Theo Wiederspahn - arquiteto

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Chanceler

Dom Dadeus Grings Reitor

Joaquim Clotet Vice-Reitor

Evilázio Teixeira Conselho Editorial

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Alice Therezinha Campos Moreira Ana Maria Tramunt Ibaños Antônio Carlos Hohlfeldt Draiton Gonzaga de Souza Francisco Ricardo Rüdiger Gilberto Keller de Andrade Jaderson Costa da Costa Jerônimo Carlos Santos Braga Jorge Campos da Costa Jorge Luis Nicolas Audy – Presidente José Antônio Poli de Figueiredo Lauro Kopper Filho Maria Eunice Moreira Maria Helena Menna Barreto Abrahão Maria Waleska Cruz Ney Laert Vilar Calazans René Ernaini Gertz Ricardo Timm de Souza Ruth Maria Chittó Gauer EDIPUCRS

Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor Jorge Campos da Costa – Editor-chefe



© EDIPUCRS, 2009

Vinícius Xavier ILUSTRAÇÕES Günter Weimer PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS Patrícia Aragão REVISÃO do Autor CAPA

PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Vinícius Xavier

FOTOGRAFIAS Gilson

Jose de Oliveira - páginas 51, 52, 53, 55, 57, 58, 59, 60, 62, 66, 69, 71, 76, 79, 91, 100, 101, 102 e 119. Rafael Bavaresco - página 106.

IMPRESSÃO E ACABAMENTO

EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33 Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900 Porto Alegre – RS - Brasil Fone/fax: (51) 3320 3711 e-mail: edipucrs@pucrs.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) W644W Weimer, Günter. Theo Wiederspahn : arquiteto / Günter Weimer. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. 140 p. ISBN 978-85-7430-860-9 1. Arquitetura – Rio Grande do Sul. 2. Arquitetos Alemães – Biografias. 3. Wiederspahn, Theodor Alexander Josef – Biografia. I. Título. CDD 242.74

Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.


Theodor Alexander Josef Wiederspahn (Theo) * Wiesbaden, Alemanha, 19 de fevereiro de 1878 + Porto Alegre, 12 de novembro de 1952


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Sumário

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INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1

História de uma família CAPÍTULO 2

Um arquiteto a caminho do Brasil CAPÍTULO 3

O arquiteto da firma Rudolf Ahrons (1908-1915) CAPÍTULO 4

O arquiteto de Porto Alegre (1916-1930) CAPÍTULO 5

O arquiteto da comunidade Evangélica (1930-1945) CAPÍTULO 6

O arquiteto do Pós-Guerra (1945-1952) CAPÍTULO 7

Um arquiteto socialmente engajado BIBLIOGRAFIA ANEXO




GUNTER WEIMER

INTRODUCAO

a algumas obras “ecléticas” de nossa cidade sob a argumentação de que elas não podiam ser incluídas no rol das obras de arquitetura pelo simples fato de serem “cópias” e, portanto, não apresentarem a condição essencial que era a da criatividade arquitetônica. Isso nos deu o que pensar: havia em nossa cidade muitos prédios “ecléticos” que nos pareciam valiosos e que se constituíam em expressivos documentos de sua história. Será que eles, efetivamente, não teriam valor arquitetônico algum? Um dia o professor João Vilanova Artigas, de São Paulo, visitou nossa Faculdade e, numa conversa informal, nos perguntou se sabíamos quem tinha projetado alguns destes prédios. Não sabíamos. Por via das dúvidas, perguntamos-lhe sobre as razões de sua indagação e ele respondeu que aquelas eram obras excepcionais e, talvez, as melhores da cidade. Isso nos deu um alento e fizemos uma promessa a nós mesmos: haveríamos de descobrir o autor. A questão era: como fazê-lo?

É com muita satisfação que temos a honra de trazer para o grande público a biografia do arquiteto Theo Wiederspahn – satisfação e também de alívio. Isso porque sua elaboração passou por tantas vicissitudes que em mais de uma ocasião julgamos que sua conclusão jamais chegaria a se realizar. Explicando melhor: quando fomos convidados para assumir a disciplina de Arquitetura Brasileira, concluímos que nos faltavam os conhecimentos necessários para o exercício da pesquisa histórica. Isso nos levou a fazer o mestrado em história. E, talvez, a coisa mais importante desse aprendizado tenha sido o fato de que só se pode fazer uma pesquisa eficiente quando se parte das fontes primárias. Isso, para nós, foi uma descoberta decisiva porque a prática do ensino da história da arquitetura até então – e que, em grande parte, ainda continua a ser assim exercida – era estudar as versões explicitadas em livros sobre a matéria e ficar repetindo seus conteúdos ad nauseam. Isso acarretava uma série de consequências, especialmente para a história da arquitetura regional. A mais grave delas era que não se encontravam referências de obras que nos pareciam ter valor arquitetônico. Lembramo-nos muito bem do tempo de estudos de graduação quando um professor fez severas críticas

Outro episódio de nossos tempos de formação que nos vêm à memória diz respeito à arquitetura barroca. O professor era um apaixonado pela obra do Aleijadinho. Ao fim de uma aula, indagamos-lhe por que não citava a matriz de Viamão que parecia ser uma obra de valor. Respondeu-nos que não era possível comparar aquela obra “provinciana” às do mestre mineiro. Mais tarde, descobrimos que o autor da desprezada matriz de Viamão havia sido o brigadeiro e governador do Rio Grande do Sul, José Custódio de Sá e Faria, que havia construído uma brilhante carreira de arquiteto em Portugal (foi, inclusive, o autor da tumba de D. João V), em Minas Gerais (onde havia projetado a casa de Câmara e Cadeia), no Rio de Janeiro (onde projetou a Igreja de N. S. dos Militares, obra apontada como ponto de inflexão do barroco para o historicismo), e no Prata, onde, entre as numerosas obras de sua autoria, contam-se as catedrais de Montevidéu e de Buenos Aires. Aqui nos confrontamos com um fenômeno curioso: um arquiteto com tão exemplar folha de serviços para as coroas portuguesa e espanhola – a ponto de ser apontado pelo historiador argentino Guillermo Furlong como o melhor arquiteto do Rio da Prata do período colonial – quando atuou em nosso estado só produziu “obras indignas de serem citadas”. Será que o nosso estado teria algumas características inibidoras da criatividade arquitetônica? Voltando à questão das fontes primárias, foi um verdadeiro achado a descoberta da existência dos diversos arquivos históricos públicos. Passamos a frequentá-los. 11


THEO WIEDERSPAHN - ARQUITETO

Deles extraímos dados que nos forneceram matéria para a publicação de numerosos trabalhos sobre a história de nossa arquitetura. Todavia, essa documentação virtualmente se limitava ao período da Colônia e do Império. Pouca coisa havia a partir do período da República Velha. E esse correspondia à fase mais importante de nossa arquitetura. Naqueles tempos o professor Júlio Nicolau Barros de Curtis havia criado, nas dependências da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, um museu de elementos arquitetônicos que denominou de Gabinete de Estudos e Documentação da Arquitetura Brasileira (GEDAB) no qual reuniu um expressivo acervo sobre nossa arquitetura. Por ocasião de sua aposentadoria e por sua indicação, acabamos por assumir as aulas da história da arquitetura brasileira. Preocupado com a carência de documentação primária sobre a arquitetura de nosso estado, resolvemos nos empenhar em ampliar o rico acerto já existente com documentação primária em papel, como desenhos, cópias, fotografias e assemelhados. Nessa época resolvemos fazer um levantamento no Correio do Povo quando descobrimos um artigo assinado pelo Dr. Klaus Becker que tratava de um, para nós, desconhecido arquiteto chamado Theo Wiederspahn que, entre muitas outras obras, teria sido o autor dos prédios que haviam suscitado o entusiasmo do professor Vilanova Artigas. O achado daquele artigo foi um ponto de inflexão em nossa vida acadêmica. Todavia, tínhamos um nome e uma relação de obras, mas não tínhamos a menor ideia de como isso poderia ampliar nossos conhecimentos sobre esse arquiteto. Ocorreu-nos então a ideia de apelar para o prosaico guia telefônico. Lá encontramos o registro de um arquiteto de nome Heinz Willy Wiederspahn. Com a audácia dos iniciantes, telefonamos para o mesmo querendo saber se poderia fornecer mais informações sobre Theo. Ficamos eufóricos quando soubemos que se tratava de seu filho e que com ele trabalhara como sócio de seu escritório de arquitetura. Daquele contato resultaram muitas horas de entrevistas que foram complementadas com longos passeios de carro pela cidade cuja finalidade era levantar as obras ainda existentes. É provável que, através da insistência de nossa parte, o Senhor Heinz Willy se convencesse da seriedade de nossos propósitos e afirmou que possuía “alguma” documentação sobre as atividades de seu pai. Foi dessa forma que ele passou as nossas mãos o conteúdo de um baú cheio de pastas com projetos, 12

escritos e fotografias. A documentação era tanta que encheu o bagageiro de nossa caminhonete. Mal havíamos começado a abrir os pacotes e proceder à limpeza do material quando a sobrinha de Heinz Willy, Lilian Uber, que era estudante da Faculdade, nos trouxe a notícia de que haviam sido encontrados mais documentos, os quais eram tão vastos como os que já estavam em nossas mãos. Então iniciamos a longa tarefa de recuperação desse material, que consumiu cerca de três anos só para limpeza, catalogação e organização. Novas aquisições fizeram com que esse arquivo crescesse vertiginosamente. Estávamos em meio à organização desse precioso material quando fomos surpreendidos com o sumário fechamento do GEDAB. Em consequência, os documentos de Wiederspahn que estavam sob nossa custódia, teriam de ser devolvidos aos seus legítimos herdeiros, visto que, entrementes, o Senhor Heinz Willy havia falecido em um tempo em que ainda não havíamos iniciado a redação da biografia de Theo. Sem condições de armazenar convenientemente esse material, solicitamos a suas netas que permitissem que ficássemos com ele mais algum tempo, com a perspectiva de que pudéssemos escrever a tão almejada biografia. Entraves de toda ordem nos forçaram a adiar sucessivamente essa elaboração. Foi somente com a nossa aposentadoria que encontramos a suficiente paz de espírito para que pudéssemos abrir cada uma das quase seiscentas pastas que havíamos organizado e proceder ao estudo que o material requeria. Com o fechamento do GEDAB, frustrou-se nossa ideia de organizar um arquivo de projetos e de outras fontes primárias da arquitetura. Através de discussões sobre a necessidade de salvaguardar as fontes primárias em congressos e encontros caiu em solo fértil. Diversas faculdades de nosso Estado passaram a reunir documentos e continuadamente estamos sendo informados de que cada vez mais acervos estão encontrando abrigo seguro em instituições confiáveis, local onde os mesmos estão sendo colocados ao dispor de pesquisadores para que possamos, aos poucos, construir a longa e honrosa história de nossa arquitetura. O ato de publicação deste livro vem acompanhado de um turbilhão de sentimentos contraditórios. Por um lado, a grande satisfação de termos – apesar de todos os obstáculos e contrariedades – concluído esta obra cuja finalidade maior é a tentativa de apresentar ao grande público a nossa versão sobre a verdadeira dimensão da obra de nosso arquiteto maior. De outra, o sentimento de alívio por poder, com o lança-


GUNTER WEIMER

INTRODUCAO

mento desta obra, devolver aos legítimos herdeiros o precioso acervo de Theo Wiederspahn que tanto tempo esteve sob nossa custódia e agora volta a quem de direito pertence. Um profundo sentimento de agradecimento precisa aqui ser registrado pela compreensão dos herdeiros de Theo Wiederspahn, além de exaltar a confiança que em nós depositaram em horas difíceis. Mas o mais profundo é o sentimento de satisfação ao ver que conseguimos tirar do anonimato um dos mais ilustres arquitetos de nossa terra e, dessa forma, contribuir para o entendimento de nosso passado, sem o qual fica muito difícil construir o nosso futuro. Tampouco poderia concluir esta introdução sem expressar os meus mais profundos agradecimentos à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul que nos acolheu em seu quadro docente e agora nos apoia na publicação desta obra. *** Quando os originais desta obra já estavam revisados, fomos surpreendidos com mais uma auspiciosa notícia: no dia seis de agosto de 2008 os herdeiros do acervo Wiederspahn colocaram o mesmo à disposição dos pesquisadores rio-grandenses através de um serviço de primeira qualidade no Espaço Delfos, na Biblioteca Central da PUCRS. Ali ele passará pelo processamento técnico de arquivistas e bibliotecários e será resguardado sob condições ideais de controle de condições ambientais junto com outros acervos de expoentes de nossa cultura regional. Quando esse material veio as nossas mãos e iniciamos a sua limpeza e organização, não poderíamos supor que sua salvaguarda passaria por caminhos tão tortuosos e, muito menos, que, ao fim, ele acabaria encontrando uma guarida que estaria à altura de seu significado. Por isso, queremos dirigir as palavras finais dessa introdução na forma de nossos mais sinceros agradecimentos aos herdeiros do acervo e à clarividência das direções da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e da PUCRS por terem encontrado tão boa solução para seu resguardo. Estamos confiantes de que os pesquisadores da história da arquitetura de nossa terra haverão de compartilhar conosco dos mesmos sentimentos quando o acervo tiver sido colocado a seu dispor.

O ACERVO DE THEO WIEDERSPAHN O precioso acervo de Theo Wiederspahn, uma das fontes de escritura do presente livro, documento de uma vida e de uma obra dedicadas à arquitetura nacional, encontra-se sob guarda definitiva da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, através do DELFOS – Espaço de Documentação e Memória Cultural –, situado no 7º andar da Biblioteca Central Irmão José Otão. Organismo vinculado à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação e formado pelas faculdades de Letras, Arquitetura, Comunicação Social, Filosofia e Ciências Humanas, para além da própria Biblioteca Central, o DELFOS cumpre seu encargo de disponibilizar à comunidade de pesquisadores brasileiros a consulta a seus quase trinta acervos. Para tanto, procede à recuperação, tombamento, catalogação e inserção no sistema on-line, de todas as peças que lhe são confiadas, de modo a oferecer o melhor que existe em termos de recursos científicos e tecnológicos. A doação do acervo de Theo Wiederspahn foi um gesto de generosidade de sua família que, pela intercessão do Arquiteto Günter Weimer, desejou compartilhar com a comunidade a fruição da obra do grande arquiteto alemão que, aqui no Rio Grande do Sul, deixou a marca indelével de seu talento. É com muita alegria que a PUCRS e o DELFOS, em particular, veem a publicação deste livro, o qual será o marco referencial para todos aqueles que estudam a arquitetura de nosso Estado. Escrito com a sabedoria e a elegância incontestes do Prof. Weimer, esta obra tem tudo o que o leitor mais exigente poderá desejar em termos de informação e análise. Boa leitura. Porto Alegre, outubro de 2009

Luiz Antonio de Assis Brasil Coordenador-Geral do DELFOS

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CAPÍTULO 1

História de uma família




GUNTER WEIMER

O ARQUITETO DA FIRMA RUDOLF AHRONS (1908-1915)

boa parte dessa demanda foi suprida com a construção de cortiços que se espalharam por todas as regiões da cidade, inclusive do centro. Isso haveria de despertar as preocupações das autoridades que logo tomariam iniciativas para coibir esse alastramento com sua sumária proibição que, por um bom tempo, ainda continuou a ser ignorada e burlada sob a alegação de que se estavam construindo baias ou estábulos cuja licença de construção ainda era permitida. Como era evidente que não se tratava de uma construção de abrigos de animais, a aprovação provavelmente foi obtida mediante o suborno dos fiscais da prefeitura. Mas, ao lado disso, também surgiu uma demanda por “casas de renda”, como eram denominadas as construções destinadas a aluguel. Como não havia legislação que regulamentava a matéria, o investimento imobiliário era gerido pela oferta e procura e, como a primeira era menor que a segunda, o investimento imobiliário se constituía numa boa fonte de renda.

Não podia ter sido mais auspicioso o momento em que Theo começou a trabalhar com Ahrons. A República estava por completar dois decênios de existência e as agitações que normalmente acompanham a reordenação das estruturas de poder já estavam debeladas. Os desentendimentos entre a elite regional que haviam levado à luta armada em 1893, cujas consequências foram uma carnificina de inusitada violência com o exercício do sádico esporte da “degola”, levaram a uma primeira debandada de parte da população rural para as cidades, dentre as quais a capital seria a maior caudatária. Isso fez com que surgisse uma grande demanda habitacional que foi enfatizada pela incipiente industrialização. Essa, de início, não haveria de se centrar em Porto Alegre, mas se espalharia pelas diversas cidades da Depressão Central devido ao incentivo à agricultura do arroz que apresentava bons resultados devido a sua produtividade alcançada pelas novas técnicas de irrigação. A mudança dos desgarrados da luta interna para as principais cidades fez com que a demanda habitacional fosse muito grande, e a contenda nem havia terminado, já se manifestou um significativo incremento dos negócios imobiliários na capital. Porém, como se tratava de migrações de uma faixa populacional de baixo poder aquisitivo,

Os cortiços na Rua da Praia em 1897 e a “estrebaria” na Rua Cristóvão Colombo, em 1912. (Microfilmes do arquivo intermediário da PMPA)

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THEO WIEDERSPAHN - ARQUITETO

Contudo, a preponderância da demanda foi apenas passageira e, por volta da passagem para o novo século, a pressão da procura diminuiu, o que mostra que o mercado voltou à estabilidade.

Gráfico do número de projetos encaminhados para aprovação na Prefeitura de Porto Alegre. (Microfilmes do arquivo intermediário da PMPA)

Entretanto, o redirecionamento da economia do charque que caracterizou a do Império, para a da agricultura que se tornou prioritária na República, começou a produzir dividendos. O progressivo aumento na arrecadação dos impostos propiciou o investimento cada vez maior em obras suntuosas por parte do governo estadual. A iniciativa privada também dispunha de cada vez mais recursos para o investimento em seus incipientes empreendimentos industriais e em palacetes residenciais. Sem saber o que estava por vir, Theo se empregou na época exata em que estava começando um novo boom imobiliário que, no entanto, se diferenciaria do anterior devido ao fato de que a procura se deslocou de uma população de faixas mais baixas de renda para as de um nível mais alto de exigências. Na fase anterior, a participação de arquitetos na elaboração dos projetos – o que é um indicativo da menor qualidade das construções – foi bastante limitada, seja pela escassez de profissionais atuantes no mercado ou, principalmente, pelo menor nível de exigência. Isso também pôde ser percebido pelo grande número de casas de porta e janela que ainda estavam sendo construídas na primeira fase cujos projetos apresentavam uma representação gráfica muito precária e, por vezes, constava apenas um desenho da fachada com a indicação por escrito do número de compartimentos e de suas especificações funcionais.

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O contraponto dessa situação surgiu do paulatino enriquecimento da sociedade. Inicialmente quem sustentou esse acúmulo de capitais foi a lavoura de arroz que requeria uma incipiente mecanização por necessitar da elevação de água do nível dos rios para o das lavouras. Essa atividade mostrou ser tão produtiva como nos países asiático de onde esse cereal era originário. A construção de numerosos engenhos serviu de imagem visível dos novos tempos de fartura. Projeto completo de uma casa de 1892. (Microfilmes do arquivo intermediário da PMPA)

Projeto de uma casa de porta e janela de 1911. (Microfilme do arquivo intermediário da PMPA)


GUNTER WEIMER

Certamente, a nova elite não estava preparada para fazer bom uso da fortuna recém-adquirida, mas acabou surgindo uma solicitação progressiva de arquitetos, e alguns deles acabaram sendo improvisados diante da falta de instituições de ensino apropriadas. Na cidade havia três escolas de ensino médio: a Escola Normal onde eram formados os professores primários, a Escola Militar e, junto a ela, um curso de agrimensura para aqueles que não queriam seguir a carreira do exército – que, entretanto, era sumamente importante para a época. Fazia parte do programa dos mesmos o ensino dos fundamentos do desenho técnico em razão do que alguns de seus alunos aproveitaram esses conhecimentos para realizar projetos arquitetônicos. Esses foram os casos de Alfonse Dinis Hebert23 que chegou ao topo de carreira de arquiteto como responsável pelo Departamento de Projetos da Secretaria de Obras Públicas e dos agrimensores Luiz Debise e Arthur Azambuja. Ao lado desses projetistas improvisados havia um bom número de construtores que tinham algumas habilidades para a elaboração de projetos aprendidas no exterior. Essas escolas não conseguiam atender a toda a demanda de projetista que o mercado estava exigindo. Isso pode ser comprovado no fato de terem surgido diversos cursos particulares de desenho técnico e arquitetônico cujas virtudes eram apregoadas em anúncios dos jornais da cidade. Embora elas não fossem oficialmente reconhecidas, sua importância não deve ser menosprezada, pois numerosos projetistas e construtores aprenderam os rudimentos da profissão nas mesmas. Esse era o caso de Adolf Fick, Hermann (Germano) Glotz, Wilhelm Trein, Germano Pedro Plentz, João Catani, Vitorio Fortini, Vitorio Tellini, dentre os quais Julius Weise se destacava como o construtor mais ativo, deixando uma firma que seria seguida por seus filhos, que trariam a Porto Alegre, mais tarde, o arquiteto Josef Lutzenberger. Ao lado deles havia alguns artesãos da área da construção civil que acabaram sendo guindados ao ofício de arquiteto, como parecem ser os casos do carpinteiro sueco Herman (Germano) Brandt, o carpinteiro suíço Gerard (Geraldo) Timmers, dos alemães Adolf Siemers e Wilhelm (Guilherme) Sievers. Mais do que esses, começaram a se destacar alguns arquitetos formados ou reconhecidos como tais. A total liberdade de atividades liberais garantida pela constituição castilhista não incentivava qualquer cuidado com o exercício profissional 23  Seus parentes garantem que teria estudado arquitetura e engenharia na França e na Alemanha e, em 1875, teria voltado para Porto Alegre quando teria sido contratado pela Secretaria de Obras.

O ARQUITETO DA FIRMA RUDOLF AHRONS (1908-1915)

em razão do que a arquitetura foi entendida como uma ocupação e não como uma profissão24. Por isso, não houve segurança quanto à efetiva formação profissional de muitas pessoas que se intitulavam arquitetos ou engenheiros. No entanto havia arquitetos com formação específica, como Gustav Schmitt (que foi sócio do engenheiro Wilhelm [Guilherme] Ahrons, o pai de Rudolf ), Johann Grünewald (conhecido como o mestre João), Johan Ole Baade, Francisco Tomatis, Albert Horn, Hermann Otto Menchen, dentre os quais se destacava Luigi Gastaldi Valiera como o mais atuante na praça. De forma geral, sabe-se pouco a respeito da biografia desses profissionais. O mais experiente deveria ter sido o mestre João que fizera seu aprendizado na restauração e conservação da Catedral de Colônia e que, depois de imigrado, havia conquistado o posto de arquiteto mais requisitado da Igreja Católica. Como tal, se tornou muito solicitado para a construção de igrejas, capelas, seminários e, principalmente, de colégios. Baade fez seu curso de arquiteto na Universidade Técnica de Berlim; veio a Porto Alegre como turista e se estabeleceu em definitivo. Atílio Trebbi que se destacaria como projetista na Secretaria de Obras, provavelmente, aprendeu o ofício com seu pai, um conhecido pintor italiano radicado em Pelotas. Isso não significa que não tenha realizado projetos importantes, pois, além de suas atividades na Secretaria, ainda desenvolvia uma intensa atividade de arquiteto fora da repartição. Menchen se formou em engenharia na Universidade Técnica de Munique e emigrou para Santa Catarina. Não são conhecidas as circunstâncias que o levaram a se mudar para Porto Alegre. Certo é que em 1903 foi contratado por Rudolf Ahrons para assumir a direção do departamento de projetos de sua firma.

Ahrons em 1910.

Ahrons em 1922.

Ahrons em 1940.

24  As primeiras profissões liberais só foram regulamentadas em fins de 1933, em decorrência da aprovação da nova Constituição Federal.

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THEO WIEDERSPAHN - ARQUITETO

Os dados sobre o início da carreira de Ahrons estão envoltos numa bruma na qual é difícil distinguir a fantasia da realidade. Nasceu em Porto Alegre, em 1869, como filho do engenheiro, arquiteto e urbanista Wilhelm Ahrons e de sua mulher Anne Narten Ahrons. Fez seu preparatório com Apeles Porto Alegre e, em 1885, concluiu o curso de agrimensor na Escola Militar de Porto Alegre. Consta ter exercido essa profissão nos dois anos seguintes. No ano em que foi proclamada a República (1889) embarcou para Berlim onde estudou na Universidade Técnica e se formou em Engenharia Civil em 1895. A partir de então teria se mudado para a Rússia onde teria casado com a filha do marceneiro do Czar Nicolau II

do qual teria recebido uma rica mobília como presente25 de casamento26; de volta a Berlim, teria sido convidado para assumir a cátedra de grafostática, o que parece ser bastante inverossímil devido à estrutura universitária alemã. Certo é que em 1898 já fazia parte do corpo docente da Escola de Engenharia de Porto Alegre quando se tornou professor do primeiro curso de arquitetura daquela instituição. Consta na tradição local que a partir de então Manuel Itaqui – que se formou em arquitetura na primeira turma de 1900 – teria se responsabilizado pelos projetos de sua firma, o que até agora não pode ser devidamente documentado. Igualmente são nebulosos os inícios da firma de Ahrons. Segundo a tradição familiar, teria assumido a firma construtora que seu pai tinha em sociedade com Gustav Schmitt. Lamentavelmente, o arquivo dessa empresa foi perdido em razão do que essas informações não puderam ser confirmadas.

Residência Frederico G. Jung (1905). Rua Mal. Floriano, 520 Proj.: Hermann Otto Menchen. Constr.: Rudolf Ahrons (Desenho de G. Weimer)

Os primeiros projetos registrados na Prefeitura de Porto Alegre pela firma “Escriptório de Engenharia Rodolfo Ahrons” são de 190227 e constam de uma residência e um edifício (na rua dos Andradas esq. Ladeira) para a família Chaves Barcelos. Esses foram assinados por Ahrons que – sabidamente – não era arquiteto e não sabia projetar. Possivelmente esses projetos tenham

Confeitaria Schramm (1903). Rua da Praia esq. Ladeira. Proj.: Manoel Itaqui (atribuído). Constr.: Rudolf Ahrons (Desenho de G. Weimer)

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25  Segundo depoimentos de familiares, a mesa teria tido em seu centro o monograma de Nicolau II feito em marchetaria. 26  Desse matrimônio nasceu sua filha Lisinka. 27  Foi somente na segunda metade daquele ano que passou a ser exigida a aprovação dos projetos na Prefeitura. Isso significa que a firma de Ahrons pode ter existido antes dessa data.


GUNTER WEIMER

sido de autoria de Itaqui, mas, em 1903, quando Ahrons registrou seu terceiro projeto, já tinha contratado Menchen. Durante os quatro anos em que Menchen permaneceu à testa do departamento de projetos da firma Ahrons, foram encaminhados para aprovação na Prefeitura os projetos da Confeitaria Schramm (rua dos Andradas esquina com a Ladeira), a residência de Frederico Guilherme Jung (rua Mal. Floriano), a loja28 de H. Theo Moeller (rua Voluntários da Pátria), a residência29 do mesmo (avenida Independência) e a Faculdade de Direito (esquina da avenida João Pessoa com a rua Sarmento Leite). Em terreno integrante do Parque da Redenção havia sido instalada uma exposição em 1901, que foi convertida em parque de diversões. Esse terreno foi doado à Faculdade Livre de Direito pela Prefeitura Municipal para ali construir sua sede. Para tanto, o parque deveria ser demolido, o que causou muitos contratempos, pois pressões populares queriam a manutenção do mesmo. Somente em 1906 o terreno foi liberado e a Congregação resolveu abrir um concurso – à época chamado de “concorrência” – que consistia na apresentação de um projeto com respectivo orçamento. Esse concurso foi vencido por Ahrons conforme pôde ser constatado em algumas poucas folhas do projeto que havia sido guardado na referida Faculdade. Essas atestam que o projeto não pode ser de Itaqui – como querem alguns autores – pelo fato de que somente o cabeçalho (“carimbo”, no jargão técnico) foi escrito em português. Todas as palavras restante foram escritas em alemão e algumas poucas em francês (como “entrée”, “grand salon”) que eram galicismos comuns no alemão da época. Ora, seria um absurdo imaginar que Itaqui lançasse mão do idioma alemão – que, de resto, muito provavelmente, nem conhecia – conquanto dominava perfeitamente o português. Pelo lado oposto, é muito provável que Menchen não se exprimisse em português pelo simples fato de ter dificuldades com o uso dessa língua. Como será visto mais adiante, é muito provável que os primeiros prédios da Cervejaria Bopp tivessem sido realizados por Menchen.

O ARQUITETO DA FIRMA RUDOLF AHRONS (1908-1915)

sido demitido da firma de Ahrons. Essa contradição dá crédito a uma historieta de domínio público de que a demissão teria sido imposta pelos positivistas do governo estadual que não admitiram o fato de o projeto da Faculdade de Direito ter sido inspirado no Palácio do Kaiser, de Estrasburgo, por exaltar a vitória dos alemães sobre os franceses dos quais os discípulos de Comte eram admiradores. Se isso for verdade, o fervor dos positivistas não era da ordem de mandar demolir o que já estava construído, o que propiciou a Theo a administrar a conclusão da obra, como, de resto, fez com todas as obras da firma Ahrons que ainda estavam em andamento por ocasião da demissão de Menchen. Curiosamente, as esquadrias do Palácio do Kaiser foram realizadas pelo pai de Theo e ele próprio30 haveria de concluir a obra nele inspirada.

A alta qualidade desses projetos mostra que Menchen era um arquiteto muito competente em razão do que é difícil compreender as razões pelas quais ele teria 28  Recentemente demolida depois de um incêndio. 29  Esse projeto foi realizado em 1907, portanto, antes da vinda de Theo, muito embora a autoria do mesmo lhe tenha sido atribuída equivocadamente. Possivelmente, esse equívoco tenha surgido em decorrência do fato de que essa obra ainda não estava concluída quando Theo assinou seu contrato com Ahrons e, portanto, deve ter participado das responsabilidades da conclusão de sua construção.

Faculdade de Direito da UFRGS (1906). Av. João Pessoa esquina Sarmento Leite Proj.: Hermann Otto Menchen (atribuído). Constr.: Rudolf Ahrons. (Desenho de G. Weimer) Comparar com a foto do Palácio do Kaiser, na página 19. 30  Num cartão-postal enviado em 18.9.1929 por Theo a seu filho que estava estudando na Alemanha, Theo escreveu sobre uma foto da Faculdade de Direito: “Esta construção ajudei a concluir. Foi uma das primeiras obras aqui realizadas por mim”.

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THEO WIEDERSPAHN - ARQUITETO

A falta do arquivo da firma de Ahrons impede que seja feita uma avaliação mais cuidadosa de sua atuação nessa empresa. É sabido que Ahrons mantinha diversas filiais no interior do Estado como em Santa Maria e em Pelotas, o que propiciava a execução de projetos para essas cidades, alguns dos quais já puderam ser documentados: uma filial do Banco Nacional do Comércio em Pelotas e outra em Santa Maria, a prefeitura de Cruz Alta, a residência de Felicíssimo de Azevedo, em Santa Maria, dois clubes de caixeiros-viajantes da mesma cidade e o Hotel do Comércio, de Bagé, este recentemente reciclado em centro comercial. Diversos historiadores reivindicam a autoria de Wiederspahn para várias filiais bancárias de cidades do interior do Estado, o que é bastante provável pela identidade da linguagem arquitetônica, mas cuja comprovação documental ainda está for ser feita.

Para além dessas conjeturas, certo é que só as obras realizadas em Porto Alegre davam muita ocupação ao arquiteto e, muito em breve, Ahrons foi obrigado a contratar novos colaboradores para dar conta da demanda. Quando Theo entrou na empresa de Ahrons, estavam em andamento as obras da Faculdade de Direito e da residência de H. Theo Moeller. Além de administrar essas obras, Theo ainda realizava os projetos arquitetônicos que constantemente eram solicitados. De imediato, se encarregou do projeto e da construção da Central Telefônica Ganzo que foi fundada em junho de 1908. O prédio se situava no meio da quadra da rua Mal. Floriano, entre as ruas Riachuelo e a atual Salgado Filho. Tratava-se de um prédio com estrutura de concreto armado, de três pisos. Se não se tratava do primeiro prédio de concreto armado, com certeza, era um dos primeiros a utilizar tal solução na cidade. Do mesmo modo também deve ter sido o prédio pioneiro no emprego de uma janela central em três planos (bow-window) nos dois pisos superiores. Esse tipo de abertura seria muito empregada até às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Sugestivamente, sobre a platibanda do prédio foram colocadas duas figuras femininas em animada conversa por via telefônica.

Prefeitura de Cruz Alta (foto de 1922). Proj.: Theo Wiederspahn. (Foto de Theo Wiederspahn) Companhia Telefônica Rio-Grandense. Proj.: Theo Wiederspahn, 1908. Const.: Rudolf Ahrons (Desenho de G. Weimer)

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O ARQUITETO DA FIRMA RUDOLF AHRONS (1908-1915)

Essas figuras desapareceram quando o prédio foi ampliado em mais dois pisos. Os serviços de telefonia se ampliaram com o crescimento da cidade, e a demanda aumentou ainda mais com a extensão da rede para o interior. Isso exigiu a ampliação das instalações do prédio que foi realizada em data incerta. Certo é que em 1945 ele já tinha cinco pisos. Possivelmente essa ampliação tenha sido realizada pelo próprio Theo, visto que a linguagem original do prédio foi respeitada, à exceção do coroamento do prédio que ficou sem as duas estátuas31. Nesse ano ainda receberia a encomenda de um projeto que marcaria o início de sua carreira de arquiteto na cidade, não só por ser o edifício mais alto como, principalmente, por se ter transformado no centro de convívio social da cidade. Trata-se do Edifício Chaves, dos irmãos Antônio e Pedro Chaves Barcelos, que ficava na esquina da Rua da Praia com a da Ladeira (General Câmara), no quarteirão que ia até a rua Sete de Setembro, em frente à Confeitaria Schramm, antes referida. Tratava-se de um prédio de cinco andares, dos quais os três primeiros eram ocupados pelo Café Colombo, dos irmãos Medeiros que deram origem ao nome daquela esquina que o povo batizou de Largo dos Medeiros, ainda que não se tratasse de um largo na concepção tradicional do termo. No térreo eram atendidos os fregueses no balcão; no segundo, Palácio Chaves (Café Colombo). (Perspectiva de Theo - 1909) em forma de mezanino vazado para o piso inferior, havia um serviço de bar. O terceiro piso era constituído por um amplo salão onde funcionava o café-concerto. Os restantes eram destinados a dois apartamentos, possivelmente, ocupados pelos irmãos proprietários do prédio.

Palácio Chaves (Café Colombo). Rua da Ladeira (Gen. Câmara) esq. rua dos Andradas. Arq.: Theo Wiederspahn – 1909. Constr.: Rudolf Ahrons. (Desenho de G. Weimer)

31  Aparentemente, esse prédio foi demolido por ocasião da construção do prédio da Companhia Telefônica, com fachadas para as ruas Marechal Floriano, Salgado Filho e Borges de Medeiros e com projetos de Emil Bered, Roberto Veronese e Luiz Fernando Corona, em 1964.

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O sucesso do empreendimento foi marcante. Isso pode ser avaliado pelo fato de que dois anos mais tarde, portanto, em 1911, os irmãos Chaves construíram outro prédio ao lado do anterior, como uma extensão do mesmo, mas que teria um piso a menos: no térreo haveria uma extensão do Café para o atendimento de balcão, no mezanino vazado haveria um serviço de bar e no terceiro piso, um amplo salão, extensão do café-concerto. No último piso haveria um terceiro apartamento com o privilégio de ter, aos fundos, um enorme terraço que ocuparia aproximadamente a mesma área da residência. A vinculação entre os dois prédios era total: apenas uma pequena escada de serviço permitia a circulação vertical. O grosso dos deslocamentos verticais era realizado através do prédio da esquina. Por razões não esclarecidas, foi esse anexo o único prédio que sobreviveu até os dias atuais dentre os quatro32 que foram construídos naquela quadra.

Esse Café tornou-se famoso porque era ali que se reunia a elite da cidade para comentar os últimos acontecimentos. No fim da tarde se reunia a juventude para dançar sob a severa vigilância das mães das moças e no começo da noite se reunia a intelectualidade para passar em revista as últimas fofocas, à espera da abertura do Clube dos Caçadores que ficava no meio da quadra da rua Nova (atual Andrade Neves), o “cabaré” mais chique da cidade e que, mais tarde, seria reformado e ampliado pelo próprio Theo. Fato pouco conhecido é que o Café era o ponto favorito de encontro com os aviadores do Correio Sul. Depois da Primeira Guerra Mundial, o governo francês deu um destino pacífico a sua frota de aviões e inventou o transporte aéreo postal. Para a rota da América do Sul via Dacar e Recife, até Buenos Aires e, depois, Santiago, foram escalados, entre outros, Jean Mermoz e Antoine de Saint-Exupery. Para o aeroporto de Porto Alegre foi improvisado um terreno da Brigada, na beira do Gravataí, junto a uma granja de Alberto Bins. Segundo voz corrente, os aviadores preferiam aproveitar seu descanso em Porto Alegre especialmente porque Mermoz gostava de tomar banho nas águas límpidas do Gravataí e por ter tido alguns casos tanto amorosos como rumorosos. Depois de ter cansado da vida errante, resolveu se estabelecer em Paris onde fundou a Air France. Já Saint-Exupery era mais introvertido. Não gostava desse tipo de aventura e há quem jure que muitas das páginas do Pequeno Príncipe e do Correio Sul foram escritas na galeria do Café.

Edifício Pedro Chaves Barcelos (anexo do Palácio Chaves) Rua da Ladeira (Gen. Câmara) Arq.: Theo Wiederspahn – 1911 Constr.: Rudolf Ahrons (Desenho de G. Weimer)

32  Pela ordem, da rua da Praia até a rua Sete de Setembro: o edifício Chaves, seu anexo, o Banco Alemão e o Banco do Brasil. Este foi projetado por Wilhelm Ahrons & Gustav Schmidt, com ampliação posterior de Fernando Corona. Os demais foram de autoria de Wiederspahn.

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Perspectiva do escritório Ahrons do prédio dos Correios e Telégrafos, de 1909. (Desenho do escritório de Theo Wiederspahn)

Lançamento da pedra fundamental do prédio dos Correios e Telégrafos. (Foto do arquivo de Wiederspahn)


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A constante presença desses aviadores teria feito Otto Ernst Meyer, um expiloto da Primeira Guerra da Luftwaffe alemã, tentar pela enésima vez fundar uma companhia aérea. Ao contrário de suas tentativas em Recife e no Rio de Janeiro, aqui conseguiu entusiasmar a elite local, entre os quais o futuro prefeito Alberto Bins e o engenheiro Rudolf Ahrons, para fundar a primeira companhia aérea do Brasil. Para o voo inaugural da Varig sobre Porto Alegre foram convidadas as autoridades constituídas, entre as quais o presidente Borges de Medeiros e seu secretariado. Dizem que esse foi um dia histórico do estado porque “o governo foi pelos ares...”. Outro projeto importante que Theo começou a conceber em fins de 1909 foi o dos Correios e Telégrafos. A Intendência pretendia fazer um grande aterro pelo lado norte da península sobre a qual se localizava a parte mais antiga da cidade, até o meio do rio, para aí construir o novo porto da cidade. Adiantando-se aos inícios dos aterros que só começariam em 1911, Theo projetou sobre ele um dos prédios mais valorizados da cidade, o qual inauguraria uma série de obras neobarrocas, sua marca registrada na primeira fase de suas atividades no Brasil. No térreo ficariam as áreas de atendimento do público; no peso superior, a parte administrativa e no porão, os serviços de seleção e remessa da correspondência. Dessa forma funcionou até fins da década de 1950 quando foi inaugurada a nova agência, na rua Siqueira Campos. Contudo, o prédio antigo ainda comportava alguns serviços correlatos dos correios. Em inícios da década de 1990, quando já havia sido feito o seu tombamento, foi transformado em Memorial do Rio Grande do Sul, depois de um grande investimento para sua recuperação sobre o qual pairam suspeitas de superfaturamento. Se não tivesse havido um movimento popular de preservação, o prédio teria sido demolido internamente. Felizmente, conseguiu-se demover os demolidores e, depois de novos investimentos de grande monta destinados à impermeabilização, nele foi instalado o Arquivo Histórico do Estado no piso superior enquanto as exposições laudatórias a personalidades e à história do Estado ficavam restritas ao piso térreo e ao porão.

Correios e Telégrafos - Praça Barão do Rio Branco Proj.: Theo Wiederspahn - 1909 - Constr.: Rudolf Ahrons

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O prédio de surpreendente modernidade, não pela linguagem que ainda continuava atrelada às correntes historicistas, mas devido à cobertura plana com lajes impermeabilizadas, se caracteriza por duas belas alegorias escultóricas de autoria de Wenzel Folberger colocadas sobre a platibanda da fachada principal e por um torreão colocado na altura da esquina da praça com a futura avenida Sepúlveda, que foi inspirado numa obra semelhante localizada na estação ferroviária da cidade natal de Theo, em Wiesbaden. Essa torre causou tanto sucesso que, mais tarde, em plena guerra, Carlos Bopp, solicitou que uma réplica também fosse colocada sobre uma ampliação de sua cervejaria. Embora a linguagem estilística se filie ao historicismo dominante, não deixa de ser relevante o fato de que a mesma tenha enfatizado mais a tendência neobarroca que era pouco empregada no Brasil, mas à qual era dada muita ênfase na Alemanha guilhermina e que os arquitetos alemães aqui atuantes reproduziram no Rio Grande do Sul, o que se viria a constituir uma peculiaridade da terra, já que no resto do país essa linguagem era pouco considerada e, por isso, raramente empregada.

Aterro da Avenida Sepúlveda. Proj.: Wilhelm Ahrons. Constr.: Rudolf Ahrons. Administr.: Theo Wiederspahn.

Prédio da Receita Federal (MARGS), dos Correios e Telégrafos e do Banco Nacional do Comércio (Santander Cultural). Proj.: Theo Wiederspahn.

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No ano de 1910 as atividades da firma Ahrons foram ainda mais intensas. Dentre os doze prédios que documentalmente puderam ser comprovados como realizações de Theo, destacam-se os do Banco da Província do Rio Grande do Sul e o do segundo prédio (de três pisos construído no alinhamento da rua Cristóvão Colombo) da Cervejaria Bopp. O primeiro ficava na esquina da rua Sete de Setembro com a Uruguai, com estrada no centro da fachada dessa rua. Tratava-se de um prédio com quatro pisos onde os dois inferiores (porão com a caixa-forte e o térreo) se destinavam às funções bancárias; o segundo piso se destinava, em parte, para a área mais nobre do banco (um “foyer” contíguo à sala de reuniões) e um grande apartamento. O piso superior se destinava a dois apartamentos, um de dimensões pouco menores que o de baixo e outro significativamente menor. Os apartamentos eram ordenados em torno de um poço de luz que iluminava um “invernáculo”, na linguagem da época, o qual hoje denominaríamos de “jardim de inverno”, anexo à sala de reuniões no segundo piso e o “pátio para o público”, a área central do piso térreo, através de um vitral horizontal, uma solução que voltaria mais tarde a empregar em outros prédios congêneres. Uma rica modenatura nas fachadas destacava as colunas de ordem jônica, e a platibanda ostentava cinco frontões (três na rua Uruguai e dois, na Sete de Setembro) com uma cúpula de cobre (popularmente apelidada de “capacete do Kaiser”) na esquina. Tratava-se de


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uma obra muito engenhosa em seu planejamento funcional e de altas qualidades plásticas que – lamentavelmente – foi demolida pouco depois do fim de Segunda Guerra para dar lugar a um edifício em altura de proporções monumentais, dentro da comprometida linguagem da arquitetura dos países totalitários da década de 1930. Portanto, numa linguagem completamente defasada para o seu tempo, quando o Modernismo já era amplamente aceito em centros mais progressistas do país. Tratava-se de um dos bancos mais antigos do país, pois foi fundado ao tempo do segundo Banco do Brasil e foi vergonhosamente destroçado no auge da ditadura militar da segunda metade do século, sendo incorporado no Banco Meridional pelos militares de plantão. Dessa forma, perdeu-se uma preciosa obra de arquitetura e um dos patrimônios bancários do estado. Banco da Província do Rio Grande do Sul Rua Uruguai esquina rua Sete de Setembro Proj.: Theo Wiederspahn – 1910 Const.: Rudolf Ahrons. Perspectiva do escritório de Theo Wiederspahn.

Previdência do Sul. (Foto de Theo Wiederspahn)

Banco da Província do Rio Grande do Sul, de 1910. (Desenho G. Weimer)

Edifício Previdência do Sul (Cine Guarani) Rua dos Andradas Arq.: Theo Wiederspahn – 1910 Const.: Rudolf Ahrons

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Segundo os registros da Prefeitura Municipal, naquele ano Theo ainda realizou cinco projetos de residências e uma reforma de fachada do prédio da firma A. M. Araújo que estava estabelecida na rua Dr. Flores, onde ainda hoje pode ser encontrada, embora tenha sofrido algumas intervenções que a tornam quase irreconhecível. O ano de 1911 foi ainda mais produtivo. Nele realizou, além do anexo do Café Colombo, antes referido, o projeto da Previdência do Sul que se tornaria mais conhecido como Cinema Guarani e que, em tempos recentes, foi objeto de um vandalismo que consistiu em demolir a parte posterior do prédio preservando a fachada (juntamente à do prédio ao lado, a Casa Pavão, também conhecido como Farmácia Carvalho, projeto de Francisco Tomatis). O que restou do prédio original foi integrando numa construção nova que abriga uma agência bancária. Era um prédio de cinco pisos dos quais os dois primeiros eram destinados a um teatro (mais tarde adaptado para cinema), os dois seguintes, à administração da Companhia de Seguros Previdência do Sul e o último, a dois apartamentos, o que parece denotar uma persistência dos modos de vida tradicionais do país, onde era comum que o proprietário morasse na parte superior de seu “negócio”.

nistas do Pós-Guerra, mas que era comum na vertente barroca. Curioso é o fato de que, apesar do tratamento neobarroco, o prédio apresentava o emprego de colunas dóricas tanto no térreo como no piso superior. O frontão também apresentava linhas mais contidas, o que pode ser identificado com uma perseguição de uma linguagem arquitetônica mais sóbria que, segundo os preceitos da época, devia ser própria de instituições bancárias como denotava a escrita, sob o frontão, da inscrição “Brasilianische Bank für Deutschland” (Banco Brasileiro da Alemanha), um nome que viria a exasperar os ardores nacionalistas da cultura envolvente, durante a Primeira Guerra.

O que impressiona ainda hoje no prédio, apesar de sua mutilação, é a riqueza da fachada, seja pela modenatura ou pela estatuária. Coroado por duas cúpulas ornamentais de cobre entre as quais há um frontão decorado com quatro figuras alegóricas nas quais Doberstein (1992, p. 60) quer ver uma representação simbólica da previsão, o prédio ainda apresenta outras figuras decorativas como a cabeça de um mercúrio, uma figura feminina segurando uma âncora e dois anjos (o mesmo autor entende que se trata de alusões ao seguro do comércio e da navegação). Tudo isso levou a uma ostentação de riqueza e luxo que eram novos na capital e se tornariam a marca dos novos tempos conhecidos como da “bela época” ou “Belle Époque” como querem os provincianos ciosos de ostentar o pouco de sua cultura. Essas esculturas foram contratadas nas oficinas de João Vicente Friederichs e, segundo Doberstein, teriam sido executadas por Wenzel Folberger. Igualmente importantes foram os projetos das filiais dos bancos Alemão e Pelotense. O primeiro foi construído ao lado do anexo do Edifício Chaves e com ele perfeitamente integrado no aspecto plástico. Tinha dois pisos ainda que no frontão alto apresentasse algumas janelas falsas que poderiam dar a ilusão de um terceiro pavimento, uma solução que haveria de despertar as iras ou o desprezo dos moder54

Brasilianische Bank für Deutschland. Rua da Ladeira (General Câmara). Arq.: Theo Wiederspahn – 1910. Const.: Rudolf Ahrons (Desenho de G. Weimer)


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A filial do Banco Pelotense, localizada no mesmo quarteirão, porém, no meio da quadra na rua Sete de Setembro, era mais modesta em suas dimensões devido à menor largura, mas igualmente rica no tratamento da modenatura e elementos esculturais. A filial propriamente dita ocupava apenas o piso térreo onde também ficava a caixa-forte que, normalmente, era mais protegida. Nos dois pisos superiores se espremiam, entre os limites do terreno, dois longos apartamentos de cinco quartos. O tratamento da fachada se aproximava mais do barroco, se comparado ao do Banco Alemão de tendência mais neoclássica. Parece que foi do agrado dos proprietários, pois, posteriormente, o banco foi ampliado com a anexação de cinco módulos verticais dos quais os três da extremidade repetiam ipsis litteris os três módulos da fachada original e entre os quais foram colocados dois módulos levemente recuados com idêntico tratamento, entretanto em linguagem menos exuberante. Não se tem documentação de quem teria feito essa ampliação, nem de quando foi feita, mas, a julgar pela excelência e adequação da solução, admite-se que tenha sido feita pelo próprio Theo.

Filial de Porto Alegre do Banco Pelotense. Rua Sete de Setembro, 1128. Arq.: Theo Wiederspahn - Const.: Rudolf Ahrons (Foto de Theo Wiederspahn)

Hoje a fachada ainda está mantida na forma original, mas a parte posterior foi totalmente reformada para adaptá-la a diversas funções a que o prédio se destinou após o fechamento do banco. Hoje, a fachada está bastante prejudicada por não se ter mais uma visão de conjunto, pois, diante dela foi colocado um abrigo de ônibus em total desarmonia com a qualidade plástica daquele prédio. A remoção dessa cobertura é mais do que urgente. 55


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Em data não definida, mas provavelmente na mesma época, foi concebido mais um banco para a cidade: a Caixa Econômica Federal33. Foi construído na esquina da rua Sete de Setembro com a Praça da Alfândega que os senhores edis da cidade insistem em denominar – contra a vontade popular – de Senador Florêncio. Talvez por imposição da administração central da entidade, a linguagem empregada se aproximou mais da neoclássica uma vez que quatro janelas duplas com respectivos telhados de duas águas ao longo da rua Sete de Setembro e três voltados para a praça, dando a impressão de que o telhado fosse utilizado à maneira francesa. O piso térreo elevado indica que o porão provido de três janelas triplas em cada fachada era utilizado, local onde certamente se encontrava a caixa-forte. Tudo indica que o térreo se destinava ao atendimento ao público, sendo que o piso superior e o espaço sob o telhado se destinavam à administração. Como era corrente na época, o acesso do público era feito pela esquina, sobre a qual havia um torreão que, nesse caso, tinha a forma cônica e não tinha o acabamento empregado nos “capacetes do Kaiser”, o que é mais um indicativo de uma postura não barroca. O acesso dos funcionários era feito por uma entrada secundária que dava para a praça. Desde longa data, a prefeitura de Porto Alegre estava projetando fazer um aterro pelo lado norte da península por dois motivos principais: um pelo alto valor imobiliário da área e, principalmente, pelo fato de que o comércio estava tendo um grande desenvolvimento e a cidade não dispunha de um porto adequado. Por isso o arquiteto Wilhelm Ahrons foi encarregado de realizar esse projeto nos primeiros anos do novo século. Certamente por motivos do endividamento da Prefeitura, esse projeto foi adiado até 1911 quando foi posto em concorrência um pequeno trecho da obra que correspondia ao aterro de uma faixa correspondente à largura da praça da Alfândega até um paredão de granito34 localizado no meio do rio, que correspondia a sua maior profundidade. Essa concorrência foi vencida pela firma de Rudolf Ahrons e Theo foi encarregado do acabamento da proposta genérica apresentada pela Prefeitura. Por interferência do governo es-

tadual, seria aberta uma grande avenida que começaria no centro desse paredão, cortaria o meio da praça da Alfândega e, com uma pequena deflexão, seria prolongada até as portas do palácio Piratini, passando entre o teatro São Pedro e o Arquivo Público. No cruzamento dessa avenida, que recebeu o nome Sepúlveda, com a rua da Praia seria construída uma rótula com uma estátua equestre do Gen. Osório. Por razões diversas que podem ser resumidas em escassez de recursos financeiros, essa avenida só foi aberta até a rua Sete de Setembro e a estátua foi deslocada para o centro da praça.

Caixa Economica Federal Rua Sete de Setembro esq. Pça. da Alfandega. Proj.: Theo Wiederspahn Constr.: Rudolf Ahrons. (Desenho de G. Weimer)

33  Na década de 1940, esse prédio foi demolido para dar lugar a um prédio bem maior executado dentro da linguagem monumentalista característico do período do Estado Novo, que, por sua vez, foi demolido na década de 1970 para dar lugar a um prédio modernista de grande altura, ocupando todo o quarteirão. 34  Esse paredão, com seus posteriores prolongamentos, é uma obra exemplar em qualidade de construção com pedra aparelhada. Praça da Alfândega com os prédios da Caixa Econômica à esquerda, o antigo prédio da Receita Federal no centro e o novo prédio de mesma, à direita (Cartão-postal da época).

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De qualquer maneira, com o aterro que, em parte já havia sido realizado com a construção de dois “braços” de terra que serviam de atracadouro, foram criados quatro quarteirões sobre os quais foram erguidos os prédios dos Correios e Telégrafos e da Delegacia da Receita Federal que substituiria o outro prédio anterior localizado sobre um desses “braços”, ambos de autoria do Theo; nos outros quarteirões seriam construídos os prédios gêmeos da Secretaria da Fazenda e da Secretaria de Obras Públicas de autoria de Alfonse Dinis Hebert, com posteriores reformulações de Theóphilo Borges de Barros, e o novo prédio da Alfândega de autoria de Hermann Otto Menchen. À falta dos desenhos originais do projeto, não se sabe qual o tratamento dado à entrada da cidade a partir do porto. Certo é que foram construídos quatro armazéns de ferro, dois de cada lado e ao longo da avenida, junto ao cais. Não

se sabe se já havia um arco que passava por cima da avenida. O problema é que foram encomendados outros quatro armazéns semelhantes para a cidade de Rio Grande. Essas construções viriam da Alemanha e, com o início da guerra, os de Rio Grande não chegaram a ser fornecidos. Como a necessidade dos mesmos era mais urgente no porto marítimo, os de Porto Alegre foram desmontados e remontados naquela cidade. Visto que a Alemanha perdeu a guerra, novos, dessa vez em número de seis, foram importados da França e o grande pórtico foi confeccionado nas oficinas de Emmerich Berta, na Voluntários da Pátria, empreendimento que passaria, mais tarde, à propriedade de Alberto Bins. A não ser que o projeto desse pórtico fizesse parte dos planos iniciais de Theo, é pouco provável que o pórtico tenha sofrido a interferência desse arquiteto por razões que serão vistas mais adiante.

Avenida Sepúlveda na atualidade. Proj.: Wihelm Ahrons. Constr.: Rudolf Ahrons. Administr.: Theo Wiederspahn

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Delegacia Fiscal da Receita Federal (hoje, Museu de Artes do Rio Grande do Sul Ado Malagoli) Proj.: Theo Wiederspahn - 1912 - Constr.: Rudolf Ahrons. (Desenho de G. Weimer)

De qualquer maneira, realizado o aterro, o terreno foi liberado para dar lugar a mais um prédio marcante de Theo. Como o antigo prédio da Delegacia da Receita Federal havia se tornado insuficiente para atender à crescente demanda, foi necessária a construção de um novo. Para tanto o ministro Rivadávia Correa contratou o Escritório Ahrons em 1912 que repassou o projeto a Theo. Devido ao grande número de encargos que Ahrons assumiu nesse tempo, foram contratados mais dois técnicos de alta qualificação: o arquiteto Alexander Gundlach35 que passaria a se encarregar do detalhamento dos projetos de Theo e o engenheiro Alfred Haessler36 35  Pouco se sabe sobre a vida desse arquiteto. Certo é que foi contratado por Ahrons em 1911 e, depois da dissolução da firma de Ahrons, continuou a trabalhar por conta própria. Nesse período encaminhou nove projetos para a aprovação na prefeitura e, a partir de 1921, não há mais notícias sobre sua pessoa. 36  Haessler também foi contratado por Ahrons em 1911 onde ficou até a dissolução da firma em fins de dezembro de 1915. Então passou a trabalhar por conta própria. Em 1924 abriu uma firma construtora que recebeu, em 1930, como sócio o sobrinho de Ahrons, Ernst Woebcke. Com sua morte em 1941, a firma passou a funcionar com a razão social Ernesto Woebcke e Cia. que existe até hoje.

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que se encarregou dos cálculos de concreto e dos projetos complementares de engenharia. Foi com esses auxiliares que projetou a Delegacia Fiscal da Receita Federal (hoje convertida em Museu de Artes do Rio Grande do Sul Ado Malagoli), um dos projetos mais significativos da primeira fase de sua vida no Brasil. No centro do porão ficava a caixa-forte junto à qual havia uma guarda policial permanente, além de salas para serviços burocráticos. No piso seguinte que ele denominou de “térreo”, havia um amplo vestíbulo que dava acesso a um saguão central que ele chamou de “pátio do público” com pé-direito duplo, que era iluminado através de uma claraboia central provido de um grande vitral colorido (à semelhança do que fizera no Banco da Província e voltaria a fazer, mais tarde, no Banco Nacional do Comércio). De um lado ficava a recebedoria e, no oposto, a pagadoria. Na galeria do piso superior ficavam os serviços burocráticos e as instalações da diretoria. A cobertura era plana – da mesma forma como no prédio dos Correios e Telégrafos que ficava defronte – e nos quatro cantos havia torreões iguais com exceção do que ficava junto à avenida e a praça que era mais avantajado e se compunha com o dos Correios formando um harmonioso conjunto à semelhança dos prédios gêmeos que Phillip von Normann havia construído na praça da Matriz (Teatro São Pedro e Câmara Municipal, esta criminosamente queimada ao fim da Segunda Guerra e substituída por um prédio modernista em altura que nada tinha a ver com o prédio que restou). Esses prédios (Correios e Delegacia) eram tão avançados para o seu tempo que o catedrático de História da Arquitetura da Universidade Técnica de Berlim só se convenceu de que esses projetos haviam sido realizados antes da Primeira Guerra depois de ver os originais devidamente datados e assinados.

Praça da Alfândega com os prédios gêmeos da Receita Federal e dos Correios e Telégrafos, foto de 1929. (Foto do arquivo de Theo Wiederspahn)

Delegacia Nacional da Receita Federal (hoje, Museu de Artes do Rio Grande do Sul).

Três prédios de Theo Wiederspahn na praça Visc. de Rio Branco.

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Vitreaux zenital interno do salão principal (do público).

A musa da arquitetura com o escudo profissional e a maquete do próprio prédio.

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A entrada principal do prédio da Receita Federal.


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Outro projeto importante desenvolvido em 1912 foi o da Faculdade de Medicina. Embora ela tenha sido a primeira a ser criada, talvez devido aos preconceitos do comtismo, foi a última (não considerando o caso especial da Escola de Artes) a receber uma sede própria. A história dos projetos que antecederam o definitivo é bastante complexa e cheia de meandros que ainda estão necessitando um estudo mais específico, pois até mesmo propostas elaboradas no exterior foram rejeitadas. Em 1912 a congregação da Faculdade aprovou o projeto apresentado pela firma de Ahrons e de autoria de Theo. O prédio localizado na esquina das atuais ruas Sarmento Leite e Luiz Englert apresentava uma planta em V, com as duas “asas” de igual tamanho. Tratava-se de um prédio de uma modenatura muito complexa que, por isso mesmo, precisou de um detalhamento muito acurado. Além da complexidade formal das fachadas, ainda apresentava uma cobertura muito elaborada, com dois “capacetes do Kaiser” sobre cada uma das “asas” da construção. A entrada era feita pela esquina e dava para uma vestíbulo duplo de suntuoso acabamento. Através de uma escada monumental que se encontrava ao seu fundo, se tinha acesso ao piso superior onde ficava outro vestíbulo que dava acesso a um requintado auditório oval, um dos espaços mais solicitados para as grandes solenidades da cidade. Foram encontradas diversas referências de que a diplomação de Getúlio Vargas para a governança do estado teria acontecido naquele local. Dos saguões saíam dois cor-

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redores ao longo dos quais eram distribuídas salas de aula e os laboratórios e demais serviços complementares. Essa distribuição se repetia nos três pisos. Ao que tudo indica, a proposta original não foi seguida à risca por ter sido introduzida uma ligação entre os extremos das duas “asas”. Mais do que isso, a construção do prédio foi sensivelmente prejudicada pela Primeira Guerra. As obras chegaram ao cimo das paredes do segundo piso quando foi deflagrado o conflito e a consequente paralisação das obras. Mesmo assim, Ahrons financiou a conclusão da laje superior para que a parte já concluída não sofresse maiores danos devido às chuvas. As obras só foram retomadas depois da Guerra quando Ahrons já tinha fechado sua empresa. Nessa época Theo integrava uma lista negra que circulava na cidade, cuja finalidade era excluir os alemães e os italianos do mercado de trabalho. Para concluir a obra foi nomeado o engenheiro João Baptista Pianca, que tinha uma formação arquitetônica bastante precária e que resolveu, “engenheirescamente”, “simplificar” a construção do telhado. Para tanto suprimiu todas as cúpulas e substituiu toda a cobertura por uma estrutura recortada, de duas águas. Para esconder o grotesco da solução, posicionou-a atrás de uma platibanda provida de um tosco enfeite abarrocado sobre a entrada principal. Dessa forma ficou totalmente comprometida a qualidade plástica do prédio que – não fosse isso – certamente teria sido o melhor representante daquela fase arquitetônica na cidade.

Faculdade de Biociências da UFRGS (antiga faculdade de Medicina). Proj.: Theo Wiederspahn – 1912 - Constr.: Rudolf Ahrons. (Desenho de G. Weimer)

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Entretanto, outras deformações foram sendo introduzidas ao longo do tempo. Por imposição legal vigente à época, os pés-direitos eram muito altos para as concepções de hoje, o que permitiu que fossem introduzidos mezaninos nos diversos pisos que também acabaram por ocupar parte dos corredores. Pior que isso, a ala ao longo da rua Luiz Englert foi consideravelmente prolongada com conceitos arquitetônicos totalmente equivocados. Na fachada que dava para a rua foi mantida a modenatura original, mas pelo lado oposto – o que dava para o interior do quarteirão – não foram tomados os mínimos cuidados na ordenação das aberturas que associado a um acabamento tosco resultou numa solução caótica que compromete o restante da construção. Para corrigir essa aberração, a solução radical seria a demolição desse acréscimo; uma forma mais atenuada seria sua completa reforma.

A Faculdade de Medicina da UFRGS. (Hoje Instituto de Biociências)

Fotografias da Faculdade de Medicina (atual Instituto de Biociências) da UFRGS. (fotos de Leopoldo Plentz)

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Dada a grande importância dessas obras, corre-se o risco de admitir que foi só de obras grandiosas que viveu a firma de Ahrons dos tempos de Theo. Também obras menos imponentes fizeram parte do dia a dia da firma. Em sua autobiografia Theo se refere a um prédio da Escola de Engenharia que até hoje não foi identificado. Projetos de casas comerciais, como as de Eduardo Secco & Cia., H. Theo Moeller, Germano Wahrlich, Schwarz & Homrich, Hotel Schmidt, todas na rua Voluntários da Pátria e Irmãos Weingaertner, na rua Dr. Flores, já foram demolidas.

Casa Comercial Schwarz, Homrich & Cia., Rua Dr. Flores, de 1913. Perspectiva do Escritório Theo Wiederspahn.

Casa Weingaertner, Rua Dr. Flores, de 1912. (Foto de Theo Wiederspahn)

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Importante também foi o projeto do Colégio Cruzeiro do Sul localizado na esquina da rua Belo Horizonte com a avenida Teresópolis. Foi possível identificar os projetos de quinze residências, lamentavelmente, todas demolidas. Dentre essas é necessário destacar os palacetes Waldemar Bromberg e Adolfina Wahrlich que ficavam na Avenida Independência, Max Rapp e Jorge Thofern que ficavam na rua Cel. Carvalho (hoje, André Puente), de Alfredo Nilles, na Rua Gonçalo de Carvalho esquina Ramiro Barcelos e especialmente o de Carlos Bopp, na rua Cristóvão Colombo, defronte de sua cervejaria, que se tornou famoso por ter sido abastecido, diretamente da fábrica, com o “precioso líquido” por ele produzido. Além disso ainda há referências a numerosas obras de menor expressão que podem ser conferidas no anexo. Não se sabe quando começaram as tratativas com Horácio de Carvalho para a construção do Hotel Majestic. Os primeiros esboços indicam a indecisão de construir o prédio na parte alta da Rua da Praia. Esses estudos foram abandonados quando foi adquirido o terreno ao longo da rua Araújo Ribeiro (lado do poente). Tampouco se sabe quando foi realizado esse projeto. Ele começou a ser construído em 1914, o que é surpreendente pelo fato de ter começado a Primeira Guerra. Era um prédio que ia da Rua da Praia até a Sete de Setembro, tinha quatro pisos e um pequeno torreão em cada esquina e um frontão elevado no meio da quadra. Posteriormente receberia duas substanciais ampliações.

Hotel Majestic em 1918. Proj.: Theo Wiederspahn. Constr.: R. Ahrons. (Desenho G. Weimer)

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THEO WIEDERSPAHN - ARQUITETO

É sabido que Ahrons mantinha pelo menos duas filiais no interior do estado, em Santa Maria e Pelotas. Isso significa que deve ter tido um número significativo de obras que justificassem a manutenção das mesmas. Isso confere fundamento a notícias de numerosas obras pelo interior do estado, mas como não tivemos acesso a documentos que as comprovem, ficamos no aguardo da divulgação de pesquisas confiáveis.

Casa para aluguel de F. Warhlich, de 1912. (foto de Theo Wiederspahn)

Devido à grande contribuição que Theo prestou ao desenvolvimento da arquitetura industrial – dita utilitária – julgamos necessário fazer uma digressão a respeito do processo de industrialização que estava começando a se afirmar à época em que ele estava ativo na firma da Ahrons. Sua grande contribuição na primeira fase de suas atividades em Porto Alegre foram os sucessivos projetos da cervejaria Bopp. A produção e o consumo de cerveja fizeram parte dos hábitos germânicos desde os tempos imemoriais. Por tradição igualmente antiga, cada aldeia tinha a sua

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cervejaria na qual detinha o monopólio das vendas em seu termo. Portanto, eram pequenos estabelecimentos artesanais que produziam cervejas de acordo com costumes locais37. Não seria, pois, nenhuma surpresa que essa prática também fosse adotada no Brasil. Na medida em que os excedentes permitissem esse tipo de consumo, seria de esperar que surgissem cervejarias maiores. Delhaes-Günther38 arrola a existência de diversas cervejarias na década de 1850. Porém, o Brasil não era a Alemanha e o monopólio aldeão foi rompido devido à fluidez do conceito de aldeia, dando lugar a uma concorrência cada vez mais aberta. A precariedade das estradas, no entanto, dificilmente permitia um comércio que ultrapassasse os limites de vilas próximas devido ao fato de que essas cervejas eram de alta fermentação, o que aumentava a pressão interna das garrafas, podendo levar ao derramamento devido à explosão das rolhas para o que corroborava a trepidação do transporte, em geral, feito em lombo de burro. Com a decadência da pecuária no Estado e o redirecionamento da economia para o setor agrícola à época da proclamação de República, as colônias alemãs tiveram um considerável incremento econômico fazendo com que houvesse uma crescente urbanização de algumas vilas situadas em posições estratégicas. Isso se refletiu nas cervejarias das cidades mais desenvolvidas que se fortaleceram e se expandiram à custa do progressivo fechamento das pequenas cervejarias interioranas. Nas cidades maiores, surgiu uma forte concorrência entre várias cervejarias locais como a Christofel, a Becker, a Kaufmann, a Volkmer e a Bopp em Porto Alegre ou a Ritter, a Eiffel, a Schreiber e a Härtel, em Pelotas, para citar as mais importantes. Em 1913, a Cervejaria Ritter abriria uma filial em Porto Alegre, na Rua Voluntários da Pátria, para quem Theo faria o projeto. Para o azar da arquitetura, essa obra seria seriamente transformada quando as cervejarias Bopp, Sassen e Ritter que, em 1924, formaram a Cervejaria Continental, foram encampadas pela Cervejaria Brahma. Então ela foi transformada em maltaria. Com isso, o projeto original foi profundamente modificado através de adaptações e ampliações sucessivas. 37  Mesmo antes do estabelecimento dessas cervejarias coloniais, era comum a produção caseira da cerveja de gengibre (Spritzbier) para as festas familiares ou religiosas como o Kerb. 38  DELHAES-GUENTHER, Dietrich. Industrialisierung in Brasilien, Colônia (Alemanha), Böhlau, 1973, passim.


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No contexto do trabalho de Theo, interessam as histórias das cervejarias que Carlos Bopp (pai) legou a seus filhos Carlos, Alberto e Arthur e, secundariamente, das de Becker e de Ritter. Segundo Blancato39, a primeira foi fundada em 1881, com uma produção diária de 300 garrafas. Provavelmente, desde o início, estava estabelecida na rua Cristóvão Colombo, próximo à rua Ramiro Barcelos. Levantamentos disponíveis – mas não datados40 – mostram a existência de alguns prédios estabelecidos desordenadamente e recuados do alinhamento que deCarl Bopp, pai. vem ter servido como as primeiras instalações da indústria. Documentos existentes no arquivo de Theo demonstram que Bopp possuía um amplo armazém na rua Voluntários da Pátria provido de um longo trapiche através do qual despachava seus produtos para o interior do estado. Em fevereiro de 1908 – portanto antes da chegada de Theo ao Brasil – Bopp encomendou um projeto industrial para a instalação de caldeiras para a firma Steinmüller (provavelmente de Hamburgo, Alemanha) com as caldeiras propriamente ditas fornecidas pela firma J. Rech, daquela cidade. Como viria a se tornar norma, esse projeto foi reelaborado em agosto de 1908 pela firma Ahrons e construído em lugar não definido, mas certamente junto aos prédios já existentes. Estes seriam construídos antes de Theo ter assumido a direção do Departamento de Projetos do Escritório Ahrons (em setembro de 1908) em razão de que esse projeto, provavelmente, fosse de autoria de Hermann Otto Menchen.

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frontal do piso térreo, havia um pé-direito duplo e servia de expedição enquanto nos fundos, no térreo, estavam os tanques de cerveja pronta que seria engarrafada no piso intermediário. Apesar das consideráveis dimensões do prédio, Theo decidiu não usar apoios intermediários e optou por uma cobertura com estrutura de ferro que foi projetada e produzida pela firma Linde Maschinenfabrik A. G., de Wiesbaden, a cidade natal de Theo.

Cervejaria Bopp (Desenho atribuído a Theo). Da esquerda para a direita, os prédios de 1908, 1910 e 1914.

O grande desenvolvimento econômico que precedeu a Primeira Guerra Mundial fez aumentar os negócios de Bopp que, em abril de 1910, resolveu construir um prédio monumental e de requintado acabamento sobre o alinhamento da rua Cristóvão Colombo, com 27 metros de frente por outros tantos de fundos e com previsão de um aumento de mais 18 metros nos fundos. Um piso superior contínuo servia para armazenamento da matéria-prima. Na parte 39  BLANCATO, Vicente S. As forças econômicas do Rio Grande do Sul no 1o Centenário da Independência do Brasil. Porto Alegre: Globo, 1922, p. 114. 40  Trata-se de dezessete desenhos sem data, de levantamentos de terrenos da cervejaria e de propriedades na rua Voluntários da Pátria, onde há um armazém com trapiche.

Cervejaria Bopp - prédio de 1910. (Desenho de G. Weimer)

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Essa empresa também se encarregou do projeto de uma fábrica de gelo41. O aumento das instalações com o consequente aumento da produção requereu a construção de um aumento da casa de máquinas, de um grande tanque d´água e de uma nova chaminé de 35 m de altura, que, para a época, deveria ser, se não a construção mais alta, com certeza, uma das mais avantajadas da cidade42. Esses projetos não dependiam da colaboração dos alemães, em razão do que foram iniciados em maio de 1912. A maquinaria chegou a Porto Alegre em meados de 1912 quando puderam ser concluídas as construções em andamento.

alegorias formadas por barris de chope em torno das quais dançam crianças com coroas de flores. Certamente, isso seria uma alegoria à alegria obtida do consumo da cerveja. Pelo menos, é esse o nosso entendimento.

O que, no entanto, ressalta no prédio é o requinte de sua modenatura e a riqueza de seus conjuntos e/ou unidades escultóricas. A porta de entrada – lamentavelmente, há muito desaparecida – trazia como marca o fundo de um barril de chope. As colunas laterais, em lugar das caneluras verticais das ordens clássicas, eram constituídas por filas de camadas superpostas de garrafas, que terminavam por um capitel formado por ramos de malte e lúpulo. Pouco acima havia dois “bustos” segurando um jarro de chope. Acima de cada cabeça, havia um barril alado, transbordando espuma. Durante a execução, essas asas foram consideravelmente podadas. Mais acima, duas pilastras eram sustentadas, cada qual por um anão43 à maneira de Atlantes e sobre cada pilastra havia um globo terrestre encimado por uma garrafa de cerveja. Em torno da esfera dançavam quatro crianças, o símbolo, na tradição germânica, da primavera. No meio de cada pilastra, há um gato que, quando preto, na mitologia germânica, espantava os maus agouros. Na parte mais alta da cimalha, entre as duas alegorias à primavera, havia um elefante que, na ponta de sua trompa, deveria sustentar um lampião. Na execução o mesmo foi abolido. É claro que esse animal não fazia parte da mitologia germânica e lá estava por simbolizar a marca de uma das cervejas produzidas por Bopp. Sob a cimalha e entre cada janela se repetem 41  Projeto de junho de 1912. 42  Só na segunda metade da década seguinte, o arquiteto Anton Floderer, do Rio de Janeiro, haveria de projetar a chaminé da Usina do Gasômetro que lhe faria concorrência. 43  Os anãos, na mitologia germânica, eram os primeiros seres “humanos” que os “ases” (deuses) tentaram criar. Apesar de serem muito inteligentes e trabalhadores, eram fracos e feios, em razão do que passaram a viver sob a terra. Depois os “ases” fizeram uma nova tentativa e criaram os “gigantes” que eram muito fortes, mas pouco inteligentes e desajeitados. Por isso, se retiraram e foram viver no alto das montanhas. Só na terceira tentativa os “ases” conseguiram criar homens perfeitos que passaram a habitar a terra. Os anões se tornaram o símbolo do trabalho, pois o faziam incansavelmente durante o dia, explorando as minas subterrâneas e à noite saíam para realizar as tarefas impossíveis ou demasiado difíceis aos homens.

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O “frontão” do prédio de 1910.

Donar, o deus germânico do tempo, no cimo da platimbanda do prédio de 1910. Fachada principal do prédio de 1910.


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O conjunto que mais discussões tem suscitado é do extremo-sul da cimalha, no topo do cunhal da direita. Uma deidade representada em conformidade com as de Hermes grego ou do Mercúrio romano, com seu caduceu, seu bornal, seu chapéu e sapatos alados, tem provocado diversas interpretações. As formas e a postura característicos do deus, aparentemente, não deixam dúvida de que se trataria da divindade greco-romana protetora dos comerciantes, dos viajantes e dos ladrões. Pelo menos é como o entende Doberstein44. Parece que as coisas não são tão simples assim: em seus lados estão um galo e um bode. Essas duas figuras são estranhas à mitologia clássica. No entanto, na mitologia germânica o deus do tempo, Donar, quando ficava furioso, saía em disparada, montado em seu carro puxado pelo bode, causando trovões e relâmpagos quando as rodas batiam nas pedras, e em seu ombro conduzia um galo, seu fiel companheiro que era encarregado da definição dos ventos e das chuvas (em razão do que ele constantemente, ainda em nossos dias, é colocado na ponta das torres45 das igrejas para indicar de onde vem o vento).

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houve necessidade de uma completa reformulação de toda a fábrica. Em maio de 1913 foi iniciado o projeto industrial de um novo prédio para caldeirões de cozimento na firma A. Ziemann, de Stuttgart, Alemanha, com projeto arquitetônico sumário realizado na firma Bihl & Woltz, da mesma cidade. Em julho de 1913, esse projeto foi complementado pela firma A. Ziemann, com adição de uma central de moagem de cereais realizada pela firma Schindler & Stein A. G., de Dresden, Alemanha. Além disso, uma nova fábrica de gelo foi desenvolvida pela firma Linde Maschinenfabrik A. G., de Wiesbaden.

Devido a essas características, Donar também era o deus da agricultura e o protetor dos colonos. Dentro da mitologia greco-romana não há notícias sobre a representação de Hermes/Mercúrio com o bode e o galo, ao contrário do que ocorre com Donar que, aos tempos da romanização dos bárbaros germânicos, foi travestido em Mercúrio numa precoce manifestação do sincretismo religioso, tão conhecida pelos brasileiros, existindo várias versões na Alemanha. Wenzel Folberger produziu uma específica para o Brasil que Doberstein julga (injustificadamente, em nosso entender) vulgarizada. Parece que se trata apenas de mais uma de tantas representações do deus, dessa vez, em posição de descanso. Bem mais difícil é a interpretação do significado da coruja de asas abertas que se encontra pouco abaixo dos pés da deidade, sentada sobre um escudo ladeado por duas máscaras. Nas diversas mitologias, a ave aparece como o símbolo do saber, visto que enxerga à noite A relação desse conjunto com a cerveja é um mistério que Theo deve ter levado ao túmulo. Tudo leva a crer que a essa época os negócios de Bopp iam muito bem, como de resto acontecia com toda a sociedade. Para dar vazão a uma crescente demanda

Perspectiva de uma das variantes do prédio de 1914, com proposta de adequação volumétrica do prédio de 1908. (Perspectiva do Escritório de Theo Wiederspahn)

44  Doberstein, Arnoldo Walter. Estatuária e ideologia, Porto Alegre, Prefeitura Municipal, 1992, p. 62. 45  Até mesmo no cimo das torres das igrejas cristãs, uma vez que a origem pagã do símbolo foi esquecida ou passou a ser tolerada.

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Esses projetos industriais serviram de base para a elaboração dos diversos estudos arquitetônicos. O projeto definitivo que Theo denominaria de “pavilhão sul” (de planta quadrada de 14 metros de lado e de três pisos, além do porão) seria recuado em relação à rua Cristóvão Colombo. É importante sublinhar que esse prédio originalmente tinha apenas três módulos em cada uma de suas fachadas. Um passadiço ligaria o “pavilhão sul” ao prédio já concluído, projeto que foi assinado em outubro de 1913. Segundo o projeto original, esse passadiço teria apenas um piso, mas, na construção definitiva, acabou tendo dois. Em seu centro havia um escudo com os dizeres “Guten Durst” (boa sede) que depois desapareceu, possivelmente em decorrência dos excessos nacionalistas da Primeira Grande Guerra. Como o último piso do prédio não teria apoios intermediários, a estrutura de metal do telhado teve de ser realizada na Alemanha, dessa vez em Mülheim enquanto as calhas vieram de Wiesbaden46. Tanto a estrutura da cobertura do “pavilhão sul” como o material da cobertura propriamente dito só chegaram em dezembro de 1913.

Originalmente, os projetos do “pavilhão sul” não apresentavam torreão. Por essa época, Theo estava construindo os prédios gêmeos da Delegacia Fiscal e dos Correios e Telégrafos. Os Bopp se encantaram com os torreões que os mesmos apresentaram e exigiram que o novo prédio de sua cervejaria também apresentasse algum. Theo desenhou algumas variantes, mas nenhuma delas conseguiu evitar algumas complicações para o telhado, visto que sua estrutura já estava sendo concluída na Alemanha. Em função disso, houve necessidade de algum malabarismo estrutural da parte de Theo para poder conseguir agregar o torreão sem comprometer as tesouras do telhado. Devido a essas circunstâncias, esse torreão não poderia apresentar a exuberância dos prédios da praça da Alfândega, o que, no entanto, estava longe de comprometer o resultado final da obra. Os panelões de cocção necessitavam de fornalhas alimentadas desde o porão. Por isso, houve a necessidade de levantar o piso térreo, que foi aproveitado para a construção de uma escada monumental que levava a um portão ricamente trabalhado e valorizado, em seu contorno, por elementos escultóricos. No mais, o tratamento formal do prédio seguiu muito de perto ao que tinha sido utilizado no prédio ao lado, recém-concluído. No engaste do passadiço no prédio novo foi prevista a colocação de uma estátua de Gambrinus47, o mitológico rei ao qual é atribuída a descoberta da cerveja48. O torreão apresenta em sua base portas que dão para uma sacada e, sobre aquela que dava para a rua, foi prevista a colocação de um relógio (como no prédio dos Correios e Telégrafos), mas, ao que parece, nunca foi instalado. Na base da cúpula de cobre, sobre seus cantos, foram colocados quatro brasões com as marcas das cervejas produzidas pela fábrica. Os mesmos apresentam em seus lados figuras ale-

Prédio de 1914: a entrada. (Foto de Leopoldo Plentz) 46  Os desenhos, com certeza, foram realizados em Wiesbaden, mas não trazem informações sobre os autores do projeto.

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47  Sua grafia mais antiga conhecida era Gamprivius que, com o tempo, recebeu a forma de Jamprinius. Alguns autores julgam tratar-se de uma corruptela de Jan Primus ou seja, o duque Jan I (João I), de Brabante, uma província medieval belga hoje absorvida pela circunscrição de Flandres. Suas representações têm variado muito ao longo do tempo, mas todas elas têm em comum o fato de segurar numa mão erguida uma jarra de cerâmica transbordando de espuma de cerveja. Foi nesta forma que Theo o representou no desenho de seu projeto, mas Alfred Adolf, o responsável pela realização tridimensional da escultura, acrescentou um barril possivelmente para conseguir melhores condições estáticas e maior dinâmica plástica no conjunto. 48  É muito difícil a tentativa de estabelecer até mesmo uma época aproximada do surgimento da cerveja. É sabido que já entre os gregos clássicos e, principalmente, entre os romanos havia bebidas fermentadas de cereais que faziam concorrência ao vinho. Há mesmo quem atribua a origem de seu nome aos cultos orgiásticos em homenagem à deusa Ceres, do qual teria derivado o nome latino cervisia que seria uma corruptela de cerevisia, a bebida da deusa Ceres. Plínio, no século I a.C., atribui sua origem aos gauleses enquanto os historiadores centro-europeus atribuem sua origem aos germanos, dos quais teria recebido grafias como Bier, beer, bièrre, birra e outras variantes nas diversas línguas dessa origem, ao ponto de ser adotado até pelo italiano, os herdeiros diretos da cultura romana clássica.


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góricas, cada qual erguendo uma jarra de chope que Doberstein não pretende interpretar por julgar que os escultores tinham “um grau de relativa autonomia”, no caso específico, de Ernst Schobb, que teria se arvorado de algumas liberdades criativas difíceis de ser identificadas. Em nosso entender, essa autonomia não existia, salvo detalhes quase irrelevantes, como demonstram os desenhos de Theo. Como se percebe que as marcas da mitologia germânica estão49 quase que onipresente (a exceção é o elefante), entende-se que essas figuras laterais aos escudos sejam representações de ninfas, figuras benevolentes e faceiras que eram as guardiãs dos rios e regatos. Será que na concepção de vida de um alemão poderá haver água mais abençoada do que a da cerveja?

Gambrinus, na fachada do prédio de 1914 49  Há fotografias que mostram que Theo estendia papéis em rolo, na época chamados de “sem fim”, sobre uma das paredes de seu escritório que tinha, conforme costume da época, considerável altura, diante da qual corria uma escada de marinheiro que se deslocava sustentada por encaixes de rolamentos. Isso permitia que Theo pudesse se deslocar na vertical e na horizontal para desenhar as figuras a carvão, em tamanho natural. Depois de aprovados, os desenhos eram mandados para as oficinas de João Vicente Friederichs, onde eram moldadas em barro, sobre uma mesa de trabalho. Depois que o molde ficava pronto, construía-se uma caixa em sua volta que era preenchida com argamassa. Quando essa terminava sua cura, virava-se o conjunto e tirava-se o barro, restando a figura em negativo. Depois de untar o interior do molde com alguma substância gordurosa para garantir a descolagem da réplica da escultura em barro, os vazios eram preenchidos com argamassa. Para garantir a solidez da escultura, colocava-se uma tela de ferro moldada manualmente no interior do molde. Essa técnica era chamada de “argamassa armada”.

Alegoria à cerveja Negrita na torre do prédio de 1914.

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Após esses investimentos, a cervejaria prescindiu de novas construções por algum tempo. Uma das razões foi a Primeira Grande Guerra que paralisou amplos setores da economia. Essa foi a fase mais produtiva de Theo e a que mais marcou a arquitetura sul-rio-grandense. Para que ela pudesse ser produzida, certamente, a figura de Rudolf Ahrons foi da maior importância. Sem seu aval, Theo não teria conseguido realizar obras tão significativas. Ahrons era muito bem relacionado na alta sociedade porto-alegrense, dentro do governo – tanto estadual como federal –, na maçonaria, na Universidade e na vida social da cidade. Sendo um empresário de sucesso, soube se cercar de pessoas qualificadas que garantissem a qualidade de suas obras. Disso Theo se beneficiou em muitos aspectos, como será visto nos próximos capítulos. Quando Ahrons foi forçado a encerrar suas atividades de construtor em decorrência da Primeira Guerra Mundial, Theo perdeu esse apoio e teve de concorrer em igualdade de condições com muitos outros arquitetos que estavam chegando a Porto Alegre, especialmente jovens alemães que haviam passado por maus momentos nas frentes de batalha. As extravagâncias da Belle Époque acabaram com o desencadeamento do conflito mundial. Os novos tempos ainda seriam muito favoráveis a Theo no entre-guerras, mas a disposição de recursos deixou de ser tão magnânima. Quando o “terremoto” chamado de “movimento modernista” se abateu sobre a cidade e o Estado, a partir dos fins da década de 1940, sua obra passou a ser contestada ou, no mínimo, menosprezada. E com isso ela acabou por lhe impingir sérios revezes. Dentre as 28 obras de sua autoria citadas neste capítulo, que foram selecionadas entre as mais expressivas do período, 14, ou seja, exatamente, a metade, já foram demolidas. Da outra metade que ainda se encontra em pé, sete estão ou tombadas ou se encontram sob guarda, que se imagina segura quanto a sua preservação. Dessas, apenas a Cervejaria Bopp se encontra em mãos particulares e seu tombamento não conseguiu evitar que pelo menos a metade da massa construída fosse destruída. O prédio dos Correios e Telégrafos e a Delegacia Fiscal (atual MARGS) só conseguiram sobreviver devido a duros confrontos em prol de sua conservação que envolveram até pessoas muito ilustres que estavam empenhadas em suas “reformas”. A Faculdade de Medicina nem chegou a ser 70

concluída na forma de seu projeto inicial: sob alegações absolutamente injustificáveis – como a de que as cúpulas de cobre que, vulgarmente, eram denominadas de “capacetes do Kaiser Guilherme II”, uma comparação infeliz visto que as duas formas diferiam em escala, forma e finalidade – a obra foi agredida de diversos modos, em que a mais facilmente identificável foi a substituição da dinâmica formal da cobertura por um telhado simplório que foi escondido atrás de uma platibanda abarrocada incompatível com a linguagem formal do prédio, além de acréscimos não condizentes com a concepção original do projeto. O Hotel Majestic, felizmente, foi adquirido pela administração pública que teve a louvável iniciativa de transformá-lo em uma Casa de Cultura ainda que a reciclagem necessária não tenha correspondido aos requisitos técnicos internacionalmente estabelecidos. O prédio da Prefeitura de Cruz Alta encontra-se em razoável estado de conservação. Finalmente, a residência de Felicíssimo de Azevedo foi adquirida pela Universidade Federal de Santa Maria e foi adaptada para finalidades culturais daquela instituição, em razão do que se espera que ela saiba conservá-la dentro dos padrões de excelência exigidos. Dentre os prédios ainda existentes e que não foram incluídos entre os anteriores, três já foram quase totalmente demolidos, restando na atualidade apenas sua fachada ou um pouco mais (Previdência do Sul [atual Banco Safra], a filial de Porto Alegre do Banco Pelotense e a casa comercial A.M. Araújo). A Cervejaria Ritter (depois maltaria da Cervejaria Brahma), na rua Voluntários da Pátria, foi de tal modo deformada através de acréscimos e adaptações que é difícil identificar o que sobrou do projeto original. O anexo do edifício Chaves Barcelos (Café Colombo) e o Hotel do Comércio de Bagé foram reciclados e parece que não correm perigo de desaparecer nos próximos tempos. De qualquer maneira, seria mais do que recomendável que esses prédios fossem colocados sob proteção estatal antes que sejam demolidos. Com a reciclagem do hotel de Bagé em centro comercial, já houve algumas intervenções comprometedoras. Tudo isso mostra o colossal atraso em que nos encontramos no que concerne à preservação de nosso patrimônio material. Para efeitos de comparação, apesar de a Alemanha ter passado por duas Guerras Mundiais com terríveis bombardeios de suas cidades, essas não foram tão devastadoras para com as obras de Theo como a pacífica tolerância brasileira concernente à liberação para


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O ARQUITETO DA FIRMA RUDOLF AHRONS (1908-1915)

demolições. A falta de dados exatos sobre sua obra na Europa não nos permite fazer afirmações categóricas, mas, dentre as construções suas que nos são conhecidas, todas estão ou sob proteção estatal – o que corresponde ao que entre nós é denominado de “tombamento” – ou estão arroladas como prédios de significado histórico – o que corresponde a um “tombamento” atenuado. Essa questão ainda é mais grave se levarmos em conta que as obras europeias de Theo são bem menos significativas no plano social que as daqui. Com certeza, como realização profissional, a vinda de Theo para o Brasil foi sumamente proveitosa em referência àquilo que realizara na Alemanha. Lamentavelmente, nós não temos conseguido fazer jus à relevância de suas realizações.

Torre do prédio de 1914, uma de várias torres concebidas por Theo e inspiradas na estação ferroviária de Wiederspahn.

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CAPĂ?TULO 4

O arquiteto de Porto Alegre (1916-1930)



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O ARQUITETO DE POR TO ALEGRE (1916-1930)

posta depois que o Senhor Ahrons assegurou-me explicitamente que todos os projetos que lhe seriam encomendados, seriam repassados para mim”. Aparentemente, Ahrons continuou a se dedicar ao comércio de materiais de construção através da Serraria Garibaldi ao lado da qual passou a se dedicar ao comércio e a instalações elétricas através da firma Aliança do Sul. Para tanto solicitou a Theo o projeto de um grande prédio que foi construído atrás do Mercado Público onde mais tarde seria construído o Mercado Livre e hoje se encontra a estação final do Trensurb. Dada a pressa com que queria ver a firma instalada, o prédio foi feito com uma estrutura de ferro que era importada, visto que o Brasil não tinha siderúrgicas50. A Aliança do Sul, no entanto, teve uma vida curta, pois o prédio foi destruído por um incêndio em 1922. Dois anos mais tarde, Ahrons se tornaria um dos fundadores da Varig e assumiria sua direção técnica, desligando-se definitivamente do ramo da construção.

No último dia de 1915, Ahrons fechou sua firma construtora. Com certeza, esse ato estava relacionado com a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Mas é provável que essa não fosse a única causa. É sabido que Ahrons estava em negociações com o governo estadual sobre a construção de uma usina hidrelétrica no Rio Jacuí. Porém, as novas condições da economia ditadas pela guerra impossibilitaram esse empreendimento. De certa forma, esse envolvimento em si não justificaria o fechamento da firma, visto que esse empreendimento também era do setor da engenharia civil. É certo que Ahrons estava envolvido com muitas obras governamentais (estadual e federal) e a guerra certamente haveria de ter como consequência a perda desses contratos ou, pelo menos, a não contratação de obras novas. Mesmo assim, não havia razões objetivas para o fechamento da empresa, uma vez que ele tinha o encargo de construir diversas obras no setor privado que garantiriam sua sobrevivência. A autobiografia de Theo também é sintética ao tratar do assunto: “as condições comerciais advindas da guerra devem ter levado o Senhor R. Ahrons a propor-me a assumir independentemente e as minhas custas o Departamento Técnico por mim dirigido até então. Com certas precauções e após longas considerações, aceitei a pro-

Nessas condições Theo abriu sua própria firma construtora nos primeiros dias de janeiro de 1916. De início os negócios evoluíram bem. A iniciativa privada lhe garantiu muitos projetos, ao contrário do que aconteceu com o setor público que passou a boicotá-lo de forma cada vez mais ostensiva. Um bom exemplo foram os processos da ampliação da construção do cais. Em 1914 foi realizada uma concorrência pública para a construção da prorrogação em mais seiscentos metros, que se estenderia até a altura da Rua Dr. Flores e emendaria no trecho de cento e quarenta e cinco metros que Ahrons e Theo haviam construído entre 1909 e 1911. Como Ahrons arrematou o primeiro trecho do cais, seria de esperar que fosse convidado para participar da nova concorrência. Isso, no entanto, não ocorreu. As razões podem ter sido diversas, porém o fato de que estava prestes a eclodir a Primeira Guerra Mundial indica que começaram a surgir reservas quanto às atividades dos “alemães”, nas quais Ahrons era enquadrado mesmo sendo brasileiro nato. A concorrência foi aberta em 18/04/1914, e a vencedora foi a Societé Française d´Entreprises de Dragages et Traveaux Publique. Essa empresa chegou a mandar seu representante, o engenheiro Leopolde Heilmann, que assinou o contrato de execução em agosto de 1914. Esses trabalhos, no entanto, não puderam ser iniciados porque a 28/06/1914 começou a Primeira Guerra. A solicitação de duas prorrogações sucessivas de seis meses foi concedida, mas as obras não foram iniciadas. Por isso o contrato 50  Constitui-se num mistério saber como Ahrons conseguiu importar uma estrutura de ferro em plena guerra. Não deve ser descartada a possibilidade de ter conseguido comprar um prédio usado que ele remontou no terreno referido.

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THEO WIEDERSPAHN - ARQUITETO

foi rescindido e abriu-se nova licitação em setembro de 1916, na qual se inscreveram numerosos interessados locais, entre os quais, no entanto, não foi encontrado um único cidadão de nome que indicasse origem italiana ou alemã, apesar de ser sabido que esses dominavam o ramo da construção civil na cidade. Isso demonstra claramente que já se havia formado, no mínimo, uma discriminação contra esses cidadãos, como induz o fechamento da firma de Ahrons, em dezembro de 1915. O nível dessa discriminação fica ainda mais evidenciado na documentação deixada por Josef Hruby quando venceu a concorrência pública para a realização das fundações e do piso dos armazéns que foram montados no prolongamento da Avenida Sepúlveda, em julho de 1914. Sua participação foi contestada e ele só foi contratado depois de ter demonstrado que não era cidadão alemão, mas de nacionalidade tcheca.

Fotos atuais do Cais do Porto correspondente ao primeiro trecho realizado por Theo através da firma de R. Ahrons.

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GUNTER WEIMER

Terminada a Guerra, seria de esperar que as animosidades cessassem. Isso, no entanto, custaria a acontecer. Em sua autobiografia, Wiederspahn se queixou das “listas negras” que circulavam pela cidade e obstaculizaram as atividades dos cidadãos ditos “alemães”, sejam os nascidos na Alemanha ou descendentes. Mesmo sabendo que toda e qualquer guerra é uma guerra ideológica e apesar dos dolorosos incidentes que resultaram em três dias de vandalismo contra estabelecimentos de proprietários ítalo-germânicos, ainda que nascidos no país, e sem que a polícia tomasse qualquer iniciativa de conter os assaltos, temos recebido críticas quanto à “suposta” existência de tais “listas”. Mesmo desconsiderando as queixas de Theo, vejamos o que aconteceu depois do fim da Guerra quando foi realizada uma concorrência para a construção de um armazém de 20 m por 25 m – denominado A1 – para o cais do porto. Wiederspahn apresentou uma proposta no montante de 115 contos e 543 mil réis que, no entanto, foi preterida a favor de outra proposta no montante de 134 contos, 731 mil e 630 réis apresentada por Trajano Ribeiro. A justificativa emitida pela comissão encarregada de avaliar as propostas para aceitar a mais cara foi expressa da seguinte maneira: “A 20 de maio de 1918 a Comissão Regulamentar composta pelos Engenheiros Antônio Veríssimo de Matos, José Coelho Parreira, Octávio de Campos Monteiro e eu (João Luiz de Faria Santos) (sic) vos apresentamos nosso parecer, no qual vos informamos que Wiederspahn é natural da Alemanha, achando-se assim incurso no art. 3o, letra E, da Lei n0 3.393 de 16 de novembro de 1917, mandada executar pelo Decreto n0 12.740, de 07 de dezembro de 1917”. A eloquência desse documento, em nosso entender, dispensa comentários complementares.

Foto do escritório que Theo ocupou entre 1916 e 1922, situado no prédio na esquina da rua Uruguai com a Sete de Setembro, onde hoje se encontra o Banco do Brasil. (Foto do arquivo Wiederspahn)

O ARQUITETO DE POR TO ALEGRE (1916-1930)

Apesar dessa insana caça às bruxas, durante o ano de 1916, Theo obteve diversas encomendas de projetos, numa média de mais de um por mês, além de precisar complementar diversos projetos pendentes do período Ahrons como uma ampliação do Hotel Majestic que estava sendo construído no lado do poente, na travessa Araújo Ribeiro, entre a Rua dos Andradas e a Sete de Setembro. Nessa época a rua Voluntários da Pátria era uma via altamente conceituada em razão do que nela foram construídos alguns palacetes como os do fabricante de sabonetes Victor Fischel, do cervejeiro H. Ritter, da viúva Dillenburg que, mais tarde, foram destinados a outras atividades quando a rua entrou em decadência e foram convertidos em prostíbulos ou moradas de indigentes. Pouco antes da Primeira Guerra, porém, Theo ali construiu o Hotel Frederico Schmidt que foi queimado pela turba de vândalos em meados de abril de 1917. Melhor sorte tiveram os clubes de regatas Almirante Tamandaré, Almirante Barroso e Porto Alegre que foram construídos no entorno da Primeira Guerra Mundial e correram sérios riscos de serem incendiados durante as arruaças de abril de 1917 por serem de madeira. Somente o primeiro tinha uma fachada de alvenaria que escondia um sobrado de madeira construído sobre estacas na margem do rio. Certamente os nomes dos clubes de heróis nacionais e da cidade não levantaram desconfianças de que se tratavam efetivamente de associações teutas.

Clube de Regatas Almirante Tamandaré, de 1916. Proj. e constr.: Theo Wiederspahn. (Foto de Theo Wiederspahn)

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THEO WIEDERSPAHN - ARQUITETO

Estudo de um conjunto habitacional à rua Florêncio Ygartua para Emílio Gertum. (Desenho de Theo Wiederspahn)

Estudo do Palacete Pitta Pinheiro, de 1917. Rua 13 de Maio, 101, atual Getúlio Vargas. (Aquarela original do escritório de Theo Wiederspahn)

Conjunto habitacional de Emílio Gertum depois de concluído. (Foto de Theo Wiederspahn)

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GUNTER WEIMER

O ARQUITETO DE POR TO ALEGRE (1916-1930)

Palacete de Antônio Chaves Barcellos (1919). Rua Duque de Caxias esquina João Manuel. (Desenho de G. Weimer)

Estudo do Palacete Pitta Pinheiro (1917). Rua 13 de Maio, 101, atual Getúlio Vargas. (Desenho de G. Weimer)

Palacete de Antônio Chaves Barcellos (1919). Rua Duque de Caxias esquina João Manuel.

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THEO WIEDERSPAHN - ARQUITETO

Estudo para um palacete de Alberto Bopp, em 1923. Rua Crist贸v茫o Colombo. (Aquarelas do Escrit贸rio de Theo Wiederspahn)

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