cultural, na sua Sede Social, realizado em 29 de Setembro de 2007, com intervenção de Serafim Guimarães e do aniversariante. XXXV - Promoveu com a Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, Junta de Freguesia de Argoncilhe, ISVOUGA, ISPABE, Universidade Sénior de Santa Maria da Feira e Confraria da Fogaça da Feira, um “Jantar Convívio” com o Prof. Doutor Francisco Ribeiro da Silva, realizado em 10 de Outubro de 2007, com intervenção de António Barros Cardoso. XXXVI - Promoveu com o Clube Feirense Associação Cultural, um “Jantar Convívio” com o Engenheiro Artur Fernando Sá Brandão, em 25 de Janeiro de 2008, com intervenção de Rodrigo Nunes Abelha, Vitor Fontes, Fernando Leão, António Cavaco, Elísio Amorim Carneiro, Alfredo Oliveira Henriques e do Homenageado.


163

Primeiro Inteiro Postal, obtido no Concelho da Feira (Postal, Selo e Carimbo coincidentes).


II - MEMÓRIA DOCUMENTAL

164

Serviço de Jantar,

de Chá

e de Café.


165

Painel de Azulejos, exemplar n.º 1, exposto no «Café Castelo» em Santa Maria da Feira.


166


167


168


169


170


171


172


173


174


175


176


177


178


179


180

“A UNS OLHOS DE CRIANÇA” Ilda Maria* Do límpido fulgor do meu olhar de outrora Já não encontro o rastro Que a luz que irradiava como uma doce aurora Ofuscada me foi pelo fulgor dum astro, Um olhar de criança! Uns olhos infantis, imaculados, Escuros como a noite mais formosa, Quais gemas de luar, doiradas, tão doiradas, Alegres a florir como botões de rosa, Uns olhos de criança! E o meu olhar, que teve já o brilho Dessa casta ventura Sumiu-se como o rasto dum cadilho Por entre a noite escura. E ao ver a cândida pureza Dessas gemas risonhas, O meu olhar, turvado de tristeza, Teve os sonhos que sonhas, criancinha, Que teu brilho já teve, quando tinha O que não mais se tem, depois da Idade, Uns olhos de criança! E uma saudade Me acode à alma e grita e grita! Ao pensamento, De que à criança agora tão bonita

Há-de faltar a esperança Quando, pr’além do Tempo, Ante o fulgor de uns olhos de criança, Como eu hoje, vir que vida lhe foge, vir que vida lhe foge!

* Poeta. Faleceu em 20/07/1981


SOBRE O ANTlGO TOPÓNIMO “MERDESES” DE CANELAS (GAlA) Pe. Domingos A. Moreira* Mereceu já a atenção de Joseph M. Piel (1) o topónimo “Merdeses”, assim escrito num documento de 1042 (2), onde figura com outros como “negrelus” e “sancto iohanne” que conjuntamente mostram estarmos na área de S. João de Canelas (Gaia) como também anotou o Sr. Dr. Francisco Barbosa da Costa (3). Como o sufixo – enses / -eses, do tipo toponímico Coruñeses (“colonos vindos da Corunha”), etc. (cfr. topónimos Bragueses, Guilhadeses, etc. (3b), relacionados com

Revista Portuguesa de filologia, voI. IV, Coimbra, 1951, p. 204 (ou p.15 da separata). Portugaliae Monumenta Historica, Diplomata et Chartae, p.196, n.º 320. (3) Francisco Barbosa da Costa, S. João Baptista de Canelas – Notas Monográficas, Canelas, 1980, p. 77. (3b) Minhãos in Lucerna, Porto, 1984, p. 313. (3c) Joseph M. Piel, Miscelânea de Toponímia Peninsular, Coimbra, 1951, p. 15 (separata da Revista Portuguesa de Filologia, vol. IV, Coimbra, 1951, p. 204); Pedro Cunha Serra, Contribuição Topo-Antroponímica para o Estudo do Povoamento do Noroeste Penínsular, Lisboa, 1967, p. 57, refere-se ainda ao topónimo leonês Merideses. (1) (2)

* Pároco de Pigeiros.

Braga, Guilhade, etc.) tem um valor étnico como é bem conhecido, Joseph M. Piel e Pedro Cunha Serra não viam (3c) por isso a possibilidade duma relação com o vocábulo vulgar merda “sujidade, excremento”, pelo que acabou por o supor relacionado com o nome da famosa cidade de Mérida, isto é, *Mer’denses / Mer’deses (“colonos vindos de Mérida”) mas não deixava de lembrar o inconveniente da falta da vogal i na suposta derivação * Mer’denses / Mer’deses (por Meridenses / Merideses), pois era de esperar * Meride(n)ses; por outro lado a mesma vogal i já existia no topónimo Meridãos de Tendais (Sinfães) que Joseph M. PieI supunha também relacionar-se com Mérida tal como a antiga forma toponímica Coimbrãos / Coimbrões (Gaia, etc.) com o nome da bem conhecida cidade de Colimbria / Coimbra. Por outro lado, a suposta relação de Meridãos com Mérida fica ainda mais prejudicada pelo facto de as formas antigas “Mirudaos” e “Miridaos” em 1258 (4) não apresentarem a vogal e de Mérida na sílaba inicial,

(4)

Portugaliae Monumenta Historica, Inquisitiones de 1258, p. 978-979.

181


182

pois essa vogal e, sendo tónica na palavra originária, tinha tendência a manter-se, pelo menos algumas vezes, na palavra derivada, pois nunca apareceu uma variante *Meridãos, como seria de esperar, quando na primeira suposição de Mérida e *Mer’deses já haveria hipoteticamente desigualdade de tratamento fonético. Por consequência, todo este ambiente e estado da questão mostra que o assunto ainda continua em aberto à espera de mais dados e esclarecimentos. Ora uma nova perspectiva para sairmos deste impasse (para usarmos um modo corrente de falar) será a que passamos a apresentar. Merdeses pode bem significar “colonos” procedentes dum sítio ou local denominado “Merda”. De facto, não conhecemos a existência do topónimo Merda. Mas não admira, pois os topónimos de nome pouco ou nada lisonjeiro como este não se prestam a continuar, porque os seus habitantes, por vergonha ou razões de prestígio, procuram mudar o nome da terra como aconteceu com Água Choca (S. Paulo) que foi substituído pelo nome de Montemor, Escumalha pelo de Vilamar, Porcalhota substituído por Amadora (5), Vale de Ladrões substituído por Val Flor (6) que é uma freguesia do concelho de Meda no distrito da Guarda e entre nós a freguesia medieval de Vilar de Porcos mudou o nome para a actual Vilar do Pinheiro no Concelho de Vila do Conde. Podia também acontecer que o topónimo Merda deixasse de ser povoado, passando à chamada toponímia menor (de simples sítio) e por isso de mais difícil localização e identificação. Se designações pouco lisonjeiras como estas têm dificuldade de aguentar-se na toponímia, já na hidronímia podem permanecer como se vê da

I. Xavier Fernandes, Topónimos e Gentílicos, voI. I, Porto, 1941, pp. 26-27. M. Gonçalves da Costa, História do Santuário da Lapa, 2ª ed., Lamego, 1983, p.125, nota 5.

(5) (6)

terminologia variada de nomes de rios caracterizada pela sujidade das suas águas: rio Sucio em Granada(7) de sentido oposto ao rio Águas Limpias afluente aragonês do rio Gállego(8) como já anotou Schulten(9) ao falar do rio Merdancho (afluente do Douro) morfologicamente comparável ao rio Veqancho afluente do Agadón em Salamanca(10) ; rio Lameirão afluente do Alge(11) , do conhecido vocábulo lama; “Torrente Lotosam”(12), “agua de lodoselo” em 1258(13), de lodo; rio “Bouzzane” e “Bozançon” em 1237, comparável ao francês bouse, antigo provençal boza e piemontês buzza “bosta de vaca”(14); rios “Borbontia” sec. IX e “Borbo” em 1352 na França e português “fluvium de Borua” no séc. XII, comparáveis ao francês antigo borbo “lodo”(15); rio “Natosam” do séc. X, de * nattosus, “lodoso”(16); “rivus de Braon” em 1280 relacionável com o francês antigo brai e antigo provençal brac,“lodaçal”(17); “Rivus Stercorius” na Itália(18), de esterco. Daí não surpreender a existência de nomes de rios alicerçados no tema conhecido merda: Em Portugal: “fluvii merdarii” em 1258(19) em S. Miguel de Creixomil - Guimarães;

Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana Espasa Calpe sub voce Guadalfeo. citada (na nota 7) Enciclopedia ... sub voce Gálleqo. (9) Adolf Schulten, Geoqrafia y Etnografia Antiguas de la Península Ibérica, vol.II, Madrid, 1963, p. 83. (10) citada (na nota 7) Enciclopedia... sub voce Aqadón. (11) Américo Costa, Dicionário Corográfico de Portugal Continental e Insular sub voce Alge. (12) Paul Lebel, Principes et Méthodes d’Hydronymie Française, Dijon, 1956, p.172. (13) citadas (na nota 4) Inquisitiones de 1258, p.382. (14) citados (na nota 12) Principes..., p.283, 152. (15) Academia Portuguesa de História, Documentos Medievais Portugueses, vol. I, p.180; citados (na nota 12) Principes..., p.350, 286. (16) citados (na nota 12) Principes..., p.172. (17) citados (na nota 12) Principes..., p.286. (18) Zeitschrift fur Romanische Philologie 57 (1937), p. 545. (7) (8)


“Rio merdeiro” em 1258 (20) em Refojos - Arcos de VaIdevez; “in ripa de merdario” em 1258 (21) na zona de Lamego; “ribolum merdarium” em 1151 (22) na área de Ourém; “rivus Merdeyro” em 1258 (23) na zona de Sernancelhe; Em Espanha: águas que correm dos “collados de Merdanya” para o rio Ter na Catalunha e os rios Merdars, Caqanel, Merdansar, todos afluentes do Ter(24); Merdansol afluente do catalão Llobregat (25); Merdanchel afluente do Guadiela em Cuenca(26); Na França e Bélgica (27) : Cagantiolus em 940, Caqarel, Merdarel e Merderel, Merdos, “Merdantium flumen” em 1144, Merdantiu em 937, Merdentio, Merdereau em Sens, Merdanchon em Troyes, RecMerdier em Narbonne, Merdanchon em 1019, Merdenchul e Merdeçuel no séc. XIII, Rieu Merdier em 1295, “la font – Merdière”, “Fons Merdieira” em 1262, Ri Merdior em 1192, Merdarellum (mais de 40 rios), Merdans, 7 rios Merdanson e 1 rio Mardanson (com vocalismo a), Merdaret e Merderet, Merderon, Merdari, Merdaric e Mardaric, Mardaing, Mardoine, Merdisson, Mardon, Merdols, “Merdaric” em 1359 e hoje Merlary e possivelmente Merlançon, “Merdizun” em 1179 e hoje Merchoul afluente do Mosa em Liège, “ryvola de Merdessonz” em 1311 e hoje le Merderel

(19) citadas (na nota 4) Inquisitiones de 1258, p. 710 e 738, cfr. Vimaranis Monumenta_Historica, p.113; citados (na nota 15) Documentos Medievais Portuqueses, vol.I, p.289; Carlos Alberto Ferreira de Almeida, Arquitectura Românica de Entre Douro e Minho (Tese de doutoramento na Faculdade de Letras da Universidade do Porto), vol. I (1978), p.169. (20) citadas (na nota 4) Inquisitiones de 1258, p. 395. (21) citadas (na nota 4) Inquisitiones de 1258, p. 1031. (22) Drª. Abiah Elisabeth Reuter, Chancelarias Medievais Portuguesas, vol. I, Coimbra, 1938, p . 225. (23) citadas (na nota 4) Inquisitiones de 1258, p.1101. (24) citada (na nota 7) Enciclopedia... sub voce Ter. (25) citada (na nota 7) Enciclopedia... sub voce Llobregat. (26) citada (na nota 7) Enciclopedia... sub voce Guadiela. (27) Albert Dauzat, Gaston Deslandes, Charles Rostaing, Dictionnaire Etvmologique des Noms de Rivières et de Montagnes en France, Paris, 1982, pp. 64-65, cfr. 30, 76 e 144; Zeitschrift für Romanische Philologie, vol. 79, fascículo 3/4, Tubingen, 1963, p.352; citados (na nota 12) Principes..., p. 44, 101, 108, 140, 154, 163, 346, 347.

no departamento de Isère, “rivus Merdoncia” em 901, “rivum de Merdanso” em 1293, “Merdanzon” em 1345 e hoje Merdançon em Ain. Na Itália (28): Merdarola, Rui Merder, Merdaruol, “Merdario”, “Rivus Merdarolus”, “Rivus Merdarius”, “Ri Merdar”, “Merdarellus” e “Mardarellum” (com vocalismo a), “Merdarel”, “Mardolosa”, “Ponte Merdeto”, “Poggio Merdaiolo”, “Valle Merdarullo”, “Rivus Merdero” e hoje Mardereau, Merdasson e Merdesson e Merdeschon, Merdenson, Merdanzo, “Aqua Merdançoni”, Mardanzone e Merdansun, Merdero a par de Smerdaro e Smerdarolo (com s inicial). As formas com s- inicial são uma variante que aparece também na forma zmerdera no dialecto de Bérgamo (e possivelmente no romeno desmerda); a mesma duplicidade de formas consta também doutras línguas indoeuropeias como letónio smerdelis “fedor”, lituano smirdeti “cheirar mal”, grego σμορδωνας “fedores”, grego homérico σμερδαλεος “horrível”, gótico smaithr e smar-na “gordura”, anglo-saxão meortan “fazer mal” e alemão schmerzen “dar pena”(29). Outros exemplos diferentes do mesmo facto apresentámos no nossa estudo sobre topónimo “Tropeço” (Trep- e -estrep-) publicado nas “Actas das I Jornadas de História e Arqueologia do Concelho de Arouca”, Arouca 1987, p.104. Toda esta nomenclatura, alusiva à imundície dos rios, tem hoje infelizmente uma grande actualidade na chamada poluição industrial das correntes fluviais.

Zeitschrift fur Romanische Philoloqie, \/ol. 57 (1937) pp. 544-546. Julius Pokorny, Indogermanisches Etymoloqisches Wörterbuch, vol. I, Berne e Munique, 1959, p. 970 e 736-737; A. Walde e J. B. Hofmann, Lateinisches Etymologisches Wörterbuch, vol. II, Heidelberg, 1954, sub voce merda, p.75; Pierre Chantraine, Dictionnaire Etymologique de la Langue Grecque, Paris, 1968, sub voce σμερδαλεος p. 1027; H. C. v. d. Gabelentz e J. Loebe, Glossarium der Gothischen Sprache, Leipzig, 1843, p.165; Winfred P. Lehmann, A Gothic Etymoloqical_Dictionary, Leiden, 1986, p.315 e 316.

(28) (29)

183


184

O MOMENTO A Maria Teresa Amorim Edgar Carneiro* É do momento incerto que se fala não medido por horas ou por dias mas apenas e só do abrir e fechar das asas e das flores, do som, do tom, das cores de tudo o que se move neste mundo e como um círio ou súbito relâmpago se ilumina e desfaz em menos de um segundo. * Nasceu em Chaves em 1913. Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra. Foi professor dos ensinos técnico-profissional e secundário. De 1967 a 1974, dirigiu a Escola D. Pedro V, a primeira a funcionar em Fiães, neste concelho. Reside há 38 anos em Espinho, foi distinguido pela Câmara local com a Medalha de Mérito. Tem 11 livros de poesia publicados, o último dos quais saiu a lume em 2003 e tem por título «Depois de Amanhã».


Desenho de Mourato.

O PONTO DE PARTIDA DAS PREOCUPAÇÕES RELIGIOSAS EM UNAMUNO E EM TORGA Carlos Carranca* A poesia é, ilusão antes de ser conhecimento; a religiosidade é ilusão depois de ser conhecimento. A poesia e a religiosidade suprimem o ‘vaudeville’ da sabedoria mundana do viver. Louco é todo o indivíduo que não vive poética ou religiosamente.1 Miguel de Unamuno O Homem e o problema da sua (i)mortalidade determinam o percurso literário de Torga e de Unamuno. Não é Deus o fundamento imediato da religiosidade destes dois poetas agónicos. O fundamento é o Homem. Nem Unamuno, nem Torga, estão dispostos a aceitar alguma ortodoxia, e concretamente a católica, a única possível para eles. A religiosidade em ambos

1

Sentimento Trágico da Vida, Relógio d’Água, Lisboa, 1988, pág. 162.

* Investigador, Poeta e Escritor.

manifesta-se pela ansiedade, pela angústia, pela inquietação. A religiosidade é uma sublimação do que há de mais fundo no Homem – o momento genesíaco. Em Miguel Torga a Poesia é assumida como uma religião oposta a Deus. É a religião de Deus que o faz cair no pecado e é contra ela que luta em busca da pureza original, da Palavra Perdida. Poeta intuitivo, Torga vê em Deus o poder absoluto, que limita a acção humana. Por isso, ele busca no mais fundo de si a liberdade. Liberdade interpretada como conquista individual, de dimensão trágica. Esta conquista afasta Torga do céu de Deus e confere-lhe um estatuto divino (absoluto). Absolutamente Homem, preso à terra, único paraíso possível. Partindo do seu lugar de origem, da sua terra natal, Torga vai (re)criar o mundo, o seu mundo de artista, alargando-o a todos os quadrantes. Torga, poeta moderno, sabe que o seu valor de artista depende da originalidade, da autenticidade e que, quanto mais for ele próprio, mais universal e poderosa será a sua obra.

185


186

Escultura de João Oom.

Escultura de José de Moura

A obra literária de Torga é marcada pela angústia religiosa de quem procura, como artista, a pureza original – a Palavra Perdida. A palavra que originou o mundo. A palavra essencial. Sempre que Torga toma os motivos religiosos católicos, não lhes dá uma interpretação de acordo com o dogma da igreja, fá-lo sempre como poeta, segundo a sua crença, tentando ser fiel à Poesia. A vida é para ser cantada pelos poetas e não para ser encarcerada no espartilho das verdades massificadas. Torga não passa ao lado de Deus, pela mesma razão que não passa distraído pela Vida. Para Torga, o Homem é o deus absoluto da terra. Nela está condenado a servir e a servi-la, e nela obrigado a transcender-se. Não aceita a existência concreta de Deus, mas sente-A. O que tem para dar, parte do seu individualismo sem transigências, A Torga e a Unamuno faltou-lhes a humildade dos que veneram sem compreender, como também a fé na capacidade da razão para chegar a entender. Torga é o bicho-homem que em seu esforço de realização no decurso do tempo, na luta contra todas as forças escravizantes – inclusive Deus – num esforço de superação, procura substituir-se a Deus, acabando sempre por se deixar agrilhoar, qual Prometeu, à sua trágica condição humana. É então que o Menino se revela necessário, dando esperança ao Homem, a um Homem que se procura novo, libertador e libertado para o verdadeiro humanismo – leia-se, o verdadeiro cristianismo. De que cristianismo se trata? Não do histórico, mas do ideal, do que aproxima Deus dos homens e não os homens de Deus. O Menino ideal que realiza a suprema


Escultura de Joaquim Correia

transcendência – a salvação do Homem pelo menino homem do futuro. O que marcou a infância de Torga foi a predominância de um cristianismo de sofrimentos vários. Um cristianismo mais sexta-feira de Paixão que domingo de Ressurreição. Em Torga é notório que o cristianismo, para preservar a sua verdade, necessita de se enraizar como religião humanista e, ao mesmo tempo, sobrehumana, onde o Menino, símbolo de esperança no futuro da humanidade, preencha os dois campos, por ser nosso e concreto, como os dias, e sobre-humano, porque divino na nossa fé. Afirmativamente divino, símbolo de esperança, vem resgatar a humanidade da decadência e do aviltamento espiritual. Qual o ponto de vista das preocupações religiosas em Unamuno?

O Homem e o seu problema de imortalidade. Não é Deus o fundamento imediato da sua religiosidade, mas o Homem. O problema do Homem é o problema de Deus, consciente de que a razão não o leva ao Seu conhecimento. A singularidade de Unamuno não o deixa permanecer numa posição ortodoxa, por esta ser inautêntica e massificadora. Unamuno rejeita as provas tradicionais da existência de Deus. Quando fala de salvação não a entende como beatitude celestial em contraste com a condenação eterna, tão simplesmente e só, a salvação do nada, da aniquilação da morte. Unamuno situa-se numa tradição vitalista cristã, mantida e enriquecida pela leitura frequente do Novo Testamento. Unamuno vive o problema que o cerca de contradições e reside na procura de uma religião que liberte, que não esteja sujeita a dogmas, e seja individualista. Uma fé (confiança) religiosa mais que teologal, uma fé pura e livre. Qual é o conteúdo religioso da obra de Unamuno? É querer salvar-se e também salvar o mundo, aparecendo Deus como uma finalidade sentida. Não é necessidade racional, mas angústia vital que o leva a crer em Deus. O Deus de Unamuno, como o de Torga, é suporte e fundamento da existência humana. Em Unamuno, como em Torga, a relação com Deus é uma relação pessoal com o divino. É curioso verificar o papel da razão na relação de Unamuno com a procura da verdade. Temos a razão como faculdade de pensar formas fixas e universais, e

187


188

porque ela é essencialmente individual e dinâmica, é insuficiente para chegar à verdade. Razão e Vida opõem-se. A Razão não satisfaz o Homem de carne e osso que deseja saber se morre para sempre, ou não. Razão e Fé são dois enigmas que não podem viver um sem o outro. É desta oposição entre Razão e Vida, que surge a luta, a agonia. A Razão e o Sentimento chocam, por isso há luta. É desta luta que surge “Do sentimento Trágico da Vida”, marco do pensamento agónico do mestre salamantino e que virá a marcar, também, profundamente, Miguel Torga. Unamuno é o poeta-profeta que sente dentro de si contradições insanáveis e se ergue, enfrentando Deus, O interroga e O põe em causa como fará seu discípulo Torga (tal como Holderlin, Torga acredita no Poeta como arauto de uma nova humanidade). Em Unamuno e em Torga reside o sentimento trágico da vida. Dois sentidores que não se resignam à morte. A integridade do indivíduo desde o nascimento à morte é uma constante na obra dos dois escritores ibéricos. Tudo é luta contra a morte, ou seja, agonizar. Ambos partem, como os existencialistas, da existência para a essência. O sentimento trágico da vida percorre a obra de Torga. Torga renega Deus por desespero de não O encontrar. Sente a presença divina. Não aceita a existência concreta de Deus, mas sente-a. Deus não se dá a conhecer... Atente-se à profusão de signos extraídos da lexologia do cristianismo, constantes na sua obra. Frente ao Nada aterrador, Unamuno vive, na agonia, no problema da morte, querendo salvar a

vida: La fe en Dios arranca de la fe en nuestra propia existencia sustancial. Unamuno vive numa neblina sentimental. É que ele, como o afirma Laranjeira, não era filósofo, não era sábio, era artista, raciocinava com a lógica afectiva. Para Unamuno, a razão não era suficiente para chegar à verdade. Talvez ninguém o tenha compreendido melhor que o português da Feira, Manuel Laranjeira: Unamuno ainda. Com a violência de quem precisa enganar-se, Unamuno proclama a fé, diz que é preciso ter fé. Compreendo: Unamuno quer ter fé, debate-se, e sente-se homem – sem fé. Raciocinar a fé é duvidar. A fé morreu. Unamuno quer reanimar as cinzas mortas e desvaira porque as cinzas lhe gelam as mãos. A fé não se demonstra, crê-se. E Unamuno quer demonstrar a fé. Eis o seu drama íntimo, Santo Agostinho cria porque era absurdo. Unamuno quer libertar-se da lógica e a lógica destroçao. Compreendo como deve ser horrível o drama deste homem que grita a imortalidade da sua fé, a indestrutibilidade viva da sua fé, e a sente agonizar no fundo da alma.2 Só na ilusão de Deus é que Deus existe. E o grito de fé de Unamuno é o de um crente que deixou de acreditar, mas necessita de continuar essa ilusão sem fé. Recorro, uma vez mais, a Laranjeira para reforçar, quanto possível, esta afirmação: Penso em Unamuno e no seu drama íntimo. O grito de fé deste homem faz-me lembrar uma lâmpada que, antes de extinguir-se, despede clarões mais intensos, mais vivos, como a chama agonizante de uma lâmpada, a fé de Unamuno oscila, esvoaça... Quer crer e não pode 2

Manuel Laranjeira, Diário Íntimo, Edições Vega, Lisboa, pp. 113, 114.


crer deseja ter fé e não pode sufocar a dúvida – eis a tragédia.3 Os textos de Laranjeira são de extrema lucidez. Um grande analista da sociedade e da mentalidade portuguesas, sem que nessa análise se vislumbre qualquer influência de Unamuno. Contudo, o contrário verifica-se, sendo grande a admiração de Unamuno por Laranjeira. Terá sido, estou certo, este sentidor da Feira o principal responsável pela visão que o poeta salamantino criou de Portugal, de um certo Portugal. Uma das afinidades entre os dois, residia no permanente conflito entre a fé e a razão, a curiosidade pelo suicídio (a última carta de Laranjeira, escrita antes de se suicidar foi dirigida a Unamuno), a interpretação da alma portuguesa e los abismos tenebrosos del alma humana. Frente ao nada aterrador, Unamuno vive completamente: E se é o nada que nos está reservado, façamos então com que isso seja uma injustiça.4

3 4

Op. cit., pág. 114. Sentimento Trágico da Vida, Relógio d’Água, Lisboa, 1988.

189


190

EU SOU... TU ÉS... Manuela Correia* Eu sou o pássaro que dorme tu és a brisa que o embala

Eu sou sempre a trémula palavra Dúvida tu és sempre a firme palavra Todavia

Eu sou o entardecer letargo tu és a aurora sempre em movimento

Praia de Cabanas – Tavira, 01.07.19

Eu sou o soluço de uma litania tu és o grito de um hino Eu sou a flor que fecha se tem sede tu és o regato predisposto a abri-la Eu sou a lágrima que no frio tem fissuras tu és o sorriso pronto a restaurá-las Eu sou na sombra uma casa vazia tu és o sol que vem mudar-lhe o estado Eu sou na bruma a bruma que se perde tu és a bússola que sempre a encontra Eu sou a jangada à beira do naufrágio tu és a caravela que no regaço a recolhe

* Nasceu na aldeia de Cabrum, concelho de Vale de Cambra, em 1961. Em Vale de Cambra, durante a frequência do liceu, aprendeu o gosto pela poesia. Iniciou a sua actividade profissional aos 18 anos e aí viveu durante anos. Actualmente exerce a sua actividade profissional no Porto e reside em Santa Maria da Feira, Vila Boa. Tem colaborado em muitas sessões e tertúlias de poesia. Livros publicados: - “As nuvens não são mais de algodão”, de 2000. - “Poemas Tri Angulares”, de 2002. - “Interlúdio d’ Eros”, de 2003. - “Escritos de Areia” de 2005.


Fotografia de João Tavares

UMA BELA HOMENAGEM AO POETA MIGUEL TORGA António Rebordão Navarro* 12 de Agosto de 2007. Santa Maria da Feira. Jardins de “A ver o sol”, palpitante e aprazível local de convivência. Neste dia em que, lá fora, encerra a Feira Medieval, nasceu há cem anos Miguel Torga. São 17,30. Alguns amigos agrupam-se junto a um pedestal de granito polido sobre o qual um pano cobre uma forma ainda desconhecida. Conservam nas mãos folhas de papel A4 onde estão impressos vários textos. Vai ser prestada homenagem ao escritor centenarizante. Ao escritor e à sua ligação a estas terras, a estas gentes. E alguém lê este texto que em tempos abrira um encontro entre o Poeta, a Comissão de Vigilância pela Guarda e Conservação do Castelo e a LAF (Liga dos Amigos da Feira): 11 de Setembro: Depois de tostar a pele na Torreira e de passar revista à flotilha da Murtosa, * Poeta e Escritor.

vim ver a ria daqui, deste castelinho de chocolate, acabado de sair do forno. Parece que os Templários combatiam nestas ameias autênticos e ferozes inimigos. Eu, porém, debruço-me nas ameias sem rancor nenhum, a ver pacificamente reflectir-se na água um Portugal bucólico, que mesmo quando ergue fortalezas faz disto. O dia, até há pouco um tanto pardo, abriu-se em forte sol, espalhando no chão, como uma renda, as sombras da folhagem. E soa uma outra voz evocando de Miguel Torga uma passagem do seu livro “Portugal”: A realidade que irmana a grande família ribeirinha não é o fogo preso das festas da Agonia, nem a lealdade do castelo de Vila da Feira à primeira voz da Pátria, nem a sedução dos braços líquidos da ria, nem a podridão fecunda das valas do Mondego, nem a música oceânica do pinhal de Leiria, nem a desabrigada tristeza alentejana, nem a brancura das amendoeiras em flor. E a força da

191


maré que sim ou não deixa encalhar o barco em porto de salvamento. Um porto que é sempre a mesma praia imensa, estéril e fatigada, onde as mulheres, Cassandras eternamente de luto, rezam e profetizam. Por último, alguém lê este fragmento do “Diário”, referente ao dia 30 de Novembro de 1983, data em que em Santa Maria da Feira foi erigido o monumento a Fernando Pessoa: Inauguração de um monumento a Fernando Pessoa. No fim da cerimónia, em que colaborei ofereceram-me a bandeira nacional que o cobria. E vou guardá-la por duas razões. Por ser o símbolo da Pátria e por ter envolvido emblematicamente a glória do poeta. Glória pura que, como poucas, merecia a graça desse póstumo calor materno. Ninguém antes tinha realizado o milagre de criar de raiz um Portugal feito de versos.

192

Depois é descerrado o pano sobre o pedestal. E surge a estátua em corpo inteiro, esse corpo que parecia uma árvore, do poeta Miguel Torga, numa escultura de Alves André. Estava finda a homenagem. Homenagem cheia de significado e calor humano, homenagem sincera, sem alardes nem pompas, mas vibrante e vivida como um belo poema.

Escultura de Alves André


MIGUEL TORGA E FEIRENSES EXECUTIVO LAF

PARA A MEMÓRIA DO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE MIGUEL TORGA E DAS SUAS VISITAS À VILA DA FEIRA FICA O AGRADECIMENTO – HOMENAGEM QUE LHE FIZERAM ALGUNS FEIRENSES E QUE CORREIO DA FEIRA REGISTOU NA SUA EDIÇÃO DE 07 DE MARÇO DE 1980: Escultura de Aureliano Lima

«Miguel Torga e Feirenses No último sábado, dia 1, deslocaram-se a Coimbra, para um encontro com Miguel Torga – vulto maior entre os maiores poetas portugueses de sempre — elementos da Comissão de Vigilância pela Guarda e Conservação do Castelo (Padre Albano de Paiva Alferes, Carlos Maia e Manuel Tavares) e da L.A.F. (Dr. Celestino Portela, Deputado Alberto Camboa, Engenheiro Rui Serrano e José Manuel Leão).

Eu porém, debruço-me nelas sem rancor nenhum, a ver pacificamente reflectir-se na água um Portugal bucólico, que mesmo quando ergue fortalezas faz disto» Ao poeta foram oferecidas lembranças várias, alusivas às Terras de Santa Maria.» Correio da Feira, 07-03-1980, p2

O encontro, que durou duas horas e meia, foi iniciado pelo Padre Albano Alferes que leu uma «nota» de 1949, publicada no «Diário V» de Miguel Torga. «Castelo da Feira, 11 de Setembro — Depois de tostar a pele na Torreira e de passar revista à flotilha da Murtosa, vim ver a ria daqui, deste castelinho de chocolate, acabado de sair do forno. Parece que os Templários combatiam nestas ameias autênticos e ferozes inimigos.

Pe. Albano, Dr. Celestino Portela, Manuel Tavares e Dr. Alberto Camboa. José Manuel Leão, Eng. Rui Serrano e Carlos Maia.

193


194

Cigarras de Cnossos João Pedro Mésseder* Às doze horas de um dia de Agosto as obstinadas cigarras de Cnossos dirão à multidão errante que sempre estiveram ali. Como o eco obsessivo do deus que entre as chamas do lume doméstico nos ásperos trilhos da montanha nas lides sangrentas do touro foi a sombra de cada homem.

* Nasceu em 1957, no Porto, onde completou os seus estudos universitários e exerceu a docência. Publicou seis livros de poesia (os últimos intitulam-se Abrasivas e Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética), catorze títulos na área da literatura para a infância e uma antologia da poesia de Carlos de Oliveira. Três dos seus livros foram premiados.


195

POSTAIS DO CONCELHO DA FEIRA Ceomar Tranquilo* A – Postais ilustrados 55 – Caldas de S. Jorge – Um Trecho do rio (lavadeiras) Edição da Pensão do Parque Cliché de Abílio Gomes

* Cminheiro por feiras, lojas e mercados.


55 – A – Reverso do mesmo postal Caldas de S. Jorge, Pensão do Parque, 10-08-41 Selo de $25, do Centenário do Selo Postal. circulado para o Porto. “Na inércia a que esta penitência me obriga e me coloca, lembrome tantas vezes do meu bom amigo...” Francisco de Carvalho.

196

55 – B – Reverso do mesmo postal. 14-08-51 Selo de $50, série Caravela. Circulado para o Porto “Felizmente tenho tirado bom resultado e já aumentei de peso, graças ao repouso que tenho feito e ao ar dos pinheiros, que me abriram mais o apetite”. Maria Odete.


197

Lojas de venda de calçado directamente da fábrica ao público Santa Maria da Feira Pinhel Lordelo/Guimarães Póvoa de Varzim Viseu

Rohde - Sociedade Industrial de Calçado Luso - Alemã, Lda. Lugar do Cavaco Santa Maria da Feira

Apartado 11 4524-909 Feira Portugal

Tel. 00 351 256 377 000 Fax. 00 351 256 377 008 E-mail: rohdefeira@rohde.pt


198


199


200


201

Clube Feirense Associação Cultural


202

Fundação Comendador Joaquim de Sá Couto


203


204


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.