1
CAPA
FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO DEZEMBRO DE 2012
RADIAL LESTE: ENSAIO PROJETUAL NA METRÓPOLE CONTEMPORÂNEA TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO
BANCA Prof. Dr. Jorge Bassani | orientador Prof. Drª. Karina Oliveira Leitão | fauusp Prof. Arq. Wanderley Ariza | convidado
Agradeço, não necessariamente nesta mesma ordem
ao Bassa, Wander e à Ká por me orientarem por coisas além dessa tal de arquitetura; à mamãe que ainda me chama de vinicinhus; ao meu pai que nasceu há 10 mil anos atrás; às amigas e amigos que me chamam por “viiini” ou outra alcunha, em especial ao Vidro, ao NADA, à Maleta, ao São João da Barra e à Green Hair que contribuiram com este trem chamado caderno; ao Giordano; à gatinha; aos meu irmãos, avós, e outros que compartilham de alguma parcela do meu código genético; à Maria Quitéria da Calunga.
AGRADECIMENTOS ao Palmeiras não, porque ser rebaixado de novo não ajudou em nada!
Ridin’ down the highway Goin’ to a show Stop in all the byways Playin’ rock ‘n’ roll Gettin’ robbed Gettin’ stoned Gettin’ beat up Broken boned Gettin’ had Gettin’ took I tell you folks It’s harder than it looks It’s a long way to the top if you wanna rock ‘n’ roll It’s a long way to the top if you wanna rock ‘n’ roll If you think it’s easy doin’ one night stands Try playin’ in a rock roll band It’s a long way to the top if you wanna rock ‘n’ roll Hotel motel Make you wanna cry Lady do the hard sell Know the reason why
Gettin’ old Gettin’ grey Gettin’ ripped off Under-paid Gettin’ sold Second hand That’s how it goes Playin’ in a band It’s a long way to the top if you wanna rock ‘n’ roll It’s a long way to the top if you wanna rock ‘n’ roll If you wanna be a star of stage and screen Look out it’s rough and mean It’s a long way to the top if you wanna rock ‘n’ roll It’s a long way to the top if you wanna rock ‘n’ roll It’s a long way to the top if you wanna rock ‘n’ roll It’s a long way to the top if you wanna rock ‘n’ roll Well it’s a long way It’s a long way, you should’ve told me It’s a long way, such a long way
Angus Young, Malcolm Young and Bon Scott.
11 resumo 13 introdução 21 cidade contemporânea 44 metrópole paulista 77 ensaio projetual última página
bibliografia
SUMÁRIO
RESUMO
11
A motivação e objetivo principais do presente trabalho é propor uma ideia de metrópole mais justa socialmente. Não tem pretensão de criar uma ideia original, mas apenas – e isso de mostrou durante o percurso ser de elevado grau de dificuldade – apropriar-se das discussões existentes nesse sentido tanto de análise quanto de propostas, para revelar na síntese delas a ideia a ser proposta. Para atingir este objetivo, o trabalho cruzará duas linhas de pesquisa consideradas paralelamente, uma em cada capítulo. A pesquisa sobre as principais teorias urbanísticas que deram forma durante o século XX às maiores e principais cidades do mundo é a primeira delas. Nesse capítulo uma breve antologia teórica comentada tentará dar conta de explicar no campo urbanístico: qual era o projeto de metrópole do início do século XX (a cidade funcional modernista); porque ele não funcionou como pretendia-se; e quais foram as reações que gerou um novo projeto, esse ainda em fase de teste, a ‘cidade contemporânea’. No capítulo seguinte e também de forma breve, será apresentada uma análise de São Paulo mostrando histórica e conceitualmente como se formou enquanto metrópole, espelhando-a à evolução conceitual apresentada no capítulo anterior. A intenção, por um lado, é mostrar como apesar de muito descontrolada e rápida, toda sua trajetória de desenvolvimento se deu paralelamente à evolução das teorias urbanísticas e, por outro, como essas teorias foram subvertidas em favor da injustiça social ou simplesmente não deram conta de intervir num contexto diferente dos quais elas foram geradas. No último capítulo será apresentado um ensaio projetual que se baseie nas leituras dessas teorias aplicando-as
no universo metropolitano paulistano, mas tomando um justo cuidado para se diminuir as possibilidade de ser subvertido e aplicado como uma “ideia fora do lugar”. Uma motivação secundária, mas muito importante, é totalmente de cunho pessoal. Desde muito antes de iniciar o Trabalho Final de Graduação, imaginava como ele poderia me fazer evoluir como pesquisador/projetista apto a exercer a deliciosa profissão de arquiteto e urbanista. Nesse sentido, os temas escolhidos e a escala da intervenção foram propositalmente e conscientemente definidos por saber que eu teria enorme dificuldade em compreendê-los em sua complexidade, principalmente ao tentar relacioná-los. A cada olhada para as plantas da cidade me mostrava uma dimensão mais profunda; a cada página lida de alguma teoria me revelava mais dimensões possíveis. E a cada tentativa de relacionar um com o outro me colocava mais inseguro sobre o primeiro traço a ser desenhado e a primeira palavra a ser escrita. Por esse motivo - e tenho consciência de que não é uma justificativa muito convincente – o texto foi escrito de forma relativamente fragmentada. Em algumas vezes a sequência de temas se confunde um pouco, inclusive com algum grau de prolixidade e redundância. Isso se deveu a uma tentativa de não engessar a articulação das ideias expostas a uma linearidade que explique passo a passo a discussão. Espera-se que o leitor compreenda no conjunto dos temas levantados paralelamente, muitas vezes em tópicos, as relações estabelecidas pelo trabalho que nem sempre estarão muito explícitas e claras.
INTRODUÇÃO
13
No contexto atual das metrópoles contemporâneas, multidões se cruzam diariamente em atividades múltiplas, mas quase sempre subordinadas de alguma forma ao processo produtivo de mercadorias e cultura, seja para produzir ou consumir. Compõem uma intensidade de fluxos que ocupa as 24 horas do dia conectando moradias, comércio, empregos, instituições, espaços culturais ou simplesmente nas tarefas cotidianas como ir à padaria ou visitar amigos. Essa rede de fluxos está intrinsecamente conectada à estrutura de cada lugar: onde se localizam os empregos, como as classe sociais se dividem pelo território, qual o nível de qualidade da infraestrutura viária e de transportes que cada bairro tem, etc. Por sua vez, a análise do território tendo em mente as relações que as diversas partes mantém entre si revela sua estrutura social: uma sociedade segregada em classes econômicas, na qual, como desvendou Marx há mais de um século, uma pequena parcela da população domina os meios de produção e submete ideológica e coercivamente todo o restante em seu próprio benefício. Ao se observar as origens e destinos dos fluxos e como cada parte da cidade é equipada revela-se quem são e onde estão cada ator desse cenário. Quanto mais uma cidade esteja inserida dentro da estrutura globalizada da economia de mercado, mais esse quadro pode ser aplicado a ela, pois esta estrutura depende e estimula, entre outras coisas, da hierarquização social em classes de distintos poderios econômicos. Entretanto, por condições em comum como proximidade geográfica e política ou fatos históricos compartilhados, essa estrutura se manifesta com definidas peculiaridades comuns a um grupo ou outro de cidades. No presente trabalho, apesar de estudarmos a capital paulista, propõe-se, mais profundamente, uma investigação sobre as metrópoles
latino-americanas, pois muitas delas apresentam semelhantes processos históricos de formação, como se verá mais adiante. Portanto, a importância desse recorte se coloca ao supor que o ensaio projetual apresentado poderia ser adaptado as metrópoles latinas e brasileiras, respeitando suas questões locais, ao passo que não teria a mesma facilidade de aplicá-lo a metrópoles com outras características como Tóquio ou Nova York, exatamente por terem formações sociais históricas diferentes.
RADIAL LESTE: ENSAIO PROJETUAL NA METRÓPOLE CONTEMPORÂNEA Em São Paulo, não é difícil identificar espacialmente onde cada estrato social ocupa seu território. Não são limites físicos precisos e nem delimitam territórios exclusivos a um ou outro desses estratos, mas é visível onde cada um deles predomina. Considerando indicadores como distribuição da população nas cidades segundo sua renda e grau de escolaridade, densidade habitacional de cada bairro, oferta de empregos por região, distribuição de equipamentos públicos, entre outros, pode-se identificar diversos perímetros de possíveis intervenções dadas as possibilidades que apresentam de sua própria transformação como instrumento de transformação da cidade como um todo. Transformar as margens do rio Tietê em parque, por exemplo, implica uma revisão de todo a estrutura de mobilidade da metrópole. São inúmeros os casos possíveis. Entretanto, entre esses diversos casos possíveis, foi escolhida a Radial Leste por entendê-la dos mais importantes produtos dos conflitos que formaram São Paulo. Nela estão registrados em diversos níveis, muitos praticamente imperceptíveis,
14
a história da cidade e deve ser a partir de sua transformação que o futuro da metrópole pode sonhar com dias melhores. No presente trabalho proponho uma intervenção urbanística de transformação desse importante eixo viário composto por uma série de estruturas como avenidas, viadutos, elevados, túneis e sistema de transporte público de massa. Para essa proposta sobre parte do conjunto que compõe a Radial Leste obter o êxito hipotético que todo projeto carrega, foi necessário intervir em alguns bairros lindeiros, tais como Brás e Belém. Algumas diretrizes de intervenção foram adotadas visando o redesenho apresentado no projeto. A intervenção nos bairros e na Radial teve de se subordinar a uma visão ampliada da cidade de São Paulo, na qual deve ser considerada sua estrutura sócio espacial em que pesem, principalmente, a distribuição da população no território, os fluxos de pessoas, informações e mercadorias e sua urbanização precária. Um projeto que interfira nessa grande estrutura que é a Radial Leste e os bairros vizinhos deve entender sua inserção no contexto municipal de uma cidade de 11 milhões de habitantes. Agravando toda essa complexidade temos a composição da Região Metropolitana de São Paulo, na qual a Radial Leste desempenha função chave em seu funcionamento. Apesar de um título bem específico e de uma proposta bem definida, a discussão deste trabalho não será exclusivamente dedicada à Radial Leste, pois mesmo que a proposta projetual se limite ao redesenho da via expressa, cada traço foi pensado em seu impacto nos bairros, na cidade e na metrópole. Portanto, o recorte territorial neste lugar pretende, em última instância, servir de base para abordar uma metodologia de trabalho para ensaio projetual. Em outras palavras, a Radial Leste como objeto de inter-
venção servirá de modelo de discussão dos problemas emblemáticos da metrópole contemporânea que foram gerados pela enorme e extremamente veloz expansão que este modelo de ocupação do território apresentou no decorrer do século XX em nosso continente.
SOBRE A AMÉRICA LATINA Basicamente, duas fontes foram suficientes para justificar este recorte: a vivência pessoal através da visita a algumas dessas cidades e a convivência com alguns de seus moradores e uma bibliografia sobre a história da formação de nosso continente.
Intercâmbio e viagens - depoimento Por conta da visita de uma grande quantidade de intercambistas europeus e latinos à FAU (holandeses, portugueses, mexicanos, argentinos, franceses, portugueses, colombiano) ficaram claras diversas características que, a despeito de sermos todos seres humanos, nos diferenciam ou nos assemelham a outros povos. É evidente nas conversas, na forma de posicionar-se perante a conflitos e situações diversas cotidianas minha quase imediata identificação que ocorria com aqueles vindos de universidades latinas. A forma como descreviam suas cidades, sua população, seus governos, sua cultura. Tudo sempre muito mais palpável do que um imaginado mundo europeu no qual a noções como a de urbanidade se encontra em outras dimensões
15
de entendimento. Não foram poucas as vezes em que ouvi um argentino descrevendo seu país como se fosse o meu ou um europeu se espantando com nossa forma de viver quase que improvisada a seus olhos. A princípio ocorre a quase natural necessidade de nos enxergarmos como seres inferiores ainda num longo caminho para se chegar ao nível europeu de desenvolvimento institucional, cultural, político. Esperando sempre pelas novas ideias vindas para nos salvar de nós mesmos (na verdade, deles) como quem pede perdão por ser o que é. E isso intercalado por diversos momentos ufanistas, esses sim, auto declarados: “melhores mulheres do mundo”, “temos as melhores praias”, “somos mais divertidos” e por aí vai. Ou então alguns dos colegas devidamente criados desde o berço já direcionados a uma visão alienígena de seu próprio país conversavam em tom blasé sobre como realmente Berlim era um exemplo de cidade cultural ou como Viena era de fato lindíssima, confirmando a suposta superioridade, mesmo que a maioria dos ‘gringos’ caiam no samba: não demora muito tempo pra perceber coisas que, talvez, de tão banais se confundam com o som ambiente e passem despercebidas. A principal delas é a de como, apesar de qualquer juízo de valor que oriente a definição do que é ou não é mais evoluído, na prática a única ideia possível de se afirmar é que somos diferentes. Passamos por processos diferentes, temos uma ideia de tempo historicamente construída como povo diferente, relações sociais e afetivas diferentes, etc. Mesmo o capitalismo que nos une a todos, nos diferencia enquanto o papel que cada país desempenha na ordem dita global. Creio que ainda falta uma consciência mais madura do que nós, enquanto latinos, temos em comum e que devemos buscar em nós mesmos, ainda que com contribuições externas, as soluções para nossos entraves.
Imagino sempre como seria se os ditos países desenvolvidos afundassem no oceano... Ficaríamos desesperados nos perguntando: ‘quem nos irá enviar o próximo filósofo, o novo conceito artístico, a nova ordem?!’ Claro que temos teóricos, artistas, cientistas do mais alto padrão como Milton Santos e Anísio Teixeira, mas ainda me parece que existe uma certa dependência conceitual externa.
América Latina, as Cidades e as Ideias A bibliografia usada aqui como referência limita-se a um único volume chamado “América Latina, as Cidades e as Ideias ”, escrito em 1976 pelo historiador argentino José Luis Romero. Outros nomes brasileiros como os sociólogos José de Souza Martins e Fernando Henrique Cardoso ou historiadores como Warren Dean e Sérgio Buarque de Hollanda, por exemplo, contribuíram em muito para a tomada de consciência sobre as peculiaridades da formação da sociedade brasileira, mas é justamente a abrangência continental dessa obra que se faz justificar. O livro classifica os diversos períodos pelo qual julga conveniente separar a história do que há de comum entre os países latino-americanos, observando justamente na inserção do continente dentro de uma economia cada vez mais globalizada o denominador comum. Começando por explicar as fundações, passando pelo que chama de “Ciudades hidalgas”, “ciudades criollas”, “ciudades patrícias”, “ciudades burguesas”, ele chega no último capítulo, que é o que mais interessa para a discussão do trabalho: “las ciudades massificadas”. As cidades massificadas é uma outra forma de nomear o mesmo fenômeno que é o das metrópoles. E a metrópole, segundo o autor,
16
só pode existir enquanto cidade massificada. Romero, nesse capítulo, inicia sua exposição a partir da crise econômica de 1930, deflagrada nos Estados Unidos: “La crisis de 1930 unificó visiblemente el destino latino-americano” (ROMERO, p.319). A escassez do fornecimento de produtos industriais dos quais dependiam os países latino-americanos para o crescimento que já despontava há algumas décadas. Com a crise os capitalistas locais de cada país investiram na indústria, ainda incipiente e limitada, seja por substituição de importações ou por falta de investimento estrangeiro, criando e/ou desenvolvendo rapidamente a economia e mercado internos. A indústria nesse momento atraía enormes contingentes de pessoas do campo para trabalhar nas cidades, sem a preocupação se a quantidade de empregos era condizente com a quantidade de pessoas que chegavam. Na verdade, essa característica sempre favoreceu a própria indústria ao configurar o conhecido conceito desenvolvido por Karl Marx ‘exército industrial de reserva’ cuja principal consequência é o rebaixamento de salários. A consequência para o sitio urbano hoje nos é obvia: enormes contingentes populacionais migrando em massa e em um curto espaço de tempo para um mesmo lugar sem o acompanhamento ou planejamento por parte do poder público, que se limitava, no caso paulistano, por exemplo, a manter uma hospedaria para cadastrar e receber por alguns dias os que chegavam em busca de trabalho. E não apenas do campo vinham as pessoas. De cidades médias e pequenas também migravam milhares a ponto de algumas delas se tornarem por um bom tempo em cidades fantasmas, como foi o caso de Ouro Preto, Tasco (México) e Sucre (Bolívia). Em pouco tempo, aquelas cidade onde se haviam construído uma sociedade segregada começaram a revelar em suas estruturas físicas a peculiaridade de sua estrutura
social. O crescimento populacional “obrigou” as classe altas a desenvolverem seus subúrbios residenciais, acessíveis apenas por automóvel, e que podia, pelo preço do solo e acesso, deixar os “invasores” bem distantes. No Rio de Janeiro nasceram Copacabana e Ipanema; em Lima, Miraflores e Monte Rico; em Buenos Aires, Barrio Norte y San Isidoro; em Montevideo, Pocitos y Carrasco: “Sus habitantes acusaban un deseo de tranquilidad y reposo, pero era evidente que marchaban em busca de “exclusividad” (ROMERO, p.354). Desde a origem do processo, os resultados já estavam determinados: ganhando baixos salários e sem política pública de acolhimento de tanta gente, as pessoas foram ocupando as área próximas as indústrias, muitas vezes habitando casas construídas pelos próprios industriais onde se pagava um aluguel desproporcional aos salários. E já se dirigiam as massas para zonas periféricas, de risco, ou seja, longe da cidade propriamente dita, desprovidos de qualquer cobertura digna, isso quando existia, de serviços públicos e infraestrutura. “Y los sectores de medianos y bajos ingresos que aspiraban solamente a adquirir una vivenda para alojarse debían dirigirse hacia los sucessivos anillos periféricos que iban aparecendo, donde todavia los precios no hubieran entrado definitivamente em la espiral especulativa.” (ROMERO, p. 351)
Era fácil reconhecer um migrante. Seus trajes, o modo de olhar, sotaques. Mas como explica Romero, nunca os migrantes, de maneira geral,
17
quiseram formar outra sociedade, senão incorporar-se a essa que haviam se introduzido, essa que admiravam e invejavam, essa que, por outro lado, os rejeitava e os agredia. Foi justamente a fusão dos setores populares preexistente e dos migrantes que constituíam originalmente as massas das cidades latino-americanas. E passaria um bom tempo até que essa massa percebesse e aceitasse que a estrutura da cidade chamada por Romero de ‘normalizada’ pertenciam também a ela. Para uma cidade originalmente constituída de equipamentos, vias, transportes para certo número de pessoas, o enorme crescimento populacional congestionou e de certa maneira destruiu toda a urbanidade que as pessoas “educadas” estavam acostumadas. Antes se podia ceder gentilmente a passagem. Agora era necessário empurrar e defender sua posição, com o consequente abandono das regras convencionais próprio das pessoas educadas que tradicionalmente habitava essa cidade. E se as moradias para quem trabalhavam nem sempre eram as mais adequadas, para aqueles que não conseguiam empregos nas indústrias, inseridos compulsoriamente nas classes excluídas e que viviam (e vivem) de meios alternativos e improvisados de obter alguma renda, não sobrou outra opção senão a de criar com as próprias mãos ou sob o aproveitamento de agentes ilegais as próprias moradias. Ficaram conhecidos por nomes diversos em cada país: ‘callampas,’no Chile, villas miséria, e logo, simplesmente, ‘villas,’na Argentina, ‘barriadas,’ no Peru, ‘cantegriles’, no Uruguai, ‘ciudades perdidas’,no México, e,finalmente, ‘favelas’, no Brasil. A metrópole latino -americana propriamente dita é formada em um extremo pela minoritária parcela normalizada e por outro pela grande parcela excluída separados por gradações. Na verdade, esses dois polos estão intimamente integrados e não podem viver um sem o outro.
Romero ressalta que a massificação, ao contrário do que muitos gostariam de acreditar, contemplou, inclusive as classes mais altas. Todos vivemos segundo regras determinadas e padronizadas de comportamento e de consumo. Se é fácil se perder ao ver imagens de favelas de Medellin ou de Recife, a imagem construída para a sociedade normalizada não é diferente: “Las torres modernas – vidrio y alumínio – se transformaron em los baluartes de esta cultura cosmopolita [...] sin saber bien si estaban em México, San Pablo o Buenos Aires, porque las diferencias desaparcían em el ambiente cosmopolita e internacional. Sólo el perfil y el color de la tez del personal de servicio podia sembrar alguna duda” (ROMERO, p.371).
A cidade massificada rapidamente se impôs sobre a cidade “arcaica” que a precedeu. Em pouco tempo, toda uma estrutura sócio espacial tradicional na qual uma estrutura social era bem definida com os “nobres” das elites locais em seu papel dominante e ocupando os lugares que construíram para si , necessitou adequar-se a uma novidade que eles mesmo trouxeram. Assim se formou um quadro básico das metrópoles latino-americanas, cujos pontos principais que interessam ao trabalho são: - centros originalmente construídos para as elites abandonados em sua ocupação (pois mantiveram a propriedade) e de uma maneira ou de outra, “degradados” e sub-ocupados com baixas densidades, muitas vezes de maneira improvisada;
18
- bairros elitizados centrais funcionando configurando bolhas de serviços e qualidade de vida comparáveis aos países de primeiro mundo; -massa populacional ocupando os gradativos anéis periféricos, menos equipados e estruturados quanto mais se distanciam das bolhas elitistas; - sociedade segregada, na qual uma parcela extremamente pequena da população incorpora de maneiras direta ou indireta o ganho social coletivo tendo nos governantes seus principais “parceiros”; - monopólio em geral como o da propriedade do solo, urbano e rural, da mídia, e do crédito financeiro, como principal instrumento de manutenção do poder. Essa simplificação serve apenas de balizador de uma discussão muito mais ampla: os cortiços e algumas favelas, por exemplo, inseridas em bairros centrais e até dentro de bairros elitizados, como é o caso de Paraisópolis em relação ao Morumbi, inserem conceitos de periferia social e periferia geográfica. É sob essas características que tem em comum algumas das principais cidades latinas que se procurará intervir.
Projeto público O presente ensaio concentra toda a sua energia na discussão do planejamento e desenho urbanos segundo premissas definidas em função do sonho de reverter o quadro metropolitano atual. Ainda que definamos por instrumentos, leis, e diretrizes como deve ser essa cidade conceitualmente, ela só é possível de existir ao ser construída, materializada nos equipamen-
tos, edifícios, espaços públicos, etc. Os desenhos desses equipamentos e espaços devem ter participação direta de arquitetos e outros profissionais pertinentes, recuperando de certa forma uma função cada vez mais atribuída à iniciativa privada, do mercado arquitetônico, sobrevivente tão somente de lucros. Projetos como o plano de Cerdà para Barcelona ou os do departamento de edificações da prefeitura de São Paulo (EDIF) garantem altos graus de idoneidade e qualidade perante aos reais interesses coletivos. Parte-se do principio de ter o poder público como definidor não somente do arcabouço legal e instrumental, mas também como idealizador, inclusive, do desenho de projeto da cidade que se deseja construir.
PARA CONCLUIR Em resumo, esse trabalho final de graduação pretende discutir a metrópole latino-americana contemporânea sob a ótica dos conflitos de classes sociais e sua materialização no território urbano tomando a cidade de São Paulo como objeto de análise e a Radial Leste como objeto de intervenção projetual.
19
cidade contempor창nea
21
BREVE ANTOLOGIA TEÓRICA A concepção Radial Leste, assim como a maioria das grandes obras que o poder púbico executou na cidade, partiu de ideais sempre otimistas que continham uma ideia de cidade para o presente e o futuro. Uma via dessa natureza dificilmente brotaria como um sopro aleatório da mente de um Prefeito qualquer. Muitas discussões de âmbito mundial engendraram sua origem, ainda enquanto rua comum no século XIX, e justificaram todas as transformações gradativas até se tornar uma via expressa no meio do tecido urbano. Não só a via em si, mas toda a malha urbana conectada a ela na escala do bairro e da metrópole passaram por esse desenvolvimento. Dessa forma, antes de propor o ensaio projetual para a Radial Leste e os bairros que a ladeiam, se mostra necessário percorrer brevemente a construção do pensamento urbanístico do século XX como forma de entender quais foram os processos e intenções que geraram aquele espaço e quais as discussões que reverberam até hoje e que a mantém intacta, cumprindo sua função de carregar diariamente milhões de pessoas por seus diferente modais de transporte de suas casas aos trabalhos e outros serviços da cidade. E mais importante de se entender como se chegou a esse estágio de evolução é construir ferramentas para que a intervenção signifique um estágio muito superior de uso do solo urbano; que signifique maturidade nas intenções e soluções para os problemas da metrópole contemporânea
O MODERNISMO O modernismo pode ser visto como um movimento que tem base na crença do avanço do desenvolvimento por meio de métodos científicos. Ou seja, caracteriza-se por uma visão positiva do mundo tecnicizado. O domínio científico da natureza prometia liberdades da escassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais. O desenvolvimento de formas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio da nossa própria natureza humana. Somente por meio de tal projeto poderiam as qualidades universais, eternas e imutáveis de toda a humanidade ser reveladas.” (HARVEY, 1993, p.53)
Portanto, não seria mais questão de opiniões subjetivas, mandos e desmandos divinos e diabólicos ou de gostos pessoais as principais fontes de valores, conhecimentos e ordens que iriam reger a vida das pessoas a partir de então. As escolhas deveriam ser sustentadas através de argumentos racionais e comprovados pelo método científico, no qual se chega ao conhecimento a partir da observação controlada de fenômenos que confirmam uma hipótese preestabelecida. Esse processo estabelece uma teoria científica. Comprovada uma teoria qualquer, a satisfação geral seria atingida e totalmente aceita, pois, nesse momento, se torna uma verdade. Uma verdade apenas questionável até que se comprove através de procedimento semelhante haver outra que a destitua de sua condição.
22 No século XIX, época em que se chegou ao auge da formulação teórica que formatou esse raciocínio, a revolução industrial explodia em inovações tecnológicas que aos olhos de qualquer humano, provido de mínima inteligência e sensibilidade, saltavam mais mágicas que qualquer conto de fadas: câmera fotográfica, linhas de ferro, o aço, a energia elétrica, vidro... é perfeitamente compreensível a esperança que a tecnologia trazia para solucionar problemas e fantasias de toda ordem que até então nenhum deus ou demônio havia conseguido além das ameaças. O mito da máquina amparado pelo culto à racionalidade exigiam ordem em todas as instâncias das relações do homem consigo mesmo, com a sociedade e com a natureza. Entretanto, apesar do fascínio que qualquer faísca reluzente do ferro gusa em produção pudesse causar, a indústria ainda dependia da padronização e da produção em série repetitiva para sustentar seu desenvolvimento e tal característica se traduziu analogicamente em todos os setores, inclusive o do urbanismo. Para chegar ao maior número possível de consumidores, era necessário padronizar numa escala além de qualquer regionalismo. Padronizar moradias, comportamentos, fluxos, desejos em nome de uma eficiência tal qual a da máquina como forma de garantir a justiça social. A crença no “progresso linear, nas verdades absolutas e no planejamento racional de ordens sociais ideais” sob condições padronizadas de conhecimento e de produção era particularmente forte. Por isso, o modernismo resultante era
1 http://www.ebah.com.br/content/ ABAAAAD8AAB/a-diferencs-entre-pos-modernismo-pos-estruturalismo. Acesso em setembro de 2012
“positivista, tecnocêntrico e racionalista” (HARVEY, 1993, p.42)
‘Tempos Modernos’ (1936) www.doctormacro.com | acessado em novembro de 2012
23 PÓS-MODERNISMO Mas o modernismo falhou. Não completamente, mas falhou. Era um sistema rígido, calcado no iluminismo racionalista como uma reação absoluta a tudo que remetesse aos vícios medievais religiosos e corteses, num esforço sobre-humano de negar toda essa tradição milenar. Ao tentar alcançar o sobre-humano, pensou que podia abrir mão de ser humano. E ser humano não é sempre agir de acordo com alguma regra, algum fundamento lógico incontestável ou predeterminação importada diretamente do Mundo Ideal. A realidade é conflituosa, controversa e cada um desses seres humanos tem em sua natureza a capacidade de produzir sua própria lógica. Padronizar com um argumento racional e esperar que as pessoas obedecessem se mostrou uma larga ingenuidade. “Fundamentalmente refere-se a uma oposição ou transição com a modernidade e com o iluminismo; contra as regras e cânones do classicismo. O pós-modernismo rejeita categorias absolutas e prefere uma interpretação parcial e localizada da ciência, do conhecimento ou da técnica. O pós-modernismo é, também, a mistura, o hibridismo, a mestiçagem de culturas,estilos e modos de vida. O pós-modernismo questiona as noções de razão e racionalidade fundamentais para o iluminismo da modernidade, porque em nome delas instituíram-se sistemas brutais e cruéis de opressão e exploração.” (ULGUIM, Daltro Lucena. A distinção entre Pós-modernismo e pós-estruturalismo)1
O pós-modernismo tem origem no momento em que a ilusão da racionalidade totalizante como resposta metodológica a todo e qualquer conflito começa a cair por terra. Críticos de toda natureza, de linguistas, arquitetos e até mesmo capitalistas industriais como Henry Ford se dão conta que na grande parte do tempo nós somos seres regidos por relações afeti-
vas, culturais e simbólicas antes de qualquer lógica purista e reducionista. “Os planejadores modernistas de cidades, por exemplo, tendem de fato a buscar o “domínio” da metrópole como “totalidade” ao projetar deliberadamente uma “forma fechada”, enquanto os pós-modernistas costumam ver o processo urbano como algo incontrolável e caótico, no qual a anarquia e o acaso podem jogar em situações inteiramente abertas. [...] fato mais espantoso do pós-modernismo: sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico.” (HARVEY, op. p.49)
O modernismo totalizante enxerga o ser humano como ser provido de inteligência substancialmente racional e consciente e capaz de compreender e adotar princípios acima de qualquer suspeita de natureza dubitável. O pós-modernismo caótico enxerga que apesar de qualquer inferência lógica, na maior parte do tempo estamos agindo segundo instintos, tradições, medos, valores, contradições e daí se submete aos processos abertos e espontâneos. Pode ser apenas como uma reação direta ao modernismo a partir de uma visão tradicionalista e saudosista. O pós-modernismo pode ser visto também como uma evolução ou continuidade do modernismo. As formas mais complexas e abertas de se enxergar a existência humana não seriam mais do que um avanço da própria economia de mercado, na qual a indústria já pode oferecer, por exemplo, uma série de soluções personalizáveis, dando a impressão de não estarmos mais sendo regidos sob nenhuma direção padronizadora. Na verdade, a definição mais precisa de pós-modernismo seria a de uma série multidirecional de reações perante as limitações do modernismo. Uns pregando sua extinção formulando novos modelos, outros bradando sua extinção em direção a um retorno ao passado ideal hipotético, outros em sua moralização, etc. É um movimento no qual todos os fatores que foram excluídos da atomização racionalista por serem
Diferenças esquemáticas entre modernismo e pós-modernismo modernismo pós-modernismo romantismo/simbolismo parafísica/dadaísmo forma(conjuntiva,fechada) antiforma(disjuntiva,aberta) propósito jogo projeto acaso hierarquia anarquia domínio/logos exaustão/silênci objeto de arte/obra acabada processo/performance/happening distância participação criação/totalização/síntese descriação/desconstrução/antítese presença ausência centração dispersão gênero/fronteira texto/intertexto semântica retórica paradigma sintagma hipotaxe parataxe matáfora metonímia seleção combinação raiz/profundidade rizoma/superfície interpretação/leitura contra a interpretação/desleitura significado significante lisible (legível) scriptible (escrevível) narrativa/grande histoire antinarrativa/petitehistoire código mestre dioleto sintoma desejo tipo mutante genital/fálico polimorfo/andrógino paranóia esquizofrenia origem/causa diferença/vestígio Deus Pai Espírito Santo metafísica ironia determinação ndeterminação transcendência imanência
Fonte: Hassan (1985, p. 123-4 in HARVEY, 1993)
considerados demasiadamente humanos explodem nessas reações. Por isso a associação de termos que permitam a multiplicidade de compreensões para definir o pós-modernismo, como se observa na tabela publicada por David Harvey, em ‘A condição pós-moderna’.
DA CIDADE FUNCIONAL No campo urbanístico, o modernismo teve na chamada cidade funcional a síntese de um projeto para as cidades que se transformavam a partir dos novos rumos econômicos impostos pela revolução industrial capitalista. A cidade funcionalista foi projetada para salvar as massas que migraram e migravam já na contagem de século dos campos e de cidades pequenas em direção às insalubres fábricas e os bairros criados por e para elas - os bairros operários. E quando esta cidade começou a ganhar formas, no início do século XX, já não era somente essa massa a ser salva. Toda uma gama de novas profissões liberais, usos urbanos e tantas outras relações inéditas com o espaço construído precisava de um ambiente apropriado. O automóvel, dentro de um universo enorme de tantas outras máquinas, também se inseria como uma nova forma de experimentar o espaço e o tempo, num sentido libertador extremamente otimista e a habitação ganhou o apelido “máquina de morar”. A cidade funcional foi definida na célebre Carta de Atenas, de 1933.
25 ‘Ville Radieuse’ (1924): projeto de Le Corbusier onde se notam alguns pontos que irá publicar na Carta de Atenas futuramente: Fluxo rápido de automóveis segregado do de pedestres e ediícios densos verticalizados.
um remédio irrisório desde que as velocidades mecânicas introduziram nas ruas uma verdadeira ameaça de morte. A cidade atual abre as inumeráveis portas de suas casas para essa ameaça e suas inumeráveis janelas para os ruídos,as poeiras e os gases nocivos, resultantes de uma intensa circulação mecânica. Esse estado de coisas exige uma modificação radical: as velocidades do pedestre, 4km horários, e as velocidades, mecânicas, 50 a 100km horários, devem ser separadas. As habitações serão afastadas das velocidades mecânicas, a serem canalizadas para um leito particular, enquanto o pedestre disporá de caminhos diretos ou de caminhos de passeio para ele reservados.
CARTA DE ATENAS Do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna realizado em Atenas em 1933 surgiu o manifesto que definiu a cidade funcionalista. Abaixo, alguns pontos selecionados para compor a discussão e que por muito tempo foram parâmetros principais para a prática urbanística, sendo que alguns deles até hoje se encontram vigentes. “O alinhamento das habitações ao longo das vias de comunicação deve ser proibido: [...]. As calçadas, criadas no tempo dos cavalos e só após a introdução dos coches, para evitar os atropelamentos, são
[...] Os cruzamentos das ruas atuais, situados a 100, 50, 20, ou mesmo 10 metros de distância uns dos outros, não convêm à boa progressão dos veículos mecânicos. Espaços de 200 a 400 metros deveriam separá-los. [...] Os veículos em trânsito não deveriam ser submetidos ao regime de paradas obrigatórias a cada cruzamento, que torna inutilmente lento seu percurso. Mudanças de nível, em cada via transversal, são o melhor meio de assegurar-lhes uma marcha contínua. Nas grandes vias de circulação e a distâncias calculadas para obter o melhor rendimento, serão estabelecidas interligações unindo-as às vias destinadas à circulação miúda. Sendo as vias de trânsito ou de grande circulação bem diferenciadas das vias de circulação miúda, não terão nenhuma razão para se aproximarem das construções públicas ou privadas. Será bom que elas sejam ladeadas por espessas cortinas de vegetação.”
A maravilha do automóvel é tão impressionante que se deve afastar-se dele, mas como forma de afirmá-lo. Abrir espaço para o automóvel e a velocidade dos novos tempos! Essa imagem do carro veloz que carrega a modernidade será amplamente difundida e de formas diversas executada mais do que qualquer outro ponto da carta.
26 Plano Voisin (1925) o qual literalmente devastava uma extensa área sobre a malha medieval de Paris. Os edifícios centrais são escritórios que se conectam aos menores, habitacionais, em seu entorno através de vias rápidas.
“O alinhamento tradicional das habitações à beira das ruas só garante insolação a uma parcela mínima das moradias. O alinhamento tradicional dos imóveis ao longo das ruas acarreta urna disposição obrigatória do volume construído. Ao serem cortadas, ruas paralelas ou oblíquas desenham superfícies quadradas ou retangulares, trapezoidais ou triangulares, de capacidades diversas que, uma vez edificadas, constituem os “blocos”. A necessidade de iluminar o centro desses blocos engendra pátios internos de dimensões variadas. As regulamentações edilícias deixam, infelizmente, àqueles que buscam o lucro, a liberdade de restringir esses pátios a dimensões verdadeiramente escandalosas. Chega-se então a este triste resultado: uma fachada em quatro, seja ela voltada para a rua ou para o pátio, está orientada para o norte e não conhece o sol, enquanto as outras três, em consequência da estreiteza das ruas, dos pátios e da sombra projetada disso resultante, são também parcialmente privadas de sol.”
A salubridade só pode ser garantida com edifícios livres, como se estivessem inseridos em parques. Uma cidade toda parque. E para equilibrar as densidades existentes, apenas edifícios altos poderiam contrapor a essas novas diretrizes. Interessante é o argumento contra os especuladores que buscam tão somente ao lucro. O construtor lucrar em cima do metro quadrado construído em um terreno definido. Se a construção tem 1 ou 50 faces com acesso ao sol ou à lua mas tem a mesma quantidade de área construída, o lucro é o semelhante. “As construções elevadas erguidas a grande distância umas das outras devem liberar o solo para amplas superfícies verdes. É preciso, ainda, que elas estejam situadas as distâncias bem grandes umas das outras, caso contrário sua altura, longe de construir um melhoramento, só agravaria o mal existente; é o grave erro cometido nas cidades das duas Américas. A construção de uma cidade não pode
ser abandonada, sem programa, à iniciativa privada. A densidade de sua população deve ser elevada o bastante para validar a organização das instalações coletivas, que serão os prolongamentos da moradia. Uma vez fixada essa densidade, será admitida uma cifra de população presumível, que permita calcular a superfície reservada à cidade. As distâncias entre os locais de trabalho e os locais de habitação devem ser reduzidas ao mínimo. Isto supõe uma nova distribuição, conforme um plano cuidadosamente elaborado, de todos os lugares destinados ao trabalho. A concentração das indústrias em anéis em tomo das grandes cidades pode ter sido, para certas empresas, uma fonte de prosperidade, mas é preciso denunciar as deploráveis condições de vida que disso resultaram para a massa. Essa disposição
27 Capa do ivro ‘Sans Retour ni consigne’ (1978) do cartunista Jean-François Batellier
As chaves do urbanismo estão nas quatro funções: habitar, trabalhar, recrear-se (nas horas livres), circular. O urbanismo tem quatro funções principais, que são: primeiramente, assegurar aos homens moradias saudáveis, isto é, locais onde o espaço, o ar puro e o sol, essas três, condições essenciais da natureza, lhe sejam largamente asseguradas; em segundo lugar, organizar os locais de trabalho, de tal modo que, ao invés de serem uma sujeição penosa, eles retomem seu caráter de atividade humana natural; em terceiro lugar, prever as instalações necessárias à boa utilização das horas livres, tornando-as benéficas e fecundas; em quarto lugar, estabelecer o contato entre essas diversas organizações mediante uma rede circulatória que assegure as trocas, respeitando as prerrogativas de cada uma. A cidade, definida desde então como uma unidade funcional, deverá crescer harmoniosamente em cada uma de suas partes, dispondo de espaços e ligações onde poderão se inscrever equilibradamente as etapas de seu desenvolvimento.
arbitrária criou uma promiscuidade insuportável. A duração das idas e vindas não tem relação com a trajetória cotidiana do sol. As indústrias devem ser transferidas para locais de passagem das matérias-primas, ao longo das grandes vias fluviais, terrestres ou férreas. Um lugar de passagem é um elemento linear. As cidades industriais, ao invés de serem concêntricas, tornar-se-ão, portanto, lineares.
Esse ponto é particularmente interessante na medida em que revela o papel da indústria como principal gerador de empregos. A cidade, em suas funções, estaria determinadamente direcionada sobremaneira à indústria. Seguindo:
Neste trecho aparecem o elemento mais conhecido da Carta: as funções pré-definidas e limitantes da cidade por um momento pareceram ser a chave para um futuro promissor. A cidade agora podia se libertar da insana herança medieval e industrial inicial de forma simples, direta, universal. Seu desenvolvimento, ao invés de produzir uma catástrofe, será um coroamento. E o crescimento das cifras de sua população não conduzirá mais a essa confusão desumana que é um dos flagelos das grandes cidades.[...] e favorecerá todas as iniciativas adequadamente planejadas, mas velará para que elas se insiram no planejamento geral e sejam sempre subordinadas aos interesses coletivos, que constituem o bem público.
28
A Carta de Atenas é bem clara em seu projeto de sociedade. Ao se opor a complexidade que se colocam, ao seu modo de ver, como entraves a um desenvolvimento pleno a partir da produção capitalista, a reduz a meras quatro funções, todas ligadas a essa produção (recrear-se é tão somente um espaço de tempo para recuperar-se antes de voltar ao trabalho). Sendo assim, obviamente a diversidade de espaços e construções não só pode como deve ser reduzida. Na concepção moderna formulada na Carta de Atenas, o ‘movimento’ era uma definição física que ficava circunscrita a uma das quatro funções urbanas e a uma localização em zonas especializadas da cidade moderna planejada. Junto com a moradia, o trabalho e o ócio, a cidade teria que prever as zonas circulação. Fica evidente o tratamento setorial e segregado dado a esta função, o que com maior acuidade começou a ser detectado pelos membros do ‘Team 10’, nos anos cinquenta - ou seja, a diferença entre a ‘concepção de movimento’ da Carta de Atenas e o caráter central de todo tipo de movimento na cidade e na arquitetura contemporâneas. Segundo I. Solà-Morales (1996) a função de ‘circulação’ moderna era restrita à eficiência das vias condutoras de veículos, de um único fluxo, o do automóvel, diferentemente da “multiplicidade dos fluxos da cidade contemporânea, formada por redes justapostas de fluxos materiais e imateriais interconectados”. Como diz M. Campos (2004:69) “interessa aos estudos urbanos contemporâneos incluir novos modos de observação dos ‘fluxos errantes’ – materiais reais e materiais virtuais (incorpóreos) – cada vez mais interconectados em redes urbanas locais e globais.” (LAGRECA, 2008, p.151)
CIDADE JARDIM A partir do fim do século XIX e início do século XX o processo de industrialização cada vez mais intenso forçou uma série de reações diante das profundas transformações sócio espaciais que acarretava. Se o modernismo de Le Corbusier procurava se aproveitar dessa nova lógica, fundindose a ela, como meio de promover uma justiça social ampla e democrática, esse caminho não foi o único. Um dos mais importantes contrapontos à cidade industrial insalubre foi o Movimento Cidades Jardim.
Projeto de uma nova Cidade Jardim a para o Cambodia. Fonte: http:// lypgroup.com
29 Ilustração de Antonio Sant’Elia, arquiteto futurista, movimento que contribuiu para a formação de um imaginário de megacidades velozes e superpovoadas. Nela é possível reconhecer vários preceitos modernistas.
Ao contrário das propostas modernista e futuristas, a cidade jardim propunha um desenvolvimento urbano fixado em conceitos mais tradicionais de comunidade e integrados à natureza. As cidades teriam apenas habitações individuais e seriam auto suficientes, com produção agrícola e rodeada por imensos anéis verdes. Letchwork, na Inglaterra, foi construída segundo esses conceitos. Atualmente ela tem 33 mil habitantes numa área aproximada de 20km², resultando numa densidade de 1650 hab/km2. “um exemplo de comparação da sustentabilidade entre um modelo de expansão territorial, em Cidades Jardim e um modelo de cidade compacta. A Cidade Jardim, feita de moradias isoladas, oferece um ambiente tranquilo em que cada uma das moradias tem o seu espaço próprio. No entanto, os serviços encontram-se longe, obrigando os habitantes a percorrer grandes distâncias de automóvel para os alcançar, o que requer um maior consumo de energia (45 minutos e 28 kW em média, por pessoa). Também o privilégio pelo individualismo, limita as relações interpessoais neste modelo. (FERNDANDES, 2009, p.46)
FUTURISMO Uma vanguarda interessante de ser mencionada foi a do Futurismo. Surgida no início do século XX e claramente identificada com as visões de progresso científico, visualizavam o futuro construído a partir da tecnologia e sua velocidade cada vez mais crescente, tendo no automóvel e no avião alguns dos objetos mais glorificados. Na arquitetura, Antonio Sant’Elia foi responsável por dar forma à cidade idealizada segundo tais anseios.
30 “Os futuristas italianos tinham tanto fascínio pela velocidade e pelo poder que acolheram a destruição criativa e o militarismo violento a tal ponto que Mussolini pode tornar-se seu herói. (HARVEY, 1993, p.39)
Ainda que as cidades criada por Sant’Elia não passassem de exercícios especulativos, assim como outros artistas do movimento, tais “projetos” passaram a fazer parte do imaginário arquitetônico. Não me parece coincidência que muito da escala que diversas estruturas modernas com relativa perda da escala humana se deva a esse tipo de imagem.
PASSAGEM PARA A CIDADE COMPLEXA Como demonstrado anteriormente, o documento da Carta de Atenas, considerado pelos pós-modernistas como doutrinário e reducionista, no qual “se postulava a pura e simples substituição das estruturas existentes como condição apriorística da adaptação das cidades herdadas às ‘necessidades da vida moderna’.” (PORTAS, 1985) tendo como consequências a banalização da paisagem e vida urbanas. Conceitos como paisagem, lugar, identidade, vida urbana, tradição, complexidade, instabilidade, entre outras, compõem o léxico crítico ao modernismo. No campo teórico, rapidamente conceitos dessa natureza foram se multiplicando. Segundo Manuel Solà-Morales: “território não pode ser mais projetado de forma como quis o planejamento tradicional, pois ele não é um dado previsível, Hoje, o plano tem uma nova questão, a incerteza sobre as formas de transformação da cidade”. (2008, apud MEYER, 2010, p.14)
Por essa natureza, a cidade contemporânea se coloca com resistência à generalização, sistematização e redução a uma ideia única. Já não é concebível fazer tabula rasa de grandes áreas na malha da cidade e vastos territórios desocupados que permitam planos totalizantes não são facilmente encontrados e disponibilizados para tal projeto. Qualquer projeto contemporâneo deve considerar elementos culturais, as preexistências, impactos e ser implantado numa progressão no tempo, à medida que colhe informações e pode ir aperfeiçoando-se. Uma constatação é que a cidade funcional foi construída sobre a premissa de estruturas e transformações concebidas em escala muito acima da humana. Ou seja, não é possível outra abordagem senão a de grandes transformações de reversão desse quadro: grandes estruturas precisam de grandes esforços tanto para sua construção como sua reversão. Mas a urgência de grandes esforços e grandes transformações que revertam diversos danos que a cidade funcional causou implicam- se planos na mesma escala, a chave é não se utilizar do mesmo equivoco. Ainda que Harvey explique que “hoje em dia, é norma procurar estratégias ‘pluralistas’ e ‘orgânicas’ para a abordagem do desenvolvimento urbano como uma “colagem” de espaços e misturas altamente diferenciados, em vez de perseguir planos grandiosos baseados no zoneamento funcional de atividades diferentes”(HARVEY, 1993, p.46), deve-se considerar tal plano
como uma somatória de diversos outros menores, sobrepostos, compatíveis, e com razoáveis graus de abertura. Na arquitetura e no urbanismo é fácil observar as múltiplas tendências pós-modernas, umas valorizando a dimensão simbólica, outras o contexto, umas voltando ao passado enquanto outras na observação crítica do presente apontam caminhos futuros de se desenvolver a metrópole. Em seguida, algumas dessas tendências foram selecionadas dentro de um vastíssimo campo com o objetivo de revelar a dimensão da tensão colocada.
31 TEAM X Durante o nono CIAM, em 1953, um grupo convidado composto por novos arquitetos se manifesta contra a bula modernista expressada na Carta de Atenas. Com a tomada de consciência dos impactos da cidade funcional, foram pioneiros ao buscar no resgate de valores da cidade tradicional relações que consideravam mais humanas, como o sentido de comunidade. Atacaram os dogmas cunhados por Le Corbusier, defendendo um incentivo THE DOORN MANIFESTO 1. It is useless to consider the house except as a part of a community owing to the inter-action of these on each other. 2. We should not waste our time codifying the elements of the house until the other relationship has been crystallized. 3. ‘Habitat’ is concerned with the particular house in the particular type of community. 4. Communities are the same everywhere.
(1) Detached house-farm. (2) Village. (3) Towns of various sorts (industrial/admin./special). (4) Cities (multi-functional). 5. They can be shown in relationship to their environment (habitat) in the Patrick Geddes valley section. 6. Any community must be internally convenient-have ease of circulation; in consequence, whatever type of transport is available, density must increase as population Increases, i.e. (1) is least dense, (4) is most dense. 7. We must therefore study the dwelling and the groupings that are necessary to produce convenient communities at various points on the valley section. 8. The appropriateness of any solution may lie in the field of architectural invention rather than social anthropology. Holland, 1954
ao sentimentos de pertencimento e vizinhança, nos usos cotidianos da cidade na escala do bairro. Jaap Bakema, Aldo van Eyck e Alison e Peter Smithson foram principais expoentes, tendo no ‘Manifesto de Doorn’, de 1954, no qual, de maneira simples, mas contundente, contesta as quatro funções da cidade. “Os Smithsons costumavam dizer que na Carta de Atenas “o que faltava era o homem”. (JACQUES, 2003)
JANE JACOBS Em seu célebre livro de 1961, ‘The Death and Life of Great American Cities’, Jane Jacobs inaugura uma crítica ao urbanismo modernista, acusado por ela de uma profunda incompreensão do que são as cidades. Entretanto, não bastava para ela um retorno aos valores tradicionais ou uma fuga aos modelos bucólicos como a Cidade Jardim. Ela entendia justamente na construção da metrópole como ambiente denso, histórico, complexo e múltiplo nas possibilidades de encontro e de formação de ideias - e não a metrópole ordenada de Corbusier - como a solução a ser encaminhada pelos urbanistas (ela era jornalista). As grandes cidades norte americanas passavam por processos de substituição de centros urbanos consolidados por mega projetos de renovação urbana nos quais uma arquitetura comercial empresarial construída na área central era conectada por grandes estruturas viárias como elevados e vias expressas para os setores habitacionais no subúrbio. O resultado era uma produção em massa genérica e banalizada.
32 “Ao contrário das fisicamente imaculadas e espiritualmente vazias proposições modernistas, o caos urbano e o microcosmo dos bairros constituíam uma vida rica e densa de significados. Do registro empírico das maneiras de se apropriar dos lugares (os subtítulos dos textos são diretos: “Os usos das calçadas: segurança, contato, integrando as crianças...” etc), Jacobs formulou a crítica aos axiomas do planejamento (separação das funções/zoneamento, a lógica da circulação pela exaltação do sistema viário, etc) e seu reverso, a prescrição de soluções.” (SEGAWA, 2002)
Andar pela cidade é experimentar as diversas experiências estéticas que ela apresenta, sendo que nem sempre serão as mais desejáveis. Mas é justamente na compreensão que é no conflito que está a vivência urbana, não num ambiente imunes às surpresas. Trata-se “da capacidade de lidar com o inesperado de maneiras controladas mais criativas. [...] os planejadores se declararam inimigos da diversidade, temendo o caos e a complexidade por considerá-los desorganizados, feios e irremediavelmente irracionais.” (HARVEY, 1983, p.44)
Isso seria possível, segundo Jacobs, apenas gerando a diversidade urbana de usos que mantenham a presença de pessoas em horários diferentes, com alta concentração de pessoas, edifícios de variadas épocas, entre outros.
KEVIN LYNCH Em seu livro “A Imagem da Cidade”, Kevin Lynch revela as maneiras como interpretamos e reconhecemos a cidade, num ponto de vista
morfológico. Cada cidadão realiza determinadas relações entre distintas percepções das formas urbanas e sua vivência pessoal cotidiana. Por isso, essa imagem é construída aos poucos na memória individual e coletiva. Em seus estudos, pode observar e classificar cinco elementos que compõe em cada um e em cada cidade a sua imagem: Vias: são os canais ao longo dos quais o observador se move, usual, ocasional ou potencialmente. Podem ser ruas, passeios, linhas de trânsito, canais, caminhos-de-ferro. Limites: os limites são elementos lineares não usados nem considerados pelos habitantes como vias. São as fronteiras entre duas partes, interrupções lineares na continuidade, costa marítimas ou fluviais, cortes do caminho-de-ferro, paredes, locais de desenvolvimento. Funcionam no fundo como referências secundárias. Bairros: os bairros são regiões urbanas de tamanho médio ou grande, concebidos como tendo uma extensão bidimensional, regiões essas em que o observador penetra mentalmente e que reconhece como tendo algo de comum e identificável. Cruzamentos: os cruzamentos são pontos, locais estratégicos da cidade, através dos quais o observador nela pode entrar e constituem intensivos focos para os quais e dos quais ele se desloca. Pontos marcantes: estes são outro tipo de referência, mas, neste caso, o observador não está dentro deles, pois são externos. São normalmente representados por um objeto físico, definido de um modo simples: edifício, sinal, loja ou montanha.[...] Podem situar-se dentro da cidade ou a uma tal distância que desempenham a função constante de símbolo de direção. (LYNCH, 1960, p.58-59)
33 LOCUS
Foto tirada a partir do CRUZAMENTO da Av.Dr. Arnaldo com a Av. Sumaré, ambas VIAS. Ao mesmo, a ‘Sumaré’ tempo funciona como LIMITE entre alguns BAIRROS. Ao fundo, a Serra da Cantareira, importante MARCO da cidade de São Paulo.
A eliminação desses aspectos da cidade por parte do modernismo, ou, pelo menos, do esvaziamento de suas relações por não considerar sua importância, segundo Lynch, destrói qualquer possibilidade de reconhecimento da cidade por parte de seus moradores. A partir da interação desses cinco conceitos morfológicos, toda pessoa desenvolve sua própria imagem da cidade. E a imagem da cidade forma a própria imagem do ser, sem a qual não existe. “Imaginiabilidade: aquela qualidade de um objeto físico que lhe dá uma grande probabilidade de evocar uma Imagem forte num dado observador” (LYNCH, 1959, p20)
Outro importante teórico que surgiu na posição de avançar a discussão sobre o que é cidade e como superar as limitações modernistas, foi Aldo Rossi. O seu livro “A Arquitetura da Cidade”, de 1966, parte de extensa pesquisa sobre o desenvolvimento das cidades europeias para contrapor à submissão da arquitetura moderna sobre a forma que segue a função, na qual é assim destituída de razões mais complexas. Considerando a comprovada necessidade das significações,em que toda sua gama que a arquitetura sempre carregou e que varia, inclusive, com o passar do tempo (algumas apenas existem com o passar do tempo), podemos aferir que esta é, sim , uma de suas funções. Se antes, no modernismo, a arquitetura deveria representar apenas sua função de uso, ao recuperar as funções simbólicas e históricas, qualquer edifício ou cidade que seja projetado sob esse conceito tem contemplada na forma a sua função. Em relação à cidade, Rossi levanta questões como a memória, o desenho, a tradição, mas a sua maior contribuição, pelo menos para este trabalho, é a noção de lugar, ou locus. “Locus: entendendo com isso aquela relação singular e no entanto universal que existe entre uma certa situação local e as construções que estão naquele lugar. [...] o locus, assim concebido, acaba por evidenciar, no espaço indiferenciado, condições, qualidades que nos são necessárias para a compreensão de um facto urbano determinado. [...] Estes lugares são os sinais concretos do espaço; e, enquanto sinais, estão em relação com o arbitrário [...] noções desse tipo estão ligadas à nossa cultura histórica, ao nosso viver em paisagens construídas [...] E portanto referem-se às relações e à própria precisão do LOCUS como um facto singular determinado pelo espaço e pelo tempo, pela sua dimensão topográfica e pela sua forma, por ser sede de vicissitudes antigas e novas, pela sua memória.” (ROSSI, 1966, p.139-141)
34 GRAU ZERO Uma estratégia de raciocínio projetual que pode dar conta de abrir espaço para que o programa, os acontecimentos e o próprio espaço se modifiquem segundo a própria imprecisão inerente a qualquer projeto urbano contemporâneo é o conceito desenvolvido pelo arquiteto Pedro Sales: Grau Zero de Projeto. Segundo Sales “se a arquitetura e a cidade puderem supor um grau mínimo (zero) de ordem,e se programa, acontecimentos e atividades puderem se realizar, agenciar, como se disse, de forma contingente, imprevista e múltipla (qualidades que parecem melhor responder aos devires e dúvidas da contemporaneidade), então o que importa diz menos respeito ao que as coisas parecem e mais ao que elas podem fazer, (they are less concerned what things look like and more concerned with what they can do” (ALLEN,1999). Daí se espera que um projeto de solo engendre devires, não através de códigos e regras ou estados predeterminados, mas fixando pontos, linhas e superfícies de uso e mobilidade, acesso e estrutura, segundo padrões de interconexão e associação com possibilidades de crescimento, diminuição, mudança e transbordamento.” (SALES, 2010, p.18)
O grau zero de projeto coloca a noção de incompletude ou inacabamento que muito da prática urbanística pós-moderna e contemporânea sustenta apenas na retórica. Ao se admitir o caos, a complexidade e a indeterminação como fundamentos de projeto, tais conceitos se esvaziam a funcionarem apenas como inspiração projetual analógica. São projetos que apresentam muitas vezes desenhos recortados e desconstruídos, mas no fundo não passam de outro modelo de totalizadores do espaço:
Quinta Monroy (2004): Projeto do escritório chileno Elemental, o qual ilustra bem o conceito: condições mínimas e incompletas a serem desenvolvidas pelos prórprios usuários do espaço. Apesar do exemplo habitacional, a ideia é que o espaço público também seja encarado desta forma.
35 “Contudo, o que temos verificado em termos de projetos urbanos recentes não se mostram exatamente caóticos. Ao contrário, o que vemos são projetos com desenhos precisos, altamente qualificável tecnicamente, o projeto em escala do objeto para o espaço público que é projetado por centímetro quadrado. Lança-se mão de elementos retóricos da pós modernidade declarada, as referências simbólicas e miméticas, porém a estrutura urbana projetada é precisa, não exatamente caótica ou aberta. (BASSANI, 2005, p.134)
A questão talvez seja não mais em como pensar a cidade, mas em como ‘não pensá-la’, ou como pensar em seus atributos mínimos, afinal há toda uma rede de sistemas infraestruturais, por exemplo, que depende de uma ordem eficiente. Quais seriam esses atributos mínimos ou incompletos?
Projeto ‘Nova Luz’ da PMSP: claramente colocando a cidade e a cultura como negócio, ignorando suas demandas urgentes.
CIDADE CONTEMPORÂNEA, CIDADE MERCADORIA A invocação de Jameson nos traz, por fim, à sua ousada tese de que o pós modernismo não é senão a lógica cultural do capitalismo avançado. Seguindo Mandel (1975), ele alega que passamos para uma nova era a partir do início dos anos 60, quando a produção da cultura “tornou-se integrada à produção de mercadorias em geral.[...] (HARVEY, 1983, p.65) Essa interpretação da cidade como mercadoria coloca também no campo da discussão sobre as chamadas ‘cidades globais’. Em função da transformada a cidade em uma grande mercadoria. Barcelona recebe hoje, depois de seu grande plano de renovação urbana, mais de 9milhões de turistas. A arquitetura e o urbanismo, apesar de avançar a discussão sobre diversos aspectos da vida de seus moradores, na prática, são usados apenas como meios para se gerar lucros e rendas. Transformando a cultura
em grande mercadoria, a cidade se torna palco de cada vez mais eventos dessa natureza, podendo eles serem passageiros, como concertos musicais, ou permanentes, como os museus e outros equipamentos. Nesse caso, a discussão de cidade pode se reduzir à mera disciplina do desenho urbano e de edifícios. O renovado interesse pelas cidades, que marcou a passagem do século XX para o XXI, parece ser antes de mais nada resultado de estratégicas alianças do estado com o mercado no sentido de capturar e sobre-codificar o urbano mediante a criação de atrativos culturais como formas de realização de ativos comerciais. Isto é, exigências de qualidade, de negócio e imagem dos novos operadores públicos e privados são buscadas mediante recuperação e criação desupostas matrizes de identidade e “cultura”, matrizes das quais arquitetura e urbanismo constituem componentes midiáticos e espetaculares de primeira ordem.(SALES, 2009, p.6)
36 CIDADES OCASIONAIS (POST IT CITIES) Esse conceito dá sentido a toda espécie de apropriação do espaço público que se dê de maneira espontânea, não planejada ou prevista. De caráter informal, portanto, não convencional, ao Cidade Ocasional se estabelece como uma função contemporânea de grande força, principalmente na Europa, onde os espaços e usos estão cada vez mais formalizados e precisos. Contra essa padronização, os espaços devem ser cada vez mais usados de maneira livre, fazendo dos eventos algo mais autêntico. Este conceito está muito mais ligado ao padrão de comportamento do que de uma definição morfológica. Qualquer lugar, seja um terreno baldio, uma avenida, uma praça, um prédio vazio, e a qualquer hora pode ser o cenário ideal para alguma manifestação espontânea e temporária. Por essa razão, trata-se de um espaço incodificável pois ele existe potencialmente em qualquer lugar e sendo assim contrapõe-se em alguma medida ao espaço público convencional, no qual, em cada um se estabelecem naturalmente certo padrões de uso e comportamento. Entre os exemplo de post-it City, podemos citar o comércio informal, os ‘acontecimentos (happenings), manifestações políticas e artísticas, práticas de esportes, lugares onde moradores de rua dormem, etc.
Eating in the railway TailandiaSergio Carrasco
37 CIDADE COLAGEM (COLLAGE CITY) A Cidade colagem, conceito cunhado por Colin Rowie e Fred Koetter em livro homônimo de 1975, trata de outra contraposição ao desenho urbano totalizador. Ao contrário de um desenho homogêneo, a cidade deve ser considerada através da fragmentação, justaposição de espaços e identidades distintas disponíveis. Nessa colagem estão lado a lado diversas cidades. Espaços e edifícios do passado convivendo com os contemporâneos. O tempo presente se define pela soma e sobreposição de diversos fragmentos não necessariamente relacionados entre si no espaço e no tempo, multiplicando significados e ampliando o caráter imaginativo que um lugar pode oferecer. Mais que uma leitura, a Colagem se configura como um método de projeto.
TERRAIN VAGUE
“A Casa Dançante”(1992) de Vlado Milunić e Frank Gehry | fonte: http://pt.gravatar.com/anditfeelslike
“O conceito de ‘terrain vague’(francês), tem como correlatos ‘terreno baldio’ (espanhol e português), ‘wasteland’ (inglês), os quais, segundo I. Solà-Morales (1996:21), não traduzem toda a riqueza da expressão francesa. Tanto a noção de ‘terrain’ quanto de ‘vague’ contêm uma ambiguidade e uma multiplicidade de significados que fazem desta expressão um termo útil para designar a categoria urbana que participa desta dupla condição. Nos termos de I. Solà-Morales, por um lado, vago tem sentido de vacante, vazio, livre de atividade, obsoleto. Ou seja, um tipo de modalidade de ‘uso do solo’ com características próprias e ‘dimensionáveis’. Por outro, ‘vague’ tem sentido de indeterminado, impreciso, indefinido, sem horizonte futuro.” (LAGRECA, 2007, p.148)
38 Como um das consequências do crescimento das cidades a escalas de tempo e espaço amplas, foram gerados involuntariamente uma série de espaços residuais e intersticiais que permanecem ou se tornam obsoletos com o passar do tempo. Antigas áreas industriais ou de centros que perderam sua vitalidade também deixaram como provas esses espaços vacantes. Prédios vazios, pátios ferroviários, espaços desqualificados, espaços residuais nas margens de rios, vias expressas, baixos de viadutos. Pode-se enxergar esses espaços tanto como a representação da desordem e dos abusos cometido em nome do desenvolvimento ou como espaços com alto potencial de serem convertidos e ocupados. Espaços livres, espaços célula-tronco, expectantes ou não de qualificação. Espaço em coma. Seu valor também se encontra nesse estado de vacância uma vez que se abre como contraponto à utilidade mercadológica. Esses espaços podem ser considerados até como necessários e inevitáveis à cidade. Sua concepção cria uma consciência para a de que “cultura pós–industrial reclama espaços de liberdade, de indefinição, de improdutividade, mas desta vez não associados à noção mítica da natureza, mas à experiência da memória pelo passado ausente como instrumento crítico frente ao presente banal e produtivista”. (SOLÀMORALES, 1996, p.23 apud LAGRECA, 2008, p. 148)
Portanto a ideia de terreno baldio serve para se compreender os reais significados desse fenômeno pela cidade. Esses vazios podem representar, por um lado, a necessidade de transformação de um lugar ou demonstrar apenas a necessidade de se abrir uma clareira em algum outro mais denso. Podem ser instrumentos de controle do solo urbano ou apenas formas especulativas de enriquecimento.
Rua Augusta, em São Paulo. Assim como em inúmeras outras ruas pela cidade, um pequeno espaço fechado e sem uso abre visuais para a cidade.
39 Terminal Rodoviário do Tietê: apesar do fluxo diários de 90 mil pessoas, é difícil quem estabeleça relações de pertencimento com ele. Foto: Gkalili Arquitetura
Poundbury, Reino Unido. Projetada na década de 1980 por Léon Krier, começou a ser construída em 1993. Foto: Google
Não-lugar O termo não-lugar foi criado pelo antropologista francês Marc Augé em seu livro de 1995 “Non-places: Introduction to an Anthropology of Supermodernity” para descrever espaços arquitetônicos projetados para fins de passagem, antes consumidos que apropriados, nos quais as possibilidades de se estabelecer uma relação de pertencimento com eles é quase nenhuma. Se coloca, dessa forma, como o oposto à noção de lugar de Aldo Rossi. Entre os não-lugares mais comuns indicados por Augé, estaria os aeroportos, as estações ferroviárias, as vias expressas, as redes de hotéis, grandes mercados distribuidores. São espaços impessoais, estéreis. Se distancia da ideia de Terrain Vague, ainda que a ambos falte o Genius Loci , pois são espaços construídos e utilizados mas carregam nenhum potencial senão de seu uso definido.
LÉON KRIER “Krier contrasta essa situação funcionalista com a “boa cidade” em que a totalidade das funções urbanas é fornecida dentro de distâncias a pé compatíveis e agradáveis. Krier busca a restauração e recriação ativas dos valores urbanos clássicos tradicionais. Isso significa quer a restauração de um tecido urbanos mais antigo e sua reabilitação para novos usos, quer a criação de novos espaços que exprimam as visões tradicionais com todo o avanço que as tecnologias e materiais modernos permitem” (HARVEY, 1993, p.70)
A posição de Krier perante ao modernismo é tão radical quanto o modernismo foi em relação ao passado. Krier defende ao retorno à cidade tradicional europeia, ao contrário da corrente que valoriza a complexidade,
40 ignorando a escala metropolitana que cada vez mais cidades atingem. Seu trabalho mais famoso é o masterplan da cidade Poundburry, no Rieno Unido, no qual projeta uma cidade com usos, escala e a estética extremamente inspirada no modelo de cidade anterior ao modernismo.
CIDADE COMPACTA Para fechar esse capítulo conceitual, a discussão sobre a cidade compacta se coloca como a mais importante para este trabalho pois é na construção de cidades compactas que os conceitos que trabalham na aceitação da metrópole se encaixam e fazem maior sentido. A ideia de cidade compacta, como afirma João Capote, já esteve “associada à poluída e segregada cidade Industrial, importando por isso estabelecer uma visão clara da nova cidade compacta.” (CAPOTE, 2009,p.53 ) Na verdade, a ideia atual de cidade compacta é senão o oposto dessa visão distorcida. É através da compactação da cidade que se chega a níveis satisfatórios de salubridade e sustentabilidade ambiental. Isso porque uma metrópole não pode supor um espraiamento de sua mancha urbana pois acarreta maiores custos sociais em sua manutenção. A cidade compacta presume uma densidade alta com boa qualidade de suas edificações. Não se trata apenas de amontoar multidões em pequenas áreas apenas. Toda uma rede de espaços públicos e institucionais devem dar suporte aos moradores. A cidade compacta garante maior eficiência dos meios de transportes, justificando seus investimentos, e inclusive a adoção de formas alternativas como a bicicleta e o andar a pé como forma principal de locomoção cotidiana, diminuindo a necessidade de enormes estruturas de transporte de massa e do uso do automóvel.
A cidade compacta é densa em habitantes e densa em serviços, principalmente as atividades terciárias e sociais. Este modelo difere radicalmente do modelo norte-americano ainda fundamentado nas postulações modernistas no qual o centro geográfico é ocupado por um conjunto de edifícios empresariais e é conectado por vias expressas ao subúrbio onde se encontram centros comerciais e bairros estritamente residenciais. A cidade compacta tem os empregos, serviços e moradias espalhados difusamente pelo território se instalando fisicamente em edifícios mistos. A multiplicidade de usos, pessoas, horários circulando pelos espaços públicos e privados é que garante a vitalidade urbana, tal qual Jane Jacobs defende.As relações interpessoais são privilegiadas e as pessoas, independentemente da origem étnica e estrato social partilham o mesmo ambiente, misturando-se espontaneamente. Isso não significa que a cidade seja perfeitamente homogênea. Alguns bairros tendem a serem mais residenciais, outros mais culturais. Alguns com edifícios mais altos e outros com a presença maior de residências unifamiliares. Essa definição depende das vocações geográficas, históricas e econômicas. Entretanto, garantida uma densidade e mobilidades adequadas, essa variação no caráter de compacidade é muito bem vinda.A cidade compacta, então, é policêntrica conformando uma rede de serviços e fluxos. Ao contrário do que Le Corbusier afirmava na Carta de Atenas, Joaquim Guedes argumenta que ‘o adensamento é um dado que nada tem a ver com a disponibilidade de espaço, mas com a eficiência dos sistemas de transporte urbano e com a possibilidade técnica de adensamento’ (GUEDES, 1994,p. 144 apud ANELLI, Renato Luis Sobral, 2007. Site da internet). Ou
seja, qualquer deficiência na salubridade ou qualidade espacial se resolve com bons projetos de arquitetura de edificações e espaços livres. Richard Rogers, em aula ministrada para “The Megacities Foundation” afirma
41 Rua Merce, no Bairro central de Santiago. Ediíícios históricos, centros culturais, habitações, comércio: exemplo de cidade compacta. Fotos: Google
“Portanto, temos de cuidar da terra, planejamento de cada centímetro dela em termos de preservação e conservação deste recurso inestimável. A linha entre o construído e o verde é vital. É insustentável a expansão em baixas densidades. Criando bairros compactos e bem desenhados, distritos e cidades é fundamental para a conservação da nossa sociedade[...]Uma cidade sustentável é compacta, policêntrica, ecologicamente consciente e baseada no caminhar. Deve haver diversas atividades: viver, trabalhar, lazer. Sua população é facilmente conectada. É bem projetada, economicamente forte e bem governada. Acima de tudo, promove a inclusão social.”
João Pedro Capote resume o argumento de Rogers: “É uma cidade justa onde justiça, alimentação, abrigo, educação saúde e esperança são igualmente distribuídos e onde a democracia será participativa; é uma cidade bela onde arte, arquitectura e paisagem dão azo à imaginação e alimentam o espírito; é uma cidade criativa, onde a abertura das mentes bem como a experimentação mobilizarão todo o potencial Humano e permitirão respostas mais rápidas às velozes e complexas mudanças; é uma cidade ecológica, eficiente energeticamente demonstrando harmonia entre paisagem e construção, é uma cidade de fácil comunicação, onde o espaço público encoraja o espírito comunitário e a mobilidade; é uma cidade compacta e policêntrica, lutando contra a destruição do patrimônio natural, que protege as vizinhanças, integrando-as pela maximização da proximidade; é uma cidade diversificada, onde um vasto número de actividades se sobrepõe criando animação, e inspiração, fomentando a vida pública.” (CAPOTE, 2009, p.52)
42 INTERVENÇÃO NA CIDADE EXISTENTE
CONCLUSÃO
O Arquiteto Nuno Portas, no artigo ‘Notas sobre a intervenção na Cidade Existente’ explica que a intervenção “não é produção ou extensão, intervenção de restauro, nem renovação urbana “corrente sobretudo a partir do pós guerra e enunciado em textos doutrinários como o da mais conhecida ‘Carta de Atenas’, publicada em 1943 por Le Corbusier, nos quais se postulava a pura e simples substituição das estruturas existentes como condição apriorística da adaptação das cidades herdadas às ‘necessidades da vida moderna’. (PORTAS, 1985) David Harvey, oito anos depois dirá que a “ ‘revitalização urbana’ substituiu a vilificada ‘renovação urbana’ como palavra-chave do léxico dos planejadores.” (HARVEY, 1993, p.46) Renovar é fazer tabula rasa, começar do zero, refazer. Revitalizar significa recuperar, dar nova ou mais vida a algo existente e constituído de significado.
Esse breve e crítico sobrevoo sobre algumas das principais correntes teóricas que constroem até hoje a prática urbanística e arquitetônica mostra claramente como a preocupação com o futuro do modelo de metrópole é incessante e tão diversificado que resposta pronta nenhuma pode ser retirada. São tantas visões a serem consideradas, muitas coincidentes, outras conflitantes, complementares que a própria captura deles todos inviabiliza uma intervenção à velocidade que ela, a metrópole, exige. Tantas outras teorias foram deixadas de lado. É o caso da Cidade Genérica, de Rem Koolhaas,a Edge City, de Joel Garreau, as leituras psicogeográficas de Debord, os estudos de quadras de Potzamparc e Rob Krier, a dimensão ambiental da sustentabilidade, a política, informática, econômica... Entretanto, acredita-se que a essência desse longo percurso foi captada: no espaço de menos de um século, nos vimos obrigados a construir uma cidade com escalas de comunicação, mobilidade, população tão inimagináveis que os erros dos pioneiros são perfeitamente perdoáveis. Não é interessante no momento buscar culpados senão que aprender com os erros e se preciso acertar com os erros novamente.
“É importante lembrar que um dos maiores desafios para o planejamento urbano e a elaboração de projetos de recuperação de setores urbanos deteriorados tem sido a articulação da reabilitação do tecido social associada às atividades econômicas e à estrutura física, utilizando as potencialidades instaladas”. (MEYER,2010, p.63)
As preexistências incluem moradores, monumentos, estruturas, cronogramas de intervenção. Ou seja, se a modernidade preferia um terreno limpo em que pudesse deitar a lapiseira livremente, a discussão sobre o existente implica em um processo de construção de projetos junto a pessoas afetadas e à evolução histórica de um lugar. Comércios tradicionais, relações familiares ou apropriações de um determinado espaço devem ser cuidadosamente estudados pois qualquer deslize pode ser irrecuperável. A intervenção, se não for manobra do mercado, implica respeito.
“A crise dos conceitos e receitas na arquitectura urbana face à decepção com os resultados das novas urbanizações dos anos 60, que leva os profissionais a voltarem a aprender com a cidade, a valorizar sequências de espaços públicos bem identificáveis, animados pela mistura de atividades e gerações, influenciando as autoridades locais para privilegiarem intervenções fragmentárias ou sistemáticas de melhoria do existente.” (PORTAS, 1985, p.9)
43
metr贸pole paulista
45 ANÁLISE URBANA: SP como modelo Este capítulo tem por objetivo analisar sob diversos aspectos a formação metropolitana de São Paulo com enfoque em sua Zona Leste, considerando as características comuns analisadas anteriormente a partir da leitura de José Romero que, de alguma forma ou de outra, são quase sempre identificadas na história da formação territorial da cidade. Percorrendo esses aspectos em tópicos, tentar-se-á desvendar tais características assim como propor algumas diretrizes de intervenção.
PLANOS URBANÍSTICOS Preliminares: disciplinamento do existente Como ponto de partida, foram levantados alguns dos principais planos urbanísticos e analisados especialmente sobre as transformações viárias que se propunham como materialização de uma ideia predominante de cidade. Pretende-se examinar como foram moldados pelas discussões em voga das épocas em que foram concebidos, sempre fortemente influenciadas internacionalmente. Sob esse aspecto, é interessante notar como estamos sempre tentando forçar nos parecer com o outro. São Paulo já quis ser ‘europeia’, quis ser ‘estadunidense’ e agora quer ser ‘global’, sem nunca conseguir deixar de ser São Paulo. De vila dos carros de bois e das paredes de taipa, passando pela cidade dos bondes e das paredes de tijolo, pela dos ônibus e paredes de concreto, até chegar a metrópole do metrô e paredes de vidro, muitas transformações foram dando um formato sem forma a ela.
Em 1911 surge a primeira proposta oficial de planejamento que aborda de forma articulada aspectos viários e o desenvolvimento urbano viário para a cidade. Até então, São Paulo contava apenas com o ‘Código de Posturas’ de 1886, que se limitava a definir medidas de edifícios e suas relações com as vias. Baseando-se nas constatações feitas sobre o crescimento das cidades industriais europeias e norte americanas, Victor Freire propunha um circuito viário exterior ao centro histórico, preservando-o, com a finalidade de desviar o tráfego de passagem. Essa proposta se baseava em teorias e exemplos da época, como abertamente o autor cita o urbanista Camilo Sitte e a Ringstrasse de Viena: “Que impressão faria o “annel” paulistano? (...) Desembarcando na estação da Luz e entrando na cidade pelo largo de S. bento e rua Boa Vista, teria elle diante de si sucessivamente: o parque da Várzea e o panorama da cidade industrial, o monumento da fundação e os edifícios do governo à esquerda. Continuando, veria a nova cathedral de frente, contornal-a-ia por qualquer das rua alargadas que hoje são Marechal Deodoro e Esperança, vendo sob um ângulo favorável o novo Congresso e o Paço Municipal. A essa parte da cidade, coalhada de edifícios públicos, seria imposto o caráter monumental cujo coroamento deveria pertencer ao Congresso. Em frente a este e para fazê -lo valer deveria ser rasgada uma larga esplanada de acesso abrindo sobre o largo de S. Francisco. A Academia, O Mosteiro e, em seguida,o terraço formado pela rua Libero Badaró debruçado sobre o parque do Anhangabaú e servindo de centro a um bellíssimo panorama, terminaria a volta pelo regresso ao ponto de partida no largo S. Bento” (FREIRE, Victor da silva. Os Melhoramentos de São Paulo” Revista polytechnica, São Paulo, no33, fev/mar 1911 in LEME, 1990)
46 Em 1924, partindo da premissa que São Paulo é uma cidade com um “futuro brilhante e crescimento rápido”, João Florence de Ulhôa Cintra busca nas cidades europeias a inspiração para seus estudos e proposições no artigo “Projecto de uma Avenida Circular Constituindo Perímetro de Irradiação. Segundo Cintra, o traçado da cidade de São Paulo lembra os das cidades europeias com núcleo central e vias radiais e perimetrais. Utiliza os ensinamentos do urbanista francês Eugene Hèrnard, segundo o qual todas as vias convergem para um núcleo, mas não para o mesmo ponto, mesmo monumento. Ligam-se, na verdade, a um circuito fechado coletor chamado de Perímetro de Irradiação. Entre 1924 e 1926, Ulhôa Cintra e Prestes Maia desenvolvem outro estudo, já mais avançado que os dois precedentes, denominado “Um problema actual: Os grandes melhoramentos de São Paulo” junto à Comissão Técnica do Plano da Cidade, da Diretoria de Obras e Viação da Prefeitura de São Paulo. Procurando evidenciar o papel de liderança de São Paulo no processo de desenvolvimento do país, Cintra e Mais condicionavam essa intenção à remodelação da cidade. Corrigir e prevenir antes que se torne irremediável, preparar-nos para s tempos prósperos. Adotam o sistema radial existente na cidade, propondo remodelações: 11 avenidas traçadas, sendo seis as mais importantes: av. São João, av. Dom Pedro, av. Anhangabaú (atual 9 de julho), av. Rangel Pestana, Av. Celso Garcia e av. Liberdade/av. Domingos de Moraes, além de manterem o perímetro de irradiação de Ulhôa, de 1924.
A partir do plano de avenidas: ideia de cidade O contexto existente quando da criação do Plano de Avenidas já era muito revelador da cidade que estava se formando. Extensas vias radiais
conduziam a cidade a um crescimento segundo um padrão periférico de ocupação do solo, com característica pouco racionais segundo modelos atuais de desenvolvimento e sustentabilidade. Aglomerações desconexas, dispersas e pouco densas em torno de um núcleo central desafiam qualquer plano de crescimento eficiente. Nos planos até então citados e até no Plano de Avenidas usos insalubres como matadouros são sempre recomendados que fiquem longe, assim como os bairros operários... Mas longe de quê? Da cidade normalizada (ROMERO), salubre, confortável e elegante. Não é difícil imaginar porque essa massa de gente era jogada nos piores lugares da cidade sem a infraestrutura necessária à sua própria reprodução. Nesse contexto nasce o Plano de Avenidas, ou melhor, debuta, já que boa parte de sua essência vem desde o estudo de Victor Freire, passando por Ulhôa Cintra. Soma-se a essa análise da época, ainda, fatores como a aproximação do país aos Estados Unidos e seu “American way of life” amplamente divulgado no mundo inteiro após a primeira guerra mundial. Nesse ponto, é possível estabelecer conexões do pensamento de Prestes Maia ao urbanismo americano, que inseriu o conceito de vias expressas de grande capacidade na qual se verificava a promessa do automóvel motorizado como sinônimo de liberdade e velocidade em direção ao futuro! Na cabeça de Prestes Maia não cabiam os bondes e o metrô proposto pela Companhia Light. Estava convicto da importância da individualidade libertadora do automóvel e previa que esse seria o principal meio de transporte metropolitano, o que se revela no Plano comparando-se o nível de detalhamento de suas propostas para o sistema viário em relação ao transporte público. Tanto é que, dado diversos impasses, nem metrô, nem bonde, nem trem de superfície foram preferidos, restando ao ônibus a tarefa de transportar toda a massa de trabalhadores de suas casas (ou qualquer coisa que se assemelhe a uma) a seus postos de trabalho.
47
Proposta de Le Corbusier para São Paulo em sua visita pela América do Sul, em 1929
Basicamente o plano propunha diversas avenidas radiais, muitas delas sobrepostas aos caminhos históricos que chegavam à cidade. Partiam do perímetro de irradiação e cortadas por pelo menos mais dois anéis perimetrais para conectar os bairros entre si. Previa o crescimento da cidade normalizada para as direções Norte e Sul sustentado pelo famoso Sistema Y, uma ligação entre as marginais Pinheiros e Tietê, passando pelo Vale do Anhangabaú. A atividade industrial, assim como seus trabalhadores, deveria se instalada nas marginais. Também aparecia um principio de zoneamento no qual no núcleo central e ao longo das radias prevaleceriam as atividades comerciais e de serviços e habitações coletivas. Era um plano para uma cidade harmônica, bela, onde as coisas têm sua hora e lugar. Segregacionista, resultava numa cidade de baixa densidade, o que se mostrou insuficiente e mal estruturada para o que realmente estava por vir. “É sem dúvida a partir de 1940 que o processo de metropolização ganha grande impulso. [...] O crescimento vertical do centro e de alguns bairros próximos e até mesmo de alguns sub-centros começa a marcar definitivamente a paisagem urbana como metropolitana. Consolida-se também o Plano de Avenidas.” (MARTIN, 1984, p.160).
Da cidade à metrópole Registrada a chegada à condição de metrópole, os planos passaram cada vez menos a se preocuparem em como as pessoas deveriam experimentar a cidade qual deveria ser a sua imagem (LYNCH) para dar ênfase total ao seu funcionamento enquanto centro econômico e industrial
do país. Le Corbusier há pouco havia passado pelo Brasil aplicando sua cartilha modernista em croquis megalomaníacos propositivos para o futuro de São Paulo e Rio de Janeiro em que revelam a urgência por essa conversão ao status de Metrópole. A Segunda Guerra Mundial, entretanto, mudou os caminhos do planejamento urbano nacional. Muitos teóricos europeus migraram para os
48 Estados Unidos, marcando um período em que a discussão sobre as cidades sofreu uma pausa inevitável. Os CIAM, por exemplo, foram interrompidos entre 1937 e 1947 e os olhares submissos dos governantes brasileiros voltaram-se mais carentes ainda para os Estados Unidos. O prefeito Lineu Prestes contrata em 1949 uma equipe dirigida por Robert Moses para elaborar o ‘Plano de Melhoramentos Públicos de São Paulo’. Foi-lhe requisitado que elaborasse, entre outras coisas, um plano de zoneamento e sistemas
arteriais de tráfego, dada a sua reconhecida posição na tradução da cidade modernista para o contexto norte-americano, a qual tinha como princípio fundamental o zoneamento das cidades em centros empresariais conectados aos subúrbios residenciais de classe média por vias expressas para veículos motorizados individuais. Esse modernismo reduzia as possibilidades de interação social ao diminuir a importância dos espaços públicos. Andar a pé se tornaria uma atividade a ser feita nos shopping centers, todos eles miméticos justamente daquilo que negam: a cidade. Para São Paulo, Moses propôs nada diferente disso: “Sugere que as avenidas marginais ao Tietê e Pinheiros, já concebidas esquematicamente no plano de Maia, recebessem o tráfego das rodovias, concebendo a função que ainda cumprem hoje. [...] O segundo destaque se refere à tipologia viária, que se difere daquela presente no Plano de Avenidas. Suas “rodovias expressas urbanas” seriam mais adequadas a volumes de tráfegos elevados, compatíveis com a política de incremente do transporte rodoviário. Sem cruzamentos em nível e sem interferências de entradas e saídas de veículos nos edifícios, as vias expressas de Moses configuram uma cidade diversa dos bulevares de Prestes Maia. Para sua plena eficiência, a malha de vias expressas deve ter independência em relação ao tecido urbano que atravessa, pouco importando se o destrói ou não.” (ANELLI, 2007)
Muitas das propostas executadas por Moses nos Estados Unidos, apesar de cumprirem a mesma função, geraram diferentes resultados em São Paulo. Ao observarmos a Cross Bronx Expressway podemos estabelecer certas relações com Av. 23 de Maio num cuidado maior de seu desenho. Apesar do caráter expresso, a malha urbana apresenta diversos pontos de travessia no mesmo nível e em escalas compatíveis com o pedestre, o que
Proposta de Le Corbusier para São Paulo em sua visita pela América do Sul, em 1929
49 Trecho da Radial Leste pelo bairro da Liberdade e Cross Bronx em Nova iorque, ambas concpções de Robert Moses.
radicalmente se opõe ao desenho da Radial Leste e das marginais Tietê e Pinheiros. Mas é justamente este modelo de cidade que deve ser combatido: o modelo expresso, do automóvel como centro do modelo urbano. Não se trata de discutir apenas seu desenho, mas seu significado. Em 1968, o Plano Urbanístico Básico (PUB) foi concebido na subida da maré do “Milagre econômico” brasileiro. Sua principal característica está nas escalas grandiosas de proposições, pois colocava a metrópole a crescer em primeiro plano: 615km de vias expressas em malha com espaçamento de 5km atendendo todo o território metropolitano e mais 615km de metrô. A expressas não conectariam somente o centro ao subúrbio, mas toda a mancha urbana em si, numa proposta clara de generalização de mobilidade para o território metropolitanos.
Apesar de podermos considerar uma proposta de natureza mais democrática, ainda é premissa básica deste trabalho a recusa total a sistemas que criem barreiras urbanas e prefiram soluções individuais de transporte às coletivas. Mas, por outro lado, a escala das proposições não podem ser consideradas, de fato, ilusórias. Metrópole do tamanho e complexidade de São Paulo precisam de visões e ações de sua escala. A escala metropolitana deve ser colocada no mesmo nível da local, e talvez seja essa a grande deficiência do PUB. Em 1971 a câmara aprova o primeiro plano diretor consagrado em lei, o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI). Entre os principais objetivos estava na contenção do crescimento desordenado e para tal algumas medidas foram determinadas. Primeiramente, ao coeficiente de aprovei-
50 tamento, que antes de 1966 não tinha limites e até a data do PPDI era de 6 para toda a cidade, foi proposto uma variação de valores segundo vocações de cada região para tentar direcionar o crescimento. O que determinou essa vocação foi o zoneamento da cidade em 8 tipos : Z1, estritamente residencial unifamiliar, com coeficiente 1; Z2, predominantemente residencial, uni e multifamiliar, com comércio e serviços locais, também com coeficiente 1; Z3, predominantemente residencial de média densidade com comércio e serviços de maior porte, coeficiente 2; Z4, mista de maior densidade com coeficiente máximo 3; ZS, mista central de alta densidade com coeficiente máximo 4; Z6, predominantemente industrial; Z7, estritamente industrial; e Z8, para usos especiais. “A Lei de Zoneamento de 1972 foi proposta como principal instrumento regulador da cidade. Sua exposição de motivos explícita a ligação direta com o PDDI e seu débito para com a Carta de Atenas: “objetiva, antes de tudo, estabelecer equilíbrio entre as diferentes funções urbanas - habitação, trabalho, lazer e circulação.” No entanto, a lei não seguiu os moldes modernistas de separação absoluta entre funções. Apenas a Z1 (estritamente residencial) e a Z7 (estritamente industrial) têm caráter monofuncional” (CAMPOS NETO, 2002, p. 126)
Como se observa no mapa do zoneamento, as Zonas Leste e Norte se tornaram em imensas zonas predominantemente residenciais de baixa densidade. O baixo coeficiente desestimulou os investimentos imobiliário, e ao longo da linha de trem o Z6, predominantemente industrial. Para as periferias, o plano apenas oficializou o que existia, sem necessariamente propor novas abordagens. A Zona leste continuaria sendo um enorme casario a permear indústrias e outros usos de grande porte. Contraditoriamente, é dessa época que datam os primeiros conjuntos habitacionais de grandes massas construídas pela Cohab e pela atual CDHU. Para além dos rios Tietê,
Fonte: CAMPOS NETO,2002, p.127
51 Pinheiros e Tamanduateí a cidade não tinha um mal plano, apenas não tinha planos, situação perfeita para manter os privilégios.
Projeto dos arquitetos Sidinei Rodrigues e Roger Zmekhol para o eixo da av. 23 de maio. Fonte: Portal Vitruvius
“Considerações a respeito do desenho urbano, da paisagem construída e das qualidades estético - volumétricas do urbanismo tradicional estão praticamente ausentes. Além disso, não há uma regulação das densidades de ocupação populacional. Assim, bairros submetidos à “gentrificação” vertical podem sofrer desadensamento, enquanto a ocupação periférica irregular adquire crescente intensidade de aproveitamento, com subdivisão dos lotes, favelização das áreas livres e encortiçamento, comprometendo as condições de vida e salubridade - para não falar na provisão de espaços públicos, equipamentos e opções de lazer.” (CAMPOS NETO, 2002, p. 133)
As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por alguns projetos urbanos específicos, dos quais cabe destacar os da Empresa Municipal de Urbanização (EMURB). Essa empresa foi fundada em 1971 para “agilizar as intervenções urbanísticas da prefeitura e superar a inércia das estruturas de carreira das secretarias” (ANELLI, 2007). Era formada principalmente por
arquitetos com remuneração superior aos da prefeitura, os quais realizaram uma série de ideias em circulação no meio arquitetônico paulista, principalmente os relacionados à construção do Metrô. Dando continuidade a ideias propostas no PUB, a EMURB recuperou a o conceito de Corredores de Atividades Múltiplas, nos quais se propunha o adensamento da ordem de 30 mil habitantes por km² numa faixa de 600m ao longo de corredores ao longo das linhas de metrô. Nesses corredores estaria a maior parte dos escritórios e comércio. No projeto para a Vergueiro:
“A proposta definia o espaço entre os níveis das duas vias como garagens e serviços, situando no plano da Rua Vergueiro um conjunto comercial e terraços públicos acima dos quais se elevavam um hotel no setor norte e duas torres de escritórios no setor sul. Uma via elevada atravessava a rua Vergueiro, ligando o largo da igreja com o conjunto”. (ANELLI, 2007)
52
Para a Zona Leste, o metrô já oferecia outra qualidade de serviço: “Em 1 de março é iniciada a construção da Linha Leste-Oeste, atualmente denominada Linha 3-Vermelha. A concepção da obra, majoritariamente de superfície, permitiu a diminuição de custos, o que tornou possível triplicar a extensão anteriormente planejada para a linha.” (METRÔ, s/d)
Na região do Bresser-Brás, ao longo da linha Vermelha, a EMURB projetou nos espaços liberados pelas desapropriações edifícios multifuncionais, com comércio nos pavimentos inferiores, estacionamento no subsolo e torres laminares de habitação ou escritório nos pisos mais elevados que são distribuídos por uma superfície plana pública ajardinada atravessada pelos trilhos elevados. “Uma cidade na qual o adensamento e a facilidade de deslocamento em transporte público iria conviver com a amplidão dos espaços abertos verdes”. (ANELLI, 2007)
Os projetos apresentavam ótima qualidade para os conceitos da época: se importavam com as relações do pedestre, as conexões e a inserção na paisagem. Ainda assim, representavam o método modernista de se liberar espaços verdes no térreo para erguer torres altas e densas ao invés de apostar numa maior relação com a rua e prédios de menores impactos no horizonte. Nenhum deles foi executado. No caso do Brás-Bresser, em seu lugar a Cohab recebeu da EMURB os terrenos liberados para a construção do metrô e construiu uma série de conjuntos habitacionais bem ao gosto do mercado: condomínios fechados e murados. Na década de 1980 a sociedade brasileira estava mais preocupada com a redemocratização e mudanças no urbanismo tiveram de esperar a Constituição de 1988 para reativar um debate mais profundo do futuro da metrópole. Na nova constituição aparecem algumas novidades que representam enorme avanço para a transformação urbana que as cidades brasileiras ainda estão se preparando. A mais importante delas, pois dá suporte a todas as outras, é a instituição da função social da propriedade: “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (BRASIL, Constituição Federal, Capítulo II, Art. 182, § 2º)
Para regulamentar o Capítulo II, deveria ser aprovada lei específica, o que aconteceu 13 anos depois, em 2001 com o ‘Estatuto da Cidade’. Sem esta nenhum Plano Diretor poderia ser discutido e aprovado: “CAPÍTULO III - DO PLANO DIRETOR - Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômi-
Projeto da EMURB para os terrenos desapropriados para a construção da LInha 3 - Vermelha do metrô. Fonte: Portal Vitruvius
53 cas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei.” (BRASIL, Estatuto da Cidade, Lei federal 10.257 de julho de 2001)
Aprovado o Estatuto, o Plano Diretor da cidade foi aprovado cerca de uma ano depois, o qual reforça e dá melhor nitidez às leis federais: CAPÍTULO IV - DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA Art. 11 – A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, no mínimo, os seguintes requisitos: I - o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social, o acesso universal aos direitos sociais e ao desenvolvimento econômico; II - a compatibilidade do uso da propriedade com a infraestrutura, equipamentos e serviços públicos disponíveis; III - a compatibilidade do uso da propriedade com a preservação da qualidade do ambiente urbano e natural; IV - a compatibilidade do uso da propriedade com a segurança, bem estar e a saúde de seus usuários
teresse Social 3 (ZEIS 3), por exemplo, não conseguiu tirar do papel mais do eu 1 projeto de habitação de interesse social ao longo de 10 anos, enquanto que o mercado tradicional desfruta da Operações Urbanas Consorciadas. Atualmente, a ideia de projeto urbano parece um pouco abandonada em função de discussões mais amplas sobre a participação popular e rumos mais estratégicos da metrópole. Por outro lado, a falta de um projeto urbano que discipline minimamente – no sentido que seja aberto as imprevisibilidades e incertezas complexas - o crescimento da cidade abre espaço para intervenções pontuais desconexas e a fabricação por parte do mercado de uma cidade sem arquitetura e urbanismo.
SOBRE O PAULISTANO “Ele [o paulistano] ainda não é um cidadão metropolitano. Para muitos do que vivem hoje, a referência rural ainda é muito presente.”(MARTIN, 1984, p.155)
e vizinhos. (PMSP, Plano Diretor Estratégico, Lei 13.430 de 13 de setembro de 2002)
Esse conjunto articulado de leis representa um enorme avanço sobre discussão do desenvolvimento justo socialmente do território urbano em todo o país. Apresenta uma série de instrumentos para que os governos municipais em conjunto com a sociedade civil representada por todos os seus atores possam discutir qual a cidade que querem e como chegar até ela. Entretanto, pelas amarras culturais e forte desigualdade na representatividade entre os grupos sociais, “não há como deixar de constatar que, do ponto de vista do que foi almeja pelos inúmeros planos e projetos urbanísticos, o resultado é frustrante”. (MEYER, 2010, p.13). A Zona Especial de In-
Essa preferência do paulistano ao tranquilo campo, vida bucólica, do jardim, e incentivada pela influência ideológica do modelo norte-americano do subúrbio ou essa certa resistência à vida cosmopolita, citadina, densa. Por isso que muitos dos planos como cidade jardim e essa fuga ao subúrbio deram certo. Numa cidade de 11 milhões de habitantes, a maioria vive em casas. Domicílios segundo Tipologias Residenciais Município de São Paulo, Subprefeituras e Distritos Municipais 2010
Município
Total de Domicílios
Casas
Condomínios
Apartamentos
3.573.509
2.460.091
52.673
1.017.720
100%
69,1%
1,5%
28,2%
Cortiços
Malocas
42.924
101
1,2
0% Fonte: PMSP
54 SOBRE O ACESSO E A PROPRIEDADE DA TERRA Um dos maiores entraves a uma política urbana realmente democrática de acesso a habitação digna e aos espaços públicos da cidade esbarra numa longa tradição sobre o controle da terra. José de Souza Martins explica que quando o sistema produtivo era baseado no trabalho escravo, a terra era livre. Era livre pois apenas homens livres poderiam se apossar delas. Ex-escravos, mesmo que alforriados, dificilmente se tornavam eles médios e grandes produtores e proprietários pois além de não terem em sua visão de mundo os mesmos anseios de ascensão social, acumulação de riqueza e obtenção de títulos de nobreza, era extremamente difícil eles mesmo terem seus próprios escravos. Eram obrigados a continuar trabalhando para os grandes latifundiários e comerciantes. O tráfico de escravos foi proibido no dia 4 de setembro de 1850, pela conhecida Lei Eusébio de Queirós. Apenas duas semanas depois, a Lei de Terras foi promulgada, proibindo toda a aquisição de terras devolutas no império que não seja pela compra. Estava claro o projeto de ‘modernização’ do sistema produtivo e das relações de trabalho impostas pelo capitalismo industrial internacional. José de Souza afirma que esse foi um processo articulado de forma a manter a renda extraída, ainda que associada a uma ideia iluminada contra uma atrasada. Pode parecer pouco importante, mas essa matriz da relação entre propriedade e trabalho é uma matriz que regula o Brasil até hoje. Mesmo sendo inaugurada na constituição de Weimar, em 1919, apenas na constituição de 1988 que a propriedade no Brasil deixa de ser absoluta com a instituição do conceito de ‘função social da propriedade’. Este avanço denuncia quase 150 anos em que o controle sobre terra urbana e rural foi o principal instrumento de dominação reconhecidamente legítima sobre todos os povos que por aqui chegaram ou aqui já estavam. Este
vício está presente na origem das formações de favelas, do espraiamento da mancha urbana e da imensa desigualdade social que nosso país apresenta. Afinal, quem iria se submeter a condições desumanas de trabalho se pudesse ele próprio, autonomamente ou associado, gerar as fontes próprias de renda. Ideologicamente, a ideia de “casa própria era defendida como instrumento para transformar o trabalhador em um defensor da ordem e da tradição.” (PACCA, 2004, p.50) Nos Estado Unidos, por outro lado, na mes-
ma época, o Homestead Act incentivava justamente o contrário. As terras devolutas poderiam ser ocupadas mediante algumas exigências de produção e limitadas a um tamanho fixo. Ou seja, a terra não precisaria ser comprada. O capital extraído sobre o uso, a posse ou a propriedade da terra no tempo se chama renda. Dependendo das benfeitorias associadas a uma parcela de terra e suas relações com a cidade como um todo, essa renda varia. A renda diferenciada que se pode extrair de cada terreno é medida pelo seu preço de venda. Como uma pequena parte do território é bem servido de infraestruturas diversas como transporte público, sistema viário, equipamentos culturais, áreas verdes e públicas qualificadas, observa-se uma diferença de preços muito grande entre os bairros centrais e os anéis periféricos. Essa diferença foi a principal responsável tanto pela instalação espontânea da maioria dos cidadãos migrantes que chegavam em busca de emprego em favelas e loteamentos irregulares quanto pela construção de conjuntos habitacionais de baixa qualidade e sem projeto de cidade por parte do poder público, ambos em regiões cada vez mais longe. Por sua vez, essa pobre política pública de construção de cidade foi responsável pela origem de diversas características problemáticas da metrópole como os vazios urbanos, as vias expressas segregadoras e a deterioração urbana de alguns bairros. Nunca interessou aos governos como ainda não interessa intervir contundentemente na estrutura fundiária.
55 Desenhadas COM o parque, as esclusas são consideradas como paisagem urbana. Compõe o imaginário coletivo. “Em primeiro plano encontra-se o parque da eclusa. Há continuidade no percurso ao longo das margens do canal e entre o parque e a cidade. As pontes e o bulevar fluvial fazem esta transição continuada.” Grupo Metrópole Fluvial da FAUUSP | ilustração de Danilo Zamboni
Mesmo com mudanças na legislação, ainda parece distante o horizonte de transformação desse quadro. Enormes áreas bem servidas de toda sorte de infraestrutura seguem subutilizados enquanto o poder público gasta altas porcentagens de seu orçamento para se levar a regiões cada vez mais distantes os serviços públicos imprescindíveis para a própria reprodução do capital. “O Estado torna-se “programador” das condições de formação e realização da renda urbana não por estar subordinado ao bloco imobiliário, mas para sustentar o conjunto do processo de acumulação e evitar a contradição mais profunda entre capital e trabalho.” (MARTIN, 1984, p.107)
Ocupa as melhores terras quem pode pagar por elas; e só pode pagar por elas se consegue extrair direta ou indiretamente sua renda diferenciada. Por isso há tanta moradia precária nas metrópoles latinas: “O que se compra e se vende não é a terra, mas o direito à renda que produz.”
(PACCA, 2004, p. 43). A desigualdade de oportunidades faz com que a maioria da população não possa se inserir na máquina econômica em dimensão suficiente para se apropriar, pelo menos, de parcela de terra que garanta uma moradia digna. Para corrigir esse quadro, o Estado e o próprio mercado oferecem “auxílios” – dos quais extraem juros – como financiamentos de forma a amenizar a contradição estrutural do sistema. Mesmo assim, uma enorme parcela não consegue se inserir, pois não pode pagar o mínimo mensal que esses financiamentos oferecem. Parte da solução passa pela generalização das infraestruturas pelo território de modo que minimizem os efeitos diferenciação de preço, possibilitando ao próprio Estado intervir com maior eficiência e é esta uma das principais justificativas da escolha da Radial como objeto de intervenção.
EQUIPAMENTOS METROPOLITANOS A crescente dimensão das intervenções de mobilidade gerou proporcionais estruturas físicas de suporte. São terminais viários, estações de trem e metrô, galpões, viadutos e túneis. Por serem pensados majoritariamente apenas como elementos de passagem transitórios, configuram o que Marc Augè definiu como não-lugar. Pela escala e pela quantidade de pessoas que passam por eles, é uma perda inestimável de possibilidades de fazer desses nós espaços públicos por excelência.
56 “mas ainda não encontramos em são Paulo um exemplo consistente de projeto dos terminais urbanos e estações de transporte de massa que os aborde como os mais legítimos e representativos espaços da vida urbana contempor6anea nas grandes cidades e eu deem conta da complexidade e do potencial desses pontos do território metropolitano.” (MEYER, 2010, p. 258)
ZONA LESTE Formação e consolidação Em meados do século XIX, a Zona Leste da cidade não passava muito de um vasto território originalmente ocupado por índios composto por chácaras e terrenos baldios inundáveis pelo rio Tamanduateí e Tietê. Mapas da época apenas dão conta de representar os dois caminhos que começavam no núcleo urbano, a rua da Mooca e a rua do Braz, e de lá rumavam em direção ao Rio de Janeiro. Com a construção das duas estradas de ferro que cortam a região, a Santos-Jundiaí, inaugurada em 1867, e o ramal paulista da Estrada de Ferro Central do Brasil, em 1877, a região começa a ganhar feição. As ferrovias se aproveitaram da topográfica favorável das planícies aluviais para se instalarem. A estação do Brás, localizada bem próxima à colina histórica, era o ponto de conexão entre as duas linhas. Por essas características, esse ponto se configurou naturalmente como um polo urbano de desenvolvimento. A princípio havia poucas estações, largamente espaçadas, mas onde as houvesse, um pequeno núcleo urbano nascia, como é o caso do bairro de Itaquera. Mas é a partir da industrialização paulista que toda a região
começa a apresentar o desenvolvimento que marcará a transformação da paisagem rural em metrópole polifônica que até hoje se sustenta. A topografia e a ferrovia atraíram a instalação do parque industrial paulista por sua extensão. Fábricas e mais fábricas ocupavam grandes glebas nos bairros do Brás, Belém e Moóca, principalmente, tendo no seu entrono imediato habitações para seus trabalhadores construídas. As vilas operárias, construídas pelos próprios industriais ou por investidores em busca de renda, eram a principal tipologia, sendo que algumas delas se encortiçavam, pois como dito, a oferta de emprego era sempre menor que a população que chegava à sua procura. A autoconstrução não era muito frequente ainda, pelo menos nesta região – a Zona Leste Central - pois a recente Lei de Terras, de 1850, proibia qualquer posse que não fosse pela compra. A ainda abundante oferta de terrenos e a legislação (ou falta dela) da época não exigiu uma solução verticalizada, muito mais cara e de tecnologia muito avançada para a época. As vilas, então, concentravam casas assobradadas estreitas construídas umas juntas às outras e servidas muitas vezes por ruas particulares internas, aproveitando ao máximo os lotes. As chácaras rurais eram sistematicamente urbanizadas. Ruas novas abriam-se rapidamente para abrigar novas indústrias e, por sua vez, novas vilas. Entre 1886 e 1893, por exemplo, a população do Brás passou de 6 para 32 mil habitantes , chegando a 80 mil em 1940 (MEYER, 2010), morando muitas vezes
57 em áreas frequentemente inundadas. A essa população, que na maioria das vezes vinha de situações piores, restava ‘comemorar’ a insalubridade ambiental de onde vivia, o desamparo disciplinador do Estado e um emprego: 2 discurso feito em 1888 por Antônio da Silva Prado no senado do império. Transcrição de vídeo “José de Souza Martins fala sobre o livro ‘O cativeiro da terra’” http://www.youtube.com/ watch?v=spgf9mQkJCM
Alguns exemplos de loteamentos antigos que sobreviveram e podem vistos como patrimonio arquitetonico. Fonte: Google
“se o trabalhador for morigerado, sóbrio e laborioso, ele poderá acumular pecúlio e então se tornar proprietário de terras.”2
Esse discurso feito por Antônio da Silva Prado no senado do império revela bem a armadilha em que os imigrantes estavam submetidos quando chegaram ao Brasil. Não podendo ocupar terras, bastava apenas trabalhar muito para, quem sabe, se tornar um proprietário. Ainda que Prado discurse sobre os trabalhadores rurais, sua recomendação bem serve para os trabalhadores urbanos e explica em partes o sempre atual “sonho da casa própria”. A maioria dos imigrantes era de origem europeia, o que favorecia a pregação ideológica mencionada acima. Inicialmente vindos para trabalhar na lavoura cafeeira no século XIX, o caráter imigratório foi se transforman-
do gradativamente para atender as demandas da indústria. Este modelo de crescimento manteve-se até a década de 1930, tendo nas indústrias de consumo de bens não duráveis como bebidas, tecidos e pequenos objetos, e a construção de vilas térreas o modelo de urbanização. XXX As posses ainda ocorriam, desde que longe o suficiente. Claro, quanto mais uma área tem interesse direto ou indireto por parte das elites e do mercado, mais ela é fiscalizada perante as leis. Tanto que, atualmente, favelas em regiões mais ricas ou de interesse ambiental coletivo são alvo de muito mais intervenções (de incêndios, despejos e investimentos públicos) do que aquelas mais longínquas, portanto relativamente esquecidas pelas leis, até que nasça algum outro interesse. Com a crise de 1929 e as consequências que se deram na economia brasileira, principalmente pela diminuição da exportação cafeeira e a dificuldade de importação de produtos não produzidos no Brasil, a indústria ganha recebe novo impulso, com sua produção superando a agrícola já em 1939 (SALLES, 2010, p.46). Se na primeira onda migratória São Paulo
58 recebeu majoritariamente estrangeiros europeus, a presença nordestina e de outras regiões brasileiras tem seu primeiro movimento em massa. Em 1940, a população ultrapassava 1,3 milhões de habitantes. A paisagem urbana a leste do centro se consolidava em no espraiamento com grandes glebas ocupadas por indústrias e bairros operários horizontais. A malha urbana era desenhada ao sabor dos loteadores particulares sem um plano ou regras bem definidos, resultando desde cedo num conjunto fragmentado e heterogêneo. Nessa região da cidade, o desenvolvimento econômico nascia sobrepujando o desenvolvimento urbanístico. Muito diferente do tratamento dado à cidade normalizada, na qual, nessa época, se divulgava o lindíssimo Plano de Avenidas.
Transformação Nos anos 1950, observa-se o início de um processo de progressiva desativação do parque industrial instalado no bairros imediatamente a leste do centro. Por trás disso, o Plano de Metas (década de 1956-1961) e mais adiante o período do Milagre Econômico(1968-1973) declararam a obsolescência da região em favor da construção um outro parque industrial no ABC paulista. No entanto, a paisagem urbana herdada por aquela particular forma de urbanização não se alterou. Muito pelo contrário, a região foi esvaziada pelas demandas do crescimento econômico sem que se propusessem outros usos em sintonia com as mudanças pelas quais a cidade passava. O próprio mercado tratou de transformas aos poucos os usos da região. Dada sua localização estratégica em relação às entradas da cidade, muitas fábricas foram dando lugar a grandes galpões comerciais e depósitos, mas muitas simplesmente foram jogadas ao abandono. O Brás, por exemplo, adquiriu
um caráter essencialmente comercial especializado. Dos 80 mil habitantes que tinha em 1940, atualmente ronda na casa dos 30 mil; muitos de seus antigos habitantes preferiram “migrar” para áreas mais longe a fim de construir sua casa própria e fugir do aluguel. Na mesma época, os governo estadual e municipal já aceitaram a dimensão iminentemente catastrófica que a imigração havia tomado. Datam das décadas de 1960 e 1970 a construção de um imenso volume de habitações sociais para os trabalhadores urbanos, esses agora não restritos à indústria, mas à crescente função predominantemente terciária para a qual a cidade caminhava. Entre as décadas de 1960 e 1970 a companhia Estadual de Casas Populares (CECAP, atual CDHU) fundada em 1967, e a Companhia de Habitação de São Paulo (COHAB), urbanizaram, somadas as áreas, mais de 21km² de superfície na zona rural do município (MEYER, 2010), atual “Região Leste 2”(MAPA com LOCALIZAÇÃO DOS CONJUNTOS). São 600 mil pessoas levadas para uma região extremamente longe do centro, onde os conjuntos habitacionais construídos não apresentam qualquer relação de urbanidade mínima. Essa população é considerada precariamente em sua condição humana e cultural. Esse processo de se abandonar o existente para criar o novo numa região mais afastada e mais barata marcou a formação territorial de toda a cidade. Foi assim que a Avenida Paulista nasceu como centro financeiro ao abandonar o centro, e é assim que as avenidas Faria Lima e Berrini nasceram, abandonando a Paulista. Nesses casos o poder público trabalha em conjunto com o mercado investindo altas somas de recursos econômicos: o sistema viário, de transporte, tecnológico, etc são construídos simultaneamente ao desenvolvimento. A diferença crucial desses casos com o dos descritos na Zona Leste é a enorme desproporção dos investimentos públicos. Foi tamanha a desproporção que uma delas gerou este trabalho.
59 A insustrialização induziu a urbanização da Zona Leste. Ao migrar para o ABC, muitas indústrias foram desativadas. Ao invés de aproveitar os espaços para promover uma reurbanização, o extremo leste, ainda zona rural, foi ocupado por ter terrenos mais baratos. Resumidamente, temos bairros centrais pouco denso com um patrimônio industrial obsoleto enuanto a extrema periferia densa tem de diariamente de deslocar ao centro para trabalhar e usufruir de uma série de serviços.
Diversas barreiras urbanas justapostas: megabarreira urbana
Enquanto na cidade formalizada as redes de mobilidade são cuidadosamente planejadas em função dos usos urbanos de seu entorno, a zona leste recebeu uma linha de trem construída ao lado da antiga Central do Brasil. Não bastasse o já elevado grau de fragmentação urbana oferecido pelas linhas de trem, a Radial Leste, uma via expressa que condicionava ao seu funcionamento a total separação com a malha local, foi construída paralela às linhas de trem, passando no meio de quarteirões inteiros e, para completar a cirurgia extremamente invasiva, a linha vermelha do Metrô que serve a região, além de ser praticamente construída em nível e servir a um público muito maior do que as linhas da cidade normalizada, precisou demolir quarteirões inteiros para ser construído. Em outras palavras, a ordem da eficiência na qual a menor quantidade de dinheiro público foi destinado à maior quantidade de população, gerou uma barreira assustadora que
destrói o sentido de vida urbana do entorno enquanto ela mesmo é o cordão umbilical das regiões mais afastadas, essas também com precária condição urbana, dada sua distância da participação social.
150m TREM TREM METRÔ VIAS
60 Indefinição A zona leste então chega ao fim do século XXI com um quadro preocupante. Ao longo de aproximadamente 150 anos, passou de um território rural para a zona mais densa e populosa do município e da metrópole. Da década de 1970 até atuamente, o que vimos foi a continuação exacerbada desse modelo de expansão que “resultou numa metrópole difusa e de baixa densidade” (MEYER, 2010, p.42). Esse conhecido padrão de crescimento no qual o extremo leste do município e as cidades vizinhas fazem crescer uma mancha urbana caracterizada pela precariedade urbana e ambiental se contrasta com a região central a qual há mais de duas décadas tem decréscimo populacional. Situação inexplicável do ponto de vista urbanístico, mas que revela o grau a que chegaram os impasses políticos. Nesses bairros centrais, a morfologia urbana se coloca praticamente inalterada em sua essência, os quais destacam-se os mais importantes: - grandes lotes industriais convertidos nos mais diversos usos; - loteamentos antigos de pequenas casas, muitas delas se configurando em verdadeiro patrimônio da identidade da região; - presença perniciosa das redes de transporte em massa como as linhas de trem, de metrô e da via expressa, que praticamente mantém o bairro ilhado em relação a si próprio e à cidade normalizada; - malha urbana fragmentada, devido sua origem em um parcelamento do solo sem planejamento; - baixíssimas densidades populacionais, ainda mais considerando a oferta de infraestrutura, equipamentos e espaços públicos e sua proximidade com as áreas com maior oferta de emprego da cidade;
Atualmente, bairros como a Mooca e Tatuapé continuam a serem transformada essencialmente pelas vontades e vícios do mercado. Sem se preocupar com o significado de suas construções na paisagem e na forma de vida urbana, hoje não passam da mais pura e intensa prática de extração da tenda da terra. A cidade está deixando de ser patrimônio do povo e dando forma a uma cidade genérica e sem identidade. Ao invés de considerar a história, os símbolos, as necessidades da região no contexto local e metropolitano, se vê apenas o padrão excludente dos condomínios murados que não agregam nada para a cidade, desde a falta total de relação com a rua a uma deprimente proposta arquitetônica. Não se trata de uma discussão estilística, pois, mesmo se fosse para serem construídos apenas edifícios
A cidade que já não era densa, ficou menos ainda.
61 neoclássicos, que, pelo menos ofereçam à cidade e seus moradores qualidade de vida pela convivência, não pelo status. O contrate dessas novas construções com o casario antigo é desagregador do ambiente urbano que a caracteriza esses bairros. As ruas que sempre foram espaços de convivência entre moradores e o pequeno comércio passam a ser apenas vias de passagem de automóveis apressados a chegar aos novos lugares (ou melhor, não-lugares) de convivência contemporâneos: shopping centers, megamercados, outros condomínios. Enquanto as áreas ambientalmente vitais para qualidade de vida da cidade como os mananciais , serras e florestas seguem cada vez mais violentadas próximo ao limite pela ‘antiurbanização’ gerada pela falta de
uma política pública capaz de reverter na cidade os interesses do mercado e da mentalidade excludente das elites, grandes áreas que poderiam abrigar um número alto de moradores e dar-lhes a eles à cidade condições dignamente humanas de vida continuam semidesérticas – apesar da ilusão que os movimentos pendulares em função do trabalho e comércio possa oferecer sobre uma suposta vida urbana. “A deseconomia gerada pela dissociação entre a densidade urbana e o pleno aproveitamento da capacidade de infraestrutura no Centro Metropolitano de São Paulo representa uma postura e um “custo urbano” que nenhuma política pública consistente pode desconhecer”. (MEYER, 2010, p. 31)
A deseconomia é de toda ordem, não apenas na economia propriamente dita. Trata-se de compreender o potencial humano, histórico, simbólico, social, artístico , etc, que grande áreas das cidades apresentam. É necessário explorar seu potencial e isso só é possível com uma política pública que as ocupe. Em áreas residuais, regiões e terrenos baldios, áreas baixas densidades e preço estão a grande oportunidade que o poder público tem de representar a sociedade como um todo, mas principalmente cada ser humano que não tem seus direitos garantidos. Consequentemente o ganho é geral: menos pessoas morando nos mananciais, menos custo de limpeza da água; menos deslocamentos, menos poluição e maior qualidade de vida; maior densidade, menor necessidade de construção de novos equipamentos. O potencial é enorme, mas o tempo corre. É necessário agir antes que o mercado se aproprie desse potencial urbanístico-humano e decrete de vez a falência da metrópole.
VIAS EXPRESSAS Enormes gastos públicos foram aplicados às vias expressas nas grandes cidades do mundo. A crença era de que essas vias reduziriam os congestionamentos e permitiriam ocupar regiões mais distantes como forma de garantia democrática à cidade. Atualmente, muitas ações governamentais ainda seguem essa direção, como foi o caso da ampliação de faixas da marginal Tietê em 2009. Sejam elevadas ou superficiais, essas estruturam dispendem altos custos de manutenção. Entretanto, essa visão começou a mudar. O caráter segregador e agressivo ao entorno das vias expressas é alvo de muitas críticas urbanísticas. Por sua definição, deve ter o mínimo de interrupções possível. Para isso, obriga a ter a mínima quantidade de acessos de veículos motorizados e nenhum acesso de pedestres e ciclistas. As transposições são sempre em outro nível, por viadutos e túneis, e em muitos casos elas simplesmente elas não existem. Nessas transposições é gerada quantidade considerável de espaços residuais e a própria via expressa não passa de um terreno sem nenhuma qualificação urbana. São verdadeiros terrenos-vagos que deterioram a vitalidade das cidades. E muito ao contrário do que se pensava, quanto mais vias, mais trânsito. Criar novas vias com intenção de aumentar a capacidade de carregamento apenas convida mais gente a utilizá-las. As vias devem ser criadas para abrir opções de tráfego, preferencialmente o de transporte público e de pedestres, e não para aumentar a capacidade de vias já existente. A origem desse modelo de crescimento foi a leitura norte-americana da cartilha modernista. Diferentemente do que pregava a Carta de Atenas, planejadores deste país se utilizaram da visão totalizante de cidade como forma de impulsionar o crescimento de sua indústria ao patrocinar a vida no subúrbio. A vida no subúrbio seria tranquila, feliz, calma e limpa, ao contrário da congestionada cidade compacta, poluída e barulhenta. Ironicamente, são estruturas fora da escala humana como as vias expressam é que
geram a perturbação que buscaram evitar. Um dos principais argumentos objetivos que prova essa tese é a desvalorização e degradação urbanos que geralmente se pode observar quanto mais próximo um terreno é influenciado por essas estruturas. Segundo relatório da ‘Institute for Transportation and Development Policy’ (ITDP, 2012), foi aprovada lei em 1956 que previa a construção de mais de 65.000 km de vias expressas nas cidades norte-americana. Para se ter dimensão da ousadia, o perímetro da Terra no equador é de 40.000km! O alinhamento político dos países latinos aos Estados Unidos influenciou o urbanismo de várias cidades. Rio de Janeiro, Bogotá e São Paulo, no qual tivemos o prazer da atuação de Robert Moses, são alguns exemplos. Como a prática do urbanismo rodoviarista está atrelada a geração de empregos na indústria automotiva e seu universo de manutenção, a transição para um modelo focado no transporte coletivo e na redução das distâncias – mas não das viagens – deve ser cuidadosamente e gradativamente planejadas. Do contrário, as consequências levariam a opinião pública geral a defender um situação ruim, mas que lhes garante suas condições de vida. Em São Paulo, a transformação da cidade para metrópole passava pela adesão da via expressa também. Temos duas de extrema importância encravadas na malha urbana, uma no sentido norte-sul e a outra no sentido leste-oeste. Este, que serve de tema para este trabalho, foi implantado de forma extremamente agressiva para a cidade e ao invés de contribuir para a requalificação de áreas, produziu sua deterioração. “A avaliação destes impasses viários deve ser objeto de projetos de reorganização viária em escala local que contemplem as possibilidades de circulação de pedestres e veículos, de forma a restabelecer a coesão entre vários trechos isolados pela passagem de grandes sistemas.” (MEYER, 2010, p. 270)
63 Ou seja, surgem dois novos desafios: recuperar a escala local das áreas prejudicadas pela construção das vias expressas ao mesmo tempo em que as novas soluções devam dar conta da escala metropolitana que essas vias criaram e sustentam. Vias expressas em encravadas nas malhas urbanas de Bogotá, Buenos Aires e Rio de Janeiro, respectivamente.
64 RADIAL LESTE “Radial Leste” refere-se à porção da ligação Leste-Oeste construída a partir do Parque D. Pedro II e é composta por um sequência de avenidas que segue cortando a região leste quase que infinitamente. Seu primeiro trecho foi construído na década de 1950 e ligava o Parque até a rua Piratininga. Para isso, o processo inicial já dava as notas do que iria se tornar o procedimento padrão: desapropriações e demolições em massa com a interrupção definida em projeto da malha urbana existente, configurando-se desde sua origem como uma barreira física. Construída em etapas, à medida que o tráfego solicitava mais demolições sucediam.
SOBRE A FERROVIA Enquanto o ritmo mais lento da cidade não era cortado pela passagem da ferrovia e enquanto as dimensões da cidade normalizada não engoliam a ferrovia, ela fluía calma pelas planícies fluviais tão favoráveis a sua implantação. À medida que a cidade cresce a ferrovia a acompanha. Maiores velocidades dos trens em intervalos menores de passagem. Construção de mais estações pois haviam mais bairros. Ao longo dela se instalaram as indústrias e seus bairros operários. A ferrovia segrega os bairros por quais corta ao mesmo tempo que só por existir a ferrovia outros bairros podem nascer. A ferrovia sempre foi a barreira urbana de uma cidade que ainda não existia.
Radial sem transversal
MALHA URBANA A formação da malha urbana de toda a cidade foi uma colagem (Colin Rowie) de sucessivas ondas loteadoras nas antigas chácaras rurais. O crescimento de cada uma delas atingiu na outra o limite de sua própria. Longe de ver isso como um problema, essa peculiaridade de São Paulo garante riqueza e identidade à cidade. Mas, ao contrário do que foi oferecido à região central e sudoeste, nas quais até hoje uma longa tradição na preocupação sobre as conexões da malha urbana perdura no melhor sentido de acupuntura urbana, a Zona Leste parece meio parada no tempo. As grandes intervenções na região são sempre totalizadoras e concentradas. Uma preguiça, um descuido. A Zona Leste sempre foi, apesar do seu tamanho e da quantidade de pessoas que ali vive, tratada genericamente. O eixo da Radial Leste é a maior prova. Por uma eficiência de gastos sem se preocupar com os efeitos sobre sua população e os lugares de sua identidade, nada menos que 3 linhas de ferro mais uma avenida expressa (que em qualquer lugar da cidade normalizada seria dividido em um sistema de avenidas paralelas) foram instaladas lado a lado. Uma observação atenta da malha urbana dessa região a partir de uma foto aérea revela essas diferentes redes de circulação: linhas de trem, de metrô, vias expressas, grandes avenidas, corredores de ônibus. Mas são redes que não se somam e são frequentemente interrompidas e assim não multiplicam as possibilidades de conexões em favor da população residente e jamais oferecem alternativas aos demais habitantes da metrópole. A rede metropolitana de mobilidade se confronta diretamente com uma malha urbana local de pequenas e desconexas ruas. Em um quadro assim, no qual a hierarquização e a distribuição dessas redes são extremamente incompletas. Não há um sistema de transição entre a escala
metropolitana e a local. Qualquer tentativa de empreendimento de qualquer natureza nessa região se revela sempre muito mais cara e arriscada do que nas regiões central e sudoeste da cidade. “O trecho urbano foi adaptado de forma extremamente circunstancial, muitas vezes aleatória e dissociada das demais dimensões urbanas” (MEYER, 2010, p.21)
SALUBRIDADE Em nome de uma suposta salubridade, o código de obras e o Plano Direto estabelecem limites de várias ordens. Coeficiente de aproveitamento, taxa de ocupação, recuos laterais e frontais, abertura das janelas, etc. Basta sair às ruas e observar as obras em andamento para perceber que essa legislação apenas favorece a continuação do modelo de baixa densidade que uma metrópole do tamanho de São Paulo não tem condições de se limitar. Em nome dessa suposta salubridade, contraditoriamente, uma enorme porcentagem de pessoas não encontram outra solução senão a morar em favelas, cortiços e casas auto-construídas em tantas outras condição realmente insalubres. É claro que seria desejável que cada uma das mais de 5milhões de famílias da região metropolitana de São Paulo pudesse viver em uma residência com jardins para todos os lados, mas isso seria inviável mesmo para uma cidade norte-americana baseada na vida no subúrbio. E não parece a situação mais absurda sob o ponto de vista da salubridade viver nos prédios de Manhattan, Copacabana, Paris ou Barcelona. (FOTOS DESSAS CIDADES). A salubridade nos termos em que nossa legislação de-
Planta de São Paulo em 1924. Diversos loteamentos seguindo cada qual sua vontade. No futuro todos se encontrarão.
67 termina parece apenas esconder um projeto antidemocrático e elitista dede selecionar pelo poder aquisitivo o acesso ao solo urbano. Pois apenas pouquíssima parcela da população tem renda que compre esse direito e o poder público se vê incapaz de solucionar ou, pelo menos, explicar problema. Afinal, se a preocupação com a saúde pública é tão forte, o que dizer sobre a qualidade do ar, o atendimento médico, a qualidade da água, dos rios... Conceito desenvolvido na carta de Atenas com a finalidade de combater as altas densidades insalubres dos bairros operários do século XIX hoje se transformou em um instrumento que contribui justamente para a formação deste mesmo problema. A salubridade gera doenças.
68 DENSIDADES Uma das questões principais que o urbanismo contemporâneo deve discutir é o conceito de densidade, principalmente se se aceita a ideia de cidade compacta como solução preferível para os problemas de escala metropolitana. Por uma série de razões já colocadas, o modelo de expansão paulista é considerado disperso e de baixa densidade. Buenos Aires tem sua mancha urbana com cerca de 200km² para 2,8milhões de habitante e Barcelona tem 102,2km² para 1,6 milhões(Wikipédia). São Paulo em 2001 tinha 1874km² de área urbanizada.(MEYER, 2010, p. 20) São Paulo apresenta, portanto uma densidade de 6,1mil’km², contra 16,8 mil hab/km2 de Barcelona e 14mil hab/km² de Buenos Aires. O conceito de densidade pode ser muito impreciso. Afinal, como calcular a densidade e como determinar qual valor é viável? Matematicamente, a densidade não passa da relação de uma relação entre duas grandezas para que se torne possível sua análise e comparação com outras situações eu envolvam as mesma grandezas. No caso das cidades, é comum comparar-se as regiões distintas pela quantidade de pessoas que vivem numa mesma unidade de medida sendo as mais comuns o quilômetro e o hectare. Com a finalidade de se estabelecer alguns parâmetro que dê conta de dar um panorama sobre a cidade de São Paulo e ao mesmo tempo servir de embasamento projetual com vistas à cidade compacta, foi feito um breve exercício. Primeiramente, foi preciso definir qual a escala da densidade. Isso significa dizer qual a população em qual área deveriam ser tomados como exemplo. Adotar as área e população totais da cidade ou metrópole não pareceu ser de grande utilidade. Cada Cidade tem área de reserva ambiental, florestal, algumas tem montanhas, outras estão em contato com o mar. A imprecisão que a mancha urbana está sujeita em seu dimensionamento
Jan Gehl disse em palestra na Universidade Mackenzie que a cidade modernista era planejada sob o olhar de um pássaro ou helicóptero, e que a cidade contemporânea deve ser projeta a partir do pedestre e do ciclista. A visão do helicóptero mostrava a cidade compacta e densa como um ambiente claustrofóbico. A visão do pedestre permite ver os detalhes dos prédios, das pessoas.
69 Cidade Buenos Aires
Paris
Rio de Janeiro
Nova York
Barcelona
Bairro Palermo Recoleta San Nicolás Monserrat Balvanera Arrondissement de Louvre Arrondissement de la Bourse Temple Popincourt Copacabana Botafogo Ipanema Leblon Rocinha Cidade Nova (Rocinha) Manhattan CB 8 Manhattan CB 7 Bronx CB 5 Manhattan CB 3 Manhattan CB 10 Ciutat Vellla Eixample Gràcia
Área 15,9 5,9 2,3 2,2 4,4 1,8 1,7 1,17 3,6 4,1 4,8 3,1 2,15 1,43 2,22 5,13 5,46 3,55 4,56 3,63 4,49 7,46 4,19
Pop 226.000 166.000 29.000 40.000 137.000 17.000 20.000 35.000 149.000 147.000 83.000 43.000 46.000 69.000 100.000 217.063 207.699 128.313 164.407 107.109 111.000 262.000 120.000
Densidade 14.214 28.136 12.609 18.182 31.136 9.444 11.765 29.915 41.389 35.854 17.292 13.871 21.395 48.252 45.045 42.312 38.040 36.145 36.054 29.507 24.722 35.121 28.640
forneceria números muito imprecisos para estabelecer uma comparação. Da mesma forma, como muitas vezes é feito, a densidade no interior de uma quadra não se mostra muito vantajosa. Considerando, por exemplo, que em algumas quadras há edifícios institucionais, comerciais , históricos e também considerando a necessidade de se manter a diversidade de tipologias, a diferença numérica que se chega a partir de análise de quadras que podem estar uma ao lado da outra não nos permitira comparar efetivamente. Dessa forma, a relação que mais se mostrou válida para a finalidade proposta, foi a da densidade de bairros consolidados. Essa relação apresenta uma série
70 de vantagens: limites físicos e levantamento populacional muito precisos, proporção de espaços públicos, institucionais, comerciais, de escritórios, de parques, etc incluídos assim como a proporção da superfície da rede viária e de circulação. Ou seja, longe de se estabelecer regras de proporção de quantidade de árvores por habitante ou de área de espaço público por unidades habitacionais, a análise se baseia na observação de bairros existentes e que são amplamente aceitos como ótimos modelos de cidade. São modelos porque apresentam boa relação de espaços público, diversidade de usos, áreas verdes, etc. E essa boa relação define-se muito mais subjetivamente do que a partir de análises estatísticas. A escolha das cidades e dos bairros para comparação se baseou em visita própria a algumas delas e a sugestões quase que unânimes de colegas. “Por que são os melhores bairros?”, “Não sei, porque são!”. Mas se algum dado mais objetivo é necessário, basta mencionar que são geralmente cidades mais visitados no mundo, com preços de terreno mais elevados ou são os bairros mais cobiçados em suas cidades. Foram escolhidas segundo o critério acima definido as cidades: Paris, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Nova York e Barcelona. Todas elas apresentam bairros compactos e são mundialmente conhecidas pela diversidade cultural, paisagística, arquitetônica, etc. Foram selecionados alguns bairros de cada uma dessas cidades, dentro de um universo maior, que representam as ocorrências mais comuns. Em Manhattan, facilmente se pode encontrar densidades acima de 30mil hab,/km² de maneira bem homogênea. Paris, por outro lado, apresenta alguns bairros menos densos, devido ao seu caráter turístico e governamental, mas apesenta média em torno de 25mil hab/ km² facilmente, chegando a alguns casos na casa dos 40mil. Barcelona não tem extremos muito acentuados, mas consegue ter uma gama mais diversificada que Nova York, sempre entre 20 e 30 mil habitantes por km². Buenos Aires apresenta bairros menos densos e outros mais densos, e tem a condi-
ção de capital do país, bem semelhante a Paris. No Rio de Janeiro a situação já revela algumas diferenças das cidades brasileiras. Os bairros mais densos ficam na casa de 15 a 20 mil hab/km² em média com a exceção de Copacabana, que é famosa já há muito tempo por sua alta densidade. Essas situações urbanas apresentam escalas de densidade muito semelhantes. Densidades que confirmam a definição da cidade compacta. Mas apesar de números semelhantes, cada cidade tem sua identidade, sua paisagem urbana, forma de viver e de conceber o espaço muito próprios. A qualidade arquitetônica e a proporcional oferta de serviços urbanos é que vai definir a qualidade de um lugar. Mesmo que se argumente por uma suposta redução da iluminação e ventilação naturais, devemos lembrar que está aí a função primordial do espaço público. Em certo “detrimento” da possibilidade de maior quantidade de aberturas nos apartamentos individuais, deve-se encontrar em todo espaço público, da calçada ao parque, a disponibilidade compatível com o número de habitantes. Copacabana só consegue ser densa, pois tem a praia como contraponto; Barcelona tem além da praia, as famosas Ramblas; Buenos aires tem um sistema de praças e parque médios e pequenos distribuídos homogeneamente pela cidade; Nova Iorque tem o perímetro da ilha com vista para o mar e o Central Park, 4 vezes maior que o Ibirapuera; Paris tem na relação com o rio e um sistema intenso de micro espaços seu desafogo. A favela da Rocinha foi propositalmente colocada para reforçar o argumento. Mesmo Copacabana tendo maior fama, a maior favela da América Latina já tem densidade superior. E como toda favela, pela falta dos itens que configuram a cidade compacta (vias confortáveis, espaços públicos em quantidade e qualidade suficientes, etc) é no espaço privado de cada um que muitas vezes se encontra a função pública: comércio dentro das casas, lavadoras de roupa nas vielas, a laje como espaço público por excelência,
71 e por aí vai. Por outro lado, é justamente a densidade que apresentam que, naturalmente, cria a relação de vizinhança e de amizade (muitas vezes de conflitos, mas não deixa de ser uma relação e, portanto, válida). Ou seja, reforça-se a ideia de que não é a densidade o problema, mas a forma como uma área é densificada. E mesmo de um espaço mal qualificado como as favelas, não são poucos os que não abrem mão dela. A comparação com São Paulo será feita no próximo capítulo. Não se está tentando considerar as pessoas como estatísticas e números. Eles servem como forma de enxergar a cidade que está sendo construída e comparar com as necessidades existentes. E entre as necessidades, está o desafio de considerar cada ser humano individualmente dentro de uma política pública de intervenção em massa.
Simulação de área necessária para comportar a população prevista pelo Plano Municipal de Habitação para 2024
SOBRE A POLÍTICA PÚBLICA Déficit 2024: 840.000 unidades 840.000 x 3 = 2.520.000 habitantes
30.000 hab/km² 84km² 25.000 hab/km² 100,8km² 20.000 hab/km² 126km² Vancouver(Canadá) 2,425,000 San Juan (Porto Rico) 2,275,000 Belém (Brasil) 2,225,000 La Habana(Cuba) 2,225,000
Regina Meyer (2010) levanta uma importante questão sobre a política pública de produção de moradia em relação ao controle do uso do solo. Tomando as intervenções do metrô no bairro do Brás para a construção da linha vermelha de metrô, chama atenção para um paradoxo: em muitos terrenos desapropriados para a construção, o poder público investiu na construção de habitação de baixa renda. Entretanto o modelo de condomínio fechado construído de baixa densidade reforça justamente a tendência mercadológica de oferecer padrões arquitetônicos e urbanísticos que favoreçam a segregação social. Esse exemplo demonstra claramente as diversas contradições que os planos sempre apresentaram, dissociando muitas vezes, a maioria no campo da justiça social, o discurso dos resultados. Enquanto a política pública não conseguir clareza e agilidade eficazes, sempre será vítima de
72 rasteiras, algumas recebidas de si própria.
SOBRE OS INSTRUMENTOS DE INTERVENÇÃO URBANA Segundo dados do Plano Municipal de Habitação da cidade de São Paulo 133 mil domicilio se encontram atualmente em situação de risco e precisam ser substituídos. Somando a esse número as famílias que vivem em situação de compartilhamento de domicílios o resultado sobe para 227 mil unidades a serem construídas. Até 2024, o PMH calcula em 840 mil novas unidades para atender as demandas atuais e as que virão. Considerando que atualmente existem cerca de 3,5milhões de unidades construídas ao longo da história recente da cidade, como será possível atender a essa demanda? Seria necessária a construção, seja pelo mercado ou pelos governos, de uma média de 56mil unidades por ano. Considerando a construção de escritórios, edifícios públicos como escolas, creches e hospitais, hotéis e a vacância natural de qualquer mercado, o número de unidades construídas sobe em grande quantidade. Considerando todas as tipologias de uso citadas, o total de unidades construídas em 2011 foi de 45 mil (Revista EXAME, 12/04/2012). A pergunta mais importante é ONDE serão construídas essas unidade? A cidade de São Paulo hoje já tem até em suas periferias um esgotamento de espaços. Mesmo em regiões de encostas e de proteção ambiental parece já não haver mais espaço viável para seguir a expansão da mancha urbana. E mesmo se houvesse espaço abundante, locomover mais pessoas para ainda mais longe não parece muito promissor, já que significa mais investimentos em infraestruturas como de transporte de massa e de esgotos que beiram o colapso. Considerando um bairro com densidade média de 20.000 hab./km² e uma média de três pessoas por família, seria
necessário um terreno livre de 126km² para essa nova cidade que chegará à existente. O Centro de São Paulo (Brás, Pari, Bela Vista, Bom Retiro, Cambuci, Consolação, Liberdade, República, Santa Cecília e Sé), por exemplo, tem 32km² no total. Está claro que a resposta mais adequada para uma tentativa de solução dos problemas atuais e dos já previstos decorrentes do crescimento da cidade só podem passar pela construção de uma cidade compacta com densidade compatível com o modo de vida do Paulistano. E para se conseguir a construção dessa cidade, os instrumentos urbanísticos devem responder a um projeto de cidade a partir de metas quantitativas e qualitativas compatíveis, encarando a dimensão dos números sem se esquecer de que se trata de 840 mil novas famílias, cada uma com suas relações, história e identidade. Nas basta apenas construir habitações, mas recuperar a ideia de cidade. São Paulo apresenta bairros com densidades relativamente baixas e que podem tranquilamente comportar o acréscimo populacional previsto. Para se intervir no solo urbano, há desde a constituição de 1988 uma série de instrumentos que foram regulamentados pelo Estatuto da Cidade e incorporados individual e obrigatoriamente a cada cidade de acima de 20mil habitantes em Planos Diretores. Assim fala o PDE: SEÇÃO I - DOS INSTRUMENTOS URBANÍSTICOS Art. 198 - Para o planejamento, controle, gestão e promoção do desenvolvimento urbano, o Município de São Paulo adotará, dentre outros, os instrumentos de política urbana que forem necessários, notadamente aqueles previstos na Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade e em consonância com as diretrizes
73
contidas na Política Nacional do Meio Ambiente:
I - disciplina do parcelamento, uso e da ocupação do solo; II - gestão orçamentária participativa; III - planos regionais; IV - planos locais de bairro; V - programas e projetos elaborados em nível local; VI - IPTU progressivo no tempo; VII - contribuição de melhoria; VIII - incentivos e benefícios fiscais e financeiros; IX - desapropriação; X - servidão e limitações administrativas; XI - tombamento e inventários de imóveis, conjuntos urbanos, sítios urbanos ou rurais, acompanhados da definição das áreas envoltórias de proteção e instituição de zonas especiais de interesse social; XII - concessão urbanística; XIII - concessão de direito real de uso; XIV - concessão de uso especial para fim de moradia; XV - parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; XVI - consórcio imobiliário; XVII - direito de superfície; Esse conjunto de instrumentos deve ser utilizado pelas prefeituras como forma de viabilizar a reorganização urbana, sobrepondo-se aos interesses individuais do mercado. Mas diante dos resultados de uma década do
PDE, período no qual observamos apenas UMA ZEIS 3 funcionar e, claramente os instrumentos não estão agindo no centro da lógica capitalista. Muito pelo contrário, apenas as Operações Urbanas parecem ganhar vida, já que favorecem a construção de habitações para as classes média e alta. O mercado não reage aos incentivos para a construção de habitação popular e o Estado acaba sendo cobrado para construir isolado toda a demanda para os setores de menores rendas. O resultado é mais que óbvio: a auto construção em zonas cada vez mais isoladas ainda predomina. “ao contrario dos países centrais, onde os instrumentos urbanísticos surgem no pós-guerra no contexto do estado bem estar social, no Brasil os instrumentos aparecem como uma tentativa de reação face a um modelo de sociedade e de cidade organizada de forma propositalmente desigual, o que muda completamente seu potencial e seu possível alcance. Aqui trata-se de reverter a POSTERIORI um processo histórico cultural de segregação sócio-espacial, o que significaria dar ao Estado a capacidade de enfrentar privilégios urbanos adquiridos pelas classes dominantes ao longo de sua hegemônica atuação histórica de 500 anos.” (WHITAKER, 2005, p.17)
A suposta dificuldade técnica de adensamento esconde os entraves políticos e ideológicos: mercado dominante que se interessa em construir para classes médias e elevadas por maiores lucros, resistência de boa parte da população à cidade compacta (bucolismo ilusório), especulação imobiliária sobre terrenos centrais, etc. Os instrumentos urbanísticos devem ser aperfeiçoados em face do dinamismo e da velocidade das transformações pelos
Relação das ferrovias com a topografia e aspecto da expansão ao extremo leste do município Mapa: elaboração do autor Foto: Heliana C. Vargas
75 quais a cidade passa, função que o mercado executa muito bem. Trata-se de uma questão de sobrevivência, inclusive das ‘classes dominantes’.
DIRETRIZES E CONCLUSÃO Tentou-se percorrer alguns dos principais temas que foram considerados vitais para a análise e compreensão do que significa a metrópole de São Paulo no contexto da contemporaneidade. Ainda que seja impossível colocar todos os pontos desejáveis em poucas páginas, espera-se ter deixado claro que o urbanismo necessário à nossa metrópole passa pelas questões de desenho urbano, planejamento econômico desde a micro à macroeconomia, mas também deve recuperar abordagens sociológicas, a dimensão cultural, a noção do indivíduo. A justiça social que se dá pela inclusão nem seria de outra forma: é lei! Para o prosseguimento do trabalho, resumidamente algumas diretrizes foram definidas: - cidade democrática, humana, convidativa ao relacionamento, a arte, expressão cultural, do trabalho como condição humana e não como alienação dentro do sistema produtivo, do ócio não apenas como tempo livre, mas como processo constante e concomitante ao do trabalho. - A cidade deve ser compacta: ainda que varie de bairro para bairro, considerando histórico, características topográficas, relação com os bairros vizinhos, cada área deve ter uma densidade mínima como meta; - deve favorecer a mobilidade, reduzindo deslocamentos desnecessários (moradia próxima do trabalho): movimentar-se pela cidade é desejável. Não se postula que cada morador limite-se ao seu bairro. Moverse abre novas possibilidades de se conhecer novas pessoas, novos eventos, novas paisagens, novas inspirações. O que se postula aqui é que devemos aumentar as possibilidades de circulação, evitando custos sociais (engarra-
famentos, valorização excessiva, etc, tempo), principalmente nas questões cotidianas como é o trabalho; - deve apresentar uma generalização na oferta de infraestruturas de transporte: assim a renda diferenciada tende a diminuir, facilitando o acesso a terra e, consequentemente, à cidade. Dessa forma as regiões precisam ter áreas verdes, institucionais, históricas, transporte, infraestrutura de dados, disponíveis em condições satisfatórias a todas. - deve promover uma política habitacional séria e eficiente. Seja construindo unidades de boa qualidade arquitetônica, preferencialmente em contexto urbano consolidado, seja pela busca de uma real pareceria com o mercado privado através do uso intenso da ZEIS 3; - combater seriamente a degradação urbana e ambiental que existe em função do “sequestro” sofrido pela terra urbana qualificada pelas elites. - recuperar o sentido do projeto púbico de espaços e de edifícios públicos para todos os públicos: não são concebíveis espaços públicos gradeados e controlados p - garantir a multiplicidade de usos e pessoas, principalmente abrindo espaço para que a apropriação e a transformação espontâneas da cidade aconteçam sempre possível. - e tudo mais que for generoso, libertador e belo! “A necessidade de se manter o território urbano coeso, diante da permanente ameaça de diluição, só será satisfeita se forem abandonados os procedimentos normativos e simplificadores, nos quais não cabem nem a complexidade nem os processo dinâmicos, a qual depende de forma muito clara da qualidade dos espaços públicos oferecidos para a população exercer sua atividade cotidiana”(MEYER, 2010, p. 59)
ensaio projetual
77 Edifício de apartamentos em Hong Kong
Até o momento, o trabalho pretendeu construir uma base teórica sustentada em dois pontos: a) adoção da complexidade de temas, abordagens, leituras que a cidade pode apresentar em contraposição à redução funcional racionalista que a cidade modernistas pretendia. b) análise metropolitana considerando fatores de diversas natureza, sejam eles psicológicos, históricos, sociais, econômicos, morais, legais, culturais, etc. Neste capítulo será apresentado um ensaio projetual sobre a metrópole contemporânea. O Objeto escolhido foi trecho do eixo da Radial Leste. Escolhi porque toda vez que passava por ela, seja de trem, metrô, carro ou, raramente, a pé algo me confundia. Seus viadutos permitem visões panorâmicas da região. Veem-se fábricas, casinhas, vazios imensos. Questionava-me como ninguém estranhava aquela situação. Como ninguém percebe um abismo no meio da cidade? Lembro-me quando era criança e me questionava como “Reservado” deveria ser uma lugar péssimo de se viver, pois os ônibus com essa inscrição passavam sempre vazios. Mas é importante reiterar que esse objeto serve tão somente de modelo metodológico de intervenção. Outras regiões da cidade poderiam ser alvo da mesma discussão: como intervir na escala local para responder a problemas metropolitanos (?). Ou seja, buscou-se entender como cada ação física na escala 1:1 (pois é essa a única escala possível) pode interferir em tantas outras. Um dos erros do planejamento urbanos tradicional foi planejar sobre simplificações estáticas da realidade (plantas 1:10.000) que prometiam obedecer “tijolo por tijolo num desenho lógico”. Para explicar o projeto, cinco abordagens temáticas são consideradas, mas que na prática se apresentam simultaneamente.
78 DISTRITO
DENSIDADE Demonstrou-se no capítulo anterior que uma das demandas mais importantes de São Paulo (na verdade, da maioria das cidades do mundo “subdesenvolvido”) é a habitação. Aqui entendemos a habitação num contexto mais amplo, segundo o qual certa quantidade de outros usos, como comércio e serviços, atrelados a ela garantem sua condição de uso pleno. Ao déficit de 840mil unidades previsto até 2024 somam-se a construção de toda essa gama de usos também. Por isso, partindo desse número e do conceito de densidade desenvolvido anteriormente, é possível estimar a população que cada região consolidada da cidade pode receber a mais. Podemos observar na tabela a seguir que São Paulo apresenta densidade habitacionais baixas se comparadas a cidades como Barcelona e Buenos Aires. Para piorar, ao cruzá-la com a densidade de oferta de empregos percebe-se a dimensão do problema. Neste trabalho, propõem-se densidades semelhantes, mas compatíveis com as existentes na cidade. Tomando como base os bairros mais visados pelo mercado que tenham reconhecidamente características mais próximas de uma cidade compacta como Perdizes, Moema, República, Cerqueira César observamos que densidades entre 15 a 25 mil habitantes por km² é aceitável culturalmente pela cidade. Entretanto, considerou-se a hipótese de adensar os bairros centrais com taxa de 30mil hab/km², já que nas outras cidades a ocorrência desse valor é relativamente comum. Bairros considerados de elite como Perdizes, Morumbi e Moema foram excluídos do estudo por alguns terem zoneamento que não permitiria densificar muito, alguns já tem densidades razoáveis e muitos de seus moradores se oporiam com a força que o poder econômico
TOTAL
1 Aricanduva 2 Butantã 3 Campo Limpo 4 Capela do Socorro 5 Casa Verde 6 Cidade Ademar 7 Cidade Tiradentes 8 Ermelino Matarazzo 9 Freguesia do Ó 10 Guaianases 11 Ipiranga 12 Itaim Paulista 13 Itaquera 14 Jabaquara 15 Jaçanã 16 Lapa 17 M'Boi Mirim 18 Mooca 19 Parelheiros 20 Penha 21 Perus 22 Pinheiros 23 Pirituba 24 Santana 25 Santo Amaro 26 São Mateus 27 São Miguel 28 Sé 29 Vila Maria 30 Vila Mariana 31 Vila Prudente Municipio
ÁREA (km²) 21,5 56,1 36,7 134,2 26,7 30,7 15,0 15,1 31,5 17,8 37,5 21,7 54,3 14,1 64,1 40,1 62,1 35,2 353,5 42,8 57,2 31,7 54,7 34,7
POPULAÇÃO (2010) 267.702 428.217 607.105 594.930 309.376 410.998 211.501 207.509 407.245 268.508 463.804 373.127 523.848 223.780 291.867 305.526 563.305 343.980 139.441 474.659 146.046 289.743 437.592 324.815
37,5
238.025
45,8 24,3 26,2 26,4 26,5 33,3 1509
426.764 369.496 431.106 297.713 344.632 531.113 11.253.473,00
DENSIDADE 12.451 7.633 16.542 4.433 11.587 13.388 14.100 13.742 12.928 15.085 12.368 17.195 9.647 15.871 4.553 7.619 9.071 9.772 394 11.090 2.553 9.140 8.000 9.361 6.347 9.318 15.206 16.454 11.277 13.005 15.949 7.458
Densidades por distrito da cidade de São Paulo. Confirma o caráter difuso e de baixa densidade, com poucas exceções. Fonte: PMSP
Distribuição dos empregos e densidades populacionais contrapostas: Onde há trabalho mora pouca gente enquanto onde se concetram mais pessoas, não há trabalho. Grandes deslocamentos diários denunciam a deseconomia urbana gerada por esse modelo de coupação do território. Fonte: Pesquisa Origem Destino de 2007
lhes confere. Além disso, são bairros com alto valor da terra, o que inviabilizaria qualquer pretensão mais eficiente de intervenção. Outra questão importante sobre essa estratégia é a questão das urbanizações de favelas. Por conta dessa não inserção urbana, muitas favelas passam por processos de “urbanização”. Ainda que pareçam boas ações, na verdade elas consolidam a situação calamitosa que as gerou. É como se a sociedade inteira dissesse qual o lugar que essas pessoas merecem: longe! O exercício revelou que, dependendo da densidade adotada, a área selecionada tem condições de comportar tranquilamente de 470mil a 1 milhão de novas famílias a mais. Esse valor não dá conta de toda a demanda, mas seguramente se revela como um dos componentes que a política pública de intervenção no território deve adotar se não quiser continuar investindo no modelo de crescimento atual. Se quiser, aliás, São José dos Campos, Campina e Sorocaba já estão logo ali! Ao se propor essas densidades, não estamos falando de muquifos insalubres. Estamos falando de habitações compatíveis com o tamanho médio das famílias atual e que completemos nos edifícios e espaços públicos as atividades que fazem e cada homo sapiens um ser humano. O poder público deve estabelecer sangrento
Densidade de População ( hab/km²) e Densidade de(emp Empregos de Empregos /km²) (emp/km²) 2007 2007 em em distritos distritos de de São São Paulo Paulo ee demais demais municípios municípios At é 2,5 2,5 a 5 5 a 7,5 7,5 a 10 10 a 15 mais de 15
80 combate para que esses usos não sejam sequestrados ao cativeiro egoísta que os condomínios fechados praticam todos os dias com seus amplos e fantasmagóricos espaços de lazer. O ócio criativo deve vender o ócio ostentativo. Não se trata de um exercício ingênuo querendo transformar São Paulo numa cidade à cara de outra. Estamos falando de importantes decisões: reversão do modelo de espraiamento frente à deseconomia que ele implica, inclusão sócio espacial da massa populacional que tende a ser engolida pela pantanosa periferia social, a diminuição dos deslocamentos diários de longa distância em favor dos de média distância em transporte público, etc. Decisões que promovem melhores condição de saúde física e menta, que diminuem a tensão social que gera violência urbana, enfim, que geram bens coletivos. É claro que uma atitude dessa demandaria uma política pública séria e dinâmica de intervenção no território com parcerias com o setor privado, mas é preciso saber antes ONDE se quer chegar antes de saber COMO.
81
km²
POPULACAO
DENSIDADE DENSIDADE han/km² hab/km²
DISTRITO
ÁREA
POPULACAO
DENSIDADE
Barra Funda Lapa Casa Verde Limão Santana Vila Guilherme Vila Maria Água Rasa Belém Mooca Tatuapé Vila Prudente Ipiranga Saúde Vila Mariana TOTAL
5,6 10
14.383 65.739
2.568 6.574
7,1 6,3 12,6 6,9 11,8
85.624 80.229 118.797 54.331 113.463
12.060 12.735 9.428 7.874 9.616
6,9 6 7,7 8,2 9,9 10,5 8,9 8,6 127
84.963 45.057 75.724 91.672 104.242 106.865 130.780 130.484 1.302.353
12.313 7.51 9.834 11.180 10.529 10.178 14.694 15.173 10.255
DENSIDADE SIMULADA
POPULAÇÃO
ACRÉSCIMO FAMILIAS
20.000 25.000 30.000
ACRÉSCIMO POP
2.540.000 3.175.000 3.810.000
1.237.647 1.872.647 2.507.647
412.549 624.216 835.882
Brás Pari Bela Vista Bom Retiro Cambuci Consolação Liberdade República Santa Cecília
3,5 2,9 2,6 4 3,9 3,7 3,7 2,3 3,9
29.265 17.299 69.460 33.892 36.948 57.365 69.092 56.981 83.717
8.361 5.965 26.715 8.473 9.474 15.504 18.674 24.774 21.466
Sé TOTAL
2,1 32,6
23.651 477.670
11.262 14.652
DENSIDADE SIMULADA
POPULAÇÃO
ACRÉSCIMO FAMILIAS
20.000 25.000 30.000
652.000 815.000 978.000
ACRÉSCIMO POP
174.330 337.330 500.330
58.110 112.443 166.777
DENSIDADE SIMULADA
ACRÉSCIMO TOTAL DE PESSOAS
ACRÉSCIMO TOTAL DE FAMILIAS
20.000 25.000 30.000
1.411.977 2.209.977 3.007.977
470.659 736.659 1.002.659
*média de 3 pessoas por familia Fonte: IBGE
BAIRROS CENTRAIS DA METROPÓLE
ÁREA
SIMULAÇÕES
BAIRROS CENTRAIS DA CIDADE SIMULAÇÕES
Alguns distritos foram desconsiderados do Centro da metrópole para efeito de cálculo pois se propõe prioridade para os distritos menos equipados.
DISTRITO
TOTAL CENTRO CIDADE + CENTRO METRÓPOLE
Duas regiões delimitas: Centro da cidade e Centro da Metrópole. Para cada um deles fotam simuladas a população ue poderiam comportar. Por último, forma somados os resultados.
km²
hab/km²
82 USO MISTO
CARÁTER SIMBÓLICO
Não adiantaria nada entupir bairros inteiros com densidades que extrapolam a tradição paulistana se não garantir a diversidade. Diversidade de usos, com as mais variadas apropriações dos espaços: comércio de tapetes, restaurantes, batatas, tapioca, serviços médicos, mecânicos, metafísicos, metafóricos. Mas diversidade de tempos também: uma rua sossegada, outra intensa, aquela avenida cheia, outra um convite à preguiça.
Mas também deve ser muito bem observado o caráter simbólico da cidade. A cidade deve promover o estímulo à memória que dá significado à existência. E para isso as paisagens, a história, as tradições, os monumentos, a beleza de formas e significados devem ser todos valorizados ao mesmo tempo que se permita que as pessoas recriem todos da forma mais espontânea possível.
MALHA URBANA
ECONOMIA
E não adianta nada entupir os bairros inteiros com gente se divertindo nas mais diversas atividades e tempos se elas não se locomovem com facilidade. A Malha urbana deve ser porosa a tanta diversidade. Circular não é mais uma questão de eficiência, mas de possibilidades de contato, de relacionamento de uma pessoa com o espaço, com outras e consigo mesma.
Mas não só de poesia vivemos. As tarefas cotidianas devem ser valorizadas sob o conceito do trabalho como atividade humana cultural, não como submissão alienada às linhas diversas de produção. Essa tarefas multiplicam os encontros, que por sua vez multiplicam as possibilidades de conhecer o outro e do autoconhecimento. O comércio, a libre iniciativa de criação e de invenção, os mais diversos fluxos, entre outros, definem a economia e não a visão financeirizada que reproduzimos hoje.
83 O PROJETO Antes de começar a descrição do projeto, cabe uma nota importante. Não é preocupação do projeto dar as respostas técnicas de como executar o projeto. Trata-se de um ensaio projetual conceitual. Até por isso, foi selecionado apenas um trecho da Radial, sem se preocupar com a interface, de um lado, com o Parque D. Pedro II e, de outro, com a continuação que segue até o fim do mundo! Ao se projetar a intervenção, não se preocupou muito com o resultado formal estético final e sim com o significado e o impacto de cada uma das medidas adotadas. Ou seja, com certeza outras soluções muito melhores de desenho do projeto podem ser encontradas, mas o importante é que o ensaio apresentado revele os potenciais que podem ser extraídos em cada uma de suas ações. Completando, transferindo a discussão de Roberto Schwarz sobre “As ideias fora do lugar” para o plano projetual, uma das preocupações mais importantes que esse trabalho teve foi a de não cair na tentação infantil de querer reconstruir o maravilhoso mundo constantemente reconstruído pelo nosso “complexo de vira-lata”. Foi apresentada no primeiro capítulo uma série de conceitos e discussões geradas em âmbito internacional como crítica ao modelo modernista de cidade com vistas a sua superação. Tentou-se dar a esses conceitos teóricos uma visão crítica que considere fatores que não foram considerados pelos seus autores pela óbvia diferença cultural e histórica que temos guardada entre nós (brasileiros/latinos “subdesenvolvidos” – europeus/norte-americanos “desenvolvidos”). Por isso temas como a propriedade do solo, a especificidade da industrialização, a desigualdade social, a sociedade de elite, etc foram levantados e o projeto pretende responder minimamente a elas. Do contrário, seria apenas mais uma caso auto descolamento retiniano para tentativa de cópia do modelo externo. Apenas tentativa:
“Aquela plataforma é fundamental lá no Plano, em três níveis, naquele cruzamento [...]. É que eu tinha concebido essa plataforma rodoviária no centro do Plano Piloto como um centro muito cosmopolita [...] como uma coisa muito civilizada e cosmopolita. O café, com aquela vista linda da esplanada [...]”. No entanto, segue ele, “invés daquele centro cosmopolita requintado que eu tinha elaborado, [a Plataforma] tinha sido ocupado pela população periférica, a população daqueles candangos que trabalham em Brasília. Era o ponto de convergência, onde eles desembarcavam e havia então esse traço de união, era um traço de união entre a população burguesa, burocrata com a população obreira e que vivia na periferia”. E assim, diante da apropriação popular da Plataforma Rodoviária e dos espaços urbanos conexos, ele se rende constatando que “Foi o Brasil de verdade, o lastro popular que tomou conta da área. Isso deu uma força enorme à Capital, me fez feliz de ter contribuído involuntariamente para essa realização.” 3
84 O projeto consiste na transformação do conjunto da Radial Leste considerando a avenida expressa, as linhas de trens, as áreas residuais, os entroncamentos viários. Esse conjunto é considerado em sua potencialidade de transformação dadas suas dimensões e sua inserção estratégica na cidade. Primeiramente, a linha 3 do metrô foi enterrada. Construída na superfície por “falta” de dinheiro, ele deve ter seu lugar por definição respeitado. É só imaginar como seria a linha verde sobre a Avenida Paulista para imaginar o quanto a situação atual da linha 3 é prejudicial à cidade. Na sequência, as duas linhas de trem são condensadas em apenas uma, que foi elevada e convertida ao sistema do monotrilho. Dessa forma, temos a possibilidade de usar a superfície liberada para a reconfiguração viária da região. Ao contrário do metrô atual, o monotrilho foi pensado, a exemplo do Parque das Eclusas, como elemento paisagístico da cidade. Leve e silencioso, simbolizaria a nova era que a metrópole entraria. (IMAGEM TREM ALEMANHA) As estações de metrô no nível do chão, por apresentarem amplos pé-direito e vãos, seriam convertidas em edifícios culturais e esportivos. Um projeto de retrofit para cada um requalificaria sua inserção urbana.
Atualente, o espaço entre os bairros que a Radial ocupa poderia ser considerado um vácuo urbano. Na proposta, as conexões são refeitas, mas não aleatoriamente ou segundo vícios visuais. Foram escolhidas as que fazem parte de um sistema maior, conectando a outras avenidas e assim formando a malha. Isso também permite que ruas menores mantenham seu caráter mais local e lento.
A avenida Radial Leste seria totalmente convertida em avenida coletora a exemplo da Av, Rebouças ou Faria Lima. Isso significa que seu caráter expresso é totalmente eliminado em nome de um projeto de micro acessibilidade necessária. Para isso todos os viadutos e passarelas, inclusive as que dão acesso às estações de metrô, são removidos. No lugar delas, a malha urbana seria recomposta criteriosamente o que geraria cruzamentos com semáforos em intervalos de 100 a 300 metros, como em qualquer outra avenida da cidade. Atualmente, a média de distância que um pedestre deve percorrer para transpor a Radial passa dos 500 metros, chegando a mais de 1km em alguns casos! Diminuir a velocidade máxima dos carros é outra consequência que valoriza o andar a pé, gera menos ruídos e menos acidentes; a velocidade média não se alteraria, já que o trânsito há tempos se encarregou disso. Só no trecho selecionado, os cruzamentos são triplicados.
Pretende-se aumentar a densidade. A primeira linha representa o estado atual. Na segunda, seria o erro de incenticar substituir a maioria do existente por prédios. A proposta considera que é possível aumentar a densidade ao memso tempo que parte do existente se mantenha.
85 Além de recompor as transposições pela avenida, ela seria dividida em duas, formando um sistema binário. Como a largura total da Radial chega facilmente a mais de 100 metros, o espaço entre essas duas novas avenidas pode ser ocupado das mais diversas formas: parques, praças, edifícios mistos e equipamentos públicos. Ao se construir edifícios se constrói o vazio espacial, mas cheio de significado. Jogo de volumes. A avenida atual é extremamente longa, parte do centro e segue cortando o território até o extremo leste. Pensando em evitar a monotonia, as avenidas seguem no projeto em traçado sinuoso e independente, ou seja, cada um delas tem seu próprio desenho e se encontram e desencontram o tempo todo. Essa estratégia gera uma quantidade imensa de visuais variados, espaços de diferentes configurações e escalas, sobras, perspectivas, o que permite a cada um identificar em que bairro se encontra, ou seja, dando o sentido de lugar a cada ponto. Imagina-se que uns irão serem mais frequentados que outros, uns mais ou menos transformados espontaneamente pela população. As possibilidades são imprevisíveis. O desenho sinuoso define também a volumetria dos prédios, o que garante o mínimo de identidade contra a arquitetura de mercado genérica e impessoal. Outro ponto importante é o perfil da nova avenida. Enquanto que a atual chega a ter mais de 10 faixas para o tráfego de automóveis, o projeto prevê 1 corredor de ônibus de 3,2m, 3 faixas para automóveis om 1,6m cada uma, 1 faixa de estacionamento com 1,8m, uma ciclovia com 2m e calçada mínima de 4m. Como referência foram consideradas as principais avenidas da cidade que, tem quase todas, apenas 3 faixas de carro. Esse limite garante uma avenida de largura compatível com o uso do pedestre e os usos cotidianos. Considerando que a malha urbana será recompostas e a promoção da densificação populacional, os fluxos dentro do bairro pelas ruas locais aliviarão boa parcela do trânsito. Claro que a política de transporte deve ser
revista, mas já se sabe que vias geram tráfego e que diminuí-las incentiva o uso do transporte público. Outra avenida de menor porte seria criada sob a atual via do metrô. Ela se conectaria diretamente ao Parque D. Pedro II, criando nova
O polígono em preto representa a Radial Leste. As transposições, em vermelho, são feitas em nível e não há possibilidade de se usar o espaço da Radial pois é apenas de passagem. Na proposta, não há transposição, há cruzamentos. A avenida continua servindo de passagem, mas agora ela é origem e destino de outros fluxos até então inexistentes.
alternativa e desafogando parte do fluxo que atualmente se concentra em apenas duas avenidas: a Radial e a Celso Garcia (Rangel Pestana). Uma rede de espaços verdes é criada sendo que um parque maior será o mais importante. Este poderia contar, a exemplo do parque do Ibirapuera, com edifícios públicos culturais e funcionaria mais em escala metropolitana com eventos de médio e grande porte. Os outros funcionariam mais como expressão da escala local de cada bairro, podendo receber festas de rua e associações de moradores para dar forma a eles. A malha urbana da região seria alvo de metas populacionais de densidade. Propõe-se densidade mínima de 20 mil hab/km² e , a exemplo
86 dos Corredores de Atividades Múltiplas do PUB, nas quadras que ladeiam a nova Radial e outras avenidas importantes como a Celso Garcia, esse valor sobe para 25mil hab/km². Deve ser atingido um equilíbrio entre as novas construções e usos ao patrimônio existente composto de casas geminadas, antigas indústrias, ruas de comércio específico, etc.(IMAGEM CORTE) Esse equilíbrio garante as premissas defendidas por Nuno Portas. O desenho de quadra é outro ponto importante. Pelo menos 70% (dado empírico) do perímetro de todas elas devem ser ocupadas sem recuo frontal, proibindo-se grandes extensões de muros e obrigar o uso comercial delas. Essa medida é das mais importantes pois promove o contato das pessoas com a rua, o que potencializa a tão aclamada vitalidade urbana que Jane Jacobs defende. O miolo das quadras pode ser usado como espaço de uso coletivo, mesmo que seja privado, com quadras esportivas, praças de alimentação, espaços expositivos, etc no qual a qualquer momento do dia alguém que esteja trabalhando perto possa ter contato visual ou frequentar esses espaços. O “tempo livre” que a Carta de Atenas menciona não é o antônimo do tempo de trabalho. Esses dois se fundem. Os lotes devem ter tamanho máximo, assim como o tamanho dos apartamentos e escritório. A função social do solo urbanos deve ser levada as mais variadas abordagens,
ao contrário do que acontece atualmente, quando a concentração de riquezas e espaço é incentivada para o mercado. Por fim, a proposta da Radial Leste só pode funcionar se transformações nos bairros ao seu redor a acompanharem. Ela, na verdade, funcionaria como catalisador de transformações maiores. Seriam tantas as oportunidades de apropriação da nova Radial que somente um entorno denso e compacto daria vida a ela. Afinal, uma estrutura desse porte seria utilizada por quem? Considerado o déficit habitacional da cidade, não parece mais recomendável que boa parte das novas unidades sejam de interesse social, como define a ZEIS 3 do Plano Diretor Estratégico. Entretanto, lembrandose dos conceitos de diversidade e do caráter predatório e concentrador do mercado, algumas estratégias podem acompanhar o projeto. Entre elas, ao invés de selecionar grandes áreas contíguas de ZEIS3 para a construção de HIS e HMP, como propões o PDE, parece mais eficiente diluir-se essa mesma área num território maior. Evita-se a formação de guetos e distribui-se a inevitável valorização.
Esquema das malhas urbanas de Buenos Aires, Manhattan e São Paulo. As duas primeiras, planejadas segundo geometria rígida sobre terreno plano, apresentam maior clareza e fluidez. A de São Paulo, ao contrário, muitas vezes é resultado de encontro de malhas existentes que se expandiram associadas ao relevo acentuado. Apesar dos problemas que esse sistema apresenta, ele apresenta uma característica muito interessante. Muitas ruas, por serem desconectadas de uma malha maior, acabam oferendo em meio à cidade movimentada, espaços de fuga e tranquilidade. São várias formas de experimentar o espaço/tempo muito próximas.
87 Atualmente, o PDE apresenta uma enorme quantidade de perímetro de ZEIS 3 (Amarelo) e outras de Operação Urbana. Ambos os casos acabam concentrando situações extremas, muito ruins para a cidade, muito boas para os investidpres. Ao invés de se adotar essa estratégia.Propõe-se diluir esses área dentro d eum perímetro maior, de modo que as ZEIS 3 não configurem Guetos e as valorizações se distribuam mais homogenamente.
A proposta para o desenho de quadra é que tenham seus perímetros em contato direto com a rua. O miolo pode ser de uso coletivo ou não.
CONCLUSÃO No século XX observamos a humanidade praticamente abandonar a vida rural para viver nas cidades. Essa inversão do modelo de interação social até hoje se coloca como uma incógnita aparentemente longe de desfecho razoável. Passamos um século inventando cidades, observando, repensando num jogo repetitivo de erros e acertos. Cada vez a visão sobre a cidade foi se complexando tentando capturar suas dinâmicas sob os mais diversos prismas: psicológico, cultura, filosófico, espiritual,etc. Este trabalho tentou apenas compreender um pouco desse universo. Era preciso dar dimensão, volume, peso. Saio dele com uma sensação de leve desespero, pois as informações levantasdas e as conclusões atingidas revelam o caráter excludente e destrutivo que as cidades impõe aos seus habitantes. E mesmo que as soluções pareçam já serem desevendadas, não faz sentido como caminhamos contra elas. Por outro lado, as cidades só crescera, viraram metrópoles. Talvez estejamos no caminho certo, basta seguir tentando. Como eu tentei.
Sara Brasil 1930
88
VASP 1954
89
GEGRAN 1972
90
MDC 2010
91
Sara Brasil 1930
92
VASP 1954
93
GEGRAN 1972
94
MDC 2010
95
96
Viรกrio existente
97
Viรกrio proposto
98
ConstruĂdo existente
99
ConstruĂdo proposto
100
Situação atual existente
101
Situação proposta
Corte genérico da situação atual e a proposta
170m
54m
54m
24m
1
2
3
4
5
6
7
8
Via com fluxo contínuo Via com fluxo interrompido ou limitado
Estação/ terminal Roosevelt-Brás: grandes estruturas de transporte que se configuram como ‘não-lugares’ e interrompem a malha urbana ao mesmo tempo que geram em seu entorno intensa vida urbana. Terminal Multimodal: usos incompatíveis com a escala local.
Apesar da malhar urbana apresentar quadras com tamanhos na média da cidade, as transposções sobre
Travessia em nível elevado ou rebaixado
a Radial Leste acontecem em intervalos de 300, 500, 600 e até mais de 1000 metros! Isso considerando viadutos, passarelas e as estações do metrô.
Rua sem saída
A malha viária praticamente original do tempo de sua formação não dá outra alternativa senão desembocar ou na av. Celso Garcia ou na Radial leste. Apenas duas avenidas de conexão ao centro para uma região inteira.
106 Após inúmera operações, algumas quadras foram demolidas parcialmente e restam apenas fragmentos delas
---
Distância até o próximo semáforo
---
Distância até a próxima transposição à Radial Semáforos Passagem de pedestre sobre a Radial Leste 1:8000
415m 480m
1400m
715m 465m
350m 290m
620m
1050m
950m
310m 230m
650m 915m
Para a passagem da via expressa, a malha urbana foi violentamente interrmpida.
290m
580m
1540m
520m
320m
310m
310m Como os cruzamentos devem ocorrer o mínimo possivel nas vias expresas, são necessárias transpoições elevadas que geraram espaços residuais, inseguros, degradadores. São uma verdadeira violência à urbanidade.
Ao invés de distribuir-se pelo território de forma mais homogênea, servindo a mais gente e oferecendo menos interferência urbana, o sistema que abriga as duas linhas de trem e a linha de metrô ocupam faixas de 100 a 150 m de largura, podendo chegar a 300m.
Sistema viário expresso exige grandes áreas de conexão, desperdiçando-a . Neste trecho, são quase 100.000 m2 para apenas um cruzamento.
As perspectivas de avenidas são valorizadas: a linha do horizonte é sempre uma referência tranquilizadora
A linha vermelha do metrô, que por motivos topográficos se encontra elevada desde a estação Sé, a partir deste ponto é totalmente enterrada.
107
As duas linhas de trem são condensadas em apenas uma elevada. Além de permitir a travessia ao nível do solo, funcionam como elemento da paisagem urbana, atravessando parques ea malhar urbana, essa preparada em suas dimensões para tal uso.
Um sistema de espaços verdes juntamente auma nova avenida aberta de médio porte conecta a Radial ao Parque Dom Pedro II. Um Parque de maior dimensão é referência para os demais., podendo abrigar equipamentos culturais, a exemplo do Ibirapuera.
Com o ganho de área ao se enterrar o metrô e elevar-se o trem, muitas áreas podem receber edicfícios mistos, mas com ênfase no comércio e serviços nos andares mais baixos.
Pequenos espaços residuais, tradicionais em São Paulo, permitem usos mais lentos e calmos. Pequenos lugares estão sujeitos apropriação mais íntima dos moradores.
Os edifícios do metrô passam por processod e retrofit e podem abrir atividades espoertiva e culturais.
Todos os viadutos e passarelas foram removidos. As transposições são feitas ao nível da rua. As inúmeras conexões transversais apenas recuperam as possibilidades de desenvolvimento no interior e entres os bairros.
O desenho sinuoso garante multiplicidade de perspectivas e visuais. Conforma a arquitetura a situações únicas, que garantam identidade a cada bairro por quais a Radia passa.
Ao invés de um grande avenida estremaente larga, se propõe um sistema binário. Os espaços entre os dois sentidos são preenchidos com parques e edifícios, formando um jogo de cheios e vazios urbano.
Algumas ruas não foram reconectadas para que permaneçam pouco movimentadas, parando no tempo.
As novas quadras devem ter mais de 70% de seu perímetro sem recuo frontal com atividades de comércio e serviços. O interior das quadras deve ser ocupado com equipamentos e usos de lazer e sociabilidade utilizável 24h por dia.
Alumas conexões com equipamentos culturais, no caso o SESC, potencializam seu uso.
A conversão a outra avenida de intenso movimento deve ser feito como em qualquer outra parte: pelo contorno ao quarteirão. Isso permite melhor uso do espaço e evita-se grandes terrenos-baldios.
A quantidade de semáforos é triplicada, instalados a distâncias de 100 a 300 metros, como em qualquer outra avenida de mesma importância na cidade.
108
Ao invés de delimitar perímetros, uma forma do planejamento lidar com a as dinâmicas imprevisíveis da cidade é trabalhar em um sistema “xadrez”de investimentos e ações. Com o tempo essa malha vai se completano ao memso tempo que a cidade vai se transformando espontaneamente. També, pode se ruma estratégia para evitar que alguns se apropriem exageradamente dos investimentos públicos.
última página BIBLIOGRAFIA ANELLI, Renato Luis Sobral, Redes de Mobilidade e Urbanismo em São Paulo: das radiais/perimetrais do Plano de Avenidas à malha direcional PUB. http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.082/259 ANELLI, Renato Luiz Sobral. Redes de Mobilidade e Urbanismo em São Paulo: das radiais/perimetrais do Plano de Avenidas à malha direcional PUB (1). Arquitextos nº 082.00. São Paulo, Portal Vitruvius, Março 2007. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.082/259> Acesso em: ANELLI, Renato Luiz Sobral. Urbanização em rede: Os Corredores de Atividades Múltiplas do PUB e os projetos de reurbanização da EMURB (1972-82). Arquitextos nº 08.088. São Paulo, Portal Vitruvius, Setembro 2007. Disponível em: <http:// www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.088/204> Acesso em: BASSANI, Jorge. “A função e a comunicação”. Tese de Doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU/USP) São Paulo, 2005. BRASIL, Constituição da República Federativa do brasil de 1988. Diário Oficial da Republica Federativa do Brasil, Brasília, 5 de outubro de 1988 BRASIL, Lei nº 10.257. Estatuto da cidade. Diário Oficial da Republica Federativa do Brasil, Brasília, 10 de julho de 2001
CAMPOS NETO, Cândido M. “PDDI, PMDI e Lei de Zoneamento: a questão imobiliária”. In SOMEKH, N. (Org.); CAMPOS NETO, Candido Malta (Org.). A Cidade que não pode parar: Planos urbanísticos de São Paulo no século XX. 1. ed. São Paulo: Editora Mackpesquisa, 2002 CUSCE NOBRE, Eduardo Alberto. Novos instrumentos urbanísticos em São Paulo: limites e possibilidades. São Paulo, ANO. FERNANDES, João P. C. Cidades dentro de cidades: o projeto urbano na revitalização da cidade contemporânea. Lisboa, 2009. FERREIRA, João Sette Whitaker. A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. In Anais do Simpósio ‘Interfaces das representações urbanas em tempos de globalização’. Bauru: UNESP, 2005. GUEDES, Joaquim. Entrevista. In Caramelo, n. 7, São Paulo, 1994, p. 144. JACQUES, Paola Berenstein. “(OUTRAS) Cartas de Atenas” In Revista de Urbanismo e Arquitetura, Vol. 6, Nº1, Salvador: EDUFBA, 2003. LEME, Maria Cristina da Silva. “Planejamento em São Paulo 1930 1969”. Dissertação de mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU/USP) São Paulo, 1982. LEME, Maria Cristina da Silva. “Revisão do Plano de Avenidas: Um estudo sobre o planejamento urbano em São Paulo, 1930”. Tese de Doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU/USP) São Paulo, 1990. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
MARTIN, André Roberto. “O Bairro do Brás e a deterioração urbana”. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humana da USP (FFLCH/ USP). São Paulo, 1984.
Urbanismo - Simpósio Temático Panorama dos Projetos Urbanos Contemporâneos. Relatório. Rio de janeiro, 2010.
MARTINS, José de Souza. O poder do atraso: ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec, 1994.
SALES, Pedro Manuel Rivaben de. “Grau Zero de Projeto”. Simpósio Temático Panorama dos Projetos Urbanos Contemporâneos, Rio de Janeiro: ENANPARQ, 2010.
MEYER, Regina Maria Prosperi; GROSTEIN, Marta Dora. A leste do centro: territórios do urbanismo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.
SÃO PAULO (Estado). Metrô ( Companhia do Metropolitano de São Paulo) “Pesquisa Origem e Destino 2007: Região Metropolitana de São Paulo”. São Paulo: Metrô, 2007.
NESBITT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac Naify, 2008.
SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
PACCA, Penha Elizabeth. “A reprodução do espaço na periferia da metrópole e a lógica da propriedade privada”. Dissertação de mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humana da USP (FFLCH/ USP). São Paulo, 2004. PREFEITURA DE SÃO PAULO. Lei nº 13.430. Plano Diretor Estratégico. São Paulo: Diário Oficial da Cidade de São Paulo [14/09/02, Folha 1], 2002. PREFEITURA DE SÃO PAULO. Plano municipal de habitação da cidade de São Paulo, PMH 2009-2024. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 2010. ROSSI, Aldo. Arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001. SALES, Pedro M. R. de. Grau Zero de Projeto. I Encontro Nacional da Associação Nacional de pesquisa e pós-graduação em Arquitetura e
SEGAWA, Hugo. Vida e morte de um grande livro. Arquitextos nº 001.20, São Paulo, Janeiro 2002. Disponível em: <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/01.001/3259> Acesso em: PORTAS, Nuno. Notas sobre a intervenção na Cidade Existente SOCIEDADE E TERRITÓRIO, São Paulo, nº 02, fev. 1985.