Sementes de reflexão

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Sementes de reflexão é um projeto que contempla contos sobre diversos temas, a fim de provocar no leitor reflexões sobre vida, comportamento e sociedade, bases importantes de como nos relacionamos e convivemos uns com os outros. A ideia surgiu em virtude de algumas conversas em uma cafeteria juntamente com um amigo. Após muitos debates percebi que os temas rendiam muitas reflexões com visões ora iguais, ora diferentes sobre os mesmos temas. Já quando estes temas eram comentados e dialogados com outras pessoas, algumas delas despertavam interesse em obter mais desses materiais para debate. Através destas provocações e interesses, pensei em criar os contos como reflexões, mas também que as mesmas pudessem ser debatidas por outras pessoas a fim de expedir essa troca de ideias, uma vez que todo ponto de vista é uma oportunidade de aprendizado e relacionamento. Aqui concluo lançando o meu primeiro conto com base no tema ‘’ dogmas’’: até que ponto a falta de conversas e reflexão nos faz acreditar que aquilo que achamos certo é certo sempre e para todos?

Emannuel Reichert


Conversa entre quatro amigos

Número 3, o Patriota: Está atrasado.

Número 1, o Cético: (chegando à mesa onde todos já estão sentados) Vocês simplesmente não vão acreditar no que aconteceu comigo no caminho.

Número 4, o Egoísta: (sorriso irônico) Provavelmente não, mas tente nos impressionar mesmo assim.

Cético: Fui abordado por missionários.

Número 2, o Crente: Missionários?

Cético: Daquela tal Comunidade do Salvacionismo. Disseram que preciso regrar a vida pelos mandamentos deles se quero ser salvo. Perguntei de onde tiraram esses mandamentos, responderam que do livro sagrado. Então perguntei como eles sabiam que aquele livro devia ser seguido e obedecido.

Patriota: E eles?

Cético: Disseram que está escrito no livro que ele é autêntico e o único caminho para a salvação.

Egoísta: Fanáticos.


Crente: Se fossem da minha religião, teriam explicado melhor os fundamentos. Não somos como esses aí.

Patriota: Não são?

Crente: Para começar, o nosso livro é de inspiração divina mesmo, ao contrário do deles, cheio de mudanças e corrupções.

Egoísta: É tão conveniente a Fraternidade Salvacionista, onde você nasceu e foi criado, ser a crença correta, não?

Crente: O que posso dizer? Alguns nascem na tribo certa.

Cético: Enfim, deixei eles de lado e acreditam no que aconteceu logo em seguida? Um militante do Partido Nacionalista puxou conversa comigo.

Patriota: (rindo) Eta falta de sorte!

Cético: Pois é bem verdade. Perfil de sargentão, de saída declarou que eu preciso ajudar a salvar a pátria. Perguntei como, ele respondeu que é hora de cuidarmos dos nossos interesses, chega de bancar o bonzinho com os vizinhos e deixar gentinha pobre entrar quando tantas pessoas aqui estão desempregadas.

Egoísta: O velho discurso da moralidade delimitada por fronteiras políticas, não?

Cético: Exatamente. Quando perguntei o que me preocupar com quem está aqui tem a ver com excluir quem é de fora, veio todo o discurso: amor à pátria, orgulho de ter nascido aqui, ame-o ou deixe-o, cada um cuida do que é seu, e assim foi.


Egoísta: Ou seja, você nasceu nesta tribo e deveria dar graças aos céus por esse feliz acidente todos os dias. Ao contrário de quem nasceu em outras tribos e pensa a mesma coisa, mas está errado. Por não ser como nós.

Patriota: O país de vocês está cheio de problemas mesmo. Concordo que o ufanismo cego equivale a fechar os olhos a tudo que não vai bem.

Egoísta: (irônico) “O país de vocês?”

Patriota: Você sabe que eu não sou daqui. Se fosse na terrinha, lá a situação está boa e esse tribalismo de que você reclama faz sentido. Se nasci numa “tribo” boa, não devia me orgulhar disso?

Crente: Do acaso de ter nascido desse ou daquele lado de uma fronteira?

Patriota: (dando de ombros) Grandes coisas têm começos modestos.

Egoísta: Se é tão bom lá, porque saiu?

Patriota: Não saí, fui exilado. A ditadura.

Crente: Para mim, ter ditadura é um problema em qualquer país.

Patriota: Um problema sim, mas passageiro. Não é porque não temos democracia, liberdade e direitos que deixamos de ser os melhores. Alguns nascem na tribo certa.


Egoísta: (exaltado) Tribos, tribos, as tribos que se explodam! As pessoas são más por natureza, não importa de onde vieram e no que acreditam. Precisamos viver por nós mesmos.

Crente: O que isso significa? Tirar vantagem dos outros?

Egoísta: Como eles tiram vantagem de mim quando podem.

Crente: Então, se na hora de pagar a conta eu lhe desse dinheiro a mais, você não me devolveria a minha parte?

Egoísta: Para você, sim, por ser meu amigo. A felicidade dos meus amigos é minha também.

Patriota: E se fosse um estranho?

Egoísta: Pois ficava com o dinheiro. O que eu devo a ele? Que tome mais cuidado da próxima vez! (volta-se para o Cético) E então? Consegui ou não fugir desse tal tribalismo?

Cético: Não conseguiu.

Egoísta: Como não?

Cético: “As pessoas de quem você gosta” é uma tribo como qualquer outra.

Egoísta: Mas por escolha.


Crente: Por essa lógica, impossível fugir das tribos. O que sugere? Viver numa caverna, isolado do mundo?

Cético: Não existe nada de ruim em gostar mais de pessoas que vieram do mesmo lugar que você ou têm ideias parecidas. O problema surge quando quem está fora do grupo é considerado um inimigo.

Egoísta: Qual a sua tribo então?

Cético: A humanidade. Luto por ela, mesmo se na prática começo perto de casa.

Patriota: Isso cheira a falta de patriotismo.

Crente: Falta de fé.

Egoísta: Idealismo.

Cético: Talvez eu esteja errado. Mas considerem a possibilidade de vocês estarem errados.


Visão do escritor e convidado. Caro escritor Emannuel, primeiramente quero te dizer que é uma honra participar deste projeto com você e poder debater seus contos com reflexões que serão direcionadas a possíveis leitores que como a gente gostam de fazer pausas para pensar e refletir. Em seu conto a minha conexão se deu com as questões relacionadas a crenças e personagens que defendemos uma vida toda por ideal. E isso me fez pensar como as vezes defendemos ideais que talvez nem sejam nossos, seja porque herdamos crenças que não sabemos exatamente de onde vem ou porque nos despertam ego e sentimentos dos quais não sabemos lidar. Algumas vezes pergunto para as pessoas sobre as suas crenças e seus personagens, em que momento de sua vida isso se tornou tão relevante e consciente. As respostas são diversas, mas em muitos casos com consciência rasa e sentimentos fortes. É como se perguntasse a um pai porque ele é tão rígido com o filho e sua resposta fosse, porque lá fora o mundo está perdido e o meu dever é fazer com que ele sobreviva e não perca os valores da família. Mas se novamente perguntar a esse pai de que valores estamos exatamente falando e de que família exatamente estamos falando, podemos começar um debate sem fim, porque as famílias são diferentes e os valores familiares tem significados diferentes para indivíduos diferentes. Por isso sou a favor de mais diálogo consciente por ideias e não somente por ideal. Caro Vinicius, é uma satisfação participar desta conversa. Muito poucas das nossas opiniões e valores são o resultado de uma busca pela verdade. Via de regra, absorvemos os valores dos nossos pais, da família, amigos, colegas, como se fôssemos esponjas. Porque o ser humano tem uma necessidade forte de pertencimento, de ser aceito em um grupo. Tradicionalmente, esse papel de coesão social foi cumprido pelas religiões. Nas religiões antigas, quase sempre se reconhecia que existiam outros deuses, adorados por outros povos. Por que então seguiam uns deuses em vez de outros? Porque a cidade ou os ancestrais veneravam aqueles deuses, “as coisas sempre haviam sido assim”. Na Atenas antiga, Sócrates foi condenado à morte com a acusação de não acreditar nos deuses


da cidade e introduzir outros novos, quer dizer, por rejeitar a visão de mundo daquele grupo que eram os cidadãos atenienses. Mais tarde, o cristianismo e outras religiões dão um papel de destaque à moralidade. Antes disso, a religião tinha a mais a ver com obediência e troca de favores: respeite os deuses, faça orações e oferendas e eles darão coisas boas em troca. Ser uma pessoa boa ou ruim tinha pouco a ver com a religião. Quando se passa disso a uma busca pela salvação, que depende de ter as crenças corretas e seguir leis divinas, a contrapartida é que quem tem opiniões diferentes agora corre o risco de ser considerado mau. Quem não tem a “crença correta” é um infiel em oposição ao próprio Deus. O Estado Islâmico é um exemplo moderno que leva o radicalismo às últimas consequências: acreditam que são os únicos conhecedores da vontade divina e quem discordar deles, mesmo outros muçulmanos, deve se converter ou morrer. Nos últimos séculos, cresceu a tolerância religiosa, e a identidade de grupo passou a ganhar o aspecto do nacionalismo. Todas as pessoas que nascem dentro de cada território possuiriam uma certa identidade – o “ser” brasileiro, argentino, alemão, italiano, etc – e um dever de obediência à pátria, como essa comunidade que exige que cada cidadão sirva a ela e a nenhuma outra. Enfim, cada época tem seus valores, e em geral eles ajudam a excluir os “de fora” e legitimar o poder dos governantes - o rei por direito divino, o ditador que encarna a nação, o presidente que defende a nação contra os inimigos. Lendo o teu relato Emannuel sobre a construção social ao longo do tempo e de como as pessoas começaram a ter necessidade de pertencimento a grupos e a seguir formatos de vida por obediência e crença, me faz pensar em tempo presente o quanto carregamos de genética de comportamentos de nossos ancestrais, sejam elas genéticas, físicas ou comportamentais. Talvez pouco mudou de lá para cá no que se refere a modelos de ensinamento e aprendizado, uma vez que o formato de passagem de conhecimento se discorre igual, o dogma da evolução da vida segue repetências em suas faixas etárias e experiências da vida ano após ano. Se pararmos para pensar, a vida quase que segue uma lógica social imposta inconscientemente por grande parte das pessoas sem percebermos com profundidade essa repetência. Assim nascemos, aprendemos a caminhar, se


comunicar, explorar e buscar uma certa autonomia, já na adolescência descobrimos a diferença entre os sexos, a necessidade de pertencimento e inclusão, na transição da adolescência para a fase adulta, a vida nos obriga a encontrar um propósito de vida na escolha profissional, como se aos 20 anos de idade ou menos tenhamos a maturidade de escolher o nosso futuro nos próximos 65 anos ou mais, depois desta escolha somos cobrados a ganhar dinheiro, constituir família, ter casa e carro próprio, ter filhos, educálos, envelhecer, e na fase mais madura da vida perguntar, porque fiz tudo isso, o que fiz esse tempo todo foram escolhas certas ou erradas? Claro que nesse relato me baseio em evidências nos processos e vivências comportamentais em atendimento e estudos ao longo do tempo. Porém posso perceber nesta nova geração que está chegando a necessidade de quebra de dogmas, mesmo se em muitos casos são julgados pelas tribos de gerações diferentes da deles como uma geração perdida e sem valores. Posso até concordar com uma geração com dificuldade de compreensão de limites, mas ao mesmo tempo vejo uma geração sedenta por mudanças e muito mais questionamento. Não sei onde isso vai chegar, apenas penso que toda mudança é um sinal de sair de uma zona de estagnação, já se os frutos serão bons ou ruim somente o tempo dirá. Porém dentro de mim como futuro pai quero acreditar que podemos ter um futuro melhor, porque somente assim fará sentido gerar filhos no futuro, uma vez que sempre queremos o melhor para eles. Para finalizar esse debate, Vinicius, quero compartilhar o que penso para os próximos anos em relação a pertencimento, crenças e fanatismo. Hoje continuamos querendo ser aceitos em grupos, os grupos geram crenças e valores comuns e às vezes, por diversos motivos, fecham-se nas suas opiniões e alimentam o radicalismo. Nada disso mudou. Mas nossa época oferece uma vantagem que nunca existiu antes: facilidade de comunicação e de obter informações imediatas sobre qualquer canto do mundo. Existe aí a possibilidade de diálogo e aprendizado, de manter a mente aberta e aceitar as diferenças, ou o risco de se fechar numa bolha e só se comunicar com quem pensa como nós, sem nunca ouvir o outro lado. No fim das contas, ninguém pode abrir nossas mentes por nós. Esse passo depende de cada um.


Perguntas de reflexão

A que tribo realmente tenho necessidade de pertencer?

Tenho fanatismo sobre os meus ideais ou sou um bom mente aberta?

Consigo ser 100% eu, nos grupos que participo?

Emannuel Reichert Escritor

Vinicius Brammer Convidado


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