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Gastronomia
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22 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, quinta-feira, 26 de março de 2015
O sertão virou gourmet A culinária nordestina sai das cozinhas caseiras e das barracas de feiras para ganhar as mesas de restaurantes chiques e conquistar paladares cada vez mais apurados variedade de iguarias nordestinas contrasta frutos do mar e peixes do litoral com a carne bovina salgada, a de bode, a manteiga de garrafa e a mandioca do sertão. Esse caldeirão de sabores encanta mestres-cucas de todo o país. Dominando técnicas e abusando da criatividade, eles propõem novas leituras das comidas tradicionais da maior região do país. Inovam e fazem questão de ressaltar que o que vai à mesa não perdeu a herança sertaneja. Carne de sol com molho de vinho, purê de queijos da terra, gnocchi de cuscuz, carpaccio de carne sol. A lista de pratos criados pelos chefs e professores Estevão Santoro e Gabriel Rogério pode soar estranho. Mas é justamente o que eles querem: que os clientes experimentem o novo. Uma vez por ano, usam a cozinha do tradicional restaurante brasiliense Xique-Xique para oferecer aos participantes do evento Nordeste Gourmet uma culinária nacional que se reinventa sem perder a essência. Ao longo do ano, divulgam a valorização da gastronomia brasileira na sala de aula e em outras cozinhas. “Queremos respeitar a cultura regional sem invencionices. As pessoas têm mania de glamourizar o que vem de fora, sem perceber que o nacional tem muito a oferecer”, diz Rogério. Os chefes se preparam para disseminar essa filosofia durante todo o ano em Brasília. Eles vão coordenar uma pós-graduação em gastronomia regional no Centro Universitário do Distrito Federal (UDF). “Usamos os produtos nacionais como inspiração, conciliando a identidade rústica dos pratos com a inovação criativa”, explica Gabriel Rogério. No Oyá, a receita que combina a valorização da criatividade e a dos sabores brasileiros tem sempre vez. O café comandado por Luciane Santos investe em pratos nordestinos recriados com ingredientes vegetais para atender principalmente o público vegetariano. Moqueca de jaca, acarajé vegano e bobó de palmito são algumas das iguarias servidas no estabelecimento que leva o nome da orixá Iansã, também chamada de Oyá, uma homenagem à umbanda e ao candomblé. “A moqueca de jaca foi um pedido de um amigo. Tentamos deixar o mais parecido com o prato original. Depois de muitas
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Moqueca de jaca verde Ronaldo de Oliveira/CB/D.A Press
INGREDIENTES » 1 jaca bem verde média » 3 xícaras de chá de pré-cozida e desfiada leite de coco » 4 dentes de alho triturados » Suco de 1 limão » 4 tomates picados » Azeite de oliva para refogar » 2 cebolas grandes picadas » 50ml de azeite de dendê » Meio pimentão-vermelho picado » Coentro a gosto » Meio pimentão-amarelo picado » Pimenta-do-reino a gosto » Meio pimentão-verde picado » Sal a gosto
Pelo país Segundo levantamento feito pelo Ibope, em 2012, havia 15,2 milhões de vegetarianos no Brasil, o equivalente a 8% da população. A porcentagem de homens e mulheres que seguiam a regra alimentar à época era a mesma: 8%, mas se altera conforme a idade e a cidade. Entre os jovens de 20 a 24 anos, por exemplo, o percentual é ligeiramente menor (7%). Fortaleza foi a capital com a maior quantidade de habitantes veganos: 14%. No Distrito Federal, eram 10%.
PREPARO
1. Comece descascando a jaca como se fosse um abacaxi no ponto que se vê a parte branca da fruta. Corte-a em postas e coloque para cozinhar na água com um pouco de óleo, até observar que ela está se desfazendo, soltando um desfiado parecendo uma carne de siri ou de frango 2. Quando esfriar, desfie desprezando a castanha e o talo do centro 3. Corte em cubinhos a cebola, os pimentões e o tomate. Refogue no azeite de oliva primeiro a cebola e o alho. Na sequência, os pimentões e o tomate 4. Quando o tomate começar a ficar mole, adicione o dendê, a jaca e mexa bem 5. Em seguida, adicione o limão, o leite de coco e os demais temperos 6. Todo o processo dura em média 20 minutos. Não cozinhe muito para a jaca não ficar muito mole Dica: a jaca verde solta muito leite. Use uma luva para descascá-la e, para limpar a faca usada, besunte-a com óleo de cozinha
tentativas, conseguimos que a fruta parecesse a carne de frango desfiada”, conta a chef. O prato é finalizado com um toque de limão “para dar a lembrança do peixe”. Diferentemente da versão original, o bobó e o vatapá, que acompanha o acarajé, não levam leite de vaca. São feitos com leite de coco. “Assim, conseguimos um menu 100% vegano”. Luciane Santos garante que as adaptações não comprometeram o gosto das combinações, que lembram muito as versões tradicionais. “Excluímos qualquer ingrediente de origem animal, mas o nosso acarajé e o nosso vatapá não perderam nada com isso, a textura e o gosto são os mesmos”. Filha de goiano com paraense, a brasiliense largou o emprego como auditora contábil em uma multinacional para se dedicar à cozinha. “Há três anos, após as transformações e as reflexões pessoais, decidi parar de comer animais. Por um momento, como muitas pessoas com alimentação carnívora, imaginei que a vida sem carne seria totalmente sem sabor e perderia meu enorme prazer em comer e cozinhar”, lembra. A empresária, então, começou a pesquisar e a estudar receitas e alimentos que satisfizessem as novas escolhas alimentares e um público que vem crescendo muito na cidade. “Me apaixonei justamente pelo Nordeste! E é por isso que muitas receitas veganas refletem adaptações dos meus saboreios por essas bandas”, conta.
Carne de sol com molho de vinho e purê de queijo André Violatti/Esp.CB/D.A. Press
INGREDIENTES
Para a carne » 200g de carne de sol » Azeite a gosto Para o purê » 120g de queijo do sertão ralado » 120ml de leite » 1 colher de sopa de farinha de mandioca » Sal a gosto Para o molho » 300ml de vinho tinto » 1 dente de alho » 1 colher de sopa de farinha de trigo » 1 colher de sobremesa de manteiga » 1 ramo de alecrim » Sal a gosto » 1 colher de sobremesa de açúcar PREPARO
Da carne Em uma chapa ou frigideira, grelhe a carne em fogo médio com um pouco de azeite até ficar no ponto desejado. Lembre-se de que a carne de sol já tem sal Do purê 1. Em uma frigideira, coloque o leite, o queijo e deixe ferver
adicione a farinha de mandioca aos poucos, até que forme um purê 4. Cuidado para não passar do ponto e ficar muito consistente Do molho 1. Em uma panela pequena, coloque o vinho, o açúcar, o alho, o alecrim e o sal e deixe reduzir a um terço
2. Assim que o leite ferver, misture bem e abaixe o fogo 3. Quando o queijo derreter e formar um creme,
2. Em um recipiente separado, coloque um terço da redução do vinho peneirada e
misture com a manteiga e a farinha. Não deixe ficarem grumos 3. Dissolva essa mistura no restante da redução também peneirada fora do fogo, sempre misturando 4. Volte para o fogo e, assim que ferver, está pronto 5. Jogue o molho sobre a carne e complemente o prato com o purê de queijo
Andre Violatti/Esp. CB/D.A Press
A força do preparo de raiz Se for comida do Nordeste, tem que ser feita como eu faço. Com o tempero da terra” Evânia Bezerra Sanos, a cozinheira vende comida nordestina há mais de 20 anos na Feira de Ceilândia
quem é de lá mesmo”, gaba-se. Filho de mãe amazonense e pai potiguar, o chef e professor de gastronomia Estevão Santoro concorda com a feirante: “Eu aprendi a cozinhar com minha mãe e as minhas avós. Nada como um nativo para cozinhar a sua comida”. Nessa sinuca de bico entre essência e inovação, uma coisa é certa: modelada nos fogões de lenha por mulheres lusitanas,
africanas e indígenas, a culinária brasileira sempre ocupou um lugar de destaque na formação cultural do país. O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, no livro Região e Tradição, de 1941, escreveu que considera “a arte de cozinhar a mais brasileira das nossas artes. A mais expressiva do nosso caráter e a mais impregnada do nosso passado e das suas constantes”. Um dos clientes de Evânia, o
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Na internet, muito se reclama da gourmetização da gastronomia. Comidas comuns ganham versões e preços que nem sempre agradam. No caso das nordestinas, avisa Evânia Bezerra Santos, inventar demais pode ser um perigo. “Acho que não deve ter muita diferença entre o que eu sirvo e o que esse povo chique serve. Se for comida do Nordeste, tem que ser feita como eu faço. Com o tempero da terra”, diz a cozinheira de 49 anos que, há mais de 20, vende pratos como sarapatel, buchada e carne de sol na Feira Central de Ceilândia. Nascida em Caicó, no Rio Grande do Norte, Evânia serve clientes das cinco regiões do país. Há quem tente repetir a comilança em casa. Às vezes, sem sucesso. “O segredo para fazer um prato nordestino está na mão de quem cozinha. Cansei de dar minhas receitas para as pessoas, mas todos dizem que não fica a mesma coisa. Só sabe
piauiense Antônio Cardoso, 44 anos, conta um pouco da saudade que o agarra pelo estômago: “Eu gosto de buchada, sarapatel e baião de dois. Venho
aqui lembrar as comidas lá de Teresina, que é de onde eu saí para vir trabalhar aqui em Brasília”. Para 688 mil nordestinos residentes no Distrito Federal,
seja em mesas sofisticadas, seja nos balcões de barraquinhas na feira, o banzo é o mesmo: na falta da terra natal, o tempero tem gosto de nostalgia.