Port Monira Monira Rahman, Bangladesh

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PoR que MoniRa é noMeada?

 TEXTo: MoNICA Z AK FoTos: KIM NAYLoR

Monira Rahman é nomeada ao Prêmio das Crianças do Mundo 2011 por sua corajosa luta para colocar um fim na violência com ácido e gasolina em Bangladesh. A maioria das vítimas são garotas. Mas mulheres, garotos e homens também são atacados. O motivo dos ataques geralmente é ciúme, e, contra os homens, a razão mais comum é a disputa por terra. Os ataques com ácido eram comuns durante um período, entretanto, ninguém sabia disso antes, a imprensa não mostrava. Monira mudou tudo isso. Ela fundou a ASF (Acid Survivors Foundation – Fundação dos Sobreviventes do Ácido) para todos os sobreviventes de ataques com ácido e gasolina. A organização começou a funcionar em 1999. No início, havia mais de um ataque com ácido por dia em Bangladesh. Hoje, esse número caiu pela metade. Mas o objetivo é zerar isso, para que ninguém, nem crianças, garotas, mulheres e homens sejam atacados até 2015. ASF ajuda os sobreviventes a terem uma vida ativa, com dignidade. Eles geralmente oferecem cirurgia plástica. Os próprios sobreviventes se tornam os maiores ativistas da causa contra esse tipo de violência.

NOME ADA • Páginas 88–105

Monira Rahman Na primeira vez que viu o rosto de uma garota deformado porque um homem jogou ácido, Monira Rahman ficou chocada. Ela não fazia a menor ideia de que homens em seu país, Bangladesh, faziam isso para destruir a beleza das garotas pelo resto de suas vidas. Geralmente, a causa era o ciúme. Da segunda vez, Monira desmaiou. Desde então, ela e sua organização, ASF, têm lutado incansavelmente para salvar meninas e meninos vítimas de ataques com ácido e gasolina. Monira e a ASF reduziram pela metade o número de ataques com ácido em Bangladesh.

M

onira Rahman é uma mulher feliz e dinâmica. Ela sempre foi

assim. “Quando nasci, meu país pertencia ao Paquistão e era chamado de Paquistão Leste”, explica Monira. “Quando eu tinha seis anos, uma guerra civil começou. Nossa casa foi queimada, tivemos que fugir, meu pai morreu de cólera e nós éramos extremamente pobres. Mas nosso país conquistou a independência e, a

partir daquele momento, passou a se chamar Bangladesh. Quando eu estava com sete anos, minha mãe se mudou para a capital, Daca, comigo e mais seis filhos. “Meu irmão mais velho

ficou responsável pela família. Ele entrou no mundo dos negócios e foi bem-sucedido. Portanto, nós conseguimos melhorar nosso padrão de vida. Eu fui para a escola, mas sempre que se aproximava a

Monira protesta com sobreviventes de ataques com ácido e gasolina. Milhares de homens também protestam.

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“Nós temos vários sobreviventes que fazem parte da luta contra ataques com ácido e gasolina. Eles protestam, se encontram com políticos e cobram punição para os culpados”, diz Monira.

hora do meu irmão mais velho voltar para casa, eu sentia medo. Ele gritava comigo e com minhas irmãs. Ele zombava de nós. Éramos punidas por coisas insignificantes. Ele costumava nos bater. Eu tinha pavor do meu irmão. Foi então que decidi nunca me casar”. Professora especial

No sétimo ano, Monira teve uma professora que gostava e acreditava nela. “Ela dizia que eu era inteligente. Ela me encorajou a encarar a vida. Ela me estimulava a participar de grupos de debates e expressar minha opinião. Ela fez minha autoconfiança crescer. Hoje em dia, quando encontro pessoas que foram feridas com ácido, busco fazer o mesmo. Eu demonstro que me importo com elas e tento lhes oferecer confiança”. Depois de encontrar essa professora, Monira se tornou líder estudantil e militou nas ruas. Ela e seus amigos foram atacados. Muitos foram

espancados e machucados. “Cheguei à conclusão de que temos que mudar a sociedade, mas que nós não podemos trazer a mudança através da violência. A única forma de encontrar soluções é discutir os problemas juntos”. Durante um período de fome devido à passagem de um ciclone que causou uma grande inundação, Monira e outros alunos cozinhavam para as vítimas. Monira viu coisas horríveis. Por isso, assim que se formou na universidade, ela começou a trabalhar como assistente social em uma organização que ajudava mulheres e crianças desabrigadas. Naquela época, as mulheres e crianças que viviam nas ruas costumavam ser presas e trancafiadas em condições desumanas.

da, e me peguei observando um grupo de crianças do lado de fora. Eu pensei que eles estavam brincando, e que tinham jogado uma bola pela janela que estava aberta, mas não era uma bola – era um papel enrolado. Peguei o papel e li: ‘Vá até o banheiro dos meninos’. A porta estava trancada, mas dei um jeito de abrir. Dentro da sala, havia um garoto de 5 ou 6 anos deitado no chão. Ele estava amarrado, tinha febre alta e uma de suas pernas estava

Garoto abusado

“Certa vez, fui visitar um orfanato bem longe, na zona rural. Me apresentaram o lugar e não conseguia ver nada de errado. Mais tarde, eu estava no escritório senta-

Até mesmo o governo de Bangladesh ouve Monira e a ASF.

quebrada. Os funcionários tinham abusado dele e quebrado a sua perna porque ele tinha urinado na roupa. Naquele momento, foi bom ser capaz de intervir”. Durante um bom tempo, Monira trabalhou com mulheres e garotas desabrigadas que foram trancafiadas. “Elas moravam num grande e precário prédio vermelho. Ficavam presas em grandes salas, e muitas dessas salas não tinham janelas. Podia haver mais de cem pessoas na mesma sala. No primeiro dia, notei uma mulher que estava deitada com as mãos e os pés encolhidos, amarrados. Eu soltei a corda. Então, fui chamada no escritório do diretor, que gritou comigo. Eu respondi simplesmente que ele não podia tratar as pessoas daquela maneira. Ele não disse nada, mas acho que concordou comigo, pois não fui punida. “Essas garotas viviam com medo. Todas as noites, os funcionários pegavam algumas delas e as estupravam. Muitas 89

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Monira brinca com Sweety, encorajando-a para a cirurgia plástica que irá fazer.

já nem sabiam seus nomes e de onde tinham vindo. Não tinham nenhum documento. Eu comecei a descobrir quem era quem e a procurar suas famílias. Uma mulher ficou trancada por 21 anos. Eu a ajudei a voltar a falar, e encontrei sua família. Eu a vi voltar para casa. Foi uma cena maravilhosa! E eu a vi deixar aquele prédio vermelho e ir para casa, com sua família. “Durante aqueles anos, aprendi que não se pode ter medo de enfrentar nenhuma situação difícil, e que primeiro é preciso encontrar forças em si mesmo, antes de apoiar aos outros”.

Primeira vítima de ácido

Há treze anos, ela encontrou duas garotas que sobreviveram a ataques de ácido. “Homens jogaram ácido para destruir a beleza delas para sempre. Eu nem sabia que aquele tipo de coisa acontecia no meu país. Ninguém falava ou escrevia sobre isso. Só uma vez eu li um pequeno artigo sobre um ataque com ácido. Agora, tinha uma menina de 17 anos na minha frente, com o rosto totalmente deformado por causa do ácido. Toda a sua face parecia ter derretido e um de seus olhos estava destruído. Fiquei chocada. Quando uma das

garotas começou a falar, percebi sua força. Ela falava, ria e sorria – ela estava viva, mesmo depois das terríveis marcas. Ao invés de ver um rosto desfigurado, comecei a ver uma menina, um ser humano. “Mas, à noite, tive pesadelos. Eu sonhei que jogavam ácido, eu via carne viva, ossos, rostos desfigurados, ouvia gritos. Toda vez que acordava eu pensava: como pode acontecer algo desse tipo no meu país? E como essas garotas conseguem ser fortes o bastante para se mostrarem e contarem porque foram atacadas?”

Eu desmaiei

“A mídia não se importava com essas duas garotas. Mas elas despertaram o meu interesse. Eu queria saber mais sobre este assunto. Então comecei a ir a hospitais e descobri que as alas de queimaduras estavam cheias de vítimas de ataques com ácido. Todos os dias, novos pacientes chegavam. Havia crianças, garotas, mulheres, garotos e homens, mas a grande maioria era de meninas. Todos choravam, não havia leitos suficientes para todos e também não havia médicos. As condições eram péssimas. Desmaiei duas vezes. “Recordo-me da segunda vez que desmaiei. Uma garota chegou com mais de cinquenta por cento do seu corpo queimado. Suas costas eram uma grande ferida aberta. Lembro-me de pensar que não havia como ela sobreviver. Nós a levamos para um hospital particular. Mas as A operação acabou e Monira parabeniza Sweety – foi um sucesso!

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Crianças afetadas pelos ataques de gasolina na ASF, convivendo e pintando juntas.

ma de extravasarmos nossos sentimentos. Nós conversávamos sobre nossas experiências e nos sentíamos melhores e mais fortes. Hoje, temos psicólogos na ASF. Eles ajudam os sobreviventes, e também a equipe que trabalha com eles”. Monira também tinha medo de ser atacada. Nos primeiros anos, ela carregava uma garrafa de água consigo. Ela aprendeu com o cirurgião que a melhor coisa a se fazer depois de um ataque era derramar água sobre o ferimento. Agora, a maioria das pessoas em Bangladesh sabem que devem jogar vários baldes de água sobre a vítima. Isso pode reduzir o dano. E todos sabem que se uma vítima chegar ao hospital da ASF em 48 horas, ela tem grande chance de sobreviver e o estrago pode ser limitado. Agora as pessoas sabem

condições lá também eram ruins. O cheiro era a pior coisa, e aquela ferida estava cheia de pus. Eu desmaiei. Uma enfermeira me levou para uma sala. Quando estava me sentindo melhor, eu voltei. A garota sobreviveu. E eu nunca mais desmaiei”. Fundada a ASF

mado John Morrison. Eles decidiram fundar uma organização para ajudar os sobreviventes. Eles chamaram a organização de ASF, the Acid Survivors Foundation (Fundação dos Sobreviventes do Ácido). Hoje, Monira é diretora da ASF. “Fundamos a organização em 1999, onze anos atrás. Não tínhamos um centavo. Mas sabíamos que precisávamos fazer aquilo. Naquela época, havia um ataque com ácido por dia. Esse número caiu pela metade – e agora, há um ataque a cada dois dias, em média. Mas nosso objetivo é zerar esse número, para que nenhuma criança, garota, mulher ou homem jamais sejam atacados novamente. Nós também começamos a cuidar daqueles que foram feridos com gasolina, jogada sobre as vítimas e ateada com fogo”.

Até então, Monira havia percebido que os ataques eram comuns. O motivo era quase sempre ciúme. Quando uma garota se recusava a se casar com um homem, ele jogava ácido nela como punição. E havia ácido por toda parte – era usado na indústria têxtil, na indústria de joias, em baterias de carros, em todo lugar. Todos os dias, alguém era atacado com ácido. A maioria eram garotas menores de 18 anos. Mas homens e mulheres mais velhos também eram atacados. Geralmente, os ataques aos homens eram motiva- Medo de ser atacada dos por disputas de terra. As coisas eram difíceis no Monira percebeu que tinha que começo. fazer alguma coisa. Mas o quê? Monira conheceu um cirur- Monira tranquiliza uma gião plástico canadense, cha- mulher depois da operação.

“Demorou um ano até que eu conseguisse olhar para as vítimas sem me arrepiar ou chorar. Eu precisava superar aquilo para conseguir dar força às vítimas. Claro, é muito difícil para os sobreviventes. Ser atacado por ácido ou gasolina é uma experiência emocional traumatizante. De um dia para o outro, sua vida muda completamente. Ninguém mais te reconhece. Você nem ousa se olhar no espelho. Também era complicado para nós, que trabalhávamos com as vítimas. No início, costumávamos ir para o escritório e lamentar uns com os outros. Era uma for-

“Eu nunca fui atacada, e hoje parei de carregar a garrafinha de água comigo. Hoje as pessoas conhecem esse tipo de violência. Temos centenas de sobreviventes que se tornaram ativistas. Eles protestam. Conversam com políticos. Eles cobram penas para aqueles que cometem os ataques. Eles encontram vítimas e explicam que, mesmo que suas feridas sejam antigas, a ASF pode ajudá-las. Ministram palestras para milhares de homens sobre violência contra a mulher, no Dia Internacional da Mulher. Nós conseguimos também criar nosso primeiro Centro,

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com uma clínica cirúrgica. Oferecemos tratamento gratuito. Já enviamos várias vítimas para se tratarem em outros países. Alguns já receberam um novo nariz e até a maior parte da face. Temos advogados que tentam nos ajudar a condenar os culpados. Temos uma equipe com 80 colaboradores, 20 deles são sobreviventes de ataques”. A ASF conseguiu que o governo fizesse várias alterações na legislação. A organização também convida celebridades para eventos de gala e ajudou a escrever o roteiro de um filme sobre uma garota em idade escolar que foi atacada com ácido. A recompensa: um sorriso

Monira não gosta de receber todos os louros pelo sucesso de seu trabalho. Ela tem convicção de que os créditos devem ser dados aos sobreviventes, que conquistam tudo. “Aqueles de nós que trabalham com sobreviventes, tentamos ensiná-los a serem fortes. Tentamos encorajá-los a

não se esconderem, mas terem coragem de sair e mostrar o dano causado. Tentamos mostrar que eles são importantes, que eles podem estudar, se casar, ter filhos. Para mim, a melhor coisa é ver um deles voltar a sorrir. Aquela garota de 17 anos, que primeiro me sensibilizou para lutar pela causa, hoje mora nos EUA. Em breve, ela se formará enfermeira”. “O que me traz mais alegria é encontrar com essas pessoas que tiveram suas vidas transformadas. Eu me lembro da pequena Bubly. Ela tinha sete meses, e ninguém imaginou que ela sobreviveria. Seu pai jogou ácido na sua boca, pois queria ter tido um menino. Ela já passou por várias cirurgias e hoje ela está com dez anos, todos aqui a adoram. Muitos sobreviventes hoje estão estudando. A ASF paga por sua educação pelo tempo que eles quiserem estudar”. Casada, apesar de tudo

Monira conta sua história em seu pequeno escritório. Daqui

a pouco, ela irá para uma reunião com uma organização internacional, para tentar conseguir fundos para a ASF. Ela tenta constantemente conseguir dinheiro, para que a ASF possa continuar seu trabalho. “Quando volto de uma reunião, eu vou ver alguma criança que está machucada. Algumas foram trazidas para serem operadas e outras só para obter apoio. Tentamos pintar juntos uma vez por semana. Depois disso, passo pelas alas e converso com as pessoas que acabaram de ser operadas. Então vou para casa, com minha família”. Quando ela era pequena, Monira decidiu que nunca se casaria. “Mas então conheci um homem que era como eu. Ele também tinha decidido que não se casaria. Ele era operador de câmera na TV, e dedicava sua vida a realizar reportagens sobre os problemas sociais e tentar fazer a diferença. Ele coloca muita energia no seu trabalho. Somos

“A maior recompensa é ver alguém voltar a sorrir”, diz Monira.

muito parecidos. Nós nos apaixonamos e nos casamos. Hoje moramos em um pequeno apartamento. Temos dois meninos, um de 8 e o outro de 12 anos. Geralmente, eles vêm trabalhar comigo. Meus filhos não enxergam cicatrizes, feridas, mas sim amigos. Eles geralmente celebram seus aniversários aqui”. 

Quando Monira e a ASF iniciaram seus trabalhos, a média de ataques era de um por dia. Como resultado das manifestações da ASF e da conscientização, o índice caiu pela metade.

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Sweety quer ser detetive

Sweety, uma garota de 14 anos, se trancou por um ano na casa da sua irmã. Ela nunca saia, só ficava sentada em um canto chorando. Ela sempre usava um lenço em volta do seu rosto. “Nunca tive coragem de mostrar meu rosto”. Quando descobriu que a ASF, a organização de Monira, podia ajudá-la a fazer uma cirurgia plástica, Sweety voltou a sentir interesse pela vida. Ela quer se tornar detetive e colocar atrás das grades todos os homens que machucaram a ela e a outras garotas.

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te apaixonada por mim e iremos nos casar”. Ele dizia inclusive a data do casamento! “Quando seu pai, meu tio, veio à nossa casa para conversar sobre o casamento, expliquei que, na verdade, eu não amava seu filho. E que, na realidade, ele estava me perturbando com aquela história”. “Mas aí meu primo começou a dizer por aí que ele tomaria veneno se eu não me casasse com ele”.

“Eu tentei conversar com calma com o pai dele – ele é policial. Mas então ele disse: ‘Se meu fi lho tirar a própria vida por sua causa, você trará vergonha sobre nossa família. Você deve casar com ele’”.

me casar com ele. Depois do casamento, meu marido disse: ‘Me casei com você para te punir. De agora em diante, você viverá no inferno’”. A vida de Sweety realmente se tornou insuportável. Ela Vivendo no inferno parou de ir à escola. Foi abuO pai de Sweety morava lon- sada. Depois de algum temge. Sweety e sua mãe foram po, ela se mudou com o mariobrigadas a aceitar aquilo. do para outra cidade, onde “Eu sabia que ele não era ambos conseguiram um bom – ele bebia e fumava emprego na indústria têxtil. maconha – mas fui obrigada a “Nós trabalhávamos em

 TEXTO: MONICA Z AK FOTOS: KIM NAYLOR

oi isso que aconteceu: Sweety morava em um vilarejo. Ela sempre foi feliz, ria bastante e adorava dançar. Ela se saía bem na escola. “Um dia, quando eu tinha treze anos, um primo de 17 anos me abordou no caminho da escola. Ele disse: ‘Eu te amo. Quero me casar com você’. Eu respondi: ‘Primeiro, eu não quero me casar porque sou muito nova. Segundo, não sinto nada por você. Nós brincamos juntos, e sinto como se fosse sua irmã mais nova. De qualquer forma, primos não devem se casar’”. Sweety pensou que seu primo esqueceria o ocorrido e a deixaria em paz. Mas ele começou a espalhar no vilarejo: “Sweety está perdidamen-

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Sweety aguarda a cirurgia que fará com que sua boca não fique aberta.

Sweety será anestesiada antes da operação.

departamentos diferentes. Eu descobri por outra garota que ele estava tendo um caso com uma menina do seu departamento. Naquela noite, perguntei se aquilo era verdade. Ele sacou uma faca, cortou meu braço, jogou sal no corte e disse: ‘Se você gritar eu te mato’. Eu não gritei, apenas chorava baixo. Alá me deu força”. Ameaçada com estrangulamento

Outro dia, o marido de Sweety lhe pediu dinheiro para levar sua nova namorada

ao cinema. Sweety se recusou a dar, então ele tentou enforcá-la com uma corda. Quando o proprietário do imóvel chegou correndo, o marido disse: ‘Não é nada, apenas um problema de família’. “Ele tinha uma tara por me bater. Numa outra ocasião, ele queria dinheiro para levar sua namorada a um restaurante chinês. Eu recusei, mas ele pegou o dinheiro da minha bolsa e saiu. Eu sabia a qual restaurante ele tinha ido. Então, fui até lá e disse: ‘Eu me recuso a passar por isso. Estou te deixando. Estou vol-

Nervosa, aguardando a cirurgia.

Em breve a cirurgia terá início.

tando para casa da minha mãe’. Ele respondeu dizendo que poderia ter quantas namoradas quisesse. Ele teria mais cinco namoradas e que ficaria com elas na minha frente”. Fogo ateado

“Ao voltar para casa, naquela noite, ele me amarrou e começou a me bater com uma vara. Acho que desmaiei. De repente acordei – eu estava pegando fogo. Meu cabelo, minha pele, minha roupa, estava tudo pegando fogo. Ele jogou gasolina em mim.

Felizmente, o dono da casa viu a fumaça e veio correndo. Por sorte, havia um balde com água perto da porta e ele jogou sobre mim”. Sweety sobreviveu e foi levada ao hospital. Ela teve que pagar pelas injeções e pelo tratamento. Seu pai vendeu suas terras para custear o tratamento médico. “Foi um período horrível. Os médicos pareciam açougueiros. Estava convencida de que eles queriam me matar”. Ela se trancafiou

Três meses depois, Sweety vol-

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Sweety está sedada, e é hora de começar a cirurgia.

tou para casa. Sua boca não fechava e era difícil para ela falar. Ela mal conseguia mexer a cabeça, e havia cicatrizes horríveis por todo o seu corpo. “Eu só me sentava e chorava. Não saía. Porém, depois de um ano, minha irmã me disse: ‘Você é um peso. Precisa tentar ganhar dinheiro e ajudar nossa mãe e nosso irmão menor’. Então fui obrigada a sair. Era difícil ver como as pessoas viravam o rosto quando viam o meu”. Sweety aprendeu a bordar. Alguns trabalhos como professora apareceram, mas ela

não conseguiu. “Eu era muito feia. A única coisa que consegui foi ministrar algumas aulas particulares para alunos do ensino fundamental em casa. Eu os ensinava a dançar também. Então voltei para a escola. Também comecei a cuidar de uma pequena biblioteca. Comecei a ler livros, principalmente com histórias de detetives”. Um dia, a irmã de Sweety conheceu uma mulher que fazia parte da ASF e que havia sido atacada com ácido. Ela falou com a mulher sobre a

sua irmã, Sweety. “Foi uma coincidência”, explica Sweety, radiante. “Aquela mulher me encontrou e falou sobre a ASF. Nunca tinha ouvido falar da ASF. Ela me disse que se fosse ao Centro da ASF em Daca, eu encontraria cirurgiões plásticos qualificados que me operariam”. Medo da operação

Sweety estava muito nervosa durante a viagem à capital para ir até a ASF. Ela tinha medo dos hospitais e médicos. Os médicos a haviam tra-

tado muito mal depois do ataque. Mas Monira e o resto de sua equipe conversaram bastante com ela e a acalmaram. ‘Todo o tratamento é gratuito aqui na ASF, você tomará um sedativo. Nossos cirurgiões brilhantes irão operar sua boca, para que não fique aberta. E, se tudo correr bem, você voltará a movimentar o pescoço’. “Encontrei tantas outras pessoas que haviam sido atacadas com ácido ou gasolina, e foram operadas e que agora tinham uma vida normal. Elas me encorajaram. 95

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Os médicos retiram tecidos de sua coxa e enxertam no rosto.

Por vários dias após a operação, ela tem curativos em toda a sua cabeça.

Sweety está muito curiosa e nervosa, quando os médicos começam a retirar os curativos. O que a espera por baixo?

Também conheci crianças que haviam se ferido. Eu dancei com elas. Rimos muito. Mas, por dentro, eu estava muito nervosa. Estava com medo da cirurgia”. O sorriso de Sweety

Alguns dias depois, Sweety passou pela cirurgia. Os médicos disseram que tudo tinha corrido bem. Eles pegaram tecido da sua coxa e colocaram na face. Ela ficou coberta com ataduras por vários dias. Então, os médicos e sua equipe de enfermei-

ros a rodearam e começaram a retirar os curativos. Eles seguravam um espelho. Sweety mira o espelho. Sua boca não está mais aberta! Ela consegue falar facilmente! Devagar, ela move sua cabeça – sem nenhuma dificuldade. Então, Sweety sorri! E o sorriso de Sweety contagia todos à sua volta. Sweety diz: “Eu só quero chorar. Quero chorar porque estou muito feliz”.

As enfermeiras retiram o último curativo. Sweety ainda não sabe como foi a cirurgia…

Quer ser detetive

Sweety denunciou seu exmarido à polícia por seu terrível crime contra ela. Há um mandado de prisão expedido contra ele. Mas nada aconteceu. Vira e mexe, ele aparece no vilarejo para visitar, mas nunca é pego. Sweety acredita que ele subornou a polícia. Sweety também sabe que ele mora em algum lugar ao sul e tem uma nova esposa. “Mas agora eu sei exatamente o que fazer. Vou realizar uma nova cirurgia, e meu rosto ficará melhor. E, com a ajuda da ASF, eu vou estudar.

Vou me tornar detetive. Serei uma detetive que localiza os homens que fogem para não serem presos, e então eles serão condenados. Vou fundar a Agência de Detetives Sweety’”. 

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Sweety mal consegue acreditar em seus olhos. Sua boca não está mais aberta. Vem o sorriso! Ela está tão feliz!

Monira sonha com um grande hospital para sobreviventes

ar o r n i um a o s t e e a u m er liz ara Vo ive. S loca m p tão ue ge e n . tet de tive q ue fo os, e ados q es n te ia de ens m pr onde ênc ’”. m g y c e h o s e r r ão r a A e et w e o a nã l e s s f und e s S e ou etiv V D et de

“O ácido também é usado como arma em outros países”, diz Monira. “No Paquistão, Uganda, Índia, Cambódia… mas agora a ASF tem organizações associadas em outros países também. Meu sonho é construir um hospital enorme e moderno em Bangladesh. Poderíamos receber sobreviventes de outros países também, e ministrar vários tipos de cursos. Temos muito que aprender uns com os outros. Todos temos o mesmo objetivo – acabar com o uso de ácido e gasolina como armas”. 97

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Um dia na vida de B Bubly, 10 anos, passou bastante tempo no hospital da ASF. Seu pai queria um menino e quando viu que o bebê era menina, ele tentou matá-la jogando ácido em sua boca e nos seus pés.

7h05 Sozinha com o ursinho Minha mãe foi trabalhar. Eu abraço meu ursinho favorito, assim não me sinto sozinha. Ele me faz feliz.

Quando aquilo aconteceu, a mãe de Bubly, que tinha apenas 16 anos na época, a levou ao hospital. Ela estava gravemente ferida – seus dentes, boca, garganta e língua estavam destruídos. Desde então, Bubly tem sido cuidada pela ASF e já passou por várias cirurgias. Agora ela consegue comer, falar e frequentar uma escola regular. Ela mora com a mãe. Uma vez por semana, ela visita o Centro da ASF para encontrar outras crianças que também foram feridas com ácido.

7h30 Não posso sair

8h00 Meu vestido favorito Quando não tenho o que fazer, fico experimentando roupas. Este é o meu vestido favorito.

Meu pai quer que eu vá morar com ele. Eu não quero. Ele tem uma nova família. Ele acha que, se eu for morar com ele, ele não precisará enfrentar a justiça e ir para a cadeia. Quando me recusei, ele disse que me sequestraria. Então eu não posso sair se minha mãe não estiver comigo. Eu posso ver as crianças brincando do lado de fora, mas não tenho permissão para ficar com elas.

9h30 Para a escola Para garantir que eu não seja sequestrada, sempre vou para a escola junto com minha vizinha e sua filha.

15h00 Hora da lição de casa De volta para casa. Primeiro eu faço a lição de casa. Eu adoro inglês!

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e Bubly 16h00 Um abraço da mamãe! Finalmente, minha mãe chega em casa.

16h30 Hora de se divertir Minha amiga Sadi e eu brincamos com bichos de pelúcia, bonecas Barbie e também jogos de tabuleiro.

18h00 Hora de dançar Mamãe me ensina novos passos também.

17h00 Música com mamãe Depois do jantar, minha mãe me ensina novas músicas e como tocar acordeão.

18h30 Por favor, mamãe... Não posso sair e brincar com as outras crianças? Não sozinha, diz mamãe.

18h35 Uhuuu! Mamãe sai comigo.

Eu engatinho por baixo do mosquiteiro para dormir. “Boa noite, mamãe. Agora eu sei o que vou ser”, eu digo. “O quê?”, pergunta mamãe. “Cirurgiã plástica”. “Boa ideia. Boa noite, Bubly”. 99

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19h30 Boa noite!

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Neela queria ser atriz O rosto e o corpo de Neela estão cobertos por cicatrizes horríveis. Há alguns anos, ela era uma linda menina de 15 anos, que frequentava a escola, e foi obrigada a se casar com um homem 20 anos mais velho. Quando lhe perguntam se ela quer realizar outras intervenções cirúrgicas, Neela sacode a cabeça. “Já me acostumei com minhas cicatrizes, e é esta a aparência que quero ter no futuro”, ela diz. Hoje, Neela dedica muito tempo lutando pelas vítimas de violência com ácido. Ela quer ajudar Monira e a ASF, depois de todo o apoio que ela já recebeu.

E

u sempre quis ser atriz”, diz Neela. “Cresci em Daca, a capital. Frequentei uma escola padrão, mas meu pai também me matriculou em uma escola de artes, que eu frequentava na parte da tarde. Eu estudava, cantava, dançava e atuava lá. Eu adorava estar nos palcos, sentindo a conexão com o público. Eu tinha tomado uma decisão – queria ser atriz e trabalhar no teatro, representando personagens com sérios problemas e sentimentos fortes”.

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Forçada a se casar

Fotos antigas de Neela mostram uma jovem garota que tem o glamour de uma estrela de cinema. Um homem que trabalhava no exterior voltou ao seu país para arrumar uma esposa e, por acaso, viu uma dessas fotos. “Meu tio me disse que um homem havia visto uma foto minha, e que aquilo tinha sido suficiente. Ele queria se casar comigo, e mais ninguém serviria. Eu tinha 15 anos, e definitivamente não queria me casar. Eu disse não. Meus pais me apoiaram. Mas meu tio e outras pessoas da

família tentaram convencer a mim e a meus pais. Sim, ele tinha 35 anos, se chamava Akbar, tinha dinheiro e trabalhava no exterior. Acabei concordando em me encontrar com ele. Não gostei, nem um pouco sequer. Eu tinha certeza de que não queria me casar com ele. A única coisa que eu queria era continuar meus estudos e me tornar atriz. “Depois de me encontrar com o homem, fui me deitar. Na manhã seguinte, meu pai disse que ele havia concordado com o casamento e assinado os papéis. Seu irmão mais velho e alguns parentes o pressionaram. O casamento aconteceria imediatamente. Depois, Akbar voltaria para o exterior, e eu poderia ficar lá e continuar meus estudos. Ele prometeu que eu poderia continuar morando na casa de meus pais. Akbar disse, ‘Você pode fazer o que quiser, desde que esteja casada. Você pode continuar a frequentar a escola, eu gosto de garotas modernas’”. Vida aos pedaços

“Nada aconteceu como ele havia prometido. Minha vida

havia se despedaçado. Ele não me deixou ficar com minha família – me obrigou a ir para o vilarejo onde seus pais moravam. Na noite do casamento, eu estava apavorada. Fui levada a um quarto com uma cama. Chorei sem parar. Ele tentou abusar de mim. Mas eu só chorava e chorava. No final, ele desistiu. “No dia seguinte, ele partiu para seu trabalho em outro país, mas eu devia permanecer com seus pais. Eles tinham uma fazenda.

Trancaram-me dentro de casa e não me deixavam ir à escola. Pelo contrário, eu tinha que ajudar com os afazeres da fazenda. Minha sogra achava defeitos em mim o tempo todo. Eu não sabia cozinhar, fazia tudo errado, não conseguia cuidar dos animais nem da colheita. Afinal de contas, eu só tinha frequentado a escola e aprendido sobre dança, música e teatro. E agora era obrigada a saber tudo sobre fazendas! “Meu pai pagou algum

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riz “Eu queria ser atriz – eu adorava estar nos palcos. No início, recusava a me olhar no espelho, logo depois da minha primeira cirurgia. Mas você me encorajou a olhar, e eu não desmaiei”, diz Neela para Monira.

dinheiro à família para que eles fossem generosos comigo. Mas isso não ajudou. Depois de alguns meses, o dia que eu estava temendo chegou – meu marido voltou. Ainda não tínhamos nos relacionado sexualmente, e ele tentou novamente. Eu tinha muito medo dele, mas também estava brava. Eu disse a ele que havia sido enganada. ‘Você disse que eu poderia ficar em casa e continuar meus estudos’. Ele me bateu e eu gritei. As pessoas do lado

de fora perguntaram o que estava acontecendo, mas ele gritou: ‘Está tudo bem’”. Copo de ácido

“Depois de algum tempo, ele saiu. Me deitei na cama, tremendo, mas finalmente consegui dormir. De repente, acordei com ele parado na porta com um copo de vidro na mão. Ele disse que tinha trazido um copo com água, caso eu estivesse com sede. Percebi que ele estava nervoso, mas não tinha ideia do que ele

planejava. Não havia água no copo – era ácido. Ele veio até a cama e jogou o ácido no meu rosto. A dor era terrível. Eu me lembro de ouvir uma voz gritando: ‘Este é o seu castigo’. “Eu gritava: ‘Mãe! Pai! Me ajudem!’ Os vizinhos vieram correndo e me levaram para o hospital. Um parente me levou do hospital para a ASF. Eu tive sorte – cheguei lá em menos de 48 horas. A clínica tem um serviço disponível 24 horas, então fui operada imediatamente”.

Neela se recusava a olhar no espelho depois disso. A garota que atraía tantos olhares por sua beleza sabia que agora seu rosto estava preto e desfigurado. Ela ouviu que muitas vítimas desmaiam após se verem pela primeira vez depois de um ataque com ácido. “Finalmente, reuni coragem. Monira e outras pessoas com cicatrizes conversaram comigo. Eles me encorajaram a olhar. Eu não desmaiei”.

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Monira está vindo! É um grande dia para Neela. Monira vai visitá-la. Depois de dirigir por muitas horas, ela chega. E recebe um abraço de boas-vindas.

A visita de Monira

Hoje é um grande dia. A família acaba de se mudar para uma casa nova na cidade de Sirajganj, onde o pai de Neela trabalha como policial. A grande notícia é que Monira está indo visitá-los. Ela dirigiu muitas horas até chegar lá. Neela a encontra com um grande sorriso. Elas se abraçam e caminham de mãos dadas pela calçada. Quando chegam em casa, elas se deitam na cama e conversam durante horas.

“Eu me lembro quando você veio até nós”, diz Monira, abraçando Neela. “Você estava em péssimo estado. Sua pele havia sido queimada pelo ácido, estava escura e parecia couro. Nós transplantamos tecidos de outras partes do seu corpo imediatamente, mas, para ser sincera, não pensei que você sobreviveria”. “Um mês depois, entrei em nossa unidade de fisioterapia. Vi uma garota coberta por curativos, mas ela estava de

pé, se exercitando. Eu perguntei: ‘Quem é essa?’ e, quando ouvi alguém dizer que era Neela, eu me senti nas nuvens. Foi um milagre você ter sobrevivido. Depois de três meses e várias cirurgias, você finalmente estava pronta para ir para casa”. “Ainda podemos trabalhar no seu rosto”, diz Monira. “Posso conseguir outra cirurgia para você”. Neela sacode a cabeça. “Você não precisa fazer isso. Não estou interessada em mais cirurgias plásticas. Já me acostumei com as cicatrizes, e é esta aparência que quero ter no futuro”.

Ex-marido na cadeia

Com ajuda de seu pai e da ASF, Neela levou seu ex-marido à justiça. Agora ele está na prisão. “Não preciso ter mais medo dele. E agora tenho coragem de mostrar meu rosto sem vergonha. Tenho coragem de falar em grupos, e faço isso bastante. Sou uma verdadeira ativista da causa contra a violência. Eu lidero manifestações. Acompanho as decisões e cobro justiça. Visito escolas e me certifico de que nenhum daqueles alunos jamais irá jogar ácido em alguém. Isso é importante. Aqui na minha cidade, somos 160 ativistas, e todos somos vítimas de ata-

Quando Monira diz que pode conseguir uma nova cirurgia para Neela, caso ela queira, Neela sacode a cabeça. “Agora estou acostumada com minhas cicatrizes, e é assim que quero ser vista no futuro”.

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Quando suas amigas vêm visitá-la, Neela mostra o sari que usou em seu casamento. Ela até faz piada sobre seu terrível casamento.

ques com ácido ou gasolina. Fazemos barulho e protestamos. Nós nos ajudamos. Temos contatos e nos mantemos informados sobre novas vítimas. Se acontece, nos mobilizamos para ajudar. Hoje, a maioria das pessoas em Bangladesh sabe que se alguém tiver ácido na pele, deve-se jogar vários baldes de água sobre a vítima. Às vezes encontramos pessoas com ferimentos antigos. Na semana passada encontramos duas. Nós dissemos que elas

obteriam ajuda gratuita na ASF, e que nós conseguiríamos transporte até o hospital”. Neela voltou para a escola. “Você pode obter um auxílio financeiro da ASF pelo período que quiser estudar”, diz Monira. “Se quiser ir para a universidade, nós pagaremos por isso também”. Rindo novamente

Neela tem várias amigas. Elas fazem lição juntas, ouvem música pop no rádio e dan-

çam juntas em seu quarto. Hoje, Luna, Rita e Putui vieram para conhecer a nova casa. Neela ri bastante e conta piadas. Ela até faz piada sobre seu desastroso casamento. Ela traz o sari que usou no casamento para mostrar a suas amigas. “Não consigo entender como você pode ser tão feliz e ter tanta confiança para conhecer pessoas novas”, diz uma delas. “Mas eu não mudei. Tenho minhas cicatrizes; elas nunca me deixarão. Mas, por dentro, continuo a mesma Neela que sempre fui”.

Neela perdoou seus pais por terem arranjado o casamento, e seu pai ajudou a colocar seu ex-marido na cadeia. “Meus pais foram enganados”, diz Neela.

Pais perdoados

Uma de suas amigas pergunta se ela ainda está brava com seus pais. Afinal de contas, foram eles que a obrigaram a se casar com aquele homem terrível. “Não, eu consigo entender o que houve. Eles foram enganados. Eles não imaginavam que algo ruim poderia ocorrer. Eu os perdoei”. O pai de Neela aparece e diz que é ótimo que ela esteja estudando. Ele afirma que ela é muito inteligente e lógica. “Acho que ela seria uma ótima advogada”, ele diz. “Porém, estou mais interessada em estudar administração na universidade. Quero trabalhar em um banco”. “Você é quem sabe”, diz seu pai, rindo. “Nunca faremos nada contra a sua vontade. Eu e sua mãe nos orgulhamos de você”.  103

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“Bons mulçumanos não jogam ácido” Quando a irmã de Mohammed, Asma, se recusou a casar com o filho de uma das famílias mais poderosas do vilarejo, ele se vingou jogando ácido nela. “Conseguimos colocá-lo na cadeia para sempre, mas sua família vive nos perseguindo. Pessoalmente, quero ensinar às pessoas que nossa religião é totalmente contra a violência. Bons mulçumanos não jogam ácido”, diz Mohammed. “Quando eu era pequeno,

tínhamos uma fazenda”, diz Mohammed, 14 anos. “Nós tínhamos uma vida confortável. Mas o filho de uma das mais ricas e poderosas famílias do vilarejo queria se casar com a minha irmã Asma. Ela não quis. Ele disse que se ela não se casasse com ele, algo terrível lhe aconteceria. Ela continuou recusando. Certo dia pela manhã, meu pai saiu para suas orações matinais e deixou a porta aberta, o rapaz entrou e jogou ácido na minha irmã, Asma”. “Caiu um pouco em mim também, e acordei com os gritos de dor da minha irmã. Meu irmão mais velho acendeu uma tocha e viu quem jogou o ácido. Ele e meu pai levaram minha irmã Asma ao hospital – ela perdeu a visão de um dos olhos, mas sobreviveu”. Prisão perpétua

“Minha família denunciou a pessoa que tinha jogado ácido para a polícia. Tivemos que vender nossa propriedade para conseguir colocá-lo na cadeia. Agora estamos pobres, mas ele foi condenado à prisão perpétua. Então a família dele, que é rica e poderosa, começou a nos perseguir. Meu pai arrenda terra de outras pessoas. Na época da colheita, a família leva

suas vacas à nossa plantação, para destruí-la. Eles ameaçam atingir nosso ponto mais fraco se não formos ao tribunal dizer que mentimos, o que encerraria o caso”. “Eu tinha sete anos quando Asma foi atacada e a saga da minha família começou. Hoje tenho 14 anos. Sintome pequeno e assustado. A única coisa que me traz segurança é saber que Alá está comigo. Ele é forte. Estou no primeiro ano da escola Qur’an. Quero ser professor de educação religiosa ou líder espiritual. Ensinarei às pessoas que nossa religião é contra todo tipo de violência. Bons mulçumanos não jogam ácido”. Casada e feliz

A irmã de Mohammed, Asma, é hoje casada com o homem que ela ama. Eles tiveram uma pequena menina, e Asma trabalha no Centro da ASF, na capital. Nos feriados, seu irmão Mohammed a visita em Daca. “Posso relaxar e me sentir seguro lá”, diz Mohammed.

Mohammed e sua irmã Asma.

: p o P lo “Homens de o d Í ,o i m Ru Há cinco anos, ele estava no Ídolo Pop, na TV. Desde então, todos em Bangladesh sabem quem é o “Ídolo Pop Rumi”. Ele é o cantor mais popular do país e também protesta contra aqueles que jogam ácido. “Homens de verdade não jogam ácido”, diz Rumi.

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“Me chamavam de cara de macaco” Quando Mamun era recém-nascido, um parente jogou ácido nele. Ao ingressar na escola, ele era importunado pelos colegas, que o apelidaram de cara de macaco. Ele acaba de se submeter à décima cirurgia, e ninguém mais o chama de cara de macaco. “Minha valente mãe pôs um

fim aos constrangimentos na escola e no vilarejo”, diz Mamun, 9 anos. “Todas as crianças me importunavam. Quando entrei na escola, eles me rodeavam e gritavam ‘cara de macaco’ e ‘macaco marrom’. Eu ia pra casa chorando e não queria voltar à escola. Então minha mãe foi até lá. Ela conversou com os professores e com as outras crianças. Aquilo me deu coragem para voltar à escola e a chateação terminou. Hoje, ninguém mais me chama de ‘cara de macaco’ ou de ‘macaco marrom’”.

Foi isso que aconteceu: a família de Mamun era pobre. Um parente lhes deu um pedaço de terra para que pudessem plantar. Um dia, o parente pediu a terra de volta. O pai de Mamun se recusou a devolver. Naquela noite, o parente voltou e jogou ácido em Mamun, que era bebê, e nos seus pais. “Uma dor horrível me fez acordar”, diz sua mãe, Mageda. Quando olhei para meu pequeno bebê, vi as terríveis queimaduras. Eu o peguei e corri para o médico do vilarejo. Ele conhecia a ASF e sabia que se as vítimas

A mãe de Mamun coloca um fim aos constrangimentos na escola; ela também foi atingida pelo ácido nos braços.

chegassem ao hospital em 48 horas, poderiam ser salvas e os danos limitados. Meu menino estava terrivelmente queimado – a maior parte do ácido havia atingido a ele, mais do que a mim ou meu marido. Pensamos que o bebê morreria. Seu rosto estava completamente desfigurado.

ns de verdade não jogam ácido!” Rumi participa de manifesta-

no exterior, antes de voltar para casa. Dois anos mais tarde, ele reparou em uma garota. Uma parte do seu rosto era linda e a outra estava totalmente destruída por ácido. “Ele se apaixonou profundamente. Hoje eles formam um casal feliz. Desde então, criei uma empatia pelas vítimas de violência com ácido. Eu sinto isso na minha alma, e quero lutar contra isso pelo resto de minha vida. Sempre digo aos homens que estão na plateia que eles devem respeitar a vontade das garotas e mulheres. É errado se vingar jogando ácido. Digo que qualquer homem que destrói

a aparência de uma mulher, será desprezado para sempre”. “Creio que é importante usar sua posição para fazer a diferença”.

Ouça o Ídolo Pop Rumi no YouTube: Rumi.Bangladesh

Rumi com amigos da ASF, vítimas de ácido.

 TEXTO: MONICA Z AK FOTOS: KIM NAYLOR

ções ao lado das vítimas de ataques com ácido; ele fala sobre o assunto em seus shows, entre uma canção e outra. “Eu geralmente canto em shows e programas de rádio e TV. Sempre foco nos homens que estão na multidão. E digo que homens de verdade não jogam ácido. Homens de verdade não enxergam as cicatrizes e marcas daqueles que foram atacados. Um homem de verdade não olha as aparências – todas as pessoas são bonitas”. O cantor Rumi abriu seus olhos para o que acontecia em seu país através de seu tio. Ele trabalhou por oito anos

Ele acaba de passar pela décima cirurgia”. “Hoje sou um garoto normal do segundo ano”, diz Mamun. “Eu tenho vários amigos e jogo críquete. Eu torço para o Royal Bengal Tigers”.

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