08/ ARTIGO
AINDA “VIOLÊNCIA CONTRA MULHER”? paradoxos da violência de gênero 13/ ENTREVISTA MARIA DA PENHA 16/ INDICA HOW TO GET AWAY WITH MURDER E PERSONAGENS FEMININAS FORTES
JORNAL OFICIAL DO CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA
2 11 Voz Literatura CONCEIÇÃO CLANDESTINA
03 Editorial
VAZIA
04 Voz Artigo DWORKIN X DWORKIN:
ME FALARAM DE GÊNERO
A PORNOGRAFIA SOB LENTES OPOSTAS
06 Voz Acadêmica PEDAGOGIA DA INEXISTÊNCIA: ANÁLISE DE UM DISCURSO INVISIBILIZADOR
08 Voz Artigo
CAPA
AINDA “VIOLÊNCIA CONTRA MULHER?” PARADOXOS DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO
12 Vozes Malditas 13 Voz Entrevista MARIA DA PENHA 14 Voz Artigo VIOLÊNCIAS SEXUAIS E DE GÊNERO DA DITADURA E NA DEMOCRACIA: UMA ANÁLISE SOBRE A VIDA DE DILMA ROUSSEFF
16 Voz Indica HOW TO GET AWAY WITH MURDER E PERSONAGENS FEMININAS FORTES
COLABORADORES:
A VOZ DO LEITOR
A obra de capa é de autoria de Anja Millen, artista alemã, que atualmente reside na Irlândia. A sua arte “Incredibly Close” é contemporânea e subversiva carregando como subtítulo a frase: “Tinha coisas que eu gostaria de contar para ele. Mas eu sabia que iria machuca-lo. Então eu enterrei-as, e deixei que elas me machucassem. ” ― Jonathan Safran Foer, Extremely Loud and Incredibly Close. Com obras extremamente criativas, marcantes e fortes, tendo a mulher e suas nuances como foco, Anja se encaixou perfeitamente com a temática abordada pelo jornal. Ilustrando de modo singular e tocante violências sofridas pelas mulheres. Deseja conhecer mais obras dessa incrível artista? Confira:
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EXPEDIENTE
MODERADORAS: Bruna Demetrio
CAAP: Thaís Muchon
Letícia Delavy
Ana Luise
DIRETORIA DE IMPRENSA: João Pedro Sturm
Bruno Prota Emanuella Ribeiro Halfeld Maciel Arthur Andrade Marina Guimarães Bruno Bicalho Gabriel Rocha
GRAD. CIÊNCIAS DO ESTADO: Ariana Oliveira Alves GRADUAÇÃO EM DIREITO: Gabriela Pedrosa
João Filipe Zini Julia Vidal Melissa Araújo DIAGRAMAÇÃO: Ana Luiza Bongiovani PROJETO GRÁFICO: Rosiane Pacheco IMPRESSÃO: O Lutador
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EDITORIAL Em Agosto de 2016, comemora-se 10 anos da Lei Maria da Penha. No entanto, não somente as violências de gênero continuam presentes na nossa sociedade como igualmente assumem facetas cada vez mais complexas. Tornam-se recorrentes coberturas massivas da mídia cujas narrativas retratam um esforço em culpar a vítima pelo crime. Podemos citarcomo exemplo, o estupro coletivo e uma jovem de 16 anos por mais de 33 homens no Rio de Janeiro no mês de abril. Diante desse cenário problemático, em que as mulheres e as pessoas LGBT são diariamente violentadas e têm seus direitos e garantias incessantemente cerceados, precisamos discutir violências de gênero. Mas, ainda, cabe questionarmos, o que gera tamanha brutalidade? Não pretendemos apresentar respostas, mas podemos inferir que tais fatos são apenas a ponta do iceberg de um sistema de desigualdade de poder que opera e deslegitima todas e todos que desviam dos padrões preestabelecidos no que concerne as expectativas de gênero e sexualidade. Essa sociedade patriarcal, misógina, racista e lgbtfóbica reitera e opera, cada vez mais, estruturas que não somente justificam, como igualmente legitimam violências físicas, psicológicas e morais. Segundo a Central de Atendimento à Mulher, mais de 207 mulheres são agredidas por dia no Brasil, ainda, a taxa de estupro no país chega a números cada vez mais alarmantes, sendo que pelo menos 67% dos agressores são parentes próximos ou conhecidos da família. No que concerne a violência lgbtfóbica, temos no ano de 2012, segundo os relatórios publicados pelo Governo Federal, contabilizadas 6.809 denúncias de violações aos direitos humanos da população LGBT, dentre as quais 2 foram homicídios, sendo que no ano seguinte a violência homofóbica cresceu 166%. O movimento feminista e LGBT foram os pioneiros na problematização
e enfrentamento da desigualdade pautada na sexualidade e gênero. Lutando pela equidade de direitos e prerrogativas entre homens e mulheres, suas conquistas vão desde o sufrágio feminino até o direito à educação e ao trabalho. Apesar da incansável luta, a violência, a falta de equiparação salarial e de autonomia sobre o corpo ainda são realidade para as mulheres. Nesse sentido, visando uma maior representatividade, a construção do jornal foi feita majoritariamente por mulheres, desde o conselho até os textos e as imagens. O Jornal Voz Acadêmica, assim como o Centro Acadêmico Afonso Pena, acredita que apenas por meio da educação crítica e emancipadora, da informação e do debate é possível a mudança da realidade. Nessa edição, portanto, denunciamos algumas das instituições que estimulam esse sistema opressor: a mídia, o sistema pedagógico acrítico, a pornografia e o próprio Direito. De fato ao longo dos anos houveram avanços, contudo, atualmente, nos deparamos com uma onda de retrocessos no que se refere aos direitos conquistados por mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTs. Reforçamos e defendemos com esta edição a ideia de que o pessoal é político, ademais nos posicionamos contra toda e qualquer exclusão dessas pessoas dos espaços políticos de poder e discussão imposta pelo governo interino (e inconstitucional).
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ARTIGO
DWORKIN X DWORKIN: A PORNOGRAFIA SOB LENTES OPOSTAS Maria Carolina Fernandes Oliveira A pornografia sempre esteve em constante debate. Desde seu surgimento, quando era aparato para manifestação contra religião e política, até sua oitocentista metamorfose, quando se tornou mecanismo de prazer sexual e teve propagação facilitada pelo avanço das tecnologias – momento em que sofreu definitiva ressignificação, passando a ser utilizada, até os dias de hoje, para difundir e determinar padrões de gênero e de sexualidade. Nesse sentido, pensadores têm se posicionado e digladiado de forma incisiva sobre o tema, e não há que se falar em um consenso de interpretação, mesmo após longos debates. Posto isso, este texto pretende confrontar a defesa liberal, de Ronald Dworkin, a um direito irrefutável à independência moral em contraponto à visão da feminista Andrea Dworkin, uma das mais tenazes críticas da pornografia por considerá-la meio degradação da mulher. Ronald Dworkin e o direito à pornografia a partir da análise do Relatório Williams A construção da estrutura teórica de Ronald Dworkin sobre pornografia é iniciada a partir da busca pelo limite – se é que há limite – do direito legal em se fazer ou pronunciar o que se anseia em âmbito de controvérsia social ou política ou, nos dizeres do autor, “o direito pela liberdade de expressar pensamentos impopulares ou depravados”. Intentando trabalhar essa questão, Dworkin observou o relatório do Comitê sobre Obscenidade e Censura de Filmes, de Londres, escrito no fim do século passado, que pretendia apresentar a chave para o debate sobre permissão, proibição, ou restrição de pornografia. A análise desse relatório, também chamado Relatório Williams, é feita a partir de duas estratégias de argumentação, a “estratégia baseada no objetivo”, que visa às consequências da censura a longo prazo, e a “estratégia baseada nos direitos”, que repugna a supressão de material pornográfico tendo em vista o direito daqueles cidadãos que são contrários a essa forma de proibição. O Relatório Williams, segundo Dworkin, é um exemplo da “estratégia baseada no objetivo”, pois justifica suas proibições e restrições no prejuízo social a longo prazo. Especificamente, é válido ressaltar que são proibidos pelo Relatório o sexo ao vivo e a exploração sexual de crianças, bem como são restringidas propagandas ofensivas em espaço público e fiscalizados os filmes pornográficos. Sob essa análise, Dworkin explica e refuta a noção supracitada, a partir da justificativa do Relatório sobre o que se deve proibir e o que se deve permitir: nenhuma conduta pode ser suprimida por lei a menos que se possa
demonstrar que prejudica alguém. A crítica de Dworkin é feita à vagueza do termo “prejuízo”, uma vez que ele pode se relacionar a vários sentidos: à perda física ou material; à aflição mental ou irritação; ao dano ambiental ou sociocultural. De acordo com o autor, na primeira conotação, o prejuízo se exibe forte e, portanto, a proibição de materiais pornográficos é válida; por outro lado, caso seja observado “prejuízo” a partir da segunda conotação, a proibição da pornografia se faz desnecessária, pois esse é um prejuízo fraco; por sua vez, a terceira conotação não apresenta utilidade à polêmica da pornografia; logo, o termo utilizado pelo Relatório é impreciso e frágil na resolução da problemática. Ainda demonstrando que o Relatório Williams argumenta de acordo com a “estratégia baseada no objetivo”, Dworkin discorre sobre o “autodesenvolvimento”, defendido pelo Relatório – conceito que diz ser o próprio indivíduo o sujeito apto a definir o que é melhor para si. A crítica de Dworkin é feita a partir do possível dilema entre direitos que esse conceito pode acarretar, caso não se entenda serem os indivíduos sujeitos da evolução cultural e social (Relatório Williams), mas sim como possuidores de uma esfera privada que é de total responsabilidade dos indivíduos, o que levaria a um conflito entre o direito à privacidade e o direito de impor determinado comportamento social. O Relatório, entretanto, não se atém a esse debate pelo tipo de estratégia em que se funda. Não é possível criar um parâmetro inteiramente justo para definir o que seriam feitos vantajosos e feitos desprezíveis à sociedade. Desse modo, Dworkin critica o Relatório ao tratar da prática do “sexo ao vivo” como mais ultrajante do que filmes com escancarado teor sexual. Ademais, o autor ressalta a contradição do Relatório ao discorrer sobre o “sexo ao vivo” como um espetáculo que, caso permitido, seria raro e de pequeno público, em oposição aos filmes sexuais, possuidores de um alcance evidentemente maior, e, mesmo assim, proibir o feito de inferior ameaça – o sexo ao vivo – por considerá-lo prejudicial à sociedade. Ainda nesse sentido, também há contradição no tratamento dado pelo Relatório à liberdade de expressão, uma vez que ele a assegura como parte essencial da evolução humana, devendo, logo, primar pela não existência da censura em qualquer hipótese, o que não é a intenção do Relatório, como visto anteriormente. Ainda sobre as contradições do documento em análise, agora no que concerne ao público e ao privado, esse define a pornografia publicamente exibida como uma questão que quebra a divisória entre as duas esferas – o que Dworkin assegura
ser um equívoco, pois condutas socialmente consideradas inaceitáveis hoje podem ser redimensionadas ao longo do tempo, como o exemplo citado por ele sobre as mudanças interpretativas do beijo em ambiente coletivo. Em síntese, Dworkin considera que o erro crucial do Relatório consistiu em fundamentar suas perspectivas à luz da “estratégia baseada no objetivo”, pois esta não conseguiu amparar as intenções do documento. Sob a ótica do autor, não é possível analisar modelos sociais como se possuíssem caráter imutável, ou seja, a noção paradigmática das condutas sociais se altera de tempos em tempos e, por isso, os argumentos construídos pelo Relatório podem ser facilmente destruídos por mutações de paradigma, transformando a argumentação utilizada no Relatório Williams em especulação e anacronismo. Posto isso, Dworkin busca solucionar as não respondidas questões do documento a partir da “estratégia baseada nos direitos”. Para ele, a desintegração das contradições supracitadas é feita à luz dessa estratégia, tendo em vista que, diferente da “estratégia baseada no objetivo”, aquela considera os problemas ocasionados pela aceitação de um direito na sociedade, bem como defende que não se pode advogar um direito abstrato sem antes investigar o impacto de direitos oponentes e encontrar a resolução dos possíveis embates. No concernente a esses, as diferentes convicções e preferências adotadas pelas pessoas que desaprovam a circulação e exibição pornográficas desamparam o respeito ao direito à independência moral. Por isso, o autor destaca duas prováveis alternativas de postura social, sendo a primeira o reconhecimento das várias crenças existentes acerca do tema, negando qualquer regulamentação enquanto houver pensamentos divergentes; e a segunda, preferência de Dworkin, é a tentativa de concretizar o direito abstrato observando a diversidade das posturas e, a partir dessa análise, regulamentar o assunto de forma adequada. Em suma, para Dworkin, se o direito à independência moral é autêntico, faz-se necessário um posicionamento jurídico permitindo a utilização privada de material pornográfico e, ao mesmo tempo, possibilitando uma limitação jurídica que se aproxima do Relatório Williams, tendo em vista a parcela de concretude desse direito. Nesse sentido, o autor não diz que o documento foge à citada dicotomia, mas ressalta que, haja vista o evidente valor do direito supracitado, a censura pública a conteúdos pornográficos é permitida, e a liberdade privada de usufruir da pornografia é essencial.
5 Andrea Dworkin e a (anti)pornografia Não há que se dizer em direito à independência moral sobre um comportamento que inferioriza um gênero em relação a outro. Segundo Andrea Dworkin – feminista radical e ferrenha opositora da pornografia-, esse tipo de prática tem a única finalidade de incitar o apetite sexual do homem por meio da glamourização do estupro, do masoquismo, da humilhação, da objetificação da mulher. A autora entende haver um contrato sexual, que antecede o contrato social, determinando que as mulheres devem agir em benefício dos homens, dando a eles direito de se apropriarem do corpo feminino; e entende ser a pornografia como prostituição a consolidação mais cruel desse contrato. Sob a ótica do patriarcado, a afirmação cultural da dominação sexual é feita a partir da transformação dos corpos das mulheres em objeto de consumo e de comércio. Não há possibilidade de direito ao uso da pornografia simplesmente porque permiti-la é permitir a criação de papéis fixos de dominadores e dominadas, em que as mulheres são mercadorias em prol dos dominadores. Ademais, essa determinação de papéis faz com que os homens não só consumam material pornográfico como também busquem, na vida real, a mulher comercializada pela pornografia. A verdade do sexo é posta à mostra pela pornografia, uma vez que essa é produzida de acordo com o modo com que os homens gostariam que o mundo operasse, ou seja, com mulheres submissas, coisificadas, dispostas a qualquer anseio sexual masculino em um universo falocêntrico. A partir de pesquisas científicas feitas ao longo do desenvolvimento de sua obra e da organização em que participava (Women Against Pornography, “WAP”), A. Dworkin notou que a pornografia incita o comportamento violento contra o gênero feminino ao comercializar mulheres como mercadoria sexual, e torna excitante a submissão e a humilhação do gênero historicamente dominado. Catharine MacKinnon, advogada feminista e parceira de Andrea Dworkin, compartilhando da mesma ideologia, pontuou uma definição do tema: “na pornografia, a violência é sexo, a desigualdade é sexo, a humilhação é sexo”. Juntamente com MacKinnon, Andrea Dworkin também discorre sobre a limitação das leis antipornografia, que, segundo as autoras, restringem-se ao tratamento da moral, deixando à deriva um grande motivo pelo qual ambas repudiam a prática pornográfica: a segurança das mulheres é posta de lado no âmbito da pornografia. Estupros são normais, sexo entre irmãos é aceitável, pedofilia é natural. Todas as práticas que expõem as mulheres à violência sexual são romantizadas no meio pornográfico. Um outro significativo fator é marginalizado nas leis antipornografia: a igualdade. Segundo as autoras, a pornografia dissemina a noção de que as mulheres são, por natureza, inferiores aos homens, que sentem prazer em serem tratadas como tal, e que não há algo de errado com esse comportamento. Ao tratar da pornografia apenas no âmbito da moral, as leis antipornografia legi-
timam as desigualdades entre homens e mulheres. Ademais, sob a ótica de A. Dworkin e MacKinnon, tais leis não tratam da recorrente exploração das mulheres na produção do material pornográfico, sendo vítimas dos economicamente mais fortes. Uma outra crítica de A. Dworkin é que o estereótipo criado pela pornografia é prejudicial a todas as mulheres, independentemente de suas condutas. Nos dizeres de Andrea, “a pornografia molda o pensamento social de tal forma que a mulher é tratada como inferior fazendo ou não fazendo sexo”. Ademais, a autora ressalta que, por ditar padrões de comportamento feminino ideais, a pornografia interfere na forma como uma mulher é julgada socialmente. Ou seja, o nível de credibilidade de uma mulher está baseado no quanto ela se aproxima dos moldes pornográficos do que é a sexualidade. Em suma, A. Dworkin entende a pornografia como a maior propagadora da desigualdade de gêneros, porque se a sexualidade é – e a autora entende ser – a configuradora da identidade pessoal e social, aliená-la ou apropriar-se dela para o prazer alheio – que é o que atualmente faz a pornografia –é uma conduta de desumanização, que legitima a inferiorização da mulher e, por conseguinte, estimula o tratamento desigual aos gêneros. Desse modo, um comportamento que aliena o processo de construção da identidade feminina não pode fazer parte do rol de ações tuteladas pelo direito à liberdade privada, o que faz dessa discussão um debate ilegítimo por não respeitar a primazia do direito fundamental ao tratamento igualitário e democrático. O pessoal é político Sob a ótica liberal, a liberdade de expressão é a responsável pela promoção do desenvolvimento e do aprimoramento humano, logo, deve ser protegida em benefício da pessoa. Ainda que um indivíduo faça escolhas incapazes de contribuir, nem mesmo a longo prazo, ao aperfeiçoamento da comunidade (e, ademais, sejam escolhas renegadas por um grande número de indivíduos), ele não pode ser desapropriado de escolher em sua esfera particular. Desse modo, mesmo que a maioria das pessoas de uma comunidade ou da sociedade como um todo considerem imoral e passível de punição jurídica determinada conduta, os direitos individuais não podem ser violados. Algumas correntes do movimento feminista já dialogaram bem com o liberalismo, pois as reivindicações por direitos como a liberdade sexual e o aborto eram vistas por ambos os movimentos como uma questão de autonomia privada e que, portanto, deveriam ser respeitadas. Entretanto, ainda no século XIX, o feminismo notou as limitações da ótica liberal na luta pela equidade de gêneros, haja vista a dicotomia público-privado não se ater às questões particulares enfrentadas de forma diferente pelos gêneros em esfera privada. Direcionar-se apenas para soluções formais e soluções que não interfiram nas relações pessoais – como age o liberalismo – é problemático para o movimento feminista,
que, em suas mais diversas vertentes, encontra grandes demandas na relação entre Estado e âmbito privado, que se dividem entre reservar um espaço em que o Estado não interfira para que as mulheres possam agir de forma livre em suas ações individuais; e reivindicar a intervenção estatal quando comportamentos misóginos prejudicam as ações individuais das mulheres. Dessa forma, sob a lente feminista em geral, tratar de maneira formal as questões que influenciam na liberdade particular de cada mulher é ineficiente e perigoso, pois limita a busca pela igualdade substancial entre gêneros. Logo, dar primazia ao direito à liberdade de expressão e à autonomia privada abre uma lacuna na luta pela construção de uma sociedade equânime. Um significativo exemplo para tal fenda é a forma como o direito à pornografia é visto por Ronald Dworkin. Por mais contraditória e prejudicial que a prática pornográfica possa ser, ela deve, segundo o autor, ser permitida (no mínimo, em âmbito privado), para respeitar a esfera da liberdade individual de cada pessoa. Acontece que R. Dworkin não se atém ao fato de que a pornografia, em qualquer esfera, dita estereótipos e padrões de sexualidade prejudiciais ao gênero historicamente inferiorizado. Se um indivíduo costuma utilizar para si próprio material pornográfico, essa experiência não se restringirá a ele apenas, mas será propagada por ele a partir de suas condutas, pois a pornografia interfere em vários fatores sociais de determinação de referências de pensamento e de comportamento, conforme demonstrado. Ao analisarmos a relevância da prática pornográfica em seus mais diversos aspectos, devemos nos preocupar também com seu papel na sociedade. Portanto, buscando a equidade de gêneros e à luz da argumentação de Andrea Dworkin, não devemos tratar a pornografia como tema de autonomia individual, a menos que tenhamos como intuito incitar e disseminar um comportamento sexual agressivo, sexista e misógino
Referências CYFER, Ingrid. Liberalismo e feminismo. Igualdade de gênero em Carole Pateman e Martha Nussbaum. Revista de sociologia e política v. 18, nº 36: 135-146 jun. 2010 ________________. Pornography: Men possessing women. New York: Plume, 1989. ________________.; MACKINNON, Catharine. Pornography and Civil Rights: A new day for women’s equality. Washington: Library ofCongress, 1989. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (p. 497-554). MACKINNON, Catharine. Towards a Feminist Theory of the State. Harvard University Press, 1989.
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PEDAGOGIA DA INEXISTÊNCIA análise de um discurso invisibilizador Igor Campos Viana Em tempos de exceção naturalizada, de flagrantes violações às garantias fundamentais e ao Estado Democrático de Direito, temos que reconhecer que diversos golpes já eram perpetrados diariamente contra a população brasileira. Entre nós, podemos entender o golpe em Brasília como um reflexo de uma prática permissiva e relativizadora de direitos fundamentais, que claramente se apresentava em nossa realidade de estudantes de Direito e Ciências do Estado, submetidos ao cerceamento do espaço universitário, da livre manifestação de posicionamentos políticos e da própria existência do corpo discente em sua diversidade. O novo Ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP), ao ser presenteado com o livro “A Ideologia de Gênero na Educação”, de Marisa Lobo – “psicóloga cristã”, com atuação no Paraná, e defensora da “cura gay” –, disse em resposta ao presente: “Isso já acabou, o MEC agora é do DEM” – em referência ao novo Ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM). O falso problema da “ideologia de gênero” nas escolas é cada vez mais alardeado na sociedade brasileira e, sem a menor preocupação reflexiva, projetos de lei que visam evitar uma suposta “doutrinação ideológica” na educação se espalham pelo Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores. No Congresso Nacional, destaca-se o PL 7180/2014, de autoria do deputado federal Erivelton Santana (PEN), que visa alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional adicionando como um de seus princípios o “respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas”. Outra proposta era o PL 2731/2015, de autoria do deputado federal Eros Biondini (PTB), já retirado em razão da busca de unidade em torno do PL 7180/2014, mas que propunha a alteração do Plano Nacional da Educação visando à proibição da “utilização de qualquer tipo de ideologia na educação nacional, em especial o uso da ideologia de gênero, orientação sexual, identidade de gênero e seus derivados, sob qualquer pretexto”, sujeitando os professores que não
atendessem a essa normativa ao art. 232 do ECA, que penaliza com a detenção de 6 meses a 2 anos aquele que submete criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento. A malfadada “ideologia de gênero”, que serve de aporte teórico para os diversos projetos de lei em curso no Brasil, foi cunhada internacionalmente por setores conservadores da Igreja Católica, ligados ao Opus Dei, sendo hoje apropriada pelos mais diversos setores conservadores da sociedade. Essa ideia se apresenta como uma verdadeira amarra a qualquer tentativa de desnaturalização das relações de gênero culturalmente construídas. Ao estabelecer que pensar e viver relações de gênero para além daquelas afirmadas por uma lógica heteronormativa é ser ideológico, esconde-se que aceitar uma única visão sobre o gênero é, também, ser ideológico, e ser ideológico através da opressão e invisibilização do “outro”, tomado enquanto abjeto social. Como nos ensina a socióloga Berenice Bento, em seus “estudos transviados”, o “heteroterrorismo” naturaliza – invisibilizando – as questões de gênero, ao propor uma identificação inata do gênero com o órgão sexual, subjugando as mulheres em uma lógica de submissão ao gênero masculino. Afirmar que a ordem familiar tem precedência sobre a educação escolar é um pretexto para criar uma esfera de restrição de alcance das normas de direitos fundamentais e legitimar, sob o viés liberal mais tacanho, as diversas violações aos direitos das mulheres e da população LGBT no ambiente escolar, condenando-os a uma estrutura social extremamente opressora. Já aprendemos com Habermas que as autonomias privadas e públicas devem ser cooriginárias e equiprimordiais, e que os espaços públicos e privados são dinâmicos e inter-relacionais. Dessa forma, não há exercício de uma educação para a cidadania sem o respeito aos direitos fundamentais básicos dos cidadãos. Ao negar a discussão, no ambiente escolar, de temas determinantes para uma formação autônoma da personalidade, nega-se a própria possibilidade de existência dos indivíduos em suas diversidades. É necessário discutir a realidade dos currículos escolares em vigor no Brasil, pois já carregam uma ideologia normativa que ins-
taura um verdadeiro controle das identidades de gênero e orientações sexuais. Não há espaço, na escola, para aqueles que escapem às normas preestabelecidas: as meninas são educadas para serem “meninas” e os meninos para serem “meninos”, mas esse processo de “generificação” é invisibilizado e naturalizado, uma vez que essa realidade é tomada como algo dado, que sempre teria existido. Ideologia, na visão dos alardeadores da “ideologia de gênero”, seria justamente pensar contra a “natural” ordem das coisas. Ocorre que essa ordem nunca foi “natural”, mas social e culturalmente construída, tendo a escola um papel institucional fundamental nessa construção por meio da difusão, desde a infância, de ideais binários e compulsoriamente heteronormativos do mundo. Ações tomadas como “pequenas”, assim como as piadas e ridicularizações do “outro” que não se enquadra nas normas de gênero previamente estabelecidas e replicadas pelas escolas, contribuem para um sistema heterorregulador de silenciamento e ajustamento que inscreve nos corpos e memórias dos sujeitos as marcas da opressão, informando sua relação com mundo. Segundo o sociólogo Rogério Diniz Junqueira: Uma pessoa que afirma considerar “propaganda de homossexualidade” ações voltadas a enfrentar a homo -lesbotransfobia nas escolas ignora os processos de heterossexualização compulsória, a artificialidade e a imposição socioinstitucional das normas de gênero, nos quais a pedagogia do armário está implicada. Ao fazê-lo, ela se coloca a serviço de uma visão segundo a qual o enfrentamento à heteronormatividade seria uma agenda contrária à natureza, à qual a escola não poderia se dedicar. Ela negligencia a centralidade que assume a escola nos processos de normalização e ajustamento heteroreguladores e de marginalização de sujeitos, saberes e práticas dissidentes em relação à matriz heterossexual. Ela desconhece que a educação não-racista, não-sexista e não-homofóbica é um direito de todos. (JUNQUEIRA, 2016) A construção deste outro-abjeto se dá pelo discurso. A filósofa norte-americana Judith
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Vedar a transversalidade no ensino, como dispõe o PL 7180/2014, do deputado federal
Erivelton Santana (PEN), é, na verdade, vedar qualquer possibilidade de conhecimento crítico do mundo. A realidade social, plural e complexa, não pode ser compreendida por análises estanques de disciplinas e métodos de conhecimento fechados em si mesmos. O saber é indisponivelmente fundado no mundo da vida, na realidade prática social, não existe a possibilidade de conhecimento crítico desconectado da realidade e não discutir esta realidade em toda sua transversalidade é justamente ratificar a opressão de gênero, raça e classe no Brasil.
Herakut
Butler, a partir de contribuições de Austin e Derrida, nos diz, através da noção de performatividade, que “o discurso habita o corpo e faz este corpo, confundindo-se com ele”. Atos de repetição estilizados formam a noção de gênero, que não diz respeito ao que somos, mas ao que fazemos. As instituições sociais, neste sentido, possuem grande influência nos processos de subjetivação dos sujeitos que são formados em relações intersubjetivas, dinâmicas e histórica e socialmente situadas. Os discursos gerados pelas instituições são fundamentais na potencialização das possibilidades de emancipação e desnaturalização de realidades opressoras estruturalmente invisibilizadas. O movimento “Escola sem Partido”, também fiador da cruzada conservadora contra a “ideologia de gênero”, propaga o combate à doutrinação – marxista e feminista – no seio das escolas brasileiras. Entretanto, por detrás desta suposta busca pela “neutralidade” na educação, há interesses políticos muito claros na manutenção do status quo e na inviabilização da possibilidade de um pensamento crítico no Brasil. O ensino neutro pressupõe uma educação naturalizadora do mundo existente e processos de ensino e aprendizagem que desconsiderem o papel de sujeito ativo do aluno nessa relação, considerando-o como mero objeto do processo de “transferência” de conhecimento objetivo. Por isso o repúdio – verdadeiro ódio – a Paulo Freire, ao tema da redação do ENEM 2015 e à citação de Beauvoir em uma das questões. Não se pode questionar a realidade, nem ameaçar o complexo sistema de privilégios e dominação de classe já estabelecido. Como nos diz o cientista político Luiz Felipe Miguel: Cada vez que a escola se desloca, por pouco que seja, de seu papel tradicional de aparelho ideológico reprodutor da ordem social, erguem-se as bandeiras de “doutrinamento”. A manobra argumentativa é evidente. A reprodução transita como “não ideológica” porque a ordem social vigente é naturalizada. É como se ela não fosse o fruto de processos históricos, de conflitos sociais com ganhadores e perdedores, mas um dado da realidade que existe por si só. A “neutralidade” do discurso que não questiona o porquê do mundo social ser como é, nem indica que essa ordenação não é uma necessidade, é falsa: ele é um elemento ativo de perpetuação, uma maneira de bloquear as potencialidades de mudança presentes do mundo em que vivemos. (MIGUEL, 2016)
O Direito necessita se atentar para esses temas estruturantes da sociedade. O gênero é um elemento fundamental na formação social e na compreensão do próprio sistema normativo. Mais do que defender a clara inconstitucionalidade das leis em curso no Brasil que visam combater a “ideologia de gênero”, é necessário reconhecermos o direito fundamental à educação de gênero e sexualidade nas escolas brasileiras. Não há possibilidade de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem qualquer forma de preconceito e de discriminação (art.3° da CR/88), sem a real possibilidade de construção livre da personalidade e de pleno desenvolvimento da pessoa (art. 205 da CR/88), pois não reconhecer esse direito fundamental é legitimar a imposição de um único modelo de vida boa, qual seja, o heteronormativo. A complexidade das sociedades modernas não admite uma única concepção de bem válida: o Estado Democrático de Direito surge como possibilidade republicana de lidar com pluralismo cultural de formas de vida e concepções
de bem, tendo o respeito às minorias como elemento constitutivo e viabilizador de sua lógica democrática. O sistema de direitos e garantias fundamentais no ordenamento brasileiro é um rol em aberto (art.5°, §2° da CR/88) – como não poderia deixar de ser em uma compreensão procedimentalista do Estado Democrático de Direito. Ora, não existe uma essência de direitos fundamentais a ser alcançada pelo legislador, mas um processo histórico e indisponivelmente aberto ao futuro, que leva a sério a perspectiva do agente na determinação desses direitos. Uma identidade constitucional que se afirme democrática tem o dever de reconhecer a opressão a que sujeita mulheres, lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis ao não reconhecer o seu direito fundamental à educação de gênero e sexualidade nas escolas como possibilidade formação plena da personalidade, não mais à margem de uma masculinidade idealizada e desejável. O Direito possui um papel de grande importância na construção das performatividades sociais e dos atos de fala estilizados, não podendo ser sobrelevado no processo de emancipação e combate às opressões. A Faculdade de Direito e Ciências do Estado não se encontra isolada desse contexto opressor. O mesmo direito que permite lutar contra as violências de gênero, raça, classe e sexualidade pode se tornar a fonte dessas mesmas opressões. O direito deve ser disputado. Se realmente escolhemos a herança que merecemos, não é essa herança da Faculdade que devemos manter. A luta é árdua, acompanhada de frustrações, sofrimentos, tropeços, cansaços, algumas lágrimas, mas seguiremos juntxs. Este é um texto dedicado à querida Luanna e a todas que existem para resistir
Referências
BENTO, Berenice. Queer o quê? Ativismo e estudos transviados. Revista Cult, edição especial n°6, ano 19, janeiro de 2016. BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998. JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Pedagogia do armário: a normatividade em ação. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 7, n. 13, p. 481-498, jul./dez. 2013. ____________. Pedagogia do armário. Revista Cult, edição especial n°6, ano 19, janeiro de 2016. MIGUEL, Luis Felipe. A Criminalização do Pensamento Crítico. Disponível em <https:// blogdaboitempo.com.br/2015/10/29/a-criminalizacao-do-pensamento-critico/>. Acesso em 19/05/2016.
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ARTIGO CAPA
AINDA “VIOLÊNCIA CONTRA MULHER”? paradoxos da violência de gênero Lisandra Moreira ideia não é baixar uma proibição contra o uso de termos ontológicos mas, ao contrário, usá-los mais, explorá-los e resgatá-los, submetê-los ao abuso, de modo que não consigam mais fazer o que normalmente fazem (BUTLER em entrevista a PRINS e MEIJER, 2002, p. 159). Gênero ou mulheres? Estamos no campo das políticas e ações de enfrentamento à violência contra a mulher, tomando como fundamento legal a Lei 11.340 de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Tal fundamento legal explicitamente nomeia e, portanto, produz os sujeitos a que se destina enquanto mecanismo de produção da vida, ou melhor, de vidas sem violência – “a mulher”. Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher... dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar... Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida,(...) (BRASIL, 2006). Tomando esse fundamento legal, poderíamos nos questionar o porquê de falar de gênero e não de mulheres. Ou seja, trata-se de uma lei para “mulheres”. Mas será que a categoria“mulher”, no texto da lei, pressupõe a estabilidade identitária? Qual seria essa pretensa estabilidade que conseguiria dar conta de certa unidade-essência feminina ou coletivo-população de mulheres? Estaríamos diante da função dual do poder, conforme a análise de Butler (2003), função jurídica e produtiva do poder? Ou seja, “a categoria das ‘mulheres’”, sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais busca-se a emancipação” (BUTLER, 2003, p. 19). Butler (2003) propõe uma crítica genealógica à produção de sujeitos políticos, em especial, à produção relacionada ao feminino e à categoria “mulheres”. Nessa crítica, aler-
Raquel Vitorelo
Seria a violência contra as mulheres um tema ultrapassado? Questionamento escutado em alguns espaços acadêmicos, levaria a pensar que ou a violência contra a mulher não mais existe ou, apesar da sua existência, desistiríamos de sua análise e enfrentamento1. A primeira hipótese é desmentida pelos dados ainda alarmantes na realidade brasileira e a segunda tem instigado os estudos de gênero e movimentos feministas a resistirem e insistirem nessa temática. A permanência da violência contra mulher não deve ser pensada, entretanto, como repetição ou constatação do mesmo cenário, mas como convite a pensar em outras bases, ampliando o olhar em função da complexidade desse fenômeno. Proponho pensar a violência contra as mulheres a partir de dois conceitos teóricos – gênero e judicialização da vida2, potencializando o caráter desestabilizador das categorias a que elas se referem. Gênero nos convoca a pensar os modos pelos quais as categorias de mulheres e homens permanecem atuando de forma cristalizada e os modos de resistência. Já a questão da judicialização da vida possibilita pensar as formas de governo das condutas contemporâneas, que tomam como modelo privilegiado as práticas jurídicas e as técnicas de produção de verdade dessas instâncias, mesmo que em situações cotidianas. A partir de leituras de Judith Butler e Michel Foucault, é possível romper com vários conceitos e colocar em questão o ainda permanente uso das principais categorias que essa temática nos remete: “Violência” e “Mulher”. A manutenção dessas categorias, apesar do caráter instável que as compõe, carrega riscos de fixação. Registrar certo incômodo na utilização desses termos obriga tomá-los em suspenso, colocando em questão as condições que os tornam tão facilmente categorias explicativas. De que mulher falamos? O que entendemos como violência? Desconfiar das categorias, deslocando-as das paradisíacas posições naturalizadas, mas habitando-as. Não existe nenhuma forma de contestar esses tipos de gramáticas a não ser habitá-las de maneira que produzam nelas uma grande dissonância(...). A
ta para o processo de ocultação e naturalização das operações políticas que efetivam o processo de construção política dos sujeitos. Numa “aparentemente” simples representação de sujeitos, há um imbricado e simultâneo processo de produção desses sujeitos. As ressalvas de Butler (2003) aos pressupostos presentes na discussão da produção e ocultação de sujeitos políticos mostram que há a invocação de um “antes” - premissa de um sujeito anterior a ser representado e a invocação de uma identidade comum acionada pela nomeação dessa categoria. Ambos os pressupostos retiram o caráter histórico das categorias identitárias, assim como invisibilizam as diferenças e “intersecções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas” (p. 20). Nesse sentido, o conceito de gênero parece ser útil, pois pode ser problematizado não como sexo biológico, mas como “ferramenta teórico-metodológica e política para questionar a produção de desigualdades sociais entre homens e mulheres” (MEYER, 2004, p.13). Gênero inclui mulheres, mas o termo mulheres ainda se mostra problemático por-
9 que foi construído, histórica e socialmente, como forma de distinção de corpos a partir do sistema binário. Historicamente, gênero surgiu como conceito em oposição a sexo. Apontava para a construção social, cultural, visto que a diferença sexual era tomada como da ordem da biologia, portanto, imutável. Entretanto, as reflexões conceituais foram se ampliando e colocando em questão inclusive a concepção do sexo, o que possibilitou visibilizar o seu caráter artificial. Colocar essa construção em pauta é visibilizar a fixação de posições em diferentes espaços da política de enfrentamento à violência que colam a noção de vítima à mulher e de agressor ao homem. Gênero, conforme as problematizações de Butler (2003), é uma performatividade, “efeito de uma prática reguladora que busca uniformizar a identidade por via de uma heterossexualidade compulsória” (p.57). Nesse sentido, gênero seria uma repetição, nem sempre idêntica a si mesma, mas que cria uma ficção de unidade e coerência, constituindo práticas reguladoras e naturalizantes dessas categorias. Socialmente, construiu-se a ideia de que o gênero seria a expressão ou representação de uma unidade interior, mas a ficção dessa unidade, ou seja, esse “todo” que chamamos de gênero seria “constituído performativamente, pelas próprias expressões tidas como seus resultados” (BUTLER, 2003, p.16). Quando trabalhamos no contexto da lei Maria da Penha – tanto do ponto de vista
do sistema jurídico quanto das políticas de enfrentamento à violência contra mulher-, podemos analisar o quanto essa compulsoriedade se faz presente:heterossexualidade compulsória e também feminilidade e masculinidade compulsórias. À mulher, a sedutora posição de vítima e, ao homem, a poderosa posição de agressor. Uma colagem quase que instantânea. Entretanto, será possível colocar essas posições em questão? Problematizar essa construção binária é colocar em questão os limites das especificidades do que se direciona para homens e mulheres. A coerência ou a unidade interna de qualquer um dos gêneros – homem ou mulher – exige, assim, uma heterossexualidade estável e oposicional (BUTLER, 2003). Essas desconstruções conceituais do binarismo de gênero poderiam colocar em questão a própria necessidade de manutenção de políticas de enfrentamento à violência contra a mulher. Se o conceito já ultrapassou a dicotomia entre masculino e feminino, o que significaria a violência contra a mulher ou a violência de gênero? Nesse sentido, Preciado (2010) nos põe a pensar que questionar esses termos: masculino, feminino, homem, mulher, não seria negar a existência de certas marcas que se concretizam em violência direcionada de forma mais intensa a alguns sujeitos, mas pensar a violência. “O próprio Gênero é a violência, as normas de masculinidade e de feminilidade, tal como as conhecemos, produzem violência... sejamos honestos: em uma cultura da
guerra, não equipar técnica e praticamente um conjunto da sociedade para ser capaz de ter acesso a técnicas de agressão quando for necessário é discriminatório” (PRECIADO, 2010). Nessa lógica, poderíamos pensar se a própria lei de proteção à mulher não seria uma lei que vitimizaria duplamente as mulheres – como alvo privilegiado da ação agressiva da masculinidade e como alvo privilegiado da proteção e regulação jurídica? A provocação dePreciado (2010): “é preciso dar armas às mulheres, posto que os homens estão armados”, nos convoca a pensar se nossas alternativas e estratégias de intervenção residem apenas nessas duas opções: ou manter práticas de proteção (que poderiam revitimizar e violentar) ou de armamento à mulheres (mantendo a política de guerra sexual e binária da mesma forma). Em briga de marido e mulher... O conceito de judicialização da vida permite colocar em questão os movimentos que desembocam nas demandas jurídicas, mas que não estão restritos ao Direito e às suas práticas e que se produzem também como regulação da vida. Muitas questões são atravessadas pela judicialização da vida no sentido de regulamentar as relações sociais, como permanente governo das relações cotidianas. Tal reflexão permite compreender algumas possibilidades e limitações das negociações entre os diferentes sujeitos que, em determinadas situações, chegam ao judiciário como
Panmela Castro
1010 casos de violência doméstica. A maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam serjulgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras... parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre homens e a verdade que merecem ser estudadas (FOUCAULT, 2005, p.20) Judicialização busca compreender o fenômeno de demandar nas instâncias jurídicas a legitimação das relações cotidianas. Atualmente, há uma ampliação dos campos de intervenção jurídica, incidindo, inclusive, em áreas antes entendidas como do âmbito privado (relacionamentos afetivos, por exemplo). É necessário compreender que essa ampliação torna visíveis formas de violação de direitos que estavam naturalizadas até então, mas cabe pensar nos efeitos que a legitimação, via racionalidade jurídica, produz. Tomar a temática da violência contra a mulher a partir da noção de judicialização e dos processos de subjetivação busca dar conta de alguns fenômenos que chamam atenção na articulação do discurso da Psicologia e do discurso jurídico. A judicialização rompe os limites do tribunal, quando “se incorporam e se legitimam seus modos de operação, reproduzindo-se o controle, o julgamento e a punição das condutas, em prol - assim é justificado - da inviolabilidade dos direitos, do melhor interesse, da proteção e do bem-estar de algumas vidas” (OLIVEIRA e BRITO, 2013, p.80). As relações cotidianas, micropoliticamente, tomam como forma de regulação e combinações as técnicas colocadas em funcionamento nas formas jurídicas, com procedimentos que constroem noções de violência, motivação, previsão de comportamentos a partir do hábito e noção de periculosidade. No âmbito da política de enfrentamento à violência contra a mulher, a judicialização se concretiza em práticas que transbordam o judiciário ou os juizados especializados e invadem a rede de outras políticas – de saúde e assistência-, ampliando o olhar para as questões da violência de gênero e, dessa forma, regulando pequenas práticas cotidianas que poderiam antecipar a prática da violência. Há um jogo intenso entre os saberes psi e do direito no governo desses sujeitos, entre patologização e criminalização, entre prevenção e determinação, a partir do foco da violência
contra a mulher. Deve-se ter em perspectiva que a criminalização das condutas cotidianas e a judicialização da vida são correlativas da patologização das condutas cotidianas e da medicalização da vida, todos eles aspectos fundamentais da experiência contemporânea, imbricados no jogo da norma (PRADO FILHO, 2012, p. 110). Compreender a judicialização da vida é atentar para o risco da análise dicotômica desse fenômeno: ou pelo discurso do crime ou pelo discurso da loucura, ambos atacando de forma individual um problema que se constrói de forma social. Ou seja, pela necessidade de enfrentamento das situações pontuais de violência, o enfrentamento à violência contra mulher permanece marcado pela lógica jurídica de responsabilização individual, mesmo quando se pulveriza em diferentes instâncias sociais. Violência de gênero em bases escorregadias Compreender e questionar essas categorias de gênero e de judicialização nos coloca alguns embates teóricos e políticos. Do ponto de vista dos embates teóricos, nos impõe a suspensão de alguma estrutura conceitual para que possamos operar com essas concepções, mesmo que as assumamos como instáveis e frágeis. Do ponto de vista político, nos coloca certos paradoxos, como discutido por Joan Scott: “Na lógica, um paradoxo é uma proposição que não pode ser resolvida e que é falsa e verdadeira ao mesmo tempo”. (SCOTT, 2005,p.0014). Nesse sentido, a atuação política, no contexto da Lei Maria da Penha, é paradoxal, já quenos impõe lutar por ela, mas também destrui-la. Reivindicar a sua plena implantação, mas denunciar as linhas de exclusão que ela carrega quando é interpretada de forma restrita ao que se convencionou chamar de sexo biológico. Nos demanda a utilização de estatísticas para salientar a sua importância e a presença de violências tão marcadas do ponto de vista do gênero, mas também nos convoca a questionar os números, rompendo com a categoria de mulher vítima e vulnerável, atentando para as intensas resistências cotidianas e micropolíticas. Nesse sentido, trabalhar ainda com a violência contra mulher é permanecer num contexto bastante demarcado, mas experimentar novas ferramentas teórico-metodológicas. As inquietações e análises presentes neste texto foram produzidas na aproximação e articulação com a rede de enfrentamento à Violência contra Mulher 1
numa capital nordestina, possível através da articulação de projetos de pesquisa, ensino e intervenção desenvolvidos em 2014 e 2015(Programas BDAI e PIBIC/UFAL). 2 Essa escrita tem como base o trabalho: “Gênero e Judicialização da Vida: saberes e práticas em relação à Violência contra Mulheres” apresentado no V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica Saberes e Práticas na Constituição dos sujeitos na contemporaneidade, em 2015. Disponível em: http://repositorio.unisinos.br/ihu/xvii-simposio-ihu/XVII-Simposio-IHU.html#4
Referências BRASIL. Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha, 2006. Disponíve em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm Acessadoem 15 de maio de 2015. BRASIL. Senado Federal. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Violência Contra a Mulher. Disponível em: http://www. senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=131554&tp=1 Acessado em: 1 de setembro de 2013. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2005. MEYER, Dagmar. Teorias e Políticas de Gênero: fragmentos históricos e desafios atuais. Ver Brasileira d Enf, 57 (1), jan-fev, 2004 (13-8) OLIVEIRA, Camilla Felix Barbosa de; BRITO, Leila Maria Torraca de. Judicialização da vida na contemporaneidade. Psicol. cienc. prof., Brasília , v. 33, n. spe, 2013 .Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S1414 -932013000500009&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 10 jun. 2014. PRADO FILHO, Kleber. Uma breve genealogia das práticas jurídicas no Ocidente. RevistaPsicologia & Sociedade, v. 24, n.spe., p.104111, 2012. PRECIADO, Beatriz A sexualidade é como as línguas. Todos podem aprender várias. IHU on-line. Disponível em: http://www. ihu.unisinos.br/noticias/noticias-arquivadas/33425-a-sexualidade-e-como-as-linguastodos-podem-aprender-varias-afirma-icone-do-movimento-transgenerohttp://www. ihu.unisinos.br/noticias/noticias-arquivadas/33425-a-sexualidade-e-como-as-linguastodos-podem-aprender-varias-afirma-iconedo-movimento-transgenero PRINS, Baukje e MEIJER, Irene Costera. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler, Revista Estudos Feministas, v. 1, 2002. SCOTT, Joan W.. O enigma da igualdade. Rev. Estud. Fem. [online]. 2005, vol.13, n.1[cited 2015-05-15], pp. 11-30
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LITERATURA
Carolina Amorim Tão lindas tuas palavras Amo-te mais que o mundo Teu controle, minha voz engasga Presa, no mar afundo Outrora amável e doce Teus jogos já me faziam sufocar Alegar que não quis me ferir Não faria voltar meu ar Os dias passavam, o tempo esvaía Meu mundo preso em tua mão a se fechar Adiantam tuas juras vazias? Se minha alma, sem paz, jazia no mar Minha dor estirada ao chão A cabeça, nebulosa, doída Que teu pranto, menina, foi vão Não pode ter de volta tua vida.
ME FALARAM DE GÊNERO Yan Amorim Me falaram do gênero Que em nossos corpos havia E que por ironia, não sabia Que homem é isso, mulher aquilo Que menino brinca de bola Solta pipa e namora, Que menina gosta de boneca, Sente medo e demora Que homem não chora Porque fraqueza nos piora Que o comando é do marido E que saia é sempre um perigo Me falaram do gênero Da gravata e do colar Do paletó e do vestido Era eu assim no mundo, um tanto perdido Sofrido, disfarçava quem era Mas num impulso já gritava Não mais me ocultava, Era homem e mulher Era Eu.
CONCEIÇÃO CLANDESTINA Luisa Carmen Te ressuscitaram em uma tarde sem promessas [de 26 de dezembro Os presentes já foram trocados, a Família já se amontoou ao redor da mesa, os sorrisos já foram forjados, as desavenças, engolidas As caridades, devidamente distribuídas As promessas, severamente cumpridas, pelo menos até o final da semana seguinte. As crianças já fecharam os olhos Já é tempo do servidor de vermelho arrancar as vestes [felpudas que lhe pregam o corpo no bafo de dezembro. As luzes que asfixiam as plásticas araucárias piscam com a dificuldade do sangue que desbrava uma veia cinquentenária. Conceição, cujo nome nunca espreitou qualquer conversação, Conceição, que sempre fugiu dos álbuns de fotografia, Conceição, cuja ausência parece não gritar durante a refeição, Conceição, convenientemente arredada das memórias da Família. Logo você ousou desonrar seu nome, Conceição, O mesmo de sua mãe. (Que é que vão dizer os vizinhos!) Faço uma pesquisa míngua: Significa concepção. Mamãe me disse que parecias menina comungando, quando te empurraram para casar na Igreja. Dava mais era tristeza, confessou, com a boca torcida em amargor. Era jovem Era boba Era mulher Mais triste só o abandono que te assolou; a Família, que as costas virou. Acabou assistente de dentista, disseram E, no tempo de um suspiro, já o terceiro filho. Conceição, sua estória me ocupa nem cinco minutos do ouvido, mas se há algo por estas décadas aprendido é que o mundo é coberto por água e narrativas e que há algumas que o melhor é que não se deixem vivas. Conceição, eu, que nem te conheço o rosto já me sinto em sua sorte. O esquecimento, li por aí é a verdadeira morte. Nasce gente, morre gente e o mundo fica quase que o mesmo.
Herakut
VAZIA
12 VOZES MALDITAS
Fernando Galvão, sobre a semelhança entre empreiteiras que dão propina e mulheres
“Empreiteira é que nem mulher: ela diz que não, você insiste, aí ela fica ‘ãh,ãh’, e aí quando cede não pode reclamar”
“Ouvi um barulho, achei ótimo, achando que tinha pego minha sogra; surgiu até policial gatinha” Edgard Marx
“B. P., é melhor eu não sair no vozes malditas, você parece ser um aluno com dificuldades de formar”
“Agora deram pra falar que sou cis. Não sou cis não, sou Adriana” Rodolfo Viana, o“garoto voz maldita” da vez
Rodolfo Viana
Adriana Campos
“Se pena fosse terceirizada as únicas pessoas que seriam presas seriam mães”
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ENTREVISTA
MARIA DA PENHA Maria da Penha nasceu em Fortaleza/CE, é mestre em parasitologia pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo e é ícone mundial na luta contra violências de gênero. Em maio de 1983 Maria da Penha foi atacada por seu então marido, Marco Antonio Heredia Viveros, com um tiro nas costas enquanto dormia, deixando-a paraplégica. Viveros foi julgado e condenado, mas saiu em liberdade devido a recursos impetrados por seus advogados de defesa1. Sua história foi levada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), denunciando o Estado Brasileiro por sua omissão institucional em relação às violências de gênero, especialmente aquelas ocorridas em âmbito familiar. Da denúncia adveio condenação do Estado Brasileiro, sendo imposta, dentre outras obrigações, a modificação da legislação brasileira. E assim, o governo federal, presidido por Lula, através da Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres e em parceria com ONG’s, criou um projeto de lei que após aprovado por unanimidade na Câmara e no Senado Federal foi, em 07 de agosto de 2006 , transformado como Lei Federal 11340 - Lei Maria da Penha. A Lei Maria da Penha é um instrumento complexo do ponto de vista jurídico, possuindo não apenas questões inerentes ao Direito Penal, mas também a outras áreas do Direito, utilizando-se de medidas protetivas para resguardar a vítima e sua família.
dessa uma década, você vê avanços na luta contra a violência domestica? Maria: Muitas são as conquistas, porém sabemos que muito ainda falta! Somente no ano de 2013 todas as capitais do país implementaram os equipamentos previstos na Lei Maria da Penha: Delegacia da Mulher, Centro de Referência da Mulher, Casa Abrigo e Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres. Sabemos que nos municípios onde existem esses equipamentos o número de denúncias tem aumentado, porque as mulheres se sentem mais seguras e amparadas para fazerem a denúncia. Porém nos pequenos e médios municípios, onde não existem esses equipamentos fica muito difícil para a mulher romper com o ciclo da violência. Precisamos de mais compromisso do poder público com a implementação destes equipamentos.
VOZ: Você se diz feminista? Como você vê o feminismo? Maria da Penha: Luto pelos direitos das mulheres e dedico a minha vida a isso. Minha luta começou quando fui vítima da violência doméstica e familiar em 1983 e depois que a Lei que leva o meu nome foi sancionada, sinto-me com uma responsabilidade ainda maior e não me permito parar. Viajo por todo Brasil divulgando a Lei Maria da Penha e contando a minha história de vida, pois acredito que a informação pode salvar vidas e somente através da informação as mulheres podem se empoderar para combater esse mal.
VOZ: Fatos como a matéria vangloriando a mulher, recatada e do lar, o estupro coletivo mostram o quanto ainda temos que avançar para acabar com o machismo, qual é a solução que você vê para alcançarmos uma sociedade mais igual e com menos violência contra a mulher? Maria: Sabemos que a mudança cultural precisa passar pela educação. Acho que somente através da educação podemos ressignificar as relações humanas e construir uma sociedade mais justa, igualitária e com equidade de gênero.
VOZ: Nesse ano de 2016, fazem 10 anos da Lei Maria da Penha. Depois
VOZ: Como e quando você percebeu que o seu relacionamento era abusivo?
VOZ: Se você pudesse, o que você mudaria na lei e na aplicação dela? Maria:Acho que o principal agora é que todos os municípios possuam os equipamentos que estão previstos na Lei Maria da Penha, assim como é de extremaimportância a capacitação dos profissionais que trabalham na rede de atendimento à mulher em situação de violência. Dessa forma a Lei será corretamente aplicada. VOZ: Como você vê a lei do feminicído? Maria: Um grande avanço para a luta em defesa dos direitos das mulheres.
Que conselhos você pode dar para as pessoas que estão vivendo essa violência hoje? Maria: Percebi que meu relacionamento tinha se tornado agressivo quando o meuagressor e então marido, o colombiano, professor universitário Marco Antônio Heredia, recebeu a sua nacionalização brasileira. Nesse momento tudo mudou. Na época em que fui vítima da violência doméstica, 1983, não existia nem Delegacia da Mulher no país. A primeira foi inaugurada em São Paulo no ano de 1985, na minha cidade, Fortaleza, foi inaugurada uma Delegacia da Mulher somente em 1986. Hoje a realidade é outra. Hoje temos uma Lei que veio para resgatar a dignidade das mulheres brasileiras. Considero a Lei que leva o meu nome como a carta de alforria das mulheres do meu país. 1 INSTITUTO MARIA DA PENHA. Quem é Maria da Penha? Disponível em: http://www.mariadapenha.org.br/index.php/quemsomos/maria-da-penha. Acesso em: 12 de julho de 2016.
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ARTIGO
VIOLÊNCIAS SEXUAIS E DE GÊNERO NA DITADURA E NA DEMOCRACIA: UMA ANÁLISE DA VIDA DE DILMA ROUSSEFF. Luísa Santos Paulo e Fernanda Araujo Pereira Dilma Vana Rousseff nasceu em 14 de dezembro de 1947 em Belo Horizonte. Aos 17 anos de idade, ingressou na militância, atuando no Comando de Libertação Nacional (COLINA) e na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Então reconhecida por sua grande desenvoltura e evidente capacidade de liderança, teve notória atuação pública, estabelecendo contatos com sindicatos e lecionando marxismo e responsabilidade social. Em janeiro de 1970, Dilma foi presa no centro de São Paulo e, até dezembro de 1972, foi constantemente torturada nos porões da Operação Bandeirantes (OBAN) e do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Ao ser libertada, sofreu as consequências das torturas, como o desenvolvimento de problemas permanentes de saúde – realidade que não a impediu de continuar participando ativamente do cenário político nacional. Dilma Vana Rousseff foi a primeira mulher a atuar como secretária da Fazenda, em Porto Alegre, a primeira mulher a exercer os cargos de ministra de Minas e Energia do Brasil, de chefe da Casa Civil e de presidenta da nação. Hoje, está afastada da Presidência em decorrência de um processo de impeachment. Excepcionando-se questões referentes à legalidade do impedimento, é necessário analisar as violências de gênero que Dilma sofreu ao longo de sua história política, tanto na ditadura quanto na democracia. Para além de uma narrativa pessoal, sua trajetória nos auxilia a compreender como o Estado brasileiro permanece contaminado pelas violências de gênero e quais as consequências disso para as brasileiras. Dilma ocupa um lugar peculiar na história nacional: ela simboliza todo o percurso de direitos das mulheres no país, desde a ditadura militar até a atual crise política, que tem como algumas de suas características marcantes a desigualdade e a violência de gênero. O governo de Michel Temer, empossado em 12 de maio de 2016, é o primeiro, desde Ernesto Geisel (1974 -1979), a não ter nenhuma mulher chefiando um ministério, por exemplo. A atual conjuntura política é marcada por uma instabilidade que é relacionada aos resquícios ditatoriais nas instituições democráticas. No Brasil, os esforços transicionais nunca foram prioritários no processo de mudança de regimes. As primeiras iniciativas pelo direito à verdade começaram timidamente ao final da década de 1990 e a Comissão Nacional da Verdade (CNV) só foi instituída em 2012. Esse interesse reduzido sobre o tema resultou em um expurgo insuficiente dos mecanismos ditatoriais. Nesse panorama – em que há uma “políti-
ca de esquecimento” sobre a ditadura militar, que suprime e negligencia os esforços pelo conhecimento da verdade –, não é espanto que as violências sexual e de gênero sejam subjugadas. Mesmo no âmbito da Justiça de Transição, em que o interesse por essas temáticas deveria ser prioritário, a questão é relegada a um segundo plano, indicando a posição subsidiária da preocupação e do reconhecimento dessas violências pela sociedade. A Justiça Transicional é definida como: [...] conjunto de medidas e mecanismos associados à tentativa de uma sociedade de lidar com um legado de abusos em larga escala no passado, buscando assegurar legitimidade (accountability), justiça e reconciliação.1 É possível perceber, assim, o papel transformador do Direito na Justiça de Transição. O seu objetivo principal é fazer com que um país se reconcilie com o seu passado para construir um novo futuro e os seus efeitos benéficos são notórios – nos países onde ela se efetivou, há um aumento da confiança nos órgãos estatais, bem como no Direito em si. Já naqueles em que os esforços transicionais são diminutos, persiste uma falta de credibilidade nas instituições democráticas, oriunda de uma desconfiança em relação ao Estado. Durante o regime ditatorial, os agentes estatais perpetraram diversas formas de violência contra os corpos que não se conformavam ao modelo de sociedade desejado pelos militares. A tortura desumanizava os indivíduos considerados desviantes, aniquilando, em muitos casos, as suas capacidades de ação e organização. Em relação às mulheres militantes, as violências sexuais e de gênero eram usadas não somente para impedir condutas políticas que faziam oposição ao regime militar, mas também para conformá-las ao comportamento feminino considerado ideal por uma sociedade essencialmente machista e patriarcal. Tendo em vista que a Justiça de Transição é incipiente no Brasil, pode-se afirmar que essa realidade ainda não foi transformada pelo Direito, o que contribui para que as mulheres sejam vítimas de diversas formas de opressão e violência na atualidade. Este artigo evidencia que a justiça transicional deve ser mais atenta à realidade feminina, para que haja uma transformação efetiva na vivência das mulheres e um real estabelecimento daquilo a que um Estado Democrático de Direito se propõe. Em 16 de janeiro 1970, durante o governo de Emílio Médici, Dilma Rousseff foi presa em São Paulo e encaminhada para a recentemen-
te institucionalizada Operação Bandeirantes (OBAN), cujo nome evocava as explorações do território brasileiro empreendidas durante o período colonial, quando os bandeirantes abriam a mata, capturavam índios e os vendiam como escravos. Não por acaso, os métodos empregados pela OBAN eram de extrema violência. Desde 1969, a Operação praticava ataques repressivos, contando com o financiamento de multinacionais como o Grupo Ultra, Ford e General Motors e com doações de industriais e empresários2 Em relatórios prestados para a Comissão Nacional da Verdade (CNV), Dilma descreveu a sua chegada à Operação: Eu me lembro de chegar na Operação Bandeirante, presa, no início de 1970. Era aquele negócio meio terreno baldio, não tinha nem muro, direito. Eu entrei no pátio da Operação Bandeirante e começaram a gritar: “Mata!”, “Tira a roupa”, “Terrorista”, “Filha da puta”, “Deve ter matado gente”. E lembro também perfeitamente que me botaram numa cela. Muito estranho. Uma porção de mulheres. Tinha uma menina grávida que perguntou meu nome. Eu dei meu nome verdadeiro. Ela disse: “Xi, você está ferrada”.3. Durante o período em que a presidenta eleita esteve presa em Minas Gerais e em São Paulo, diversos danos permanentes a sua saúde foram provocados pela intensa tortura sofrida. Após ser libertada do cárcere, Dilma foi diagnosticada com disfunções na tireoide e, além de perder peso e sofrer com os danos psicológicos provocados pelos torturadores, ficou com problemas permanentes no maxilar: Uma das coisas que me aconteceu naquela época é que meu dente começou a cair e só foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada girou para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu. Tomava de vez em quando Novalgina em gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz completou o serviço com um soco arrancando o dente.4 A Operação Bandeirante teve muita notoriedade pelas violências sexuais e de gênero perpetradas contra as militantes. Várias formas de tortura bastante específicas eram amplamente utilizadas – assédio moral, choques nas partes íntimas e dentro dos órgãos genitais, estupros,
abortos forçados e instrumentalização de crianças para causar sofrimento às mães são alguns exemplos. Nesse sentido, relata Eleonora Menicucci de Oliveira, presa na OBAN em 1971, no mesmo período que Dilma Rousseff: Sofri torturas no pau de arara, na cadeira do dragão, levei muito soco inglês, fui pisoteada por botas, tive três dentes quebrados. Éramos torturadas completamente nuas. Com o choque, você evacua, urina, menstrua. Todos os seus excrementos saem. A tortura era feita sob xingamentos como ‘vaca’, ‘puta’, ‘galinha’, ‘mãe puta’, ‘você dá para todo mundo’ ... Algumas mulheres sofreram violência sexual, foram estupradas. Mas apertar o peito, passar a mão também é tortura sexual. E isso eles fizeram comigo. Eles também colocaram na minha vagina um cabo de vassoura com um fio aberto enrolado. E deram choque. O objetivo deles era destruir a sexualidade, o desejo, a autoestima, o corpo. 5 A violência contra a mulher sempre se pautava no desvio de um imaginário de época. Contudo, em relação às militantes, essa inadequação comportamental causava ainda mais incômodo porque, ao se envolverem com política, elas ocupavam um espaço tradicionalmente masculino e se desviavam das funções de “esposa” e “mãe”. Lúcia Coelho, também presa na OBAN na mesma época, relata o sofrimento de um tipo de violência bastante específico: Eles abusam, violentam, de uma maneira ou outra, humilham, tornam objeto. Eles faziam a gente se sentir uma porcaria. Também faziam uma certa gozação, como se eu tivesse me metido nisso sem saber o que era. Eles tinham muito prazer na tortura. Não me pareceu que eles faziam por obrigação. Havia o Ustra [coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra], que era o mais terrível, porque vinha com uma conversinha, com uma diplomacia: ‘Minha filha, como você vai se meter numa coisa dessas, você é de uma família boa, vai prejudicar os seus filhos por essa coisa de comunismo’. E, de repente, inesperadamente, ele lançava uma bofetada.6 A ideia de “mulher desviante” servia de justificativa para legitimar as violências sexuais e de gênero nos corpos femininos, como se as vítimas as merecessem ou estivessem “pedindo” para serem violentadas. Assim, é possível perceber que o Estado brasileiro durante o período ditatorial era especialmente agressivo contra as mulheres e que uma das consequências de uma Justiça de Transição insuficiente é a permanência da desigualdade de gênero tanto nas instituições democráticas, quanto no imaginário da população brasileira. No dia 18 de abril de 2016, a Revista Veja publicou uma reportagem sobre Marcela Temer, a esposa do então vice-presidente, intitulada: “Bela, recatada e do lar”. A matéria valoriza os fatos de que Michel Temer foi seu único namorado; de que ela é bacharel em Direito, mas nunca exerceu a profissão; de que cuida do filho do casal, enquanto o marido trabalha e, principalmente, de que Marcela é uma mulher
discreta. Ainda que essas características em si não sejam um problema, o fato de que elas foram exaltadas em uma das revistas de maior circulação nacional indica que valores bastante reacionários são idealizados na atual conjuntura política. Nesse sentido, é oportuno recordar o episódio acontecido em dezembro de 2014, quando a deputada Maria do Rosário (PT-RS) sofreu ataques por parte do deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), em que ele afirmou que “só não a estupraria, porque ela não merecia”. Essas situações ilustram o incômodo que a sociedade brasileira ainda sente com mulheres ocupando postos de poder. Logo – independentemente das questões atinentes à legalidade e à legitimidade do impeachment –, é inegável que certos ataques feitos a Dilma Rousseff só ocorreram por causa da sua condição de mulher. “Vaca”, “puta” e “sapatão” são adjetivos constantemente atribuídos à presidenta eleita, como exemplos das críticas e dos ataques misóginos a ela dirigidos. Ainda que as políticas governamentais sejam passíveis de reprovação, é perceptível que o atual senador Fernando Collor (PTB-AL) sofreu retaliações bem mais brandas do que aquelas dirigidas a Dilma Rousseff durante o seu processo de impeachment. Assim como durante a ditadura militar, as violência dirigidas à presidenta eleita não buscam apenas destituí-la de sua posição política, mas sim retaliar a sua ousadia de ocupar espaços negados às mulheres. Dilma representou a primeira figura feminina a empossar diversos cargos governamentais e o seu eventual impedimento representa – para além das implicações esperadas por esse procedimento nas conjunturas social, econômica e política nacionais – um forte argumento para aqueles que sustentam que o mundo político não é “lugar de mulher”. É de suma importância compreender que todos os corpos estão inseridos em uma sociedade que determina sobre eles um gênero de acordo com um conjunto de características que nem sempre são relacionadas à genitália com que se nasce. A todas as estruturas biológicas e as formas de agir são conferidos juízos de valor sociais contingentes, ou seja: não existem corpos que tenham por si só um significado sem que estejam inseridos em um contexto específico, assim como não existem contextos socioculturais sem os corpos que os componham. O gênero de uma pessoa não é inerentemente conectado aos seus genitais, mas sim uma categoria construída dentro da sociedade de acordo com a realização de certos trejeitos, de certas maneiras de agir e com o cumprimento de determinadas imposições sociais. A Teoria Queer faz importantes postulações sobre gênero e sexualidade. Por se recusar a acatar definições preestabelecidas, o queer não aceita uma determinação do que são o “feminino” e o “masculino” como dados preexistentes; em vez disso, à luz de seus pressupostos teóricos, “feminino” e “masculino” são conceitos socialmente construídos, sendo também passíveis de desconstrução. Judith Butler – uma dos maiores expoentes dessa vertente teórica – afirma: “não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero; essa identidade é performativamente construída pelas próprias
‘expressões’ tidas como seus resultados.”5 Nesse panorama, percebe-se que as sociedades se valem de mecanismos, como as palavras e os atos, para conformar os corpos (que não necessariamente precisam ser institucionalizados no aparato estatal) a papéis preestabelecidos. Assim – considerando o conceito de gênero enquanto performatividade – podemos situar as violências perpetradas por agentes da ditadura e as sofridas pelas mulheres em pleno Estado Democrático de Direito como duas faces da mesma moeda: formas de conformação dos corpos femininos a padrões de gênero rígidos, frutos de uma sociedade machista e patriarcal. O silêncio que recai sobre as violências sexuais e de gênero – sobretudo durante os momentos de transição de regimes – dificulta as formas de responsabilização posterior dos agentes ditatoriais. A inação do Estado fortalece os pressupostos da violência – deixa implícita a necessidade de punição para quem desvia dos padrões de gênero impostos socialmente, reiterando a subjugação feminina e atravancando avanços pretendidos no que se refere aos direitos das mulheres. Em se omitir, a Justiça de Transição perde a oportunidade de deixar o legado machista e misógino do regime para trás, fato que permite a perpetuação dessas práticas violentas em um Estado Democrático de Direito. Em face de todo o machismo e toda a misoginia presentes na conjuntura política nacional, dos quais sequer uma presidenta eleita escapou, tornam-se ainda mais necessários o resistir e o lutar do dia a dia, para que nós – mulheres – possamos dar um novo significado a vivência feminina e assumir o lugar que nos é devido na construção do futuro do Brasil.
Referências MEYER, Emílio Peluso Neder. Responsabilização por graves violações de direitos humanos na ditadura de 1964-1985: a necessária superação da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n° 153/DF pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2012. 280f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório da Comissão Nacional da Verdade, v.1: 2011-2014. Brasília: Governo Federal, 2014. 976 p. 3 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório da Comissão Nacional da Verdade, v.1: 2011-2014. Brasília: Governo Federal, 2014. 976 p. 4 MERLINO, Tatiana, OJEDA, Igor. Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São Paulo: Caros Amigos, 2010 5 BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. 8 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. 1
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INDICA
HOW TO GET AWAY WITH MURDER E PERSONAGENS FEMININAS FORTES Letícia Leite
“A única coisa que separa mulheres negras de qualquer outra pessoa é a oportunidade”. Foi o que disse Viola Davis ao receber o Emmy de melhor atriz dramática de 2015. Em seu discurso, ela agradeceu às poucas atrizes negras ali presentes por resistirem em espaços em que não eram reconhecidas e aos roteiristas da série por redefinirem o que é ser bonita, sensual e negra. Redefinição é a palavra que ilustra o que tem sido criado pelo elenco de How to Get Away With Murder (2014), guiado pelo protagonismo inabalável de Viola no papel de Annalise Keating. Diversidade é a marca do elenco, que conta não só com personagens segundo a normatividade branca, mas também com fortes personagens negras e mexicanas, nenhuma delas representada em posições de servidão, fato inusitado nas séries de televisão. Annalise é advogada e professora na Universidade de Middleton. É vista como cruel e intimidadora por seus colegas advogados e alunos, o que em muito reflete a reação da sociedade ao se deparar com uma mulher em posição de poder, principalmente por se tra-
tar de uma mulher negra. O impacto da protagonista pode ser explicado pelas teorias do sociólogo Pierre Bourdieu. O autor, em seu livro Poder Simbólico (1989), explica ser este um signo que permeia todas as relações sociais, trazendo consigo algo para além da materialidade. Ele é construído socialmente de acordo com os padrões majoritários, de modo a não apenas hierarquizar as relações, mas também como instrumento de dominação. O impacto da série é claro: Annalise corrompe o modus operandi por ocupar um espaço jamais projetado para ela. Uma mulher negra que transcende esses paradigmas de dominação carrega em si muito simbolismo: ela não é a figura estética clássica e sua presença desafia as estruturas de poder. Na série, as personagens femininas são agressivas, imponentes e fortes – transgridem, em certos pontos, a ordem compulsória de heteronormatividade. A série mostra o conflito e a pressão que essas mulheres enfrentam ao romper com seus papéis sociais. Michaela (Naomi King) é constantemente apontada por seus colegas por se impor e por
ser controladora, sendo sempre constrangida pelo fato de homens não gostarem dessas características, sem contar as insinuações acerca de sua vida sexual. Outra forma de transgressão tem sido por meio da representatividade LGBT - a diversidade sexual faz parte da série, que, mais uma vez, rompe com os padrões televisivos. A escritora da série, Shonda Rhimes, não retrata as personagens de forma exótica e sexualizada, mas também não as trata com assexualidade - estratégia comum nas novelas globais, em que a aceitação é submetida à discrição. A série busca a representatividade sem apelar para os fetiches do expectador, mostrando, novamente, que veio para representar e transgredir. É assim que How to Get Away With Murder continua a surpreender. Não apenas pela narrativa brilhante, por seus personagens complicados ou pelos assassinatos encobertos. Suas transgressões mantêm o público conectado e, se depender do talento de suas mulheres, assim permanecerá por muito tempo.