Revista Ser ATEU - edição nº 1

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Carta ao leitor Carta ao leitor

A criação de um espaço para discussão Por Matheus José Maria O Brasil é uma superpotência religiosa, com a maior população católica mundial. Aqui divindades africanas são veneradas por católicos, pessoas conversam com os mortos após a missa e até a presidente diz ao Papa que ‘Deus é brasileiro’. Há como um ateu não se sentir ou até ser considerado pelos demais como um alienígena em seu próprio país? Mesmo com essa sensação, vários ateus se assumem como tal, caso dos jornalistas José Roberto Torero e Julinho Bittencourt, que nesta edição falam de suas carreiras, projetos e de como é viver livre de qualquer religião. Longe de ser uma bandeira a favor do ateísmo e contra as religiões, a Ser Ateu pretende propor um diálogo aberto e reflexivo sobre as religiões, promovendo um maior conhecimento de todas as vertentes, religiosas ou não, já que um dos nossos princípios editoriais é a promoção das relações humanas através do conhecimento. Pensando nisso apresentamos também nesta primeira edição, a coluna de cultura, na qual é indicada a leitura

do livro Não sou Cristão, de um dos primeiros ateus assumidos na história, o escritor e filósofo Bertrand Russel. Na seção Ciências mostramos uma visão da psicologia no que tange as religiões. Seguindo esse mesmo viés de esclarecer e propor discussões, a seção Diferenças apresenta uma matéria onde é discutida a convivência entre pessoas de crenças diferentes. Quais as dificuldades e soluções para uma convivência pacífica e respeitosa? É possível isso? Entre depoimentos e fatos, dicas de livro e novas informações, a Ser Ateu pretende mostrar que ateísmo não é sinônimo de falha de caráter e que os ateus não só podem como devem, sair do armário. Respeito é a pedra fundamental sobre a qual essa revista irá ser construída e acreditamos que a tolerância deve ser a base de todas as religiões. Então, sejam ateus ou religiosos, deixamos aqui o convite para fazerem desta revista um espaço para discussões saudáveis e respeitosas. Afinal, independente do que acreditamos ou não, estamos todos juntos neste mesmo barco chamado Terra. R

Expediente Expediente

A Revista SER ATEU é trabalho curricular da disciplina Laboratório de Texto III do 3º ano do curso de Jornalismo da Unisanta Diretor da FaAC: Humberto Iafullo Challoub

Editor: Matheus José Maria

Coordenador de Jornalismo: Robson Bastos

Repórteres: Carolina Yasusda Jéssica Alves Matheus José Maria Vinicius Kepe Yonny Furukawa Wagner Tavares

Professores Responsáveis: Helder Marques de Sousa Coelho - Textos Raquel Alves - Textos Fernando Claudio Peel - Diagramação Luiz Carlos Teixeira Nascimento - Fotografia

Fotos: Matheus José Maria Wagner Tavares Diagramação e artes: Wagner Tavares

Direitos reservados 2014


SER

ATEU

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TORERO. Conheça um pouco do jornalista, roteirista, autor, cineasta e ateu fora do armário

entrevista

PSICOLOGIA E RELIGIÃO. A crença ou o ceticismo já nasce intrínseco na mente humana ou são conceitos formados com o tempo?

JULINHO BITTENCOURT. Uma conversa descontraída com esse músico santista, ateu, que adora falar de tudo um pouco

Índice

Índice perfil


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CITAÇÕES DE FAMOSOS. Conheça frases sobre religião e ceticismo de personalidades famosas e pensadores

diferenças

EDUCAR FILHOS EM DUAS CRENÇAS. Veja as experiências de dois casais. Como fica a educação religiosa?

RELIGIÃO E FUTEBOL NÃO SE DISCUTE. Diferentes crenças em um mesmo convívio. Há tolerância e compreensão?

NÃO SOU CRISTÃO. Dica do livro com coletânea de textos do filósofo e um dos primeiros ativistas ateus da história, Bertrand Russell

cultura frases


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Entrevista

Julinho

Bittencourt

“Até queria, mas não consigo acreditar em Deus”


Entrevista

Reportagem: CAROLINA YASUDA Fotos: MATHEUS JOSÉ MARIA O versículo bíblico “Sem fé é impossível agradar a Deus”, certamente não abala o jornalista, músico e autor teatral, Julinho Bittencourt. Ele é um ateu convicto, mas que respeita as crenças e valoriza a cultura inserida nos movimentos religiosos. Apesar de acreditar que uma vida com fé seria mais bonita, esperançosa e menos solitária, desde criança ele dispensou qualquer envolvimento com Deus e deposita sua confiança somente naquilo que os olhos podem ver e a ciência explicar. Em entrevista à Revista Ser Ateu, Bittencourt conta um pouco sobre sua formação ateísta e expõe suas opiniões sobre o assunto.

Quando você decidiu ser ateu? Não decidi. Na verdade, isso é uma formação marxista, sou filho de comunista e tive uma vida de militância. Isso é curioso porque minha mãe não falava muito sobre o assunto. Ela morreu e até hoje não sei se ela acreditava em Deus. E o meu pai teve uma formação católica muito rígida, mas substituiu a igreja pelo partidarismo. E a sua família hoje? Minhas duas filhas, a Ana e a Beatriz, não foram batizadas. Também não casei na igreja e a minha esposa, a Angela, não se envolve com religião. Embora tenha vindo de uma família muito católica. Já teve problemas com a família da sua esposa? Sim, foi uma discussão complicada. Minha sogra é muito devota e ela não entendia porque a gente não casava na igreja. Explicava para ela que me sentia desrespeitando a crença dela. Seria como se eu estivesse fazendo um culto em uma religião que eu não praticava. O que mais o incomoda nos religiosos? Ao longo da vida sempre senti, principalmente em certas religiões, um desrespeito muito grande por quem não acredita em Deus. Hoje dou risada, mas me incomodou durante muito tempo o espanto que as pessoas demonstravam quando falava que sou ateu.

Sempre brinco que o direito a esse espanto é meu, porque ter um Deus é uma coisa muito mais fantástica, mais inacreditável do que não ter um. A vida seria mais fácil com a fé? Sinto falta da fé e tem muitas coisas que substituem isso. Aprendi que a vida é boa, mas é difícil. Então crio outras interlocuções como se fossem meus próprios deuses que não tornam essa caminhada tão solitária. O que substitui a sua fé? É muito subjetivo falar, mas encaro a vida desde sempre como uma coisa absolutamente casual e científica. Essa é a visão que substitui a fé. A parte ruim é que esses pensamentos te levam a um pessimismo, um verdadeiro abismo onde sabemos que a gente passa por dificuldades, envelhece, morre e os bichos comem. Isso é chato porque, quando se é jovem, existe muita esperança. Mas com o passar do tempo, você se torna uma pessoa dura. Eu imagino que a fé ajude a camuflar isso. Você consegue ver algo de bom na religião? Tenho um lado de admiração pelo devocional que certas crenças possuem no sentido musical e cultural. Os encontros de diferentes religiões, movimentos, danças, músicas, tudo isso parece trazer uma espécie de conforto para quem os

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Entrevista

frequenta. Vejo isso em alguns amigos que às vezes têm uma postura que não condiz com o que se prega, mas não deixam de ir e se sentem bem. Como a música é algo determinante na minha vida, consigo enxergá-la de uma forma diferente nesses casos. Para mim vai além do raciocínio lógico, mas mesmo assim não chego a desenvolver um sentimento de fé em Deus, apenas acredito nessa capacidade e energia da raça humana para essas devoções. Então você observa a arte independente da crença? Sim, totalmente livre. Ao longo dos anos aprendi a abrir os olhos e os ouvidos para tudo. Compositores como Mozart e Bach, por exemplo, tinham uma ligação muito forte com o catolicismo e é incontestável a grandeza das obras. Muitos outros artistas trabalham em conjunto com o devocional. Eu consigo entender, me emocionar e até invejar como as pessoas se entregam e fazem disso um enriquecimento para suas vidas. Você se sente na obrigação de “converter” as pessoas para o ateísmo? Perdi a agressividade em relação a isso que muitos ateus têm. Hoje tenho muita serenidade, gosto da devoção e fé do outro. Sou muito curioso e converso com amigos sobre isso e respeito bastante. Muitos ateus até conseguem se aproximar de Deus ao longo da vida, meu pai foi um caso. Mas parece que os anos só serviram para me afastar e desacreditar mais. Qual a vantagem de não ser religioso? A liberdade! Não preciso ficar preso aos códigos de conduta das religiões, apesar de achar e concordar que eles contribuem para construir uma ética dentro da sociedade. Essa distância me transformou

em alguém mais livre moralmente e com facilidade de aceitar o comportamento humano. Alguma vez se sentiu tocado a não ser ateu? Várias pessoas passam por um processo de iluminação que as levam ao encontro com Deus. Eu passei por muitos trancos na vida, perdi meus pais e mesmo assim nada me convenceu. Ser ateu é difícil por não acreditar na vida após a morte. Seria adorável poder imaginar que, quando eu morrer, seria possível encontrar meu pai, mãe, avós e amigos que já faleceram. Ia ser uma grande festa no céu, mas eu não consigo imaginar essa festa em hipótese alguma. R


Entrevista

“Seria adorável poder imaginar que, quando eu morrer, seria possível encontrar meu pai, mãe, avós e amigos que já faleceram. la ser uma grande festa no céu, mas eu não consigo imaginar essa festa em hipótese alguma”

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Ciência

RELIGIOSIDADE:

coisa da nossa cabeça? O ser humano tem acesso direto a Deus, ao Sagrado ou ao Infinito, ou estamos lidando, exclusivamente, com os conteúdos da consciência humana?

Reportagem e artes: Wagner Tavares A pergunta acima é encontrada em diversos livros e estudos que abordam religião, psicologia e filosofia, estudo base da psicologia. Para a psicologia, a experiência religiosa é, na verdade, humana e as práticas religiosas são comportamentos também humanos. Sendo assim, as práticas religiosas são tratadas dentro de uma concepção de ciência, em que o comportamento humano é analisado. E vários foram os estudos sobre esse tema, teorias criadas por vários pensadores. Entre eles, há duas correntes de pensamento, a do pai da psicanálise Sigmund Freud e a do psiquiatra Viktor Frankl. Freud dizia que a experiência religiosa não passa de neurose enquanto Frankl dizia que é algo saudável, com que o ser humano

busca sentido nas coisas. Em carta a Sigmund Freud, um amigo tenta definir a religiosidade. “Consiste num sentimento peculiar atuante em milhões de pessoas. Uma sensação de ‘eternidade’, um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras, ‘oceânico’, por assim dizer. Esse sentimento configura um fato puramente subjetivo, e não um artigo de fé, não traz consigo qualquer garantia de imortalidade pessoal, mas constitui a fonte da energia religiosa de que se apoderam as diversas Igrejas e sistemas religiosos, é por eles veiculado para canais específicos e, indubitavelmente, também por eles exaurido. Uma pessoa, embora rejeite toda crença e toda ilusão, pode corretamente chamar-se a si mesma de religiosa com fundamento apenas nesse sentimento oceânico”. Mas Freud não conseguia descobrir esse sentimen-


Ciência

to oceânico em si próprio. Ateu, não era fácil para ele lidar com sentimentos. Dizia que é possível apenas tentar descrever os sinais fisiológicos. Em seu texto O

mal-estar da civilização (1930),

Freud afirma que se fosse demonstrado que a vida não tem o propósito pretendido pelos religiosos, esta perderia seu valor. “Tal ameaça, porém, não altera nada. Pelo contrário, faz parecer que temos o direito de descartar a questão, já que ela parece derivar da presunção humana”. Para ele, a religião está diretamente ligada à sensação de fraqueza e desamparo do indivíduo, o qual utiliza-se dela como um mecanismo de defesa frente às ameaças vivenciadas, as dores e desprazeres vividos no cotidiano. O psicanalista acreditava que o Deus pessoal nada mais é, psicologicamente, do que a exaltação do pai, protegendo, mas doutrinando. “Observa-se diariamente jovens que abandonam sua crença religiosa assim que a autoridade paterna desmorona”. Para Freud, o Deus Todo Poderoso justo e a natureza bondosa remetem ao pai e à mãe, respectivamente, principalmente se retornarmos às ideias infantis sobre os mesmos. A outra corrente de pensamento, representada por James Fowler, professor de Teologia e Desenvolvimento Humano, afirma que fé e personalidade estão entrelaçadas, ainda que não sendo a mesma coisa. Para ele, fé é a experiência humana de lealdade e confiança. É centro de valor que dá apoio, orientação, poder, coragem e esperança às nossas vidas e nos une em comunidades. Todo humano, religioso ou não, tem algum tipo de fé. Um valor que aparece como linha-guia. Essa fé vem de dentro, não é proveniente de um Deus ou alguma reli-

gião, mas ela pode se desenvolver de várias formas, inclusive a de ter fé que o “Criador” não existe. Nesse tipo de fé, segundo a psicóloga Luci Mara Lundin, a pessoa pode ter satisfação em pesquisas e acaba ficando cética. “Nunca tive um fervoroso como paciente. Geralmente, o crente procura soluções na igreja, na religião. Os que procuram a psicologia para resolver os problemas podem ter religiosidade, mas não procuram soluções na religião”. Ela ainda afirma que a educação familiar influencia a criança, mas após a adolescência, período de contestação, a pessoa pode ou não seguir a religião dos pais. A psicóloga Fabiana Maza acrescenta que cada indivíduo é único e traz consigo o resultado de seus aprendizados somados às suas necessidades pessoais. A religiosidade, em um primeiro momento, é algo aprendido, ou seja, o indivíduo irá utilizar-se daquilo que foi ensinado. Quando começar a reavaliar suas crenças, a influência sairá do aprendizado e virá de acordo com suas necessidades individuais. Luci Mara é ateia, Fabiana é cristã. Ambas são psicólogas e afirmam que a crença ou ceticismo do profissional não deve influenciar no tratamento de um paciente. Enfatizam que a função do psicólogo é pautada por uma linha de pensamento teórico e não pelos valores ou crenças e que o profissional não pode trazer suas convicções pessoais para dentro da sessão. Para evitar que o psicólogo “misture” sua vida pessoal com a atividade que exerce, diz Luci Mara, é exigido que o profissional também faça terapia, pois, desse modo, passa a conhecer melhor suas limitações e problemáticas. R

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Perfil


Perfil

José Roberto

TORERO

e o chuveiro da conversão Reportagem: Vinícius Kepe Fotos: Wagner Tavares Um cachorro, de pelos negros e com uma coleira vermelha, parecia nos aguardar enquanto o fotógrafo Wagner Tavares estacionava o carro a uma quadra da casa do escritor José Roberto Torero, no bairro Ponta da Praia. Estávamos dez minutos atrasados para a entrevista. Fomos andando para o endereço indicado e, por alguns instantes, não sabíamos se o cão nos seguia ou se estava ali para nos recepcionar, pois, para a nossa surpresa, ele nos acompanhou até o prédio, como se fosse nosso anfitrião. “Viemos falar com o Torero, temos uma entrevista marcada com ele”, informamos o porteiro que, antes, tinha nos perguntado de quem era o animal. “Não é seu?”, respondi. Ele riu, pegou o telefone interno, discou alguns números e falou: “Tem duas pessoas aqui para uma entrevista... Tudo bem?”, colocou o aparelho no gancho e completou: “Podem subir. É no segundo andar”.

O edifício não é cercado por portões – coisa não muito convencional em Santos, já que muitos novos empreendimentos mais parecem fortalezas. Recepcionados por Torero e Maria Rita, sua esposa, logo nos acomodamos na sala. Sentados num sofá de cor laranja, que é para combinar com dois abajures da mesma cor, cada um posicionado nas duas pontas do móvel, expliquei sobre a nossa revista voltada para o público ateu. Maria Rita ficou na cozinha, preparando um café. Enquanto isso, o escritor confirma que o que não lhe falta é sátira quando o assunto é Deus. Tanto em uma conversa ou em seus textos, é possível notar o humor elaborado de forma inteligente e precisa. Em um texto intitulado A Morte dos Imortais, publicado numa coluna do site Carta Maior, o também roteirista – que já foi indicado ao Oscar - escreveu sobre a perda de força das religiões e a preocupação de algumas divindades de serem as próximas a caírem no esquecimento. Num dos trechos,

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“Deus é um cara complicado, o propósito de ser adorado e obedecido é muito humano. É um cara que precisa de tratamento”


Perfil

Mazda, deus da Pérsia, conversa com outros convidados de uma grande festa celestial: “(...) Mesmo os deuses desta festa estão quase transparentes. É que pouca gente crê neles. Zeus e Toth, por exemplo, são mais folclore que religião. E eu só sobrevivo por conta de uns duzentos mil adeptos. Uma mixaria. Meus dias estão contados...”. Vestido num conjunto de blusa e bermuda branca, feito de malha esportiva, com seus olhos quase cinzentos e na casa dos 50 anos, Torero já não mais está com os reconhecidos cabelos

compridos e grisalhos, uma imagem reproduzida incansavelmente em diversos veículos digitais. Mesmo bem curtos, parece que a falta dos cabelos não tirou a força e a capacidade do santista de continuar trabalhando. No final de 2013, Torero, que já tem mais de 25 obras publicadas, lançou o livro Papis Et Circenses – vencedor do 1º Prêmio Paraná de Literatura – que, em diferentes estilos de texto, conta curiosas histórias nada divinas de homens que já foram Papas. Não é a primeira vez que o tema religião entra nas obras do escritor: o Evangelho de Barrabás e Terra Papagalli também abordam a questão. “A religião faz parte da vida das pessoas. Por isso tem que fazer parte dos romances e ser ateu ajuda a escrever bem sobre o assunto”. Num dos cantos da sala, uma imensa estante toma conta de uma das paredes. Nela, livros, bonecos – muitos deles personagens de Os Simpsons – filmes e tabuleiros de xadrez são os objetos mais visíveis. Em frente, uma mesa com mais livros e filmes. No lado esquerdo do móvel, uma parede com fotos e três expositores feitos de madeira para miniaturas de carros encanta os mais apaixonados. Deu para contar uns cem modelos diferentes. Torero explica que a coleção começou quando ainda era criança, e não tardou para ficarmos cientes de que tínhamos adentrado em seu apartamento de infância. Hoje, pai do Matias Torero, um bebê de sete meses, seu primeiro filho, o escritor mora com a mulher no bairro Perdizes, em São Paulo, e quase todos os finais de semana desce a serra para relaxar no local em

que começou a questionar se a vida pós-morte realmente existia. O chuveiro, local de cantoria para os mais entusiasmados, foi palco para seus questionamentos sobre as religiões quando tinha 15 anos, idade que, em uma pesquisa, indicou ser 54% dos ateus entrevistados. A afirmação veio posteriormente a um olhar que mirava o teto e sequenciada por sorriso de escárnio: “Existem duas grandes vertentes que são opostas. Uma está certa e a outra, errada. “Eu achava isso estranho e ficava pensando ‘Qual será a correta?’”. Mais daí eu comecei a pensar que, se uma está errada, as duas podem estar erradas!” Para sustentar a desordem da religião, ele coloca como exemplo a crença da ressurreição e da reencarnação. De um lado, os defensores da primeira teoria: budistas, espíritas, umbandistas, hinduístas. Do outro, os defensores da segunda: católicos e maometanos. “Eu pensava nisso no chuveiro, na hora de relaxar. Depois de uns cinco ou sete anos, me convenci: ‘É, não tem nada além, mesmo. A vida da gente segue somente até a morte’”. A mãe do escritor é astróloga, ou “panreligiosa”, como ele mesmo a definiu, aos risos. O pai é católico, mas nunca foi de frequentar missas. “A minha família é bem liberal, uma por que acreditam em tudo e outra, porque não ligam. Nunca tive problema em ser ateu dentro de uma família de formação católica”. Mesmo nessas condições, Torero confessa que, quando era jovem, o lugar que mais gostava de ir era na igreja Coração de Maria... para jogar pingue-pongue. Sobre os amigos da comunidade cristã, com quem nunca perdeu o contato, ele recorda que até foram prestigiar o lançamento do seu último livro. “O católico brasileiro é muito liberal. Mesmo em Santos,

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você pode ver uma igreja católica, uma judaica e uma islamita não muito distante uma da outra”. “Olha só a capa do site da Folha: ‘Os ateus e os desafios de viver sem mistérios’”. Mostrando o laptop, Torero se referiu à chamada de um artigo escrito por Marcelo Gleiser, professor de física e astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA), que estava no espaço randômico da versão digital do jornal paulistano. Comento que o artigo caiu como uma luva para o assunto. Daí, ele sugere: “Pode até roubar!” (risos). No artigo, Gleiser tece comentários sobre outro artigo, este publicado na conceituada The New Yorker e intitulado BIGGER THAN PHIL - When did faith start to fade? (Maior do que Phil – Quando a fé começa a desaparecer? - tradução livre), onde o autor Adam Gopnik fala sobre a ascensão do ateísmo, ao menos na América e Europa. Gleiser cita seu próprio livro, A Ilha do Conhecimento (Ed. Record, que será lançado em agosto de 2014), e comenta que “o que nos torna humanos é precisamente nossa atração pelo desconhecido”. O conhecimento é tido como a chave da libertação para muitos estudiosos ateus. Christopher Hitchens foi um dos que tratam os fiéis que seguem determinada religião como adultos imaturos que, mesmo com toda a facilidade no acesso a respostas por meio de informações científicas, preferem continuar acreditando que, por exemplo, a epidemia da peste negra dizimou de 75 a 200 milhões de europeus no século XIV por causa de uma intervenção divina e não que foi causada por uma bactéria chinesa ou asiática, que viajou por navios usando ratos como hospedeiros. Para Torero, o raciocínio é válido. Deixando a crítica de lado, argumenta: “Quanto mais conhecimento se tem, menos à mercê da religião a gente fica. Na chuva, por exemplo, nos tempos das caravelas, os tripulantes acreditavam que deveriam fazer uma procissão e dar 33 voltas, que é a idade de Cristo, para que ela passasse. Hoje, é só você acessar o Climatempo: “A tempestade está programada”. Em determinado momento, Maria Rita, uma mulher simpática, de cabelos pretos e um pouco maior que o nosso entrevistado, levou para os braços do pai o pequeno Matias. Enfim, eu tinha descoberto quem era o usuário do carrinho de bebê que estava estacionado junto à parede da porta de entrada da casa. O pai coloca o filho no colo. O bebê tem a pele bem clara e vestia uma roupinha branca, como a do pai, só que com listras verdes. Depois de um breve estranhamento, a criança começa a sorrir e a querer pegar o gravador. Torero olha para Matias e, virando-se rapidamente, diz: “A hora que todo mundo sente um pouco como é ser

Pai pela primeira vez, aos 50 anos, Torero e Maria Rita seguram e brincam com o pequeno Matias, com pouco mais de oito meses. “Essa é a hora que todo mundo sente um pouco como é ser Deus”, diz o escritor.


Perfil

Deus”. E sustenta, ironicamente: “Eu criei a vida, né?”. Trabalhar certos temas da vida com crianças não deve ser uma das tarefas mais fáceis. Pelo menos para Torero, não é. Ele explica, como exemplo, o quão pode ser difícil explicar de uma forma agradável a consciência da morte. “Eu vou ser honesto com meu filho.” Além disso, a promessa do céu como consolo da morte para Torero é algo terrível. “Ainda não sei se vou contar de uma vez. Os dogmas, seja de qual religião for, são tão ruins como os de qualquer time de futebol. Mesmo assim, temos que mostrar que ateísmo e o Santos são melhores” (risos). Mais de uma hora já tinha se passado, mas a conversa continuava. Percebemos que já estava quase na hora do almoço. Morador do andar superior, Marcus Aurelius Pimenta, amigo de Torero, também escritor e roteirista, chegou acompanhado por uma moça e

ficou na cozinha conversando com Maria Rita enquanto terminávamos nossa entrevista. Torero continuou e argumentou que se a educação melhora, vai tirando as pessoas do período das trevas. Mesmo assim, enfatizou que é um processo lento, porém inevitável. Ele diz que leu muito o Dicionário das Religiões. “Quando a gente analisa as religiões, nos surpreendemos ainda mais, porque percebemos o quanto ela é feita à imagem e semelhança do homem”. Para o escritor, o egocentrismo é o que marca as figuras poderosas da religião, como o Papa, por exemplo, que segue propósitos mais humanos do que divinos. Para ele, se Deus realmente existe, ele sofre de carência e problemas psicológicos sérios. “Deus é um cara complicado, o propósito de ser adorado e obedecido é muito humano. É um cara que precisa de tratamento”. Todo tipo de argumento do escri-

tor pode ser traduzido numa mágoa, que é causada quando ele percebe que pessoas estão sendo enganadas por instituições e líderes religiosos]. “Acredito que a religião traz muita desordem, guerra e confusão”, frisa. Encerrada a entrevistam, já no elevador, o fotógrafo me perguntou o que eu tinha achado da conversa e do escritor. Ao contrário do que fui informado sobre sua personalidade ao conversar com amigos, que disseram se tratar de uma pessoa divertida, mas de poucas palavras, respondi que o achei bem comunicativo. Na recepção do edifício, agradecemos o porteiro e fomos em direção ao carro. Não havia mais chuva, ainda bem. E olha que nem precisamos dar as 33 voltas que representam a idade de Cristo, pois, traduzindo as previsões dos especialistas climáticos para aquela semana em diante, não haveria procissão que evitasse os futuros temporais. R

Torero mostra o livro que o ajudou na pesquisa sobre outras religiões e a definir a sua própria não-crença

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Cultura

DICA

c u l t u r a l

Texto: Wagner Tavares Ser agnóstico, ateu ou cético e ainda não ter lido este livro, é o mesmo que ser professor de literatura e não ter lido Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, ou Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Por Que Não Sou Cristão (L&PM, 224 páginas) é uma coletânea de ensaios e discursos do filósofo, escritor e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1950, o britânico Bertrand Russel. Mesmo o seu lançamento acontecendo em 1957 e alguns textos serem da década de 1920, as ideias, pensamentos e argumentos permanecem muito atuais, mesmo depois de quase um século. O livro é um ataque às religiões, mas, diferente de outras publicações atuais do gênero, Russel faz o leitor refletir através de argumentações sólidas passadas com humor refinado, difícil imaginar em um homem daquela época. Estamos, hoje, vivendo a era do politicamente correto, só que o autor já falava de forma imparcial sobre sexo, educação de crianças, ciência, moralidade, filosofia, entre muitos outros assuntos, com incrível discernimento. Em um dos trechos da página 41 do livro, Russel pondera: “Um mundo bom

necessita de conhecimento, gentileza e coragem; não precisa de anseios pesarosos nem pelo passado nem do encarceramento do livre pensar a palavras proferidas há muito tempo por homens ignorantes. Precisa de perspectivas desprovidas de medo e de liberdade para a inteligência. Precisa de esperança para o futuro, e não de de um retrocesso a um passado que já morreu, que, acreditamos, será enormemente pelo futuro que a nossa inteligência é capaz de criar.”. Ser Ateu espera ter aguçado a sua vontade de conhecer o pensamento de um dos primeiros ativistas ateus da história. R


Diferenças

Futebol

religião

e não se discute

Reportagem: YONNY FURUKAWA A religiosidade está presente em toda e qualquer comunidade. Até mesmo a descrença em uma divindade superior, Deus, pode ser classificada como uma forma de religião, que, segundo o dicionário, é uma doutrina ou crença. As segmentações são inúmeras e crescem a cada dia. Mas como lidar com isso? Como viver bem em sociedade com tantas divergências religiosas? Católico, espírita, evangélico, ateu. Em um mesmo ambiente podemos encontrar todos esses “crentes” juntos. A católica Rita Maria de Jesus acredita que seu Deus é maravilhoso e tem orgulho de frequentar a doutrina cristã. Ela diz que respeita a visão do ser humano, mas, grande parte de seus amigos é da mesma religião que a dela. Rita ainda afirma que futebol e religião não se discute.

Marco Pollo, um empresário evangélico, afirma que não é a religião que o faz se sentir bem, mas, sim, o que ele acredita. “A religião apenas desuniu os seres humanos até hoje, pois cada indivíduo quer defender seus ideais e no que acredita, muitas vezes desvalorizando as escolhas religiosas de outras pessoas”. Quando questionado sobre a convivência com ateus, respondeu que não os discrimina e até possui amigos ateus, porém se irrita quando o assunto são pesquisas cientificas para explicar acontecimentos bíblicos. “Ateus, infelizmente, em sua maioria, são revoltados, arrogantes e donos da verdade absoluta”. Cintia Luz, atleta, é seguidora da doutrina espírita e quando se refere à religião, prefere mencionar um só Deus. “Quando as pessoas me perguntam, falo o que eu sigo, mas Deus existe apenas um”. A espírita conhece pessoas ateias, que considera difíceis de conviver.

“Não falo nada de Deus, elas não aceitam. Faço as minhas orações e vibrações para essa pessoa melhorar.”, desabafa. Angelo Augusto Manchini, aposentado, é ateu não assumido e começou a “desacreditar” em Deus na adolescência. “Fui cristão católico, mas já carregava muitas dúvidas quanto à fé. Então me tornei um cético quanto a qualquer prática religiosa”. Manchini ainda diz “Não tenho como provar que Deus não existe, mas também não tenho indício de sua existência”. O aposentado se adapta às situações e não dá muita importância quando o assunto é religião. “Não faço proselitismo da minha falta de crença. Evito o preconceito”, declara. Com a diversidade de religiões e crenças, somos “obrigados” involuntariamente a aceitar e conviver mutuamente com essa divergência de ideias. A religião, como a opção sexual, futebol e política, não se discute. Não existe fator predominante entre elas que faça os indivíduos com culturas, ensinamentos e convivências diferentes acreditarem no mesmo ideal. As diferenças existem, é essencial respeitá-las para mantermos um bom convívio social. “Cada um acredita no que quiser. Afinal não podemos julgar ninguém.”, diz Marco Pollo. R

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Diferenças

educar filhos em duas crenças Reportagem: Jéssica Alves Fotos: Arquivo Pessoal Arte: Wagner Tavares Luiz Silva frequentou o espiritismo, umbanda e as igrejas Deus é Amor, Assembleia de Deus e Jesus Cristo do 7º Dia para conhecer as religiões e a si mesmo. “Ainda tenho curiosidade de conhecer a budista. Mas, cada religião interpreta a Bíblia de sua maneira para poder manipular seus seguidores”, expõe seu ponto de vista. Por outro lado, sua mulher, Viviana da Silva, sempre seguiu a linha católica da família. Quando

O casal Viviana, cristã, e Luiz Silva, ateu

Luiz Silva e o filho Vinicius

criança frequentou a igreja e atualmente não é praticante, mas não simpatiza com o ateísmo. “Minha mulher não gosta que eu me intitule ateu e nem que rebata ideias religiosas quando estamos entre amigos. Mas eu respeito até onde me

convém”. Viviana, a mãe de Vinícius Silva, mesmo não sendo uma cristã ativa, fez com que a primeira comunhão estivesse presente na vida do filho. “Foi estra-


Diferenças

nho porque, na hora de rezar, eu não sabia, daí, eles sempre me pulavam”, conta o adolescente que, hoje, tem 18 anos e se declarou ateu aos 16. O pai conta que apresentou ao filho religiões diferentes e sempre esclareceu as dúvidas, mas deixou a decisão por conta dele e nunca o forçou a nada. O psicólogo Paul Vitz, autor do livro Faith of the Fatherless: The Psychology of Atheism (“A fé dos Orfãos: A Psicologia do Ateísmo”), se inspirou na “teoria da projeção” de Sigmund Freud para explicar o ateísmo. Segundo ele, os ateus são pessoas que tiveram problemas de relacionamento com os pais. Por isso, eles teriam restrições à imagem de “pai celestial”. Para sustentar essa ideia, ele apresentou nomes de pessoas famosas que são ateus e tiveram problemas paternais. Fazem parte da extensa lista, o nazista Hitler; o filósofo Daniel Dennett; o filógogo Friedrich Nietzsche e Freud. Segundo Luiz, a escolha pelo ateísmo surgiu dos inúmeros questionamentos sobre a existência de um ser maior, Deus. O que também serve como explicação para a escolha de seu filho. “Nosso relacionamento é normal. Nunca tivemos problemas graves e meu filho fez a escolha dele. Talvez um dia mude de ideia”. A psicóloga, que se intitula cristã, Adriana Guimarães Rosa, explica que o que deve ser importante no ambiente familiar é o amor e a educação. ”Mesmo que a criança ainda não tenha capacidade de escolher uma religião, essa tarefa não deve ser apressada. O certo seria expor quais existem e só. São filhos e não propriedade.” Para ela, é

normal que os pais levem as crianças, ainda mais quando pequenas, a acreditarem em algo, mas, caso isso não aconteça, é uma opção que deve ser respeitada. “Nenhum ser humano é igual”. É o caso do Fabrício Zuccherato, ateu e pai da Melissa de um ano e meio, e ex-marido Fabrício, ateu, com sua filha Melissa ao colo de Fernanda Santos, espírita. No começo do relacio- mais complicado por conta da separanamento, parecido com o casal ante- ção. Mas a regra é a mesma, deixar de rior, ambos não tocaram no assunto, lado todos os problemas por um ser mas, neste caso, quando discutido, maior, que, neste caso, é a neném”, foi um pouco diferente. “Não entrá- explica a psicóloga que também anavamos no assunto, mas conforme o lisou o caso do Luiz e da Viviana. tempo passou, ela foi expondo o seu “Podemos ver, mesmo que de lado espírita e médium com o qual longe, que houve muita conversa, não concordei”. por mais que a esposa seja tímida e Com uma filha ainda pequena, prefira não tocar no assunto e tamas divergências na educação come- bém houve respeito quando foi suçaram a surgir. “A Fernanda levou gerida a comunhão. O importante é minha filha para ser batizada con- sempre dialogar e esperar uma restra minha vontade. Eu acabei ce- posta da criança e do adolescente. O dendo depois porque não iria fazer que o Luiz fez, de mostrar as demais diferença pra mim, até porque tam- religiões, foi muito mais que correbém fui batizado.” Tanto a família to. Dar opções faz com que a condela quanto a dele queriam que o fiança e o sentimento de liberdade batizado acontecesse, e isso se tor- estejam presentes”. R nou realidade. “Criar um filho não é fácil, uns Para uma reflexão: dizem ser melhor sozinho e outros Segundo Deus: “Por isso suplipreferem ter um parceiro ao lado. Quando existem diferenças de cren- quei, e inteligência me foi dada; ças, o assunto tende a piorar, o que invoquei, e o espírito da sabedopede mais cautela e esclarecimento ria veio a mim”. Sabedoria 7:7 do casal, que deve deixar de lado a Segundo Freud: “Nunca tenha questão religiosidade e focar somen- certeza de nada, porque a sabete no bem-estar da criança. No caso doria começa com a dúvida”. da Melissa, o problema é um pouco

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Frases

CITAÇÕES

de pensadores e famosos sobre ateísmo, religião e razão “Sou ateu, mas sou muito tranquilo quanto a isso. Eu não prego meu ateísmo. Agora, metade dos Estados Unidos não vai ver o próximo Harry Potter”

Daniel Radcliffe

Ator britânico, intérprete de Harry Potter nos filmes da franquia

“Eles vieram com uma Bíblia e sua religião. Roubaram nossa terra, esmagaram nosso espírito, e agora nos dizem que devemos ser agradecidos ao ´Senhor´ por sermos salvos”

PONTIAC

Chefe indígena americano

“Quantas coisas nós seguramos ontem como artigo de fé que hoje contamos como fábulas?”

Michel Eyquem de Montaigne Político, filósofo, pedagogista, escritor francês que viveu no séc. XVI

“A religião é comparável com uma neurose da infância”

SIGMUND FREUD

Médico neurologista e criador da psicanálise “Lida propriamente, a Bíblia é a força mais potente para o ateísmo jamais concebida”

Isaac Asimov

Autor de obras de ficção científica e divulgação científica

“Por simples bom senso, não acredito em Deus, em nenhum”

Charles Chaplin

Ator, diretor, produtor, humorista, empresário, escritor, comediante, dançarino, roteirista e músico britânico “Se você tiver mesmo fé, se você acreditar que há mais coisas na vida, então claro que é uma coisa maravilhosa. Eu não consigo fazer isso. Se alguém com essas crenças senta perto de mim, olho e penso, ‘pobrezinho, você realmente é iludido’”

Woody Allen

Roteirista, ator e diretor americano




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