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Ciência
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17 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, terça-feira, 20 de outubro de 2015
Cobras sob ataque Antônio Sebben/Divulgação
Levantamento mostra que dezenas de espécies de serpentes estão ameaçadas de extinção no Brasil devido à perda de hábitat e ao costume da população de perseguir e matar esses animais
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Jararaca, cobra muito comum no Brasil: o país tem a maior variedade de serpentes do mundo, com 380 espécies identificadas Eduardo César/Divulgação
Espécies mais ameaçadas Jararaca-de-murici (Bothrops muriciensis) Essa espécie vive apenas em matas de altitude superior a 400 metros em uma estação ecológica em Murici (AL). Descoberta em 2001, essa cobra tem como principal predador o homem, que costuma abatê-la por medo
Jaracuçu-tapete (Bothrops pirajai) Vive sob constante ameaça da predação humana. Um estudo feito no ano passado mostrou que sobrevive apenas em fragmentos de Mata Atlântica do sul da Bahia Jararaca-coitiarinha (Bothrops itapetiningae) Essa cobra vive hoje em apenas 20% do território que ocupava há 30 anos — uma área que se estendia de São Paulo a Goiás. Perdeu espaço para a urbanização e para a agricultura. É a menor das jararacas, medindo entre 40cm e 60cm
Registros antigos Entre as informações incorporadas ao estudo, estão relatos e pesquisas realizadas há mais de dois séculos, como as análises do botânico e zoólogo Carl von Linné, que apresentou, em 1758, uma das primeiras descrições de serpente do Brasil, uma jiboia. Outra espécie dessa cobra foi descrita em 1864 pelos italianos Giorgio Jan e Ferdinando Sodelli (ffoto). “Conseguimos reunir informações que vão até o século 17, ou seja, temos informações ainda do Período Colonial”, comemora o pesquisador da USP Cristiano Nogueira.
é o medo que as pessoas têm das cobras. Lá, é necessário um amplo programa para educar a população sobre a importância desses animais. Além de fornecer material para o desenvolvimento de remédios, são grandes predadores de roedores transmissores de doenças”, lamenta o líder do estudo, Cristiano Nogueira. “Nas regiões Norte e Nordeste, ainda não existe um trabalho educativo eficaz, que coíba a matança de serpentes peçonhentas”, completa Marco Antonio de Freitas, zoólogo do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que participa do estudo, financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
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oucos animais são tão malvistos como as cobras. Na Bíblia, a serpente engana Eva e provoca a expulsão dela e de Adão do Paraíso. Na linguagem popular, esses bichos são lembrados para descrever pessoas falsas e perigosamente ardilosas. A realidade, porém, é que os seres rastejantes são mais amigos que inimigos do homem, contribuindo não só para o equilíbrio ecológico como ajudando no desenvolvimento de novos medicamentos. Por isso, para especialistas, a ameaça que paira sobre diferentes espécies no Brasil é um dado preocupante e exige ações de preservação. O país tem uma responsabilidade incomum na preservação desses animais. Afinal, abriga a maior diversidade de serpentes do mundo, incluindo cobras-cegas, jararacas, cascavéis e corais verdadeiras e falsas, além de gigantes como a jiboia e a sucuri, que alcançam até 10m de comprimento. O trabalho de proteção das 380 espécies identificadas no Brasil, contudo, não tem sido feito de maneira adequada. Segundo estudo coordenado pelo Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), algumas espécies perderam até 80% do hábitat que ocupavam três décadas atrás, o que as coloca em situação extremamente arriscada. O trabalho, iniciado há quatro anos e que reúne 25 especialistas brasileiros e dois colaboradores argentinos, é uma das maiores sínteses de dados relativos a serpentes do mundo. A partir de informações coletadas em instituições nacionais e internacionais — foram usados mais de 100 mil registros —, os cientistas esperam concluir, no ano que vem, mais de mil mapas que delimitarão com precisão o tamanho do problema, ajudando a orientar medidas de proteção. O material já finalizado conseguiu apontar as regiões brasileiras com maior diversidade de serpentes — a grande variedade está numa faixa que vai do sul de Minas Gerais até Santa Catarina (veja mapa), que tem formas de vegetação e de relevo que favorecem esses animais. O mapeamento, no entanto, mostrou também a triste realidade de 22 espécies que atualmente estão restritas a pequenos trechos de caatinga e outras 80 que sobrevivem em partes da Mata Atlântica. É o caso da Bothrops itapetiningae, menor espécie de jararaca do mundo, com 40cm a 60cm de comprimento. Conhecida popularmente como jararaca-coitiarinha, essa cobra, há 30 anos, era encontrada em uma faixa que ia de São Paulo até o Centro de Goiás, hoje ocupada por cidades ou pela agricultura. Além do avanço urbano e agrícola, um fator que ameaça a sobrevivência das cobras é o temor da população, que acaba matando os bichos. “Na Região Nordeste, nosso maior problema
Ilhas de esperança Segundo Otávio Augusto Vuolo, biólogo do Instituto Butantan que estuda há 30 anos a distribuição geográfica de espécies da Mata Atlântica no litoral paulista, conta que, felizmente, algumas ações de preservação das serpentes têm sido colocadas em prática. Ele comemora o fato de as informações sobre cobras terem sido usadas na elaboração das Diretrizes para conservação e restauração da biodiversidade do estado de SP, documento publicado em 2008 com o propósito de reconhecer e proteger as áreas de vegetação nativa com elevada concentração de espécies animais e vegetais. “Já criaram unidades de conservação em
São Paulo com base nesses mapas”, informa o pesquisador, que luta pela preservação de ilhas do litoral brasileiro que guardam espécies de cobras endêmicas. A costa nacional é salpicada de pequenas ilhas que se tornaram verdadeiros santuários de conservação de espécies de serpentes que só existem ali, como a jararaca-ilhoa (Bothrops insularis), habitante da Ilha de Queimada Grande, no litoral paulista. A espécie tem cerca de 1m de comprimento e possui um veneno capaz de matar pássaros em segundos. Já na Ilha dos Alcatrazes, a cerca de 30km de Queimada Grande, quem reina são centenas de jararacasde-alcatrazes (Bothrops alcatraz), que possuem meio metro de comprimento e se alimentam quase exclusivamente de centopeias. Esses territórios têm sido uma importante fonte de descoberta de espécies. Recentemente, foi identificada a Bothrops otavioi, jararaca que come sapos e só foi avistada até hoje nas matas da Ilha Vitória, no município de Ilhabela, em São Paulo. E uma candidata a nova espécie de jararaca vive na ilha vizinha de Búzios, enquanto outra desliza, ainda anônima, em uma ilha
mais ao norte, no litoral do Espírito Santo. Esses bichos tiveram seus hábitos descritos pelos pesquisadores do Butantan. “Os alimentos disponíveis nas diferentes ilhas moldaram a estrutura corporal das cobras que vivem nesses territórios. Cobras que se alimentaram de pássaros e pequenos mamíferos acabaram desenvolvendo um corpo maior, já as que se alimentaram de sapos e insetos acabaram ficando anãs”, explica Vuolo. Os especialistas acreditam que as ilhas podem abrigar variedades únicas de seres vivos, resultantes do isolamento geográfico. Somente no estado de São Paulo, existem em torno de 100 ilhas, e no Rio de Janeiro, mais de 300, a maioria ainda com poucos levantamentos biológicos. Estima-se que de 2 mil a 3 mil jararacas vivam em cada um desses pedaços de terra. “Sempre ficamos muito felizes por descobrir espécies, porém, logo em seguida, nos entristecemos por constatar que elas já estão em perigo de extinção. Estamos perdendo animais que nem mesmo foram descobertos. Estamos perdendo também a possibilidade de criar remédios com o veneno dessas cobras”, afirma.