No dia 30 de setembro nasce BT Faceiro do Junco, RP 205, filho de La Invernada Hornero e BT Querela, na Estância do Junco, em Uruguaiana, fronteira oeste do Rio Grande do Sul.
É a primeira vez que aparece no Freio de Ouro. Semifinal de Santa Maria. Fica como primeiro reserva. Participa da final do Freio. É o oitavo colocado. Nesse ano, surge a prova feminina e a paleteada, na 6ª Região de Criadores de Cavalos Crioulos.
Está outra vez na final do Freio. É o primeiro na morfologia, com a nota 8,1. Chega em quinto lugar. É o Terceiro Melhor Macho na Expointer. Seu irmão inteiro, BT Hobby do Junco, é Reservado de Grande Campeão. O cavalo é adquirido por R$ 45 mil por uma parceria entre as cabanhas Galtieri e Boaventura e Estância da Quinta.
Vence o Freio de Ouro. É Reservado de Grande Campeão na Expointer.
Conquista o Grande Campeonato da Expointer. Passa a ser, na história da Raça Crioula, o segundo cavalo a acumular um Freio e um Grande Campeonato, apesar de não serem simultâneos. Antes dele, apenas BT Sargento, em 1995, havia sido campeão do Freio de Ouro e Grande Campeão da Expointer. Acontece o primeiro Remate Faceiro & Parceiros.
É Bi-Grande Campeão na Expointer. Em setembro, o remate Faceiro & Parceiros é realizado no Shopping Praia de Belas, em Porto Alegre. O cavalo desfila pelo segundo andar do shopping e adentra no restaurante Birra & Pasta.
A ABCCC institui o Bocal de Ouro, uma disputa entre animais inéditos que concorrem ao Freio de Ouro.
A ABCCC completa 70 anos. A data é comemorada com um grande evento em Pelotas, com a participação de todos os Grandes Campeões e campeões do Freio de Ouro vivos.
Pergaminho AA, filho de BT Faceiro do Junco, conquista o Grande Campeonato e Melhor Exemplar da Raça da Expointer. A Cabanha Galtieri decide liquidar o plantel e vender 33% do cavalo em outubro desse ano. Entram novos parceiros, como os criadores Claudir Weiand, Fábio Ruivo, Luiz Carlos Guimarães, Edgar Candia, Helder Longaray e Cláudio Ribeiro.
Entram na Raça Crioula as competições na modalidade rédeas, com a criação da Copa Querência e do Potro do Futuro da ABCCC.
Pergaminho AA conquista o Bocal de Ouro e o Freio de Bronze.
O Freio de Ouro completa 25 anos. É lançado o livro “Freio de Ouro, uma história a cavalo.”
Confiança do Passo Fundo, filha de Pergaminho e neta de Faceiro, é Grande Campeã e Melhor Exemplar da Raça da Expointer. Nesse mesmo ano é Reservada Grande Campeã na FICCC. A Estância da Quinta vende 20% de sua cota do cavalo. Rubens Zogbi arremata por R$ 220 mil. O cavalo é avaliado em R$ 1,1 milhão. É a primeira vez que se usa a expressão “cavalo milionário”.
A ABCCC completa 80 anos. No dia 24 de novembro, o coração de Faceiro parou. Ele continua em seus filhos. E segue vivo na memória e no afeto de muita gente.
Edição e textos: Renato Dalto Projeto gráfico e diagramação: Visual Comunicação e Design Revisão: Simone Diefenbach Cartola - Agência de Conteúdo Imagens: Almirante Neves Antônio Pacheco Arquivo ZH Arthur Kolbetz Eduardo Rocha Felipe Ulbrich Foto Perigo J.G. Martini Modesto Wielewicki Naná Druck Paulo Hafner Paulo Souto (ilustração) Realização: Visual Comunicação e Design
Nasce um cavalo.................................................................................... 11 Doma, pista, transformações.............................................................. 14 Quando a realidade atropela a imaginação ................................... 20 Uma parceria e as cartas do destino................................................. 25 Um Freio de Ouro e muitos desafios.................................................. 31 Duas escarapelas, um lugar na história........................................... 37 Amigos, negócios, ousadia................................................................... 42 Do ventre à vida, um aglutinador..................................................... 48 O pai multiplicado nos filhos.............................................................. 53 No palco das rédeas.............................................................................. 56 Abrindo porteiras.................................................................................. 60 Um potrilho retouça na eternidade................................................... 67
BT Faceiro do Junco * 30/09/1988 + 24/11/2012
“Si es como dicen algunos, que hay cielos pal’ buen caballo, por ahí andará mi flete, galopando, galopando.” Atahualpa Yupanqui
“Ele deixou um rastro muito forte de beleza e carisma, recheado de muito coração, seriedade, habilidade e velocidade para o trabalho.” Péricles Pereira Druck
“Até hoje, apenas quatro Grandes Campeões da Expointer alcançaram um dos Freios (Ouro, Prata ou Bronze). Destes quatro, dois são pai e filho: Faceiro e Pergaminho.” Mauro Ferreira
“O cavalo completo, que tinha morfologia, temperamento e toda essa habilidade funcional.” Mário Móglia Suñe
“Às vezes o Mano (Madison Silva Junior), que era guri, pegava ele no piquete, botava o buçal, saltava em pelo e trazia.” Madison Silva
“O Faceiro inicia um processo de aglutinar criadores que não tinham como fazer um remate sozinhos. E isso, desde o começo, já foi feito com um grande evento.” Fábio Crespo
“Tive o privilégio de vê-lo solto em seu potreiro em muitas manhãs de primavera, algo singular e inesquecível pelo que representa para um cabanheiro apaixonado.” Fábio Ruivo
“Ele era inteligente demais, qualquer movimento que eu pedia, ele fazia. Fazia flexão, arco reverso para aprender a girar sem bater as mãos. Nunca usei rebenque com ele. Era voluntário e nunca diminuía a intensidade.” Carlos Quadros
“Ele quebrou paradigmas. Andou em cancha de laço, abriu o desfile da Semana Farroupilha, andou no shopping para promover o leilão.” Fernando Zandonai
“Foi uma logística bastante grande! O shopping tinha muitos requisitos de segurança e higiene. Um dos desafios mais complexos foi levar o Faceiro para o segundo andar no dia do lançamento.” Dinah Druck
“Ele fez em seus filhos o que ele era: bonito e bom. Reproduziu isso.” José Laitano
FOTO: J.G. MARTINI
Nasce um cavalo D
izem que setembro é o mês das boas-novas. É quando agosto foi embora, e com ele o in-
verno. O primeiro verde vem brotando do campo, ainda tímido entre o pasto seco, até se tornar uma cor viva, predominante, de encher os olhos e a alma. É o tempo da primavera nascente, quando tudo começa a florescer, quando os dias são mais longos e as noites mais estreladas. No último dia desse mês, dia 30, no ano de 1988, uma égua amanheceu com um potrilho nos campos da Estância do Junco, em Uruguaiana. A égua se chamava BT Querela, uma lobuna filha de BT Engano. Na partilha da marca BT, o cavalo tinha ficado com os herdeiros de Roberto Bastos Tellechea. “Achávamos o Engano um grande reprodutor, e compramos a metade para ficar com todo ele”, lembra Francisco Ribeiro Tellechea, o Chicão. Na observação de Telmo Alves, capataz da Estância do Umbu, Querela tinha todos os preceitos de uma grande mãe,
FOTOS: J.G. MARTINI
com um diferencial básico: era muito boa de função.
Uma legenda chamada Faceiro
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No esteio dessa criação sempre esteve a busca
como o potro deu pouco trabalho, apesar do pri-
de grandes mães. No princípio, eram as filhas de
meiro sestro. Quando chegou aos dois anos, come-
Sorro Campeiro, um cavalo clássico do guapo san-
çou a doma: “Eu vinha passando pela cabanha e seu
gue da La Invernada, no Uruguai, com sua extrema
Mário tava com ele encilhado. Me perguntou: ‘tu
resistência e rusticidade. Engano, um neto de Sorro
monta?’ Respondi que sim. Tiramos ele agarradito,
Campeiro, seguia esse caminho do avô. Genética é
fomos troteando até o fim do potreiro e voltamos,
uma estrada que anda para frente.
ele quieto, sem tentar dar um pulo. De tarde pega-
Clássico também havia se tornado o cruza-
mos de novo e dei uma atropelada, puxei, ele parou
mento entre La Invernada Hornero e o sangue de
e enfiou as patas embaixo do corpo. Já estava bem
Sorro Campeiro, onde vai começar uma verdadei-
sujeito”, conta Assis Fernandes, que iniciava ali uma
ra revolução na Raça Crioula. E até aquele dia 30
longa jornada ao lado desse potro.
de setembro de 1988, o ventre de Querela gerava um filho de Hornero. Quem viu o potrilho já no nascimento se im-
E então, a partir desse dia, o potro começou a se fazer cavalo. Levou consigo um nome que viria a entrar para a história: Faceiro. BT Faceiro do Junco.
pressionou com tanta beleza, apesar de a cautela recomendar não se impressionar muito: logo mais adiante ele pode se desmanchar. Chicão Tellechea se lembra bem disso, e o passar do tempo só foi confirmando o que já se anunciava no nascimento. Assis Fernandes, o cabanheiro da época, recorria o campo quando viu o potrilho. E a impressão foi a mesma. E assim foi. Havia na Estância do Junco um domador célebre chamado Mário Telles. De porte baixo, atarracado, de fala mansa e gestos comedidos, tinha uma sabedoria toda própria para lidar com cavalos. Recomendava sempre o carinho no primeiro trato. Logo no manuseio maneava o potro com maneia simples, botava no palanque e passava a mão na cara e no olho, até correr uma lágrima. Com a mão molhada por essa lágrima, passava no focinho e o cavalo então confundiria o próprio cheiro com o cheiro do homem. E se entregava pela confiança. as mãos de seu Mário Telles. Assis lembra até hoje
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BT Faceiro do Junco
Registro genealógico - BT Faceiro
FOTO: FELIPE ULBRICH
O potrilho filho de Querela e Hornero foi para
Doma, pista, transformações A
doma ocorreu sem sobressalto, bem ao estilo de seu Mário Telles. Recomendava nunca
soquear a rédea, mas puxar com firmeza a alevianar a mão. Costumava dizer que agarrar a rédea é como segurar a mão de uma moça. Ao enfrenar, sempre esperava a lua minguante para botar o cavalo a mascar o freio. E na lua nova nunca deixava o cavalo mascando a embocadura. Foi seu Mário Telles que domou, moldou e levou Faceiro nessa transição de potro a cavalo. Ao lado dele, Assis Fernandes começou a se dedicar a preparar Faceiro para a prova. Ficou um ano com ele trabalhando no campo, cuidando sempre para ter boi por perto. Antes de tudo, tinha que ser vaqueiro. Depois, começou a treinar. Em 1992, com apenas três anos de idade e 40 dias de treinamento, foi à funcional de Jaguarão, só para se familiarizar com público e pista. Um ano depois, começa a se destacar em várias provas, apesar de ser ainda novo. Credenciou em Uruguaiana e São Paulo e foi à semifinal de Santa Maria, onde foi o quinto colocado. Montado por Assis Fernandes, correu a última paleteada com Campeiro do Piraí, montado por Vilson Souza. Entre os jurados, um deles observava, já impressionado, a correção dos movimentos de Faceiro. “Aquele potranco zaino colorado tinha uma
FOTOS: J.G. MARTINI
morfologia muito boa e chamou a atenção por ser muito correto, com poucas reações. Comentamos isso, eu e o Carlinhos (Carlos Jacinto Fagundes dos
Uma legenda chamada Faceiro
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FOTOS: J.G. MARTINI
Uma legenda chamada Faceiro
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Tunico. Ainda hoje, quando fala em palestras ou
da novo, que estava se fazendo, mas já chamava a
encontros sobre o Freio, usa a imagem de Faceiro.
atenção”, lembra José Antonio Marques Fagundes,
“Um cavalo leve, comprido, retangular, com muito
o Tunico, que julgou aquela prova. Faceiro foi o
vigor e explosão. Uso a imagem dele como um ca-
quinto colocado, o primeiro reserva, e chegou à
valo nota dez.”
final do Freio, onde alcançou o nono lugar. Mas
O ano de 1993 começa a registrar movimen-
o que, naquela data, parecia passar desapercebido
tos na pista e fora dela. Mais do que nunca, o ca-
levantava a poeira de uma segunda transformação
valo montado ganha novos palcos. É nesse ano,
na prova Freio de Ouro.
por exemplo, que surge a prova feminina e se in-
“Ali foi um divisor de etapas. A partir desse
tensifica a paleteada. É também o prenúncio de
ano começam definitivamente a aparecer os cava-
novas gerações de cavalos e ginetes, de aprimo-
los de morfologia muito boa e também de muito
ramento técnico, de diálogo com outras escolas.
boa função. Foi um marco. Tínhamos apenas uma
Ares de transformação.
década do Freio, que é muito pouco. Mas a par-
Faceiro surge nesse cenário também dessa for-
tir dali começamos a conviver com cavalos mor-
ma: cavalo novo prenunciando outras pistas e outros
fologicamente e funcionalmente perfeitos”, avalia
freios. O futuro galopa nas patas desse cavalo.
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BT Faceiro do Junco
FOTO: J.G. MARTINI
FOTO: PAULO HAFNER
Santos), que era o outro jurado. Era um cavalo ain-
Quando a realidade atropela a imaginação E
ra um tempo movimentado dentro da Raça Crioula. As mulheres haviam ganhado a pista
em 1993 com a prova feminina. Nesse mesmo ano, a prova do Freio de Ouro foi dividida entre machos e fêmeas e foram instituídas as classificatórias regionais. Quem se debruçasse em torno dessas pistas veria que uma geração promissora de cavalos começava a escrever, com movimento e beleza, um capítulo de transformações dentro da raça. Os contornos mais fortes dessa mudança ganhariam uma forma mais nítida em agosto de 1994, na final do Freio de Ouro e na pista da Expointer. A história não é uma sequência de acasos –
mas uma consequência da lógica dos fatos. O que 1993 prenunciava em escaramuça 1994 confirmava em afirmação. Afirmação de cavalos, de novos ginetes, de novas escolas. Se em 1982 o Freio começa com o cavalo com agilidade, brio e instinto vaqueiro, 1994 torna-se a referência de tudo isso com o reforço da correção de movimentos e a afirmação da excelência morfológica. O vencedor desse ano, BT Butiá, montado por Marcelo Bertagnolli, traz para dentro do Freio a técnica da escola de rédeas que torna mais técnicos e leves movimentos como a esbarrada e o giro. Faceiro peleou nessa disputa entreverado entre cinco cavalos que brigaram até a última paleteada pelo ouro. Era um cavalo jovem, perto de comple-
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BT Faceiro do Junco
FOTO: ALMIRANTE NEVES
Uma legenda chamada Faceiro
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FOTO: J.G. MARTINI
tar seis anos naquela primavera, que começou a
nascente do Freio, Antônio Martins Bastos Filho, o An-
prova ponteando na morfologia. Teve a nota mais
toninho. Ele é uma espécie de testemunha de uma mu-
alta: 8,1. Teve um desempenho uniforme em todas
dança substancial. “Este é um Freio que começa uma
as provas, que lhe garantiu uma pontuação final de
arrancada em busca de tudo aquilo que buscamos, que
20,685 pontos. Chegou em quinto lugar num Freio
é aliar a correção morfológica e boa função. Hoje, o que
memorável, onde cinco cavalos tiveram, entre si,
a gente vê é que mais de 60% dos animais do Freio têm
diferenças mínimas. Um grupo de respeito onde es-
morfologia destacada. Mas isso começa ali.”
tavam BT Butiá, Imigrante da Tradição, Rico Raco Tupambaé, Idahue Ostigoso e BT Faceiro do Junco. Eram cinco jurados. Entre eles, um dos pilares da
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BT Faceiro do Junco
Depois daquela prova memorável, Faceiro foi para a disputa morfológica. Foi o Terceiro Melhor Macho e Campeão Cavalo Adulto da Expointer. Seu
irmão inteiro, BT Hobby do Junco, foi o Reservado
retos e auscultavam outros tempos. “A gente nunca
de Grande Campeão.
poderia imaginar que chegaria a esse nível de sele-
O ano de 1994 desenhava ali a crônica anuncia-
ção”, pondera Antoninho.
da de novos patamares. Mesmo chegando em quin-
Naquele 1994 de emoção e disputa, se acendiam
to lugar, BT Faceiro do Junco anunciava-se como
os ânimos. No ano seguinte, uma disputa se repetiria.
um cavalo a quebrar paradigmas. Os anos seguintes
O campeão BT Butiá correria a última paleteada com
confirmariam tudo isso. Venceria o Freio e chega-
Faceiro, mas perderia a parada. Parecia se inaugurar
ria duas vezes ao Grande Campeonato em Esteio.
um outro ciclo; o que aqueles cavalos mapearam na
Campeiramente, alguns homens do cavalo olhavam
pista em termos de movimento, potência e habilida-
aquela potência muscular, aqueles movimentos cor-
de fustigava até mesmo os limites da imaginação.
Uma legenda chamada Faceiro
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FOTO: J.G. MARTINI
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BT Faceiro do Junco
Uma parceria e as cartas do destino H
á algumas espécies de premonições que escrevem as páginas da vida e isso que se chama
destino. Nesse sentido, há um encontro entre várias pessoas e um cavalo que começou a ser escrito de uma forma particular, quase escondida, lá nos confins de Uruguaiana. Era o início dos anos 90 e o diretor Jayme Monjardim, então na TV Manchete, filmaria um comercial para a Brahma no Rio Grande do Sul. Liga então para Fernando Zandonai, advogado e criador de cavalos crioulos. É quando chegam ao cenário para a locação: Estância do Junco, em Uruguaiana. Chegando por lá, luzes e câmara armados, eis que puxam um potranco de dois anos. E foi paixão à primeira vista. A produção cruzou
FOTO: PAULO HAFNER
para Paso de los Libres, na Argentina, arrumou uns arreios de prata, aperou bem o potranco para fazer as imagens. Ele nunca tinha saído de casa, mas o emblema dessa cena parecia plasmar o futuro: logo o potro se faria cavalo, arrebanharia nobres prêmios folhados em ouro, aglutinaria pessoas, abriria cancha em muitos lugares. Fora do cinema, mas na vida real, esse potranco chamado Faceiro foi o personagem de uma longa jornada que, sem contornos cinematográficos, tem a força épica de um vendaval de mudanças. Pois foi FOTO: M. WIELEWICKI
no ano em que ele apareceu cavalo, bem musculado, já esbanjando força e explosão, entreverado com os que pelearam pelo Freio, que tudo começou a mudar. Zandonai vinha acompanhando há tempos o potranco. E conversou com Ângelo Galtieri, par-
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FOTO: J.G. MARTINI
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ceiro de criação. Naquele 94, na Expointer, Péricles
ser sócio. Mas quem comprou foi o Angelo Galtieri,
Druck, o Peti, da Estância da Quinta, não pensava
que convidou o José Carlos Portes e através do Fer-
propriamente em comprar o cavalo. Mas parecia ha-
nando Zandonai me convidou também, formando
ver aí mais uma cartada do destino. Peti conta: “Eu
assim a ‘Parceria BT Faceiro do Junco’.”
estava à procura de um novo reprodutor e durante
Faceiro passou em pista, no remate de cavalos
a Expointer o Zandonai me mostrou e recomendou
crioulos da Expointer, e foi arrematado por R$ 45
o Faceiro dizendo que confiava muito no potencial
mil, na época preço recorde em Esteio. O cavalo já
funcional e morfológico dele. Como eu queria um
havia chamado a atenção de muita gente no Freio e
cavalo para usar nas filhas do Butiá Alasca (tam-
chegaria à condição de Terceiro Melhor Macho na
bém filho do Hornero), ele não era a minha primei-
morfologia. “Fomos na cocheira às 11 da noite, eu e
ra opção. Mas o destino queria que nossas histórias
o Ângelo, e pedimos para o Assis nos mostrar o ca-
se cruzassem. No leilão sentei ao lado do Fernando
valo”, lembra Portes. “Eu disse na época que aquele
Cardoso, que lançou no cavalo e me convidou para
era o cavalo para ganhar o Freio.”
BT Faceiro do Junco
Logo depois, a parceria já mostrava o cavalo
venceria em várias pistas. Deflagraria um movi-
num palco onde, depois, seria consagrador em ter-
mento comercial sem precedentes, acenderia os
mos de performance. Peti Druck, montado em Fa-
ânimos e a esperança de pequenos criadores. Seria
ceiro, correu a etapa do campeonato de paleteadas
um instrumento para democratizar a genética e um
na pista de Esteio durante a Expointer. “Foi a pri-
embaixador da popularização da raça.
meira vez que montei nele! Uma decisão arriscada,
Teria o devido requinte de fazer dessa po-
pois ele vinha de um freio stressante e montado por
pularização um manancial de elegância mas tam-
um amador com eu. Mas deu tudo certo! Foi mui-
bém uma porta de acesso. Venceu o Freio, a Expoin-
to emocionante e simbólico para o momento que a
ter, desfilou no shopping e em canchas de tiro de
raça vivia”, recorda.
laço, abriu a Semana Farroupilha. Em torno dele
Depois, disso, os anos que se seguiram foram
circularam também sentimentos como amizade,
maiores que qualquer expectativa. O campeão que
parceria, união e generosidade. E muita coisa pas-
se anunciava ali naquele cavalo novo desafiaria e
sou a acontecer.
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FOTO: FELIPE ULBRICH
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FOTO: ANTONIO PACHECO/ARQUIVO ZH
Um Freio de Ouro e muitos desafios D
e antemão, a peleia já se anunciava braba. Mas o cavalo vinha se compondo, vinha com fôle-
go, amadurecia na véspera de completar sete anos. Cresceu um pouco mais na avaliação morfológica e obteve a nota 8,367, ponteando a fila. Estava na mão da nova parceria e o ginete tinha sido trocado, era agora Carlos Quadros. O campeão do ano anterior, BT Butiá, voltava à pista. O ligeiro Rico Raco Tupambaé estava afiado e despontavam outros cavalos for-
tes: BT Bailongo havia obtido 8,033, ficando em segundo lugar na morfologia. Havia ainda o cancheiro Butiá Guarani e um cavalo que sobrava em temperamento, correção e preparo: Chicão de Santa Odessa, que depois viraria um dos grandes pais da raça. No meio de tantos postulantes, lá estava BT Faceiro do Junco. E então, na última semana de agosto de 1995, eles trançaram ferro em Esteio. Para vencer, ninguém poderia errar. Sob a ótica de hoje, quando já é clichê falar de uma disputa acirrada numa final do Freio, parece que nem seria novidade falar de tanta disputa. Ainda mais tanto tempo depois. Mas quem acompanhou de perto não esquece. Os jurados dos machos foram Antonio Martins Bastos Filho, Ciro Manoel de Andrade Freitas e Mário Móglia Suñe. Eles tiveram muito trabalho. “Eu vi o Faceiro numa credenciadora em Lomba Grande. Estava magro, recém tinha saído da manada. Depois, vi ele na final, bem-composto. E parece que fizeram um treinamento adequado com ele. O cavalo
Uma legenda chamada Faceiro
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FOTOS: EDUARDO ROCHA
tinha amadurecido”, lembra Ciro Manoel. Ele ficou
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isso permanecia como um ideal quase inatingível.
impressionado com a velocidade, a força, a impulsão
Voltando para a pista: naquela última semana de
e o voluntarismo com que o cavalo executou todas as
agosto de 1995, tudo foi feito sem erro. Começou pela
etapas da prova.
exuberância morfológica – Faceiro depois seria tam-
Entretanto, havia uma discussão que sempre ron-
bém o Reservado de Grande Campeão na Expointer
dava as provas: a de que os cavalos de muito boa mor-
– e se propagou na boa progressão das andaduras, na
fologia dificilmente confirmavam em termos de fun-
força e no instinto vaqueiro na mangueira. O cava-
ção. É preciso, nesse sentido, fazer um corte no tempo.
lo tinha tanta força que era preciso muito equilíbrio
Quando o Freio de Ouro começou, em 1982, apesar
para chegar nesse fio tênue onde a explosão não pode
de já ter a morfologia entre os critérios de avaliação, os
fugir do controle. E assim foi até a última paleteada,
criadores costumavam escolher primeiro os animais
na qual sobrou em velocidade e precisão. A seguir, o
bons de montaria. Não que a morfologia ficassse em
cavalo seria visto nessa mesma pista na disputa do
segundo plano, mas não era, digamos assim, algo tão
tiro de laço, montado por Carlos Quadros. Depois,
relevante. Por isso, talvez, o feito de BT Sargento em
seguiria por outros lugares e outras provas. Faceiro
1986, arrebatando o Freio e o Grande Campeonato,
era o campeão do Freio de Ouro de 1995. E a partir
tenha sido considerado um marco. Só que, até então,
daí não refugaria pistas nem desafios.
BT Faceiro do Junco
FOTO: ANTONIO PACHECO/ARQUIVO ZH
FOTO: ARTHUR KOLBETZ
FOTO: ALMIRANTE NEVES
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BT Faceiro do Junco
Duas escarapelas, um lugar na história H
á mais de uma década os crioulistas falavam com reverência num cavalo histórico, único campeão
do Freio a ter conquistado, no mesmo ano, o Grande Campeonato da Expointer. O cavalo era BT Sargento, em 1986. Pois, passada uma década dessa façanha, outro fato relevante aconteceu. Em 1996, depois de vencer o Freio de Ouro um ano antes, BT Faceiro do Junco conquista o prêmio de Grande Campeão da Expointer. A única diferença é que as duas conquistas não foram simultâneas. Em compensação, no ano seguinte, em 1997, Faceiro ponteia outra vez. E conquista o Bi-Grande Campeonato da Expointer. É o coroamento de uma trajetória que vinha desde muito antes. Do nascimento de um potrilho promissor à doma caprichosa, do preparo e cuidado desde a primeira vez que entrou em pista à antevisão de quem vislumbrou nessa cavalo um caminho para escrever a história. Pois, desde que essa história começou a ser escrita na pista, o destino também reservou a um ju-
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FOTO: J.G. MARTINI
FOTO: J.G. MARTINI
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rado um olhar privilegiado sobre esse cavalo. Mário
cinco jurados. Eu era bastante novo. Na ocasião, nós
Móglia Suñe, o Mariozinho, julgou Faceiro em três
tentamos organizar a fila e não dava certo. Então fiz
momentos: na primeira semifinal de 1993 em Santa
a minha fila e para mim o cavalo que ficava em pri-
Maria, na final do Freio de Ouro de 1995 e em 1997,
meiro era o Faceiro”, lembra. Daquela vez, porém,
quando conquistou pela segunda vez consecutiva
não ficou em primeiro no consenso dos cinco jura-
o prêmio máximo de Esteio. De memória privile-
dos. No entanto, a percepção daquele jurado ainda
giada, conhecedor, estudioso e homem do cavalo,
novo iria se cumprir logo ali adiante.
Mariozinho foi desenhando, a cada julgamento, o
Mariozinho estava nessa exposição de início
perfil de um reprodutor que o impressionou desde a
de carreira. E também julgou o Freio e a derradeira
primeira vista. Ele estava numa das primeiras apari-
consagração de BT Faceiro do Junco, o Bi-Grande
ções de Faceiro, em 1993. “Foi uma experiência com
Campeonato de 1997. Quatro anos de três prêmios
BT Faceiro do Junco
FOTO: J.G. MARTINI
consagradores. Desde a primeira vez, notou a bele-
consumidora que produtora de cavalos tinha ago-
za da silhueta, a retangularidade, a potência mus-
ra o aval da pista e a confirmação de todas as suas
cular e também a aptidão vaqueira e a facilidade
potencialidades. Um cavalo consagrado nos mais
de movimentos. “Para mim, o cavalo completo, que
altos degraus de um exemplar da Raça Crioula.
tinha morfologia, temperamento e toda essa habili-
Nunca antes dele havia tido um campeão do Freio
dade funcional”, avalia.
de Ouro e Bi-Grande Campeão de Esteio. Não fo-
Entretanto, outra lebre vinha pulando miúdo no campo da Raça Crioula: a agilidade dos negó-
ram títulos simultâneos. Mas foi um Freio e duas escarapelas históricas.
cios e a necessidade de uma mexida no mercado. O
O nome de BT Faceiro do Junco cravava os cas-
cavalo que deslocava parte do eixo de uma genética
cos na consagração. O Grande Campeão iniciava
superior para uma região que até então era mais
outra carreira: a de grande pai da raça.
Uma legenda chamada Faceiro
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Amigos, negócios, ousadia H
avia um lugar pequeno, uma pista de arquibancadas na volta, uns galpões, onde tudo
era muito familiar, quase caseiro. Aglutinavam-se pequenos criadores, gente que estava chegando na raça e começava a engrossar a fileira da 6ª Região de Criadores de Cavalos Crioulos. Gente da Região Metropolitana, do Vale do Sinos, dos arredores de Viamão. Nesse lugar algumas cabanhas da fronteira – como a Itapororó – faziam seus remates, nesse caso numa parceria com uma das grandes cabanhas da região, a Capão Redondo. Esse lugar era o Sindicato Rural de Guaíba, onde um cavalo aglutinou amigos e parceiros. Foi em 1996, um ano depois de o cavalo ter vencido o Freio de Ouro. Foi esse também o ano do primeiro Grande Campeonato da Expointer. Foi quando a pista de remates de Guaíba bombou. No dia 27 de setembro de 1996 , acontece o primeiro remate Faceiro & Parceiros – as três cabanhas (Galtieri, Boaventura e Estância da Quinta) que haviam adquirido o cavalo e mais quatro criatórios: Armada Grande, de Viamão; Cerro Partido, de Rio Pardo; Trinta e Três, de Gravataí; e Tropilha Crioula, de Viamão. Ali se venderam coberturas, éguas pre-
FOTO: MIRO DE SOUZA
nhes e, sobretudo, se acendeu um farol que ilumi-
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BT Faceiro do Junco
naria a esperança de criadores que, se não tinham a tradição, agora acessavam um cavalo, uma genética, uma possibilidade. “O Faceiro inicia um processo de aglutinar criadores que não tinham como fazer um remate sozinhos. E isso, desde o começo, já foi feito com um grande evento”, avalia o leiloeiro Fábio Crespo. Foi ele que bateu o martelo na primeira venda de Faceiro aos parceiros em Esteio. E continuou ao lado da parceria, num evento que começou a marcar época. Então, disso também se escolheu a música. Toda vez que Faceiro aparecia solava o tango “Por una cabeza”, clássico de Carlos Gardel e Alfredo Le Pêra, metáfora da vida e suas carreiras ganhas, perdidas por pouco, arriscadas sempre. Embora o tango não diga explicitamente, há nisso tudo uma pitada de uma outra palavra: ousadia. E na sugestão desse tango a ousadia começou a aparecer. Quando se pensou na segunda edição do remate Faceiro & Parceiros, a data já havia sido agendada para outro leilão em Guaíba. Então um movimento ousado se articulou. “Falei numa reunião que deveríamos fazer o remate no shopping. No começo, o pessoal riu muito. Depois, fomos falar com a gerente do Shopping Praia de Belas, que topou”, lembra Fernando Zandonai. Mais do que um remate, estava em jogo quase uma logística de guerra. A data foi marcada: 25 de setembro de 1997. Criou-se para o evento um slogan permeado de descontração: “Só cavalo de grife”. Mas alguns dias antes se resolveu ousar um outro atrevimento. E então BT Faceiro do Junco desfilou no segundo andar do Shopping Praia de Belas, em Porto Alegre, e adentrou no restaurante Birra &
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BT Faceiro do Junco
FOTO: MIRO DE SOUZA
Uma legenda chamada Faceiro
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FOTO: ANTONIO PACHECO
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BT Faceiro do Junco
Pasta. O público, entre surpreso e perplexo, irrom-
Medeiros tinha que ter o trânsito interrompido e a
peu em aplausos. “Foi uma logística bastante gran-
gauchada passava com as éguas de a cabresto.
de! O shopping tinha muitos requisitos de seguran-
No dia do remate o shopping parou. Faceiro
ça e higiene. A equipe envolvida foi grande.Um dos
entrou, montado por Pedro Silva, ao som de “Por
desafios mais complexos for levar o Faceiro para o
una cabeza”. Venderam-se coberturas, éguas e se
segundo andar do shopping no dia do lançamento.
celebrou, sobretudo, uma empreitada encharcada
Fizemos uma adaptação nas escadas para ele subir
de ousadia. Até hoje, quem esteve envolvido lem-
com acompanhamento de marceneiro e veteriná-
bra daquela operação. Faceiro subindo escadas
rio”, lembra Dinah Druck, a Naná, uma das pessoas
por rampas, o veterinário escutando o batimento
envolvidas em toda essa produção.
cardíaco, a empolgação de quem fazia o alvoroço.
Dias depois, o Praia de Belas era um cenário qua-
Até que, um tanto temeroso, o veterinário Luciano
se hilário. Foram cenas cinematográficas. No Parque
Wortman pediu para o chisme acabar. Fábio Crespo
Marinha do Brasil estavam os caminhões com os
lembra da frase do veterinário: “A partir de agora,
animais em oferta. Volta e meia a Avenida Borges de
vocês estão desafiando os deuses.”
Uma legenda chamada Faceiro
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Do ventre à vida, um aglutinador D
esde que estava no ventre, Faceiro já se prenunciava um cavalo para transitar em muitos
lugares, por muitos criatórios, por muitas paragens.
José Laitano, da Cabanha 3 J, conhece o cavalo desde muito antes, a partir de sua mãe, BT Querela – era sócio da Junco na égua, e todos os produtos dela integravam essa sociedade. Na hora de vender Faceiro, a parceria acabou optando por seu irmão inteiro, Hobby, Reservado de Grande Campeão na Expointer de 1994. José Laitano lembra que BT Querela veio para ser domada em sua casa. Hoje, olhando para trás, enxerga no filho célebre dessa égua, Faceiro, uma raridade. “Ele fez em seus filhos o que ele era: bonito e bom. Reproduziu isso.” Por essas voltas que a vida dá, o indivíduo, o campeão ou o reprodutor parece governar sua própria biografia. Então, se aglutina mais gente na volta – e o que era um cavalo se torna ainda maior. Foi assim quando a Cabanha Vencedor, de Ângelo Galtieri, decidiu liquidar o plantel e vender 33% do cavalo em outubro de 2003. É nessa leva que entram novos parceiros, como os criadores Claudir Weiand, Fábio Ruivo, Luiz Carlos Guimarães, Edgar Candia, Helder Longaray e Cláudio Ribeiro. A partir dessa nova parceria, emerge novamente uma série de fatos, sentimentos e resultados. Tal parceria traz também algumas contradições. num criador como Fábio Ruivo, da Cabanha Recalada, de Pelotas. Um homem de memória afetiva.
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BT Faceiro do Junco
FOTO: J.G. MARTINI
O caminho dos resultados e sentimentos se desenha
FOTO: J.G. MARTINI
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E de resultados que trazem regozijo e satisfação.
Grandes Campeonatos de Esteio e outros triunfos
A primeira lembrança remete à pista de Esteio em
seus e de seus filhos. Seu primeiro condomínio
1995: “O Faceiro para mim sempre foi um animal
me recordo que sempre investiu em sua campanha
emblemático, de fato um indivíduo que lidou com
como ‘celebridade’, com apresentações inusitadas
paixões. Como criador, iniciei a Cabanha Recalada
como o remate dentro do Shopping Praia de Belas.
em 1995, registrando meu RP 01. Mas muito antes
O Faceiro tenho certeza que aproximou muita gen-
disso já era um apaixonado por cavalos crioulos, e
te, e essa é sem dúvida uma das grande virtudes do
por conta disso já havia ganhado de meu pai minha
Cavalo Crioulo. Então, era um grande ícone, o ca-
primeira égua. Portanto, esta época coincide com o
valo mais vitorioso de sua época, completo, lindo,
surgimento do Faceiro nas pistas, as primeiras con-
funcional e de excelente temperamento.”
quistas, o início de sua trajetória vitoriosa. Me re-
Nessa nova parceria que se aglutina, também se
cordo muito bem de ter obtido o preço recorde da
agregam criadores como Claudir e seus filhos Fer-
Expointer ao ser vendido por inimagináveis R$ 45
nando e Mauricio Weiand, da Cabanha Maufer. A
mil na época. Pude ver sua conquista do Freio, dois
Maufer vinha investindo em grandes pais – como
BT Faceiro do Junco
Muchacho de Santa Angélica, Mañanero Jalisco e BT
à venda 20% do cavalo. Foi arrematado por R$ 220 mil
Apache. Só que Faceiro seria a cereja do bolo nessa ge-
pelo criador Rubens Elias Zogbi, da Estância da Carapuça.
nética de ponta. “Nosso principal motivo em investir no
Com isso, a avaliação do cavalo ficou em R$ 1,1 milhão,
Faceiro é pela união da parte morfológica e funcional.
preço redorde na época. É a primeira vez que se usa a ex-
Ele produziu isso nos cruzamentos que fizemos”, atesta
pressão “cavalo milionário”, cunhada depois por alguns
Fernando Weiand, lembrando o caso de Coronel 666
cavalos de exceção cujas cotas foram comercializadas.
Maufer, vencedor da credenciadora da Cabanha São
Entretanto, há um cerne que a matemática não toca:
Rafael, e Amora 495 Maufer. Além deles, há a aposta
é a ciência inexata e imponderável de relações e desa-
em Galopeira 1190 Maufer, que inicia campanha mor-
fios humanos que pautam novos caminhos. Pouca gente
fológica e foi Grande Campeã e Melhor Exemplar da
lembrará Faceiro pelos números que estouraram. Muita
Raça em Rio Pardo.
gente lembrará Faceiro pela força de seus filhos, pelo
Assim, Faceiro seguiu abrindo novas trilhas entre os
desenho tipicamente crioulo de seus descendentes. Pelo
criatórios, o que se expandiria ainda mais seis anos depois.
nome do pai que atesta em seus filhos a multiplicação
No dia 4 de outubro de 2009, a Estância da Quinta coloca
de genes sublinhados de bondade.
Uma legenda chamada Faceiro
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O pai multiplicado nos filhos O
criador Mauro Ferreira olha o filho e enxerga o pai: “Pergaminho é, sem dúvida, o filho que
mais se parece ao Faceiro. Há fotos em que é difícil diferenciá-los. A mesma pelagem - zaina colorada estrela, a expressão de cabeça, as passagens harmônicas, a forma de se mover, tudo lembra muito seu pai. São cavalos que transmitem classe e lapidação em animais com boas andaduras e muita velocidade.” Mauro fala com orgulho em Pergaminho AA, filho de Faceiro e Famosa AA. Um cavalo de grande performance, Grande Campeão e Melhor Exemplar da Raça na Expointer (2003), Bocal de Ouro e Freio de Bronze (2006). Nomeia seus filhos Confiança do Passo Fundo, também Grande Campeã e Melhor Exemplar da Raça na Expointer (2009), e Abre Cancha da Onicron, Freio de Prata com a melhor média funcional do Freio de Ouro 2012. Performance própria e de reprodutor que fez de Pergaminho o garanhão mais jovem a entrar para o Registro de Mérito na história da Raça Crioula no Brasil. Hoje, as melhores reprodutoras da Macanudo são as filhas dele, éguas clássicas, fáceis de acasalar, com alta repetibilidade de produtos acima da média. Mauro lembra
FOTO: J.G. MARTINI
mais um dado histórico: “Até hoje, apenas quatro Grandes Campeões da Expointer alcançaram um dos Freios (Ouro, Prata ou Bronze). Destes quatro, dois são pai e filho: Faceiro e Pergaminho.” Pai, filho, repetibilidade de características que se multiplicam gerações afora. Leandro Amaral, da Cabanha Amaral, o criador que produziu Pergami-
Pergaminho AA
Uma legenda chamada Faceiro
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nho, segurou no criatório uma verdadeira família de produtos a partir do cruzamento de Faceiro nas filhas de La Frontera Tormento. “No início, ele cobriu mais as éguas dos sócios. E quando abriu para outros sangues deu excelentes resultados. Tive a sorte de tirar o Pergaminho.” Há uma medida de um pai, que são animais destacados em pista. E tem outra medida, que é a média dos filhos, a característica, a uniformidade, a força do tipo que permite olhar uma potrada de longe e, aqui e ali, distinguir: este é um filho de Faceiro. “Ele deixou um rastro muito forte de beleza e carisma, recheado de muito coração, seriedade, habilidade e velocidade para o trabalho. As cabeças maraviFOTO: J.G. MARTINI
lhosas sempre foram sua marca, característica que sempre valorizei muito”, afirma Peti Druck. Um rastro de beleza, um coração imenso. Nos registros da Associação Brasileira de Criadores de Norteña 52 da Recalada
Cavalos Crioulos (ABCCC), o nome de Faceiro está escrito no Registro de Mérito. E seu sangue, multiplicado em 1.338 filhos registrados. De 96 em diante, cobriu 100 éguas por ano. Depois, foi para 120 e 150, conforme o limite estabelecido pela Associação. Por trás disso, está também uma saudável democratização genética. Cobriu na Cabanha Boa Ventura, no Lami, em Porto Alegre, na Cabanha Galtieri em Portão, na Estância da Quinta em Rio Pardo e, na volta, éguas de criadores que iniciavam e também matrizes de grandes cabanhas. E mais resultados. Por exemplo: o criador Eduardo Macedo Linhares comprou uma cobertura e daí produziu Macarena de São Pedro, Reservada Grande Campeã da Expointer. Mário Móglia Suñe, o Mariozinho, da Cabanha Campana, de Bagé, tirou Campana Kara-
FOTO: J.G. MARTINI
metade, uma de suas éguas mais destacadas, duas vezes Grande Campeã em Bagé e Dom Pedrito. “É uma égua de ótimo temperamento, morfologia privilegiada, frente leve, boa linha superior e com Campana Karametade
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BT Faceiro do Junco
FOTO: J.G. MARTINI
Confiança do Passo Fundo
as angulações que o Faceiro transmite”, afirma Ma-
metro de tórax que chega na volta dos dois metros.
riozinho. Esse mesmo cruzamento que resultou
A medida de Faceiro como pai marca os cria-
em Karametade – Faceiro com Gringa do Aceguá
tórios por onde andou. Fábio Ruivo contabiliza, na
– gerou também Campana Rumo Certo, premiado
Cabanha Recalada, uma série de filhos premiados:
como Terceiro Melhor Potranco na Expointer, Ter-
“Para mim, o Faceiro deixou indivíduos como La-
ceiro Melhor Macho em Bagé e quinto colocado no
mento 37 da Recalada, Reservado Grande Cam-
Freio de Ouro 2013.
peão de Pelotas e Reservado Campeão Potranco de
A segunda geração também brilha na pista. Con-
Esteio, além de inúmeros outros grandes campeo-
fiança do Passo Fundo, filha de Pergaminho e neta
natos. Norteña 52 da Recalada, Grande Campeã e
de Faceiro, foi Grande Campeã e Melhor Exemplar
Melhor Exemplar da Raça em Pelotas. Querência
da Raça na Expointer 2009, mesmo ano em que foi
98 da Recalada, Campeã Potranca e Quarta Melhor
Reservada de Grande Campeã na Expo-FICCC.
Fêmea em Pelotas. Fico com inúmeras filhas na
Confiança pertence ao criador Evaristo Tagliari
reprodução e sendo excelentes mães. Uma de suas
Neto. Ele ressalta a estrutura e o selo racial da égua,
filhas produziu Quincha, Terceira Melhor Fêmea
lembrando que no ano que foi Grande Campeã de
em Pelotas. Das gerações 2012 e 2013, as melhores
Esteio levou ainda os prêmios de melhor lombo e
potrancas, Tequila e Una Gata, são filhas de Prome-
cabeça. “É uma égua equilibrada, muito polida, um
tida, uma filha de Faceiro. Seu legado é enorme”.
animal especial”, observa Evaristo. Nesse equilíbrio
O pai transmite, sobretudo, uma identidade que vai
está também uma excepcional profundidade: a
muito além da beleza e transita numa peculiar guapeza
égua, com seu 1,43 metro de altura, tem um perí-
adornada pela firmeza de temperamento.
Uma legenda chamada Faceiro
57
No palco das rédeas S
ob o sol e clima seco de Goiás, o treinador de rédeas Wellington Teixeira, o Eltinho, sempre
ficou com a mesma impressão ao trabalhar em pista o cavalo Muricy da Quinta. “Ele entrava para treinar no sol quente e correspondia de uma forma tão firme que eu achava que ele não ia aguentar. Podia treinar por duas horas, e se no final do treinamento você pedisse um movimento, ele fazia do mesmo jeito como começou”, lembra Eltinho. Esse cavalo lhe deu prêmios na Copa Querência, no Potro do Futuro da ABCCC e foi finalista do Potro do Futuro da Associação Nacional de Cavalos de Rédeas (ANCR). Ainda hoje o treinador se refere ao cavalo e exclama: “Meu Deus! Que coração! Não tinha medo de nada! Bastava indicar o que quisesse, que ele fazia”. Essa mesma percepção tem os treinadores de rédeas, os ginetes do Freio, os criadores. Algo que se
FOTO: FOTO PERIGO
FOTO: FELIPE ULBRICH
refere a ímpeto, coragem, explosão.
Reservada da Quinta
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BT Faceiro do Junco
Berro D’Água da Quinta, neto de Faceiro
Bambina da Quinta
Outros dois treinadores de rédeas, Laércio Casa-
Ane Salmon deu a nota máxima. “Ela disse que em
lecchi Filho, de Espírito Santo do Pinhal, e Rober-
20 anos de carreira cabiam numa mão os animais
to Jou, de Porto Alegre, observam que os filhos de
que ela tinha dado nota máxima”, conta Laércio, que
Faceiro têm imensa facilidade e velocidade de mo-
também montou outro filho de Faceiro, Reservado
vimentos laterais e muita submissão. Ambos mon-
da Quinta, Reservado Campeão Potro do Futuro da
taram o mesmo cavalo, Quebra-luz da Quinta. La-
ANCR - Aberto Limitado e pai de Berro D’Água da
ércio recorda que Quebra-luz foi três vezes finalista
Quinta, Reservado Campeão Super Stakes ANCR
da Copa Querência. Numa delas, julgada por três
2012 - Categoria Aberta, Reservado Campeão Ré-
juízes americanos, obteve a nota máxima. A jurada
deas de Ouro ABCCC - Categoria Aberta.
FOTOS: FELIPE ULBRICH
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Bem Nascido da Quinta
BT Faceiro do Junco
Vichadero da Quinta
Charrua da Quinta
Roberto Jou revela que os filhos de Faceiro têm
ceiro que se destacaram nas rédeas: Bem Nascido da
muita qualidade no galope e um movimento mui-
Quinta, montado por Marcelo Bernardes, Campeão
to forte de paleta. “Eles sempre mantêm as patas
Nacional ABCCC 2008 - Categoria Aberto Limitada;
debaixo do corpo, estão sempre reunidas, prontos
Bambina da Quinta, montada por Volmir Guima-
para qualquer movimento”, opina Jou, que apresen-
rães, Campeã da Copa Querência Série Potro 2012
tou Vichadero da Quinta, Campeão Potro do Futuro
e Charrua da Quinta, montada por Roberto Jou, ter-
ABCCC e AGCR 2009. Há ainda outros filhos de Fa-
ceiro lugar no Potro do Futuro ABCCC 2012.
Uma legenda chamada Faceiro
61
Abrindo porteiras P
arece que tudo o que veio de um cavalo assim só poderia também conjugar outro verbo: o
verbo desbravar. Então é preciso voltar para os primeiros anos da década de 1990. Quem viveu essa época lembra que eram poucos remates de grandes criatórios e que ali se disputava cada lance para ter acesso a um potro ou matriz de genética de ponta. Faceiro emerge desse tempo de uma genética concentrada em poucas mãos. E vai abrir o leque não só para pequenos criadores; também para gente nova que iniciava uma trajetória dentro da Raça Crioula. Nisso se inclui, por exemplo, o ginete Carlos Quadros, um iniciante no Freio de Ouro em 1995, quando montou Faceiro e foi campeão pela primeira vez. “Ganhei quatro freios de ouro (um inter-
nacional), dois de prata e um de bronze. Em todos eles tinha o Faceiro. Ele foi o cavalo que fez a minha carreira”, afirma Quadros. Domador de cavalos para campo e rodeio, ele foi a São Paulo em busca da escola de rédeas, aprendeu flexionamentos e movimentos técnicos. Quando voltou para treinar Faceiro, observou que o cavalo respondia a tudo, sereno, sem reagir. Disso, guarda uma lembrança única: a
FOTO: J.G. MARTINI
de nunca ter precisado usar o relho com o cavalo.
62
BT Faceiro do Junco
O veterinário Fábio Prates voltava ao Rio Gran-
um inédito “Leilão Integral”, com a conjugação de
de do Sul em 1999, depois de ter trabalhado com
três formas de vendas: presencial, via Canal Rural
cavalos Puro Sangue Inglês em São Paulo, e o con-
e digital. Emblematicamente, o cavalo que abriria
domínio Faceiro lhe abriu as portas para o trabalho.
tantas tendências teve pela última vez sua genética
Foi a porta de frente da Raça Crioula. E assim foi,
ofertada num remate muito peculiar.
trilhas se abrindo para profissionais e criadores. E novas tendências se mapeando.
Treze anos depois do primeiro remate, já estava em marcha um reprodutor consagrado e a afir-
Na primeira década do século XXI, a era digital
mação de uma genética de ponta. Os criadores da
entra de vez no cavalo crioulo. Em 2005 a Estân-
Raça Crioula buscavam selo, beleza morfológica e
cia da Quinta faz um leilão digital, pioneiro nessa
aptidão funcional. O campeão do Freio, bi-Grande
modalidade. Um passo marcante numa mudança
Campeão de Esteio e pai comprovado coroava sua
de parâmetros comercias inaugurada sob a ousa-
caminhada padreando as éguas da Estância da Ca-
dia de movimentos, desde o primeiro Faceiro &
rapuça, de Rubens Zogbi, que arrematou a cota in-
Parceiros em 1996.
tegral no remate.
Quando, em 2009, a Quinta vende sua cota de
pagos. Novos caminhos de um desbravador.
FOTO: J.G. MARTINI
20% de Faceiro, amplia ainda mais o leque fazendo
Continuava abrindo outras porteiras em outros
Uma legenda chamada Faceiro
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FOTO: J.G. MARTINI
Um potrilho retouça na eternidade F
oi no dia 24 de novembro de 2012 que ele retouçou pela última vez no potreiro. Mas o que ali
parecia o fim era apenas o começo. Em várias culturas, em várias latitudes, dizem que os grandes cavalos saem da vida para começar a galopar no terreno do mito. A história é feita assim. Um guerreiro mongol que um dia sonhou conquistar o mundo descobriu que trazia dentro de si uma armadilha: ele era o maior inimigo de si mesmo. Sabia, no entanto, que fosse qual fosse a batalha, nunca seria abandonado pelo seu cavalo. Exilado de si, enredado nas armadilhas da vaidade e da prepotência, conheceu a derrota e se submeteu a uma humilde verdade: seu cavalo era mais nobre que ele mesmo. Contam que, no México, o general dos camponeses foi abatido numa emboscada e o cavalo negro, assustado, não soube para onde correr. Até hoje, nesses campos áridos, há relatos de um cavalo cruzando a noite, como uma sombra, à procura do cavaleiro. E esse cavalo sem o homem, a sua cara-metade, tironeia o assombro eterno de procurar o que nunca encontrará. E jamais vai parar de galopar. Há outras sinfonias nesse tom legendário, ainda distantes da cultura oral. Num primeiro momento tranqueia a quietude da perda. Depois os murmúrios se levantam nos galpões, na volta do fogo, no chiar da conversa. Então se contam passagens e fa-
FOTO: J.G. MARTINI
çanhas, e enfim se sopram os nomes como quem acende o braseiro. E a labareda bordoneia o ar, acendendo a memória, afagando sentidos, verse-
Uma legenda chamada Faceiro
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jando o silêncio. O payador diria que há céu para os
“Puxa firme, mas nunca soqueia”, recomendava à
cavalos buenos. E, se há esse céu, os grandes cavalos
gurizada se iniciando no doma. Teve muitos alunos.
nunca se vão.
Teve muitos cavalos. Já no outono da vida, teve um
No dia 24 de novembro de 2012, quem viu diz que o zaino colorado Faceiro, bastereado nos seus
Um dia o glamour chegou, lá por perto dos
24 anos, ainda retouçou, mirou ao longe e sentiu no
anos 90, com a equipe de TV comandada por Jay-
peito o coração parar. E arrancou a todo galope para
me Monjardim, que iria gravar um comercial da
o céu. Começava então, no tear da lembrança, a se
Brahma. Fizeram imagens de cavalos encilhados,
tecer o véu de uma legenda.
de alguém penteando a franja farta de BT Sargen-
No campo dizem que o que é bom já nasce feito.
to. Puxaram então um potranco de dois anos. Essa
Sobre potrilhos, no entanto, tudo recomenda cautela.
primeira imagem permanece viva na retina de Fer-
Às vezes nascem perfeitos, prenunciam harmonia de
nando Zandonai, que estava na equipe. Lembra-se
angulações, pescoço leve, cabeça expressiva. Reco-
dos arreios de prata buscados na Argentina e de que
menda-se, no entanto, não exagerar nos adjetivos e
Faceiro depois virou assunto permanente nas suas
dar o tempo necessário de ver crescer. É preciso pa-
ligações com Monjardim, que sempre perguntava
ciência para ver, daqui a pouco, no sobreano, ele se
pelo potranco.
despregar do chão e ficar de pata longa e fina e curto
Essa mesma imagem, de um cavalo jovem, qua-
na caixa do corpo. E novamente não cair na armadi-
se potranco, permanece com outro criador que, em
lha da decepção. O tempo se encarregará, de novo, de
1993, iniciava sua trajetória como jurado. Mário
colocar tudo no seu devido lugar e, enfim, o que era
Móglia Suñe estava entre os cinco jurados – uma
desengonçado poderá – ou não – se tornar de novo
experiência nova na ABCCC – que julgaram a semi-
um conjunto harmônico e irá se adornando de mus-
final de Santa Maria. Mais jovem que os outros, mas
culatura e estrutura até enfim o potro virar adulto.
estrivado nas próprias convicções, na hora da fila da
Entretanto, Faceiro já nasceu diferente. E assim
morfologia, ficou difícil o entendimento. Eram mais
foi. Assis Fernandes avistou-o aos dois dias, ao pé
ou menos cinco cabeças e cinco sentenças. “Fui para
da mãe, nos campos da Junco, em Uruguaiana. Teve
um lado, anotei e organizei a minha fila. O Faceiro
a primeira impressão e guardou-a para si enquanto
era o primeiro. Fui voto vencido. Depois o alemão
o passar dos anos apenas foi confirmando aquela
Gilberto (Gilberto Loureiro de Souza) me parebeni-
primeira imagem. Na charla de Assis, fica o potran-
zou pela escolha”.
co que se fez cavalo sem grandes alterações: “Era lindo quando nasceu e sempre ficou assim.”
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cavalo: Faceiro. E foi fazendo a seu modo.
O potranco que tinha virado cavalo continuava lindo e ali era apenas um tímido começo. Foi para
Foi se fazendo ao pé da égua, depois desma-
o Freio de Ouro naquele 1993 e obteve um discreto
mado, depois na cabanha pela mão sábia de Mário
oitavo lugar. Estava ainda por se fazer. No ano se-
Telles, índio velho atarracado que caminhava em
guinte, quando voltou, já estava adornado por uma
passinhos miúdos e a mão groseada de rédea e ca-
potente massa muscular. Ponteou na morfologia
bresto tinha a leveza de uma pluma. Seu Mário dava
do Freio e foi o Terceiro Melhor Macho e Melhor
pouca bola para o tipo de freio. Dizia que o peso
Cavalo Adulto na Expointer. Ali, porém, o destino
não estava no freio, e sim na mão de quem puxava.
dava as cartas de que ele iria trocar de casa, de rumo
BT Faceiro do Junco
FOTO: J.G. MARTINI
FOTO: NANÁ DRUCK
e andar muito nesse mundo de provas, exposições,
aos jurados e depois fez o cavalo girar para os dois
reprodução e, sobretudo, redemoinhar a vida de
lados na frente do público, que delirava. O ouro ti-
muita gente.
nha chegado.
Negócios são coisas que se dão em todos os mo-
Prova é momento. Mas é também o coroamen-
mentos. José Carlos Portes lembra de uma noite nos
to de trabalho árduo no calor, no frio, na chuva, na
galpões de Esteio. “Eu e o Ângelo (Galtieri) fomos
persistência e, sobretudo, no controle dos nervos. O
lá nas cocheiras por volta das 11 da noite. O Assis
cavalo é o prolongamento do homem e vice-versa.
dormia na porta, eu me dava muito bem com ele.
Se um sente medo, o outro responde. Se a coragem
Pedi pra ele puxar o Faceiro pra fora e disse pro Ân-
incendeia o ímpeto, o cavalo sobra em decisão e
gelo: ‘Se tu quer ganhar um Freio taí o cavalo’.” No
explosão. Havia, no entanto, uma espécie de fibra e
final das contas, o cavalo foi comprado pelos três
brio que fazia de Faceiro um cavalo sempre pronto.
parceiros – Portes, Galtieri e Peti Druck. Correu a
“Ele sempre dava tudo o que podia”, diz Quadros.
paleteada de Esteio montado por Peti. E havia mais
Longe das luzes da pista, no dia a dia, um dia
um personagem decisivo para entrar nessa história.
o cavalo desembarcou no Lami, nos arredores de
O homem era meio bruto, tisnado na lida da
Porto Alegre, na Cabanha Boaventura, para a pri-
doma. Andava por rodeios apresentando cavalos.
meira temporada de coberturas. Seria o início de
Carlos Quadros, na primeira vez que chegou ao
uma trajetória peregrina espalhando estado afora
Freio, montou Mascate Sombra. Olhava meio des-
os caracteres de sua genética. Passará pela Cabanha
confiado a destreza com que alguns ginetes faziam
Galtieri, em Portão. E sua morada mais frequente
seus cavalos girar e parar. Tinha dificuldade nisso.
será a Estância da Quinta, em Rio Pardo. Em volta
Passou então uma temporada em São Paulo, fez um
dele, criadores, tratadores, veterinários e um rosá-
curso de rédeas com o treinador Carlos Brandão,
rio de expectativas de quem bota as éguas em cria.
o Carlão, e voltou. Encontrou, na volta, um cavalo
Discretos, tipos campeiros que guardam no silên-
que colaborava com tudo isso. “Eu comecei a fazer
cio a preciosidade de seus afetos, há nessa história
aquilo com o Faceiro e tudo entrou na cabeça dele.
dois privilegiados, na avaliação do veterinário Fábio
Ele era inteligente demais, qualquer movimento
Prates: os cabanheiros Pedro Silva e Madison Silva.
que eu pedia ele fazia. Fazia flexão, arco reverso
Porque são eles que, no dia a dia, vão desfrutar de
para aprender a girar sem bater as mãos. Nunca usei
algo que só se conhece de perto, no contato mais
rebenque com ele. Era voluntário e nunca diminuía
puro, na escrita sem palavras da paciência da obser-
a intensidade.”
vação: a bondade de um cavalo.
Foi assim que chegou com o cavalo pronto no
Pelas mãos desses homens, Faceiro se fez um
Freio. O cavalo, que havia saído na ponta desde a
top da raça, conquistando dois Grandes Campeona-
morfologia, se manteve até o fim. Lembra o sufoco
tos seguidos da Expointer em 96 e 97. Eram eles que
antes da paleteada final, corrida com o campeão do
estavam por trás de toda a logística quando houve o
Freio anterior, BT Butiá. Ouvia aqui e ali provoca-
famoso desfile no Shopping Praia de Belas. A mão
ções dizendo “agora ele vai zerar na paleteada”. Não
firme e calejada deles foi a segurança discreta que
foi o que aconteceu. Na última, retomou sozinho,
fez tudo acontecer sem sobressalto. No dia a dia,
calçando o novilho na paleta. Voltou, se apresentou
quando estavam em casa, nunca descuidaram de
Uma legenda chamada Faceiro
73
74
qualquer detalhe. “Teve uma madrugada que acor-
rio que controlou esse movimento a partir de 1999. E
dei quatro vezes para ir na cocheira ver se o cavalo
se diz impressionado com a saúde do cavalo. Várias
estava bem”, conta Pedro.
vezes examinou o sêmen e se surprendeu com a ca-
Dois palanques, no meio da cabanha, eram o
pacidade reprodutiva, que chegava a ter a potência
lugar onde muitas vezes era feito o manejo repro-
para cobrir 12 éguas. Pedro Silva, que fez o manejo
dutivo na Estância da Quinta. Madison atava uma
em cada temporada, se surpreendia ao final, quando
égua num palanque e Faceiro ficava no outro, até
cessavam as coberturas. “Ele estava tão bem de esta-
dar o salto. Algumas vezes, largou-o com um lote de
do que, se quisesse, poderia levar numa exposição.”
éguas num piquete, e ia tirando as que eram cober-
Então, a vida virou um tango. E se a vida é um
tas. No auge da temporada, chegavam a acontecer
tango, hay que saber bailar, como diz um ditado cas-
quatro saltos por dia – o último deles às 11 da noite.
telhano. Literalmente, no remate do Praia de Belas,
O número de éguas cobertas sempre passou de uma
em setembro de 1997, o casal irrompeu dançando e
centena. E, temporada afora, Faceiro permanecia
Faceiro, montado por Pedro, floreou para o lado em
sereno, sem dar trabalho, tranquilo. Madison Silva
movimento, acompanhando a dança. Nada ensaiado.
relata: “Às vezes o Mano (Madison Silva Junior), que
“Eles chegaram aqui e me avisaram que ia ter o tango.
era guri, pegava ele no piquete, botava o buçal, sal-
Disseram para fazer o movimento com o cavalo. Não
tava em pelo e trazia.”
treinei, apenas acompanhei a música”, conta Pedro.
Na volta, num ou noutro piquete, Faceiro pas-
O tango de Carlos Gardel e Alfredo Le Pêra fala
sava os seus dias. Na cocheira ao lado estava outro
do vício pela carreira de cavalos e a perdição pelo
campeão do Freio, Debochado do Quartel Mestre.
amor de uma mulher. “Pero si algún pingo/ Llega
Paletearam juntos muitas vezes. Passaram lado a
a ser fija el domingo/ Yo me juego entero/ ¡Qué le
lado boa parte dos seus dias.
voy a hacer!”. São as glórias e mazelas das apostas da
Há um outro potreiro onde o verde do azevém
vida, pontuadas por uma melodia suave. Um tan-
aflora no inverno. Em volta dele, árvores baixas de
go um tanto irônico, mas harmonioso e vivo. Teve
um mato ralo e uma que outra, um pouco maior,
muitas glórias na vida de Faceiro, sim. Mas também
que aponta os galhos para o céu. Aqui e ali avenidas
algumas contradições e claudicações.
de árvores – numa delas, grandes pés de canafístula.
Uma delas remete a uma participação inexpres-
Desse lugar se enxerga longe. O varzedo que se
siva na Exposição da FICCC (Federação Internacio-
estende na distância, um que outro capão de mato.
nal de Criadores de Cavalos Crioulos) de 2000. A
Às vezes por ali tinha uma granja de arroz, depois o
mais séria encrenca, porém, foi quando um exame
gado pastando na resteva. Tudo, porém, leva a vista
de DNA feito em filhos de éguas de um dos cotistas
a se estender, até chegar ao horizonte. Na maior par-
do cavalo acusou falsa paternidade. Esse fato, acon-
te do tempo, foi nesse lugar que Faceiro passou e o
tecido no final de setembro de 2009, poucos dias
emblema mais significativo disso tudo talvez esteja
antes do remate que venderia 20% das cotas do ca-
apenas nisto: um cavalo num lugar onde se enxerga
valo, exaltou ânimos, semeou dúvidas, transtornou
longe, muito longe.
pessoas. Peti Druck relata: “Fiquei sabendo que um
E assim foi. A cada temporada, lotes de éguas
dos sócios tinha desconfiado e feito o comparati-
vindas de vários lugares. Fábio Prates foi o veteriná-
vo de vários filhos nascidos na criação deles, com
BT Faceiro do Junco
FOTO: J.G. MARTINI
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FOTO: FELIPE ULBRICH
FOTO: M. WIELEVICKI FOTO: J.G. MARTINI
Debochado e Faceiro
o DNA que o Faceiro tinha arquivado na ABCCC.
lógico. E nós pedimos que o exame fosse feito em
O Faceiro talvez tenha sido um dos primeiros re-
três laboratórios diferentes sendo um em Minas Ge-
produtores que a ABCCC fez o teste DNA, muitos
rais. Pedi para conhecer os animais que não haviam
anos antes. Esses exames, feitos em mais de 15 fi-
confirmado a paternidade do Faceiro e de pronto
lhos, teriam mostrado que não seriam filhos do Fa-
fui recebido pelo criador na sua fazenda. Que alívio!
ceiro. Começaram a correr os boatos. E as especu-
Ao olhar os animais, pude reconhecer a olho que
lações: descontrole na Estância da Quinta? Ma-fé?
na sua grande maioria eles eram filhos do Faceiro.
Ninguém falava conosco, mas sabíamos que era um
Conhecia bem a sua produção e não tive mais dúvi-
assunto que corria pelas reuniões de crioulistas. O
da: os exames estavam errados. Os boatos continua-
leiloeiro Marcelo Silva ficou preocupado com o pre-
vam. Fomos comparar o DNA do Pergaminho e ele
juízo que isso poderia causar à venda no leilão. Dias
também não seria filho do Faceiro! Todos os nossos
depois, esse risco passou, pois o cavalo foi vendido
animais filhos do Faceiro que tinham DNA pronto
por preço recorde! Entrei em campo para tentar en-
também não confirmavam a paternidade dele. Já ti-
tender o assunto. Falei com a ABCCC, que de pron-
nhamos certeza de que havia erros nos exames, mas
to pediu um novo DNA do Faceiro, com amostras
precisávamos provar. A ABCCC havia mandado
coletadas pessoalmente pelo Gilberto Loureiro de
uma carta cancelando os registros dos animais que
Souza, então superintendente do Registros Genea-
não haviam comprovado paternidade. Algumas se-
Uma legenda chamada Faceiro
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manas depois, chegaram os exames novos. Mais um alívio. O exame anterior estava errado. Os exames dos três laboratórios não batiam 100%, mas eram parecidos entre si e muito diferentes do anterior. Refazendo as comparações, a grande maioria dos animais comprovavam a paternidade! O Pergaminho voltou a ser filho do Faceiro! Mas restavam dois ou três animais que poderíam ser filhos dele, mas, conhecendo o DNA das mães, descaracterizava a paternidade (quando o filho só tem um gene daquele tipo, e o pai e a mãe têm esse mesmo gene, a mãe tem preferência para efeitos de confirmação de paternidade). Nesse meio tempo, nos procura um advogado ameaçando uma ação de indenização. A falta de bom senso na primeira conversa realimenta a nossa tristeza e decepção. Maior ainda a nossa necessidade de provar que não tinha nada errado. Pedimos então o reteste das mães desses animais em mais de um laboratório. Quando chegam os exames, o derradeiro alívio: todos os animais eram filhos do Faceiro. A ABCCC manda uma carta validando os registros que tinham sido suspensos, e a polêmica termina. Isso acabou sendo um episódio importante para a revisão dos processos de DNA na ABCCC. Conseguimos conduzir de forma a não brigar, preservando as relações com outros criadores e a associação. Ficou a lembrança de um dos poucos momentos de tristeza e a noção do risco que corremos: imaginem se o Faceiro tivesse morrido
FOTO: J.G. MARTINI
antes de retestar o DNA?”, lembra Peti.
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BT Faceiro do Junco
Esse longo e penoso relato se impõe como esclarecimento definitivo, como desabafo e também, ironicamente, como um emblema na trajetória desse reprodutor que mexeu com tanta gente, com tanto sentimento, com tanta paixão. São longas e tortuosas as estradas da vida. O cavalo que esbanjava saúde encontrou ainda uma bambeira (MPE - Mioencefalite Protozoária Equina) no meio do caminho. Requeria um pouco mais de cuidado, mas continuou reproduzindo e, de certa forma, nunca deixou de ser aquele potrilho lindo que, por mais de 20 anos, se faria cavalo, juntaria em volta pessoas, arrebanharia prêmios e protagonizaria até mesmo polêmicas e escaramuças. Todos os que hoje falam dele embargam a voz. Madison Silva lembra que a filha Eliane recebeu a notícia da partida do cavalo por telefone e chorou, como toda a família. Fábio Prates, veterinário e poeta, transformou essa dor em poesia. “Com ele morreu uma parte da vida de todos nós”, diz. Pedro Silva até hoje baixa os olhos e embarga a voz, contrariado ao recordar o dia em que o cavalo embarcou num caminhão para ir para outros pagos. “Dói na gente ver um animal que a gente se apega, cuida tanto, subir num caminhão e ir embora.” Fábio Ruivo acompanhou os últimos momentos. Faceiro estava na Cabanha Recalada, em Pelotas. “Tive o privilégio de vê-lo solto em seu potreiro em muitas manhãs de primavera, algo singular e inesquecível pelo que representa para um cabanheiro apaixonado. Ele foi acometido por uma doença degenerativa e mesmo assim morreu aos 24 anos. Surpreendia a todos pela altivez e dignidade com que convivia com sua difi-
FOTO: J.G. MARTINI
culdades motoras.”
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Há um show da vida memorável no mundo dos cavalos. Lá pelo terceiro ou quarto dia, quando firmam as juntas, os potrilhos recém-nascidos retouçam, atiram as patas, param, voltam, estancam e cheiram o ar. Parecem testar sua aptidão vital. Naquele 24 de novembro de 2012, o cavalo nevado pelo tempo se fez potrilho pela última vez. Retouçou ainda e olhou ao longe. Parecia ali querer plasmar sua última imagem. Um monumento de beleza em movimento. Um potrilho Faceiro retou-
FOTO: J.G. MARTINI
çando na eternidade.
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