Voz Acadêmica: A Nova Onda dos Movimentos Sociais

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A NOVA ONDA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

ACADÊM I C A REVISTA ILUSTRADA OFICIAL DO CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA


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Sumário Editorial 03/ Editorial Com a palavra: Moderação 03/ Conto A Reunião

Luciana Campos

04/ Artigo O novo irracionalismo brasileiro: breve ensaio sobre a intolerância Cirilo Augusto Vargas 06/ HQ Manifestação Gabriela Conrado - Ilustração: Sarah Haras 08/ Artigo A arte como ferramenta do ativismo feminista Aline Piteres Porto

EXPEDIENTE

10/ Artigo Movimentos sociais e política institucional - complementares ou antagônicos? Helena d’ Agosto M. Fonseca, Gabriela S. Conrado, Raquel G. Gonçalves 13/ Artigo Re(d)ação: mulheres que ajud(ar)am a escrever a história feminista no Brasil Verônica Oliveira Souza 16/ Principal Propriedade urbana, desigualdade e repressão estatal ilegítima Helena N. C. de Souza, Jéssica N. R. Takenaka, Thales A. N. Viote 16/ Vozes Malditas As vozes que ninguém gostaria de ter ouvido 20/ Indica Cândido Portinari

As ondas são formadas ainda em alto mar, devido à ação dos ventos que sopram em alguma direção. Para direita, para esquerda, para frente ou para trás. As ondas ganham força e massa ao percorrerem o oceano até que num estardalhaço chocam-se com as rochas ou persistem até a beira da praia, já sem força, curvam sob si mesmas e voltam a ser massa líquida do oceano. A alegoria é simples: novos ventos sopraram há alguns anos atrás e foram o estopim para uma nova configuração dos movimentos sociais no mundo inteiro. Desde 2013 reconfigurava-se a maneira de se protestar. Já vivíamos o advento da internet e das redes sociais. A própria Primavera Árabe foi praticamente acompanhada ao vivo, infelizmente em cores. Os protestos se organizavam em clicks, imagens de abusos policiais circulavam em instantes. Era a nova onda dos movimentos sociais. No entanto, uma onda dessa magnitude enfrenta vários “rochedos” ou empecilhos. O primeiro deles é a força repressiva do aparato policial que provoca violências contínuas. Não fica de fora também o poder do

Luciana Campos

Por Moderação agronegócio que busca barrar os movimentos ambientalistas ou os direitos indígenas. E não nos esqueçamos das medidas austeras que tentam impedir protestos de livre expressão e promovem perseguições políticas, as quais têm se expandido ultimamente para o solo das universidades públicas de maneira arbitrária e covarde. Agora resta saber se essa onda que segue lutando pelo feminismo, pela moradia, pela arte, pela liberdade de expressão, pela universidade pública, pelos direitos humanos vai se curvar sob si mesma ou ainda irá percorrer longas distâncias nessa maré incerta que vivemos. É nesse sentido que esta edição do Voz Acadêmica se consolida como um retrato, mesmo que breve, sobre os movimentos sociais, em especial no Brasil, que se junta a essa nova onda. Um retrato que se torna necessário, em virtude dessas lentes austeras que nos governam, que nos obrigam a reivindicar o óbvio. Assim, persistimos entre a maré baixa e a alta, entre a oscilação da lua, entre os ventos, numa esperança equilibrista pelo apelo democrático. REPRODUÇÃO / DENISE DALZELL - DENISE DALZELL ATELIER

Edição 1 - 2018 MODERAÇÃO:

Gabriela Conrado

CENTRO ACADÊMICO DE CIÊNCIAS DO ESTADO: Luciana Cristina Campos PÓS-GRADUAÇÃO:

Cirilo Augusto Vargas

GRADUAÇÃO EM DIREITO: Ícaro Del Rio Pertence Gomes Jéssica Natsumi Takenaka Julia Coutinho G. Ferreira Pietra Vaz Diógenes da Silva Verônica Oliveira Souza DIAGRAMAÇÃO: IMPRESSÃO:

André Gomes de Menezes O Lutador - Gráfica e Editora

INSTITUIÇÃO RESPONSÁVEL: Centro Acadêmico Afonso Pena - CAAP Av. João Pinheiro, 100. Centro. Belo Horizonte/MG. 30130-180 (31) 3409-8629

A obra Protest, de 2017, da artista estadunidense Denise Dalzell, captura uma cena da Marcha das Mulheres em Nova Iorque em janeiro de 2017. Essa pintura feita em acrílico e pinceladas coloridas retrata a diversidade dos movimentos sociais pela variação de tonalidades entre os elementos do quadro. Outra característica peculiar da obra é posicionar o seu observador “atrás do quadro” como se ele também participasse da manifestação, provocando uma sensação de “ser levado”, tal qual uma onda nos empurra e atrai. Nesse sentido, escolheu-se essa imagem como uma síntese simbólica da pluralidade dos movimentos sociais que nos envolvem na contemporaneidade.


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A Reunião Aos poucos eles foram chegando: homens e mulheres, das mais variadas idades mas com o mesmo semblante, borrados de suor e de cansaço. A reunião estava marcada para 17 horas, horário de Brasília. Era a primeira assembleia que iriam fazer. José Duarte organizou em um pequeno caderno de anotações os lembretes e informes que não poderiam ser esquecidos. Escreveu rapidamente, com uma caneta que já estava acabando a tinta. Escreveu forte, marcou bem o papel, para que ele também não se esquecesse do que precisava ser dito. E do que as pessoas precisavam saber. Talvez uma ideia, uma única palavra que ficasse impressa na cabeça dos moradores já lhe garantiria a continuidade. O não esquecimento. Repassava todas as palavras que tinha ouvido no último encontro com a empreiteira. Mecanicamente, foi colocando aos poucos as cadeiras na parte externa da casa. Fez um círculo. Em uma mesinha ao lado sustentada por uma viga de madeira equilibrava uma garrafa de café, uma jarra de água e alguns copos de vidro. Tinha organizado tudo. Passou um pano nas cadeiras que estavam empoeiradas pela ventania quente que o tufão trouxe, mas ainda assim as marcas ainda não tinham desaparecido. Os mesmos rostos, cravados pela crueza da vida, o cansaço a entorpecer-lhes o entendimento, a boca a articular sons, com os olhares insistentes foram chegando e sentando, esperando ansiosos. As mãos frágeis e marcadas pela labuta seguravam firmes os copos. Os corpos contorciam-se diante da incerteza que estavam prestes a vivenciar. Parece ser sempre assim: o corpo dá sinais, antecipa a tragédia, amortece a dor, congela o impacto. Foi quando José Duarte começou a falar. Foi modulando a voz, aproximando-se do tema, encorpando as palavras. A empreiteira tinha ganhado o direito de concessão para a construção de uma hidrelétrica na região em que moravam. Era preciso que se organizassem, reivindicando o direito de permanecer ali. A permanência ali poderia tornar a vida ainda mais frágil, mais dura. Surgia no horizonte a etérea possibilidade de irem para um outro local, mais seguro diziam, com outros benefícios. Os incentivos viriam com a concordância. Seriam retirados dali como quem retira um conjunto de objetos e transporta-os para outro lugar, como quem deseja livrar-se de algo indesejado e lança-o para bem longe. José Duarte lia e os pensamentos se remexiam em sua cabeça. – Até aqui querem que deixemos de existir, disse Dona Carmen, levantando-se e apoiando-se no braço de seu marido, João dos peixes. – Nossas vidas valem muito pouco. Há vidas que valem mais do que outras. Só queremos ter o direito de existir. Será que vão nos permitir continuar? Cida, Maria, Maura, Dagoberto, Luiz, Ada começaram a falar ao mesmo tempo, querendo explicações sobre o que estava prestes a acontecer com a vida deles. – Eles podem nos tirar daqui? – perguntava Maura, com o olhar aflito; – Não podemos deixar tudo pra trás simplesmente pela grandiosidade do outro, disse Cida; – E agora, para onde vamos? – interrogava Ada. José Duarte pediu a vez para falar e explicou que não restava alternativa senão resistir mais uma vez. Abriu o caderninho com as anotações. Desenhavam-se ao mesmo tempo em sua face a indignação, a coragem e o cansaço. No fundo, sabia que precisava preparar aos outros e a si mesmo para um grande embate: lutar pela vida, pela água, pela terra. Pelo direito de existir. Só continuaremos a existir em conjunto. O que precisamos é nos movimentar, enredados em uma única voz. Aquele pequeno encontro era o início de um movimento: na manhã seguinte, antes que o sol pudesse projetar seus raios, toda a comunidade estava cercada: juntos, saíram em direção à prefeitura, para a primeira reunião com o prefeito.

Luciana Campos Graduanda da Faculdade de Ciências do Estado da Universidade Fedaral de Minas Gerais - UFMG

Getting involved (“Se envolvendo”, em português) é um trabalho feito com carvão, pela artista canadense Victoria General, que tenta capturar a rotina das pessoas, junto com suas expressões, em traços rápidos e arrojados, dentro do ambiente urbano inexplorado.

REPRODUÇÃO / VICTORIA GENERAL - SAATCHI ART


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Artigo

O novo irracionalismo brasileiro: breve ensaio sobre a Cirilo Augusto Vargas intolerância

Defensor público, mestrando em Processo Civil pela UFMG.

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m 2011 estreou no Brasil uma das obras mais controversas do cinema, intitulada A Serbian Film – Terror sem limites, produzido no ano anterior. Após apresentação em alguns festivais nacionais, o filme deixou de ser veiculado por conta de decisão liminar proferida pela Justiça Federal. Entendeu-se que sua exibição violava o Estatuto da Criança e do Adolescente. A medida judicial perdurou até julho de 2012 e foi revogada mediante a constatação de que “não há mais razões de natureza jurídica que impeçam a exibição do filme ‘A Serbian Film’ em todo o território nacional”. De forma predominante, quem teve acesso ao seu conteúdo no período, aplaudiu a proibição. Isso porque A Serbian Film não encontra paralelos em termos de exposição da violência. Representa, sob o rótulo de “horror extremo”, o entretenimento por meio do choque, a ele se resumindo. Não há enredo apto a provocar debate. Por isso a obra é banal e não alcançou status significativo na esfera do cinema. A situação narrada esconde um problema de ordem constitucional, envolvendo o direito à liberdade de expressão: todos que formaram opinião sobre o filme somente tiveram oportunidade de fazê-lo pela via do download ilegal. Logo, quando o Estado praticou atividade substitutiva do juízo coletivo, tendo analisado e considerado o longa metragem impróprio para acesso de pessoas maiores e civilmente capazes, ao fim e ao cabo ele não impediu ninguém de fazê-lo caso desejasse (independentemente da faixa etária). A medida liminar funcionou, ao revés, como um gatilho para o marketing ao qual a obra provavelmente nunca faria jus, caso fosse regularmente exibida no circuito de cinema. Em síntese: a busca pela moralização artística (absolutamente questionável) redundou em estímulo à violação de direitos autorais. O exemplo suscita dúvidas que não poderiam ser mais atuais: qual o conceito de arte? A arte depende do consenso para ser classificada como tal? É legítimo que parcela da população (ou que o próprio Estado) se apodere do “juízo de conveniência” de um trabalho artístico – sob o pretexto de proteger o interesse público – e prive a parcela restante do direito à formação de opinião? Quais são as características da censura e em que medida nossa sociedade atual convive com discursos de intolerância dirigidos à preservação da moral e dos bons costumes? As questões são complexas e não temos pretensão de exaurir o tema dentro dos estreitos limites deste texto. O conceito de arte é perigoso porque está longe de ser unívoco, histórica e filosoficamente. E a definição pode pecar pela

inutilidade, por revelar-se restritiva. Arte é técnica, representação, estética e muito mais. O que importa, nesses termos, é fixar um princípio associado à arte, a criatividade, que se opõe à contínua repetição de informações sustentada pela cultura de massas. Segundo Débora Pazetto Ferreira (2014, p. 312), arte deve ser pensada como “poiesis, isto é, como a capacidade de criar novas situações, de imprimir sentidos, de questionar hábitos, de instaurar outros mundos, seja através da ciência, da filosofia, da programação de sistemas, da política ou da arte em sentido restrito”. Dessa feita, é aceitável que o Estado (ou um grupo social) trace a fronteira da experiência artística tolerável? Pensamos que não. Uma das funções essenciais da arte é provocar o dissenso interpretativo, fruto do estranhamento. O consenso é incompatível com a relatividade, seu traço fundamental. Por isso ela não está vinculada à noção de identidade, mas sim de alteridade, característica do que é outro. Como bem pontuou Bernardo Carvalho (2017), “Por ser reflexiva, a arte é questionável ou não é arte. Não existe arte indiscutível”. E mais: arte é, invariavelmente, um discurso de segundo grau. Ou seja, a realidade do objeto e a sua representação são coisas rigorosamente diversas. A opinião de um personagem não equivale à do autor do livro. Não basta a ilustração de um elfo em O Senhor dos Anéis para que a criatura exista. É totalmente descabido, por exemplo, vislumbrar pedofilia em uma pintura que retrate adultos e crianças nuas no mesmo contexto. Tais premissas revelam o atraso provinciano da Assembléia Legislativa do Espírito Santo, que aprovou, no dia 23 de outubro deste ano, projeto de lei que proíbe pornografia e nudez em exposições artísticas e culturais em espaços públicos no Estado, sob o argumento de “promoção do bem-estar das famílias”. Na mesma linha do posicionamento do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, que prometeu recentemente barrar a chegada da Queermuseu – cartografias da diferença na arte brasileira ao Museu de Arte do Rio. Atendendo aos reclames da sua base eleitoral, rotulou a mostra como “exposição de pedofilia e zoofilia”. Pensar sobre arte é refletir sobre alteridade e, consequentemente, pluralismo. É enxergar a possibilidade de ideias diametralmente opostas coexistirem no mesmo espaço (democrático) de debate. Cabe então investigar os motivos pelos quais o diálogo tem se revelado tão difícil no Brasil, especialmente em relação ao campo artístico, terreno fértil para manifestações ostensivas de autoritarismo e intolerância. Em 2017 o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, buscando traçar o índice de

propensão do brasileiro ao apoio a posições autoritárias1, realizou pesquisa intitulada Medo da violência e o apoio ao autoritarismo no Brasil. Foram propostos 17 enunciados, submetidos a 2.087 entrevistados em uma amostra representativa da população maior de 16 anos, em 130 municípios. Tais enunciados se desdobram em três categorias: “submissão à autoridade”2, “agressividade autoritária” e “convencionalismo”. Os dados levantados são alarmantes. Constatou-se, por exemplo, que 81% dos entrevistados concordam que “A obediência e o respeito à autoridade são as principais virtudes que devemos ensinar às nossas crianças”, 60% sustentam que “A maioria de nossos problemas sociais estaria resolvida se pudéssemos nos livrar das pessoas imorais, dos marginais e dos pervertidos” e, para 75% dos participantes, “A ciência tem o seu lugar, mas há muitas coisas importantes que a mente humana jamais poderá compreender”3. O escore médio de apoio a posições autoritárias foi de 8,10 , “o que pode ser considerado como indicativo de forte propensão de adesão às questões contidas nas subdimensões analisadas e de forma geral ao autoritarismo”. (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2017, p. 14). O endosso de posições autoritárias (materializadas na intolerância e na aversão ao pluralismo) provoca o mais amplo impacto social, seja na expansão da repressão penal e na flexibilização de garantias processuais (Processo Penal de exceção), seja no discurso de ódio contra minorias e na cruzada puritana de combate a qualquer manifestação intelectual que se revele contrária aos parâmetros estabelecidos de moral e de bons costumes. E a fonte do problema remete ao medo e à perda de credibilidade das instituições públicas, que, aparentemente, possuem uma agenda de interesses divorciada da realidade de esmagadora parcela da população. Tais sintomas são bem sintetizados através da seguinte passagem da pesquisa conduzida pelo FBSP: Vivemos amedrontados pelo crime e pela violência e, em um momento de profunda crise de legitimidade das instituições democráticas, estamos sob ataque de grupos que professam sua fé na violência como forma de governar e de, paradoxalmente, pacificar a sociedade, emulando uma espécie de vendeta moral e política que nunca tem fim e que parece ganhar cada vez mais adeptos ao reverberar ódios, preconceitos e intolerância. Vendeta que, não obstante as evidências contrárias, desconsidera a arquitetura institucional


5 da segurança pública e da justiça criminal; desconsidera, sobretudo, dinâmicas sociais que aceitam a violência doméstica, a violência de gênero, a violência agrária, as agressões nos bares, no transporte público e/ou a dos vários outros conflitos interpessoais que extrapolam a tradicional imagem das polícias versus os “bandidos”, cada vez mais “organizados”, “audaciosos” e “perigosos”. (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2017, p. 7)

Retomando o debate inicial, é fundamental ter em mente que o ato de questionar a arte (ou o valor estético e criativo da obra) não pode pressupor o seu silenciamento, pela via pública institucionalizada (exercida no Brasil durante o regime militar, especialmente, pelo Serviço Nacional de Informações – SNI e pelo Departamento de Ordem Política e Social – DOPS) ou pela simples força bruta de grupos privados. Nessas hipóteses, o que há é o “exame de trabalho artístico a fim de filtrar e proibir o que é inconveniente, do ponto de vista ideológico ou moral”4. Em outras palavras, censura, fenômeno antigo e global, voltado para moldar o caráter da população e eliminar, em última instância, espaços de dissidência política ou artística. Entendemos que há tentativa de censura da liberdade de expressão, por exemplo, quando se sustenta, sem respaldo legal, o “uso de dinheiro público” para custear eventos artísticos supostamente imorais ou pervertidos. A Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet – 8.313/91) viabiliza a captação de verba como renúncia fiscal, um incentivo dedutível no imposto de renda a pagar. No incentivo fiscal, o Ministério da Cultura apenas analisa, aprova e autoriza a execução dos projetos. O proponente (pessoa física ou jurídica que apresenta o projeto) é o responsável por captar recursos com patrocinadores ou doadores. Em outras palavras, não há repasse direto de recursos da União. O que existe por trás do argumento é, na verdade, um inconformismo mal disfarçado quanto ao juízo de valor artístico do projeto, a cargo do Ministério da Cultura (um recurso de retórica oriundo do senso comum). Acontece que, em função do relativismo intrínseco à arte, a própria Lei Rouanet prescreve o óbvio, em seu art. 22: “Os projetos enquadrados nos objetivos desta lei não poderão ser objeto de apreciação subjetiva quanto ao seu valor artístico ou cultural.” O sufocamento da manifestação criativa humana, por obra do novo Tea Party5 tupiniquim ou pela empoeirada extrema esquerda, viola o direito fundamental à liberdade de expressão, reconhecido na Constituição da República de 1988 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 19). No caso da direita dita “liberal” é de bom alvitre pontuar que a patrulha puritana denuncia uma contradição comportamental: repudia-se a intervenção do

Estado em matéria econômica com o mesmo fervor que se defende o paternalismo de grupos ou entidades conservadoras no campo das liberdades civis. Resta demonstrado que a submissão à autoridade não tem coloração ideológica e pode conduzir, em qualquer caso, à censura. Encerramos com um trecho da decisão do Juiz Federal Ricardo Machado Rabelo, proferida em 2012, que liberou a exibição de A Serbian Film em território nacional. A reflexão, ainda que tardia, não poderia ser mais certeira. Uma palavra final: vi o filme. Do início ao fim. O filme é realmente muito forte. Verdadeiramente impactante. O enredo é crudelíssimo. Se é arte eu não sei. Pode ser para alguns, para outros não. O que sei, contudo, é que se estivesse no cinema teria me levantado e ido embora. No entanto, como juiz, não posso ser o seu censor no território nacional, como me diz a Constituição Federal. Aliás, o que me garante a Carta Constitucional – não apenas a mim, mas a todo brasileiro – é o direito de me indignar, de recusar a vêlo ou até mesmo o direito de me levantar e deixar a sala de sessão, levando comigo as minhas conclusões e convicções acerca da natureza humana, suas dimensões, limites e idiossincrasias. Aprendi com o desassossegado Fernando Pessoa “Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura” (...). Fica, assim, desde já liberada a exibição do filme “A Serbian Film” no Brasil, como permite e autoriza a Constituição Federal.

Para o psicanalista alemão Erich Fromm, o indivíduo autoritário é, a um só tempo, submisso e dominador; isto porque é submisso em relação àqueles que percebe como mais fortes – autoridade -, e dominador diante daqueles que julga mais fracos. (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2017, p. 9).

1:

2: “A “submissão à autoridade” contribui para o potencial antidemocrático pois indica a receptividade dos indivíduos de serem orientados por forças externas mais fortes sem questionamentos ou criticidade. Significa dizer que apenas este líder forte pode indicar os caminhos que a sociedade deverá percorrer, ainda que impliquem opressão de grupos sociais minoritários dentro desta mesma sociedade, e a indisposição e a desvalorização do dissenso próprio de uma arena política democrática.” (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2017, p. 11). 3: Para acesso aos dados completos obtidos através da pesquisa: [http://www.forumseguranca.org.br/]. Acesso em 30.10.2017.

Definição de censura extraída do dicionário Michaelis on line, no seguinte endereço eletrônico: [http://michaelis.uol. com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/ censura/]. Acesso em: 31.10.2017.

4:

O movimento Tea Party norte-americano é composto por membros ultraconservadores do partido Republicano, que sustentam, predominantemente, a radical redução da carga

5:

REPRODUÇÃO / DEGENERATE ART EXHIBITION GUIDE - LEICESTER MUSEUM WEBSITE

O poster é referente à Die Ausstellung Entartete “Kunst” – “Exposição da ‘Arte’ Degenerada”, com aspas sarcásticas – de julho a novembro de 1937, evento organizado pelos nazistas que reuniu 5 mil obras para desmoralizar os grandes nomes da arte moderna. Obras de Kandinsky, Picasso, Paul Klee e muitos outros foram exibidas ao lado de desenhos de internos de asilos psiquiátricos. Os quadros estavam mal colocados e havia comentários sarcásticos e depreciativos escritos nas paredes. tributária e dos gastos públicos com políticas sociais.

Referências Bibliográficas CARVALHO, Bernardo. A lei do mais burro. Folha de S. Paulo, caderno Ilustríssima, p. 2, 1º de outubro de 2017. DICIONÁRIO MICHAELIS ON LINE. Editora Melhoramentos Ltda. 2017. Disponível em: [http:// michaelis.uol.com.br/]. Acesso em 30.10.2017. FERREIRA, Débora Pazetto. Investigações sobre o conceito de arte. 318 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Medo da violência e o apoio ao autoritarismo no Brasil – índice de propensão ao apoio a posições autoritárias. São Paulo, 2017, 39p. Disponível em: [http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/ uploads/2017/10/FBSP_indice_propensao_ apoio_posicoes_autoritarios_2017_relatorio. pdf]. Acesso em: 31.10.2017.


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Ilustradora: Sarah Haras Aquarelista e estudante de artes plásticas da Escola Guinard. Administradora da pagina “Noventeiseis” no Facebook

HQ


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Artigo

A arte como ferramenta do ativismo feminista

Aline Piteres Porto

Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

O

presente artigo intenta introduzir, brevemente, o valor de manifestações artísticas como ferramenta de um ativismo político, focado na questão feminista. Assim como em todos os demais espaços em que a mulher luta para ter voz, no mundo artístico não é diferente. Enquanto a sociedade patriarcal se esforça para manter a mulher submetida e excluí-la de espaços como o da arte, as mulheres usaram e usam desta, dentre outras manifestações, para reagir contra essa cultura imposta. O feminismo tem ganhado cada vez mais espaço, sendo objeto de debate dentro das universidades e retratado em filmes de ampla circulação. No entanto, a violência contra a mulher é permanente, e se está longe de um status de segurança e reconhecimento da mulher. Com o advento das redes sociais, o uso de manifestações artísticas para expressar a inconformidade com a violência de gênero e com a cultura machista e misógina tem se tornado mais visível e recorrente. Historicamente, no entanto, Ana Mae Barbosa, especialista em arte e educação, aponta como o universo das Belas Artes se mostrou fechado aos trabalhos com essa abordagem, ao tratar da dificuldade que as mulheres tiveram em se assumir feministas. “Os argumentos incluíam ‘Não quero vínculos com exposições só de mulheres, sou tão importante quanto um homem, não quero ser vista separadamente’ e ‘Para expor não preciso apelar para gênero; esse é o caminho das artistas sem qualidade’. Ficou claro que,

segundo pensavam, perderiam status caso fossem vistas como artistas mulheres”1. Nesse sentido, Linda Nochlin escreve desconstruindo uma importante questão que intitula seu trabalho: Why have there been no great women artists?2,3. O artigo traz a ideia de como o simples questionamento do porque não existiram grandes mulheres artistas, como Picasso ou Da Vinci, se respondido corretamente, pode gerar uma reação em cadeia, desafiando as divisões intelectuais e derrubando argumentos que corroboram a perpetuação da submissão do gênero feminino à cultura patriarcal. Àqueles que dizem que as mulheres não se destacaram no mundo artístico por terem um tipo de arte diferente, a análise detida apontará para um maçante processo histórico de exclusão e determinação de funções sociais, que impediam que elas se dedicassem totalmente ao estudo da arte. “Privadas de encorajamentos, estímulos educacionais, e gratificações, é quase inacreditável que mesmo uma pequena porcentagem de mulheres realmente buscou uma profissão na arte4”5. No entanto, apesar de todas as dificuldades inerentes à condição de mulher no mercado da arte, esta foi e tem sido usada como eficiente instrumento de ativismo político, dando visibilidade à causa feminista. A interconexão entre arte e ativismo nasce da indignação, de um movimento de contracultura, fortemente difundido nos anos 60, de desconstrução da cultura normativa e disciplinar e das relações de poder por ela

impostas, como aborda Foucault. “Quando um sujeito chega ao ponto de expor sua indignação em protesto, ele já foi transpassado por uma série de emoções, alimentadas por conflitos e opressões sociais6”. Constrói-se, então, uma noção de arte conceitual, em que a ideia é o foco da construção e busca-se colocar o espectador em contato com a mensagem política a ser transmitida, de maneira que o discurso muitas vezes não atinge. Assim, prova-se a efetividade da arte como protesto pacífico, em uma espécie de “contágio político”7. Na década de 60, o movimento feminista tomou força lutando contra representações de gênero e sexualidade através das artes visuais e performáticas. As artistas utilizaramse de intervenções sobre o próprio corpo, desconstruindo estereótipos e valorizando figuras históricas e a anatomia feminina, como fez Judy Chicago8. Até hoje, o feminismo tem como um dos principais signos o corpo feminino, que é usado para expressar inconformidade e apontar erros da sociedade machista em que estamos inseridos. Um exemplo são as sessões fotográficas realizadas, principalmente, no contexto universitário, como método artístico de ativismo político acessível às jovens, em que elas podem mostrar o que não querem deixálas falar. Revela-se, então, outra característica da arte como instrumento de protesto: sua acessibilidade a minorias e grupos marginalizados. Arte é materialização da cultura, matéria prima que torna possível a

REPRODUÇÃO / THE GUERRILLA GIRLS


9 visualização de quem somos, onde estamos e como sentimos9, e vai muito além do que está exposto em museus e galerias. Em 1989, um grupo de anônimas artistas femininas, Guerrilla Girls, produziu o pôster “Do women have to be naked to get into the Met. Museum?10”. O nome fala por si. O grupo fez uma pesquisa levantando o número de trabalhos femininos no Metropolitan Museum of Art, e o número de nudes femininos. 5% dos artistas eram mulheres, porém 85% por cento dos nudes eram femininos. O protesto foi apresentado para o Public Art Fund of New York City, mas rejeitado. Em retaliação as artistas alugaram um espaço publicitário e expuseram o pôster, alcançando grande visibilidade. Apenas em 2007 essa obra foi adquirida pela National Gallery of Art11. A efetividade desse tipo de manifestação pacífica é muitas vezes questionada na sociedade. No entanto, aos poucos, a mulher BARBOSA, Ana Mae. Uma questão de política cultural: mulheres artistas, artesãs, designers e arte/ educadoras. 19º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Bahia, 2010.

1:

2:

Por que não existiram grandes artistas mulheres?

NOCHLIN, Linda. Why have there been no great women artists? A shortened version of an essay in the anthology Woman in Sexist Society: Studies in Power and Powerlessness. Edited by Vivian Gornick and Barbara K. Moran. New York: Basic Books, 1971.

3:

4: Deprived of encouragements, educational facilities, and rewards, it is almost incredible that even a small percentage of women actually sought a profession in the arts. 5: NOCHLIN, Linda. Why have there been no great women artists? A shortened version of an essay in the anthology Woman in Sexist Society: Studies in Power and Powerlessness. Edited by Vivian Gornick and Barbara K. Moran. New York: Basic Books, 1971.

MIRANDA, Rodrigo. Ativismo Artístico, a arte como protesto político. Pós-graduação em jornalismo cultural – UERJ, Rio de Janeiro, Julho de 2013.

6:

MIRANDA, Rodrigo. Ativismo Artístico, a arte como protesto político. Pós-graduação em jornalismo cultural – UERJ, Rio de Janeiro, Julho de 2013.

7:

Judy Chicago é uma artista, autora, feminista, educadora e intelectual cuja carreira atualmente abrange cinco décadas. Sua influência tanto dentro como fora da comunidade artística é atestada por sua inclusão em centenas de publicações em todo o mundo. Em 1974, Chicago voltou sua atenção para o tema da história das mulheres para criar seu trabalho mais famoso, The Dinner Party, que foi executado entre 1974 e 1979 com a participação de centenas de voluntários. Este monumental projeto multimídia, uma história simbólica de mulheres na civilização ocidental, foi visto por mais de um milhão de telespectadores durante as dezesseis exposições realizadas em locais que abrangem seis países. O Dinner Party tem sido objeto de inúmeros artigos e textos de história da arte e está incluído em inúmeras publicações em diversos 8:

tem conquistado espaço, principalmente através da visibilidade alcançada com esses movimentos. Depois do boom da década de 60, a partir de 1980 foi aberto o espaço para a arte feminista nas grandes galerias, às quais a mulher não tinha acesso. No entanto, não podemos ignorar as dificuldades inerentes ao ativismo através da arte. Atualmente, a velocidade dos meios de comunicação exige criação e reprodução cada vez mais instantâneas, para acompanhar o timing dos acontecimentos. O excesso de imagens e o valor comercial que a arte atingiu ainda dificultam a autenticidade da mensagem política12. Porém, essa mesma cultura excessivamente dinâmica que gera esses problemas, é responsável pelo advento das redes sociais que permitem expressões em massa e expansão do alcance das manifestações artísticas em velocidade exponencial, além da ampliação do número de artistas e de campos (Fonte: http://www.judychicago.com/about/ biography/). BARBOSA, Ana Mae. Processo Civilizatorio e Reconstrução Social através da Arte. In: XII Simpósio Internacional Processo Civilizador, 2009, Recife. Civilização e Contemporaneidade. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2009.

9:

Mulheres precisam estar nuas para entrar no Met. Museum?

10:

Collection. Art Gallery NSW. https://www.artgallery. nsw.gov.au/collection/works/150.2014.24/

11:

12: MIRANDA, Rodrigo. Ativismo Artístico, a arte como protesto político. Pós-graduação em jornalismo cultural – UERJ, Rio de Janeiro, Julho de 2013.

NITAHARA, Akemi. Mulheres se reúnem no Rio para debater a arte feminista brasileira. 2016. Disponível em Agência Brasil - EBC: http://agenciabrasil.ebc.com.br/ cultura/noticia/2016-02/feminismo-na-arte-brasileirae-tema-de-seminario-do-rio. Acesso em 01 de julho de 2016.

13:

14: ELLES: Mulheres artistasna coleção do Centro Pompidou. Centro Cultural Banco do Brasil. Disponível em: http://culturabancodobrasil.com.br/portal/ellesmulheres-artistas-na-colecao-do-centro-pompidou-2/

Referências Bibliográficas BARBOSA, Ana Mae. Uma questão de política cultural: mulheres artistas, artesãs, designers e arte/educadoras. 19º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Bahia, 2010. BARBOSA, Ana Mae. Processo Civilizatorio e Reconstrução Social através da Arte. In: XII Simpósio Internacional Processo Civilizador, 2009, Recife. Civilização e Contemporaneidade. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2009. BARROCO, S. M. S. & Superti, T. (2014). Vitgotsky

espectadores atingidos. O feminismo tem ganhado cada vez mais força e espaço, sendo tópico e até mesmo tema de seminários, exposições ou filmes13,14, mas a cultura patriarcal ainda faz muitas vítimas. Entre 2006 e 2011, 332.216 processos envolviam a Lei Maria da Penha, 237 mil relatos de violência foram feitos à Secretaria de Políticas para as Mulheres e há um caso de estupro a cada 11 minutos. Que continuemos então a luta contra essa cultura, e que a arte continue nos servindo de instrumento de protesto. Se hoje temos os direitos que usufruímos é porque no passado mulheres não se abstiveram, não desistiram, lutaram de geração em geração até alcançá-los. Agora devemos continuar a luta. Não nos calemos. Cada sessão fotográfica, cartaz exposto, charge publicada, grito de protesto, é um passo à frente na conquista da igualdade material de gênero e do respeito à mulher. e o estudo da psicologia da arte: contribuições para o desenvolvimento humano. Psicologia & Sociedade, 26(1), 22-31 MIRANDA, Rodrigo. Ativismo Artístico, a arte como protesto político. Pósgraduação em jornalismo cultural – UERJ, Rio de Janeiro, Julho de 2013. NATIONAL GALLERY OF ART. Do women have to be naked to get into the Met. Museum?. Disponível em www.nga.gov/content/ngaweb/Collection/artobject-page.139856.html. Acesso em 05 de junho de 2016. NITAHARA, Akemi. Mulheres se reúnem no Rio para debater a arte feminista brasileira. 2016. Disponível em Agência Brasil - EBC: http:// agenciabrasil.ebc.com.br/cultura/noticia/2016-02/ feminismo-na-arte-brasileira-e-tema-deseminario-do-rio. Acesso em 01 de julho de 2016. NOCHLIN, Linda. Why have there been no great women artists? A shortened version of an essay in the anthology Woman in Sexist Society: Studies in Power and Powerlessness. Edited by Vivian Gornick and Barbara K. Moran. New York: Basic Books, 1971. RUIDO, Maria. Mamãe quero ser artista: notas sobre a situação de algumas trabalhadoras no setor da produção de imagens, aqui e agora. Originalmente em castelhano, este texto forma parte do livro: Precarias a la Deriva (eds.). A la deriva por los circuitos de La precariedad feminina. Madrid: Traficantes de Sueños, 2004 apud GERALDO, Sheila Cabo. Arte e gênero: o debate da produção transversal de diferenças. Revista Poiésis, n 15, p.09-14, 2010.


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Artigo Movimentos sociais e política institucional - complementares ou antagônicos? Helena d’ Agosto M. Fonseca , Gabriela S. Conrado , Raquel G. Gonçalves 1

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ste artigo tem o objetivo de discutir a ação direta dos movimentos sociais e a participação na política através da institucionalidade, tomando como estudo de caso o mandato coletivo, aberto e popular proposto pelas vereadoras Áurea Carolina e Cida Falabella na Câmara Municipal de Belo Horizonte através da Gabinetona, nome dado aos gabinetes compartilhados das duas vereadoras eleitas em 20164. O mandato possibilita o diálogo com a sociedade civil, sobretudo com os movimentos sociais, convidando os cidadãos para construírem conjuntamente dentro da Gabinetona uma proposta contra-hegemônica em busca de outras possibilidades de cidade. Baseando-se no espectro habermasiano, pretende-se entender qual a relação entre a proposta do mandato coletivo e a tese da democracia deliberativa e se é possível conciliar a ação direta com a luta institucional. Parte-se do pressuposto de que, a partir da combinação entre ação direta e luta institucional, tendo em vista a autonomia pública e privada, pode-se pensar um novo modelo de governo democrático, uma democracia participativa deliberativa5, pois essa forma seria capaz de promover uma integração social, na qual o procedimento de produção de normas é feito pela participação direta dos membros da sociedade civil. Diante disso, algumas questões são colocadas para reflexão: existe abertura no atual sistema jurídico para a luta institucional dos atores sociais? Qual o limite da representação democrática? Uma democracia representativa é suficiente para possibilitar a participação dos movimentos sociais na política institucional? MOVIMENTOS SOCIAIS: AÇÃO DIRETA E LUTA INSTITUCIONAL Segundo Starvides (2010), para criar comunidades de resistência é necessário enfrentar o Estado pela diminuição de seu poder ao invés de negá-lo. Já Castells (2013, p. 168) acredita que a “verdadeira origem da mudança e da inovação da cidade está nos movimentos sociais urbanos e não nas instituições”. Os movimentos sociais geralmente são caracterizados por sua natureza coletiva e por seu caráter informal e extra-institucional (BRASIL et al., 2015). Entretanto, “podem atuar de diferentes formas, sem descartar as formas de participação mais institucionalizadas” (BRASIL et al., 2015 apud MELUCCI, 1994). De acordo com Brasil (2015, p. 3), existe um 4 Trata-se de uma pesquisa em andamento no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura da UFMG e os dados aqui utilizados são dados parciais. 5 Este conceito será abordado posteriormente no texto.

déficit de estudos relacionados à interação entre movimentos sociais e poder público, afirmando que essa ação coletiva direta não é essencialmente descontinuada da política institucional, uma vez que os movimentos “se engajam na participação institucionalizada, ao lado de formas de negociação com o poder público e pressão junto ao legislativo”, formando um repertório plural de interação com o Estado. Essa ação plural é abordada por Souza (2012a, p.1) como a interface entre a ação direta e a luta institucional. A primeira é caracterizada como “o conjunto de práticas de luta que são, basicamente, conduzidas apesar do Estado ou contra o Estado, isto é, sem vínculo institucional ou econômico imediato com canais e instâncias estatais”. Por outro lado, a luta institucional6 é abordada pelo autor como “o uso de canais, instâncias e recursos estatais, tais como conselhos gestores, orçamentos participativos ou fundos públicos”. Nesse sentido, a possibilidade de agir através do institucional, não ignorando por completo a estrutura do Estado, mesmo sabendo que se trata de uma instância de poder heterônoma, se daria através da perspectiva estadocrítica, que, segundo Souza (2012b, p. 7), significa “dialetizar a relação entre ganhos modestos e grandes avanços, articular melhor estrutura e conjuntura, estratégia e tática, curto prazo e longo prazo”. Dessa maneira, a luta institucional teria um caráter relevante se subordinada à ação direta. Os movimentos sociais seriam críticos e formuladores de propostas alternativas ao Estado, na busca pelo empoderamento7 como um processo de conquista da autonomia8 e da superação da heteronomia, porém, sempre com cautela e autocrítica para lidar com os limites entre Estado e sociedade civil, mesmo se o primeiro possuir um caráter progressista, de forma a evitar: a participação como armadilha9, a cooptação estrutural10 e a diminuição da energia e senso crítico dos movimentos sociais. 6 Ressalta-se que o autor aborda a luta institucional como não partidária, não pressupondo a criação de partidos políticos ou a filiação a partidos políticos por parte dos ativistas. 7 “O empoderamento acontece quando o reconhecimento por um cidadão de uma fonte objetiva de direitos na cidadania implica uma noção correspondente de poder subjetivo - poder de mudar arranjos existentes (legais e outros), de exigir o cumprimento de um direito e de compelir aos comportamentos correspondentes” (HOLSTON, 2013, p. 39). 8 Segundo Oliveira (2000), a autonomia no fundo é individual, mas é mediada por instituições, não é uma realização de desejos individuais, é exercida em sociedade. 9 Se refere a uma participação conduzida pelo Estado de forma mediada e controlada, a fim de validar decisões já tomadas a priori. 10 A cooptação estrutural refere-se ao risco de um “enquadramento” dos movimentos sociais emancipatórios em uma dinâmica estatal (SOUZA, 2012a).

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Dependendo das circunstâncias, se for possível avaliar que os ganhos materiais e até mesmo político-pedagógicos da luta institucional (não-partidária) tendem a ser superiores às eventuais perdas, coisas como a disputa e a utilização inteligente de canais participativos podem complementar a ação direta - resguardada, sempre, a maior independência possível das organizações dos movimentos em face do Estado (SOUZA, 2012a, p. 6).

Ainda que os movimentos sociais sejam caracterizados como uma forma de ação coletiva de caráter extra-institucional, são dotados de caráter político e possuem papel central na luta pela construção da democracia. Trindade (2017) define como repertório de interação o conjunto de rotinas construídas pelos movimentos sociais, caracterizadas tanto pelo conflito como pela ação conjunta. Assim, a interação entre movimentos e Estado não é resumida pelo confronto, mas considera práticas colaborativas e esses vínculos “entre atores estatais e ativistas pode intensificarse de tal forma a possibilitar a construção de redes que cruzam a fronteira entre Estado e sociedade, produzindo ativismo em prol dos movimentos sociais a partir do próprio Estado” (TRINDADE, 2017, p. 129). Desse modo, essa confluência entre ação direta e luta institucional demanda uma nova forma de organização governamental, que possua um tecido suficientemente permeável para a inserção dos movimentos sociais, de seus atores, e que, dentro da forma jurídica institucional sejam capazes de produzir direitos válidos sobre seus interesses. No caso da Gabinetona, além das próprias vereadoras Áurea e Cida, que atuavam na ação direta através dos movimentos de hip hop e do teatro e cultura, os demais membros que atuam e compõem o mandato coletivo participam diretamente de movimentos sociais, tais como as Brigadas Populares, o Tarifa Zero, o MLB11, movimento em prol da juventude, da causa indígena e LGBTQI, o que demonstra que a confluência entre ação direta e luta institucional citada anteriormente é possível e necessária para a construção de um diálogo direto com a sociedade e suas respectivas demandas. A IDEIA DE DEMOCRACIA PARTICIPATIVA: UMA ABERTURA PARA A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA POLÍTICA A democracia participativa é uma forma de governo decorrente da configuração pluralista da sociedade, tendo em vista que a democracia representativa torna-se insuficiente, seja em 11

Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas.


11 virtude do distanciamento dos governantes e a população ou do crescente número de casos de corrupção. Desse modo, uma das formas de tentar compreender como se dá esse processo de democracia é a ideia de princípio do discurso. De acordo com Habermas (1997), o princípio do discurso enuncia que serão válidas as normas às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais. Essa situação permite a abertura de canais de participação para a sociedade, para além de orçamentos participativos, audiências públicas, iniciativas ou vetos populares, de modo que, a sociedade civil pudesse se inserir no processo de produção de normas, configurando a tal legitimidade pela legalidade. Esta que, na visão de Habermas, é considerada um paradoxo, pois as normas obtêm sua legalidade através de um processo legislativo. Tal participação pressupõe uma coesão entre autonomia privada e autonomia pública, pois é o espaço onde os indivíduos podem contribuir para a produção de normas. Esses conceitos nas palavras de Habermas se explicitam em: as autonomias privada e pública requerem uma à outra. Os dois conceitos são interdependentes; eles estão relacionados um ao outro por implicação material. Os cidadãos podem fazer um uso apropriado de sua autonomia pública, como algo garantido através de direitos políticos, só se eles forem suficientemente independentes em virtude de uma autonomia privada igualmente protegida em sua conduta de vida (HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. p. 137).

É por isso que o princípio democrático se torna efetivo, a partir do diálogo entre autonomia pública e autonomia privada, garantindo, desse modo, a participação política que possibilite a defesa dos interesses dos cidadãos, de tal forma que a produção de leis seja feita também pela sociedade civil, ou seja, os próprios autores da lei são também os seus destinatários. Portanto, é notório que a configuração de uma democracia de fato participativa está para além do momento (restrito) do voto popular e também do próprio aparato participativo previsto na Lei 9709/199812, o qual inclui a iniciativa e o veto popular, plebiscito, referendo. Uma democracia verdadeiramente participativa parte da inclusão da sociedade civil, tendo em vista que fundamentada nas ideias de Jurgen Habermas propugna que apenas o processo eleitoral não garante a legitimidade das 12 Regulamenta a execução do disposto nos incisos I, II e III do art. 14 da Constituição Federal. Dispõe sobre a soberania popular exercida por sufrágio universal e mediante o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de lei.

ações e decisões públicas. Dentro de seu modelo de democracia, as decisões políticas serão legítimas se forem baseadas numa vontade pública concebida democraticamente em estruturas não regulamentadas e desprovidas de relações de poder, denominadas de “esfera pública”. Cabe a essas esferas públicas justamente influenciar o sistema político (MEDEIROS, 2016 apud VIGLIO, 2004, p. 09).

Nesse contexto, torna-se fundamental a busca por uma forma de governo que seja permeável à participação de fato democrática, na qual os movimentos sociais, as minorias e demais participantes da sociedade possam trazer suas demandas para a estática e distante institucionalização jurídico-constitucional. UM MANDATO COLETIVO, ABERTO E POPULAR EM BELO HORIZONTE13 O mandato coletivo, aberto e popular proposto pelas vereadoras eleitas em 2016, Áurea Carolina e Cida Falabella (PSOL) e construído através das Muitas pela Cidade que Queremos, uma movimentação formada por grupos de ativistas, movimentos sociais, festivos e ambientais da cidade e por pessoas que acreditavam na possibilidade de vislumbrar outras dinâmicas, rotinas e expedientes para a atuação política, propõe uma experimentação de democracia radical, com gestão compartilhada, diversidade de corpos no mandato, não reprodução da hierarquização, despersonificação14 da figura política, busca pela participação popular direta e pela ocupação coletiva das instituições. Dessa forma, propõe uma nova forma de ocupar a política, através da abertura dos canais de participação aos movimentos sociais por dentro do sistema político-institucional. A proposta do mandato coletivo aberto preconizou uma política na contramão da competição, na tentativa de um exercício de confluência15 máxima, em torno de uma construção coletiva, horizontal e colaborativa, de uma política feminista e antirracista e que abrisse amplitude de proposição para a participação popular. Assim, a Gabinetona é hoje composta por 41 pessoas, sendo: 25 mulheres, 24 pessoas negras, uma indígena, 15 LGBTIQs e 4 moradoras de ocupações urbanas, o que reforça a busca pela representatividade dos corpos das lutas da cidade no mandato e, também, consolida a formação da equipe pela confluência das organizações envolvidas 13 Pesquisa em andamento da doutoranda Helena d’ Agosto Miguel Fonseca, Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo -NPGAU/Escola de Arquitetura da UFMG. 14 Despersonificação da figura política significa associar o mandato à proposta de uma coletividade e não a uma única figura pública, mesmo que a legislação brasileira exija que haja um representante legal. 15 Tentativa de unir os diferentes fluxos político-sociais. Algo novo que vai além de uma coligação ou aliança político-partidária ou frente cidadã, que se contraponha às velhas lógicas de partido, que gere um alternativa real às políticas tradicionais, que respondem a outros interesses. (TAVEIRA, 2017)

diretamente no processo eleitoral: grupos e movimentos sociais, ativistas e a frente esquerda socialista, trazendo a ação direta para a atuação, também, por dentro da instituição como complementaridade16. FINALIZANDO... A concepção ampliada de participação política passa pela aproximação teórica entre a teoria democrática e a teoria dos movimentos sociais. A partir de práticas insurgentes, que partem do reconhecimento de práticas cidadãs, validando a ação direta coletiva dos cidadãos e considerando a democracia participativa17 (MIRAFTAB, 2016), pode-se imaginar o surgimento de uma nova consciência que projete o futuro como um terreno de luta por justiça, questionando seus pressupostos hegemônicos, e, uma democracia deliberativa, através da qual a sociedade civil consiga, de fato, atuar por dentro da institucionalidade, não mais numa representação distante, mas na própria produção de normas. Dessa forma, a experiência de ação política coletiva leva a pensar uma política democrática para além do sistema representativo e partidário. Nessa lógica, Miraftab (2016, p. 370) propõe 3 princípios de práticas insurgentes que possuem um potencial transformador em direção a um urbanismo mais humano e que tem interface com o que é proposto e preconizado pelo mandato da Gabinetona: 1. Transgressão no tempo, lugar e ação: elas transgridem falsas dicotomias entre espaços convidados e inventados do ativismo; elas transgridem fronteiras nacionais ao construir solidariedades transnacionais e movem-se além dos laços do tempo através de uma consciência historicizada. 2. Contra e anti-hegemonia: as práticas de planejamento insurgente são anti- e contra-hegemônicas. Elas desestabilizam relações de dominação e são especificamente anticapitalistas. 3. Imaginação: práticas de planejamento insurgente são imaginativas. Elas recuperam o idealismo por uma sociedade justa.

A experiência do mandato aberto, coletivo e popular da Gabinetona em Belo Horizonte coloca a cidade como referência no cenário nacional e global, uma vez que busca a transformação democrática e da sociedade a partir das bases, defendendo os direitos humanos, o bem comum, o combate à pobreza e 16 Informações retiradas da fala de Áurea Carolina no evento “Construir a cidade à muitas mãos”, ocorrido em 03 de agosto de 2017 na Escola de Arquitetura da UFMG. 17 Aquela na qual os cidadãos tomam parte diretamente das decisões que afetam suas vidas, promovendo uma forma de cidadania multi-centrada e de múltiplas atividades (MIRAFTAB, 2016).


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Poesia às desigualdades sociais e a ampla participação popular na política legislativa, possibilitando que os movimentos sociais não limitem sua atuação à ação direta, mas que possam, também, ampliar sua participação ativa na luta institucional. Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais - NPGAU/UFMG.

1:

2: Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. 3: Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (1996), mestre em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2001) e doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - IPPUR/UFRJ (2005). Professora Adjunta do Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura da UFMG. Professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da UFMG.

Referências Bibliográficas BRASIL. Lei n° 9709, de 18 de nov. de 1998. Estabelece institutos da participação democrática. Brasília, DF, nov. 1998. BRASIL, Flávia de Paula Duque, CARNEIRO, Ricardo; SILVA, Thaysa Sonale Almeida; BECHTLUFF, Rodolfo Pinhón. Movimentos sociais e cidade: uma análise das formas de ação coletiva recente em Belo Horizonte. In: Anais do III Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas, 2017, Vitória - ES. CASTELLS, Manuel. A transformação do mundo na sociedade em rede. In: Redes de indignação e esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p.157-174. HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. Edições Loyola: São Paulo, 2004. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I.; tradução: Flávio Beno Siebeneichler. —. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1997 HOLSTON, J. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. MEDEIROS, Alexsandro M. Democracia Deliberativa. Consciência Política, outubro de 2016. Disponível em: http:// www.portalconscienciapolitica.com.br/ciber-democracia/ democracia-deliberativa/. Acesso em 29 de outubro de 2017. MIRAFTAB, Faranak. Insurgência, planejamento e a perspectiva de um urbanismo humano. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais., Recife, V.18, N.3, p. 363-377, Set-Dez, 2016. OLIVEIRA, Francisco. O que é formação para a cidadania? Entrevista feita por Silvio Caccia Brava. Instituto Pólis, 2 de agosto de 2000. Disponível em: http://www.polis.org.br/ publicacoes/artigos/entrevchico.html. On the Commons: A Public Interview with Massimo De Angelis and Stavros Stavrides. E-Flux Journal, v.17, jun-aug. 2010, p.1-17. SOUZA, Marcelo Lopes de. Ação direta e luta institucional: complementaridade ou antítese? (primeira parte). Lastro, UFSC, 2012a. (originalmente publicado em jornal Passa Palavra em 27 de abril de 2012). SOUZA, Marcelo Lopes de. Ação direta e luta institucional: complementaridade ou antítese? (segunda parte). Lastro, UFSC, 2012b. (originalmente publicado em jornal Passa Palavra em 04 de maio de 2012). TRINDADE, Thiago Aparecido. Protesto e Democracia: ocupações urbanas e luta pelo direito à cidade. 1ª ed. Jundiaí, SP: Paco, 2017.

REPRODUÇÃO / SIMIS GATENIO - SAATCHI ART

E mil pensamentos começam a borbulhar e se confundir num torpor ébrio ao imaginar que de fato pode dar um empurrão na Roda do Mundo. Sua cabeça não estava ali ou nos céus, mas corria solta pelos sertões áridos e vielas escuras, das perifas às favelas às ocupas às escolas dessa grande Latino América, que teima em fazer sua seu destino. O que sentia era... Felicidade por achar um papel no mundo? Espetáculo de aprender mais e as vezes errar? Se redescobrir no diálogo e nas grandes pequenas aulas do dia a dia? E ao mesmo tempo mil desgraças começa ver de longe e perto num aperto do peito vê a dor de seus colegas e teme teme um dia que os mesmos desistam da árdua decisão que é a de resignar-se a marchar em frente, continuar sendo louco de continuar acreditando na possibilidade de um mundo melhor, ou qualquer outro que não a perpetuação dessa autoflagelação e carnificina, de opressão de um pela outra, do de cima para o de baixo, de ódio velado e explícito e na completa incapacidade de re-conhecimento no outro e des-vontade de ouvi-lo. Será que o tempo também me fará desacreditado? Minha visão de uma utopia uma paixão passageira? Ou será, talvez, que minha fé entrará em corações - células revolucionárias por natureza - alheios, e daí viva autônoma e futura? Artur Colito Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

CORAçãO, CéLULA REVOLUCIONáRIA


Artigo

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Re(d)ação: mulheres que ajud(ar)am a escrever a história feminista no Brasil

Verônica Oliveira Souza

Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

O

presente artigo visa, à luz da obra Imprensa Feminina e Feminista no Brasil, de Constância Lima Duarte, e em levantamento histórico de algumas conquistas progressivas, introduzir brevemente a importância da mídia na difusão e promoção do feminismo no Brasil, destacando, ainda, mulheres proeminentes neste desenvolvimento. Em virtude do atual período político de crise, do assustador aumento de iniciativas extremistas e do recrudescimento da violência física e simbólica em ataques dirigidos às mulheres, mister se faz reconstruir e ressaltar a importância da construção dos ideais feministas no Brasil, a fim de fomentar a luta pela manutenção dos direitos conquistados e ampliá-la em suas novas perfomances e reivindicações, incentivando o protagonismo feminino.

humanidade.“3

O movimento feminista é a luta pela desconstrução dos papeis de gênero impostos, em prol da emancipação da mulher, sua autodeterminação política, religiosa e social1. Tal movimento ganhou força no Brasil principalmente nos sécs. XIX e XX: com as guerras mundiais, a difusão de ideais anarco-comunistas e a revolução da imprensa com o desenvolvimento de novos meios de comunicação de larga escala e alta abrangência, a mulher passou a integrar-se em ambientes anteriormente dominados por homens, e pouco a pouco conquistando espaços:

Interessantemente, muitos dos periódicos de homens para mulheres à época (séc. XIX) traziam títulos de doutrinação (Manual, Farol, Despertador, Espelho), como se fossem guias de mentores superiores a ensinar às mulheres como progredir4. Assim, no Brasil, por meio da edição de periódicos, ideais feministas foram introduzindo perspectivas novas à mulher, até então considerada o “sexo frágil” e mesmo “o lado doente da espécie”5. O inaugurador de periódicos eminentemente femininos foi O Jornal das Senhoras, protagonizado por Joana Paula Manso de Noronha (1816-1874)6, jornal do Rio de Janeiro que vigorou de 1852 a 1855, objetivando “cooperar com todas as suas forças o melhoramento social e emancipação moral da mulher”7. A este seguiram-se outros, como O Bello Sexo (1862) também no Rio, por Júlia de Albuquerque Sandy Aguiar, e O Sexo Feminino (1873-1889), por Francisca Senhorinha da Mota Diniz8. Publicações questionadoras surgiram: além de aspectos relacionados às condições sociais, questões relevantes politicamente também eram levantadas e publicizadas, como a permanência da monarquia, a validade da Revolução Farroupilha, a Constituinte, a abolição da escravatura e mesmo acerca da República. É o caso de Idade d’Ouro (1833), República Das Moças (1879), O Abolicionista do Amazonas (1884) e Ave Libertas (1885). Diz-nos Constância:

“Com a guerra mundial, as mulheres de países como a Inglaterra e os EUA passam a substituir em larga escala os homens (que partiram para as frentes de batalha), exercendo toda uma gama de profissões urbanas. [...] esse fato deu impulso ao feminismo internacional, que se refletiu no Brasil através da imprensa e do cinema2.”

“[...] os quatro primeiros prováveis periódicos dirigidos por mulheres não tratavam de coisas específicas do gênero. O clima conturbado que dominava o pais durante o período regencial levava também o “segundo sexo” – quisessem ou não os homens – a tomar partido e eleger a política como tema prioritário.“9

Anteriormente, no séc. XIX, em atenção à demanda, alguns editores iniciaram publicações voltadas ao público feminino, inclusive com a introdução de críticas sociais e culturais: em 1827, na 1ª edição da publicação O Espelho Diamantino, fundado por Pierre Plancher, lê-se:

Ousadas e vanguardistas, surgem publicações feministas: O Sexo Feminino (18731889), A Mulher (1881-1883), A Mensageira (18971900), O Escrínio (1898-1910) e outras10. Tal intromissão de publicações, vista como uma ameaça à moral e aos bons costumes esperados das mulheres, foi rebatida à época, sob o argumento de “o perigo da liberação feminina e apresentando “teorias cientificas” que comprovam o “verdadeiro papel do sexo frágil”11. Homens ditos acadêmicos não mediram esforços na tentativa de conter, criticar e reduzir a importância da introdução

1. OS PRIMÓRDIOS E SUAS CONQUISTAS

“Tendo as mulheres uma parte tão principal nos nossos interesses e negócios, [...] pretender conservá-las em um estado de preocupação e estupidez, pouco acima dos animais domésticos, é uma empresa tão injusta como prejudicial ao bem da

da voz feminina nos meios midiáticos. Exemplo cabal foi o psiquiatra Miguel Bombarda; cita-se: “Qual o nome feminino célebre nas ciências ou nas artes, na música, na pintura ou nas letras? Um século inteiro de liberdade feminina só dá miserável penúria como última medida do cérebro da mulher [...] A mulher é uma degenerada! [...] a degenerescência, que resulta de uma construção defeituosa [...] só o útero se salva”12

Publicações conservadoras surgiriam em resposta, intencionando reforçar os papeis de gênero vigentes, caso de A Mai de Família, (1879-1888)13. Ainda que duramente reprimido, todo o esforço das lutas e reivindicações feministas vai pouco a pouco gerando significativos frutos nas terras tupiniquins. A partir da difusão dos movimentos feministas internacionais por meio da imprensa, rádio e cinema, outras mulheres brasileiras se organizaram contra a opressão de gênero e diversas manifestações feministas ainda incipientes foram acontecendo. Como exemplo, tem-se Leolinda Daltro, que, em 1917, inspirada pelo movimento sufragista britânico, organizou no Rio uma passeata de 84 mulheres pelo direito ao voto feminino14. Contudo, tal direito só viria em 1932, por meio do Decreto nº 21.076 que regulamentou o Código Eleitoral15. Em 1906, a pioneira Mirtes Campos, (18751965), bacharela em Direito em 1889, conquistou o direito de registro na Ordem dos Advogados do Brasil16. Em 1918, Rui Barbosa e Clóvis Bevilacqua17 concederam a Maria José de Castro Rebelo Mendes, nascida em 1891, o direito a concorrer ao Itamaraty, no qual conquistou o 1º lugar, tornando-se a primeira diplomata. Como resposta, o militar Turíbio Rabioli se manifestou veementemente contra, dizendo que seus defensores nada mais queriam que “masculinizar o belo sexo”18. 2. ANÁLISE CRÍTICA Conquanto atualmente mulheres como Mary Wollstonecraft, Simone de Beauvoir e Julia Kristeva19 tenham importância fundamental reconhecida na construção dos ideais feministas, nacionalmente diversas mulheres e grupos, por vezes esquecidas no decorrer da história, nos demonstram o quanto os direitos de hoje têm raízes profundas e perpassam lutas de diversas corajosas e visionárias contra o machismo institucionalizado. Incríveis mulheres brasileiras como Alzira Reis, Maria


14 Lacerda de Moura20, Fanny Taback, Rose Marie Muraro, e Heleieth Safiotti estiveram à frente de iniciativas em prol do reconhecimento do potencial das mulheres e na luta por respeito, valorização e emancipação. Uma crítica que se faz21 ao movimento feminista no Brasil é em função de sua origem elitizada, uma vez que as publicações ficavam inacessíveis a grande parcela da população brasileira, à época (transição do séc. XIX para o séc. XX), analfabeta22. Contudo, em um cenário midiático dominado por homens, a iniciativa de buscar e ocupar um espaço de fala publicável acabou por redefinir os liames sociais entre as mulheres, dando início à ampliação das críticas sociais às instituições da época, as estruturas dominadoras da família, das escolas, da Igreja e do Estado23. Em diversas frentes e em diversas áreas, a discussão acerca da autopercepção das mulheres foi sendo gradativamente debatida. “O apelo por educação, presente na maioria (dos periódicos) era mais que pertinente

[...] o senso comum patriarcal se opunha com firmeza à instrução feminina e às mudanças de comportamento que daí podiam advir. “24

Ademais, o avanço do feminismo através da imprensa não excluiu a valorização de outras ações concomitantes ou mesmo decorrentes de uma maior discussão acerca do status da mulher na sociedade. Uma vez empoderadas em seu discurso, muitas mulheres construíram uma rede de apoio e de reforço na proteção e valorização femininas, colaborando para melhorias à educação e para a formação política. É o caso de Bertha Lutz (1894-1976). Em 1924 redigiu uma matéria em resposta a um jornalista carioca que diminuíra a importância dos movimentos estadunidense e europeu na influência da emancipação feminina no Brasil. Cita-se marcante trecho: “Não há, talvez, cidade no mundo onde se respeite a mulher. Existem até seções de jornais que se dedicam a corrompê-la ou a

injuriá-la. O que deve consolar a brasileira é que os homens que essas coisas escrevem são piores do que a pior das mulheres.[...]“25

Em 1925, juntamente com Olga de Paiva Meira, Bertha participaria do Conselho Feminino Internacional, representando o Brasil na Organização Internacional do Trabalho. Neste evento, foram aprovados os princípios de salário paritário entre os gêneros e a inclusão feminina no serviço de proteção aos trabalhadores. Além disso, militou intensamente pelo voto feminino e, em 1919, juntamente com Maria Lacerda de Moura, criou a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, que posteriormente daria origem à Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Em 1932, Bertha participou da comissão de anteprojeto da nova Constituição. Como resultado de seu intenso engajamento político, colaborou para a eleição, em 1934, de 9 mulheres para parlamentares. Elegeu-se deputada em 1936 e sofreu intensa resistência de Carlota Pereira de Queiros, que entendia a paridade entre homens e mulheres REPRODUÇÃO / ERICA LAMBERTSON - SAATCHI ART

Obra da artista estadunidense Erica Lambertson, denominada “Protest” (‘Protesto’, em português).


Artigo incompatível com projetos de amparo e assistência especificamente voltados ao público feminino, conforme defendia Bertha26. 3. CONCLUSÃO Mulheres sempre foram relegadas a segundo plano na participação democrática. Hoje, politicamente o que se percebe é um cenário recrudescedor da violência e de alto risco de perseguição, intimidações físicas e moralistas às mulheres27. Ataques sexuais em transporte público28 e recorrentes casos de estupro e ameaças29 mostram que a conquista de espaços pelas mulheres advém permeada de novos riscos de violência, principalmente as de caráter sexual. Porém, mais uma vez, a mídia mostra seu poder transformador: casos são noticiados, fomentando debates em diversas esferas, incluindo a jurídica. Leis como a “Maria da

15 Penha” (Lei 11.340/2006), a proposta Lei de Criminalização do Feminicídio (13.104/2015) e discussões recentes sobre o alcance do termo constrangimento30 previsto no art. 215 do Código Penal e acerca do aborto31 põem em evidência questões antes relegadas e revestidas de tabu. Cada vez mais a importância simbólica de se falar a respeito de temas que tratam de mulheres tem sido considerada: o que não se nomeia não se discute32. Casos de divergência entre valorizar amparos especializados ou projetos eminentemente paritários reproduzem nos dias atuais os primórdios das políticas protagonizadas por e para mulheres no início do século passado, evidenciando uma permanente necessidade de ampliação da discussão e dos espaços de voz feminina. É o caso do polêmico Vagão Rosa em metrôs de Belo Horizonte33, que levantou debates acerca de uma suposta remediação social de um problema machista associado a

1:

Feminismo. In: Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998.

17: O sexo frágil e o sportsman. In: Enciclopédia Nosso Século: 1910/1930. São Paulo: Abril Cultural, 1981. Cap. IV, pag. 110.

2: O sexo frágil e o sportsman. In: Enciclopédia Nosso Século: 1910/1930. São Paulo: Abril Cultural, 1981. Cap. IV, pag. 110.

18: Maria José de Castro Rebelo Mendes. In: Dicionário de Mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.pag.396

3: O Espelho Diamantino : Periodico de Politica, Litteratura, Bellas Artes, Theatro e Modas dedicado as Senhoras Brasileiras (RJ) 1827 a 1828. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/ DocReader.aspx?bib=700312&pesq=diamantino&pasta=ano%20 182>. Acesso em 01.10.2017.

19:

DUARTE, Constância Lima. Imprensa feminina e feminista no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. Pag.21.

4:

O sexo frágil e o sportsman. In: Enciclopédia Nosso Século: 1910/1930. São Paulo: Abril Cultural, 1981. Cap. IV, pag. 104.

5:

Joana Paula Manso de Noronha. In: Dicionário Mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. Pag 293-294.

6:

O Jornal da Senhoras (RJ) - 1852 a 1855. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader. aspx?bib=700096&pesq=senhoras&pasta=ano%20185>. Acesso em 01.10.17

7:

Autor? O Livro da Filosofia & O Livro da Política. São Paulo: Globo, 2011 e 2017. Em resposta a Bombarda, escreveria A mulher é uma degenerada.

20:

Feminismo. In: TUDO, A enciclopédia do conhecimento. São Paulo: Abril, 1977.

21:

22: Em 1890, eram 82% de analfabetos; em 1950, 57%; em 1960, 47%; 39% em 1970 e, após o Mobral, 32% em 1980 . Atualmente, está em 8%, dados de 2015. Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade, por sexo - Brasil - 2007/2015. Disponível em: <https://brasilemsintese.ibge.gov.br/educacao/ taxa-de-analfabetismo-das-pessoas-de-15-anos-ou-mais.html>. Acesso em 30.09.2017. 23: DUARTE, Constância Lima. Imprensa feminina e feminista no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. Pag.28.

8:

DUARTE, Constância Lima. Imprensa feminina e feminista no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. Pag.21.

24:

9: Idem.

25:

10:

Ibidem,pag.23.

O sexo frágil e o sportsman. In: Enciclopédia Nosso Século: 1910/1930. São Paulo: Abril Cultural, 1981. Cap. IV, pag. 102.

11:

12:

Ibidem, pag. 104.

DUARTE, Constância Lima. Imprensa feminina e feminista no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. Pag.24.

13:

O sexo frágil e o sportsman. In: Enciclopédia Nosso Século: 1910/1930. São Paulo: Abril Cultural, 1981. Cap. IV, pag. 100-112. 14:

82 anos da conquista do voto feminino no Brasil. Disponível em: < http://www.tre-es.jus.br/imprensa/noticias-tre-es/2014/ Fevereiro/82-anos-da-conquista-do-voto-feminino-no-brasil>. Acesso em 30.09.2017 15:

CAMPOS, Mirtes de. In: Dicionário de Mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. Pag. 431-432.(data de falecimento vide https://pt.wikipedia.org/wiki/Myrthes_Gomes_de_Campos).

16:

DUARTE, Constância Lima. Imprensa feminina e feminista no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. Pag.24.

Bertha Lutz. In: Dicionário de Mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. P.106

26:

Ibidem.

lacunas educacionais e culturais mais amplo. Assim, sem jamais esgotar o tema, concluise que a mídia historicamente teve e mantém papel fundamental para o feminismo, na conquista de direitos e na ampliação dos espaços discursivos, uma forma de conexão entre mulheres que perpassa a publicização de suas narrativas e iniciativas, cultivando lastro teórico firme para as construções empíricas e ações práticas. A nova onda dos movimentos sociais, especificamente do feminismo, implica a reinvenção e atualização dos meios comunicacionais, mas o cerne que fomenta e promove é o mesmo que moveu as corajosas primeiras redatoras nos primórdios da imprensa no Brasil: melhores condições para a mulher, em prol de uma sociedade mais democrática e justa. Como bem nos resume Hélène Cixous: “A mulher deve escrever sobre si própria e levar mulheres a escrever.”34

A este respeito, vide: MELO, Débora: Caso de ejaculação em ônibus não configura estupro, afirma juiz.. In: Carta Capital. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/ ejaculacao-em-onibus-nao-configura-estupro-afirma-juiz >. Acesso em 30.09.17

30:

Vide 1º Encontro de Pesquisa e Ativismo sobre Aborto, realizado em Belo Horizonte entre os dias 28 e 29.09.17

31:

32: NASSIF, Luiz. Feminicídio: ‘O que não se nomeia, não se discute’, destaca juíza em palestra. Disponível em:< http:// jornalggn.com.br/blog/cee-fiocruz/feminicidio-o-que-nao-senomeia-nao-se-discute-destaca-juiza-em-palestra>. Acesso em 01.10.2017 33: Vagão rosa’, exclusivo para mulheres, começa a funcionar no metrô de BH. In: G1. Disponível em: <http://g1.globo.com/minasgerais/noticia/2016/11/vagao-rosa-exclusivo-para-mulherescomeca-funcionar-no-metro-de-bh.html>. Acesso em 30.09.2017

O pensamento sempre funcionou por oposição. In: O Livro da Filosofia. São Paulo: Globo, 2011. Pag.322.

34:

Referências Bibliográficas BRASIL. Hemeroteca Nacional Digital. Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemerotecadigital/. > DUARTE, Constância Lima. Imprensa feminina e feminista no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

Vide PLS 461/2016, de autoria do senador Pastor Valadares (PDT-RO). Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/noticias/ materias/2016/12/20/projeto-caracteriza-aborto-como-crimeem-qualquer-fase-da-gravidez>. Acesso em 29.09.2017

Enciclopédia Nosso Século - 1910/1930. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

REIS, Vivian; ROSA, André. TOMAZ, Kleber. Homem solto após ejacular em mulher em ônibus é preso de novo ao atacar outra passageira. In: OGlobo. Disponível em: < https://g1.globo.com/ sao-paulo/noticia/homem-e-preso-suspeito-de-ato-obscenocontra-mulher-em-onibus-3-caso-em-sp.ghtml>. Acesso em 30.09.17

Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998.

27:

28:

A respeito, vide Pela terceira vez, Bolsonaro é condenado a indenizar Maria do Rosário. In: Carta Capital. Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/politica/pela-terceira-vezbolsonaro-e-condenado-a-indenizar-maria-do-rosario >. Acesso em 30.09.2017. 29:

Enciclopédia História do Século 20. São Paulo: Abril Cultural, 1968-1976.

O Livro da Filosofia. São Paulo: Globo, 2011. O Livro da Política. São Paulo: Globo, 2016. SHULMAHER, Shuma; BRAZIL, Érico Vital. Dicionário Mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. TUDO, A Enciclopédia do Conhecimento. São Paulo: Abril, 1977.


16

Principal

REPRODUÇÃO / MUAZZAM TARIQ - SAATCHI ART

Propriedade urbana, desigualdade e repressão estatal ilegítima Helena N. C. de Souza1, Jéssica N. R. Takenaka2, Thales A. N. Viote3

1. CARÊNCIA HABITACIONAL NO BRASIL – UM PROBLEMA HISTÓRICO

O

Brasil é um país cujas grandes cidades foram historicamente formadas por ocupações. Com a ruína do campesinato

e o desenvolvimento do capitalismo industrial, o processo produtivo nas fábricas e o escoamento da produção demandaram a formação de um operariado organizado em cidades. Assim, pessoas que não tinham casa própria (em geral, advindas do processo de êxodo rural) instalavamse em terrenos vazios, de modo que o Brasil

passou a ser um país predominantemente urbano já na segunda metade do século XX. O desenvolvimento dos centros urbanos, porém, não atendeu às necessidades e aos interesses da classe trabalhadora e de outros setores desfavorecidos. A falta de moradia digna levou muitas famílias a ocupar e construir em espaços


17 ociosos. Assumindo a crise social causada, dentre outros motivos, pelo precário processo de urbanização brasileira do qual resultou a carência habitacional de grande parte da população, o então presidente João Goulart propôs, na década de 1960, as chamadas reformas de base, consistentes em uma série de medidas que visavam à diminuição da pobreza e da desigualdade. Como exemplos, a reforma tributária – que impunha maior contribuição àqueles que detinham maiores patrimônio e renda –, a reforma agrária - que visava a desconcentração e a democratização da estrutura fundiária e o combate à fome a miséria –, a reforma bancária – limitando os poderes das instituições financeiras e, por fim, a reforma urbana. Em razão de seu caráter notadamente popular, a tentativa de implementação de tais reformas provocou grande reação da elite conservadora brasileira (e até mesmo estrangeira), a quem muito interessava a manutenção dos lucros advindos da manutenção do status quo, o que fez com que esta se associasse aos setores mais reacionários das Forças Armadas brasileiras, e, assim, no dia 1º de abril de 1964, aplicasse um golpe de estado no país, afastando do poder João Goulart e representantes das classes populares que compunham o seu governo, além de cassar direitos políticos e perseguir inúmeros grupos, organizações, sindicatos e partidos que atuavam concretamente na direção política e econômica de efetivação de justiça social. A ditadura militar (ou civil-militar) brasileira aprofundou os problemas envolvendo a organização das cidades. Como retrata, por exemplo, o documentário ABC da Greve (1990), de Leon Hirszman, houve um exponencial aumento do número de favelas na região do ABC paulista. Logo, o desgaste da ditadura militar, decorrente, dentre outros motivos, do agravamento da situação precária de vida da população mais pobre, contribuiu para que o país tomasse a direção para o processo de transição “lenta e gradual” rumo à redemocratização do país, que ganhou corpo com a promulgação de uma nova Carta Constitucional. A Constituição de 1988 foi redigida com grande intervenção dos movimentos sociais de luta pela reforma urbana, consagrando, enfim, um capítulo na nova Carta Constitucional que trata da política urbana (arts. 182 e 183) - algo inédito até então.

2. AS OCUPAÇÕES SURGEM COMO RESPOSTAS NECESSÁRIAS AO PROBLEMA Os ditames constitucionais inspirados nos ares de redemocratização não foram suficientes para enfrentar o problema da falta de acesso ao direito humano e constitucional de morar dignamente, não havendo, em geral, governos municipais, estaduais ou federais

que tenham conseguido enfrentar seriamente o problema .Corroboram essa tese os dados do estudo “Deficit Habitacional no Brasil - 2016” da Fundação João Pinheiro, que revelam que no ano de 2014, 6,1 milhões de famílias compunham o deficit habitacional, configurado nas situações de aluguel excessivo (que onera a renda familiar em mais de 30%) coabitação familiar, habitação precária e adensamento excessivo – muitas moradias em pouco espaço - (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2016, p.43). Observamos, ainda, que as muito propagandeadas políticas habitacionais dos governos Lula e Dilma não triunfaram em pôr termo ao chamado Deficit Habitacional em nosso país. Pelo contrário, o estudo da FJP revela que, mesmo com os financiamentos bilionários do Programa “Minha Casa, Minha Vida”, o índice de famílias em situação de ônus excessivo com aluguel cresceu substancialmente – de 1,8 milhão de domicílios em 2007 para 2,3 milhões em 2012 (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2016). Em verdade, a intervenção do projeto de extensão Assessoria Jurídica Universitária Popular da Faculdade de Direito da UFMG – AJUP UFMG – na Pedreira Prado Lopes nos últimos cinco anos também nos mostrou que a Prefeitura de Belo Horizonte, com os recursos do referido Programa, sucedeu em expulsar dezenas de famílias de suas moradias. Da insolvência dos problemas fundiários no Brasil pela via administrativa resultam as ocupações urbanas – espontâneas ou organizadas por movimentos sociais – e, no contexto particular de Belo Horizonte e Região Metropolitana, as quase 15 mil famílias residentes em mais de 20 ocupações (NASCIMENTO e LIBÂNIO, 2016) protagonistas de um fenômeno extraordinário de surgimento destas nos últimos anos. Diante desse cenário, e, sobretudo, com o aprofundamento da crise econômica no país, chegando a quase 14 milhões de desempregados, o número de ocupações urbanas tendeu ao crescimento. O aumento do desemprego e a diminuição da renda, principalmente na camada social dependente de aluguel certamente contribuem para o aumento da inadimplência. Em Belo Horizonte, a partir do ano de 2008, iniciou-se um ciclo de inúmeras ocupações urbanas que lograram êxito em ocupar terras e prédios vazios com o objetivo de reivindicar moradia, como as ocupações Dandara na região da Pampulha, Vitória, Rosa Leão e Esperança na região do Isidora e Paulo Freire, Mandela e Eliana Silva na região do Barreiro – que, juntas, chegam a somar aproximadamente 12.000 moradias. No que diz respeito à interlocução com ocupações urbanas, inclusive, a AJUP vem, recentemente, orientando ações no sentido de se integrar aos grupos de crítica e ativismo que Daniel Medeiros de Freitas intitula agentes de resistência (tais como o Práxis e o Indisciplinar, ambos projetos da Faculdade de Arquitetura da UFMG), que, ao lado dos agentes diretamente

afetados pelos projetos urbanísticos, colocam a técnica e/ou a teoria crítica em confronto com a política urbana hegemônica, num movimento de diálogo entre a academia e a produção do espaço urbano.

3. A ILEGALIDADE DAS REMOÇÕES FORÇADAS NAS OCUPAÇÕES URBANAS ORGANIZADAS DA RMBH A despeito do avanço obtido com os movimentos que nascem em resposta à mazela social, quase sempre as ocupações urbanas esbarram em problemas advindos de conflitos possessórios, pelo que, na prática, acabam sofrendo remoções forçadas de legalidade questionável. Recentemente, as mídias alternativas noticiaram a repressão violenta da Polícia Militar de Minas Gerais nos despejos das ocupações urbanas Maria Bonita (Belo Horizonte, 2016), Temer Jamais (Belo Horizonte, 2016) e Manoel Aleixo (Mário Campos, 2017) que agiu amparada pela tese jurídica de “flagrante de crime de esbulho possessório”. Passemos ao seu exame. O Código Penal brasileiro prevê em seu art. 161, §1º, II como crime de esbulho possessório “invadir com violência à pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim do esbulho possessório” (grifos nossos). O crime de esbulho pressupõe, assim, o exercício anterior de posse e a violência à pessoa ou grave ameaça. Até onde pudemos constatar, as ocupações urbanas atualmente existentes, organizadas por movimentos sociais, tais como Eliana Silva, Irmã Dorothy, Camilo Torres, Dandara, dentre outras, não foram concretizadas mediante uso, por parte de seus integrantes, de violência ou grave ameaça à pessoa. De acordo com o art. 1.196 do Código Civil, considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. Uma leitura reducionista e legalista de tal dispositivo nos levaria a supor que a simples propriedade do bem imóvel tornaria o proprietário legítimo possuidor do bem. Considerando, no entanto, o direito de posse frente à totalidade do ordenamento jurídico, não se pode concebêlo como uma faceta da propriedade ou necessariamente vinculado a esta. Assim o é porque a proteção à pessoa, nuclear do Direito no Estado Democrático, pressupõe também a centralidade da relação jurídica nos sujeitos de direito dotados das prerrogativas previstas no ordenamento (direitos fundamentais), não mais no patrimônio per se. Portanto, assinala Rosenvald (apud VARELA, 2006.) “O operador do direito se obriga a lidar com conflitos possessórios de acordo com a diversidade dos padrões valorativos de cada caso, tendo-se como vetor de ponderação de tais lides a proteção à


18 dignidade dos diversos possuidores e na valorização dos efeitos da posse e não em função do direito de propriedade”

Dessa forma, a posse, numa interpretação constitucional, deve ser entendida como um direito autônomo em relação à propriedade, sendo reconhecida pela função social que exerce de, neste caso, efetivar o direito à moradia. O tipo penal pressupõe que a propriedade de outrem é efetivamente exercida porquanto alude a “terreno ou edifício alheio”. É de se questionar, no entanto, se o descumprimento da função social da propriedade (uso antissocial) não descaracterizaria o próprio direito de propriedade. Neste caso, teríamos a intervenção do aparato repressivo do Estado para salvaguardar um direito inexistente. Sobre isso, inclusive, Marcus Dantas argumenta contrariamente às decisões dos tribunais sobre conflitos possessórios que, no geral, não acolhem o argumento de que o descumprimento da função social qualifica posse justa dos ocupantes – já que a função social é “da propriedade” e as ações possessórias visam à tutela da posse . Dantas entende que a função social da propriedade é, afinal, a função social da posse exercida pelo proprietário, já que o direito à propriedade deve ser lido da forma como é concretamente exercido, e não como um direito abstrato inerente ao ser humano, cuja função do Estado é apenas limitar. Se é certo, como vimos, que os programas e incentivos governamentais e a própria realidade socioeconômica do Brasil não se mostraram meios eficientes de garantir o direito social primário à moradia, disposto no art. 6º da Constituição Federal, é também verdade que o exercício da posse do bem imóvel para esta finalidade é, por si só, a efetivação concreta do direito; é a correspondência entre dever-ser específico e a realidade social colocada. Recorreremos à exata conclusão de Rosenvald: “A oponibilidade erga omnes da posse não deriva da condição de direito real patrimonial, mas do atributo extrapatrimonial da proteção da moradia como local de respeito à privacidade e desenvolvimento da personalidade do ser humano e da entidade familiar.”

Se, por um lado, a ausência da função social da propriedade descaracterizaria a tipicidade do crime de esbulho possessório – tornando ilegítima a intervenção policial –, por outro, o simples exercício da posse cumpre (por meio da moradia, nestes casos) a efetiva função social da propriedade, de forma a legitimar a permanência na posse do bem imóvel. Ainda na hipótese de se constituir realmente o crime de esbulho possessório, a corporação militar não teria o poder de retirar as famílias através do uso da força, o que marca a ilegalidade (e, muitas vezes, a irrazoabilidade)

da ação da PMMG. A pena máxima prevista para os crimes de esbulho possessório é inferior a 2 (dois) anos, o que atrai a aplicação da lei 9.099/95, (Lei dos Juizados Especiais) que, em síntese, regula a atuação policial de forma muito mais branda do que aquela exigível em crimes mais graves como homicídio, nos termos de seus arts. 60 e 61. Partindo-se, assim, da premissa de uso da lei 9.099/95 para casos de supostos esbulhos possessórios, extrai-se do art. 69 que a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. Ou seja, se o autor comparece ao Juizado, não há sequer possibilidade de prisão em flagrante do suposto crime de esbulho. O que se vê é que o legislador determinou que as forças de segurança pública não utilizem grandes esforços em crimes de menor potencial ofensivo, a ponto de proibir, inclusive, a prisão em flagrante. Logo, como podemos conceber 1 : Helena Souza, graduanda em Direito na UFMG (6° período), militante na União da Juventude Rebelião (UJR), no movimento Correnteza e no movimento Luta de Classes.

: Jéssica Takenaka, graduanda em Direito na UFMG, militante na União da Juventude Rebelião (UJR) e no movimento Correnteza.

2

: Thales Augusto Nascimento Viote, advogado popular, militante do movimento de luta nos bairros, vilas e favelas (MLB) e do Movimento Luta de Classes. 3

Referências Bibliográficas ABC da Greve. Direção: Leon Hirszman. São Paulo. Taba Filmes. 1990. colorido (Eastmancolor), 35mm, 75 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=2hhFk0cml6Y> Acesso em setembro de 2017. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível : <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em setembro de 2017. BRASIL. Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado. htm> Acesso em setembro de 2017. BRASIL, Lei. n 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm> Acesso em setembro de 2017. BRASIL, Lei. n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/ l13105.htm> Acesso em setembro de 2017. DANTAS, Marcus Eduardo de Carvalho. Da função social da propriedade à função social da posse

legítima a ação da Polícia Militar fora destes ditames, com o uso de balas de borracha e bombas contra famílias sem teto? A natureza das ações da Polícia Militar, nestes casos, além de ilegal e constitucionalmente inadequada, nos parece remeter a um uso reprovável de guarda privada, servindo mais aos particulares com a finalidade de proteger a propriedade de imóveis abandonados do que ao interesse público de preservação da ordem constitucional. São inadmissíveis as operações militares de remoção violenta de famílias que vêm ocupando terrenos e imóveis aos quais não é dada função social, desconstituído o crime de esbulho possessório. Cabe a quem se julga prejudicado com a ocupação urbana buscar o desagravo de seu direito através das ações possessórias previstas pelo Código de Processo Civil. Assim sendo, o Poder Judiciário deve, nos termos da Constituição e do art. 3°, §3° do CPC/2015, agir de modo a buscar a solução pacífica desses graves conflitos sociais através de métodos de resolução pacífica, como a mediação e conciliação. exercida pelo proprietário: Uma proposta de releitura do princípio constitucional. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/52/205/ril_ v52_n205_p23.pdf> Acesso em setembro de 2017. FERREIRA, Marieta de Moraes. As reformas de base. A Trajetória Política de João Goulart. São Paulo, 2004. Disponível em: <http://www.fjp.mg.gov.br/ index.php/fjp-na-midia/3785-1-3-2017-deficithabitacional-aumenta-com-a-recessao> Acesso em setembro de 2017. FREITAS, Daniel Medeiros de. Desvelando o campo de poder dos grandes projetos urbanos da região metropolitana de Belo Horizonte. 2016. 389fl. MORADO NASCIMENTO, D; LIBÂNIO, C. (Org.). Ocupações urbanas na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Favela é Isso Aí, 2016. MOVIMENTO de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas. Morar Dignamente é um Direito Humano: As propostas do MLB para a Reforma Urbana. 2014. Tese apresentada ao 4º Congresso Nacional do MLB, São Bernardo do Campo, 2014. ROLNIK R. Moradia é mais que um objeto físico de quatro paredes. Emetropolis: Revista Eletrônica de Estudos Urbanos e Regionais, Rio de Janeiro, v. 2, n. 5, p. 37-42, jun. 2011. Disponível em: <http:// emetropolis.net/edicao/n05> Acesso em setembro de 2017. ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direitos Reais . 4ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. Disponível em: <http://hojeemdia. com.br/horizontes/cidades/pm-faz-despejode-300-fam%C3%ADlias-em-%C3%A1rea-depreserva%C3%A7%C3%A3o-no-barreiro-1.414829> Acesso em setembro de 2017.


Vozes Malditas

REPRODUÇÃO / MAYARA SMITH

“Seu cabelo é um atentato à higiene, ao shampoo, à limpeza!”

Combo do professor José Luiz Horta.

“Sou PHDeus, sou intocável!”

“Mulheres não vão ler porque uma mulher nunca conseguirá gritar tão alto quanto um homem!”

Zini, ‘analisando as minúcias do processo penal’.

Ilustradora: Mayara Smith - Série “Manchas”, 2017. https://goo.gl/gXrzvZ

O ganhador do trófeu Voz Maldita da edição, José Luiz Horta, após solicitar a leitura durante a aula.

“Se uma aluna virar e disser: ‘eu não vou ter aula com você porque você é um branquelo’ é injúria racial ou racismo?”

" Seu intelecto me excita!"

Onofre manifestando-se contra um ‘atentado à liberdade de expressão’.

O grande esteta, José Luiz Horta, sobre cabelo com tranças em transição.

Arnaldo revelando crush intelectual em sala.

“F%d@-se dele que ficou ofendido, eu expressei minha opinião, f%d@-se dele!”

19


20

Indica

CÂNDIDO PORTINARI

A

dialética entre arte e sociedade sempre foi uma constante na história dos movimentos artísticos, tencionada por artistas que, por meio de diversos procedimentos e técnicas, decidiram representar as mudanças ocorridas na sociedade, transpondo-as para suas obras. Os temas sociais, portanto, não passaram incólume para as Artes Plásticas. À semelhança do movimento Realista do século XIX, cuja manifestação artística lançava luz sobre como a vida estruturava-se social, econômica e politicamente naquele momento. As mazelas sofridas por uma grande parcela da população, a degradação da vida e o surgimento da cidade ocupam grande parte da produção da época. Obras como “Os quebradores de pedra” (1849), do francês Gustave Corbet e “Os rebocadores do Volga” (1873), do pintor e escultor russo Ilya Yefimovich Repin já evidenciam um compromisso do artista em revelar aspectos sociais de sua época.

REPRODUÇÃO/CÂNDIDO PORTINARI

“Os Rebocadores do Volga”, 1873. Ilya Yefimovich Repin REPRODUÇÃO/CÂNDIDO PORTINARI

podemos observar nas obras “Guerra e Paz” (1952-1956), “As lavadeiras” (1944), “O lavrador de café” (1934), “Café” (1935), “Cena rural” (1954), “Favelas” (1957), “Os retirantes” (1944), “Menino sentado” (1945) um olhar do artista sobre seu próprio povo e sobre seu próprio tempo. REPRODUÇÃO/CÂNDIDO PORTINARI

de uma identidade nacional e influenciado pelo modernismo europeu, não deixou de criar uma arte expressivamente brasileira, tampouco de registrar as dificuldades enfrentadas pelos mais vulneráveis economicamente. Em um tempo em que a censura e o falso moralismo tentam atingir o conjunto da obra de um artista, a arte – e, por extensão, os museus – permanecem como espaço institucionalmente definido por apresentar à população que as diversas manifestações artísticas podem manter diálogos incessantes com a realidade, da qual e para a qual ela é feita. REPRODUÇÃO/CÂNDIDO PORTINARI

“Colhedores de café”, óleo sobre tela, 1935. Cândido Portinari

Um dos quadros mais conhecidos do pintor paulista, “Os Retirantes”, de 1944 é uma obra repleta de diálogos com o contexto brasileiro no momento em que fora produzida: o flagelo da fome a perseguir milhares de brasileiros, sobretudo os que viviam na região do semi-árido nordestino; a mudança do eixo do nordeste para o centro-sul como espaço geográfico que se firmava como centro das mudanças provocadas durante o processo tardio de industrialização brasileiro, o deslocamento forçado para o centro-sul e a busca pela sobrevivência e por oportunidades de trabalho caracterizam o período. REPRODUÇÃO/CÂNDIDO PORTINARI

“Favelas”, 1957, óleo sobre tela. Cândido Portinari REPRODUÇÃO/CÂNDIDO PORTINARI

“Os quebradores de pedras, 1849, óleo sobre tela. Gustav Coubert

No Brasil, a obra do pintor Cândido Portinari (1903-1962) é emblemática, uma vez que a temática social ocupou grande parte de sua produção artística. Soma-se a isso o seu flagrante interesse pela pintura mural, demonstrando que é possível narrar uma história sem, contudo, aderir a uma versão oficial, mostrando uma visão crítica da sociedade brasileira. Segundo o autor, “A pintura atual procura o muro. O seu espírito é sempre um espírito de classe em luta. Estou com os que acham que não há arte neutra. Mesmo sem nenhuma intenção do pintor, o quadro indica sempre um sentido social.” Assim é que

“A Clareira”, 1955. Cândido Portinari “Os retirantes”, óleo sobre tela, 1944. Cândido Portinari

Portinari imprimiu em suas obras um exame minucioso das mazelas sociais e urbanas. Historicamente circunscrito em uma época em que se buscava nas artes a criação

A arte, ainda como manifesto nu e cruento sobre os aspectos sociais sob os quais estamos assentados: cabe a nós cultivarmos a capacidade de entender as condições e a profundidade filosófica, política, estética e os diálogos que se encontram presentes nessas obras.

Luciana Campos


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